Às voltas com as voltas que a vida dá

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1 ÀS VOLTAS COM AS VOLTAS QUE A VIDA DÁ… REPORTAGEM ANA CATARINA FERREIRA Nunca na vida eu vou trabalhar na Carris, pai!” Eram estas as palavras de Rui Lopes, 30 anos, cada vez que, há muito tempo atrás, o pai tentava convencê-lo a seguir os seus passos e enveredar por uma vida profissional sobre quatro rodas na Carris. Hoje é terça-feira, mais uma terça-feira comum, e não falta muito para a uma da tarde. Rui sai em passo calmo da sua nova casa, em Benfica, que partilha com Sara, a companheira, e Bruna, a filha de oito anos nascida de uma relação anterior. Veste já, a par do sorriso simpático, a farda azul. Só falta o crachá amarelo em que se escreve o nome, guardado ainda na pequena bolsa que usa a tiracolo. Mas desengane-se quem pensar que o seu dia começa tão tarde. “Eu não paro!” – confessa, enquanto nos dirigimos, a pé, até à estação de Metro do Colégio Militar No máximo, durmo umas cinco horas por dia. Levanto-me sempre por volta das sete da manhã para preparar a Bruna, dar-lhe o pequeno- almoço e levá- la à escola. Depois vou ao ginásio, volto para casa, saio para ir trabalhar e, geralmente, ao fim do dia, ainda tenho de ir buscar a minha filha.Com toda esta agitação quotidiana, pouco é o tempo que lhe resta para marcar presença nas aulas do curso de Economia, que tem por terminar no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), em Lisboa, onde ingressou em 1999. Ainda para mais porque, como admite, “a preguiça é muita. Às vezes, o que falta é força de vontade”. Ao entrar na carruagem do metropolitano com destino a Sete Rios, não nos sentamos. Não porque o percurso seja curto, mas porque, ao contrário da maioria das pessoas que procura apressadamente um lugar para descansar por uns minutos, Rui prefere ficar de pé. O motivo é simples, ainda que possa não parecer: “Já me basta ter que passar todo o dia sentado!Do curso de Economia passou para a profissão que antes rejeitava e não se arrepende. Porque a vida dá muitas voltas, Rui Lopes não esperava estar onde está hoje mas sente-se feliz. Terminar a licenciatura ainda é um objectivo e todos os dias trabalha com um propósito: garantir um bom futuro para a família, que quer numerosa. Em Sete Rios, Rui Lopes prepara-se para enfrentar a rotina diária.

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Reportagem efectuada no âmbito da disciplina de Laboratório de Géneros Jornalísticos.

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ÀS VOLTAS COM AS VOLTAS

QUE A VIDA DÁ…

REPORTAGEM ♦ ANA CATARINA FERREIRA

“Nunca na vida eu vou trabalhar na Carris, pai!” Eram estas as

palavras de Rui Lopes, 30 anos, cada vez que, há muito tempo

atrás, o pai tentava convencê-lo a seguir os seus passos e

enveredar por uma vida profissional sobre quatro rodas na Carris.

Hoje é terça-feira, mais uma terça-feira comum, e não falta muito

para a uma da tarde. Rui sai em passo calmo da sua nova casa,

em Benfica, que partilha com Sara, a companheira, e Bruna, a filha

de oito anos nascida de uma relação anterior. Veste já, a par do

sorriso simpático, a farda azul. Só falta o crachá amarelo em que se

escreve o nome, guardado ainda na pequena bolsa que usa a

tiracolo. Mas desengane-se quem pensar que o seu dia começa tão

tarde. “Eu não paro!” – confessa, enquanto nos dirigimos, a pé, até

à estação de Metro do Colégio Militar – “No máximo, durmo umas

cinco horas por

dia. Levanto-me

sempre por

volta das sete

da manhã para

preparar a

Bruna, dar-lhe o

pequeno-

almoço e levá-

la à escola.

Depois vou ao

ginásio, volto

para casa, saio

para ir trabalhar

e, geralmente,

ao fim do dia, ainda tenho de ir buscar a minha filha.”

Com toda esta agitação quotidiana, pouco é o tempo que lhe resta

para marcar presença nas aulas do curso de Economia, que tem

por terminar no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG),

em Lisboa, onde ingressou em 1999. Ainda para mais porque,

como admite, “a preguiça é muita. Às vezes, o que falta é força de

vontade”.

