Assine 2003 Bacia Pantanal LD - Copiar

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UNESP INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS E CIÊNCIAS EXATAS DEPARTAMENTO DE GEOLOGIA SEDIMENTAR SEDIMENTAÇÃO NA BACIA DO PANTANAL MATO-GROSSENSE, CENTRO-OESTE DO BRASIL MARIO LUIS ASSINE TESE DE LIVRE-DOCÊNCIA Campus de Rio Claro 2003

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Bacia do Pantanal

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  • UNESP

    INSTITUTO DE GEOCINCIAS E CINCIAS EXATAS

    DEPARTAMENTO DE GEOLOGIA SEDIMENTAR

    SEDIMENTAO NA BACIA DO PANTANAL MATO-GROSSENSE, CENTRO-OESTE DO BRASIL

    MARIO LUIS ASSINE

    TESE DE LIVRE-DOCNCIA

    Campus de Rio Claro

    2003

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    Uma imagem vale mais do que mil palavras. (provrbio chins)

    Uma imagem muda perigosa, porque a busca de seu sentido fica livre. (Eduardo Coutinho)

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    AGRADECIMENTOS Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo FAPESP, cujo apoio financeiro ao projeto Dinmica sedimentar atual e evoluo quaternria do leque aluvial do rio Taquari, Pantanal Mato-grossense (processo - 99/00326-4), foi fundamental para que este trabalho pudesse ter sido realizado. Ao Prof. Dr. Paulo Csar Soares, que me despertou o interesse pelo tema e com quem tenho tenho trabalhado h anos no estudo do Pantanal. Ao Prof. Dr. Rodolfo Jos ngulo e aos gelogos Maria Cristina de Souza e Alfredo D. Arajo, da UFPR, por participarem da aventura de realizar as sondagens com vibrotestemunhador no Pantanal, descrever e interpretar os testemunhos recuperados, alm das discusses profcuas sobre o tema. geloga Anglica A. Zacharias, pela inestimvel e incansvel ajuda na preparao de muitas das figuras e da edio do texto. Ao gelogo Alexandre Berner, que tambm participou dos trabalhos de campo e ajudou na confeco de muitas das figuras apresentadas. Aos colegas do Laboratrio de Analise de Bacias LEBAC, da Unesp Rio Claro, pelo apoio; em especial ao Prof. Dr Chang Hung Kiang, por disponibilizar a infra-estrutura do laboratrio, ao Dr. Flvio Luis Fernandes, pela confeco dos modelos digitais do relevo do Pantanal, e aos geofsicos Antonio J. Catto e Jlio Tinen, pela ajuda na tentativa de recuperar informaes sobre levantamentos ssmicos no Pantanal. Ao Prof. Dr. Jos Alexandre J. Perinotto, pelo leitura crtica de parte do texto e sugestes apresentadas. Ao Prof. Dr. Jos C. Stevaux, pelo emprstimo de um trado motorizado e, principalmente, pelo incentivo para estudar os sistemas fluviais. Embrapa/Pantanal, pelo apoio para a realizao dos trabalhos de campo na rea da fazenda Nhumirim; em especial ao colega Carlos R.Padovani que h anos tem colaborado nos trabalhos desenvolvidos no Pantanal. Ao Prof. Dr Paulo Csar Fonseca Giannini, pelo apoio na anlise de amostras; ao Prof. Dr. Paulo Csar Boggiani, pela ajuda e apoio aos trabalhos realizados no Pantanal; ao Prof. Dr. J. Berrocal, pelo envio de informaes sobre terremotos na rea; Prof Dr Naomi Ussami pela gentileza em disponibilizar informaes geofsicas sobre o Pantanal; ao Prof. Dr. Alberto Pio Fiori, que gentilmente disponibilizou imagens de satlite; ao Prof. Dr. Giancarlo Lastria pelo apoio em alguns dos trabalhos no Pantanal; ao gelogo Renato Garcia, que tambm colaborou em alguns dos trabalhos de campo. Universidade Estadual Paulista, pela oportunidade oferecida de prestar o concurso de Livre-Docncia, e aos meus orientadores de mestrado e doutorado, respectivamente, Profs. Drs. Erclio Gama Jr. e Setembrino Petri, que muito colaboraram para que eu pudesse chegar at aqui. s secretrias do Departamento de Geologia Aplicada, que me ajudaram nos trmites e na preparao do memorial; ao Cezrio pela ajuda na confeco de muitas das figuras; enfim, a tantos amigos que me colaboraram na maratona de preparar todo o material necessrio.

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    RESUMO O Pantanal uma bacia sedimentar quaternria localizada na Bacia do Alto Rio Paraguai, na Regio Centro-Oeste do Brasil. A sucesso estratigrfica mostra afinamento textural para o topo e preenchimento essencialmente siliciclstico. O trato de sistemas deposicionais composto por uma plancie fluvial meandrante como sistema distal de vrios leques aluviais dominados por rios, dos quais o mais notvel o megaleque do rio Taquari. Na paisagem atual h muitas feies geomrficas herdadas de diferentes climas, que produziram registros de uma sucesso de eventos do Pleistoceno ao Holoceno. A geometria original de vrios leques aluviais de rios entrelaados est preservada como formas reliquiares, sendo facilmente reconhecveis em imagens de satlite, onde so visveis paleocanais distributrios. Processos elicos foram ativos em alguns lobos abandonados, enquanto outros lobos eram construdos, tendo sido provavelmente mais efetivos durante o perodo de mximo glacial. Lagoas bordejadas por dunas de areia em meia-lua, originalmente depresses de deflao, so formas elicas reliquiares na paisagem do Pantanal. A paisagem tem continuamente mudado desde o fim do Pleistoceno, numa adaptao a um ambiente mais mido e quente, dominante no Holoceno. O surgimento das modernas terras midas (wetlands) ocorreu na transio do Pleistoceno para o Holoceno, assim como a individualizao dos sistemas lacustres. O Pantanal, como hoje o conhecemos, uma vasta plancie com gradiente topogrfico muito baixo e de lento escoamento superficial das guas, por isso sazonalmente inundvel nos meses de vero e outono. Apesar das mudanas climticas, os leques aluviais permaneceram sistemas deposicionais ativos. Novos lobos foram formados ao mesmo tempo em que lobos antigos foram submetidos a processos de pedognese e eroso por sistemas fluviais tributrios. Estes se superimpuseram sobre o padro distributrio dos paleocanais, formando canais perenes e intermitentes, freqentemente chamados de vazantes. Sedimentao atual ocorre principalmente na plancie meandrante do Paraguai, na franja dos leques do Cuiab e do So Loureno, e no lobo distributrio atual do megaleque do Taquari, reas que experimentam forte inundao anual. O rio Taquari apresenta padro distributrio de drenagem no lobo atual de sedimentao, caracterizado pela existncia de muitos pontos de avulso. Canais abandonados e lbulos de areia ocorrem na plancie de inundao, testemunhando o carter mutante do canal do rio. O rio Taquari est confinado na parte superior do megaleque, num cinturo de meandramento entrincheirado em sedimentos de lobos antigos e limitado por terraos marginais. Tectnica tem atuado tambm no desenvolvimento da paisagem do Pantanal, mudando nveis de base de eroso e gradientes topogrficos, assim como condicionado o curso do rio Paraguai na borda oeste da bacia. Feies de direo NE dentro da plancie indicam atividade tectnica sinsedimentar, estando associadas a estruturas do Lineamento Transbrasiliano. Avulso e mudana no curso dos rios so fenmenos naturais na evoluo de leques aluviais, mas esto agora acelerados pela ao antrpica. No rio Taquari, por exemplo, as taxas de agradao no canal tem aumentado, disparando processos de avulso na parte inferior do leque, com mudanas rpidas e de grande magnitude no curso do rio.

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    ABSTRACT SEDIMENTATION IN THE PANTANAL SEDIMENTARY BASIN, WEST-CENTRAL BRAZIL The Pantanal is a Quaternary sedimentary basin located at the left margin of the Upper Paraguay River, west-central Brazil. Basin infilling was mainly by siliciclastic sediments and the stratigraphic succession exhibits an overall fining-upward pattern. The depositional system tract is composed by a large meandering fluvial plain and several marginal alluvial fans, being the Taquari megafan the most striking feature. The present landscape is a complex tropical wetland, with geomorphic features derived from the present conditions and other inherited from successive Pleistocene and Holocene climates. During the Pleistocene, the sedimentary environment was dominated by braided alluvial fans, the original geometry of which is preserved as relict forms, permitting remarkable patterns of distributary paleochannels to be easily recognized in satellite images. Eolian processes were active in some abandoned lobes, contemporaneously with sedimentation in active fan lobes. Closed ponds bordered by lunette sand dunes, originally salt pans produced by eolian deflation, are relict eolian landforms in the Pantanal landscape. Eolian processes were probably more effective at the glacial maximum. Landscape has been changing in the Pantanal area since the end of the Pleistocene in adaptation to a more humid and warmer environment prevailing during Holocene. Initiation of the modern wetland has occurred during the Pleistocene / Holocene transition, with the change to a more humid climate and the individualization of lacustrine systems. The modern Pantanal wetland is a vast expanse of poorly drained lowlands that experiences annual flooding from summer to fall months. Although climatic fluctuations have occurred during all the Holocene, the alluvial fans have remained active depositional systems and lobes were formed by progradation and abandonment. Abandoned lobes were subjected to pedogenesis and fluvial incision, so that superimposed drainage systems were established over ancient lobes. Nowadays, sedimentation occurs mainly in the Paraguay meandering plain, in the base of Cuab and So Loureno fans, and in the active Taquari fan lobe, areas of strong annual flooding. The Taqurai river exhibits a distributary drainage pattern and is characterized by the existence of many points of avulsion. Abandoned channels and sand lobules inside the flood plain testify the changing nature of the river channel. The Taquari River is entrenched in ancient fan lobes in the upper fan and sedimentation takes place in a meandering belt confined by terraces. Tectonics has been playing an important role in the development of the Pantanal landscape as a whole, changing base levels and topographic gradients, and constraining the Paraguay fluvial plain in the western border of the basin. Sedimentation within the Pantanal wetland is also affected by tectonic activity, especially along faults associated with the Transbrasiliano Lineament. Avulsion and shifting are natural sedimentary processes in the evolution of the alluvial fans and have been occurring since the Pleistocene, but they are now accelerated by human occupation. The Pantanal landscape is changing very rapidly because sedimentary processes in the alluvial fans tend to occur at a faster pace than ever before. In the Taquari River, for example, the rates of channel aggradation is increasing, triggering avulsion in the lower fan and changing dramatically the river course.

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    NDICE

    1. INTRODUO.. 11.1. Concepo do mito de Xarayes.. 1.2. O surgimento da denominao Pantanal.. 1.3. Contexto geolgico... 1.4. Escopo do trabalho...1.5. Mtodos utilizados e trabalhos realizados

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    2. BACIA SEDIMENTAR DO PANTANAL

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    3. SISTEMAS DE LEQUES ALUVIAIS: UMA DISCUSSO CONCEITUAL.. 243.1. Caractersticas dos sistemas de leques aluviais. 3.2. Leques dominados por fluxos gravitacionais 3.3. Leques dominados por rios.

