Assuntos abordados: Terrorismo e a mídia -...

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Terrorismo e a mídia um manual para jornalistas Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

Transcript of Assuntos abordados: Terrorismo e a mídia -...

  • Terrorismoe a mdia

    um manual para jornalistas

    As notcias so a fora vital da liberdade. Katherine Graham

    Destinado a jornalistas e prossionais de mdia, este manual foi concebido para fornecer informaes importantes e estimular a reexo sobre a forma como o terrorismo abordado na mdia.

    Fundamentado em recomendaes de instituies e especialistas de destaque, e com uma grande quantidade de exemplos, o manual explora os desaos prossionais e os dilemas ticos inerentes cobertura do terrorismo, assim como prope questes fundamentais sobre o possvel impacto do tratamento atual sobre a coeso social e a predomnio do medo na sociedade.

    Destruio do patrimnio cultural e Trco ilcito de bens culturais

    O enquadramento jornalstico do terrorismoO equilbrio entre liberdade, segurana e responsabilidadeQuestes ticasOs desaos do medo, do dio e da generalizao

    Assuntos abordados:

    Sees especiais:

    Jean-Paul Marthoz jornalista e ensasta. Colunista do jornal Le Soir (Blgica) e professor de jornalismo internacional da Universidade Catlica de Louvain, autor de vrios livros sobre jornalismo e relaes internacionais. Foi diretor do Programa de Mdia para a Democracia da Federao Internacional de Jornalistas (IFJ), diretor europeu de informao da ONG Human Rights Watch e correspondente para a Unio Europeia do Comit para a Proteo dos Jornalistas (CPJ, Nova York).

    Sobre o autor:

    Um marco de ao para a cobertura jornalstica responsvel, proporcional e livre de estigmas e sensacionalismo...

    Jean-Paul Marthoz

    Terrorismo e a m

    dia

    media_terrorisme_couv_02.indd 1-3 30/01/2017 10:50

    Organizaodas Naes Unidas

    para a Educao,a Cincia e a Cultura

    Tratamento de dados, imagens e palavrasCobertura de ataques e situaes com refnsGesto das mdias sociaisRelaes com as vtimas, as autoridades e os terroristasSegurana dos jornalistas

  • Organizaodas Naes Unidas

    para a Educao,a Cincia e a Cultura

    Terrorismo e a mdia

    Jean-Paul Marthoz

    um manual para jornalistas

  • Publicado em 2018 pela Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura7, place de Fontenoy, 75352 Paris 07 SP, France e a Representao da UNESCO no Brasil

    UNESCO 2018

    Esta publicao est disponvel em acesso livre ao abrigo da licena Atribuio-Partilha 3.0 IGO (CC-BY-SA 3.0 IGO) (http://creativecommons. org/licenses/by-sa/3.0/igo/). Ao utilizar o contedo da presente publicao, os usurios aceitam os termos de uso do Repositrio UNESCO de acesso livre (http://unesco.org/open-access/terms-use-ccbysa-en). A presente licena aplica-se exclusivamente ao contedo do texto da publicao. Para uso de qualquer outro material no identificado claramente como pertencente UNESCO, exigida a permisso prvia a: [email protected] ou a UNESCO Publishing, 7, place de Fontenoy, 75352 Paris 07 SP France.

    Ttulo original: Terrorism and the media: a handbook for journalists. Publicado em 2017 pela Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO). Edio revisada.As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifes-tao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, ter-ritrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites. As ideias e opinies expressas nesta publicao so as dos autores e no refletem obrigatoriamente as da UNESCO nem comprometem a Organizao.

    Crditos da verso original:Autor: Jean-Paul MarthozEditores: Mirta Loureno, Tim Francis Foto da capa: Aija Lehtonen / Shutterstock, Inc.

    Crditos da verso em portugus:Coordenao tcnica da Representao da UNESCO no Brasil: Marlova Jovchelovitch Noleto, Diretora e Representante Adauto Cndido Soares, Coordenador do Setor de Comunicao e InformaoTraduo: Kelly Cristina Pereira de MoraisReviso tcnica: Ana Lcia Guimares Bulhes Pedreira, Unidade de Comunicao, Informao Pblica e Publicaes da Representao da UNESCO no BrasilRevises editoriais e diagramao: Unidade de Comunicao, Informao Pblica e Publicaes da Representao da UNESCO no Brasil

    Marthoz, Jean-Paul Terrorismo e a mdia: um manual para jornalistas / Jean-Paul Marthoz; editado por MirtaLoureno, Tim Francis. Braslia : UNESCO, 2018. 110 p., il.

    ISBN 978-85-7652-219-5

    1. Violncia 2. Terrorismo 3. Jornalismo 4. Mdia 5. Deontologia 6. Medidas de Segurana 7. Educao de jornalistas 8. Guias I. Loureno, Mirta II. Francis, Tim III. UNESCO IV. Ttulo

    CD0 070.4

    Esclarecimento: a UNESCO mantm, no cerne de suas prioridades, a promoo da igualdade de gnero, em todas suas atividades e aes. Devido especificidade da lngua portuguesa, adotam-se, nesta publicao, os termos no gnero masculino, para facilitar a leitura, considerando as muitas menes ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados no masculino, eles referem-se igualmente ao gnero feminino.

    http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/igo/http://unesco.org/open-access/terms-use-ccbysa-enmailto:[email protected]

  • Prefcio

    Deve ficar claro para todos por que uma publicao como esta, sobre a cobertura do terrorismo e do extremismo violento na mdia, necessria de forma urgente.

    Em todo o mundo, vemos diversos atores cometendo atos de violncia contra civis para fomentar o medo e a desconfiana de outros. Vemos populaes em muitos pases convencidas de que o terrorismo representa a ameaa mais significativa sua vida cotidiana. Vemos movimentos polticos que se aproveitam da tragdia e jogam cidados uns contra os outros para obter mais apoio. fundamental refletir sobre como a mdia pode estar inadvertidamente contribuindo para esse clima tenso, e quais medidas devem ser tomadas para lidar com esse problema.

    importante lembrar que o terrorismo no um fenmeno novo. Muitos pases tm sofrido por dcadas com grupos, tanto internos quanto externos, e incluindo atores estatais e no estatais, praticando violncia contra civis como estratgia poltica. Em muitos casos, a populao local se tornou mais forte e resiliente, provando que, a longo prazo, a brutalidade no preo para o progresso da unio e dos valores compartilhados.

    Nesse contexto, a mdia fundamental para fornecer informaes verificveis e opinies conscientes. Durante a atmosfera tensa de uma crise, com populaes nervosas e temperamentos inflamados, isso se torna ainda mais importante. A relao entre o terrorismo e a mdia complexa e tensa. Nos piores momentos, uma relao simbitica perversa grupos terroristas planejam espetculos de violncia para continuar a atrair a ateno do mundo, e a mdia incentivada a realizar uma cobertura completa, devido ao enorme interesse do pblico.

    Naturalmente, a inteno no minimizar o real sofrimento humano causado pelo terrorismo. Muitas vidas foram interrompidas por essa razo. Esses atos devem ser sempre lamentados, e os responsveis levados Justia.

    importante lembrar que o objetivo desses atores violentos no provocar o terror pelo terror. Eles no desejam criar medo na mente de homens e mulheres simplesmente por seus interesses, dio ou ideologias. Seu objetivo real dividir a sociedade ao meio, jogando as pessoas umas contra as outras por meio da represso, da discriminao e da discrdia. Ao mesmo tempo,

  • pretendem provar que esto corretos em suas previses de perseguio generalizada e atrair novos seguidores sua causa violenta. Buscam criar um clima de derrotismo diante de ataques e reaes polarizadas.

    O risco real do terrorismo que o medo e a desconfiana conduziro a uma nova onda de nacionalismo e populismo, e que as liberdades pelas quais todos ns lutamos tanto para alcanar sero sacrificadas no altar da retaliao. Estes no so ataques contra uma nao ou um povo, mas ataques contra todos ns como cidados do mundo. Devemos ser particularmente crticos em relao a qualquer resposta que caia intencionalmente nas mos de atores violentos e que produzam suas prprias vtimas, as quais se tornam mrtires para promover o recrutamento terrorista.

    Nesses momentos difceis, com pblicos fragmentados e muitas organizaes de mdia passando por graves desafios financeiros, os jornalistas devem resistir ao desejo de tratar os assuntos de forma sensacionalista com o intuito de atrair olhares, ouvidos e cliques.

    Eles devem manter uma perspectiva global e prestar ateno s palavras utilizadas, aos exemplos que citam e s imagens que mostram.

    Devem evitar especulaes e acusaes na confuso imediata aps um atentado, quando no se sabe de nada, mas quando a demanda por informao seja talvez a mais forte de todas.

    Devem considerar de forma cuidadosa o fato de que existe algo inerente ao terrorismo, como um ato violento, que provoca medo em muitas pessoas, o qual muito desproporcional ao nvel real de risco.

    Devem fazer tudo isso enquanto no colocam a si prprios, ou sua equipe, em perigo na busca por uma matria.

    Acima de tudo, devem evitar fomentar a diviso, o dio e a radicalizao em ambas as margens da sociedade.

    Durante perodos de crise, de desastres naturais fome e ao conflito e, nesse caso, ao terrorismo, a UNESCO trabalha ativamente por meio de seus setores especializados para monitorar a situao, avaliar as necessidades e responder de forma apropriada e eficiente.

    Estamos contribuindo com nossa experincia e com nosso conhecimento para a implementao do Plano de Ao do secretrio-geral das Naes Unidas para Prevenir o Extremismo Violento, por meio da educao, da participao e do empoderamento dos jovens, promovendo a liberdade de expresso, e salvaguardando e celebrando a diversidade cultural em todo o mundo.

  • Estamos trabalhando com nossos parceiros para combater o trfico ilegal de objetos culturais que possam fornecer uma fonte de financiamento para grupos extremistas, assim como continuando a promover nossos valores fundamentais de tolerncia, compreenso e paz em um momento em que esto sendo ameaados.

    Espera-se que este manual, desenvolvido com a contribuio de jornalistas, editores e produtores de mdia, funcione como um recurso valioso para aqueles que cobrem atos terroristas. Nem toda pergunta feita tem uma resposta clara e incontestvel, mas ir ao menos estimular a autorreflexo por parte dos profissionais de mdia sobre como eles podem evitar contribuir para a estigmatizao e a diviso. Tambm pode fornecer uma base para a criao e a reviso de cdigos de conduta, para garantir que os valores supramencionados sejam consagrados nas operaes dirias das organizaes de mdia.

    Este manual tambm apenas um passo em uma resposta da UNESCO para a questo de como a mdia cobre o terrorismo e o extremismo violento. Os conselhos e as sugestes contidos neste manual sero desenvolvidos em materiais de treinamento para ajudar jornalistas em todo o mundo a se tornarem mais conscientes sobre as vrias dimenses dessas questes.

    O terrorismo e o extremismo violento so, provavelmente, problemas que estaro conosco ainda por algum tempo. Todavia, se formos capazes de trabalhar juntos para reduzir a retrica explosiva, a cobertura exagerada e a estigmatizao de grupos minoritrios, talvez desapaream alguns dos incentivos para a prtica de atos violentos contra civis.

