Aspectos Neurofisiologicos Da Meditacao

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Neurociências • Volume 3 • Nº 3 • junho-julho de 2006 Revisão Aspectos neurofisiológicos da meditação Neurophysiological aspects of meditation Marcello Árias Dias Danucalov*, Roberto Serafim Simões*, Geraldo Vidile Júnior** Resumo A produção científica recente vem abordando aspectos da neurofisiologia cerebral relacionada ao estado meditativo em duas vertentes. A primeira aborda os efeitos terapêuticos, tanto físicos como mentais, propiciados por essa prática. A segunda investiga os mecanismos fisi- ológicos envolvidos nesse estado alterado de consciência. O surgimento de novas técnicas de imageamento cerebral propiciou grandes avanços nesses estudos. Os trabalhos mais recentes têm sido direcionados aos aspectos neurofisiológicos relacionados à atividade meditativa, com ênfase na atividade eletroencefalográfica, no mapeamento das regiões neurologicamente ativas ou inativas durante o processo meditativo, e nos neurotransmissores envolvidos. Palavras-chave: meditação, neurofisiologia, neuroquímica, neurotransmissores. Abstract This study reviews the recent scientific research on brain neurophysiology related to meditation. Historically, research on meditation has concentrated either on the investigation on both physi- cal and mental benefits obtained from its practice, or on the physiological bases of this altered state of consciousness. These studies have advanced very much thanks to new brain scanning techniques. The most recent works have focused on neurological aspects of meditation, espe- cially on the analysis of the electroencephalographic data, on patterns of brain activity, and the neurotransmitter pathways involved. Key-words: meditation, neurophysiology, neurochemistry, neurotransmitters. MARCELLO ÁRIAS DIAS DANUCALOV é Mestre em Farmacologia pela UNIFESP, Coordenador do Laboratório de Fisiologia do Exercício e do Grupo Integrado de Pesquisas em Ciências da Saúde (GIPECS) do Centro Universitário Monte Serrat, UNIMONTE Santos SP, ROBERTO SERAFIM SIMÕES Pós-Graduado em Fisiologia do Exercício pela UNIMONTE, Pós-Graduado em Psicologia do Esporte pela UniFMU, Pós-Graduado em Yoga pela UniFMU, Membro pesquisador do GIPECS, GERAL- DO VIDILE JÚNIOR Graduado em Biologia, pela USP, Aluno do Curso Seqüencial de Naturo- logia da UNIMONTE, Membro pesquisador do GIPECS Correspondência: Marcello Árias Dias Danucalov, Av. Rangel Pestana, 99 Sala 123 - Bloco G (Vila Mathias) 11013- 551 Santos SP, Tel: (13) 3228- 2244/3251-9862, E-mail: [email protected], [email protected] Introdução Em sua origem histórica, a meditação está intrinsecamente ligada ao sistema yoga, desenvolvido na Índia, embora também tenha sido adotada por outros sistemas filosóficos. Uma das definições mais adequadas para o yoga pode ser encontrada em textos que datam de aproximadamente 2000 anos atrás, os sutras de Patanjali. Um desses sutras conceitua o yoga como sendo um conjunto de técnicas que objetiva à paralisação voluntária das constantes modificações mentais, a restrição dos turbilhões da consciência, ou a dissolução de todos os centros de reação da mente []. Do ponto de vista fisiológico, a meditação pode ser conceituada como sendo um estado alterado de consciência, onde o organismo se encontra numa

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Neurociências • Volume 3 • Nº 3 • junho-julho de 2006 �

Revisão

Aspectos neurofisiológicos da meditação

Neurophysiological aspects of meditation

Marcello Árias Dias Danucalov*, Roberto Serafim Simões*, Geraldo Vidile Júnior**

ResumoA produção científica recente vem abordando aspectos da neurofisiologia cerebral relacionada

ao estado meditativo em duas vertentes. A primeira aborda os efeitos terapêuticos, tanto físicos como mentais, propiciados por essa prática. A segunda investiga os mecanismos fisi-ológicos envolvidos nesse estado alterado de consciência. O surgimento de novas técnicas de imageamento cerebral propiciou grandes avanços nesses estudos. Os trabalhos mais recentes têm sido direcionados aos aspectos neurofisiológicos relacionados à atividade meditativa, com ênfase na atividade eletroencefalográfica, no mapeamento das regiões neurologicamente ativas ou inativas durante o processo meditativo, e nos neurotransmissores envolvidos.