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    4. TRATO DEPOSICIONAL DO PANTANAL.. 374.1. Sistemas de leques aluviais4.2. Sistema de plancies fluviais ..4.3. Sistemas lacustres

    384044

    5. MEGALEQUE DO TAQUARI. 475.1. Bacia de drenagem.. 5.2. Cinturo de meandramento.5.3. Lobo distributrio atual.5.4. Lobos abandonados.5.5. Nhecolndia...5.6. Comparao com outros leques aluviais..

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    6. PALEOGEOGRAFIA E PALEOCLIMATOLOGIA... 616.1. Cronologia dos eventos..6.2. Eventos no Pleistoceno.. 6.3. Eventos no Holoceno..

    616471

    7. SEDIMENTAO ATUAL.. 757.1. Processos alocclicos e autocclicos.7.2. Tectnica e sedimentao aluvial....................................................7.3. Dinmica sedimentar.......................................................................7.4. Paisagem mutante...........................................................................

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    8. INTERFERNCIA ANTRPICA NO SISTEMA NATURAL DO PANTANAL. 97

    9. CONSIDERAES FINAIS...........................................................................

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...................................................................

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    NDICE DAS TABELAS

    01 Poos perfurados no Pantanal pela Petrobrs..........................................................

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    02 Resultados das dataes.......................................................................................... 65

    NDICE DAS FIGURAS

    01 Pantanal Mato-grossense: A) Mapa de localizao; B) Mapa digital do terreno, com destaque para terrras abaixo da cota altimtrica de 200m................................

    1

    02 Lago de Xarayes em: A) Mapa do Paragvai datado de 1640; B) Mapa da Amrica do Sul datado de 1749..............................................................................................

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    03 Modelo digital do relevo da Regio Centro-Oeste.....................................................

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    04 Mapa da bacia do Alto Rio Paraguai.........................................................................

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    05 Cenas dos trabalhos de campo.................................................................................

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    06 Localizao das quatro reas onde foram concentrados os trabalhos de campo.....

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    07 Mapa Geolgico ........................................................................................................

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    08 Mapa de ispacas da Formao Pantanal e locao dos poos perfurados na bacia pela Petrobrs na dcada de 60 .....................................................................

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    09 Transecta E-W, do Pacfico borda oeste da Bacia do Paran...............................

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    10 Modelo digital do relevo do Pantanal........................................................................

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    11 Lineamento Transbrasiliano......................................................................................

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    12 Terremotos no Brasil.................................................................................................

    21

    13 Seo ssmica A-B....................................................................................................

    22

    14 Anomalia trmica na regio do Pantanal ..................................................................

    23

    15 Leque aluvial atual, com extenso de aproximadamente 80 km do pice base, na borda sul do deserto de Gobi, Gansu, China......................................................

    25

    16 Perfis topogrficos em leques aluviais......................................................................

    25

    17 Canal entrincheirado e formao de novo lobo deposicional a jusante do ponto de interseco................................................................................................................

    26

    18 Leques dominados por fluxos gravitacionais.............................................................

    28

    19 Modelo deposicional de leques aluviais....................................................................

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    20 Perfis estratigrficos verticais mostrando fcies caractersticas das pores

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    proximais de leques dominados por fluxos gravitacionais........................................

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    21 Leques de rios entrelaados......................................................................................

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    22 Leques de rios entrelaados em plancies de outwash.............................................

    34

    23 Leques de rios de baixa sinuosidade / meandrantes................................................

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    24 Comparao do tamanho de alguns leques aluviais atuais .....................................

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    25 Trato de sistemas deposicionais do Pantanal Mato-grossense................................

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    26 Perfil do rio Paraguai no Pantanal ............................................................................ 3827 Leque do So Loureno............................................................................................

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    28 Leque do Paraguai Corixo Grande ........................................................................

    39

    29 Poro superior do leque do Taquari........................................................................

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    30 Leques dominados por fluxos gravitacionais............................................................

    42

    31 Plancie fluvial meandrante do rio Paraguai a norte de Corumb (Pantanal do Paraguai-Paiagus)...................................................................................................

    42

    32 Meandro do rio Paraguai com desenvolvimento de barras em pontal......................

    43

    33 Plancie fluvial do rio Piquiri, que se apresenta como um rio meandrante de alta sinuosidade...............................................................................................................

    43

    34 Plancie fluvial do rio Negro a sul da regio de lagoas da Nhecolndia ...................

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    35 Lagoas de Mandior e Vermelha .............................................................................

    45

    36 Trato de sistemas deposicionais na borda oeste da Bacia do Pantanal, onde vrios sistemas lacustres podem ser visualizados na margem direita do rio Paraguai, na divisa com a Bolvia.............................................................................

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    37 Mapa do leque do Taquari, mostrando curvas de nvel (metros), paleocanais, cinturo de meandramento na poro superior do leque, lobo distributrio atual e estaes fluviomtricas.............................................................................................

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    38 A bacia de drenagem do rio Taquari , no planalto de Maracaju, sobre rochas terrigenas paleozicas e mesozicas da Bacia do Paran......................................

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    39 Cinturo de meandramento na parte superior do megaleque do Taquari................

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    40 Margem cncava do rio Taquari na localidade de Barranqueiras.............................

    51

    41 Medidas de vazo (ou fluxo) do rio Taquari em trs estaes fluviomtricas...........

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    42 Perfil longitudinal do rio Taquari................................................................................

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    43 Padro de drenagem no lobo distributrio atual do megaleque do Taquari.............

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    44 Avulso no baixo curso do rio Taquari, conhecido como arrombado Z da Costa...

    54

    45 Subdiviso morfolgica do megaleque do Taquari com base no padro geomtrico dos paleocanais...................................................................................... 56

    46 Paleocanais na regio norte do leque do Taquari.....................................................

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    47 Regio da Nhecolndia (poro sul do leque), com a tpica paisagem das lagoas..

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    48 Lagoas da Nhecolndia............................................................................................

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    49 Salinas so isoladas da drenagem superficial por cordes marginais de areia (cordilheiras)..............................................................................................................

    58

    50 Distino entre lagoas de gua doce e salinas em imagem AVIRIS........................

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    51 Vazantes....................................................................................................................

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    52 Comparao do tamanho do Taquari com outros megaleques................................ 6053 Localizao dos pontos de amostragem na Nhecolndia.........................................

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    54 Localizao dos pontos de amostragem na Alta Nhecolndia..................................

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    55 Localizao dos pontos de amostragem a norte do rio Taquari................................

    63

    56 Testemunhos obtidos nas sondagens realizadas.....................................................

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    57 Leques aluviais do Pantanal, com destaque para reas submetidas deflao elica.........................................................................................................................

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    58 Cordes arenosos mais elevados que a superfcie das salinas, considerados dunas em meia-lua....................................................................................................

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    59 Comparao entre imagens de radar e de satlite de uma rea da Nhecolndia....

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    60 Lajes de calcrios impuros portadores de fragmentos de conchas de gastrpodes.

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    61 Entrincheiramento e formao de leques secundrios.............................................

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    62 Seqncia vertical de fcies em leques aluviais.......................................................

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    63 Leques aluviais na provncia Xinjiang no noroeste da China ...................................

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    64 Modelo digital do terreno do Pantanal, com relevo realado para terrenos abaixo da cota altimtrica de 700m......................................................................................

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    65 Rio Paraguai, fluindo de norte para sul no Pantanal do Jacadigo-Nabileque..........

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    66 Lineamentos em imagens de satlite, interpretados como traos de falhas ativas no interior do megaleque do Taquari ........................................................................

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    67 Padro distributrio de drenagem no leque do Cuiab.............................................

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    68 Bloco diagrama representando a sucesso de processos que culmina com a avulso do canal.......................................................................................................

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    69 Esquema ilustrativo da evoluo do leque do Taquari, que se d pela construo e abandono de lobos.................................................................................................

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    70 Lbulos em abandono e em construo na foz do rio Taquari................................ .

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    71 Mudanas de curso do rio Kosi nos ltimos 300 anos..............................................

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    72 Sucesso temporal de imagens de satlite registrando a mudana no curso do rio Taquari a partir da avulso Z da Costa durante a ltima dcada........................... 90

    73 Mapa da foz do rio Taquari, mostrando o atual canal do rio em 1999 e o antigo traado do canal em 1973.........................................................................................

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    74 Parte superior do lobo distributrio atual, onde o rio apresenta barras arenosas emergentes no seu leito e h rompimento dos diques marginais com formao de leques de crevasse .................................................................................................. 92

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    75 Rompimento de diques marginais do rio Taquari na altura da fazenda Caronal.......

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    76 Fenmeno de avulso do canal do Taquari na altura da fazenda Caronal...............

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    77 Novo canal distributrio na margem direita do rio Taquari, formado a partir de rompimento de diques marginais na altura da fazenda Caronal............................... 95

    78 Traado aproximado do novo distributrio na margem direita do rio Taquari, a partir de rompimentos do dique marginal na altura da fazenda Caronal..................

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    79 Defasagem das cheias em diferentes pantanais, numa anlise de um perodo de nove anos que mostra varaiao na magnitude das cheias .....................................

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    80 Nivel mdio do rio Paraguai na estao fluviomtrica de Ladrio ........................... 100

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    1. INTRODUO

    O rio Paraguai tem suas nascentes no Planalto dos Parecis, Estado de Mato Grosso, correndo em terras brasileiras apenas em seu alto curso. Atravessa, a seguir, todo o Paraguai at a divisa com a Argentina, onde desgua no Rio Paran, do qual o principal afluente.

    A bacia hidrogrfica do alto rio Paraguai ocupa uma rea de aproximadamente 345.000 km2 em territrio brasileiro, dos quais cerca de 135.000 km2 constituem a plancie mida (wetland) do Pantanal. As altitudes na plancie do Pantanal variam entre 80 e 190m acima do nvel do mar, caracterizando uma regio deprimida circundada por planaltos (Figura 1).

    Figura 1 Pantanal Mato-grossense: A) Mapa de localizao; B) Mapa digital do terreno, com destaque para terrras abaixo da cota altimtrica de 200m. (confeccionado a partir de dados digitais do terreno, USGS - Dtopo30).

    O Pantanal uma rea mundialmente conhecida como um importante ecossistema, rico pela sua grande biodiversidade, onde a ocupao humana ainda de densidade baixa e as atividades econmicas so restritas pecuria.

    Considerando que o contexto histrico muito importante para entender o Pantanal, antes de caracteriz-lo como entidade geolgica e relacionar os objetivos deste trabalho, so a seguir apresentados a concepo do mito de Xarayes e o surgimento da denominao Pantanal.

