Ate Breve

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Drama contado de maneira não usual, temporalmente falando, sobre duas semanas na vida de uma pessoa com problemas físicos e/ou psicológicos.

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  • AT BREVE

    Por Leo Souza

  • As flores de plstico no morrem. (Tits)

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  • 1. Tera-feira

    Acordo com o despertador tocando. Levanto, passo em frente ao espelho a cara est at bem

    bacana e vou direto para o banho. Dispo-me, analiso a salincia da barriga e sorrio. No box, deixo a

    gua correr enquanto me apoio na parede. Uma das coisas boas da vida deixar a gua do chuveiro

    cair forte na nuca, no h pensamento algum, apenas a fora da gua na pele. Ensabo-me, massageio

    o cabelo, mais gua. Seco o corpo por completo, vou ao quarto e visto a roupa para o trabalho.

    Mas antes de sair, um caf da manh caprichado. Po dormido, manteiga, caf forte, leite frio.

    Muito bom. Outra coisa boa da vida comer um bom caf da manh. Enquanto lancho, ouo as

    notcias na rdio. Bombardeio no oriente mdio, inflao, alta do dlar, corrupo, pausa para o

    futebol. Acho engraado quando ouo Jos Simo e sua srie Os predestinados: o dono de uma

    funerria que se chama Joo Boa Morte. Hahaha. Predestinados.

    Pego o carro, e dirijo para o servio. No shuffle do carro, um bom rock. Jimi Hendrix seguido

    de Secos & Molhados. De repente comea Echoes, do Pink Floyd: Overhead the Albatross hangs

    motionless upon the air. Sorrio. Uma das coisas boas da vida ouvir um bom rock. Chegando ao

    prdio onde trabalho, dou meus cumprimentos a todos. O dia est lindo, no ? Todos parecem

    felizes, mas no tanto quanto eu. H muito tempo no me viam to bem com a vida. Converso com os

    e as colegas, falamos de amenidades, poltica e sobre quem foi assaltado no dia anterior. Contamos

    uma piada e gargalhamos. um bom dia.

    Em meu escritrio, preparo todas as coisas. Este sim um dia produtivo, no quero deixar

    absolutamente nada para depois do almoo. Consigo realizar todas as tarefas, e at algumas que seriam

    para a tarde. Assim que as termino, entro no site do banco, e fao a transferncia para meus pais. No

    deixo um centavo sequer na conta, no necessito mais.

    Assim que chega a hora do almoo, subo as escadas e vou ao parapeito. No h hesitao.

    Salto. Durante a queda, penso em vrias coisas. Nas boas principalmente, todas elas. Penso em meus

    pais, na Clara. O vento batendo no corpo me d uma sensao divina, sinto-me como o albatroz de

    Echoes, o ar em meu rosto me deixa mais feliz ainda. Provavelmente eu estava rindo neste momento.

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  • No sinto medo.

    Antes de tocar o cho, sinto o cheiro de meus pais. Perfeito.

    Muito obrigado.

    At breve.

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  • 2. Segunda-feira

    Ressaca somada a uma segunda-feira um conjunto esmagador. Olhos marejados, nariz

    escorrendo vmito, olho para a privada e vejo uma mistura de fluido estomacal com uma bolinha de

    sangue. De duas uma: ou a fora que fiz para vomitar estourou vasos no esfago ou s mais uma

    etapa do meu corpo pedindo por clemncia. Depois de um banho longo, onde eu tento lembrar o que

    tinha feito ontem a noite, vou cozinha e encho um copo de coca-cola gelada. Uma sobra de pizza

    gelada reveste o que sobrou de meu estmago e visto-me para o trabalho.

    Cara, o que rolou ontem? Alguns flashes passam pela minha cabea. Risos, mulheres,

    amigos, amigas, copos, cerveja, um tapa, cachaa, talvez vodca, ou seria steinhaeger? Ser que fiz algo

    com algum? A ressaca moral, aquela estranha sensao de ter conversado algo inapropriado com uma

    pessoa, faz com que eu acorde dos meus sonhos da noite anterior quase no instante em que esbarro

    meu carro no do cara que est me xingando. Sei como comeou, sei de algumas coisas durante, no sei

    como cheguei em casa. Pssimo. Pelo menos desde sbado j est tudo decidido. Ento, que se foda o

    que fiz e com quem fiz.

    Chego no trabalho, atrasado. Olheiras profundas. Todos sabem, provavelmente pelo aspecto, e

    pelo hlito, que estou de ressaca. Converso pouco, tomo caf, olho para a cara de cada um e cada uma

    com um nojo estupendo, que faz minha cabea rodar e lembrar da bola de sangue na privada. E a

    Marco, ressaco hein? Pois , Carlo hoje t difcil!!! nica frase que consigo dizer sem ter nsia

    de vmito. Enquanto eu respondia, alguns sorriam ironicamente, outros companheiramente, e algumas

    pessoas fechavam a cara. Diziam-se amigos e amigas. Eu no sentirei falta alguma de nenhum. Mesmo

    com est maldita ressaca, insisto em prestar ateno. As conversas, sempre as mesmas: 1) Hoje t

    ______, hein! Coloque no espao as seguintes palavras: frio, quente, chovendo, seco. 2) Voc viu

    ______? Ficou com _______, aquele(a) _______! Deu vexame! Coloque nomes masculinos e/ou

    femininos, e adjetivos pejorativos no final. 3) ________ morreu! Nome do(a) ltimo morto(a) do fim

    de semana. 4) Voc viu a treta de _______? Nome de algum(a) ator ou atriz famoso(a). E assim por

    diante. Nada alm de futilidades. Pela primeira vez no dia dou um sorriso sincero. Muito bom.

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  • Vou para minha sala e decido trabalhar pesado. Durante o dia, deixo toda a papelada pronta

    para amanh, toda a imprestvel burocracia praticamente resolvida. Sem almoo e saindo da sala

    apenas para ir ao banheiro, termino o dia no site do banco, movimentando as ltimas contas e deixando

    no computador os dados para a transferncia de amanh. Pronto, mesmo movido a neosaldinas e com a

    cabea estourando, consigo deixar tudo resolvido para a manh de tera-feira.

    Entro em casa aproximadamente s 8h30m da noite, depois de passar na padaria. Tomo um

    banho, melhor que o da manh. Fao um caf e como po com presunto e mussarela. Muito bom. Tudo

    est caminhando bem. Deito em frente TV, est passando South Park: Friendly faces everywhere.

    Humble folks without temptation. Hahaha. Muito bom. Ligo para minha me. Oi me, tudo bem? A

    melhor voz do mundo responde, e dispara a falar: Oooiii meu filho, tudo bem com voc? Seu pai t

    aqui mandando um abrao. E as coisas no trabalho? Tudo ok me. Aqui tambm tudo bem. Seu

    irmo t na mesma, trabalhando. Os filhos do Mateus esto dando um trabalho, tiraram nota baixa.

    Mas esto lindos, uma beno Paro de prestar ateno no assunto, agora pra mim s existe a voz.

    Maternal seria redundante, mas o nico adjetivo. Sinto-me bem, livre, em paz. Ela passa para meu

    pai, ele comea a falar sobre o carro que deu problema e demais amenidades, mas novamente eu no

    presto ateno. Sorrio enquanto ouo a voz dele, ao mesmo tempo que lgrimas de felicidade plena

    descem pelo meu rosto. Beijo pai, passa pra me. Me, beijo. Amo vocs. D abraos em todos.

    Desligo. Mais lgrimas.

    Est tudo certo.

    Amanh.

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  • 3. Domingo

    Domingo um dia morto, muitos dizem. Hoje est bem assim. Depois da noite de ontem, eu s

    queria isto mesmo: permanecer sozinho, em casa, tentando no pensar em nada, no ter a obrigao de

    conversar com ningum. Almoo uma pizza Pif-Paf, de frango, tomando coca-cola, e ligo a TV.

    Televiso num domingo, em qualquer canal, aberto ou fechado, um rudo branco que ligo enquanto

    vejo as notcias das redes sociais. Figurinhas engraadas so o bastante para tirar o meu prprio

    pensamento sobre mim mesmo. Pleonasmo, mas basicamente isto. Se a humanidade fosse to

    criativa para coisas ditas importantes como paz e cincia, como com humor de internet, estaramos

    vivendo num mundo mais chato. Pelo menos o tempo passa rpido com esta juno TV no domingo e

    redes sociais.

    Logo antes do jogo de futebol, toca meu telefone. Tentam mais de 10 vezes, e eu decido

    atender. Opa, beleza? No vi tocando, tava no silencioso. E a Marco, bora tomar uma cerveja?

    Ah cara, num t na onda no! Nem vem com essa, s umas cervejas de leve! Srio! Beleza Carlo,

    vou pensar aqui e te ligo. Abrao. De leve, sei. Sinto-me como se anjo e demnio lutassem por esta

    deciso. Saio ou no saio? O anjo vence, em 20 minutos fecho a porta de casa rumo ao Bar.

    Carlo, Janana, Paulo e Luis estavam j com seus copos cheios e aquele sorriso bom no rosto.

    Parece que eu nasci para isto: mesa de boteco, galera conversando, cerveja gelada. Chego e sento junto

    ao Paulo, peo meu copo e entro na conversa. E a, o que t rolando? Tamo falando de ontem, voc

    se deu bem hein? Foi legal, Jana. A moa era bacana. Voc no deve nem saber o nome dela.

    Ana! Digo com um sorriso de canto de boca no momento que meu copo chega, e percebo que Jana

    me olha com uma cara no muito amigvel. Tomo o primeiro gole de cerveja, saboreando com gosto o

    formigar que uma boa cerveja deixa na boca. Muito bom. Mas e a, o que rolou? Nada de mais, fui

    com ela pra casa, ficamos e ela foi embora. Foi at bacana. Mas e a, o que vocs to pensando pra

    hoje? Mudo de assunto rpido, no quero pensar na transa de ontem, muito menos no que eu pensava

    na hora. Ah, vamo ficar aqui, tomar uma cerveja de leve, e depois tamo pensando em ir para o

    Space. Vamo ver t pensando em ficar mais quieto hoje.

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  • A conversa gira em torno de futebol e poltica, exclumos o assunto trabalho e fofocas. Como

    estamos em tempo eleitoral, cada um faz uma boa observao sobre a cidade e o que os polticos da

    regio poderiam ter feito. Janana muda de assunto, falando do curso que ela pretende fazer. Acho

    interessante ela querer estudar, depois de tanto tempo sem entrar numa sala de aula. Eu nunca tive esta

    disposio para estudar. Conversar com a Jana bom por vrios motivos, dentre eles o nvel alto da

    conversa, o cheiro, e principalmente os grandes decotes que ela usa. Vez ou outra ela me d um tapinha

    para que eu olhe para seu rosto em vez de seus seios.

    Olho para o relgio, duas horas que estamos aqui, e penso em mandar mensagem para a Clara.