    Moez ChakchoukDiretor-geral adjunto de Comunicao e Informao da UNESCO

  • Main TOCIntroduo 9

    1. Questes bsicas na cobertura do terrorismo 191.1 A noo de terrorismo de Estado 201.2 Evitar a glorificao 211.3 Informar sobre diferentes formas de terrorismo 221.4 Listas de organizaes terroristas 24

    2. A mdia nas linhas de frente 282.1 Um ponto de referncia 282.2 tica e princpios 29

    1. A busca da verdade 292. Independncia 293. Responsabilidade para com os outros 314. Transparncia 31

    2.3 O dever do conhecimento 322.4 Enfrentar a lei 332.5 Relaes com as autoridades 342.6 Enquadramento do terrorismo 362.7 Garantir o Estado de direito e os direitos humanos 392.8 Enfrentar o medo 402.9 Jornalismo inclusivo 412.10 Pensar globalmente 42

    3. Regras bsicas 473.1 A doutrina da cautela e da dvida 473.2 tica com base no respeito 533.3 Vtimas: mais do que apenas nomes 553.4 Palavras 553.5 Nmeros 623.6 Imagens 63

    Imagens de crianas 67Imagens de cidados 68

    3.7 Generalizaes 703.8 Discurso de dio 713.9 Rumores 72

    Sumrio

  • 4. Cobertura de um ataque 754.1 Confuso inicial 754.2 Preparao 774.3 Transmisso ao vivo 78

    5. Interao com grupos terroristas 855.1 Visitas a reas controladas por grupos terroristas 855.2 Publicao de comunicados de imprensa (press releases) 875.3 Entrevistas com terroristas 895.4 Reportagens sobre investigaes em curso 915.5 Reportagens sobre julgamentos de terrorismo 92

    6. Segurana dos jornalistas 966.1 Riscos crescentes 966.2 Proteo de fontes contra vigilncia 996.3 Em caso de sequestro de jornalistas 1006.4 Terrorismo e traumas 101

    7. Quando a calma retorna: fazer um balano 1057.1 Aps o choque, questes fundamentais 1057.2 Uma mdia ps-morte 107

    FOCO: Destruio do patrimnio cultural 110

    FOCO: Trfico ilcito de bens culturais 112

    Fontes teis 114Instituies intergovernamentais 114Convenes das Naes Unidas 114Leituras essenciais sobre terrorismo e a mdia 115

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    Introduction

    Introduo

    O terrorismo e a luta contra ele se tornaram elementos importantes de polti-cas domsticas e internacionais, com a mdia firmemente em suas linhas de frente, em especial quando os atentados visam a populaes civis.

    Os dilemas e os desafios que da resultam so imediatamente claros. Os cidados esperam ser informados pela mdia da forma mais abrangente possvel, sem que sejam cometidos exageros ou que se recorra ao sensacionalismo. As autoridades apelam moderao, evocando os r1iscos da cobertura excessiva para a integridade das operaes ou para a tranquilidade da populao. Acusaes de ser o alto-falante do terrorismo para atrair pblico pesam constantemente sobre a mdia que, muitas vezes, age de maneira excessiva.

    Apesar da importncia e da reincidncia dos atos terroristas, muitas vezes a mdia se esfora para encontrar sua posio. Frequentemente perguntas so feitas e assuntos so resolvidos apenas em uma emergncia, sob o risco de incoerncias e erros, diz Christophe Ayad, especialista em Oriente Mdio no Le Monde. Todos agem de forma desordenada, avanando caso a caso.1

    Obviamente, a qualidade da cobertura do terrorismo depende de muitos fatores. determinada, entre outros, pelo grau de liberdade de imprensa que existe em cada pas, pelos recursos econmicos disponveis mdia, pelos fatores culturais e pelas concepes nicas de tica e do papel social da mdia, como observa Shyam Tekwani sobre a situao na sia.2

    A questo crucial, porque essa cobertura do terrorismo revela a posio da mdia na sociedade. A habilidade de um reprter para realizar uma cobertura

    1. Disponvel em: .

    2 TEKWANI, Shyam (Ed.). Media & Conflict Reporting in Asia. Asian Media Information & Communication Centre (AMIC), 2008. p. 2.

    SMILEUS / SHUTTERSTOCK, INC.

    http://www.lemonde.fr/actualite-medias/article/2014/09/25/les-medias-face-a-l-etatislamique_4494681_3236.htmlhttp://www.lemonde.fr/actualite-medias/article/2014/09/25/les-medias-face-a-l-etatislamique_4494681_3236.htmlhttp://www.lemonde.fr/actualite-medias/article/2014/09/25/les-medias-face-a-l-etatislamique_4494681_3236.html

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    responsvel, com a devida diligncia e a celeridade necessria em nossa era digital fundamental para cumprir o dever cvico que os jornalistas tm em nosso mundo, disse o jornalista somali-norte-americano Mukhtar Ibrahim aps o atentado ao Centro Comercial Westgate em Nairbi, em 2013.3

    Suas reaes tambm determinam o impacto do terrorismo na sociedade. A mdia est presa em um dilema infernal, escreve o advogado francs Antoine Garapon. Por um lado, o eco miditico suscetvel de tornar vtimas seus mensageiros involuntrios, na busca de seus carrascos pela glria; por outro lado, a autocensura pode ser interpretada como uma rendio. O medo pode levar reivindicao de liberdades conquistadas a duras penas e, eventualmente, reduzir a diferena entre Estados democrticos e regimes autoritrios exatamente o que os terroristas buscam.4

    Aps cada atentado, os especialistas questionam a extenso e o tom da cobertura miditica. Comparam as mortes causadas pelo terrorismo com o nmero de vtimas de desastres naturais, guerras ou acidentes rodovirios, clamando por maior moderao por parte da mdia. Porm, com frequncia essa comparao ilusria, devido natureza eminentemente poltica e social dos atentados: Em 2014, a taxa mdia de homicdios no mundo era de 6,24 mortes por 100 mil habitantes, enquanto o nmero de mortos pelo terrorismo foi de apenas 0,47 por 100 mil, mas se esses nmeros so relativamente baixos quando comparados a outras causas de morte, as consequncias do terrorismo esto alm de qualquer mensurao, escreve o cientista poltico venezuelano Moises Naim. O terrorismo no a ameaa mais mortal do sculo XXI, mas sem dvida mudou o mundo. No entanto, apesar disso, a cobertura sobre o terrorismo na mdia no desproporcional?

    O propsito deste manual consiste em revisar essas consideraes e esses desafios. Ele toma como base princpios essenciais e universais: a busca pela verdade, pela independncia e por um senso de responsabilidade, colocando-os no complexo contexto de um mundo pluralista e interconectado. Sua ambio auxiliar a mdia a encontrar o equilbrio entre a liberdade e a responsabilidade de informar, entre o direito de saber e o dever de proteger, enquanto se respeitam as normas e os valores fundamentais do jornalismo.

    Uma questo fundamentalNos ltimos anos, temos visto atentados cobertos de forma ampla, de Nova York a Moscou, de Paris a Istambul, de Buenos Aires a Mumbai. No entanto, esses eventos de grande destaque no fornecem uma imagem completa do terrorismo global. No norte da Nigria, em Camares, nas regies sob controle de cartis de drogas na Amrica Latina as comunidades tambm esto aterrorizadas,

    3. Disponvel em: .4. GARAPON, Antoine. Que nous est-il arriv?. Esprit. Paris, p. 6, Feb. 2015.

    http://sahanjournal.com/westgate-attack-nairobi-al-shabaab-twitter/

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    Introduo

    reduzidas ao silncio e ao medo. Nos mares, a ameaa do terrorismo martimo persiste, particularmente na costa da Somlia e do Imen, ou no Golfo da Guin. Da Sria s Filipinas, sequestros e tomadas de refns tm se multiplicado nos ltimos anos, convertendo algumas reas do planeta em territrios proibidos. Alm disso, essa violncia tem se disseminado para a internet, alvo de ataques cibernticos que se espalham para alm do mundo virtual.

    A violncia coberta de forma mais ampla aquela com reivindicaes supostamente religiosas, mas o tormento tambm motivado pela supremacia ou nacionalismo de extrema direita, tal como as bombas de Oslo e o massacre de Utya, cometido por Anders Behring Breivik, em 2011, na Noruega; o atentado contra afro-americanos na Igreja Batista de Charleston, Estados Unidos, em julho de 2015; e o assassinato da parlamentar britnica do Partido Trabalhista, Jo Cox, em junho de 2016.

    Sem dvida, a mdia est no centro dessa questo, e comumente tratada como o oxignio do terrorismo, nas famosas palavras da ex-primeira-ministra britnica Margaret Thatcher. Atentados terroristas, escreveu Brian Jenkins, em 1995, muitas vezes so cuidadosamente coreografados para atrair a ateno da mdia eletrnica e da imprensa internacional. O terrorismo dirigido s pessoas que o assistem, no s suas reais vtimas.5

    A caracterizao da mdia no implica verdadeira simpatia sentida ou exibida em relao a grupos terroristas, mas se refere publicidade que fornece e, consequentemente, ao poder de incmodo que lhes concedido. A economia da mdia, que em grande parte tem como base uma corrida competitiva para atrair audincia, incentiva essa relao simbitica entre os terroristas e a imprensa.

    Os terroristas contam com os cdigos jornalsticos convencionais de drama, violncia e surpresa, especialmente na televiso. No entanto, com o desenvolvimento exponencial da internet e das redes sociais, a batalha de imagens e palavras assumiu uma escala sem precedentes. Como destacado em um relatrio do Escritrio das Naes Unidas contra as Drogas e o Crime (UNODC)6, os grupos terroristas esto utilizando sites legais, especialmente redes sociais como Facebook, YouTube e Twitter7, mas tambm a deep web

    5. Disponvel em: .6. Disponvel em: .7. Disponvel em: .

    Atentados terroristas muitas vezes so cuidadosamente coreografados para atrair a ateno da mdia eletrnica e da imprensa internacional. O terrorismo dirigido s pessoas que o assistem, no s suas reais vtimas.

    https://www.rand.org/content/dam/rand/pubs/papers/2008/P5261.pdfhttps://www.unodc.org/documents/frontpage/Use_of_Internet_for_Terrorist_Purposes.pdfhttps://www.unodc.org/documents/frontpage/Use_of_Internet_for_Terrorist_Purposes.pdfhttp://www.brookings.edu/research/papers/2015/03/isis-twitter-census-berger-morganhttp://www.brookings.edu/research/papers/2015/03/isis-twitter-census-berger-morganhttp://www.brookings.edu/research/papers/2015/03/isis-twitter-census-berger-morgan

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    e a dark web8 como meios de propaganda, rede de contatos, recrutamento e financiamento. Pela primeira vez, os terroristas no precisam mais depender de outras pessoas para disseminar sua mensagem9, escreve Shyam Tekwani, pesquisador sobre a sia do Centro de Pesquisa sobre Internet de Singapura. Alm de criar suas prprias pginas de internet, grupos como a Frente Moro de Libertao Islmica ou o grupo Abu Sayyaf esto utilizando tecnologias como correio eletrnico, telefones celulares, SMS e tecnologias de rdio e vdeo para se comunicar uns com os outros e para disseminar suas mensagens ao pblico em geral. Shyam acrescenta que isso permite a eles estruturar suas aes e ideologias como quiserem, contornando a censura governamental ou da mdia. Essa mudana no oxignio do terrorismo em direo ao espao online tem levado algumas organizaes, incluindo governos, a lutar contra sites extremistas violentos e a exigir que as principais plataformas de web acompanhem de perto e limpem a internet.