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    1.1. A concepo do mito de Xarayes Pelo Tratado de Tordesilhas, toda a bacia hidrogrfica do Paraguai estava situada em terras pertecentes Espanha. Os espanhis, motivados por fabulosas narrativas que davam conta da existncia de grandes riquezas minerais, montaram vrias expedies para explorar as nascentes do rio Paraguai. A histria tema do excelente livro Histria de Um Pas Inexistente (Costa 1999), de onde so extrados os trechos abaixo:

    De Assuno passaram a sair os conquistadores, sempre pelo rio Paraguai acima, procura das contadas riquezas. Nessas entradas comearam a descobrir um lugar intensamente aqutico, nomeando lagoas, rios, baas, montes e portos. Era um mundo onde realidade e fantasia se imbricavam.

    Em sua procura encontraram Xarayes, lugar de grandes guas entrecortadas por rios e habitado por milhares de indgenas. Prximo dali descobriram grandes baas e numa delas fundaram Puerto de los Reyes, que passou a ser o principal entroncamento para as entradas s terras de onde supunham brotar as notcias fabulosas. Logo depois, Xarayes converte-se em uma das portas de entrada para o reino das guerreiras Amazonas e para o Eldorado. Suas primeiras descries apareceram ainda no incio do sculo XVI, foram os conquistadores espanhis Cabeza de Vaca-Pedro Hernndez, Hernando de Ribera e o soldado alemo a servio da Espanha Ulrico Schmidl que, atravs das suas narrativas, introduziram a paisagem inundvel da bacia alto-paraguaia no imaginrio ocidental.

    No entanto esses narradores, apesar de se referirem regio como um espao fluvial lacustre, no descrevem Xarayes como uma lagoa. Em suas narrativas surge um lugar de farta comida, habitado por indgenas possuidores de prata e ouro. Quem transformou a regio numa lagoa foi Antonio de Herrera em sua Histria general de los hechos castellanos em las islas e tierras-firme del mar ocano, publicada pela primeira vez em 1601-1615. Ao descrever a regio encravada no interior da ento Provncia Del Paraguay, Herrera chamou-a de Laguna, inspirando-se em documentos dos conquistadores, e a inscreveu na geografia das conquistas espanholas. Desde ento, a rea inundvel da bacia alto-paraguaia passou a ser reconhecida como a fabulosa Laguna de los Xarayes. (pginas. 17-18)

    Xarayes adquiriu assim expresso cartogrfica, passando a ser representada nos mapas confeccionados a partir da primeira metade do sculo XVII. Muitos deles podem ser encontrados no magnfico livro Tesouro dos Mapas (Miceli 2002), como os mapas apresentados na figura 2.

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    Figura 2 Lago de Xarayes em: A) Mapa do Paragvai datado de 1640 (Hondius II); B) Mapa da Amrica do Sul datado de 1749 (T. Jefferys).

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    1.2. O surgimento da denominao Pantanal Motivados pelas descobertas de ouro, no sculo XVII os bandeirantes avanaram para oeste em direo a Cuiab, tendo como vias de transporte os rios Tiet, Paran, Pardo, Taquari, Paraguai e Cuiab, conforme escreveu Costa (1999):

    Depois que os bandeirantes, liderados por Raposo Tavares, avanaram e destruram Guair e Itatim em meados do sculo XVII, a regio da bacia do Alto Rio Paraguai passou a ser freqentada por paulistas que buscavam descobrir minerais e escravizar ndios. Com este objetivo Pascoal Moreira Cabral subiu os rios do Alto Paraguai e, em 1719, encontrou ouro, criando um ncleo de povoamento minerador em Cuiab. Para l, ento, passou a afluir um grande nmero de aventureiros, estabelecendo-se em volta das minas. Para abastecer e povo-las, amiudaram-se expedies que, saindo de So Paulo, para l transportaram negociantes, mineradores e quantos se deixassem seduzir pela miragem do enriquecimento fcil; eram as Mones do Cuiab, como as definiu Srgio Buarque de Holanda. Estas deixavam as terras paulistas pelo rio Tiet e avanavam as guas do Paran, Pardo, Camapu, Coxim e, da, entrando pelo Taquari, Paraguai, Xianes, dos Porrrudos (o So Loureno) e Cuiab, chegando enfim quelas minas. Passou, ento, a existir um surto migratrio para oeste, transformando os rios pantaneiros em caminhos das Mones. O termo mones dado a estas expedies referia-se ao fato de que inicialmente estas viagens se realizavam durante o inverno, por ser a poca em que os rios tornavam-se mais favorvies navegao. (pginas 180- 181).

    A partir do baixo curso do rio Taquari, os bandeirantes encontraram terras

    alagveis, que se estendiam pelos rios Paraguai e Cuiab acima. Passaram a referir-se a elas como Pantanal, o que est muito bem esclarecido nos textos abaixo, extrados do livro escrito por Costa (1999):

    Em meados do sculo XVIII, a mesma regio passou a ser o Pantanal. A denominao foi dada pelos portugueses del Brasil, os monoeiros. Estes, seguindo as rotas abertas pelos bandeirantes paulistas, avanaram alm dos limites fixados em 1494 em Tordesilhas e, no incio dos anos setecentos, fizeram daquelas guas seu caminho s terras conquistadas. Desconhecendo a Laguna de los Xarayes e a geografia castelhana, ao chegarem plancie inundvel da bacia do Alto Rio Paraguai, denominaram-na Pantanais; segundo definiram, so campos alagados, com vrias lagoas e sangradouros. (pgina19) Diferentemente das entradas espanholas realizadas com bergantins que, pelo seu tamanho, no navegavam os rios menores, estas novas expedies utilizavam embarcaes de formato indgena grandes canoas esculpidas no interior do tronco inteiro de uma rvore, sem quilha, sem lema, nem navegao a vela, os bateles -- , que

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    tanto cruzavam os grandes rios Paran e Paraguai, como os de pouca gua. Estas possibilitaram aos monoeiros subir os rios de alm Xarayes. A sua direo era de responsabilidade dos pilotos prticos, empricos conhecedores daqueles labirnticos caminhos. (pgina 182) No horizonte histrico, portanto, o Pantanal aparece como uma inveno luso-brasileira tendo sua origem em meados do sculo XVIII. Sua primeira definio foi encontrada num texto de 1727: Pantanal chamam os Cuiabanos a umas vargens muito dilatadas, que comeando no meio do Taquari, vo acabar quase junto ao mesmo rio Cuiab. Trata-se, portanto, de uma denominao dada pelos mamelucos paulistas que durante o sculo XVIII percorriam a regio com suas Mones. Estes, ao dominarem o espao, dominaram tambm sua imagem constitutiva. Durante alguns anos, a castelhana Laguna de los Xarayes convive com o luso-brasileiro Pantanal. Porm, pouco a pouco, essas imagens acoplam-se, e os campos alagados pantaneiros se sobrepem secular e fabulosa lagoa. Em seguida, o mistrio desfeito. Em meados do sculo XVIII, os demarcadores de limites, com seus saberes ilustrados, despiram-na das maravilhas quinhentistas e a dimensionaram como espao geograficamente determinado. A famosa lagoa passou ento a ser nada mais que o rio Paraguai espraiado. Esse rio, no podendo conter todas estas guas no seu leito, as estende de um lado a outro, porque o pas horizontal, resumiu o demarcador Flix de Azara. Todavia, estas guas espraiadas j eram os campos alagados do Pantanal. ( pginas 19-20)

    Entretanto, o mito sobre a existncia de Xarayes persiste ainda hoje no imaginrio popular. No mais simplesmente como uma laguna, mas como um mar, que no passado teria coberto todas as terras baixas da Bacia do Alto Paraguai. Assim, o termo Mar de Xarais freqentemente utilizado, mesmo na mdia, embora na maioria vezes sem conotao precisa, algumas vezes como sinnimo de Pantanal. Por exemplo, em reportagem do Jornal O Estado de So Paulo, de 17 de janeiro de 1999, encontra-se a seguinte passagem: Outra produo a ser exibida no fim do ano Pantanal - Mar de Xarais. Novo projeto da Canal Azul, do mergulhador e videomaker Lawrence Wahba, uma co-produo com um canal de TV da Nova Zelndia. 1.3. Contexto geolgico

    A anlise dos trabalhos publicados permitiu constatar que o conhecimento existente sobre a geologia da Bacia do Pantanal ainda extremamente pobre. H poucas informaes sobre tectnica, cronoestratigrafia, evoluo paleogeogrfica e processos sedimentares atuais.

  • 6

    O Pantanal uma bacia sedimentar tectonicamente ativa, caracterizada por uma dinmica sedimentar que produz mudanas constantes na paisagem. Muitas das feies morfolgicas existentes so formas reliqueares de uma evoluo paleogeogrfica condicionada por mudanas climticas e tectnicas que vm ocorrendo desde o final do Pleistoceno.

    As plancies do Pantanal compem parte de uma unidade geomorfolgica denominada Depresso rio Paraguai, que circundada pelos planaltos de Maracaju-Campo Grande e Taquari-Itiquira a leste, Guimares e Parecis a norte, Urucu-Amolar a oeste e Bodoquena a sul (Figura 3).

    Figura 3 Modelo digital do relevo (confeccionado a partir de dados digitais do terreno, USGS - Dtopo30). A Bacia do Pantanal separada da Bacia do Chaco (siutada no Paraguai) por uma estreita passagem no Planalto Residual do Urucum-Amolar, entalhada em terrenos pr-cambrianos.

    Embora a denominao Pantanal derive da palavra pntano, o Pantanal no

    um grande pntano. uma plancie alagvel (wetland) que experimenta extensa e prolongada inundao sazonal que se prolonga de janeiro a junho, mas com picos de inundao mxima em meses distintos em diferentes compartimentos geogrficos da plancie.

  • 7

    Com base nas caractersticas das inundaes, o Pantanal foi subdividido em nove diferentes pantanais, subdiviso que reflete a compartimentao geomorfolgica da plancie (Figura 4). O Paraguai o rio-tronco de um trato deposicional composto principalmente por vrios grandes leques aluviais marginais. Dentre os leques, o do Taquari (Braun 1977) o mais espetacular, perfazendo cerca de 37% da rea da plancie pantaneira, o que o coloca entre os maiores leques aluviais do mundo. 1.4 - Escopo do trabalho

    O escopo deste trabalho caracterizar a sedimentao quaternria da bacia do Pantanal Mato-grossense, visando apresentar uma anlise que contemple o maior nmero de aspectos envolvidos na sua geologia. Todavia, uma vez que informaes de subsuperfcie so escassas e muito vagas, a anlise foi centrada no trato de sistemas deposicionais que produziu a atual geomorfologia da plancie. 1.5 Mtodos utilizados e trabalhos realizados

    Como a Bacia do Pantanal uma bacia sedimentar interior, o espao de acomodao condicionado essencialmente pela tectnica da bacia e de seu entorno. Assim, antes de tudo foi necessrio levantar as informaes disponveis sobre a bacia, para que se pudesse delinear, ao menos em suas linhas gerais, o arcabouo tectnico no qual tem-se processado o preenchimento sedimentar da bacia. Os resultados obtidos so discutidos no captulo 2, onde so fornecidas as escassas informaes existentes sobre o embasamento, os principais elementos estruturais e as informaes de subsuperfcie. Os dados foram analisados em conjunto luz da hiptese tectnica aventada para explicar sua origem.