    Sempre ela, sempre. Percebo que estou comeando a ficar alterado, tanto pelo desejo que tenho de

    falar com Clara quanto pela quantidade de sorrisos e papos atravessados que estamos envolvidos. Vou

    mandar mensagem pra Clara! Voc t doido? Fica ativo, me d logo este celular. Pronto, sem

    celular. Carlo me salvou dessa. garom. traz uma cachacinha boa pra gente? Vou aproveitar,

    apesar dos olhares de desaprovao de Carlo e Jana. Bora pro Space daqui a pouco!!! Gritos de

    alegria. A sensao que a cerveja nos proporciona fantstica. Liberdade, alegria, poder. Tomo a

    cachaa sabendo que a noite vai render, e que vou passar do limite. Fico alterado rapidamente, com

    energia para ir ao Space.

    Discotecas no so meu habitat, mas do jeito que estou vai ser bom. No Space, peo uma

    cerveja logo na entrada. Paulo, Lus e Carlo esto na pista, e fico no balco com Jana, conversando.

    Hahaha acho que t meio ruim j. No, eu t tranquila. Vou vigiar voc. Meu celular? Onde ele

    t? T com o Carlo, relaxa. Garom, me v um estanrreger a. Ele quer um steinhaeger! Isso

    mesmo que eu quero. Hoje v ficar ruim. Mais? Para depois dessa, ok? Viro a dose de steinhaeger,

    muito bom. Cad a Clara? Marco, esquece a Clara. T. Vejo uma moa bonita e vou conversar

    com ela. Oi, tudo beleza? Balbucio o que posso, no estou conseguindo falar direito, muito menos

    pensar. Cara, voc t tonto demais. No me enche, ok? T bom, feia. Hahaha Peo outra cerveja,

    mas no vejo a Janana mais. Ela deve ter ido pra pista, ento sigo para l, tropeando em algumas

    pessoas.

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  • Chego na pista e vejo a Jana conversando com outra mulher, bem no canto, escondidas. Tenho

    que olhar mais de trs vezes para acreditar. Ser a bebida ou estou mesmo enxergando direito? Clara,

    que c t fazendo aqui? Marco, voc t muito bbado, no quero conversa com voc assim.

    Marco, vai l pro balco, j t indo te levar pra casa. Jana, t tranquilo, quero bater papo com

    Clarinha. Clarinha, 'xa te falar no ouvido Marco, no quero conversar contigo assim, tera a gente

    se fala. Jana, leva ele, depois te explico e a gente conversa. Pera Clara, tenho que te falar uma coisa.

    Decidi ontem. C vai gostar! Hahaha Marco, no encosta mais em mim assim, no quero conversar

    aqui. Jana, por favor. Clara, deixa eu te falar e te dar um beijinho de despedida? Hahaha NO!!!

    Meu rosto agora est queimando, e tem uns caras que nunca vi me arrastando. PORRA, o que t

    rolando? PORRA! CLARA! O segurana me jogou na rua, no estou entendendo nada. Janana me

    arrasta para o carro dela, me xingando e falando que era pra eu deixar a Clara quieta. A Clara me ama,

    Jana! Hahahahaha

    Jana e Carlo me deixam na cama, depois de molharem meu cabelo no chuveiro, ambos falando

    que eu estou errado. No entendo onde estou errado, ela gosta de mim. Carlo deixa meu telefone do

    lado da cama, tento pegar pra ligar pra Clara, mas meu brao e meu olho esto pesados demais. A

    bebida me consome.

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  • 4. Sbado

    Uma semana agradvel. Digo para minha me ao telefone. Mas t tudo bem de verdade,

    Marco? Ah me, muita coisa na cabea, o trmino com a Clara, trabalho enchendo a pacincia, s

    irritao mesmo. A gente aqui ficou muito chateado com isso tudo entre voc e a Clara. Voc sabe o

    tanto que a gente gosta dela. Complicado, me. Mas, depois da viagem e da conversa com voc e o

    pai estou melhor. Vocs bem que podiam marcar de irmos juntos pra praia, que tal? Aqui, vou desligar

    e arrumar pra almoar. Hoje devo dar uma sada com o pessoal. T bom, te amo. Juzo. Beijos. Ela

    nunca entenderia, nem ela nem ningum. s vezes acho que nem eu mesmo entendo o que se passa na

    minha cabea.

    Ei, a fila andou!!! Uma senhora me diz resmungando, enquanto estou com a colher de arroz

    para servir. Opa, desculpa! Nos ltimos dias ando perdendo muito a cabea, sonhando acordado,

    pensando o que fazer com a vida. Desde que a ficha realmente caiu sobre que estava ocorrendo

    comigo, tenho ficado bastante assim. Sirvo um prato tpico, peo um suco, e assim que termino vou

    para casa descansar. A semana foi muito boa, mas minha cabea est em frangalhos. Estar preparado

    para permanecer vivo, dentro de minha cabea, um trabalho desgastante. Deito no sof e ligo The

    Doors.

    Acordo com o celular tocando, Fala Marco, beleza? Tudo tranquilo, Carlo. Dei uma

    cochilada. Deu pra perceber pela voz. E a, melhorou? T bem. Parou de dar pane em meu corpo.

    E minha cabea parou de doer. Cara, tava difcil ficar daquele jeito. Parece que tirei algo das costas.

    Marco, voc no sabe o tanto que fico bem em ouvir isso. Sinto verdade na voz de Carlo, ele

    sempre foi um amigo bacana. Eu tambm! E a, t combinado as 8 no Bar? Pois , t combinado.

    T indo eu, Janana, Paulo, Lus, e duas amigas gatinhas por sinal da Jana. Pessoal t com saudade

    de voc! T certo ento, combinado. Desligo o telefone, penso que vai ser uma noite agradvel.

    Pessoas bacanas, papos timos, mulheres bonitas. Mesmo que eu no queira mais nenhuma, sempre

    bom ver gente bonita.

    Consigo apenas pensar em no ligar, no mandar mensagem, no procurar, no ver a Clara,

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  • pelo menos por enquanto. Ela no tem mais o costume de frequentar o Bar, mas como minha cabea

    est boa esses dias, creio que melhor fazer este tipo de terapia pr-buteco. Antes de sair de casa,

    vou desligar o som. Jim Morrison canta assim que chego para apertar o boto, This is the end/My only

    friend/The end.

    No Bar, chego antes de Janana com as amigas. Paulo, Luis, Carlo e eu conversamos sobre

    nossos times, eles tomando uma cerveja e eu um suco. Obviamente, todos ficam caoando de mim

    devido minha abstinncia alcolica, mas faz-se necessrio. Acabo por entrar na brincadeira, dizendo

    que aceitei de vez minha condio de fraco. Janana chega com suas amigas e as apresenta. Ana,

    cabelo curto, seios fartos, sorriso bonito, cara de espertinha. Priscila, no me chama ateno, apesar da

    extrema beleza de seu rosto. Ambas muito simpticas, entram na conversa sobre futebol, j falando do

    jogo de amanh.

    A conversa rende bem, todos muito interessados uns nos outros. As novatas ficam tentando me

    dar bebida, aceito um copo de cerveja e nada mais. Os amigos antigos, em especial Carlo e Jana, ficam

    surpresos por isso. Na verdade, eu estou muito orgulhoso, umas semanas atrs eu pediria todos os

    copos de todas as bebidas possveis. A noite continua agradvel, o papo extremamente feliz: futebol,

    fofocas engraadas do trabalho, piadas, poltica, animais de estimao. Ana sendo muito simptica

    comigo, mais que Priscila, ou seria impresso minha?

    Vou ao banheiro e me deparo com uma cena que h muito no via, meu rosto com o semblante

    bom, de quem est feliz. Muito bom. Um timo incio de final de semana, para uma excelente semana

    que est por vir. Vamos l, Marco, voc no est com Clara, e est querendo se distanciar dela. Sorrio

    honestamente e retorno mesa. Ana est onde Carlo se encontrava, ao lado de minha cadeira. Moa

    bonita, e intelectual. Gosta de ser desafiada, e de sorrir por besteiras. T no papo. Penso com meus

    botes. Sento ao seu lado, e comeo a perguntar sobre o que ela faz. Acabei de terminar curso de

    Farmcia, estou comeando uma ps-graduao. Mestrado? Isso. T bem legal, sabe? Inventa

    um remdio pra mim, que me deixa mais feio. Ou, pelo menos, um que te deixa menos interessada em

    mim! Ela sorri, chegando perto e encostando em meu joelho. Pronto, se eu quiser j consegui, mesmo

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  • com Janana me olhando atravessado. Penso em Clara, mas insisto na deciso de me afastar dela.

    Aproximar-me dessa moa seria um bom motivo. Prossigo a conversa, at o ponto em que Jana e

    Priscila vo embora, e ficamos eu, Ana e Carlo no Bar.

    Apesar de no estar com tanta vontade de ningum no momento, meu instinto fala mais alto e

    acabo por ficar com Ana. Carlo vai embora, e eu sigo para casa com ela. Voc linda! E voc sabe

    fazer uma mulher querer, hein? Ela j est um pouco tonta, mas nada que a faa perder os sentidos.

    No sou to escroto quanto isto. Levo ela para minha casa, e da entrada j vamos para o quarto. As

    peles se encostando, as lnguas se entrelaando. Alm de excitao sexual, era pra eu sentir algo, certo?

    Enquanto estamos na cama, transando, comeo a pensar nos ltimos dias, na minha famlia, em

    Clara. No h mais sentimento em nada, uma profunda angstia retorna minha cabea. Eu gosto da

    Clara, isso bvio, ento porque estou fazendo isso? Porque insisto em fingir prazer, em fingir

    felicidade? Se eu no estiver aqui, quem vai sentir falta? Meus pais e irmo, mas o tempo ir cur-los.

    Clara deve sentir falta, mas ela vai encontrar algum melhor que eu. O tempo no ir me curar. Todas

    as frustraes de minha vida, das ltimas semanas, toda a sensao de inutilidade em meu trabalho, em

    minhas relaes, em minha famlia, com a Clara tudo passa pelos meus olhos, enquanto Ana est em

    cima de mim, gemendo de prazer ou de fingimento. No h o que fazer. Meu pensamento um s:

    No h cura para isso, Marco, seu imbecil!

    Exatamente na hora em que gozo tomo a deciso final. O prazer falso com Ana e o nojo que

    sinto ao gozar com aquela moa bonita por quem eu no sentia nada facilitam tudo. Enquanto ela

    cochila, exausta, ao meu lado, olho para o teto e reflito sobre duas coisas. A primeira em como deixar

    minhas finanas para meus pais. A segunda que tenho que acabar com essa maldita hipocrisia que

    chamo de vida o mais rpido possvel.

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  • 5. Sexta-feira

    Cinco horas da tarde, e fecho o dia assim como a semana passou desde tera, no automtico.

    Mas, por incrvel que parea, estava me sentindo bem. Como meu trabalho no exige tamanha ateno

    ou exerccio pleno das funes cerebrais, consigo bater meus carimbos e encaminhar relatrios,

    mesmo pensando na conversa de tera-feira com minha famlia. Tento no pensar no tdio do meu

    servio, ou na ansiedade que pensar em tudo o que parece passar na minha cabea.