Ao entrar na carruagem do metropolitano com destino a Sete Rios,

não nos sentamos. Não porque o percurso seja curto, mas porque,

ao contrário da maioria das pessoas que procura apressadamente

um lugar para descansar por uns minutos, Rui prefere ficar de pé.

O motivo é simples, ainda que possa não parecer: “Já me basta ter

que passar todo o dia sentado!”

Do curso de Economia passou para a profissão que antes rejeitava

e não se arrepende. Porque a vida dá muitas voltas, Rui Lopes não

esperava estar onde está hoje mas sente-se feliz. Terminar a

licenciatura ainda é um objectivo e todos os dias trabalha com um

propósito: garantir um bom futuro para a família, que quer

numerosa.

♦ Em Sete Rios, Rui Lopes prepara-se para enfrentar a rotina diária.

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Nascido em casa num bairro lisboeta, onde foi criado pelos pais, de

nacionalidade cabo-verdiana, juntamente com as duas irmãs –

Vanda e Neide -, Rui nunca deixou de procurar ir mais além e

conhecer horizontes tão amplos como os seus sonhos e ambições.

Esse desejo de realização fê-lo escapar à carreira para a qual o pai

o incentivava e transformar-se no único rapaz do grupo de amigos

a entrar para o Ensino Superior. “O meu pai dizia-me: «filho, vai lá

para a Carris, ganhas os teus 140 contos e ninguém te chateia!»,

mas eu queria seguir um caminho diferente, tinha outros objectivos.

Hoje muita gente se refugia na Carris,

mas na altura essa era a opção de

quem não tinha outra saída. Não era

o que eu queria para mim”, recorda.

Foi assim que decidiu continuar a

estudar. Contudo, houve outras

hipóteses ponderadas além da

Economia, que veio a ser a definitiva.

“Cheguei a pensar em tirar

Engenharia Informática, mas não

tinha média para entrar. O curso de Publicidade e Marketing

também me atraía, só que, em Lisboa, só era leccionado em

universidades privadas e eu não podia pagar propinas tão altas”,

conta, acrescentando: “quando entrei no ISEG, já com estatuto de

trabalhador-estudante, pagava 300 euros de propinas e queixava-

me! Não fazia ideia que não muito tempo depois o valor ia disparar

desta maneira…” Por sempre se ter visto obrigado a financiar os

seus próprios estudos, a possibilidade de tirar o curso revestia-se

de um carácter especial. Porém, como quando ingressou já tinha

20 anos, Rui nunca se integrou muito bem na faculdade, porque se

sentia “velho ao pé dos colegas”, o que contribuiu para “uma certa

desmotivação”.

Já em Sete Rios, com o Jardim

Zoológico como fundo, a hora da

rendição aproxima-se e, porque a

expressão parece complicada, Rui

apressa-se a explicá-la. “Basicamente,

a rendição é a troca com outro colega

quando o turno dele chega ao fim.

Nada de especial para o nome que

tem, não é? [risos] ” O relógio marca

13:30h e faltam cerca de 10 minutos

para o autocarro nº755, proveniente do Poço do Bispo, chegar ao

terminal, pelo que ainda há tempo para dois dedos de conversa

antes de Rui se sentar ao volante. Ao olhar em redor, as palavras

saem espontaneamente. “O que é muito engraçado é que desde a

senhora da limpeza até ao doutor toda a gente apanha o autocarro.

Uma das coisas mais interessantes no meu trabalho é poder ver

tantas pessoas diferentes e sentir de perto o contraste que existe

na nossa sociedade”, partilha, deixando transparecer o gosto

curioso pela profissão que antes não considerava sequer uma

possibilidade. “Apesar de gostar muito de Economia desde miúdo,

a verdade é que não me via fechado num escritório o dia inteiro,

entre papéis e stress. Sempre disse que queria um trabalho ao ar

livre. Este não é propriamente ao ar livre, mas… [risos]”.

“O que é muito engraçado

é que, desde a senhora da

limpeza até ao doutor,

toda a gente apanha o

autocarro.”

Rui nunca se integrou

muito bem na faculdade,

porque se sentia “velho ao

pé dos colegas”, o que o

desmotivou.

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O nascimento da filha, Bruna, dois anos depois da entrada na

faculdade, fez com que Rui se afastasse novamente dos estudos e

trouxe-lhe responsabilidades acrescidas, como o próprio

reconhece. De lado ficou, por exemplo, o desejo de fazer

ERASMUS.