    Sobre o preenchimento sedimentar da bacia, h muito vem sendo ressaltada a existncia de de vrios leques aluviais como ambientes deposicionais principais, em grande parte responsveis pelo modelado atual da paisagem. No so, entretanto, leques daquele tipo clssico estudado por Bull (1963) no vale da Morte na Califrnia, onde os fluxos gravitacionais so os principais agentes deposicionais. So leques construdos essencialmente por rios, como os leques dos rios Kosi (ndia) e Okavango (Botswana). A classificao destes sistemas como leques aluviais foi questionada por Blair & McPherson (1994), o que gerou uma dicotomia nos anos 90 com relao ao conceito de leque aluvial. Sendo assim, julgou-se

  • 8

    conveniente fazer uma reviso da literatura sobre leques aluviais, procurando-se adotar conceitos norteadores para o trabalho, o que est apresentado no captulo 3.

    Rio

    Piquiri

    Piraim

    Cassang

    a

    Alegre

    Caraca

    r

    Neb

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    e

    Apa

    Negro

    Taraqu

    i

    Rio

    Itiquira

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    Para

    guai

    Porto Conceio

    PARAGUAI

    BOLIVIA

    22o

    14o

    16o

    18o

    20o

    58o 56o 54o

    100 km

    1

    2

    3

    9

    Nhecolndia

    Planaltos eSerranias

    Depresso doParaguai

    Fecho dos Morros

    PortoMurtinho

    Rondonpolis

    Coxim

    Cuiab

    Cceres

    Corumb

    4

    Forte Coimbra

    Miranda A aquid uana

    Aquidauana

    5

    Miranda

    Nab

    ilequ

    e

    6

    Taquari

    Coxim

    Para

    guai

    Divisor de guas daBacia do Alto Paraguai

    Plancies do PantanalCorixo Grande - Paraguai

    Cuiab - Bento Gomes

    So Loureno

    1

    2

    3

    Piquiri - Itiquira - Paraguai - Paigus

    Taquari

    Negro

    456

    Miranda - Aquidauana

    Jacadigo - Nabileque

    78

    9

    LDFD Leques dominadospor fluxos de gravidade

    LDFG

    LDFG

    PlanaltoTaquari - Itiquira

    PlanaltoMaracaju -

    Campo Grande

    Planalto dosGuimares

    Planalto daBodoquena

    ProvnciaSerrana

    Porto daManga

    Rio

    Lagos

    8

    Planalto dosParecis

    9

    Planalto residual doUrucum - Amolar

    7Serra Solteira

    Morrinho

    Figura 4 Mapa da bacia do Alto Rio Paraguai (modificado de Brasil e Alvarenga, 1988). Divisores de guas esto localizados nos planaltos do leste e do norte. As plancies do Pantanal incluem leques aluviais (1 = Paraguai - Corixo Grande; 2 = Cuiab; 3 = So Loureno; 4 = Taquari; 5 = Aquidauana; 6 = Paraguai Nabileque) e plancies fluviais (7 = Piquiri; 8 = Paraguai-Paiagus: 9 = Negro). Unidades geomorfolgicas (planaltos) segundo Franco & Pinheiro (1982).

  • 9

    O trato de sistemas deposicionais peculiar e o acesso difcil na maior parte da rea, especialmente na poca das cheias. Por isso, a caracterizao dos sistemas foi feita com base em imagens de satlite (nove cenas datadas de 1996), utilizando-se o software ER Mapper 6.0. Para checar parte das interpretaes foi feito um sobrevo no Pantanal com durao de trs horas e meia, quando diversos aspectos da paisagem foram fotografados e filmados. Durante um dia foi feito percurso pelo rio Paraguai com barco para reconhecimento de feies observadas nas imagens. Para completar, uma campanha de campo para reconhecimento foi realizada, margeando o leque de Corumb a Rondonpolis, com tentativas de incurso no Pantanal para verificao do estado de vias de acesso e viabilidade de realizao das sondagens programadas para serem realizadas com vibrotestemunhador. Uma sntese dos sistemas reconhecidos apresentada no captulo 4.

    O leque do Taquari a feio mais notvel na geomorfologia do Pantanal. um sistema deposicional imenso e pouco conhecido geologicamente. Alm da interpretao de imagens de sensores remotos, foram realizadas trs campanhas de campo, ocasio em que foram descritas e amostradas reas com caractersticas morfolgicas distintas, procurando-se assim ter uma viso global do sistema em seus aspectos morfolgicos e sedimentolgicos. Os resultados alcanados esto apresentados no captulo 5.

    Para o planejamento e execuo dos trabalhos de campo foi importante: a) realizao nos meses de estiagem (agosto a novembro); 2) escolha cuidadosa de vias de acesso, pois mesmo as melhores requerem veculos com trao nas quatro rodas; 3) bases de apoio. O deslocamento para o Pantanal foi feito com um jipe e uma S-10, qual foi acoplada uma carreta para transportar os equipamentos (dois vibrotestemunhadores completos e um trado motorizado) e canos de alumnio de seis metros de comprimento (Figura 5-A). Muitas dificuldades foram encontradas, a comear pelo deslocamento no interior do leque.

    O grande problema enfrentado, entretanto, esteve relacionado s sondagens rasas programadas para serem realizadas com vibrotestemunhadores. Ao contrrio da preocupao inicial quanto recuperao de amostras atravs de vibrotestemunhador, dada a expectativa de perfurar areias friveis, o que ocorreu foi justamente o contrrio. A recuperao foi de praticamente 100% em todas as sondagens, mas a penetrao foi muito difcil, em muitos casos no tendo sido possvel ultrapassar o primeiro metro com o vibrotestemunhador. O alto grau de compactao e a existncia de concrees laterticas impediu a continuidade da operao com o vibrotestemunhador alm do primeiro metro. O mesmo ocorreu com o trado motorizado. Depois de inmeras tentativas, a alternativa encontrada foi utilizar marretas para continuar a sondagem (Figura 5). Desta forma, foram

  • 10

    recuperados um total de dez testemunhos em tubos de alumnio de 3, no se tendo conseguido ultrapassar a profundidade de 3 metros em nenhum deles, embora a expectativa inicial fosse a de conseguir amostrar cinco metros, da toda a infraestrutura montada e a carreta especialmente projetada para levar tubos de 6 metros.

    Figura 5 Cenas dos trabalhos de campo: A) carreta utilizada para transporte dos equipamentos; B) tentativa de cravar tubo de 6m com vibrotestemunhador; C) desalento aps insucesso de amostragem com vibrotestemunhador e trado mecanizado; D e E) testemunhagem a percusso com a utilizao de marretas para cravar os tubos foi a nica alternativa vivel; F) recuperao dos tubos com trip e talha manual.

  • 11

    A primeira rea estudada foi a da Nhecolndia, na poro sul do leque do Taquari. O acesso foi feito a partir da Estrada Parque, passando pelo Passo do Lontra e pegando a direita na Curva do Leque. Tendo como base a fazenda Nhumirim da Embrapa/Pantanal, foi necessrio recorrer a uma pickup Toyota da Embrapa para os deslocamentos e transporte de material. Foram investigadas vrias feies como lagoas, salinas e cordilheiras e realizadas as sondagens de nmeros 1 a 5 (Figura 6, rea I). Foram visitadas vrias salinas da regio, inclusive a Lagoa de Pedra na fazenda Paraso. Numa salina na fazenda Porto Alegre, informalmente denominada salina Mscara devido sua forma, foram amostrados: a) laje carbontica existente em suas margens onde foram recuperadas conchas de gastrpodos; b) sedimento na profundidade de um metro (trado manual).

    55565717

    18

    19

    57 56 55

    19

    18

    17

    Rio Taquari

    Rio So Lo

    ureno

    Rio Itiquira

    Rio Cuiab

    Rio

    Par

    agua

    i

    Corumb

    Coxim

    Rio NegroRio Miranda

    Rio Aquidauana

    Porto da Manga

    DEPRESSO DO ALTO PARAGUAI

    N

    Fazenda Caronal

    2

    Avulso Z da Costa

    Bodoquena

    Urucum

    Amolar

    II

    III

    IV

    Rio Piquiri

    0 50 km

    I

    Nhecolndia

    AltaNhecolndia

    Figura 6 Localizao das quatro reas onde foram concentrados os trabalhos de campo.

  • 12

    Ainda na poro sul do leque, em estrada que liga Aquidauana a Rio Negro, foi percorrido longo trecho sobre sedimentos de leques antigos situados no sop da escarpa do planalto de Maracaju Campo Grande, adentrando-se cerca de 50 km para oeste no leque do Taquari na altura da cidade de Rio Negro (Figura 6, rea II).

    Tendo como base a cidade de Rio Verde de Mato Grosso, foi feita incurso na na poro superior do leque a sul do rio Taquari, at a fazenda Morrinho. Atingir a fazenda Morrinho foi muito importante porque nela existe uma elevao residual com topo acima da superfcie do Pantanal, onde afloram rochas sedimentares paleozicas da Bacia do Paran. Nesta rea, tambm conhecida como Alta Nhecolndia, foram feitas as sondagens 6 e 7 (Figura 6, rea III).

    Na poro superior do leque, com acesso por estrada que acompanha o rio Piquiri, foi investigada uma rea com elementos geomrficos diferentes, caracterizada pela existncia de ntidos paleocanais distributrios, facilmente reconhecidos em imagens de satlite e radar, onde foram realizadas as sondagens 8, 9 e 10 (Figura 6, rea IV). A sondagem 11 foi realizada na margem do rio Taquari, na localidade de localidade de Barranqueiras, onde o rio faz um grande meandro e est erodindo sedimentos mais antigos na sua margem direita, formando um terrao que na estao seca chega ultrapassa 5 metros de altura.

    Muitas das formas da paisagem do Pantanal, especialmente aquelas preservadas nos leques aluviais, tais como paleocanais e lagoas, so reliqueares de eventos geolgicos passados. Para interpretar a evoluo geolgica era fundamental dispor de dataes, por isso foram feitas amostragens de subsuperfcie na expectativa de encontrar restos vegetais, ossos ou conchas que pudessem ser datados radiometricamente com 14C, e assim estabelecer a cronologia dos depsitos e das formas amostrados.