    Sigo para o supermercado para comprar algo para o fim de semana, alguns pes, leite, frutas,

    pizza congelada. Como sexta-feira, na tal hora do rush, o ambiente est repleto de gente. Muitos

    casais, algumas famlias, homens empurrando carrinhos enquanto mexem em seus celulares, crianas

    chorando querendo o iogurte mais caro, televises espalhadas mostrando a promoo da vez. Na seo

    de livros, apenas uma pessoa folheia algum autoajuda. Chego na padaria, e enfrento uma fila

    gigantesca ate conseguir meus pes. A fila no me irritou, mas sim as pessoas que l estavam: muitas

    em seus telefones, longe do mundo real e perto da iluso da tela brilhante dos smartfones; algumas

    crianas em seus telefones, uma com um tablet; um casal formado por um jovem falando com algum

    pelo fone de ouvido, e sua namorada tirando uma selfie na fila da padaria; algumas pessoas rindo para

    seus telefones; e finalmente um casal de idosos conversando entre eles e sorrindo um para o outro. Este

    ltimo casal consegue trazer minha cabea para a realidade novamente, e o pnico mental comea a se

    dissipar.

    Depois de pegar meus pes, vou a parte das frutas, que est mais vazia que a padaria, mas com

    muitas pessoas. O ambiente o mesmo, a iluso virtual e a impessoalidade das relaes dominam.

    Tento no ficar prestando ateno, inclusive na minha culpa por ter ligado a msica em meu fone de

    ouvido, para me afastar desse mundo. Penso nessa multido, e como eu soo hipcrita ao me afastar das

    pessoas. Quando percebo, j estou com o leite, frutas e pes nas mos. Passo na seo de congelados

    para pegar a pizza, e a sensao real da virtualidade entre as pessoas continua ou seria a virtual

    sensao da realidade das pessoas? Vou ao caixa, outra fila, com as mesmas pessoas. Se no so as

    mesmas, possuem as mesmas caractersticas, essa felicidade ilusria. Mas no, tenho que mudar o

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  • pensamento, tenho que me segurar, preciso me segurar. Tenho que pensar no que falei com seus pais.

    Lembre-se de voc, somente de como voc se sentiu na praia, e em como voc tem que melhorar, ou

    tentar melhorar, pra tentar algo com ela novamente. Penso enquanto a palpitao em meu peito

    diminui. Consigo me acalmar, pago pelas compras, e sigo meu caminho.

    Chego em casa, vejo as mensagens no celular, uma da Clara. Terca a gente cv? :) No

    entendo a carinha no final da mensagem, e respondo, seco, OK. Ainda quero manter a deciso de

    continuar terminado, pelo menos por enquanto. Ligo para meus pais novamente, sinto a primeira

    sensao realmente boa do dia, fao um lanche rpido e deito para assistir algum filme. Acordo depois

    de um tempo, e decido tomar pela segunda vez um dos remdios que o mdico receitou.

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  • 6. Quinta-feira

    Depois de uma semana afastado do trabalho, o pessoal est at se empenhando em fazer com

    que o ambiente fique o menos desconfortvel possvel para mim. Na parte da manh fica muito claro

    que ningum vai me dar qualquer servio pesado, se que podemos dizer isso num escritrio

    burocrtico e tedioso como o que trabalho. Porm, vim para este primeiro dia com o nico objetivo de

    no entupir minha cabea com esses pensamentos, pois s iriam me derrubar, uma hora ou outra. E

    isso que vou fazer. Os colegas ajudam, me chamando para tomar caf vrias vezes, em especial o

    Carlo, que aproveita para travar o prprio servio, enquanto faz um timo trabalho simplesmente

    estando do meu lado.

    Enquanto almoamos, o dilogo caminha para o que fizemos na semana, e tambm da injustia

    de no haver tantos feriados prolongados para fugirmos do expediente. Fiquei por aqui mesmo no fim

    de semana, dei umas voltas de bicicleta. A cidade tava meio parada, no ? Achei parada tambm

    Carlo. Tentei achar gente pra ir pro Bar, mas at l estava vazio. Fiquei em casa vendo TV, ou tentando

    ver TV, e tomei uma cerveja sozinho. P, tinha que ter me avisado, Paulo. Tava cansado da bike, e

    ia ser providencial uma gelada de leve. E sua viagem de meditao, Marco? Tava precisando,

    hein!

    Antes de responder, reflito sobre viagem. No penso no desgaste de dirigir vrias horas em

    poucos dias, mas nas sensaes que vivi. A semana anterior tinha sido uma desgraa atrs da outra, o

    trmino com Clara, o lcool, a doena. Mas sair para sentir o mar, o cheiro salobro da brisa, a areia nos

    ps, a maresia era tudo o que minha cabea e meu corpo estavam precisando. Estava necessitado de

    um tempo comigo mesmo. Foi legal, tranquila. Relaxei! Deixo a resposta simples, no quero debater

    sobre como foi, mesmo porque eu no saberia expressar o que senti.

    Retornamos ao escritrio, termino os relatrios que me passaram mais cedo. Vou para casa, ligo

    para meus pais para dizer que est tudo bem, tomo um banho, sorrio sozinho, com a gua descendo a

    partir da minha testa. Ligo a TV, coloco num canal qualquer e desabo num sono pesado e digno.

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  • 7. Quarta-feira

    Acordo com um Bom dia vindo da voz do meu pai, enquanto ele faz caf. Vou direto ao

    banho, pois ainda tenho que pegar estrada para voltar para casa. Aps o banho, arrumo a mala e vou

    cozinha. Boa a conversa ontem, hein? Pois filho, d pra ver que voc est melhor. Eu sei, pai.

    E o caf? Bom demais, tava sentindo falta desse bolo. T ai desde ontem, seu pai no comeu

    muito dele. Acho que no gostou. Meu pai responde, enquanto d uma piscadela pra mim: Gostei

    sim! Marco, voc tem que voltar hoje mesmo? Amanh tenho que voltar pro trabalho. Me deram

    uma semana de folga, depois que pirei. A risada que ele deu depois que digo isso mostra que ainda

    no acredita totalmente que posso voltar, ou que acabou to rpido assim. O velho me conhece, sabe

    que ainda tenho um caminho longo a percorrer. Isso no vai acontecer mais, pode ficar tranquilo!

    Eu sei, me. No fundo eu sabia que tinha uma probabilidade grande disto ser mentira. De um tempo

    pra c minha cabea tem ficado ruim, perco a razo por pouca coisa e fao coisas estranhas. Foi bom

    voc tirar esses dias de folga, ir pra praia, vir aqui em casa, dar uma descansada. A gente estressa

    mesmo de ficar trabalhando, trabalhando, tem que tirar umas frias. E ontem deu pra gente colocar

    muito o assunto em dia. Voc tem que ir mesmo antes do almoo? Acho melhor, pouco tempo

    dirigindo, mas desde sbado estou fora de casa e quero dar uma descansada boa antes de voltar pro

    batente. T bom. Esse bolo eu podia levar pra de tarde, hein? Leva sim! Vou arrumar pra voc.

    Ele aproveita enquanto ela vai preparar meu lanche de viagem pra falar em particular. Marco,

    se cuida. Deu pra ver que voc est melhor, cabea mais resolvida desde muito tempo. O que ouvimos

    sobre voc semana passada foi muito ruim, no deixa isto se repetir. Sua me no gosta que falo essas

    coisas, mas ficamos bastante preocupados. A Clara cuidava de voc, mas voc sabe de sua vida. T.

    Parece que voc t escondendo algo, no quer se soltar. Lembra que estaremos aqui sempre, viu? Ele

    me conhece, no tem como negar. T. De qualquer forma, queremos que voc fique bem, se

    acalma. Eu tambm, tanto eu quanto vocs. Foi bom ter vindo passar um tempo aqui. A sensao da

    mo dele pegando na minha muito boa. O bolo pra voc, filho. V se come direito. Ta me. Bom,

    vou arrumar pra ir.

    14

  • De dentro do carro aceno para meus pais, ligo a msica e ouo ambos despedindo At breve,

    meu filho!. A ltima imagem que vejo dos meus pais eles abracados, sorrindo, dando um tchau

    para mim. O pensamento fica nos dois, em como ouvir a voz de ambos me acalma. Foi melhor no

    contar sobre o mdico para eles, acho que no entenderiam e s se preocupariam toa ou, pelo

    menos, isso que eu espero, que seja possvel continuar normal no meu estado.

    Antes de chegar em casa passo no restaurante e pego uma marmita, melhor dar uma descansada

    antes de amanh. Almoo, arrumo as coisas da viagem, cochilo. Acordo e como o bolo, vejo TV e me

    preparo pra dormir, com um bom pressentimento que toda essa loucura est chegando ao final.

    15

  • 8. Tera-feira

    Ter dormido em um Hotel qualquer no caminho foi uma boa ideia, pois assim consegui colocar

    nos eixos tudo o que poderia falar ou no falar na provvel conversa que teria hoje. Chego na casa

    dos meus pais ao entardecer, depois de passar um tempo na estrada parando em um posto ou outro,

    mais pra passar o tempo que por necessidade. O encontro bom, como sempre. Muitos abraos, muito

    carinho, sorrisos bons para todos os lados. Eles esto sozinhos, Mateus e filhos esto em casa, ento

    minha conversa com ele ficara para a prxima visita.

    Enquanto jantamos, no conversamos sobre nada muito problemtico. Assim que terminamos,

    minha me insiste que no quer ajuda para arrumar as coisas, portanto meu pai comea o assunto.

    Marco, me conta como foi o papo com Clara semana passada. Voc sabe que a gente gosta muito

    dela, e no ficamos felizes como terminaram, mas sua vida. Pois ento, ns conversamos bastante

    na sexta e na tera, mas tera eu no estava bem. Ela falou que voc tem bebido muito, voc tem que

    parar com isso. Ela ligou pra vocs ento? Ligou, mas no nos contou direito sobre o que

    conversaram, apenas que voc tem que se tratar sobre a bebida. Eu estou tentando, juro. J tem quase

    uma semana que no bebo. Voc tem que aprender no precisa ficar totalmente sem beber, basta

    ter cabea. isso que falta! Sorrio e troco de assunto, assumir o alcoolismo quase to difcil

    quanto falar sobre a consulta de semana passada.

    Com a Clara foi o seguinte, j no estvamos to bem, vnhamos brigando muito,

    principalmente por minha culpa, eu assumo. Quando foi tera eu no tava legal, dai a gente brigou

    feio, e eu terminei com ela, nem lembro porque, minto. No quis conversar com ningum de tera

    at sexta, nem com Clara nem com ningum, vocs sabem, nem atendi as ligaes. Muito infantil de

    sua parte. Sei pai. Na sexta a Clara foi l em casa, eu no tava nada bem, nada bem mesmo, mas no

    tinha bebido. Conversamos muito. Ela me disse tudo o que achava sobre a gente, sobre o tanto que ela

    gosta de mim, e ela gosta, eu tambm gosto muito dela. Eu limpo meus olhos, lacrimejando, e

    continuo. eu estava muito choroso, ela tambm ficou emotiva, mas continuei firme sobre

    terminar. Mas porque filho? Me, sinceramente, eu no sei, minto novamente. Eu e ela

    16

  • estvamos precisando de um tempo, cada um no seu canto, pra repensar o que a gente quer. No foi

    isso que ela falou com a gente, ela sabe muito bem o que quer com ela mesma e com voc. Eu j

    sabia disso, mas a Clara ter contado para meus pais me surpreendeu. Ento t pai, eu preciso pensar o

    que quero com ela e principalmente comigo, penso. As minhas crises e paranoias estavam

    ocorrendo com mais frequncia, e o que o mdico me disse podia tratar isso, mas eu ainda tinha que

    entender como controlar isso tudo.