Palavras-chave: meditação, neurofisiologia, neuroquímica, neurotransmissores.

AbstractThis study reviews the recent scientific research on brain neurophysiology related to meditation.

Historically, research on meditation has concentrated either on the investigation on both physi-cal and mental benefits obtained from its practice, or on the physiological bases of this altered state of consciousness. These studies have advanced very much thanks to new brain scanning techniques. The most recent works have focused on neurological aspects of meditation, espe-cially on the analysis of the electroencephalographic data, on patterns of brain activity, and the neurotransmitter pathways involved.

Key-words: meditation, neurophysiology, neurochemistry, neurotransmitters.

Marcello Árias Dias Danucalov

é Mestre em Farmacologia

pela UNIFESP, Coordenador

do Laboratório de Fisiologia do

Exercício e do Grupo Integrado

de Pesquisas em Ciências

da Saúde (GIPECS) do Centro

Universitário Monte Serrat,

UNIMONTE Santos SP, roberto

serafiM siMões Pós-Graduado

em Fisiologia do Exercício pela

UNIMONTE, Pós-Graduado em

Psicologia do Esporte pela

UniFMU, Pós-Graduado em

Yoga pela UniFMU, Membro

pesquisador do GIPECS, Geral-

Do viDile Júnior Graduado em

Biologia, pela USP, Aluno do

Curso Seqüencial de Naturo-

logia da UNIMONTE, Membro

pesquisador do GIPECS

Correspondência: Marcello

Árias Dias Danucalov, Av.

Rangel Pestana, 99 Sala 123

- Bloco G (Vila Mathias) 11013-

551 Santos SP, Tel: (13) 3228-

2244/3251-9862, E-mail:

[email protected],

[email protected]

Introdução

Em sua origem histórica, a meditação está intrinsecamente ligada ao sistema yoga, desenvolvido na Índia, embora também tenha sido adotada por outros sistemas filosóficos. Uma das definições mais adequadas para o yoga pode ser encontrada em textos que datam de aproximadamente 2000 anos atrás, os sutras de Patanjali. Um desses sutras conceitua o yoga como sendo um conjunto de técnicas que objetiva à paralisação voluntária das constantes modificações mentais, a restrição dos turbilhões da consciência, ou a dissolução de todos os centros de reação da mente [�].

Do ponto de vista fisiológico, a meditação pode ser conceituada como sendo um estado alterado de consciência, onde o organismo se encontra numa

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condição hipometabólica, dominado na grande maioria das vezes pelo sistema nervoso autônomo paras-simpático, estando ainda o indivíduo em vigília [2].

Os primeiros estudos realizados com meditação investigaram as alterações na atividade autonômica do organismo, tendo como foco a freqüência cardíaca, a pressão arterial e os parâmetros respiratórios, bem como as alterações eletroencefalográficas [3,4,5]. Estudos posteriores exploraram as alterações hor-monais e imunológicas associadas à prática medita-tiva [6,7,8]. Outros trabalhos abordaram os efeitos clínicos da meditação, tanto nas patologias físicas quanto nas psicológicas [9,�0,��].

As técnicas de imageamento cerebral abriram uma nova frente de pesquisa dos estados medita-tivos, pois propiciaram a exploração dos aspectos neurológicos e da função cerebral associados a essas experiências [�2,�3,�4]. Vários estudos atualmente estão disponíveis na literatura. O presente artigo se propõe a realizar uma revisão desses trabalhos científicos, focados na neurofisiologia associada aos estados meditativos.

A ativação do córtex pré-frontal

Estudos de imageamento cerebral sugerem que as tarefas que requerem uma atenção focada são iniciadas através da ativação do córtex pré-frontal (CPF), particularmente no hemisfério direito [�5-�8]. O giro cingulado parece estar envolvido na atenção focada, provavelmente em conjunto com o CPF [�9]. Considerando que a meditação requer um intenso esforço no foco da atenção, parece provável que esta prática se inicie com a ativação do CPF e do giro cingulado, no hemisfério direito [�2-�4].