    A opo por amostragem com vibrotestemunhador foi feita por dois motivos. Primeiro, porque representa uma amostragem mais fidedgna, sem problemas de contaminao, onde as estruturas sedimentares e relaes de estratos ficam preservadas. Em segundo lugar, no menos importante, porque permite amostrar intervalos para datao atravs do mtodo da termoluminescncia (TL). Para obter as amostras para datao TL, segmentos de 45cm foram cortados dos testemunhos em sala escura e enviados para datao ao Laboratrio de Vidros e Datao (LVD) da Faculdade de Tecnologia de So Paulo (FATEC). A opo revelou-se acertada porque apenas em uma sondagem foi recuperado material para datao radiomtrica. No captulo 6, os resultados obtidos nas dataes so apresentados e discutidos, procurando-se tentativamente estabelecer a sucesso de eventos geolgicos que deixaram sua marca nos depsitos sedimentares superficiais e na paisagem do Pantanal. Como so poucas as informaes disponveis sobre o

  • 13

    Pantanal, correlao feita com eventos paleoclimticos e paleo-hidrolgicos registrados em outras reas da poro austral da Amrica do Sul, como por exemplo na plancie do rio Paran. Como resultado da dinmica sedimentar em leques aluviais, a paisagem do Pantanal extremamente mutante. Em leques aluviais a paisagem muda continuamente porque a sedimentao se processa atravs da construo e abandono de lobos deposicionais. A sedimentao atual discutida no captulo 7, onde so documentas as evidncias e os registros de mudana no curso dos rios. nfase dada ao rio Taquari, cujas mudanas tm sido muito velozes no lobo distributrio atual. Na falta de mapas histricos que permitissem documentar mudanas do curso dos rios, foram estudadas imagens de satlite e radar, buscando-se encontrar evidncias de mudanas no curso do rio nos ltimos 30 anos.

    As ameaas que pairam sobre o Pantanal, como rico ecossistema, tm levado muitas pessoas, incluindo polticos e pesquisadores, dos mais diversos matizes, a atribuir ao homem todas as mudanas que tm ocorrido no Pantanal. O homem certamente est interferindo na evoluo do macroambiente pantaneiro, mas muitas mudanas j ocorriam antes da colonizao e continuaro a ocorrer independentemente da ao do homem. Como o Pantanal um patrimnio natural, antes de tudo importante compreender como funcionam os sistemas deposicionais que so a causa de muitas das mudanas, como interagem os processos autocclicos e os alocclicos. No captulo 8 busca-se contribuir neste sentido, chamando-se a ateno para diversos aspectos que tm que ser considerados numa anlise sistmica, para que se possa avaliar os impactos decorrentes de empreendimentos agropecurios e industriais, tanto na plancie do Pantanal quanto nos planaltos adjacentes.

  • 14

    2. BACIA SEDIMENTAR DO PANTANAL A Bacia do Pantanal uma depresso tectnica interior, cujo embasamento

    constitudo principalmente por rochas metamrficas de baixo-grau e magmticas neo-proterozicas (Grupo Cuiab). Na borda oeste, em discordncia sobre os metamorfitos do Grupo Cuiab ocorrem tambm rochas neo-proterozicas pouco deformadas do Grupo Corumb, que se apresentam com atitudes sub-horizontais com leve caimento para sudoeste e constituem o Macio de Urucum (Planalto Residual de Urucum-Amolar). Em sua borda leste, sobre as rochas cristalinas pr-cambrianas ocorrem seqncias paleozicas e mesozicas da Bacia do Paran, que constituem os planaltos do Taquari-Itiquira e Maracaju-Campo Grande (Figura 7).

    Figura 7 Mapa Geolgico (Schobbenhaus & Bellizzia 2000). Unidades cronoestratigrficas: M= Meso-Proterozico, N= Neo-Proterozico, O = Ordoviciano, S = Siluriano, D = Devoniano, C = Carbonfero, P = Permiano, J =Jurssico, K = Cretceo, T = Tercirio, Q = Quaternrio. Planaltos: 1 = Bodoquena; 2 = Maracaju-Campo Grande; 3 = Taquari-Itiquira; 4 = Guimares; 5 = Parecis; 6 = Provncia Serrana; 7 = Urucum-Amolar.

  • 15

    Informaes de subsuperfcie so restritas a onze poos perfurados no princpio dos anos 60 pela Petrobrs. No poo mais fundo (SB-1A) foram perfurados 412,5 m na formao de Pantanal, no tendo sido alcanado o embasamento (Tabela 2.1). Muitos outros poos foram perfurados para captao de gua em muitas das fazendas, mas na grande maioria dos casos so rasos (menos que 100m) e as amostras no so preservadas, de forma que no foi possvel o acesso aos dados das perfuraes.

    Poo Profundidade (m) Embasamento SJo-1 193.0 no atingido SSs-1 302.4 no atingido FP-1 340.7 no atingido

    SB-1A 412.5 no atingido SM-1 217.0 no atingido Ca-1 86.6 atingido Pi-1 88.0 atingido FF-1 182.0 atingido LC-1 227.3 atingido Aq-1 62.0 atingido PM-1 37.0 atingido

    Tabela 1 Poos perfurados no Pantanal pela Petrobrs (dados compilados de Weyler 1962).

    Segundo Ussami et al. (1999), o depocentro da bacia possui forma elptica alongada na direo norte-sul e eixo maior de cerca de 200 km. Espessura sedimentar mxima de cerca de 550 metros foi inferida a partir de dados ssmicos (Figura 8).

    O preenchimento da bacia principalmente composto por sedimentos siliciclsticos (Weyler 1962). O empilhamento estratigrfico mostra afinamento textural para o topo. Na parte inferior predominam arenitos grossos e conglomerados, enquanto que na parte superior ocorrem principalmente areias quartzosas finas a mdias, localmente grossas. Intervalos com cores avermelhadas ocorrem em vrios nveis e so caracterizados pela presena de xido de ferro como cimento, s vezes constituindo lateritas.

    Dados cronostratigrficos no so disponveis, de forma que no h informao precisa sobre o incio de sedimentao na Bacia do Pantanal. Possivelmente, a sedimentao comeou no Plioceno, depois do soerguimento e desmantelamento da superfcie sul-americana e subsidncia tectnica da regio do Pantanal.

  • 16

    Rio

    Rio

    Piquiri

    Ta

    quari

    Piraim

    Bento

    Gome

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    Alegre

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    A aquid uana

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    PARA-GUAI

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    Depresso doParaguaiPantanal

    100

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    Porto ConceioPi-1 SJo-1

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    Cassang

    e

    +

    +

    Ispaca (metro)

    + + Poos que noatingiram o embasamento

    A-B seo ssmica (figura 13)

    22o

    14o

    16o

    18o

    20o

    58o 56o 54o

    Cceres

    Rondonpolis

    Cuiab

    Forte Coimbra

    Fecho dos Morros

    PortoMurtinho

    Coxim

    MirandaAquidauana

    Corumb

    +

    +

    +

    +

    +

    +

    +

    +

    +

    +

    Poos que atingiramo embasamento

    Ca-1

    A

    B

    Figura 8 Espessura da Formao Pantanal e locao dos poos perfurados na bacia pela Petrobrs na dcada de 60. As curvas de ispacas foram extradas do trabalho de Ussami et al. (1999). A-B corresponde a cinco linhas ssmicas levantadas pela Petrobrs na dcada de 70 (seo ssmica est apresentada na figura 13).

    A formao da Bacia do Pantanal posterior ao desmantelamento de uma superfcie de aplainamento que nivela os topos dos planaltos de Maracaju-Campo

  • 17

    Grande e Taquari-Itiquira a leste, e os topos dos planaltos dos Parecis e dos Guimares a norte. Nos topos destes planaltos ocorre uma delgada cobertura sedimentar que tem sido referida ora como Formao Cachoeirinha, ora como Cobertura Detrito-Latertica. A idade da formao desta superfcie de aplainamento, bem como dos depsitos a ela associados, no precisamente conhecida, mas certamente terciria uma vez que recobre em discordncia estratos neo-cretceos do Grupo Bauru.

    A superficie caracterizada pela presena de solos argilo-arenosos vermelhos com concrees ferruginosas, cangas laterticas e argilas de cores variegadas. Provavelmente corresponda superfcie de aplainamento sul-americana, cuja modelagem terminou no Mioceno de acordo com Soares & Landim (1976) e Valado (1998), mas seu posicionamento temporal preciso ainda est por ser establecido.

    As altitudes desta superfcie de aplainamento variam em decorrncia de movimentos tectnicos posteriores. Remanescentes da superfcie podem ser encontrados em cotas que variam de 500 a 1100 m acima do nvel do mar. Provavelmente a mesma superfcie constitui o assoalho da bacia, agora coberto por depsitos aluviais quaternrios da Formao de Pantanal.

    De acordo com Shiraiwa (1994) e Ussami et al. (1999), a origem da Bacia do Pantanal foi decorrncia de esforos distensionais no arco flexural (forebulge) da bacia de antepas (foreland) do Chaco, durante o ltimo evento compressivo no orgeno andino em ~ 2.5 Ma (Figura 9).

    O mapa de ispacas da figura 8 mostra embaciamento alongado na direo N-S, aproximadamente paralelo ao alongamento do forebulge. A subsidncia no foi, entretanto, essencialmente flexural, como sugere o mapa de ispacas. Embora o arcabouo estrutural da Bacia do Pantanal no esteja ainda delineado, as informaes disponveis permitem afirmar que a bacia estruturada por falhas. Hales (1981), por exemplo, j havia sugerido anteriormente a existncia de um sistema de grbens e horstes a partir da interpretao de valores muito prximos de altos e baixos no embasamento magntico da bacia.

    Falhas so evidentes no relevo pois condicionam a ocorrncia dos terrenos pr-cambrianos na borda ocidental da bacia (Figura 10) que definida principalmente por falhas de direes NE e NW. A margem oeste da plancie aluvial do Pantanal do Paraguai-Paigus , em grande parte, condicionada estruturalmente por falhas, que separam a plancie do planalto residual do Urucum-Amolar, no qual afloram rochas pr-cambrianas dos grupos Cuiab e Corumb (Figura 7).

  • 18

    200 km

    PRECAMBRIAN

    PANTANAL

    -75 -70 -65 -60 -55

    -20 -20

    -15 -15

    -75 -70 -65 -60 -55

    Santa CruzCorumb

    Figura 9 Transecta E-W, do Pacfico borda oeste da Bacia do Paran (modificado de Ussami et al. 1999). Na parte superior esto apresentados um mapa e uma seo esquemticos, mostrando a posio geotectnica da Bacia do Pantanal em relao ao orgeno andino e bacia foreland do Chaco (Or = Ordoviciano; S = Siluriano; P = Permiano; T = Tercirio; Q = Quaternrio). Na parte inferior apresentado um modelo digital do relevo, onde as cores indicam altitudes, sendo representadas em vermelho todas as cotas acima de 1000m (escala de cores na figura em km).

    A borda leste da bacia tambm falhada, mas os traos de falha esto

    cobertos por sedimentos aluviais mais jovens da Formao Pantanal, que recobrem o embasamento em onlap de oeste para leste, com a regresso das escarpas que marcam o limite dos planaltos de Maracaju-Campo Grande e Taquari-Itiquira. Dados de campo indicam que a falha principal est situada a oeste da fazenda Morrinho, localidade em que aflora um morrinho elevado 25m acima da superfcie da plancie do Pantanal, nele aflorando arenitos avermelhados ordovicianos da Formao Alto Garas que aflora nas escarpas que limitam o planalto a leste. Os arenitos encontram-se muito silicificados e com venulaes de quartzo, o que sugere proximidade com o plano de falha. O morrinho destaca-se na paisagem como um pico isolado dentro da plancie do Pantanal, sendo claramente visvel no modelo digital do terreno apresentado na figura 10.