    Ento, a gente continuou terminado, e por enquanto estamos assim. Ela aceitou, tentou falar

    pra tentarmos, pra pensarmos juntos, mas eu precisava de um tempo. E no fim ela at concordou. Foi

    a que ela deu ideia da viagem, Clara pensou em viajar tambm em breve. E foi isso, minto

    novamente. O que ela falou foi mais ou menos isso que voc disse, mas ela falou que quer vir aqui

    conversar com a gente. No entendi bem, mas ela insistiu, ento ela vai passar aqui daqui uns dias,

    parece que essa semana ela tem umas consultas. Aham ela falou. Agora deixa a gente falar,

    Marco. Beleza. A Clara uma excelente pessoa, vocs esto juntos h quanto tempo? 4 anos?

    Mais ou menos uns 3 anos e tanto. Eu sei exatamente quanto tempo: 3 anos, 10 meses e 17 dias.

    Ela gosta muito de voc, e se preocupa muito tambm. Ela est trabalhando muito e juntando

    o dinheiro, pra quem sabe vocs casarem. Se a gente ficar junto, se a gente voltar, no vamos casar,

    no mximo morar juntos. No importa, d no mesmo. A Clara est pensando nisso, mesmo depois

    desse trmino que voc arrumou. Mas eu no sei se eu quero voltar, pai. Na verdade eu no sabia

    nada, sobre qualquer coisa, desde semana passada. Na minha cabea obvio que eu gosto da Clara,

    no sei se amava, no sei sequer se esse sentimento real, mas eu me importo com ela mais que com

    outras pessoas. Depois do mdico eu tinha que refletir se ela deveria passar por tudo isso comigo ou

    no. Mas ela, pelo menos por enquanto, quer. Alm disso, ela est progredindo no servio, coisa que

    voc tambm deveria fazer no seu. Vou tentar, minto novamente. Pelo que ela conversou com a

    gente, ela parece pensar em reatar com voc rpido, depois dessa semana e de vocs conversarem. E eu

    e sua me temos certeza que ela vai te ajudar nos seus problemas, como sempre ajudou. Olho pra

    minha me e ela sorri pra mim, pegando na minha mo. Eu deixo escapar algumas lgrimas, no sei

    17

  • porque, e ela tambm comea a chorar. Bom, vamos combinar desta forma ento, voc espera e

    conversa com a Clara assim que possvel.

    Sobre a bebedeira, voc sabe muito bem o que ns pensamos, na verdade o que todo mundo

    pensa. Sei sim. Voc tem que diminuir, e pra isso precisa parar um tempo. Est acabando com sua

    sade e com suas amizades. Eu sei. Engulo aquilo com um gosto muito ruim. A Clara me alertou

    isto na sexta, tudo est se afastando, e segundo ela a culpa s minha. O que eu e sua me pensamos,

    que voc deveria conversar com ela, talvez depois dela vier aqui, pois vamos contar que voc est

    melhor, pelo que parece. T bom, vou pensar em conversar com ela. Pensar no, voc vai

    conversar com ela. T bom, vou conversar. Essa menina muito boa pra voc, e voc pra ela,

    quando no est confuso. Ento pensa direito e conversa com calma. A gente t torcendo para que

    vocs se acertem. Vou sim, prometo, no sei se estou mentindo agora. Talvez seja melhor esperar a

    Clara me procurar.

    Mudamos o assunto pra algo mais ameno, sobre a programao da TV, futebol, e os meus

    sobrinhos. Conversar sobre Clara estava ficando ruim para mim, e acho que meus pais queriam ouvir o

    que ela queria falar com eles. Vou cozinha e preparo um ch para ns trs. Enquanto eles veem TV,

    dou uma cochilada no sof e acordo com minha me me chamando pra ir dormir na cama. Depois que

    deito, reflito um pouco na conversa, e creio que foi muito boa para mim e para eles. Boa noite, pai.

    Boa noite, me. Boa noite, filho. At amanh.

    18

  • 9. Segunda-feira

    Hoje a pousada est vazia, apenas 2 mesas ocupadas no caf da manhn. Como decidi sair de

    tarde e passar na casa dos meus pais somente amanh, tenho tempo pra lanchar com calma e arrumar

    as coisas. Fao o check-out, passo num restaurante e depois pego a estrada. A viagem longa, mas no

    me canso como sbado.

    Enquanto dirijo, olho uma ltima vez para o mar, e penso em como foi bom tirar estes dias na

    praia, sentir a brisa e refletir nas coisas. Ter pensado sobre o trabalho, e sobre como no o suporto

    mais, foi muito bom. Vou tentar procurar uma soluo pro servio assim que possvel. Para mim o

    mais importante foi a deciso de esperar mais um tempo sem a Clara. Preciso refletir sobre a consulta,

    sobre o que o mdico disse, sobre como vou reagir, se h como lutar contra isso preciso pensar.

    A viagem corre bem diferente de sbado, fico vidrado na msica, e no na loucura da minha

    mente, e assim no passo nenhum sufoco. Talvez porque consegui juntar a conversa com Clara com a

    consulta de tera, mas, com certeza, devido ao relaxamento de livrar minha cabea da confuso que se

    encontrava. Sim, a Clara tinha razo, esta viagem para a praia era completamente necessria para mim.

    Paro algumas vezes em lanchonetes, para tomar um caf e comer alguma coisa, e quando

    percebo j est anoitecendo. Decido parar no primeiro hotel de beira de estrada que aparece. Preo

    bom, quarto e banheiro bem arrumados. Tomo um banho, mando uma mensagem para meus pais

    avisando que chegarei na parte da tarde amanh, e vou deitar.

    Antes de dormir penso no que vou querer, ou poder, conversar com meus pais. Sobre a Clara,

    com certeza, pois tanto eles quanto ela se tornaram muito prximos. Vou falar sobre o trmino, mas

    no vou entrar em detalhes. No vou citar a consulta, nem como estou, nem o prognstico prximo.

    Sobre o lcool, vou falar a verdade, se eu conseguir. E finalmente, no mencionarei o que pretendo

    fazer no servio. Caminhando dessa forma, a conversa tem tudo pra ficar bem tranquila para todas as

    partes.

    19

  • 10. Domingo

    Espero um tempo para algum dos hspedes sair da mesa, no quero dividir com ningum o

    espao, a ideia toda dessa viagem era ficar sozinho. Sento e tomo um caf caprichado. Ainda cedo

    para um domingo, mas como a pousada est cheia fica difcil arrumar um lugar. Suco, po, presunto,

    queijo, ma, melancia, mais suco um bom caf da manh.

    Vou ao quarto, tomo um banho e me visto: shorts, bon e camiseta. O dia est bonito, algumas

    nuvens, mas parece que no vai chover. Ou seja, timo para passear na praia. Pego protetor solar,

    carteira, um pouco de dinheiro, tranco o quarto e vou para a praia.

    Como ontem estava anoitecendo quando cheguei, a sensao hoje diferente, porm

    igualmente boa. Quando encosto os ps na areia morna, fecho os olhos e comeo a sentir as coisas, o

    Sol da manh comeando a aquecer a pele, os grozinhos de areia enroscando entre meus dedos, a

    brisa bagunando meu cabelo e soando em meu ouvido, a mesma brisa fazendo minha camiseta voar

    e encostar em minhas costas causando certo arrepio, o barulho das ondas, e tambm o grito de algumas

    crianas e de vendedores ambulantes. Como notei desde que cheguei, este seria um fim de semana

    cheio na praia, o que definitivamente no atrapalharia meu retiro.

    Abro os olhos, aperto meus dedos com mais fora na areia e sinto o calor do Sol na minha pele,

    e agora sim observo o movimento. Sombrinhas espalhadas com as famlias sorrindo ou se recuperando

    de alguma ressaca ou noite mal dormida, vejo tambm aquelas tendas brancas gigantes que algumas

    pessoas levam para a praia para se esconder do Sol (talvez devido quantidade de rvores que no

    existem mais nas praias), vrios grupos de mulheres deitadas de bruos enquanto seus amigos ou

    namorados ficam ao lado em poses estranhas tomando cerveja, vrios grupos tirando milhares de fotos

    deles mesmos (e depois cada um se desligava do prprio grupo para ficar vendo a foto ou se divertindo

    sozinho com seu prprio telefone), muitas crianas brincando de castelo de areia, mas tambm uma

    grande quantidade de crianas brincando nos seus tablets ao ar livre. Observo que, mesmo de manh,

    vendedores esto correndo de um lado para outro com frituras, espetinhos de camaro, espetinhos de

    queijo, cocos, cerveja, caipirinhas, mais frituras e mais cerveja. Alguns carrinhos de milho verde e

    20

  • picol, e alguns ambulantes vendendo cangas, roupas e culos de sol. Na gua, crianas e adultos se

    divertiam, de verdade, jogando gua uns nos outros, nadando, brincando nas ondas, alguns casais se

    abraando, algumas crianas bem novas com medo de entrar na gua e os pais (ou algum parente ou

    amigo) filmando ou tirando fotos. Mas, mesmo com este tanto de gente, minha expectativa grande.

    Comeo a andar e procuro um lugar para sentar, e encontro facilmente perto da gua. Sento,

    tiro a blusa, passo protetor solar, aperto os dedos dos ps na areia e agora comeo a observar o restante

    das coisas. Olhando para trs, depois daquele mar de gente e dos prdios vizinhos praia, uma cadeia

    de montanhas d o ar da graa. Felizmente, consigo abstrair as pessoas e o ao/cimento e imaginar

    aquele lugar de verdade. minha esquerda, um conjunto de pedras forma uma das pontas da praia, em

    breve vou l. direita, a praia termina em uma pedra grande, que no d pra passar a p, mas vou

    caminhar at l tambm. O Sol por entre as nuvens, de vez em quando aparecendo, forma a paisagem

    perfeita pra este dia.

    Antes de olhar de fato para frente, para o mar de verdade, deito com as costas na areia,

    aproveitando uma nuvem que ajudou a esfriar a areia. Estico as pernas, coloco as mos na nuca, fecho

    os olhos e relaxo. No h pensamento em minha cabea, no h gritaria, no h pessoas, mdico,

    Clara, pais, famlia, amigos, servio, nada disso. Apenas eu, o planeta Terra embaixo de mim, o

    Universo ao nosso redor, o barulho das ondas, alguns respingos d'gua em minhas pernas, e o vento s

    vezes salpicando areia em minha pele. O Sol aparece e me ilumina, parece que consigo sentir cada raio

    de luz, em cada ponto de meu corpo. Desde meu p, que est parcialmente enfiado na areia, at minhas

    plpebras, tudo parece estar envolvido por este ambiente. Provavelmente estou sorrindo neste

    momento.