Uma das funções do giro cingulado é a de modu-lar a atenção e algumas emoções. Desde que esta área está associada à vontade e à intencionalidade, parece lícito afirmar que este é um pré-requisito para o início da prática meditativa.

Há evidências de que o CPF, quando ativado, es-timula o núcleo reticular do tálamo [20]. Essa ativação requer a produção e a distribuição do neurotransmis-sor glutamato, que é utilizado na comunicação entre os neurônios do CPF, assim como destes com outras estruturas cerebrais. Dentre as funções dessa região talâmica podemos destacar aquelas que governam o fluxo de informações sensoriais para processamento cortical por meio de suas interações com o núcleo geniculado lateral e o núcleo posterior lateral. O gluta-mato também está envolvido nestas funções [2�]. O núcleo geniculado lateral recebe informações visuais

do trato óptico e as redireciona para processamento no córtex estriado [22]. O núcleo posterior do tálamo comunica-se com o lobo parietal posterior superior (LPPS), concedendo-lhe informações sensoriais para que este produza uma percepção e uma orientação do corpo no espaço [23]. Quando excitado, o núcleo reticular libera o neurotransmissor inibitório ácido gama-amino-butírico (GABA) no núcleo geniculado e no núcleo lateral posterior, modulando a chegada de informações ao LPPS [24].

Durante a meditação, devido ao aumento da ati-vação do CPF, é possível apreciar um concomitante aumento na ativação do núcleo reticular do tálamo. Há evidências de que esse fato produz uma diminuição na entrada de informação do LPPS. Inúmeros estudos têm demonstrado um aumento nas concentrações séricas de GABA durante a meditação, possivelmente refletindo o aumento da liberação central deste neu-rotransmissor [25].

Essa diminuição dos sinais aferentes ao córtex visual e ao LPPS pode estar relacionada à liberação do neurotransmissor GABA, o que significaria que uma quantidade reduzida de estímulos externos atinge tais áreas.

O LPPS é altamente envolvido na análise e na integração de vários estímulos externos [26]. Por meio da recepção de estímulos auditivos e visuais vindos do tálamo, o LPPS é capaz de ajudar a gerar uma ima-gem tridimensional do corpo no espaço. Isso suscita as coordenadas espaciais com as quais o corpo é orientado pelo cérebro. Além disso, o LPPS ainda pode fazer distinções entre objetos e exercer influências em relação a estes [27,28]. Essas funções do LPPS são essenciais para que possamos distinguir nosso próprio “eu” do universo que nos rodeia.

A diminuição dos estímulos aferentes para estas áreas cerebrais destinadas à orientação espacial é um importante conceito da fisiologia inerente às práticas meditativas. Se a diminuição dos estímulos aferentes para o LPPS de fato ocorrer, o indivíduo em questão poderia perder o seu senso espacial habitual, e com ele a delimitação do seu próprio “eu” no espaço. Tal conceito pode ser associado aos interessantes relatos encontrados na literatura mística em geral – transcendência, unificação com o Todo universal etc.

O papel do sistema límbico

Em adição à complexa relação entre o córtex e o tálamo, a meditação parece alterar a atividade do sistema límbico.

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O hipocampo age na modulação dos estímulos excitatórios corticais. Inúmeras vias neuronais partem do hipocampo em direção ao CPF, assim como para a amígdala e o hipotálamo [29]. A estimulação do hipocampo diminui a responsividade e a excitabilidade cortical; entretanto, se a excitação cortical é iniciada em um nível baixo, a estimulação do hipocampo tende a aumentar esta atividade [30]. A habilidade do hipocampo para estimular ou inibir a atividade neuronal é dependente dos sistemas associados à liberação dos neurotransmissores glutamato e GABA, respectivamente [2�].