  • 19

    Figura 10 - Modelo digital (confeccionado a partir de dados digitais do terreno do USGS - Dtopo30). As altitudes so inferiores a 200m tanto na Bacia do Pantanal quanto na do Chaco (ver figura 3 para localizao). A sudeste de Corumb o rio Paraguai corta terrenos pr-cambrianos, que separam as duas bacias. No Pantanal notvel a presena do leque do rio Taquari, onde marcante o padro distributrio da drenagem. Canais erosivos atuais entalham lobos abandonados do leque do Taquari, como a Vazante Riozinho. O relevo, principalmente na borda oeste da bacia, marcado por lineamentos NNE e NW, muitos dos quais esto associados a falhas.

  • 20

    Falhas ativas existem tambm no interior da Bacia do Pantanal e muitas delas esto associadas ao Lineamento Transbrasiliano, cuja importncia como elemento tectnico s foi recentemente reconhecida na rea (Soares et al. 1998). O Lineamento uma feio tectnica notvel de direo NE, que cruza a Amrica do Sul, do Nordeste do Brasil at a Bacia do Chaco no Paraguai, atravessando obliquamente a Bacia de Pantanal (Figura 11).

    BACIA DO PANTANAL

    Transb

    rasilia

    no

    Linea

    mento

    ParaguaiChile

    LagoTiticacaPeru

    BACIA DOCHACO

    FOREBULGEANDINO

    Bolvia

    FORELANDANDINO

    ANDES

    Brasil

    Figura 11 - Lineamento Transbrasiliano.

    O Brasil est situado numa das reas sismicamente mais calmas do mundo,

    conforme se depreende dos sismos registrados em Berrocal et al. (1984) e IAG/USP (2002). Os terremotos no pas no esto distribudos geograficamente de maneira homognea, o que em parte conseqncia de irregularidade nos relatos anteriores instalao de sismgrafos (Figura 12). Verifica-se, entretanto, que h uma concentrao de sismos na Bacia do Pantanal, assim como na do Chaco (situada a sudoeste do Pantanal, no Paraguai), o que evidncia de que ambas as bacias so sismicamente ativas.

    Alm da Bacia do Pantanal ser sismicamente ativa por estar situada no

    antepas da orognese andina, interessante notar que os epicentros esto

    alinhados com os epicentros da zona ssmica de Gois (Figura 12), sugerindo que a

    sismicidade no Pantanal tem relao tambm com estruturas associadas ao

    Lineamento Transbrasiliano. Trata-se de uma interessante hiptese que deve ser

    testada medida que estudos em andamento na rea forneam novas informaes

    ssmicas e estruturais.

    Numa seo ssmica composta a partir de cinco linhas ssmicas contnuas levantadas pela Petrobrs na primeira metade da dcada de setenta, uma importante falha foi detectada no interior do Pantanal (Figura 13), a norte do rio Taquari. Situada na parte leste da seo, sua natureza e direo so desconhecidas, mas, segundo Ussami et al. (2000), sua localizao coincide com o

  • 21

    epicentro de um sismo cujo mecanismo focal indica compresso de direo leste-oeste.

    Mag. Prof. (Km)

    Linea

    mento

    Trans

    brasil

    iano

    Figura 12 - Terremotos no Brasil (modificado de IAG/USP 2002). A regio do Pantanal est em destaque. Os epicentros de terremotos no Pantanal esto aparentemente alinhados com epicentros da zona ssmica de Gois, sugerindo possvel relao com o Lineamento Transbrasiliano.

    Os principais stios de deposio foram, e ainda so, controlados por um nvel

    de base regional situado na poro sul do Pantanal. As reas a sul da confluncia do rio Miranda vm apresentando pouca subsidncia ao longo do tempo geolgico, sendo menor que 100 metros a espessura dos sedimentos quaternrios no Pantanal do Paraguai-Jacadigo, como o demonstram os dados dos poos Aq-1 e PM-1 (Tabela 1; Figura 8).

    Rochas do embasamento cristalino afloram mais a sul, nas proximidades das localidades de Fecho dos Morros e Porto Murtinho, onde afloram tambm pltons alcalinos cretceos (Figura 7). Processos erosivos tornam-se dominantes a partir da confluncia do rio Apa na divisa com o Paraguai (Almeida, 1945).

  • 22

    Figura 13 Seo ssmica A-B, composta a partir de cinco linhas ssmicas (Localizao aproximada na figuras 6). Na parte superior apresentada o perfil topogrfico. A seo ssmica (modificada de Catto 1975) tem datum na cota 100m; so apresentados apenas os trechos j publicados no trabalho de Ussami et al. (1999). Uma seo geolgica esquemtica apresentada na parte inferior, tendo sido interpretadas duas falhas principais. A qualidade do registro ssmico no permite verificar o prolongamento das falhas na seo sedimentar.

    O forebulge muito distante da frente de cavalgamento do orgeno andino, o

    que somente vivel considerando-se uma espessura elstica grande para a litosfera, tendo sido estimada em 125-150 km por Ussami et al. (1999). Isto leva a pensar na possibilidade de uma explicao alternativa para a origem da bacia. Neste sentido, merece ser investigada no futuro a possibilidade de que o soerguimento que precedeu a formao da bacia tenha sido causado por anomalia trmica na litosfera,

  • 23

    j que a rea apresenta um alto fluxo de calor, conforme se verifica no mapa de Hamsa & Muoz (1996) apresentado na figura 12.

    Figura 14 Anomalia trmica na regio do Pantanal, que est em destaque, no mapa de fluxo de calor na Amrica do Sul (Hamza & Muoz 1996).

    Muito h por se esclarecer quanto origem da Bacia do Pantanal. Para tanto,

    fundamental levar em considerao a evoluo do relevo da Regio Centro-Oeste do Brasil, pois o surgimento da Bacia do Pantanal e da Depresso do Alto Paraguai inserem-se numa histria evolutiva que remonta o Tercirio. Isto j foi h muito percebido, tendo Almeida (1965, p. 91) escrito: a origem do relevo do sul de Mato Grosso deve ser buscada nos tempos cretceos quando no existia a baixada paraguaia, mas sua rea atual participava de uma regio elevada que separava a zona andina da bacia sedimentar do Alto Paran. A regio constituia um alto no Cretceo, divisor de guas entre as bacias do Paran e do Chaco, idia tambm defendida por AbSaber (1988). Isto explica a ausncia no Pantanal de toda a seo paleozica que aflora a leste nos planaltos de Maracaju-Campo Grande e Taquari-Itiquira e a oeste na Bacia do Chaco.

  • 24

    3. SISTEMAS DE LEQUES ALUVIAIS: UMA DISCUSSO CONCEITUAL Como foi destacado na introduo, a geomorfologia do Pantanal caracterizada pela presena de leques aluviais, que ocupam a maior parte da rea. Todavia, antes de apresentar as caractersticas peculiares do trato deposicional do Pantanal (item 4), apresentada neste item uma discusso conceitual sobre os sistemas de leques aluviais, pois na dcada de 90 estabeleceu-se uma polmica quanto ao que se deveria ou no classificar como leque aluvial. 3.1. Caractersticas dos sistemas de leques aluviais

    O termo leque aluvial (alluvial fan) tem sido usado para designar sistemas aluviais em que o padro dos canais mais distributrio que contributrio (Miall 1990). Esta caracterstica geomorfolgica permite distingui-los dos sistemas fluviais tpicos, que apresentam padro de drenagem dominantemente contributrio.

    Leques aluviais so sistemas deposicionais em forma de leque aberto ou de segmento de cone, caracterizados por canais fluviais distributrios de grande mobilidade lateral. Formam-se em plancies ou vales largos onde rios, provenientes de relevos altos adjacentes, se espraiam adquirindo padro radial devido ao desconfinamento do fluxo (Figura 15). O gradiente topogrfico decresce das cabeceiras para a base, dando origem a perfis longitudinal cncavo e transversal convexo para cima (Figura 16).

    O padro distributrio conseqncia da reduo no gradiente topogrfico, que causa desconfinamento do fluxo, queda na velocidade da corrente e diminuio na profundidade da gua. Com a reduo na capacidade de transporte sedimentar, ocorre sedimentao da carga transportada pelo rio e assoreamento do canal. O leito torna-se instvel e ocorrem freqentemente alteraes no seu traado, especialmente aps grandes cheias.

    Inciso fluvial pode ocorrer na parte superior do leque em conseqncia de mudanas no perfil de equilbrio do canal alimentador, gerando terraos cujas altitudes decrescem para jusante. Neste caso, desconfinamento e expanso do fluxo ocorrem a partir do ponto de interseco, definido pela interseco da superfcie topogrfica do leque com o perfil terico de equilbrio ou nvel de base (Figura 17). Com isso, espao de acomodao gerado e um novo lobo deposicional formado a jusante do ponto de interseco.

  • 25

    Figura 15 Leque aluvial atual, com extenso de aproximadamente 80 km do pice base, na borda sul do deserto de Gobi, Gansu, China (imagem STS048-610-034 do nibus espacial, setembro de 1991, NASA).

    Escarpa

    B

    BA

    B

    B

    A A

    Perfil longitudinal

    Perfil transversal

    ABacia de drenagem

    ourea de captao

    Cabeceira

    Figura 16 Perfis topogrficos em leques aluviais.

  • 26

    BASE (FRANJA)

    Ponto de interseco

    Canal entrincheirado

    CABECEIRA (PICE)

    Superf

    cie d

    o leq

    ue

    Lobo deposicionalPer

    fil de e

    quilbrio

    Figura 17 Canal entrincheirado e formao de novo lobo deposicional a jusante do ponto de interseco.

    Leques foram por muito tempo classificados em funo das condies climticas, que obviamente produzem leques com caractersticas diferentes. Assim, por muito tempo, os leques foram subdivididos em leques de clima rido/semi-rido e leques de clima mido (Galloway & Hobday 1983).

    A questo da classificao dos leques teve um avano considervel com o trabalho de Stanistreet & McCarthy (1993), que enquadraram os leques aluviais em trs grandes categorias: 1) leques dominados por processos de fluxo de massa; 2) leques de rios entrelaados, cujo modelo o leque do Kosi, na ndia (Singh et al. 1993); 3) leques de rios de baixa sinuosidade / meandrantes, cujo modelo e o leque do rio Okavango, em Botswana (McCarthy et al. 1991).

    Seguindo uma outra linha de raciocnio, Blair & McPherson (1994) propuseram que se restringisse o termo leque aluvial somente para os sistemas com declive >1,5, argumentando que as fcies dos sistemas distributrios de baixo declive so similares s fcies dos sistemas fluviais contributrios, no havendo como diferenci-los no registro geolgico. Isto criou uma pequena polmica sobre os leques aluviais, o que estimulou o avano do estudo destes sistemas aluviais.