    No tenho a mnima ideia de quanto tempo fico deitado, mas decido me levantar e entrar na

    gua para tirar um pouco da areia. Deixo a carteira junto com o bon e a camisa na areia e corro para a

    gua. Saio correndo e tomo um caldo na primeira onda que me pega. Levanto e comeo a rir, e sorrio

    muito, independente de algumas pessoas estarem me olhando. Provavelmente estou aparentando

    alguma insanidade, pois grito, sorrio, pulo e me jogo na gua. Fico nesta brincadeira por algum tempo,

    21

  • at cansar de pular as ondas e de tentar surf-las sem prancha. Por fim, me vejo boiando e olhando

    para as nuvens. Agora no tem som de ningum, apenas eu novamente. Eu, a gua me levando para

    cima e para baixo, as nuvens, o Sol. Provavelmente estou sorrindo neste momento.

    Ao sair da gua, noto que minhas coisas esto onde deixei, tive sorte. Fico um tempo em p

    para me secar. Enquanto olho para o mar, deixo as ondas tirarem a areia por entre meus ps. A brisa e o

    calor do Sol me secando, tirando a gua de meu corpo enquanto deixa aquela textura salobra, tudo isto

    consegue me deixar muito calmo. Olho para o mar, a imensido de gua de vrias cores, de

    amarronzado perto da areia, a azul mais ao horizonte. Imaginar o tamanho do mar e de como aquilo

    grandioso me deixa um pouco tonto, e quando olho para meus ps, eles j esto enterrados at o

    tornozelo. Provavelmente estou sorrindo neste momento.

    No sei quanto tempo se passou desde que cheguei, mas preciso comer e beber algo. Pego

    minhas coisas e vou a uma lanchonete, onde peo um salgado e uma garrafa d'gua. Comeo a

    caminhar em direo grande pedra da ponta direita da praia, olhando como a gua vai e vem,

    molhando meus ps e apagando as pegadas das outras pessoas. Olho pra trs e minhas pegadas

    tambm esto meio apagadas. Continuo caminhando e percebo, enfim, que no pensei em nenhum dos

    meus problemas at ento. O rosto de Clara vem a minha mente, claro como o Sol que aquecia minha

    plpebra quando estava deitado, claro como a alegria que eu sentia quando brincava na gua. Lembro

    de nossa conversa sexta-feira, em como ela insinuava que queria continuar, mas que aceitava o tempo

    que eu estava pedindo. Ela parecia esconder algo, mas eu tambm no contei tudo, ento era melhor

    deixar como estava. Era melhor eu entender o que se passava comigo, conversar mais com o mdico,

    pensar sobre o trabalho e depois voltar a falar com Clara, por mais que eu sinta saudade dela. Sobre a

    minha condio, s o tempo vai contribuir, e para isto minha cabea precisa ficar boa. O mdico me

    disse que temos chances, com o devido tratamento. Vou tentar continuar como estava a duas horas

    atrs deitado na areia, ou seja, em paz, e tentar controlar as coisas.

    J estou na ponta direita da praia, perto da grande rocha intransponvel. Consegui no prestar

    ateno em nenhum movimento das pessoas na praia, nenhum dos sinais que normalmente me

    22

  • incomodam. Depois de pouco tempo na ponta direita, sigo caminhando at a ponta esquerda. Paro para

    comprar uma gua de coco e um sanduche natural, pelo que parece j passou muito da hora do almoo

    e eu nem percebi o tempo passando, o que considero um timo sinal. Na ponta esquerda da praia, vejo

    um punhado de pedras que se estende mar adentro. Caminho sobre as pedras, s vezes machucando a

    sola dos meus ps, mas no tem importncia. Vejo pequenos caranguejos se escondendo enquanto toco

    a gua prxima a eles, e cardumes pequenos nadando em unssono de um lado a outro. Paro perto do

    final das pedras, onde as ondas se chocam sem muita fora. Fico sentado olhando a gua que se

    espalha da coliso das ondas. Por vrias vezes o borrifo da gua vem no meu rosto. Provavelmente

    estou sorrindo neste momento.

    O Sol j est para se pr quando volto para a pousada. Continuo caminhando junto a gua,

    sentindo a areia entre meus dedos. Antes de ir para a pousada, dou uma olhada para o mar, fecho os

    olhos e deixo a brisa bater em meu rosto uma ltima vez. Penso na Clara, e nos meus pais. Se tudo

    correr bem, vou voltar aqui com eles, e quem sabe com ela. Na pousada, vou ao quarto, tomo um

    banho gelado para tirar o excesso de areia, vou a uma lanchonete e como outro sanduche. Retorno

    pousada, vou para o quarto e deito. Meu corpo est cansado, mas minha cabea est limpa. Limpa

    como h muito tempo no estava. Penso em tudo o que aconteceu hoje, na areia, nas pedras, nos

    peixes, na caminhada, nos caranguejos, nos meus pais, no servio, infelizmente lembro das pessoas da

    praia e sua futilidade, mas finalmente penso na Clara. Adormeo pensando nela.

    23

  • 11. Sbado

    Fica complicado pensar depois de uma noite sobre efeito de medicamentos, mas, para essa

    viagem de dois dias, no preciso de muita bagagem. Bermuda, bon, shorts, cuecas, chinelo, duas

    camisetas, e claro o protetor solar. Use filtro solar, j dizia a escritora. Confiro os documentos, gravo

    um CD com msicas para ouvir no carro enquanto fao um lanche reforado, e comeo a viagem.

    Sero umas 6 horas de estrada, sem contar as paradas, e depois dessa semana, talvez a pior de minha

    vida, vai ser difcil manter a concentrao. Colocando em ordem contraria, s est semana: conversa

    com Clara, ressaca, bebida, dia enfurnado em casa, trmino com Clara, afastamento do servio,

    mdico. Tem dias que so complicados, mas est semana superou as expectativas. Ouo a buzina do

    carro de trs, e vejo que o semforo j estava aberto, vou ter que me alertar mais. Ligo o CD que

    gravei, coloco no aleatrio e comea bem, Sweet child o'mine, msica animada que me coloca

    totalmente na direo. Quando entro na rodovia a msica est terminando, Where do we go now?,

    bom, pra isso eu tenho resposta: vamos pra praia, e enquanto dirigimos vamos refletir sobre as coisas

    que nos deixam aflitos, certo?

    A msica continua, mas por algum tempo perco-me em pensamentos. Durante o comeo da

    viagem penso na conversa de ontem. No entendi muita coisa que Clara disse, que eu preciso estar

    com ela, que, pelo menos, preciso estar perto dela. Ser que ela no entende que eu preciso desse

    tempo agora? E que principalmente eu preciso de mim mesmo, mais que tudo? Ela estava diferente,

    no estava preocupada tanto com meu ltimo problema com lcool, mas com que eu ficasse bem pra

    voltar pra ela, no sei quem foi o mais egosta ontem. Se eu tivesse contado pra ela da minha semana ia

    ser pior, pois ela ia ficar com d e permanecer do meu lado. Agora eu precisava de tempo, pelo menos

    isso consegui com ela. Quando penso em todos os bons momentos que passamos juntos nesses 3 anos,

    10 meses e 14 dias, sinto uma falta tremenda e olho pro assento vazio ao meu lado com vontade que

    ela estivesse l, provavelmente dormindo ou conversando comigo, contando casos e me fazendo feliz.

    Quando olho para frente e vejo a curva se aproximando, percebo que o carro est muito rpido, no

    ltimo momento antes de poder diminuir para a curva, e conserto a direo e a velocidade. Volto

    24

  • realidade da estrada, concluo na minha conversa mental a discusso sobre Clara: melhor ficarmos

    separados um tempo, melhor para ela e para mim. Depois da curva consigo me atentar para a msica:

    One thing that is clear, It's all down hill from here.

    Paro numa lanchonete na beira da estrada, pra tomar um caf, esticar as pernas e ir ao banheiro.

    De volta estrada, ligo o som: Let me bring you love from the field, poppies red and roses filled with

    summer rain. Penso agora no meu servio, e no que estou fazendo ali. So 8 anos fazendo a mesma

    coisa, sem utilidade, sem desafio, sem incentivo. Apenas ligado no automtico, fazendo o que qualquer

    rob poderia fazer, esperando toda sexta-feira chegar para me embebedar ou para encontrar Clara, os

    amigos e a famlia, para tentar ser feliz. Durante cinco dos sete dias da semana sinto-me uma pessoa

    intil pra sociedade e principalmente intil para mim. Isto no est certo, no pode estar certo. A Clara

    progrediu, hoje gerente, j fez cursos, continua fazendo, gosta do que faz mas e eu? Eu carimbo,

    olho papis, separo papis, tomo caf, olho mais papelada, tomo mais caf. A melhor parte do meu dia

    de servio ir embora. Isto definitivamente no est certo, e deve ser um dos fatores que ligaram o

    boto que fez meu corpo reagir de forma to ruim. Minha condio fsica e mental esto adversas em

    resposta a alguma situao estressante, circunstncia social ou econmica, para usar os termos que o

    mdico disse, ento eu tenho que tomar alguma atitude. Uma delas me afastar da Clara, outra parar

    com o lcool, a outra resolver o problema no servio. Pensando melhor, o problema o servio

    preciso achar uma maneira de fazer outra coisa. Uma opo tentar uma progresso dentro do prprio

    escritrio, mas isto no me parece promissor, j que permaneceria no mesmo ambiente e trabalhando

    em funo do mesmo objetivo: nenhum. Preciso achar algo que gosto e que posso ter o mnimo para

    viver. Mas como saber o que quero fazer, fora a funo de pedra que exero? No posso simplesmente

    me demitir, tenho contas a pagar e no voltarei a morar com meus pais. Qual a sada?

    Dessa vez percebo a curva j em cima, no tenho tanto tempo. Piso no freio, o carro derrapa e

    perco o controle da direo por alguns segundos. A traseira do carro comea a sair do comando, solto o

    freio e tento consertar. O carro, que antes estava no acostamento, prossegue para fora da estrada. Uma

    grande rea de terra fica ao lado e consigo parar aps alguns metros. Tremendo muito, com vontade de

    25

  • vomitar, libero o cinto de segurana e saio do carro para respirar. Foi tudo to rpido. Minha sorte foi

    estar em baixa velocidade e a rea fora da estrada para escapar. Sento na poltrona, deixo as pernas

    soltas para que elas parem de tremer, tomo uma gua e jogo o restante na nuca. Foi por pouco, tenho

    que me concentrar na estrada, talvez deixar pra pensar estes assuntos depois. Ateno Marco,

    ateno! Fico uns 20 minutos esperando o corpo voltar ao normal, e decido continuar a viagem. A

    trilha sonora continua: A jail cell is freedom from the pain in my home, Hatred passed on, passed on

    and passed on.

    A prxima lanchonete estava a uns 10 Quilmetros da curva onde derrapei. Paro e peo uma

    gua, tomo ela inteira, vou ao banheiro, e volto para lanchar. Volto a pensar sobre o servio, e acho

    uma sada: ficarei um tempo, at me acertar com o mdico e procurar algo que goste de fazer

    realmente, da posso pedir demisso e passar uns 6 meses procurando outro trabalho, vivendo com as

    economias, ou pedindo algum dinheiro para o Carlo, ou Jana. Melhor no pensar nisto novamente

    enquanto dirijo, ou no mdico, ou na Clara seria melhor no pensar em nada. Ser que algum dia

    vou conseguir raciocinar novamente? Ligo o carro, e tambm a msica, Son, she said, have I got a

    little story for you. Dou uma risada pela coincidncia dessa vez foi por pouco, mas sim, continuo

    vivo.