A diminuição dos estímulos aferentes no LPPS direito durante a meditação pode também resultar da estimulação do hipocampo direito. Isso se dá devido à relação de modulação exercida pelo hipocampo em relação à atividade cortical. Se, em adição, ex-istir estimulação direta sobre o hipocampo direito via fibras glutamatérgicas advindas do tálamo, uma poderosa estimulação do hipocampo direito poderá ocorrer. A atividade do hipocampo direito pode au-mentar a estimulação do CPF sobre o tálamo via o núcleo acumbente [3�,32], uma massa de substância cinzenta situada na união entre o putâmen e a cabeça do núcleo caudado.

O hipocampo, ainda, influencia a amígdala ge-rando emoções e alguns tipos de imagens [29]. Logo, muito provavelmente as modulações dos estímulos emocionais, registradas no CPF, devam ser feitas através de aferências vindas do hipocampo graças às suas conexões com a amígdala [33].

O hipotálamo apresenta uma extensa rede de comunicação com o sistema límbico. A estimulação da amígdala lateral direita resulta na excitação da porção ventromedial do hipotálamo, com a subse-qüente estimulação do sistema parassimpático peri-férico [34]. O aumento da atividade parassimpática pode ser associado com a sensação subjetiva de relaxamento explicitada pelos praticantes de medita-ção. A ativação do sistema parassimpático também produziria reduções da freqüência cardíaca e da freqüência respiratória. Todas essas respostas fisi-ológicas foram exaustivamente detectadas durante a meditação.

O papel dos neurotransmissores

No momento em que as freqüências respiratória e cardíaca são reduzidas, o núcleo gigantocelular da formação reticular diminui seus estímulos ao locus coeruleus da ponte, o qual produz e distribui nor-adrenalina (NE) [35].

A NE aumenta a suscetibilidade de algumas regiões cerebrais aos estímulos sensoriais, pois os amplifica sensivelmente [36]. A diminuição dos estímulos no locus coeruleus resulta numa diminu-ição das concentrações de NE [37]. Os metabólitos de catecolaminas tais como NE e adrenalina têm sido encontrados em menores quantidades tanto na urina quanto no plasma durante práticas meditativas [7,38]. Durante a prática meditativa, a diminuição da atividade neuronal do núcleo gigantocelular da formação reticular provavelmente faz com que o locus ceruleus diminua sua liberação de NE no LPPS [35]. Assim, a redução da NE diminuiria o impacto sensorial percebido pelo LPPS, contribuindo para uma menor percepção dos estímulos externos, alterando dessa forma o senso do próprio “eu” no espaço. Nos antigos textos que versam sobre yoga e meditação este fato é denominado prathyahara [�].

O locus ceruleus também ofertaria uma menor quantidade de NE para alguns núcleos do hipotálamo. Sabe-se que o hipotálamo é o responsável pela libera-ção do hormônio liberador de corticotropina (CRH), e isto é feito graças aos estímulos advindos do locus ceruleus [39]. O CRH tem como função primordial estimular a glândula hipófise anterior, particularmente as células responsáveis pela liberação de adrenocorti-cotropina (ACTH) [40]. Este é o hormônio responsável por estimular o córtex das glândulas supra-renais a liberar cortisol, um dos principais hormônios as-sociados ao eixo do estresse [4�]. A diminuição da NE liberada pelo locus ceruleus durante a meditação provavelmente contribui para a diminuição da libera-ção do CRH pelo hipotálamo. Em conseqüência, as concentrações de cortisol também devem decrescer. De fato, muitos estudos constataram uma redução nas concentrações plasmáticas do cortisol durante a meditação [7].

À medida que a prática meditativa prossegue, deve ocorrer uma atividade continuada do CPF, graças à persistência do praticante na focalização de sua atenção. O aumento da atividade do CPF corresponde a um aumento na liberação cortical de glutamato. Isso pode estimular o hipotálamo para que libere beta-endorfina [42]. Esse neurotransmissor produz depressão respiratória, diminuição da dor e redução de sensações associadas ao medo, além de produção de euforia [43], efeitos esses também relacionados à prática meditativa.