“Gostava muito

de ter ido

estudar um ano

para o

estrangeiro,

talvez para

Itália. Acho que

teria sido muito

enriquecedor a

nível pessoal,

até porque

tenho um

espírito muito

aventureiro,

mas não foi possível”, lamenta. E porque não agora? “Hoje em dia

tenho uma família, tenho outras obrigações e não podia deixá-las

para trás, mas tudo na vida tem as suas vantagens e

desvantagens.”

Uns anos mais tarde, acabou mesmo por se inscrever na Carris

sem que, curiosamente, o pai soubesse. Só depois de fazer todos

os testes necessários e ser aprovado é que deu a novidade em

casa: “Quando me inscrevi, o meu pai não fazia ideia. Um dia

cheguei ao pé dele e

disse-lhe «Pai, vou para

a Carris!» Acho que isso

o deixou contente”,

relembra.

O facto de não ter tido

oportunidade de

concretizar algumas das

metas que traçou, das

quais não gosta de falar,

ensinou-lhe, no entanto,

lições importantes, que

não quer guardar só

para si: “Sou uma

pessoa muito

retrospectiva, muito analítica e sei que,

por vezes, não deveria pensar tanto.

Vou sempre aconselhar os meus filhos

a não pensarem demais, porque há

momentos na vida em que temos de

agir por impulso para a aproveitar em

pleno”.

A experiência da paternidade não há-

de, aliás, ficar por aqui. Com os olhos

castanhos a brilhar, como sempre,

mais do que nunca, ao falar no nome

de Bruna, Rui não esconde o desejo de encher a casa de crianças

e defende que, apesar da crise que assombra as famílias

portuguesas, esse não é um verdadeiro impedimento, porque há

“Quero muito deixar

alguma coisa garantida

para os meus filhos e é

com esse intuito que

trabalho todos os dias.”

♦ Bruna, a filha de oito anos, é a menina dos olhos de Rui.

♦ A companheira, Sara, é, desde há largos anos, o suporte do dia-a-dia de Rui.

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sempre espaço para mais um. “É verdade que as dificuldades

existem, mas os meus pais sempre me ensinaram que onde

comem dois comem três. Para mim, isso não seria um problema.

Penso que o que realmente se passa é que, cada vez mais, as

pessoas querem aproveitar a sua liberdade, investir na carreira, e a

família passa para segundo plano. Não sou a favor disso, mas não

as critico. É uma opção.” É uma opção, sim, mas não para Rui.

“Gostava de ter, no mínimo, quatro filhos! Duas meninas e dois

meninos. Já tenho uma, faltam três, mas claro que também

depende da

vontade da Sara”,

diz, sorridente.

É com o futuro da

família no

pensamento que

Rui sai de casa até

ao trabalho e

conduz pelas ruas

de Lisboa. “Agora

temos uma casa

nova. Infelizmente,

ainda é alugada,

mas o nosso

objectivo é comprá-

la. Quero muito deixar alguma coisa garantida para os meus filhos,

e é com esse intuito que trabalho todos os dias. Nesta altura do

campeonato, não podia viver com 500 ou 600 euros. Como as

coisas estão, não nos podemos queixar de não ganhar muito

porque há sempre quem esteja pior”.

O autocarro chega, finalmente, a Sete Rios, não muito cheio. Os

passageiros abandonam o seu interior, uns velhos, outros novos,

uns bem-dispostos e outros nem tanto, seguidos de um motorista

de traços simpáticos que nos saúda com um “boa tarde” animado,

dando ao colega e amigo um forte aperto de mão.

- “Então, pá?! Já acabou por hoje? Boa vida! Este gajo é que tem

muita história para contar aqui na Carris, não é?” – brinca Rui, que

é agora o senhor que se segue, aproveitando para provocar João,

com quem em poucos instantes troca de lugar.

Já sentado ao volante, com o crachá que saiu de dentro da mala

agora preso no pólo azul-escuro que cobre a camisa de um azul

mais fraco, analisa atentamente o horário que deve ser cumprido.

“Gosto sempre de chegar à hora prevista para não deixar as

pessoas à espera, porque já estive do outro lado e sei como é. Há

muitos motoristas que não o fazem, ninguém me paga mais por

isso mas é uma questão de ficar bem com a minha consciência”,

argumenta, enquanto ajeita cuidadosamente os óculos escuros.