    A viagem agora prossegue melhor, com velocidade controlada e ateno na estrada. Pelo menos

    estes dois assuntos, servio e Clara, eu decidi um caminho para percorrer. A msica continua: Love

    me two times, babe, Love me twice today, Love me two times, girl, I'm goin' away, Some people

    think they're always right, Others are quiet and uptight, Others they seem so very nice, Inside they

    might feel sad and wrong, You think the worst of all is far behind, The Vampyre of time and

    memories has died, I've survived. I speak, I breathe, I'm incomplete, I'm alive, hurray!, You're wrong

    again, 'cause I feel no love, e assim continuo pelo restante do caminho, pensando menos para no

    travar o prprio pensamento. Ligo o automtico na direo do carro e continuo a viagem.

    Antes de chegar na praia paro mais uma vez para ir ao banheiro e tomar outro caf. Chego na

    pousada ao anoitecer, faco o check-in e vou para o quarto. Mando uma mensagem para meus pais, e

    26

  • uma para Clara, somente porque ela pediu que entrasse em contato assim que chegasse. Tomo um

    banho, troco de roupa, e saio para comer algo. Entro num restaurante e peo um prato feito, arroz,

    feijo, salada e carne. Tomo um suco e vou passear na praia. Tiro os chinelos, e piso na areia. A praia

    est escura e deserta, mas vejo a espuma das ondas no mar, e escuto o barulho bom delas se quebrando.

    Alguns caranguejos brancos passam perto de meu p, e vou ate a gua. Deixo o mar encobrir minha

    perna at a canela, a gua est fria, mas depois de um tempo fica agradvel. Olho para o cu, vejo

    algumas estrelas por entre as nuvens, e penso em como cada dia fica mais difcil ver estrelas onde

    moro. Tento fazer um resumo da viagem: com a Clara vou fazer isto mesmo, ficar um tempo sozinho,

    talvez a gente conversa no futuro e podemos at continuar amigos, ela merece algo melhor que eu;

    sobre o servio, vou esperar tambm um tempo, mas vou tentar sair em breve, talvez daqui um ms;

    sobre o mdico, tenho que me controlar, tenho que evitar minhas panes, pois no consigo pensar, no

    consigo colocar foco em nada, e acabo pensando somente em coisas ruins. Daqui um ms tenho outra

    consulta e posso tentar ir me recuperando.

    Penso em minha sorte com a direo do carro na curva, aquilo poderia ter acabado mal mas e

    se acabasse, quem ligaria? Hoje tenho um servio que odeio, meus amigos se afastaram, ou eu os

    afastei, tenho uma namorada, ou ex-namorada, no sei, que me ama, e que eu talvez ame, no sei (ou

    ser que sei?), mas vivemos num relacionamento que eu estrago, meu corpo e minha mente no os

    deixam controlar. Tenho que tratar, tenho que me medicar, tenho que cuidar da Clara, mas no sei

    como AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!. Gritar, apertar as mos contra minha face, chutar a

    gua do mar, demonstrar essa raiva me faz muito bem, no dia a dia no consigo fazer isto, me soltar

    dessa forma. A ansiedade destes pensamentos na minha cabea me amedrontam, e acabo pensando em

    fazer mal a mim mesmo. Isto vinha acontecendo, Clara me alertou, meus pais me alertaram, e eu tenho

    que controlar, tenho que parar com esses pensamentos. Esta paranoia deixou meu corpo no estado que

    se encontra. Deixo meu peito se acalmar, abro os braos, deixo a brisa bater em meu corpo por um

    tempo, e me solto novamente: AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!. Algumas poucas pessoas que

    estavam caminhando, e outras que estavam fumando o que parecia ser um baseado, olham para mim.

    27

  • Se elas me vissem, provavelmente veriam que estou sorrindo neste momento. Vou deixar que a praia

    me acalme, vou tomar minhas decises e tentar superar essa demente baguna que se encontra em

    minha cabea.

    Saio do mar, pego o caminho para a pousada. Vou para o quarto, lavo meus ps para tirar a gua

    do mar e a areia, e deito. Meu corpo est incrivelmente tenso, meus msculos esto duros, as costas

    doendo, talvez pelo quase acidente. Mas ter entrado na gua, e ter me soltado daquela forma, parecem

    ter feito muito bem para mim. Consigo no pensar nos meus problemas, e adormeo em pouco tempo.

    28

  • 12. Sexta-feira

    A gua caindo nas minhas costas, a respirao ofegante e o estmago parecendo que est na

    boca. Fico mais de meia hora no banho, com as mos na parede e a gua escorrendo, enquanto minha

    cabea roda e eu tento raciocinar normalmente, se que eu estou podendo ser considerado normal de

    uns tempos pra c. Acordar de ressaca e com minha me me ligando, alm de ter lembrado que a Clara

    viria aqui, hoje a noite, me fizeram pular do sof, e estou muito zonzo desde ento. J deve ser quase

    meio dia, e parece que o fedor de lcool ainda exala de meu corpo. Escovo os dentes 2, 3 5 vezes,

    mas o fedor continua. Olho para o espelho e vejo as olheiras, o olho vermelho, a cara inchada e plida,

    a boca seca e aberta, com um resqucio de baba da pasta de dente. Termino de lavar o rosto, e,

    excluindo a baba, continua igual, horrvel, um reflexo da pessoa que sou, ou que me tornei, no sei.

    Vou lanchonete mais perto, evito olhar para qualquer pessoa. Todos, com certeza, percebem o estado

    que me encontro. Compro duas coxinhas e uma coca-cola, volto pra casa, fao o lanche com certo

    desgosto e despenco novamente no sof, o que suficiente para que a cabea rode e o estmago revire,

    querendo que eu jogue tudo pra fora. Depois de um tempo, tento dormir para que a ressaca melhore

    antes da Clara chegar.

    Hum Marco, tudo bem? Aham quantas horas? Seis e meia, voc recebeu minha

    mensagem? Aham T de ressaca, Marco? Um pouco dormi de tarde, s isso. Hum no

    sei nem se vou a ento. Vem sim, t tudo bem. Vou tomar banho, a gente conversa e pede uma

    pizza. T Marco, estou indo porque preciso mesmo falar com voc. Seno ah, deixa pra l. O

    qu? Nada s oito ento? Beleza beijo O telefone desliga, o cumprimento final saiu por

    fora do hbito, ela deve ter entendido. Vou tomar banho, a ressaca est melhor e espero que o cheiro

    de lcool no esteja to forte agora. Troco de roupa, tiro as coisas da sala e fico esperando Clara

    chegar.

    Oi. Entra Oi. Vou pegar um copo d'gua, t? Aham A saudao foi tensa, estranha.

    Clara no para de passar a mo na orelha, e balana os ps a todo instante. E ai, como voc est? T

    bem e voc? Fiquei quieto esses dias Menos ontem n? Ontem sa sozinho, queria afogar as

    29

  • mgoas. Aham Pera que vou pedir uma pizza, t bom? Aham Ligo para a mesma

    pizzaria, sei que eles entregam rpido, e peo a de sempre. Clara no para com os ps, e sua orelha est

    vermelha. Ento, o que voc fez desde tera? Trabalhei, bastante conversei com Jana, e com

    Carlo. Bom, agora vou conversar com voc. Sim ela no entenderia, nunca. Ningum entenderia.

    A deciso est tomada. Mas e a, pode falar Posso no, devo falar. Tera eu no consegui falar

    nada, voc no me deixou falar nada, hoje voc vai ouvir. Aham Ela comea, enquanto se levanta

    para pegar mais gua. Seguinte Marco, conversei muito com Jana e com Carlo. Eles me falaram que

    esto preocupados com voc. Eu estou preocupada com voc. Ela para e toma um copo d'gua.

    Pensei muito e treinei muito pra falar com voc, e agora no sai nada merda Fica tranquila

    Cla No, agora no, no fala nada ento, estamos preocupados. Voc est com algum problema

    e a gente no t sabendo. O Carlo falou que voc t diferente no trabalho Mas No, escuta,

    por favor Carlo disse que voc t diferente no trabalho, e a Jana tambm disse que sentiu voc

    diferente no Bar as ltimas vezes que te viu. T, voc t tendo essas dores de cabea, e as ltimas

    piradas suas foram estranhas, mesmo sem ter bebido, mas to todos falando que voc t distante.

    Eles distanciaram No, foi voc. Voc se distanciou, no sei porque, mas foi voc. T querendo

    conversar com seus pais tambm sobre isso, na maioria das vezes era eu que ligava pra eles. Engulo

    calado. Ela no percebeu que foi o pessoal que se afastou, ou ser que ela tinha razo?

    Estive pensando, muito, desde tera. Ela no para de bater o p. Tem o trabalho, os amigos,

    sua famlia. Voc t tendo algum problema? Ah Clara Responde. Voc sabe que no gosto

    muito do trabalho. Desconverso, no vou citar nada do mdico. T, voc no gosta do trabalho, mas

    d pra tentarmos ou voc tentar se continuar com isso de terminar arrumar outro servio, voc

    sabe fazer um tanto de coisa. Hum estou pensando nisso. Ento, esse um problema, o trabalho,

    que d pra pensar uma soluo. Voc consegue. No t falando que fcil, mas sei que voc

    consegue. Aham vou pensar nisso, de verdade. Seus amigos, voc se afastou eles

    VOC! Voc se afastou, e eles gostam de voc, todo mundo gosta, pessoal sente sua falta. Eu tinha

    realmente notado vrias mensagens nas redes sociais, e algumas no celular, me procurando. Mas o

    30

  • pessoal t preocupado com voc bebendo. Todos nos gostamos de beber, voc sabe disso. P, a gente

    se conheceu no Bar, mas no pode exagerar. Um dia ou outro, v l, mas sempre? No d pra ficar

    igual voc tem andado. Aham Esse assunto me irritava. O pessoal combinou de ir devagar e te

    acompanhar se voc decidir diminuir a bebida. Isso no deve t te fazendo bem, t todo mundo

    preocupado com sua sade. Talvez at essas piradas e dores de cabea sejam por conta da bebida.

    talvez sejam mesmo. Aham Isso tem at complicado nosso namoro. Realmente, todas as vezes

    que eu exagerava, a gente brigava muito. , tenho que pensar nisso tambm. A gente briga muito

    quando bebo demais. E no s comigo, Marco voc no pode ficar bbado direto, isso no t

    nada legal. Aham Voc t me entendendo? Aham de verdade. Ento, trabalho, bebida,

    amigos voc t me entendendo? Voc tem que conseguir levar essas coisas bem, sem pirar, como

    voc mesmo fala? Voc pode contar com todo mundo, pessoal t preocupado com voc, e esse

    afastamento que voc arrumou. T vou pensar nisso tambm. A pizza chega.