A estimulação da parte lateral do hipotálamo pode implicar em alterações na atividade do neuro-transmissor serotonina (5-HT). De fato, os metabólitos serotoninérgicos são encontrados em grande quanti-

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dade na urina, após a meditação [44,7]. A serotonina é um neuromodulador que influencia fortemente as percepções produzidas nos centros visuais presentes no lobo temporal [35]. As células do núcleo dorsal da rafe no tronco cerebral produzem e distribuem 5-HT quando estimuladas pelo hipotálamo lateral e também pelo CPF [45]. Aumentos moderados nas concentrações de 5-HT correlacionam-se bem com efeitos psicológicos positivos, enquanto baixas con-centrações podem estar associadas ao aparecimento da depressão [46].

O aumento na concentração de serotonina, quando combinado com a inervação do hipotálamo lateral na glândula pineal, pode conduzir a um aumento das concentrações do neurohormônio melatonina, através da conversão da 5-HT [47]. A melatonina é um depressor do sistema nervoso central, com concomitante redução da percepção da dor [48] e indução do sono e do relaxamento [49]. Durante a meditação, as concentrações plasmáticas de melatonina tendem a aumentar [6] e metabólitos da melatonina também têm sido encontrados na urina, logo após práticas meditativas [50]. Isso pode-ria contribuir com o aparecimento de sensações de tranqüilidade, assim como uma menor consciência dos estímulos dolorosos [5�]. Talvez esse fato possa explicar parcialmente alguns dos feitos realizados por faquires indianos.

O modelo de Gelhorn e Kiely

Gelhorn e Kiely desenvolveram um modelo dos processos fisiológicos envolvidos na meditação, base-ado quase que exclusivamente no sistema nervoso autônomo (SNA) [52]. Os autores sugeriram que a estimulação intensa e continuada do sistema nervoso simpático ou do parassimpático poderia resultar em descargas neuronais sobrepostas dos dois ramos que compõem o SNA. Inúmeros estudos têm demonstrado uma predominância do ramo parassimpático durante a meditação [53-55]. Contudo, algumas pesquisas identificaram uma maior ativação simpática durante alguns tipos de meditação, e um estudo sugeriu, de fato, uma dupla ativação do sistema nervoso autônomo, resultando numa grande variabilidade da freqüência cardíaca durante o processo meditativo [56]. Tal variabilidade é consistente com as descober-tas sobre a interação dos sistemas autonômicos [57], e ainda correlaciona-se muito bem com as percepções subjetivas de alguns praticantes de meditação, que relatam sensações de extrema calma associadas a um significante estado de alerta.

Dois trabalhos fundamentais: Davidson e Lutz

Davidson et al. [�0] publicaram em 2003 um es-tudo cujo primeiro objetivo era verificar se os efeitos da meditação perdurariam ao longo do tempo. Para isso, foram investigadas as repercussões dessa prática sobre o sistema imunológico algumas semanas após o encerramento do período de treino meditativo. Outra meta do estudo era verificar se a meditação produz-iria uma ativação eletroencefalográfica assimétrica, com predominância da região anterior esquerda do cérebro. Este questionamento fundamentava-se numa sólida base de pesquisas anteriores, que constataram que uma maior atividade do referido lado anterior esquerdo está relacionada com emoções e atitudes mentais positivas do indivíduo.

O grupo experimental dessa pesquisa recebeu um treinamento de oito semanas em meditação, usando uma técnica cujo objetivo é esvaziar a mente de todo e qualquer pensamento (mindfulness medita-tion). O grupo controle não fez qualquer treinamento. Foi feita a avaliação eletroencefalográfica de ambos os grupos, no início e ao final das oito semanas. Em seguida, todos os voluntários foram vacinados contra o vírus da influenza. Algumas semanas depois foram coletadas amostras de sangue de todos os volun-tários para a dosagem de anticorpos.

Verificou-se, ao final do treinamento, como havia sido hipotetizado, que o grupo experimental apresen-tou um significativo aumento da atividade eletroence-falográfica assimétrica do lado anterior esquerdo do cérebro, em relação ao grupo controle. Constatou-se, também, uma produção maior de anticorpos contra o vírus da influenza no grupo de meditadores, em relação ao de controle. Finalmente, para cada indi-víduo do grupo experimental, a magnitude da ativação esquerda do cérebro foi diretamente proporcional à sua taxa de produção de anticorpos.