    O surgimento do grupo Estado Islmico (ver Captulo 3.4. Palavras) tem exacerbado esse fenmeno, uma vez que o grupo implementou um sistema muito mais sofisticado de propaganda estratgica global se comparado Al-Qaeda. Suas mensagens exploram fontes tanto psicolgicas quanto religiosas10, e ignoram em parte mas apenas em parte a mdia tradicional. Os efeitos miditicos dos ataques contra a populao-alvo, concebidos para produzir medo, tambm so um tipo de encenao destinado a seduzir novos apoiadores. O grupo Estado Islmico domina tcnicas de comunicao e redes sociais e, acima de tudo, prope uma narrativa sedutora de herosmo e virilidade, por vezes retransmitida inadvertidamente pela mdia tradicional.

    Apesar desses novos campos de batalha online, a mdia tradicional continua a ser uma parte interessada fundamental, uma vez que as informaes e a anlise que fornece, na maioria dos pases, permanecem como a base para uma grande parte da opinio pblica a mesma opinio pblica que o terrorismo pretende influenciar. A mdia tradicional nem sempre considera suas responsabilidades nesse grande jogo de propaganda, e entra na macabra dana do terror por meio da teatralizao da informao, que concede aos terroristas a varinha da coreografia assassina. Transmisses sucessivas de vdeos que mostram colunas de soldados desfilando em Raqqa ou a bravata guerreira de combatentes estrangeiros extasiados dirigindo veculos 4x4 entram no campo da heroizao do grupo, como adverte a sociloga de mdia Hasna Hussein.11

    8. NT: Nesta publicao, optou-se por no traduzir essas duas expresses. Deep web uma rede invisvel, cujos dados no so encontrados pelos buscadores da web convencional. Dark web uma rede subjacente internet, que possibilita manter annimos os dados de seus utilizadores.

    9. SMITH, Paul. Terrorism and Violence in South East Asia. Eastgate Books, 2005. p. 228.10. Disponvel em: .11. Disponvel em: .

    http://www.lemonde.fr/idees/article/2016/06/18/terrorisme-assez-aveles-scoops-de-lepouvante_4953153_3232.htmlhttp://www.lemonde.fr/idees/article/2016/06/18/terrorisme-assez-aveles-scoops-de-lepouvante_4953153_3232.htmlhttp://www.lemonde.fr/idees/article/2016/06/18/terrorisme-assez-aveles-scoops-de-lepouvante_4953153_3232.html

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    Introduo

    Em alguns aspectos, observa Michelle Ward Ghetti, professora de direito na Southern University (Estados Unidos), o terrorista moderno criado pela mdia. Esta amplia e aumenta o terrorista e seus poderes para alm de sua dimenso verdadeira. A televiso coloca todos na cena do crime, incapazes de fazer qualquer coisa, o que gera sentimentos de ansiedade e medo, que so os instrumentos de coero do terrorista. A ansiedade do pblico aumenta o poder percebido pelo terrorista por seus prprios olhos, bem como pelos olhos de seus pares e outros. Esse poder aumentado frequentemente leva imitao, e o ciclo se repete.12

    Essa equao entre terrorismo e a mdia, no entanto, no clara. Em primeiro lugar, como argumenta Brigitte Nacos13 (Universidade Columbia, Estados Unidos), um grande nmero de atentados no tem inteno miditica e autossuficiente. A srie de atentados praticados no Iraque se insere nessa categoria de no miditicos. Tambm no h evidncia de que o silncio sobre aes terroristas seria suficiente para retirar o oxignio delas. Pelo contrrio, alguns dizem que o silncio total pode fazer com que os grupos terroristas aumentem seus ataques e cometam mais e mais violncia, para que ningum os ignore. Finalmente, o estudo sobre incidentes terroristas tende a mostrar que a mdia pode, at certo ponto, ser o abafador do terrorismo, e no o seu oxignio. Relembrando os atentados contra a equipe de atletas israelenses no Jogos Olmpicos de Munique, em 1972, o pesquisador do Centro Nacional de Pesquisas Cientficas (CNRS, Frana) Jacques Tarnero concluiu que a causa palestina, por muito tempo, ter a cara encapuzada de um assassino. O efeito poltico de simpatia buscado se transformou exatamente em seu oposto.14 No entanto, outros argumentam que, para grupos como o Estado Islmico, o anseio por respeitabilidade, o principal objetivo de uma luta por poder, menos decisivo do que o desejo de intimidar e o narcisismo do poder, amplamente divulgados por meio da cobertura miditica.

    Embora de forma aparentemente paradoxal, os Estados visados pelo terrorismo muitas vezes so fortalecidos por esses eventos traumticos. incontestvel que, como primeira etapa, antes de surgirem questionamentos e recriminaes sobre causas e responsabilidades, o terrorismo une a nao ou a sociedade atingida, o que, durante esse perodo de unio nacional, a mdia geralmente acompanha. Como em outras crises internas, escreve Doris Graber, professora da Universidade de Illinois (Estados Unidos), a mdia e os jornalistas se comportam como membros de uma mesma equipe, unindo-se s autoridades para tentar restaurar a ordem pblica, a segurana e a tranquilidade.15 A

    12. GHETTI, Michelle Ward. The terrorist is a star!: regulating media coverage of publicity seeking crimes. Federal Communications Law Journal, v. 60, n. 3, p. 495, 2008.

    13. NACOS, Brigitte L. Terrorism & the Media: from the Iran Hostage Crisis to the World Trade Center Bombing. New York: Columbia University Press, 1994. p. 53.

    14. TARNERO, Jacques. Les Terrorismes. Toulouse: Editions Milan, 1998. p. 46.15. GRABER, Doris A. Mass Media and American Politics. Congressional Quarterly Press, p. 239, 1980.

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    mdia desempenha um papel importante de interesse pblico nos primeiros momentos aps um ataque. O pblico, preocupado e assustado, aguarda informaes precisas, orientaes sobre segurana e anlises. Ao contrrio do clich, por vezes politicamente malicioso, sobre a irresponsabilidade da mdia, em vrios momentos da turbulenta histria dos ltimos anos, ela tem levado essa tarefa muito a srio. No como se apenas ocorressem abusos, gafes e excessos nas telas de TV, nas pginas de internet e nas redes sociais.

    No entanto, a cobertura do terrorismo pela mdia no limitada apenas a esses momentos dramticos que rompem a normalidade. A qualidade do jornalismo e sua utilidade para a sociedade dependem de outros fatores, especialmente seus questionamentos sobre o fenmeno em si, suas origens e suas consequncias. Alm de emergncias e notcias de ltima hora, a cobertura do terrorismo exige capacidades especiais investigativas e analticas sobre temas de grande complexidade que afetam a poltica internacional, as relaes internas de poder poltico, a religio e o crime transnacional.

    Atentados podem ser reveladores para a mdia, seu modo de operao, seus reflexos e rotinas, mas tambm seus princpios e valores. O terrorismo provavelmente uma das reas em que a competncia profissional mais necessria, observam Michel Wieviorka e Dominique Wolton na obra Terrorisme la une. Muitas vezes, os jornalistas so atrados ao terrorismo por trs fatores, em relao aos quais devem ter cautela: o evento, uma armadilha que atrai a imprensa nos comportamentos mais estereotipados da profisso; os atores mobilizados pelo ato terrorista (que criam fascinao); e o poder (do qual a distncia correta no fcil de se determinar, nem livre de contradies).

    Essas questes so de natureza tica e se referem particularmente representao miditica da violncia. Porm, elas tambm so polticas. Os atentados no so fixados no ciclo de notcias clssico, em que uma notcia rapidamente segue a outra. Aps os atentados de 11 de setembro de 2001, os jornalistas sentiram que esses ataques abriram um novo captulo da histria. Katherine E. Finkelstein, que cobriu os eventos para o New York Times, concluiu seu testemunho no site American Journalism Review com seis palavras auspiciosas: A terrvel histria acabou de comear.16 Ecoando essa frase, havia um sentimento de que os moribundos tinham apenas comeado17 foi a ltima linha de um artigo do colunista Pete Hamill, publicado no New York Daily News logo aps os atendados.

    O terrorismo pretende no apenas assustar, mas tambm exacerbar e polarizar. Nesse sentido, o grupo Estado Islmico fala da zona cinzenta, onde existe diversidade, tolerncia, compreenso, discusses e debates.

    16. FINKELSTEIN, Katherine E. 40 hours in hell. American Journalism Review, Nov. 2001.17. HAMILL, Pete. Death takes hold among the living. New York Daily News, 12 Sep. 2001.

  • 15

    Introduo

    onde h intercmbio, consultas e curiosidade, escreveu o jornalista do dirio britnico The Guardian, Jason Burke, na obra The New Threat.18 Em um artigo de sua revista Dabiq, do incio de 2015, a organizao terrorista defendeu a eliminao dessa zona cinzenta, para que houvesse apenas dois grupos frente a frente: o Califado e os Cruzados. Portanto, os riscos so considerveis: uma questo de evitar contribuir para essa polarizao fatal por meio de atalhos, frases imprudentes, estigmatizao e generalizaes (ver Captulo 3.7. Generalizaes). A misso da mdia, como disse o escritor tcheco Milan Kundera, lanar luz sobre a complexidade do real, e no apenas simplific--la ao ponto de que no mais represente a realidade.

    O terrorismo tambm coloca prova a liberdade e a independncia da mdia at certo ponto, pode ser dito que toma esses valores como refns. Aps atentados em massa, a mdia, por patriotismo, por clculo ou sob coao, geralmente escolhe seguir as determinaes de seus governos ou as emoes da opinio pblica, sob o risco da autocensura excessiva e de apenas reproduzir a voz do poder estatal. A segurana nacional, os interesses geopolticos ou as exigncias de convivncia, so todos aspectos que levam a apelos de moderao, mas, ao mesmo tempo, o que mais problemtico, tambm censura.

    Muito frequentemente, alguns Estados tm usado o argumento terrorismo para silenciar a mdia e controlar jornalistas contestadores. Esses tambm tm abusado do termo para incriminar e criminalizar opinies ou aes legtimas. O pblico tambm tem agido como censor, criticando a mdia que lhes parea desviar muito da linha oficial ou ser demasiado compreensiva no que se refere ao lado oposto. Refletindo sobre o comportamento da mdia aps 11 de setembro de 2001, Kim Campbell perguntou, no Christian Science Monitor, se jornalismo pode rimar com patriotismo, ou se a onipresena das bandeiras norte-americanas nas telas ou nas fitas usadas por apresentadores de televiso no interfeririam na misso (jornalstica) de fazer perguntas difceis aos polticos. Existem outras vises para essa questo, que no consideram qualquer problema em jogo.