    Na linha de trabalhos de sntese como os de Collinson (1996) e de Miall (1996), a proposta de Blair & McPherson (1994) no foi aqui adotada com base nos seguintes argumentos: a) o padro de drenagem dos leques distributrio ao contrrio dos sistemas fluviais tpicos, o que resulta em diferente padro de paleocorrentes; b) ao contrrio dos sistemas fluviais, nos sistemas de leques aluviais a largura e a profundidade dos canais diminui, ao mesmo tempo em que aumenta o nmero de canais; c) leques compem tratos deposicionais peculiares em que os sistemas distais muitas vezes so campos de dunas elicas ou amplas plancies

  • 27

    alagveis, com lagos rasos efmeros ou perenes, onde h o espraiamento das guas provenientes dos leques.

    Os grandes leques construdos por rios, embora apresentem peculiaridades prprias decorrentes do tipo do rio dominante, so muito diferentes dos leques dominados por fluxos gravitacionais. So distintos em termos de fcies e de gradiente topogrfico, porque sistemas aluviais com declive entre 0,4 e 1,5 no so comuns. Desta forma, os leques aluviais sero considerados neste trabalho em dois tipos bem definidos de sistema deposicioanal: 1) leques dominados por fluxos gravitacionais (declive > 1,5; gradiente > 0,026 m/m) e 2) leques dominados por rios (declive < 0,4; gradiente < 0,007 m/m). 3.2. Leques dominados por fluxos gravitacionais

    Os leques dominados por fluxos gravitacionais (gravity flow dominated fans) tm dimenso pequena a mdia (centenas de metros a poucos quilmetros) e so formados pela interao de processos gravitacionais e fluviais (Figura 18 -A). No se adotou aqui a denominao leques dominados por fluxo de detritos, proposta por Stanistreet & McCarthy (1993), porque fluxo de detritos somente um dos processos dentro de um amplo espectro de fluxos sedimentares gravitacionais. A terminologia aqui adotada a sugerida por Collinson (1996).

    Leques dominados por fluxos gravitacionais existem em vrias partes do mundo, sendo exemplos clssicos os leques coalescentes, descritos em detalhe por Bull (1963), adjacentes s escarpas de falha da borda da bacia atual do Vale da Morte, Califrnia, EUA (Figura 18 -B/C). Os leques dominados por fluxos gravitacionais tm sido tambm referidos como leques de clima semi-rido, mas a denominao inadequada porque fluxos gravitacionais no ocorrem exclusivamente em regies com clima semi-rido. Depsitos de fluxos gravitacionais ocorrem tambm em climas midos, especialmente quando as chuvas so concentradas em determinados perodos do ano e existem solos espessos na rea-fonte.

    Depsitos de fluxos gravitacionais, que constituem fcies caractersticas deste tipo de leque (Figura 19), so produzidos por movimentos de massa sedimento/gua originados a partir de dois processos bsicos: 1) fluxo de detritos (debris flow), onde o peso do sedimento > 80% do total da massa; e 2) fluxo fluidificado (sediment fluidal flow, Lowe 1979), onde o peso do sedimento se situa entre 40 a 80% do total da massa (Figura 20).

    Fluxos de detritos (debris flow) so movimentos onde clastos de grandes dimenses (calhaus e mataces) podem ser transportados em-massa, praticamente

  • 28

    sem frico, mesmo em taludes de baixo gradiente. Os fluxos podem ocorrer confinados em canais nas pores axiais, mas quando o canal no comporta o volume h expanso lateral do fluxo, com formao de diques marginais e de lobos de depsitos de fluxo de detritos (Figura 19).

    Figura 18 Leques dominados por fluxos gravitacionais: A) modelo (Stanistreet & McCarthy 1993; gradiente = m/m); B) leques coalescentes no Vale da Morte; o vale visvel em tons escuros no centro da imagem (imagem de radar do nibus espacial, PIA01349, NASA); C) Leque aluvial em Badwater, Vale da Morte, Califrnia, EUA (foto: Martin G. Miller, Journal of Geoscience Education, 1999, v.47, n2, capa).

    Os fluxos de detritos podem ser coesivos ou no-coesivos (Lowe 1979), a

    depender da porcentagem de sedimentos de granulao fina (silte e argila). Fluxos de detritos no-coesivos, caracterizados pela porcentagem baixa de sedimento de granulao fina (< 10%), originam conglomerados clasto-sustentados (ortoconglomerados), muitas vezes com gradao inversa (Figura 6-B), que podem apresentar imbricao indicativa do sentido de transporte.

  • 29

    Figura 19 Modelo deposicional de leques aluviais (modificado de Spearing 1974, in: Nilsen 1982).

    Fluxos de detritos coesivos tm alta porcentagem de sedimentos de granulao fina (> 10%). Apresentam comportamento plstico devido baixa viscosidade e o movimento interno mais laminar que turbulento. Formam conglomerados matriz-sustentados com seleo pobre e matriz lamosa (paraconglomerados). Clastos maiores de dimenses anmalas podem ocorrer flutuando no interior do depsito ou projetar-se acima do seu topo (Figura 20-A). Os depsitos de cada fluxo apresentam espessuras variveis, sendo comum espessuras maiores que dois metros. Os depsitos tendem a apresentar aspecto macio quando a viscosidade alta, mas quando a viscosidade baixa podem apresentar gradao normal e alinhamento de clastos devido a cisalhamento interno

  • 30

    penetrativo. A parte basal do depsito pode apresentar gradao inversa, resultado de processos de presso dispersiva e peneiramento cintico.

    FLUXO DE DETRITOS

    CORRENTE

    CORRENTE

    CORRENTE

    FLUXO DE DETRITOS

    FLUXO DE DETRITOS

    FLUXO FLUIDIFICADO

    Conglomerado clasto-sustentado, podendo apresentar gradao inversa

    Base erosiva

    Base erosiva

    Arenito estratificado (depsito de dissipao do fluxo)

    Base erosiva com canais

    Conglomerado clasto-sustentado,com imbricao incipiente,podendo apresentar estratificao cruzada mal desenvolvida;matriz areia

    Conglomerado matriz-sustentado; matriz areia/cascalho fino

    Conglomerado matriz-sustentado, clastos subhorizontais; matriz lama ou areia

    Pseudolaminao por cisalhamento na base

    Megaclasto isolado

    Conglomerado muito compactado

    Transporte de alta competncia

    Dissipao do fluxo

    A

    B

    Figura 20 Perfis estratigrficos verticais mostrando fcies caractersticas das pores proximais de leques dominados por fluxos gravitacionais (modificado de Nemec & Steel 1984).

    Fluxos fluidificados apresentam comportamento de fluido viscoso, com movimentos internos laminares e turbulentos igualmente importantes. Produzem camadas tabulares ou canalizadas de conglomerados clasto-sustentados com gradao normal, em cujo topo podem ocorrer arenitos estratificados depositados por correntes geradas na dissipao do fluxo (Figuras 18-B). Segundo Nemec &

  • 31

    Steel (1984), depsitos deste tipo tm sido pouco reconhecidos no registro estratigrfico pois so freqentemente considerados produto de outros processos, tais como inundaes torrenciais e efmeras (streamflood: Steel 1974; sheetflood: Nemec et al. 1980 e Wasson 1979).

    Um tipo especial de depsito pode se formar imediatamente a jusante do ponto de interseco, devido sbita perda da capacidade de transporte, com o desconfinamento do fluxo, e acentuada infiltrao de gua. Denominados depsitos de peneiramento (sieve deposits) por Hooke (1967), constituem pequenos lobos de cascalhos grossos clasto-sustentados. Embora observados em leques atuais, tm sido pouco reconhecidos no registro estratigrfico. Uma caracterstica importante deste tipo de depsito a presena de clastos de granulao mais fina preeenchendo os espaos entre os clastos maiores.

    Fluxos gravitacionais so eventos catastrficos de ocorrncia episdica, resultado da conjugao de intensa precipitao e disponibilidade de detritos nas escarpas adjacentes e na bacia de drenagem. Podem se passar muitos anos sem que ocorram, perodos em que predomina a ao de correntes de gua (streamflow), tanto confinadas nos canais fluviais quanto sob a forma de inundaes.

    Nos canais alimentadores e distributrios formam-se barras de cascalho que do origem a conglomerados clasto-sustentados, macios ou estratificados. Quando domina a frao areia no suprimento sedimentar, a migrao de barras arenosas produz depsitos com estratificaes cruzadas planar e acanalada. O volume de gua que desce pelo canal pode ser muito grande durante grandes chuvas, ocasionando transbordamento e dando origem a fluxos ou inundaes torrenciais (sheetflow ou sheetflood), sobretudo a jusante do ponto de interseco, dando origem a lenois de areia bem selecionada, com estratificao plano-paralela ou com ondulaes de corrente. A frao mais fina (areias muito finas, silte e argila) carreada em suspenso, dando origem a depsitos heterolticos delgados e lateralmente contnuos na parte mais distal do leque.

    As associaes de fcies mostram diminuio do tamanho de gro das cabeceiras para a base em decorrncia da reduo no gradiente topogrfico, da diminuio da energia da corrente, do desconfinamento do fluxo e da perda dgua por infiltrao e/ou evaporao. Na base h interao com outros sistemas deposicionais coetneos (Figura 19). Corpos dgua podem se formar nas partes distais em conseqncia das inundaes, mas so efmeros e os sedimentos depositados por decantao podem sofrer ressecamento originando gretas de contrao. Quando ainda midos, nos sedimentos lamosos podem ficar preservados diversos tipos de icnofsseis de animais terrestres.

  • 32

    3.3. Leques dominados por rios

    Leques dominados por rios so sistemas de baixo gradiente. Dependendo do tipo de canal dominante, Stanistreet & McCarthy (1993) distinguiram dois tipos bsicos: 1) leques de rios entrelaados; 2) leques de rios de baixa sinuosidade / meandrantes.

    Nos leques de rios entrelaados, o rio principal freqentemente perene e a descarga fluvial contnua, embora ocorram inundaes relmpago (Dunne 1988). O padro entrelaado origina-se do acmulo de areias e cascalhos no leito, com desenvolvimento de barras de vrios tipos que produzem fcies com estratificao cruzada. O canal principal bem definido e pode ser muito mvel, com mudanas abruptas e freqentes de curso. Na figura 21 so apresentados um bloco-diagrama, que ilustra as caractersticas deste tipo de leque, e uma imagem do leque do rio Kosi na ndia, cujas caractersticas fsicas e litolgicas so descritas em Wells & Dorr (1987) e Singh et al. (1993).

    Leques construdos por rios entrelaados podem tambm ser formados em plancies proglaciais de outwash, por correntes derivadas de guas de degelo que retrabalham material depositado por geleiras (Figura 22). O padro entrelaado conseqncia do fato de que as margens so facilmente erodidas e os canais tendem a ser muito mveis. A carga sedimentar destes rios caracterizada pela porcentagem alta de cascalho, transportado por trao no leito dos canais.

    Leques como o do rio Okavango (McCarthy et al. 1991) no so formados por rios entrelaados. Stanistreet & McCarthy (1993) classificaram-nos como leques de rios de baixa sinuosidade/meandrantes (Figura 23), considerando que so dominados por cintures de rios meandrantes. Neste tipo de leque, vegetao um fator muito importante, responsvel pela estabilizao dos canais e descarga sedimentar mais concentrada e contnua (Stanistreet et al. 1993). Um outro exemplo o leque Portage La Prairie, descrito por Rannie (1990).