Os resultados vão de encontro a outras pesqui-sas que apontam para a plasticidade do cérebro, que pode ser treinado mediante uma técnica tal como a meditação, produzindo-se uma maior ativação do lado anterior esquerdo, que como vimos relaciona-se com menor ansiedade e com sentimentos positivos. Por outro lado, a meditação produziu efeitos, expressos em termos de produção de anticorpos, que perman-eceram mesmo após o período em que deixou de ser praticada. Finalmente, até mesmo um breve trein-amento de oito semanas de prática de meditação, em voluntários sem qualquer experiência anterior, traduziu-se em resultados benéficos tais como os descritos acima [�0].

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Em um outro trabalho, Lutz e sua equipe [58] utilizaram-se de recursos avançados de eletroence-falografia para estudar monges budistas tibetanos, com larga experiência em meditação. A técnica apli-cada foi a da “meditação da compaixão”, em que o praticante se esforça para produzir um sentimento de amor profundo e irrestrito por todas as criaturas. O grupo controle foi constituído por jovens universi-tários, sem experiência meditativa.

Constatou-se que o grupo experimental, em relação ao controle, apresentava já no período pré-meditativo um perfil eletroencefalográfico diferente, caracterizado pela presença de ondas gama. Em seguida, durante a fase de meditação, essas os-cilações gama no grupo dos monges budistas foram aumentando em intensidade à medida que a prática meditativa avançava. Além disso, essas ondas apre-sentaram um sincronismo de fase, em regiões do cérebro espacialmente distantes umas das outras.

A ocorrência de ondulações gama de grande am-plitude durante a meditação é um dado novo, que se contrapõe aos registros eletroencefalográficos obtidos até então, que apontavam para uma predominância das ondas alfa ou teta, mais lentas, algumas delas detectadas também no CPF direito. Essa noção está tão sedimentada que, popularmente, a meditação é associada ao “entrar em alfa”, ou seja, é sinônimo de relaxamento mental. No entanto, os próprios autores ressalvam que o equipamento por eles uti-lizado foi programado para detectar prioritariamente essas ondas de ritmo mais rápido (gama), o que não tem acontecido em outros estudos desse tipo. Além disso, no presente caso a técnica meditativa empregada buscou produzir um “estado emocional” (no caso, a compaixão), sem focalização de objeto, ao contrário da maioria dos trabalhos nesta área, que tem analisado a meditação com foco centrado “em um único ponto”. Provavelmente, essas duas modalidades meditativas produzem configurações eletroencefalográficas distintas.

Quanto ao sincronismo de ondas à longa dis-tância, outros trabalhos apontam que essa é uma condição que reflete uma coordenação neuronal em larga escala e, portanto, uma atividade mental de alto nível de organização. O resultado aponta, ainda, para o fato de que o treinamento mental pode alterar os padrões eletroencefalográficos, e que essas alterações são duradouras, podendo ser constatadas mesmo fora dos períodos da prática propriamente dita. Essa idéia é reforçada pela análise de cada monge individualmente, pois o aparecimento das ondas gama é diretamente proporcional ao seu tempo de prática meditativa no

decorrer da vida. Além disso, os efeitos duradouros vão de encontro a um dos objetivos explícitos da medi-tação, que é o de modificar os padrões mentais a fim de que essas mudanças beneficiem o indivíduo em sua vida cotidiana. No entanto, ainda são necessários estudos longitudinais, que acompanhem as respostas de um único indivíduo ao treinamento mental, ao longo do tempo [58].

Conclusões

As pesquisas científicas em meditação, yoga e temas afins têm se intensificado nos últimos anos. Se por um lado essas investigações têm proporcionado grandes avanços às neurociências, elas também têm evidenciado, com bases experimentais, os inúmeros benefícios que essas práticas trazem à saúde.

No entanto, por razões históricas, a meditação é comumente associada à esfera da religiosidade, o que dificulta a sua aceitação por grande parte da co-munidade científica. Nesse sentido, justificam-se as pesquisas nessa área a fim de que seja evidenciado que os efeitos fisiológicos da meditação independem de qualquer conotação mística, apontando para o grande potencial terapêutico dessa prática.

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Neurociências • Volume 3 • Nº 3 • junho-julho de 2006 7

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