    Apesar de sua violncia, o terrorismo, no entanto, no pode sufocar a mdia. Pelo contrrio. Nesses momentos de tenso e ansiedade, informaes livres e pluralistas so ainda mais importantes para iluminar o julgamento do pblico. Quando a segurana da populao visada de forma direta, a mdia deve proteger tanto a populao quanto a democracia, exercendo seu direito e dever de informar. Para a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o terrorismo no deve afetar a liberdade de expresso e de informao na mdia, como um dos fundamentos de qualquer sociedade democrtica. Essa liberdade inclui o direito de ser informado sobre questes de interesse geral, incluindo atos e ameaas terroristas, bem como as respostas do Estado e das organizaes internacionais. Essa uma abordagem seguida pelo ex-

    18. THE NEW threat from Islamic Militancy. London: The Bodley Head, 2015. p. 244.

  • Terrorismo e a mdia: um manual para jornalistas

    16

    secretrio-geral adjunto das Naes Unidas, Jan Eliasson: A liberdade da mdia uma defesa contra o discurso terrorista, disse ele em uma sesso do Conselho de Segurana sobre as histrias e as ideologias do terrorismo, em 11 de maio de 2016, em Nova York.19

    A supresso da informao tem seus perigos. Pode enfraquecer a credibilidade da mdia (que outra informao ela esconde?), e conceder livre curso a rumores infundados e perturbar o nosso senso de informao, observa o canal de TV norte-americano CBS em seu cdigo de conduta. De modo ainda mais fundamental, a democracia deve aprender a viver com os riscos, e administr-los sem enfraquecer as bases e os valores que a sustentam. Se no formos capazes de tolerar o exagerado horror exibido no jornal da noite ou a bomba aleatria sem recorrer ao manual dos tiranos, disse John Bowyer Bell, historiador nova-iorquino do terrorismo, ento ns no merecemos ser livres.20

    O desafio para a mdia amplo. O terrorismo um assunto que envolve uma cascata de decises concretas e muitas vezes complicadas, incluindo a vida de refns, a habilidade de intervir por parte das foras de segurana, a legitimidade de um governo, e at mesmo a sobrevivncia do sistema poltico. Embora as regras clssicas da prtica jornalstica ainda possam ser impostas, elas adquirem uma dimenso mais sria devido violncia envolvida e os interesses da tica jornalstica.21

    Essas decises tambm so complicadas pela intromisso massiva das redes sociais, que tm modificado a forma como as informaes so tratadas. Os grupos terroristas produzem seus prprios vdeos e administram suas prprias narrativas falando diretamente ao pblico, sem o filtro ou a mediao dos jornalistas. Ademais, milhes de cidados esto participando de forma ativa na elaborao e na disseminao de informaes sem se submeterem s regras da tica jornalstica. Essas novas mdias impem novas exigncias mdia existente. Ns enfrentamos riscos sempre que o crescimento da informao ultrapassa o nosso entendimento de como process-la, alerta o jornalista estatstico Nate Silver (Estados Unidos), em seu sucesso literrio The Signal and the Noise. Mais do que nunca, os padres ticos e profissionais de processamento de informaes so essenciais: para validar os fatos, contextualizar e fazer sentido, navegar pelo caos, pela confuso e pelo medo criados pela violncia terrorista. A publicidade pode ser o oxignio dos terroristas, observou Katherine Graham, diretora do Washington Post, durante os escndalos de Watergate e do Pentgono, mas as notcias so a fora vital da liberdade.

    19. Disponvel em: .20. RICHARDSON, Louise (Ed.). The Roots of Terrorism. New York: Routledge, 2006. p. 61.21. Disponvel em: .

    16

    http://www.un.org/press/en/2016/sc12355.doc.htmhttp://www.icfj.org/sites/default/files/Journalism%20Ethics_Global%20Debate.pdfhttp://www.icfj.org/sites/default/files/Journalism%20Ethics_Global%20Debate.pdf

  • 17

    IntroductionIntroduo

    JIJI PRESS / AFP

    Passageiros esperam para receber cuidados mdicos

    aps um atentado envolvendo gs sarin

    no metr de Tquio, em maro de 1995.

  • Terrorismo e a mdia: um manual para jornalistas

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    Pontos principais Nomear significa, em certa medida,

    escolher um lado O terrorismo no tem uma definio

    determinada Terrorismo e resistncia: uma diferena

    crucial Terrorismo de Estado: uma forma de

    governo A glorificao do terrorismo: uma

    expresso que deve ser definida com cuidado

    Nem todo terrorismo inspirado em religio

    Estabelecer e relatar os fatos, sem esteretipos ou generalizaes

    Listas de organizaes terroristas: uma ferramenta til (mas politicamente suspeita)

    O terrorista de uma pessoa o guerreiro da liberdade de outra

    1

  • 19

    Captulo 1

    Questes bsicas na cobertura do terrorismo

    Estas palavras sempre foram complicadas, objeto de controvrsias. O terrorista de uma pessoa o guerreiro da liberdade de outra. O terrorista de hoje o estadista de amanh. Essas frases recorrentes tm se tornado clichs em comentrios jornalsticos e polticos. Significam que o uso desses termos nunca neutro. Nomear significa, em certa medida, escolher um lado, sob pena de se mascarar a realidade ou aceitar a interpretao que um jornalista deseja impor.

    Terrorismo uma palavra abrangente. Refere-se a uma ttica, ou a uma ideologia? um crime, ou um ato de guerra? Existem dezenas de definies para a palavra terrorismo, que muitas vezes enfatizam pontos especficos, refletindo uma abordagem poltica ou moral.

    Um grande obstculo para que se alcanar uma definio amplamente aceita de terrorismo poltico a conotao emocional negativa da expresso, escreveu Ariel Merari, professor no Instituto Internacional para o Contraterrorismo, da Universidade de Tel Aviv. O terrorismo se tornou meramente outra palavra depreciativa, ao invs de descrever um tipo especfico de atividade. Normalmente, as pessoas usam o termo como um rtulo de desaprovao para uma grande variedade de fenmenos de que no gostam, sem se preocuparem em definir precisamente o que constitui um comportamento terrorista.

    Embora o termo aparea em muitos textos e convenes, atualmente no h uma definio consensual no mbito da Organizao das Naes Unidas (ONU), apesar da misso atribuda, em dezembro de 1996, a um comit especial estabelecido pela Assembleia Geral. Criado em 2003, o Grupo de Alto Nvel sobre as Ameaas, os Desafios e as Mudanas submeteu, no ano seguinte,

    PROMETHEUS72 / SHUTTERSTOCK, INC.

  • Terrorismo e a mdia: um manual para jornalistas

    20

    um relatrio se aproximando de uma definio. Aps mencionar os textos existentes, em especial as Convenes de Genebra que condenam os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade, assim como as 12 convenes das Naes Unidas contra o terrorismo, o relatrio props usar a palavra terrorismo para se referir a qualquer ao [...] destinada a causar morte ou graves leses corporais a civis ou no combatentes, quando o propsito de tal ato, por sua

    natureza ou por seu contexto, for intimidar uma populao, ou obrigar um governo ou uma organizao internacional a fazer, ou abster-se de fazer, qualquer ato.

    Pode ser importante realizar a distino entre o terrorismo e a resistncia, uma vez que a diferena to difundida na mdia e tem levado a tantas po-sies e pontos de vista. A luta contra a ocupao um ponto importante, mas como aponta o cientista poltico francs Jac-

    ques Tarnero, a escolha de mtodos de combate e alvos distingue a resistn-cia do terrorismo.1 Em outras palavras, um ataque kamikaze dirigido contra civis na luta contra uma ocupao no um ato de resistncia, mas sim um crime terrorista.

    Nesta publicao, tal como na cobertura miditica em geral, quase todas as pa-lavras do origem a contestao e debate. Esse o caso da expresso extremis-mo violento, que usada cada vez mais frequentemente e para a qual no h uma definio geralmente aceita, como observou Ben Emmerson, relator espe-cial das Naes Unidas sobre a promoo e a proteo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais na luta contra o terrorismo, em fevereiro de 2016. O mesmo verdadeiro para o termo guerrilheiro, que escolhido por grupos ar-mados, mas que o Estado-alvo chama de terroristas (ver Captulo 3.4. Palavras).

    1.1 A noo de terrorismo de Estado Referir-se a algo como terrorismo de Estado com muita frequncia d origem a debates estimulantes. Em que medida os Estados que violam leis humanitrias internacionais podem ser descritos como terroristas? Existem respostas radicalmente opostas e muitas vezes discordncia completa entre aqueles que denunciam os atos de terrorismo, quando enfatizam o nmero de mortes de civis, e aqueles que justificam seu uso proporcional, embora admitam que podem causar danos colaterais lamentveis.

    1. Les Terrorismes. Editions Milan, 1998

    Qualquer ao [...] destinada a causar morte ou graves leses corporais a civis ou no combatentes, quando o propsito de tal ato, por sua natureza ou por seu contexto, for intimidar uma populao, ou obrigar um governo ou uma organizao internacional a fazer, ou abster- -se de fazer, qualquer ato.

  • 21

    Questes bsicas na cobertura do terrorismo

    Em geral, o terrorismo de Estado no percebido por aqueles que tentam elaborar uma definio internacional comum de terrorismo no mbito de organizaes intergovernamentais. Alm disso, a palavra terrorismo vem do Reino do Terror perpetrado por Robespierre durante a Revoluo Francesa, no final do sculo XVIII.

    Naquela ocasio, o termo se referia s aes brutais do Estado contra seus inimigos polticos. Quando legtimo falar sobre terrorismo de Estado? Quando, responde Grard Chaliand, o terror usado como um modo de governar, permitindo que o poder estabelecido, por meio de medidas extremas e do medo coletivo, acabe com aqueles que resistem a ele.2

    Tortura, desaparecimentos forados, assassinatos seletivos de oponentes e massacres generalizados so algumas dessas medidas extremas.

    Pode parecer paradoxal, mas esse terrorismo de Estado pode aparecer at mesmo quando se luta contra o terrorismo ou insurreies. Existem vrios exemplos histricos, cada um dos quais, natural e frequentemente, carregando emoes, memrias e debates.

    A complexidade aumenta quando o terrorismo de Estado praticado em governos democrticos. Por vezes, o terrorismo de Estado tem sido relacionado noo de Estado profundo, ou seja, a rede de servios de segurana, interesses econmicos, faces polticas e at mesmo grupos criminosos que atuam nas sombras, por trs da fachada legal da democracia, e que visam a destruir qualquer mudana realizada pela ordem estabelecida, mesmo que isso signifique recorrer a atos terroristas.

    1.2 Evitar a glorificaoMais uma vez, estas palavras representam um desafio, porque a mdia enfrenta leis que penalizam a glorificao do terrorismo. No entanto, quando possvel dizer que ela glorifica o terrorismo?

    A questo evidente para a mdia considerada prxima s organizaes terroristas: elas atendem no oficialmente quelas organizaes? Quais leis se aplicam a essas mdias, que tm um status jornalstico questionvel? Alguns pases exigem que deixem de funcionar; outros se contentam em monitor-las e procurar contedos que possam violar suas leis.3 No entanto, a acusao de enaltecimento ou glorificao do terrorismo pode se deturpar ao ponto em que at mesmo uma cobertura jornalstica legtima de organizaes descritas como terroristas criminalizada, ou que a mdia proibida de revelar aes estatais ilegais na luta contra o terrorismo.