    Acho que Clara tambm gostou do momento da pizza, pois assim ela prepara a conversa pra

    parte que realmente interessa. Hoje pelo menos a gente come a pizza junto, num momento

    extremamente desconfortvel. Eu quieto, ela completamente inquieta, porm ambos em silncio. Os

    ps de Clara no param, e o pior, sua mo no para de coar a orelha. Ela no olha nos meus olhos por

    um segundo sequer. Quase terminamos a pizza inteira, mesmo que ouvindo apenas os ps de Clara

    batendo no cho nervosamente.

    Marco, vou ao banheiro e a gente conversa depois. OK Enquanto arrumo a mesa, ouo o

    barulho da torneira do banheiro. Marco, seguinte os olhos dela esto marejados. sobre voc

    ter terminado comigo. T, pensei muito ento voc t com problemas, e, pelo menos agora, no

    quer que eu fique perto mas voc sabe que eu ia te ajudar Sei Clara Espera deixa eu

    tentar falar pensei muito, muito, sobre isso. Voc t com esses problemas com o pessoal, com a

    bebida, com o trabalho, t bom, entendo. Posso te ajudar, mas voc simplesmente quer ficar sozinho, e

    eu entendo isso. Am? Isso mesmo, eu entendo. No concordo, mas entendo. Voc est

    precisando de um tempo. Mesmo sendo 3 anos e 10 meses juntos e 13 dias, penso. voc quer

    31

  • ficar sozinho e pensar um pouco, e isso bom. Ela me surpreende de novo. Eu tambm preciso

    pensar, e pensar sozinha. Semana que vem tenho uns exames Am? Voc t bem? Sim, sim, s

    rotina, no preocupa, de verdade. Eu no falei dos meus exames, e da minha condio, no vou

    perguntar pra ela sobre porque ela vai ao mdico, por mais que eu me preocupe. Ela est bem, sei

    disso. Ou ser que o que eu tenho pode ter passado pra ela? Mas quero pensar um pouco tambm no

    trabalho e na gente. Talvez depois dos exames vou viajar, pegar um fim de semana e ficar quieta. Voc

    deveria fazer isso tambm. Hum boa ideia. Vamos dar esse tempo, voc faz o que voc quiser,

    se quiser ficar com algum, ok tambm Ela quase chora nesse momento. No quero ficar com

    ning Escuta, por favor. Se voc quiser ficar com algum, tudo bem. S te peo, por favor, pra no

    se afastar de mim por completo, no agora, no at daqui um tempo. Se voc acha que esse

    afastamento seu bom, eu no acho, na verdade ningum acha, e vou precisar de um contato seu. Por

    favor, estou te pedindo. Ela est chorando. T Clara, mas o que voc tem? Nada Marco, nada s

    te peo isso, t? No se afasta de imediato, esse trmino t estranho e a gente tem que se acalmar, mas

    voc precisa de um tempo, eu entendo isso. T Tento falar, sem entender direito. Vou pensar

    nessa viagem que voc falou, tem aquela praia que a gente gosta. E vou pensar em tudo o que voc

    disse, te prometo. Enquanto isso, te mando umas mensagens falando como eu t. T, mas por favor,

    no afasta totalmente, nem de mim, nem de sua famlia, nem de seus amigos. E pensa nisso que a

    gente conversou.

    Ela volta ao banheiro e lava o rosto. Ento, de repente, pega a bolsa pra ir embora. Ento, s

    pra finalizar, por enquanto, essa conversa pensa, mas pensa direito. Nisso tudo. Pensa que todo

    mundo gosta de voc, e que voc t afastando, voc! Ela no entende. Aham vou pensar. T, a

    gente d esse tempo e conversa. Essa semana no posso, tera da outra semana t bom pra voc?

    Aham Vou ligar pros seus pais tambm. Eles me mandaram uma mensagem, e quero conversar

    com eles. T bom. Manda mensagem, s pra falar como voc t. Mas toma esse tempo e pensa, de

    verdade. Tchau. T bom. Tchau. At breve, Clara. Antes de fechar a porta, ela olha nos meus olhos

    e hesita em fechar a porta. A ltima imagem que vejo de Clara do seu rosto com uma lgrima j

    32

  • prxima do queixo.

    Uma viagem, essa uma boa ideia. No tenho que trabalhar at quinta-feira devido a folga. Vou

    praia, talvez esse seja o melhor lugar pra pensar, pelo menos no meu mundo. A conversa com Clara

    foi boa, muito boa mesmo, me assustou um pouco toda a clareza que ela tinha da minha situao,

    excetuando o problema mdico, e como ela foi madura com relao ao trmino. Vou fazer o que ela

    disse, e no me afastar por completo. Talvez o melhor mandar algumas mensagens, de vez em

    quando, para falar onde e como estou. Escovo os dentes, e decido tomar, pela primeira vez, um dos

    remdios que o mdico receitou. Vou para o quarto, deito, e nem percebo quando o sono me domina.

    33

  • 13. Quinta-feira

    A blusa est encharcada, o lenol tambm. Parece que acabei de tomar um banho de tanto que

    meu cabelo est molhado. Passo a mo em minha testa, o suor frio, a respirao ofegante, os msculos

    duros devido a tenso, o corao batendo rpido. No sei se acordei assim devido a dor de cabea,

    minha condio ou ao sonho que acabei de ter. J havia sonhado que estava caindo, mas nada to

    agonizante, parecia real. Eu estava fugindo de algum que no conhecia, e a nica chance que eu tinha

    era pular do prdio. A queda foi longa, a ponto de eu conseguir me perguntar, enquanto caa, se eu

    realmente estava sonhando ou no. Quase consegui sentir o vento em meu rosto durante a queda. De

    certa forma, a angstia maior foi gostar da sensao de liberdade ao cair, de conseguir fugir da pessoa

    que me perseguia, mesmo vendo o cho cada vez mais perto.

    Tento esquecer o sonho. Este tipo de pensamento tem que ser excludo da minha cabea, antes

    que eu enlouquea. Preparo um caf e sento-me novamente em frente a TV, assim como ontem. Como

    no tenho o que almoar, decido sair e comprar algo para comer em casa, quero evitar encontrar com

    qualquer pessoa, em especial algum com quem eu possa manter algum dialogo. Pego um marmitex no

    restaurante perto de casa, e na volta passo na farmcia para comprar o que o mdico me receitou. A

    atendente olha para mim quando mostro a receita, com cara de decepo, ou me julgando, no sei ao

    certo. justamente este tipo de olhar, este preconceito, que me fez decidir no contar para ningum

    por enquanto. A ideia de ter esses olhares ao meu redor me fez terminar com Clara. No vou suportar

    as pessoas me colocarem como vtima.

    Em casa, almoo assistindo TV. Quando termino, coloco o alumnio no cho e consigo dormir

    no sof. Acordo com o celular vibrando, meu pai ligando. Marco? Hum. Tudo bem, meu filho?

    Aham Dormindo uma hora dessa? T de folga. Mas t tudo bem? Aham E porque a

    folga? Voc t bem mesmo? Aham so aquelas dores de cabea, mas estou ok. Marco, qualquer

    coisa avisa a gente, t? Tudo bem com a Clara? Aham a gente t brigado. Marco, Marco, cuida

    dessa menina. Justamente isso que fiz ao terminar com ela. OK. Vou levantar agora, depois a gente

    conversa, t? T bom. Abrao. D um beijo na me. Abrao. Levanto e vou ao banheiro, minha

    34

  • cara continua plida. Volto para a sala, um tdio muito grande domina meu corpo, a sensao de vazio

    comea a voltar, e no quero passar outro dia como ontem. Talvez a raiva do olhar que a mocinha da

    farmcia me deu esteja alterando meu pensamento, mas decido sair para beber. No posso ir ao Bar,

    com certeza iam ficar me perguntando coisas. Troco de roupa, escovo os dentes, deixo o celular em

    casa e pego um txi para um bairro distante do meu.

    Paro num boteco qualquer, no muito simples mas no muito chique. Peo uma cerveja,

    sozinho no meu canto, e comeo a pensar no que est acontecendo comigo. O mdico me disse que

    isto pode passar, que pode ser culpa do estresse no trabalho, que pode ser um problema fisiolgico, que

    preciso fazer mais exames. Que eu no gosto do trabalho, isto mais que evidente. Ter conhecido o

    Carlo talvez foi a nica coisa boa daquilo que eu chamo de emprego. Mas, de uns tempos para c, ele

    se afastou. Mas no s ele, todos os meus amigos e amigas se afastaram. Mais uma, por favor? Na

    verdade, parece que todo mundo que eu gosto est se afastando de mim. Talvez porque j perceberam

    que tenho algo de errado, talvez por conta dessa maldita cerveja. Carlo e Jana ainda me chamam para

    fazer algumas coisas, mas todos os outros se afastaram. Bando de ingratos. Minha famlia se afastou,

    meu pai me liga sempre, mas Mateus no d mais as caras. Opa mais uma por favor? Se no fosse

    a Clara, eu passaria a maior parte da semana sozinho, em casa, ou na rua bebendo, mas sozinho, como

    estou agora. Clara aquela era uma namorada perfeita, talvez a mulher perfeita para mim. Mas quem

    disse que eu era o homem perfeito para ela? Ou para algum? Tudo o que eu fao est errado, tudo o

    que penso d errado, e meu corpo est sofrendo com essas decises do passado. Terminar com a Clara

    foi uma deciso correta, o que eu vou passar, o que eu estou passando ela no precisa sofrer junto

    comigo. Lembro de alguns momentos bons com ela, de algumas viagens, de quando fomos a praia a

    primeira vez. Tempos bons, minha cabea funcionava corretamente, agora no, agora tudo uma

    baguna. E agora ainda tenho esses malditos remdios para tomar. Opa outra? Estou bebendo

    rpido, mas fazer o qu? Problemas no servio, problemas com a Clara, com os amigos, com a famlia.

    A nica coisa que resta continuar com minha cerveja.

    Vou ao banheiro, e respiro forte enquanto a urina fedida vai para a privada. Estou ficando tonto,

    35

  • mais depressa que de costume, talvez devido a minha condio, ou ao fato de eu no ter comido nada

    desde o marmitex. Volto para minha mesa e peo outra cerveja. Decido no comer nada, a ideia hoje

    ficar alterado. O pensamento est desconexo. Quando penso na Clara, lembro dela batendo a porta

    antes de ontem, e penso em como vou reagir quando ela for l em casa amanh. Esses filhos da puta

    do meu servio no sei se falei isso alto, mas algumas pessoas olharam. Que se dane, odeio aquele

    lugar mesmo. Amigo, traz mais uma? Quantas eu bebi at agora? Seis? Cinco? Quatro? Acho que

    vou terminar a noite com uma cachaa. Mas no agora. Agora vou mandar uma mensagem pra Clara.

    Cad meu celular? Demoro quase um minuto para lembrar que tinha deixado ele em casa. Boa

    ideia, Marco! Boa! Algumas pessoas esto olhando para mim, mas que se danem tambm. Continuo

    pensando na Clara, em quanto eu gosto dela. Hum hum ela no tem que sofrer, Marco!

    Comea a tocar uma msica no bar, ou ser que j estava tocando antes mas s agora percebi?