    Nos leques dominados por rios, canais permanentes se dividem numa rede de distributrios. Desenvolvimento acentuado de barras e deposio no canal reduzem a capacidade do rio transportar gua, causando rompimento de diques marginais durante as cheias e avulso do canal. Mudanas abruptas (shifting) de leito so muito comuns em decorrncia desses processos, o que resulta na presena de centenas de canais abandonados na superfcie do leque, como visto nas imagens dos leques dos rios Kosi e Okavango (Figuras 19 e 21).

  • 33

    0km

    m

    30

    0

    80

    LEQUE DE RIO ENTRELAADO

    SUPERIOR: barras longitudinais (cascalho)

    MDIO: barras longitudinais (cascalho)e barras transversais (areia)

    INFERIOR:barras transversais e dunas (areia)

    Gradiente baixo: 0,001-0,0003

    N

    40 km

    Vegetao: ao longo do canal

    A

    B

    Figura 21 Leques de rios entrelaados: A) modelo (Stanistreet & McCarthy 1993; gradiente = m/m); B) leque do rio Kosi, ndia (imagem Landsat, fevereiro de 1977, NASA).

  • 34

    Figura 22 A) leques de rios entrelaados (indicados por nmeros) em plancies de outwash no Alasca, EUA; B) associaes de fcies exibem diminuio no tamanho de gro da parte proximal para a distal. (Boothroyd & Nummedal 1978).

    Quando a descarga fluvial progressivamente diminui e h tambm perda acentuada de gua por evaporao e infiltrao, a superfcie do leque fica seca e sujeita ao retrabalhamento pelo vento. Isto ocorre principalmente em bacias interiores sob condies climticas semi-ridas, onde somente episdios de grandes cheias causam inundaes na parte distal do leque. Para leques com estas caractersticas, como o caso do leque do Okavango, utilizada a denominao leque terminal (terminal fan).

  • 35

    Figura 23 Leques de rios de baixa sinuosidade / meandrantes: A) modelo (Stanistreet & McCarthy 1993; gradiente = m/m); B) Leque aluvial do rio Okavango, Botswana (imagem STS51I-33-0053 do nibus espacial, de agosto de 1989, NASA).

  • 36

    Os leques fluviais so sistemas de dezenas a centenas de quilmetros de extenso, ao passo que os leques dominados por fluxos gravitacionais so sistemas de centenas de metros a poucos quilmetros de extenso. Merece destaque o fato de que o leque do rio Taquari maior que os leques dos rios Kosi e Okavango, utilizados como modelos dos dois tipos de leques fluviais discutidos acima (Figura 24).

    2km

    HanaupahEUA-Valeda Morte

    100m

    X 100 X 5

    X 5

    Trollheim(EUA- Vale da Morte)

    Rio

    Thom

    alaka

    neRio Bora

    Rio Gamoti

    Rio Thooge

    Rio Santanadibe

    Rio Naoga

    Rio MaunachiraRio Kw

    aiRio Jao

    Rio Okavango

    LEQUES DE RIOS DEBAIXA SINUOSIDADE / MEANDRANTES

    LEQUES DE RIOS ENTRELAADOS

    LEQUES DOMINADOS PORFLUXOS DE GRAVIDADE

    2km

    Leques Yana(EUA-Alasca)

    50km

    Ganges

    Lequedo Kosi(India)

    Rio

    Kos

    i

    50km

    50km

    LEQUE DO OKAVANGO

    (BOTSWANA)

    Rio

    2

    1

    3

    Figura 24 Comparao do tamanho de alguns leques aluviais atuais (modificado de Stanistreet & McCarthy 1993).

    Os leques dominados por rios tm sido tambm denominados leques midos (humid or wet alluvial fans), mas a associao com o clima inadequada porque muitos leques fluviais ocorrem em ambientes semi-ridos e ridos, como por exemplo os leques existentes no deserto de Gobi (figura 15). Outro exemplo o leque do Okavango, que embora apresente feies midas, desenvolve-se numa regio semi-arida a desrtica (observar dunas transversais com cristas de direo WNW-ESE na parte esquerda da figura 23-B).

  • 37

    4. TRATO DEPOSICIONAL DO PANTANAL O Pantanal um amplo trato deposicional dominado por sedimentao aluvial, onde o rio Paraguai o rio tronco, coletor das guas de vrios leques aluviais (Figura 25).

    Figura 25 Trato de sistemas deposicionais do Pantanal Mato-grossense, constitudo por sistemas de leques aluviais (1 = Paraguai - Corixo Grande; 2 = Cuiab; 3 = So Loureno; 4 = Taquari; 5 = Aquidauana; e 6 = Paraguai Nabileque), de plancies fluviais (7 = Piquiri; 8 = Paraguai-Paiagus: e 9 = Negro), e lacustres (A = Jacadigo; B = Negra; C = Cceres; D = Castelo; E = Vermelha; F = Mandior; G = Guaba; e H = Uberaba). Composio de imagens de satlite Landsat TM, falsa cor, bandas R3/G4/B7, registradas durante a estao seca de outubro de 1990 (WRS 227/72, 226/72, 225/72, 227/73, 226/73, 225/73, 227/74, 226/74, 225/74).

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    Fluindo de norte para sul, o rio Paraguai apresenta uma compartimentao muito complexa, pois atravessa domnios geomorfolgicos distintos. A norte de Cceres, em terras baixas da Depresso do Alto Paraguai mas fora da rea do Pantanal, o rio apresenta caractersticas erosivas. Quando adentra no Pantanal, h uma diminuio drstica no gradiente topogrfico e o rio passa a ser um stio de sedimentao e de captao das guas dos diversos leques aluviais (Figura 26).

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    1100,061m/km

    0,026m/km

    0,023m/km

    0,016m/km

    Figura 26 - Perfil do rio Paraguai no Pantanal (baseado em Innocencio 1988). O gradiente topogrfico extremamente baixo (0,000061 a 0,000016 m/m), muito menor que o dos leques dominados por rios (0,001 a 0,0003, conforme figuras 21 e 23) .

    4.1. Sistemas de leques aluviais

    Vrios leques aluviais dominados por rios constituem a maior parte da

    superfcie do Pantanal. O mais notvel o leque aluvial do rio Taquari ( Braun 1977), que pelas suas dimenses pode ser considerado um megaleque aluvial. um sistema deposicional complexo com forma quase circular e dimetro de aproximadamente 250 km, facilmente reconhecido em imagens de satlite (Figura 25). Vrios outros leques ainda ativos destacam-se tambm na geomorfologia do Pantanal, tais como os leques dos rios Cuiab, Aquidauana e So Loureno (Figura 27).

    O prprio rio Paraguai apresenta em alguns trechos de seu percurso padro distributrio, como nos pantanais do Paraguai-Corixo Grande e do Paraguai Nabileque, caracterizando sistemas de leques aluviais. O leque do Paraguai-Corixo Grande (Figura 28) apresenta forma caracterstica de leque aluvial, com perfil transversal convexo. Topograficamente est mais elevado que o rio Paraguai, que derivou para leste ocupando hoje a franja do leque.

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    Figura 27 Situado a norte do leque do Taquari, o leque do So Loureno um importante e ativo sistema deposicional. Esta imagem de satlite obtida na estao seca (Landsat TM, falsa cor, bandas R3/G4/B7, de outubro de 1990) mostra que o rio So Loureno contornou seus lobos antigos (LA) e est construindo um lobo novo (LN) a oeste, para a seguir desaguar no rio Cuiab.

    Figura 28 - Situado na parte norte do Pantanal, o Leque do Paraguai Corixo Grande um sistema onde os dois rios tem seu curso na periferia do leque, definindo-lhe o contorno. A plancie distal do leque, compartilhada com o leque do Cuiab, formada por inmeros lagoas, meandros abandonados e canais anastomosados.O trato deposicional composto tambm por dois sistemas lacustres, conhecidos como lagoas Uberaba e Guaba (imagem de satlite Landsat TM, falsa cor, bandas R3/G4/B7, de outubro de 1990, estao seca).

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    O leque do Paraguai - Nabileque no funciona atualmente como um sistema de leque aluvial. A forma original est parcialmente obliterada pela superimposio de canais erosivos recentes, mas paleocanais distributrios ainda podem ser reconhecidos. A rea teve comportamento menos subsidente na histria quaternria da bacia, sendo a espessura da Formao Pantanal menor que 100m, como comprovam os poos perfurados pela Petrobrs (Figura 8; Tabela 1).

    Entre o leque do Taquari e o sop da escarpa que limita o Pantanal dos planaltos de Maracaju-Campo Grande e Taquari-Itiquira, existe uma franja com largura varivel de 4 a 15 km, que se estende por mais de 200 km no sentido norte-sul (Figura 29). Suas altitudes variam de 210 m nas cabeceiras a 160 m na base, resultando em gradientes de 3 a 5 m/km, muito mais altos que os do leque do Taquari. Constitui uma rampa de piedmont formada por leques aluviais coalescentes, onde predominam fcies de conglomerados sustentados pela matriz, conglomerados sustentados pelos clastos e arenitos grossos (Figura 30). O gradiente topogrfico e as fcies, indicativas da dominncia de processos associados a fluxos de detritos e a fluxos em lenol, permitem interpret-los como leques dominados por fluxos gravitacionais, conforme discutido no item 3.2. 4.2. Sistemas de plancies fluviais

    O Pantanal do Paraguai-Paiagus constitui caracteristicamente um sistema deposicional de plancie fluvial meandrante. Situado a norte da cidade de Corumb, o sistema constitui uma plancie muito larga com inmeros pequenos lagos, cujos nveis dgua flutuam em resposta aos ciclos anuais de inundao (Figura 31). H muitos meandros abandonados e em construo, com belos exemplos de barras em pontal, que so recobertas pelas guas das cheias (Figura 32)

    Embora menos expressiva em rea, merece destaque tambm a plancie meandrante dos rios Itiquira/Piquiri, desenvolvida na conjuno das franjas dos leques aluviais do Taquari e do So Loureno (Figura 33). Tratam-se de rios tributrios do rio Cuiab, que por sua vez afluente do Paraguai. Por truncar os distributrios dos dois leques, a plancie constitui elemento mais jovem que os lobos dos dois leques. Sua origem est associada elevao do perfil de equilbrio do rio Itiquira em decorrncia de elevao do nvel de base definido pela plancie do rio Paraguai no Pantanal de Paiagus.

    Outra plancie fluvial com sedimentao ativa a plancie do rio Negro, que, assim como a plancie do Itiquira/Piquira, ocupa posio entre dois leques, o do Aquidauana (a sul) e o do Taquari (a norte). Embora seja sinuoso, meandrante em alguns trechos, mais a leste Figura 34), o rio passa a ter padro anastomosado

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    quando interage com a base do leque do Aquidauna, dando origem a uma rea freqentemente alagada, com inmeros pequenos canais que se entrecortam (Figura