    2. Encyclopedia Universalis. Disponvel em: http://www.universalis.fr/encyclopedie/terrorisme/>.3. Disponvel em: .

    http://www.universalis.fr/encyclopedie/terrorisme/http://www.universalis.fr/encyclopedie/terrorisme/http://www.osce.org/fom/203926?download=true

  • Terrorismo e a mdia: um manual para jornalistas

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    1.3 Informar sobre diferentes formas de terrorismoA mdia e as esferas polticas tende a se concentrar, dependendo do perodo, em certas formas de terrorismo. Entre 1960 e 1980, as notcias cobriam principalmente o terrorismo relacionado extrema direita e extrema esquerda, assim como a movimentos pr-independncia. Embora esse tipo de terrorismo no tenha desaparecido por completo, atualmente, os ataques terroristas de inspirao religiosa atraem mais ateno, em particular os ataques instigados por organizaes que alegam seguir o islamismo, o que gera uma cobertura miditica mais ampla.

    Embora muitos pesquisadores e estudiosos da religio analisem essas equaes e formulem teorias muitas vezes contraditrias sobre se o terrorismo tem como base a religio, a referncia ao Isl fortemente contestada, no apenas dentro da comunidade muulmana, mas tambm por pases onde o islamismo a religio do Estado. Assim, em 11 de maio de 2016, durante uma das reunies do Conselho de Segurana das Naes Unidas, o representante do Kuwait explicou, em nome da Organizao de Cooperao Islmica (OCI), que a expresso grupos terroristas de inspirao religiosa estava errada, uma vez que nenhuma religio tolera ou inspira o terrorismo, embora existam grupos terroristas que explorem as religies.4

    Em geral, a mdia internacional tambm enfatiza que tais grupos esto envolvidos em uma guerra contra o Ocidente, mas muitas vezes no percebem que esses atos violentos com frequncia afetam populaes majoritariamente mulumanas, seja de forma direta, como no Iraque e na Sria, ou indireta, como no caso dos ataques em Bruxelas, em 22 de maro de 2016, e em Nice, em 14 de julho de 2016, quando tambm havia mulumanos entre as vtimas.

    Na sequncia de uma avalanche de ataques, as referncias ao Isl parecem permear a mdia, como foi visto aps o atentado em Munique, em 2016, por um jovem alemo de origem iraniana. A meno ao Ir desviou os comentrios de notcias, com a mdia, mais uma vez, se concentrando no Isl, embora o crime tenha sido efetivamente cometido devido a uma ideologia de extrema direita, tambm enraizada em teorias arianas desenvolvidas por certos iranianos e pela cultura de violncia de sociedades ocidentais, como afirmou o jornalista iraniano-norte-americano Alex Shams.5 Em seus estudos e relatrios sobre riscos terroristas, Estados e instituies tomam o cuidado de no se limitar a grupos de inspirao religiosa, e cobrir todas as ameaas. Assim, em seu relatrio de 2015, a Europol tambm descreveu organizaes anarquistas, de extrema direita e tnico-nacionalistas.6

    4. Disponvel em: .5. Disponvel em: .6. Disponvel em: .

    http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/PV.7690p.61http://www.huffingtonpost.com/alex-shams/why-did-the-munich-killer_b_11154486.htmlhttp://www.huffingtonpost.com/alex-shams/why-did-the-munich-killer_b_11154486.htmlhttps://www.europol.europa.eu/content/european-union-terrorism-situation-and-trendreport-2015https://www.europol.europa.eu/content/european-union-terrorism-situation-and-trendreport-2015https://www.europol.europa.eu/content/european-union-terrorism-situation-and-trendreport-2015

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    Questes bsicas na cobertura do terrorismo

    Em mbito nacional, os nmeros de aes extremas podem diferir da tendncia global. Nos Estados Unidos, por exemplo, desde os atentados de 11 de setembro de 2001 at o ano de 2015, as aes violentas cometidas pela extrema direita supremacista ou contrria ao governo causaram mais mortes do que aquelas atribudas aos jihadistas7 (ver Captulo 3.4. Palavras).

    Destacando esses nmeros, representantes da comunidade muulmana questionam os padres e as rotinas de processamento de informaes. Eles denunciam o fato de que os atentados da extrema direita geralmente tm menor cobertura da mdia, enquanto os motivos de seus autores so despolitizados e muitas vezes atribudos a doenas mentais. Sua identidade branca e suas crenas religiosas (crists) no faz com que todos os membros de suas comunidades tnicas ou religiosas sejam considerados terroristas.8

    O Financial Times fez a mesma observao quando Jo Cox, parlamentar britnica pelo Partido Trabalhista, foi assassinada em junho de 2016, ressaltando que a cautela dos tabloides quanto aos possveis vnculos do assassino com a extrema direita deveria ser aplicada a todos os casos de violncia terrorista. O jornal comentou da seguinte forma: impressionante que tanto o The Sun quanto o Daily Mail, duas organizaes de notcias pouco conhecidas por sua cobertura cuidadosa e discreta, enfatizaram que o suposto assassino era um solitrio enlouquecido ou um solitrio com histrico de doenas mentais.9 Outros grupos, no entanto, acusam a mdia sensata ou politicamente correta de tentar absolver o Isl de atos cometidos por grupos que alegam segui-lo. A integridade da imprensa, monitorada e suspeita por todos os lados, julgada pela tentativa de no estereotipar ou generalizar, submetida a um duro teste.

    Terrorismo ciberntico: esta forma de terrorismo mostra, mais uma vez, a importncia da definio das palavras. Enquanto o dicionrio francs Larousse, define o terrorismo ciberntico (ou ataque ciberntico) como todos os ataques srios e de grande escala (vrus, pirataria etc.) lanados sobre computadores, redes e sistemas de informao de uma empresa, uma instituio ou um Estado, com o propsito de provocar uma interrupo geral suscetvel de causar pnico, outros, como o Conselho da Europa, aplicam o termo cyberterrorism a todas as prticas online de grupos terroristas, incluindo a propaganda e o recrutamento. Para evitar a generalizao, apareceram palavras e termos mais precisos, tais como cyber jihad ou e-jihad, para se referir ao uso da internet pela Al-Qaeda ou pelo grupo Estado Islmico (ver Captulo 3.4. Palavras, para mais discusso sobre a adequao dessas palavras).

    7. Disponvel em: .

    8. Disponvel em: .

    9. Disponvel em: .

    http://www.nytimes.com/2015/06/25/us/tally-of-attacks-in-us-challenges-perceptions-oftop-terror-threat.htmlhttp://www.nytimes.com/2015/06/25/us/tally-of-attacks-in-us-challenges-perceptions-oftop-terror-threat.htmlhttp://www.nytimes.com/2015/06/25/us/tally-of-attacks-in-us-challenges-perceptions-oftop-terror-threat.htmlhttp://mediamatters.org/blog/2015/11/30/the-planned-parenthood-attack-and-howhomegrown/207105http://mediamatters.org/blog/2015/11/30/the-planned-parenthood-attack-and-howhomegrown/207105http://mediamatters.org/blog/2015/11/30/the-planned-parenthood-attack-and-howhomegrown/207105https://www.ft.com/content/5fd5a4e8-3480-11e6-ad39-3fee5ffe5b5b

  • Terrorismo e a mdia: um manual para jornalistas

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    Para alguns autores, a qualificao de um ataque como um ataque ciberntico terrorista depende de seu impacto e de sua motivao. Como observa Alix Desforges em um de seus registros publicados pelo Instituto de Pesquisa Estratgica do Ministrio da Defesa da Frana (IRSEM), alguns especialistas, como Dorothy Denning, realizam uma distino clara entre o hacktivismo e o terrorismo ciberntico. O hacktivismo abrange operaes que usam tcnicas de hacking contra um site-alvo da internet, com o intuito de interromper suas operaes normais, mas sem causar danos srios.

    Atualmente, os especialistas estimam que no existe grande risco de que organizaes terroristas utilizem o terrorismo ciberntico para intimidar e interromper seriamente o funcionamento de um Estado ou de qualquer uma de suas instituies ou instalaes estratgicas. Nesta fase, eles acreditam que tais ataques provavelmente so estratgias governamentais. No entanto, h uma conscincia crescente quanto vulnerabilidade de Estados e grandes empresas, assim como sua dependncia em relao a sistemas de informao. Particularmente, teme-se pela combinao de um ataque ciberntico e um ataque convencional para atrapalhar a reao dos servios de segurana e hospitais.

    Fonte: The Use of Internet for Terrorist Purposes (UNODC, 2012).10

    Terrorismo gngster: esta expresso, que se refere coexistncia da criminalidade e do terrorismo, agora aplicada principalmente aos extremistas que comearam como delinquentes e hibridao entre atividades criminosas (trfico de armas, drogas e pessoas, lavagem de dinheiro etc.) e atividades terroristas. Por vezes, essa expresso se aplica mfia, que atacou de forma violenta o Estado italiano, notadamente assassinando o general Dalla Chiesa, em 1982, e o juiz Giovanni Falcone, em 1992.

    Narcoterrorismo: este termo se refere ao envolvimento direto de grupos polticos e armados no trfico de drogas; a cooperao entre grupos criminosos envolvidos no trfico de drogas e grupos armados (guerrilhas); a taxao de drogas por grupos armados e atos terroristas cometidos por traficantes de drogas.

    1.4 Listas de organizaes terroristasA ONU no mantm uma lista mundial de todas as organizaes terroristas, mas toma como base listas especficas, tal como a Lista do Regime de Sanes 1.267 das Naes Unidas, aprovada pela Resoluo 1.267 no ano de 1999.

    Essa lista se concentra em indivduos e grupos ligados Al-Qaeda, ao Talib e a seus associados. Desde 2011, o Comit de Sanes, estabelecido pela Resoluo 1.267, foi subdividido para se dedicar unicamente Al-Qaeda e

    10. Disponvel em: .

    http://www.unodc.org/documents/frontpage/Use_of_Internet_for_Terrorist_Purposes.pdfhttp://www.unodc.org/documents/frontpage/Use_of_Internet_for_Terrorist_Purposes.pdf

  • 25

    Questes bsicas na cobertura do terrorismo

    a seus associados. O Regime 1.988 (2011), criado no mesmo ano, se aplica especificamente ao Talib.

    Em 2015, a Resoluo 2.253 introdu-ziu a Lista de Sanes contra o ISIL/Daesh e a Al-Qaeda.11

    Essas listas da ONU se encontram sob a gide do Captulo 7 da Carta das Na-es Unidas e, portanto, as sanes que implicam so vinculativas para to-dos os Estados-membros. A lista rela-tiva s sanes contra o ISIL/Daesh administrada pelo Comit de Sanes, conhecido como Comit 1.267, que composto por todos os 15 membros do Conselho de Segurana. Essas listas tm consequncias para as entidades e para os indivduos que so membros desses grupos, ou considerados como tal (proibio de realizar viagens, congelamento de contas bancrias, congela-mento de ativos etc.).

    No entanto, os critrios de incluso so contestados por alguns especialistas que criticam sua politizao e suas arbitrariedades. O relator especial das Naes Unidas sobre a promoo e a proteo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais na luta contra o terrorismo (at 2011), Martin Scheinin, destacou, em particular, as deficincias das listas da ONU.12

    Vrios pases, incluindo Estados Unidos, Frana, Canad, ndia e China, assim como instituies intergovernamentais, especialmente a Unio Europeia (UE), tambm estabeleceram listas de organizaes que consideravam terroristas. Essas listas refletem as abordagens e as prioridades das polticas internacio-nais estabelecidas pelos pases e pelas instituies. Elas tambm permitem explicar as polticas de sanes e restries seguidas.