Filho de um motorista, Rui sentiu na pele a ausência que pode advir

dos horários exigentes da profissão e, hoje no papel de pai, procura

fazer com que essa ausência não se reflicta demasiado na vida

familiar. Esse esforço impede-o de, como gostaria “se fosse

solteiro”, trabalhar apenas à noite, porque “o ordenado é melhor”,

mas permite-lhe desfrutar de mais tempo em casa e acompanhar o

crescimento da filha. “Às vezes” – confidencia – “havia semanas em

que não tinha sequer tempo para conversar com o meu pai. Sabia

que ele lá estava, mas mal nos víamos, e hoje faço os possíveis

para que o mesmo não aconteça comigo e com a Bruna. Aliás, até

já tive de trabalhar no Natal, mas tentei sempre que fosse de

♦ Rui demonstra grande preocupação com o cumprimento dos horários, por saber como é estar do lado de quem espera.

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madrugada para poder estar com ela, trocar os presentes…é

importante que assim seja”, sublinha, com convicção.

Mas, apesar dos benefícios, as carreiras nocturnas também não

são um mar de rosas, como a própria experiência lhe mostrou,

depois de uma situação pela qual passou recentemente: “Há uns

tempos, à noite, transportei três indivíduos que entraram sem pagar

bilhete e, ao sair, partiram-me o vidro de trás do autocarro. No dia

anterior, tinha acontecido exactamente o mesmo a um colega meu.

Trabalhar à noite é perigoso e, além disso, temos de ser

cuidadosos. Não podemos tomar atitudes drásticas para

salvaguardar a segurança dos passageiros. Com os carros abertos

é sempre um risco que entre alguém com más intenções”, revela.

A viagem começa e, como sempre, a música acompanha Rui

durante o percurso, através de um “fone” aconchegado no ouvido:

“A música ajuda-me a passar o tempo, a relaxar… é uma prática

cada vez mais comum entre os motoristas, hoje em dia não é raro

reparar num fiozinho preto pousado por cima da farda! [risos]”. Pelo

caminho, confessa não ser muito bom com nomes de ruas. Talvez

tenha sido isso que o impediu de, um pouco antes, ajudar uma

senhora que procurava a Avenida D. Rodrigo da Cunha, mas um

pequeno mapa resolveu o problema. Umas paragens depois

contornamos o Parque da Bela Vista, que lhe acende a memória.

“É aqui que se faz o Rock In Rio, o recinto é enorme! Tenho vindo

sempre. Sou um «bom ouvido», ainda que prefira kizomba e hip-

hop. Só não suporto berros!”, partilha, divertido, enquanto troca um

bilhete por um euro e quarenta.

Porque a vida não se resume ao trabalho, além da música, Rui não

dispensa os exercícios no ginásio. “Gosto muito de ir ao ginásio e

tenho necessidade de o fazer. Esta é uma profissão em que me

mexo muito pouco e o corpo ressente-se e, como quero evitar a

barriguinha, tem de ser!”, assume, reconhecendo que as

caminhadas que faz diariamente para reflectir não são suficientes

para manter a forma. “Além do mais, adoro andar a pé. Sempre que

posso nem pego no carro”. Curiosamente, também na cozinha

gasta muitas horas do seu tempo livre. “Adoro cozinhar porque me

ajuda a aliviar o stress e também sou um aventureiro na cozinha.

Se me derem uma receita, eu faço qualquer coisa e ninguém se

costuma queixar – pelo contrário!”, relata, orgulhoso.

Depois de pouco mais de meia hora, o autocarro nº755 que Rui

conduz alcança o terminal, no Poço do Bispo. São vários os que

saem, mais os que entram, depois de uma ronda feita no interior do

veículo para ver se tudo está em ordem.

Algures na Lisboa que agora percorremos, que todos os dias Rui

percorre, continua um curso de Economia por terminar, mas “para

acabar, de certeza absoluta”. Uma menina de oito anos, orgulhosa

do pai e cheia de sonhos, está na escola. Nós preparamo-nos para

“Trabalhar à noite é perigoso e temos de ser

cuidadosos. Não podemos tomar atitudes drásticas em

nome da segurança dos passageiros.

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mais uma volta, como as tantas voltas de outros dias, mas Rui não

se importa. O motivo é simples, ainda que possa não parecer. Por

mais voltas que dê, nunca dará tantas como a vida. ♦

♦ O crachá da Carris evidencia o caminho por onde a vida o levou e do qual não se arrepende: «Gosto muito do meu trabalho.»