    A expresso Estado terrorista mais frequente e designa Estados que usam o terrorismo como um instrumento de influncia internacional. Essa expresso tambm suscita debates, uma vez que as aes consideradas contraterrorismo por um Estado podem ser denunciadas como aes terroristas por aqueles que se opem ou sofrem por causa delas. No entanto, isso reflete uma realidade na poltica internacional. A histria tem muitos casos de arquivos negros (black files) que evocam, sem conseguir fornecer evidncias conclusivas em todas as

    11. Disponvel em: .12. Disponvel em: .

    Atualmente, os especialistas estimam que no existe grande risco de que organizaes terroristas utilizem o terrorismo ciberntico para intimidar e interromper seriamente o funcionamento de um Estado ou de qualquer uma de suas instituies ou instalaes estratgicas.

    https://www.un.org/sc/suborg/en/sanctions/1267/aq_sanctions_listhttp://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/16session/A-HRC-16-51.pdfhttp://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/16session/A-HRC-16-51.pdfhttp://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/16session/A-HRC-16-51.pdf

  • Terrorismo e a mdia: um manual para jornalistas

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    situaes, o envolvimento de Estados em atentados terroristas, alimentando assim a tentao constante de se ver, por trs de cada atentado, um grande coordenador e um condutor mascarado.

    Fontes:

    Lista do Comit de Sanes das Naes Unidas

    Lista de organizaes terroristas estrangeiras elaborada pelo Escritrio de Contraterrorismo (Bureau of Counterterrorism) da Secretaria de Estado dos Estados Unidos

    Lista mantida pela Unio Europeia

    https://www.un.org/sc/suborg/en/sanctions/un-sc-consolidated-list#composition%20listhttp://www.state.gov/j/ct/rls/other/des/123085.htmhttp://eur-lex.europa.eu/legal-content/FR/TXT/HTML/?uri=URISERV:l33208&from=FRhttp://www.consilium.europa.eu/fr/policies/fight-against-terrorism/terrorist-list/

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    Media on the Front Lines

    Pontos principais Fornecer informaes claras, precisas,

    rpidas e responsveis Afirmar o dever de informar Explicar no significa justificar Manter um distanciamento crtico Considerar o impacto das informaes

    sobre a dignidade e a segurana Estar familiarizado: terrorismo,

    contraterrorismo e legislao Circular cuidadosamente nas relaes

    com as autoridades Controlar o enquadramento do

    terrorismo Desconfiar de teorias sem

    fundamentao, de julgamentos taxativos e de ideias pr-concebidas/preconceitos

    Avaliar o antiterrorismo no contexto do direito internacional dos direitos humanos

    Evitar promover o medo Adotar uma viso pluralista, equilibrada

    e inclusiva da informao Considerar o terrorismo, ainda que

    tenha um alvo especfico, como um ataque contra todos

    Pensar globalmente e evitar o nacionalismo informativo

    2

  • Terrorismo e a mdia: um manual para jornalistas

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    Captulo 2

    A mdia nas linhas de frente

    2.1 Um ponto de refernciaDurante os primeiros momentos de um ato terrorista, a mdia , muitas vezes, a primeira fonte de informao aos cidados, bem antes que as autoridades pblicas sejam capazes de assumir a comunicao.

    Dessa maneira, sua misso fundamental: fornecer informaes claras, precisas, rpidas e responsveis1, nas palavras de Frank Sesno, especialista da Universidade George Mason, Estados Unidos. O objetivo consiste em ajudar os cidados a garantir a sua segurana, em cooperao ou em paralelo aos servios oficiais (polcia, centros de crise etc.).

    Por seu rigoroso tratamento da informao, sua gesto simblica de crises, seu autocontrole, seriedade e empatia, a mdia e, em especial, os ncoras de noticirios de TV e tweeters, tambm podem tranquilizar a opinio pblica. Seu tom e suas escolhas de palavras e imagens no apenas ajudam a evitar o pnico, mas tambm previnem retaliaes contra indivduos ou grupos ligados, na mente do pblico, aos autores dos atentados.

    A imprensa deve agir como um farol da esfera da mdia. A proliferao do chamado jornalismo cidado (com redes sociais, telefones celulares e blogs) e o surgimento de um fluxo contnuo de informaes tornaram uma necessidade absoluta verificar, filtrar e interpretar esses fluxos, que circulam em meio a uma desordem de rumores, extrapolaes, especulaes e provocaes.

    Em meio confuso e angstia que ocorrem aps os atentados, atos de jornalismo, como definido pelo jornalista e educador norte-americano Josh

    1. UNITED STATES. House of Representatives. Combating Terrorism: The Role of the American Media, p. 8, 15 Sep. 2004.

    AIJA LEHTONEN / SHUTTERSTOCK, INC.

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    A mdia nas linhas de frente

    Stearns, ou seja, atividades que defendem os princpios profissionais e ticos do jornalismo, so decisivos.2

    2.2 tica e princpiosO terrorismo coloca prova, especialmente, os pilares clssicos da tica jornalstica:

    1. A busca da verdade No contexto de atentados terroristas, um princpio essencial do jornalismo, a busca da verdade, imperativo. Inicialmente, a confuso e a especulao tendem a prevalecer. Consequentemente, os fatos devem ser estabelecidos de forma conscienciosa, e o jornalismo distorcido deve ser evitado. A verificao dos fatos tambm obrigatria. A busca da verdade tambm implica o direito e o dever de explicar, embora s vezes isso seja percebido ou criticado como justificao de atos terroristas. No entanto, essencial atrever-se a decodificar as razes para a falta de razo, as origens dos atos terroristas e as exigncias terroristas. A brutalidade de um ato violento no pode servir de pretexto para se recusar a analisar suas causas.

    Um dos deveres do jornalismo consiste em incluir a complexidade, recusando a negao da realidade na afirmao de que no h nada para se entender, com o pretexto de que os terroristas so brbaros, e ponto final. As regras essenciais da tica jornalstica abrangem esse dever na busca da verdade de forma independente. Quando investigou grupos terroristas em Mali, em 2013, a jornalista do New York Times Rukmini Callimachi enfrentou duras crticas. Ela se viu diante de perguntas como: Como voc ousa dar voz a essas pessoas? Como ousa v-los como algo que no seja os cachorros nojentos que so?

    Sua resposta foi: A questo que a minha reportagem no nega que eles esto praticando crimes contra a humanidade, mas eu acredito que o nosso trabalho como jornalistas significa entender e trazer o cinza para onde s h preto e branco. Porque sempre existe o cinza.3

    2. IndependnciaO terrorismo coloca prova o direito da mdia de informar sobre eventos de maneira independente. Durante crises que ameaam a segurana dos cidados e comprometem a segurana nacional, as pessoas so fortemente pressionadas a prestar ateno. O apelo ao patriotismo, que tende a ser to convincente quanto o atentado que foi brutal, a todo momento ameaa se fundir com o apelo censura.

    2. Acts of Journalism, 17 Oct. 2013. Disponvel em: .

    3. Disponvel em: .

    https://www.freepress.net/resource/105079/actsjournalism-defining-press-freedom-digital-agehttps://www.freepress.net/resource/105079/actsjournalism-defining-press-freedom-digital-agehttp://www.wired.com/2016/08/rukmini-callimachi-new-york-times-isis/

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    Em alguns pases, a lei concede mdia uma margem muito pequena e limita severamente sua ao. Em um estudo sobre a cobertura do terrorismo na ndia e no Sri Lanka, os pesquisadores Shakuntala Rao (Universidade Estadual de Nova York, Plattsburgh) e Pradeep NWeerasinghe (Universidade de Colombo, Sri Lanka), concluram que a independncia foi realmente dificultada. Eles comentaram em especial sobre a manipulao das notcias por parte do governo, as presses para ceder ao mercado, a presso para agradar ao pblico, doutrinando-o com definies governamentais e corporativas de patriotismo e do medo de represlias fsicas.4

    inevitvel que a mdia se identifique com a sua prpria comunidade quando esta visada, especialmente nos primeiros momentos aps um ataque, e que se abstenha de fazer perguntas que possam romper a unidade nacional ou perturbar as vtimas. Quando ocorre um atentado terrorista de grande escala, a mdia tende a suspender sua relao crtica para com o poder. Emergncias criam uma forma de jornalismo misto, para que os jornalistas no se afastem de um pblico que est em estado de choque e precisando de segurana. No entanto, isso no significa se tornar reprteres do Estado. Como escreveu Brigitte L. Nacos, suspender a postura antagnica de pocas de normalidade uma coisa, juntar-se s fileiras dos lderes de torcida outra.5

    O dever de informar exige que seja mantida uma distncia considervel entre, de um lado, a mdia, e do outro lado, as reaes do pblico, as declaraes e aes das autoridades e de outros canais de informao, quer sejam associaes ou partidos polticos de oposio, ou figuras proeminentes envolvidas no debate pblico. certo que tal abordagem difcil, uma vez que a mdia corre o risco de ser acusada, pelo pblico e pelas autoridades, de mostrar deslealdade diante de uma ameaa comum. No entanto, ela preserva sua integridade e, no longo prazo, sua funo democrtica. Aps o choque inicial dos ataques, chega o momento de se fazer perguntas incmodas e ponderar sobre o nvel de antecipao e preparao, bem como sobre a eficcia das respostas e as represlias. Como outras instituies, a mdia tem o direito legal de fazer um balano.

    A mdia deveria tomar uma posio contra o terrorismo, escolhendo seu lado? A maior parte dos jornalistas sentem repulsa pelo uso de violncia contra civis, e seus editoriais refletem principalmente sua indignao. Mesmo assim, a inclinao contra o terror nunca deve levar violao dos valores fundamentais do jornalismo em especial o dever de servir verdade. Paul Wood, especialista em Oriente Mdio da BBC6, notou que George Orwell

    4. RAO, Shakuntala; NWEERASINGHE, Pradeep. Covering terrorism: examining social responsibility in South Asian journalism. Journalism Practice, v. 5, n. 4, 2011. Disponvel em: .

    5. Terrorism & the Media, p. 172.6. WOOD, Paul. The Pen and The Sword: reporting ISIS. Shorenstein Center on Media, Politics

    and Public Policy, Harvard, p. 15, Jul. 2016.

    http://works.bepress.com/shakuntala_rao/3/

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    A mdia nas linhas de frente

    escolheu seu lado durante a Guerra Civil Espanhola, mas que ele jamais teria sonhado em mudar os fatos para se adequar a seus argumentos.

    A funo natural de um jornalista, escreveu o professor colombiano de tica jornalstica Javier Dario Restrepo, servir populao, no s autoridades.7

    Essa independncia pode ser colocada prova, em primeiro lugar, por meio da recusa de disseminar informaes sabidamente falsas a pedido das autoridades e, em segundo lugar, ao se manter em silncio sobre aes realizadas por instituies estatais contrrias ao Estado de direito ou s leis internacionais, tal como a prtica da tortura.

    3. Responsabilidade para com os outrosAs aes da mdia, inevitavelmente, tm um impacto sobre as pessoas, as instituies, as empresas etc., seja por ao ou omisso. Dessa forma, a mdia equilibra seu direito e dever de informar com sua preocupao em minimizar o impacto negativo da disseminao de informaes sobre a dignidade das vtimas, particularmente na proteo de refns ou na proteo de operaes das foras de segurana. No entanto, embora a tica jornalstica clame por um sentimento de humanidade, isso no pode comprometer a principal funo do jornalismo, que informar sobre assuntos de interesse pblico sem se intimidar pelo estado de esprito do pblico ou por ordens das autoridades. Chega um momento em que se questionar sobre as consequncias das informaes pode se tornar uma autocensura excessiva, em detrimento do direito de saber dos cidados.

    4. Transparncia Inevitavelmente, o terrorismo lana dvidas sobre as escolhas editoriais da mdia. Por que, por exemplo, publicar um comunicado de imprensa (press release) de uma organizao terrorista, ou imagens retiradas de um vdeo que mostra refns sendo decapitados? (ver Captulo 5. Interao com grupos terroristas). Alguns veculos de comunicao, de forma instantnea e pblica, explicam suas decises, enquanto outros, se questionados, fornecem apenas justificativas.

    Essa transparncia implica que erros so corrigidos com maior agilidade, visibilidade e honestidade. Ela tambm pode se manifestar como um post--mortem pblico que analisa a cobertura da mdia e identifica seus erros e excessos. Em maio de 2004, por exemplo, o New York Times publicou um relatrio sobre a sua cobertura da invaso do Iraque em 2003, que apontou de forma clara suas deficincias.8 Essa transparncia garante mdia credibilidade de longo prazo.

    7. DARIO RESTREPO, Javier. El Zumbido y el Moscardon. EFE/FNPI, 2004. p. 112.8. Disponvel em: .

    http://www.nytimes.com/2004/05/26/world/from-the-editors-the-times-and-iraq.htmlhttp://www.nytimes.com/2004/05/26/world/from-the-editors-the-times-and-iraq.htmlhttp://www.nytimes.com/2004/05/26/world/from-the-editors-the-times-and-iraq.html

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    2.3 O dever do conhecimentoA mdia sabe como cobrir uma crise, mas no necessariamente sabe sobre a crise que est cobrindo. Esse ditado enfatiza a necessidade de preparar os jornalistas para cobrir um mundo complexo e tumultuado, como ressaltou o professor de jornalismo Philip Seib, em 2004, ao se referir situao do Iraque.

    Mais do que habilidades e tcnicas jornalsticas, o essencial saber o contedo dos eventos e das instituies que os jornalistas devem cobrir.9

    Na maior parte da mdia, a especializao est longe de ser a regra. Os jornalistas passam de um assunto para outro e apenas furtivamente abordam aspectos de rara complexidade. O conhecimento oferece uma garantia contra atalhos, equvocos ou extrapolaes. Quando Oklahoma City, Estados Unidos, foi atacada em 19 de abril de 1995, aqueles que sabiam que era o segundo aniversrio da tragdia ocorrida em Waco, Texas quando dezenas de membros da seita do Ramo Davidiano foram mortos em um ataque lanado pelas foras de segurana dos Estados Unidos , foram imediatamente capazes de colocar em perspectiva a suposta conexo com o Oriente Mdio. Dessa forma, puderam olhar para a extrema direita, que havia visto nesse trgico acontecimento a encarnao da toxicidade do Estado Federal Norte-americano.

    Em 2008, a Associao Pblica de Jornalistas do Quirguisto enfatizou especialmente a necessidade de especializao. Em seu relatrio, os membros escreveram: Os jornalistas no Quirguisto sabem pouco sobre extremismo poltico e terrorismo. Em situaes de crise, muitas vezes no possuem habilidades para lidar com tais questes. Desse modo, eles costumam reproduzir declaraes oficiais sem procurar uma oportunidade de complement-las com suas prprias investigaes, ou anlises e comentrios de terceiros.10 Isso produz incompreenso em meio ao pblico, agravando a situao ao invs de resolv-la.

    A cobertura do terrorismo tambm requer um profundo conhecimento sobre contraterrorismo. Diversas instituies, ministrios, servios e unidades esto envolvidos no contraterrorismo. Eles so encarregados de misses e gozam de prerrogativas especficas. O contraterrorismo implica muitas especializaes e sofisticadas tcnicas de vigilncia e interveno. Envolve todos os poderes: o Executivo e o Judicirio, mas tambm o Legislativo, com o Comit de Inteligncia e Segurana (Intelligence and Security Committee ISC) do Congresso e comisses especiais de investigao.

    As tentativas visando a estabelecer a cooperao internacional contraterrorista so uma complicao adicional, uma vez que envolvem instituies que

    9. SEIB, Philip. Beyond the front lines: how the news media cover a world shaped by war. New York: Palgrave Macmilan, 2004.

    10. PUBLIC ASSOCIATION JOURNALISTS; IMS. Political extremism, terrorism and the media in Central Asia. Copenhagen: Bishek, 2008.

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    A mdia nas linhas de frente

    raramente so cobertas, ou so cobertas de forma insuficiente, como as Naes Unidas, o Conselho da Europa, a Unio Europeia, a OTAN ou a Interpol, cujos mandatos e habilidades muitas vezes se sobrepem ou esto em conflito. Deter conhecimento sobre o sistema de contraterrorismo essencial para avaliar a eficcia da luta contra o terrorismo, mas tambm sua conformidade com a lei e o Estado de direito. Tal conhecimento facilita analisar declaraes taxativas quanto preparao do Estado, bem como julgar com maior autoridade as respostas propostas pelo governo ou pela oposio.

    2.4 Enfrentar a leiO direito e o dever de informar em nome do interesse pblico no exime a mdia de respeitar um determinado nmero de leis. A mdia deve conhecer a legislao em vigor em seus prprios pases e naqueles para onde seus reprteres so enviados.

    Aps um atentado, as autoridades podem impor proibies temporrias sobre a cobertura, por motivos de ordem pblica ou segurana nacional (ver Captulo 4.3. Transmisso ao vivo). Essas proibies aplicadas disseminao de informaes podem ter suas razes, mas tambm podem ser utilizadas para controlar informaes e proteger as autoridades de possveis crticas.

    O terrorismo um tema estritamente regulamentado pela lei, devido aos perigos que representa e sua significativa sensibilidade poltica. legal, por exemplo, visitar sites terroristas ou tentar contatar membros de organizaes terroristas? Os jornalistas podem filmar operaes de segurana em andamento? Em que medida a mdia pode proteger o sigilo de suas fontes, citando a liberdade de imprensa, quando as foras policiais exigirem uma fonte em nome da segurana nacional? Que consequncias tem o estado de emergncia para a mdia? As regras variam de um pas para o outro, e a invocao da liberdade de imprensa pode no ser suficiente para retirar a mdia do alcance da mo pesada da lei.

    A lei tambm permeia a prtica e a rotina jornalstica. A rejeio geral suscitada pelo extremismo violento ou a presso de fornecer informaes pode levar a mdia a no ter cautela na forma como se refere a uma pessoa suspeita de envolvimento em um ato terrorista. Assim, a mdia corre o risco de deixar de lado as leis sobre o direito de privacidade e o direito presuno de inocncia.

    Cada deciso editorial implica uma avaliao rigorosa dos riscos legais envolvidos, assim como suportar as consequncias potenciais de certos atos. Por exemplo, a mdia deve estar pronta para se recusar a revelar a identidade de uma fonte e, com isso, correr o risco ter um de seus jornalistas ou gestores sniores condenados priso?

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    2.5 Relaes com as autoridadesA mdia no pode cumprir sua misso de interesse geral se no gozar da liberdade de informar. Essa liberdade pode ser suspensa por um determinado perodo em casos especficos, em que existam riscos reais de segurana.

    No entanto, ocasionalmente, essas restries podem ser excessivas. Em julho de 2016, por exemplo, o Conselho de Mdia do Qunia (Media Council of Kenya MCK) pediu s autoridades que divulgassem mais informaes sobre aes de terrorismo e contraterrorismo. O presidente executivo adjunto do Conselho, Victor Bwire, disse que os fatos disponibilizados pelas autoridades eram insuficientes, o que levou os jornalistas e buscar informaes da imprensa internacional e de redes sociais, publicando contedos de pginas terroristas. No ltimo caso, eles poderiam ser acusados de disseminar propaganda.11

    Jornalistas que cobrem o terrorismo, o que envolve a segurana nacional e a reputao das foras de segurana e de autoridades polticas, recebem ateno

    11. Disponvel em: .

    OS DIREITOS DA MDIA EM UMA DEMOCRACIAEm 2005, um dia antes do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, a Asso-ciao Mundial de Jornais (World Association of Newspapers WAN) resu-miu os direitos que todos os Estados democrticos devem garantir mdia:

    1. O direito de acesso a informaes oficiais, conforme definido na legislao do direito de saber. Classificaes de segurana mais rgidas podem ser impostas em questes que se refiram inteligncia militar ou sensvel, mas estas devem ser submetidas a um rigoroso exame para evitar tentativas injustificadas de limitar o conhecimento pblico, particularmente no que diz respeito s decises polticas;

    2. O direito de os jornalistas protegerem suas fontes confidenciais e, consequentemente, de estarem protegidos de buscas despropositadas e do monitoramento de suas comunicaes sem uma ordem judicial.

    3. O direito de os jornalistas cobrirem todas as pessoas envolvidas em conflitos, incluindo terroristas;

    4. A garantia de que os jornalistas no sero processados caso publiquem informaes confidenciais;

    5. A proibio da propaganda negra (black propaganda), ou seja, a colocao de artigos falsos ou maliciosos sob aparncia de jornalismo, e a renncia das autoridades de ludibriar os jornalistas.

    http://www.standardmedia.co.ke/article/2000206898/media-council-pushes-for-accessto-information-on-terrorism-caseshttp://www.standardmedia.co.ke/article/2000206898/media-council-pushes-for-accessto-information-on-terrorism-caseshttp://www.standardmedia.co.ke/article/2000206898/media-council-pushes-for-accessto-information-on-terrorism-cases

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    A mdia nas linhas de frente

    especial das autoridades. Eles correm o risco de ser colocados sob vigilncia e impedidos de conduzir investigaes em zonas controladas por grupos armados, e at mesmo de ser acusados de cumplicidade, ou detidos e condenados.

    Em 2014, o jornalista nigeriano Peter Nkanga disse que: Transformar um jornalista em alvo por reportar sobre assuntos de interesse pblico o equivalente a, de forma deliberada, negar ao pblico seu direito de ser informado adequadamente sobre assuntos que afetam a sua comunidade. Isso um ataque sociedade.12 Quando o terrorismo age, os jornalistas devem, mais do que nunca, continuar a cumprir seus papis de provedores de notcias e contrapoderes. No devem esperar de forma servil por comunicados oficiais, mas devem buscar pessoalmente informaes e verificar sua exatido, ao mesmo tempo em que se mantm atentos s suas responsabilidades antes de transmitir as notcias.

    As relaes com os servios de segurana e inteligncia devem ser definidas de forma clara. Embora os atentados possam criar um tipo de unio sagrada com as autoridades e o pblico clamando por patriotismo, a mdia no um rgo auxiliar do governo. Ela mantm sua tarefa de monitorar as autoridades e fornecer aos cidados informaes independentes.

    Em abril de 2016, James Rodgers, professor de jornalismo na City University de Londres, fez a seguinte reflexo: Com que nvel de seriedade devem os editores receber avisos de fontes annimas de segurana sobre ameaas [terroristas]? Essas so informaes importantes de segurana pblica, ou uma distrao que visa a obter financiamentos extras?13

    Essa abordagem implica particularmente testar a legitimidade da afirmao das autoridades de que algumas informaes devem ser mantidas em sigilo. O nvel de responsabilidade deve, obviamente, ser elevado, para que no caia nas mos de terroristas; no entanto, a reteno de informaes sob a premissa de que se tratam de segredos de Estado, ou por patriotismo, no pode ser aceita caso o objetivo seja encobrir aes ilegais ou irracionais empreendidas pelas autoridades. A linha entre o que deve ser silenciado e o que deve ser revelado ao pblico nem sempre clara, mas a pergunta deve ser constantemente feita, e os argumentos das autoridades devem ser examinados de forma sistemtica.

    12. Disponvel em: .

    13. Disponvel em: .

    https://www.indexoncensorship.org/2014/06/nigeria-targeting-journalists-boko-haram/https://www.indexoncensorship.org/2014/06/nigeria-targeting-journalists-boko-haram/https://www.indexoncensorship.org/2014/06/nigeria-targeting-journalists-boko-haram/http://www.city.ac.uk/news/2016/april/terror-attacks-put-journalists-ethics-on-the-frontlinehttp://www.city.ac.uk/news/2016/april/terror-attacks-put-journalists-ethics-on-the-frontlinehttp://www.city.ac.uk/news/2016/april/terror-attacks-put-journalists-ethics-on-the-frontline

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    2.6 Enquadramento do terrorismoOs enquadramentos das notcias utilizados para cobrir o terrorismo so de-cisivos. Os enquadramentos das notcias so estruturas interpretativas uti-lizadas por jornalistas para definir eventos especficos em seu contexto am-plo, nas palavras de Pippa Norris, Montague Kern e Marian Just.14

    O enquadramento envolve a seleo de aspectos especficos e ngulos da realidade, privilegiando-os na descrio, na definio, na interpretao e na avaliao moral do assunto que est sendo coberto.

    A escolha realizada pela mdia nem sempre consciente e pode refletir enquadramentos de notcias desenvolvidos por outros: autoridades, mas tambm figuras pblicas, centros de estudo, rotinas jornalsticas, como a de priorizar a proximidade ou a emoo, ou um vis ideolgico. Ainda assim, a escolha do enquadramento crucial. Ela pode influenciar as reaes do pblico e das autoridades. As autoras Brooke Barnett e Amy Reynolds notaram que, em certa medida, a forma como a mdia norte-americana enquadrou os atentados de 11 de setembro de 2001 consistiu em exigir uma retaliao decisiva.15 A imprensa citou, de forma ampla, as declaraes de polticos propondo uma resposta militar, bem como as declaraes de cidados norte-americanos comuns pedindo represlias.

    Durante a Guerra Fria, a maior parte dos atos terroristas era interpretada no contexto da confrontao ideolgica e geopoltica entre o Oriente e o Ocidente. Desde a queda do Muro de Berlim e o surgimento do terrorismo inspirado no Isl (ver Captulo 3.4. Palavras), muitas vezes os atos terroristas so cobertos com uma perspectiva semelhante teoria do choque de civilizaes, popularizada pelo ex-professor de Harvard, Samuel

    Huntington. Em ambos os casos, o modelo muito similar, inspirado por uma concepo maniquesta e binria da informao: eles contra ns, os viles contra os mocinhos.

    Os mesmos eventos podem, ento, ser enquadrados de maneiras radicalmen-te diferentes, de acordo com as premissas da mdia. Enquanto alguns analisam as informaes para encontrar o que divide as comunidades, outros escolhem os fatos que demonstram a necessidade e a possibilidade de viverem juntos. Aps o 11 de Setembro, um determinado nmero de veculos de comunica-o norte-americanos publicou artigos mais positivos sobre cidados rabe-a-14. Framing terrorism: the news media, the government, and the public. Routledge, 2003. p. 10.15. Terrorism and the Press: an uneasy relationship, p. 129.

    Enquanto alguns analisam as informaes para encontrar o que divide as comunidades, outros escolhem os fatos que demonstram a necessidade e a possibilidade de viverem juntos.

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    mericanos ou muulmanos.16 Esse enquadramento visava a evitar retaliaes contra uma comunidade norte-americana especfica e insistia na urgncia de se enfrentar o desafio lanado pela Al-Qaeda dentro da lei, e no com a discri-minao. essencial pensar sobre o enquadramento, uma vez que jornalistas podem, dessa maneira, ir alm dos reflexos gregrios do jornalismo, dos seus consensos pr-estabelecidos, do bvio e das apostas caa-votos para ofe-recer perspectivas diferentes, pluralistas e crticas.17

    A maneira como um ato terrorista enquadrado tambm pode mudar com o passar do tempo. Aps certo perodo, quando o choque do atentado diminuiu, a mdia abandona o enquadramento de coeso e patriotismo que havia estabelecido e passa a acolher uma maior diversidade de pontos de vista e opinies. Aps os atentados de Paris, em novembro de 2015, Chris Elliott, ex- -editor de leitores do jornal The Guardian, observou que: A ideia de que esses atentados terrveis tm causas, e que uma dessas causas pode ser a poltica do Ocidente, algo que, imediatamente aps o atentado, pode inspirar raiva. Trs dias depois, um ponto de vista que deve ser ouvido.18

    O enquadramento demonstrado por meio da seleo ou da rejeio de as-suntos, sua hierarquia, sua colocao, a escolha de porta-vozes e de imagens. Tambm pode ser refletido no uso de algumas palavras e eptetos. Comparando dois atentados, um em Beirute, em 12 de novembro de 2015, e outro em Paris, em 13 de novembro de 2015, a jornalista libanesa-americana Nadine Ajaka mostrou como algumas poucas palavras eram suficientes para estabelecer um enquadramento capaz de influenciar os sentimentos do pblico. Agncias de notcias descreveram os atentados em Beirute como um ataque contra um reduto do Hezbollah, o grupo militante xiita. Ao envolver a rea em um co-mentrio comunitrio e geopoltico e, dessa maneira, compactando suas di-versas identidades, essas agncias de notcias inferiram, em certa medida, que o crime era de se esperar, uma vez que a milcia xiita libanesa inimiga do Estado Islmico. No houve tal carac-terizao na cobertura dos ataques de Paris, e a mdia se referiu apenas de forma marginal s intervenes mili-tares francesas contra o grupo Estado Islmico.19

    16. NACOS, Brigitte L.; TORRES-REYNA, Oscar Framing Muslim-Americans before and after. Framing Terrorism, n. 9, 2011.

    17. Disponvel em: .18. Disponvel em: .19. Disponvel em: .

    Ryszard Kapuscinski disse a um jornalista que o que viu na guerra foi ternura, solidariedade e tolerncia, e que seus personagens eram crianas, pessoas idosas e mulheres grvidas.

    http://www.au.af.mil/au/awc/awcgate/state/crs-terror-media.htmhttps://www.theguardian.com/commentisfree/2015/nov/23/what-we-got-right-andwrong-in-coverage-of-the-paris-attackshttps://www.theguardian.com/commentisfree/2015/nov/23/what-we-got-right-andwrong-in-coverage-of-the-paris-attackshttps://www.theguardian.com/commentisfree/2015/nov/23/what-we-got-right-andwrong-in-coverage-of-the-paris-attackshttp://www.theatlantic.com/international/archive/2015/11/paris-beirut-media-coverage/416457/http://www.theatlantic.com/international/archive/2015/11/paris-beirut-media-coverage/416457/http://www.theatlantic.com/international/archive/2015/11/paris-beirut-media-coverage/416457/

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    O enquadramento tambm , mais fundamentalmente, uma filosofia do jornalismo. O renomado especialista em tica jornalstica, o professor colombiano Javier Dario Restrepo, oferece uma anedota esclarecedora a esse respeito. Quando veio a Bogot, o correspondente de guerra mais famoso do mundo, Ryszard Kapuscinski, disse a um jornalista que o que viu na guerra foi ternura, solidariedade e tolerncia, e que seus personagens eram crianas, pessoas idosas e mulheres grvidas. Ele poderia ter dito, como muitos outros correspondentes, que voc vai guerra para encontrar heris, Rambos, pessoas que gostam de fora e de crueldade. Para o jornalista polons, no entanto, a guerra, que o esgoto da histria e o cenrio onde deixam de existir todas as razes para se acreditar nos seres humanos, se torna um desafio quando, como aqueles que enxergam o lado bom das coisas, voc tenta olhar para a humanidade que restou e as razes para continuar acreditando nela.20

    Do mesmo modo que grande parte do pblico e das autoridades, em choque aps os atentados, alguns meios de comunicao so tentados a adotar um enquadramento blico, a criticar os que evitam conflito e a promover formas mais eficazes para responder ao desafio terrorista. Ento, o risco consiste em acabar com o que define a tica de uma sociedade, assim como seu com-promisso com os direitos humanos e com o direito humanitrio internacional.

    Gilles Bertrand e Mathias Delori escreveram que: A guerra contra o terrorismo apoiada por um discurso humanista que , por definio, cego em relao sua prpria violncia. Discursos comunitrios ou racistas so nicos no modo como expem de forma ruidosa a violncia que deploram. Inversamente, discursos modernos, liberais e humanistas no expressam sua prpria violncia.21 Certamente isso algo que vale a pena refletir a respeito.

    Inevitavelmente, o enquadramento tem consequncias sobre o trabalho profissional e factual da mdia. Pode levar, por exemplo, a negligenciar as mortes de civis causadas por uma retaliao a atos terroristas, ou silenciar sobre abusos cometidos pelo seu prprio lado, o que levanta questes sobre a prtica jornalstica (equidade, imparcialidade, verdade) e a tica humanista (o sentimento de humanidade). Em outubro de 2001, em um memorando transmitido aos editores, a rede CNN enfatizou que dada a enormidade do nmero de vidas humanas inocentes nos Estados Unidos, devemos permanecer cuidadosos para no enfocar de forma excessiva as baixas e as adversidades no Afeganisto, que inevitavelmente faro parte dessa guerra.22

    Foi apenas em 2004 que a imprensa dos EUA comeou a informar seriamente os leitores sobre a prtica da tortura nas prises norte-americanas de Bagram

    20. Disponvel em: .21. Terrorisme, motions et relations internationales, Myriapode, 2015. p. 74.22. Disponvel em: .

    http://www.redalyc.org/pdf/160/16008104.pdfhttps://www.theguardian.com/media/2001/nov/01/warinafghanistan2001.september112001https://www.theguardian.com/media/2001/nov/01/warinafghanistan2001.september112001

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    A mdia nas linhas de frente

    ou Abu Ghraib, embora isso houvesse sido denunciado por associaes de direitos humanos.23

    Por muito tempo, as consequncias da guerra de drones para a populao civil do Paquisto tambm foram encobertas, pois os ataques eram considerados legtimos pela mdia, que estava convencida da necessidade de lutar duramente contra organizaes terroristas. A jornalista Tara McKelvey observou: Quando os drones atacam, perguntas importantes no so feitas, nem so