    Hey hey hey hey what's going on? Parece que s eu estou cantando alto, talvez eu esteja sorrindo,

    mas por dentro, bem no fundo, o vazio est tomando conta. Shhh amigo mais uma, e uma meia

    cachaa, por favor? O garom traz a bebida, mas no est com a cara muito boa pra mim. Olho para a

    mesa, e a conta veio junto. To me expulsando? No, amigo, que o bar j vai fechar. Hum

    Viro a cachaa, comeo a tomar um copo de cerveja pra tirar o gosto, mas no aguento e corro para o

    banheiro. A primeira golfada cai direto na privada, puro lcool. Foi a cachaa, sem ter comido nada,

    no ia mesmo durar no estmago, mas to rpido assim? essa doena de merda, s pode ser isso.

    Saio do banheiro, pago a conta depois de errar a senha do carto uma vez, e pego um txi para ir pra

    casa. Ou me explica porque a gente faz tanta merda na vida? No sei cara, mas se voc

    vomitar no meu carro vai ficar mais cara a corrida.

    Muito difcil o caminho at conseguir entrar em casa. Entro, chuto o tnis para o canto, tiro a

    cala e vou ao banheiro. Coloco um tanto de gua na boca, cuspo na pia, olho para minha cara

    enquanto cambaleio em frente ao espelho. Com minhas ltimas foras, vou para o sof. me apoiando

    na parede. ltimo pensamento que tenho, um pouco consciente, o restante enebriado pela bebida:

    Marco seu estpido!

    36

  • 14. Quarta-feira

    Olho o relgio vrias vezes: trs, quatro, cinco seis seis e dezoito. Essa foi a ltima hora

    que chequei, com certeza, antes que conseguisse dar um pequeno cochilo. Levanto, vou ao banheiro e

    urino. Bebo um copo d'gua e volto para a cama arrastando os ps. O sentimento de vazio agora est

    mais forte em mim, e no sei o que fazer. No vou ligar para a Clara, apesar de querer falar com ela, de

    querer sent-la do meu lado da cama. J tomei minha deciso, agora tenho que mant-la. Cochilo

    novamente. Dez e quarenta. Levanto, vou cozinha e preparo um caf. Levo para a sala e ligo a TV,

    deixo em algum canal onde passa um desenho animado. Porque esse vazio continua, se ontem eu me

    sentia aliviado? Ser que isso vem dos exames? Penso isto enquanto olho para a TV, sem de fato ver

    qualquer coisa.

    Duas e trinta e trs. O estmago comea a roncar, vou at a geladeira e pego a pizza fria de

    ontem, o nico pedao que falta dela est no lixo, com apenas uma pequena mordida. No esquento,

    levo para a sala e sento no sof para comer enquanto olho para a TV.

    Seis e quinze mostra o relgio do celular, enquanto vejo as mensagens que esto acumuladas

    nele. Uma do meu pai, uma do Carlo, uma da Janana, trs da Clara. Todos me perguntando se estou

    bem. Copio a mesma mensagem e respondo para todos. Tudo OK. Descansando. Abrs. Clara

    responde quase de imediato: Sexta vamos conversar? OK. Continuo em frente TV, sem ver nada,

    enquanto o brilho da tela se movimenta na minha frente.

    Oito e dez, termino de comer o restante da pizza. Parece que est passando jornal. Vou para o

    quarto, sinto muito sono, no dormi durante a noite anterior e nem durante o dia. Deito na cama, olho

    para o teto e o vazio continua. Onde est o alvio de ontem?

    O celular vibra, mais mensagens do meu pai, da Jana e do Carlo, nenhuma da Clara. O relgio

    marca dez e cinco quando olho pela ltima vez antes de dormir.

    37

  • 15. Tera-feira

    A boca dele se mexendo, as mos passando em cima da mesa, os dedos apontando para os

    nmeros e nomes do exame. Mas no ouo nada. Desde que ele disse o que havia comigo, comecei a

    no ouvir o que saa da sua boca. O mdico apontava, fazia algumas expresses ruins, outras boas.

    Alguns gestos aparentavam ser como para me acalmar, mas j no ouvia nada. No lembro ao certo do

    que se passava na minha cabea, por alguns minutos fiquei atordoado, apenas respondendo Ok. ou

    Aham. como se eu concordasse, ou, pelo menos, entendesse algo. Pensei na Clara, nos meus pais, no

    Mateus, nos meus amigos. Como vou falar isso pra eles? O que vou falar pra eles? Vou realmente

    contar pra eles? Marco, Marco voc est ouvindo? Aham. Vamos fazer mais alguns exames,

    os mesmos e tambm outros. Sangue, radiografia, urina, fezes, ultrassonografia. Temos que medir

    algumas taxas em seu sangue, como voc pode ver aqui Novamente eu me perco, mas balano a

    cabea concordando. Depois de quase uma hora de consulta, saio com vrios pedidos de exames e

    encaminhamentos para outros mdicos: psiclogo, psiquiatra, endocrinologista, urologista, dentre

    outros. O mdico me ofereceu uma dispensa de uma semana do servio. Queria que ele tivesse me

    dado mais tempo de dispensa daquele inferno, mas segundo ele o trabalho ia me ajudar a no pensar

    neste problema. Enquanto caminho para o ponto de nibus, lembro vagamente dele dizer Marco, isto

    que voc tem comum, mais comum que parece. Temos que realizar o tratamento, e voc poder ter

    uma vida longa e tranquila, mas precisa ter pacincia e perseverana. Aham. Na primeira consulta

    voc disse que estava tendo enxaquecas e estava, pirando, nas suas palavras. Isto deve ser decorrente

    da sua condio. O tratamento pode resolver, mas voc precisa ser firme.

    Dentro do nibus algumas pessoas olham para meu rosto, devo estar plido. Decorrente da

    conversa com o mdico, talvez, ou do que ele acabou de descobrir em mim. J no sei mais nada. Paro

    no trabalho para deixar o atestado, algumas pessoas tentam falar comigo, mas passo direto. Quero

    evitar falar devido a nsia de vmito ao entrar naquele ambiente, ou talvez seja devido minha

    condio. Sorrio falsamente ao entregar o atestado, e dou uma desculpa Garganta inflamada, coisa

    pouca. Vou sala de caf, Carlo est l. Que cara essa, Marco? Ressaca? Voc tem que diminuir

    38

  • isso No Carlo, s minha garganta que t doendo. E aquelas enxaquecas que no me deixam

    pensar, voc sabe. Vou ficar de folga at semana que vem, da volto com fora total. T bom. Se

    voc quiser passo na sua casa pra conversarmos. Precisa no. Quero ficar um tempo sozinho. Ok,

    mas qualquer coisa voc liga, beleza? Valeu Carlo. Ele estranha quando vou despedir dando um

    abrao, mas sente que eu precisava disso. At breve, Carlo.

    Vou para casa, ainda cedo, e vou encontrar Clara noite. Decido uma nica coisa em minha

    cabea: no vou contar para ela, nem para meus pais. No vou contar pra ningum. Pelo menos por

    enquanto. Ver as pessoas olhando para mim com cara de d, ou fazendo as coisas por pena, algo que

    no vou suportar. Ainda no sei como lidar com isto, mas por enquanto est decidido, no vou contar

    pra ningum. Mas eu e Clara praticamente moramos juntos, ser impossvel ela no perceber os

    remdios, as consultas rotineiras, os efeitos colaterais. Ela est bem no trabalho e na vida, talvez seja

    melhor ela no participar disso comigo, quero evitar que ela se machuque muito no futuro, e uma ideia

    machuc-la muito agora. evidente que ela gosta de mim, e que eu gosto dela, mesmo porque so 3

    anos, 10 meses e 10 dias juntos, mas se dermos um tempo, mesmo eu no dando motivos reais, as

    coisas podem vir a se acalmar. Ela j vinha dando sinais que estava brava, com relao a esse meu

    maldito vcio em lcool, sobre minhas reclamaes dirias do servio, das minhas enlouquecidas

    devido confuso na cabea nos ltimos tempos.

    Peo uma pizza quando Clara liga falando que j est chegando. Quando ela entra meu mundo

    para. Comeo a suar frio. Ela no percebe e conversa, enquanto pega gua, Que trnsito esse? Tudo

    parado, uma pessoa mais impaciente que a outra, no conseguem dar lugar, saem buzinando povo t

    muito doido no ? Aham. Respondo do banheiro, tive que sair e lavar meu rosto. Ela continua

    falando sobre o trabalho, e sobre como est legal depois que ela conseguiu a promoo. Deixo ela

    falando, ligo o automtico, e olho pra ela. No somente olhar, mas observar, perceber, analisar. As

    pequenas coisas, idiossincrasias, a pinta no antebrao, o jeito que ela coa a orelha direita quando est

    ansiosa, a piscada de olho quando vai falar algo engraado, o jeito de sentar na poltrona e pegar na

    minha mo, como ela tira os sapatos e os joga no canto da sala, a maneira como ela coloca o cabelo

    39

  • para trs, o desenho dos lbios, as curvas, os olhos cansados mas felizes. Ela liga a TV num canal

    qualquer, e continua falando, Desafia muito, gerncia complicado porque os problemas so todos

    meus, mas trabalhei pra chegar neste ponto, ento t gostando muito. Ela continua contando sobre o

    trabalho e de repente noto que ela coa bastante a orelha, e o modo que ela fala mostra certa ansiedade.

    Com certeza ela no est to ansiosa quanto eu.

    O que foi, Marco? T me olhando esquisito. Novamente meu mundo para, mas no penso em

    nada. Clara, a gente tem que conversar. Am fala. Quero dar um tempo. Minha expectativa era

    de uma risada irnica, um Larga mo de ser bobo, Marco!, um espanto qualquer. Talvez at uma

    coceira sbita e intensa na orelha direita. Mas no, a reao dela foi tudo, menos o que eu esperava.

    Com a TV ainda ligada, sem tocar no controle, Clara se virou para mim, e ficou me olhando enquanto

    seus olhos se encheram de lgrimas. Ela ficou plida, talvez mais que eu estava quando sa do

    consultrio mdico. No tive como contar o tempo que ficamos assim, olhando um para o outro, sem

    saber o que falar. Tambm no sei o que se passou na cabea de Clara. Na minha mente, apenas a boca

    do mdico e as palavras mal entendidas nos exames, alm da deciso firme e slida de terminarmos.

    Clara comeou a coar a orelha, e a balbuciar algumas frases desconexas. Mas agora? Mas o

    soluo e as lgrimas no a deixavam falar. S preciso disso para mim, no quero explicar, nem sei

    como explicar. Tento colocar a mo em seu ombro, mas ela no deixa. Levanto e vou pegar um copo

    d'gua para ela, e dois para mim. Entre soluos ouo Marco, o que t acontecendo? Clara, t

    realmente precisando de um tempo. Aquelas piradas minhas e as enxaquecas, preciso pensar nisso.

    Mas eu posso te ajudar, voc sabe que No Clara, t mesmo precisando de um tempo. Entrego o

    copo, ela limpa o rosto, e antes de tomar sussurra olhando nos meus olhos Agora no, por favor, agora

    no. Mas eu estou decidido, preciso disso. Tenho que pensar, Clara. Meus amigos se afastaram,

    meus pais se afastaram, daqui a pouco voc se afasta. A cabea fica louca, e preciso disso. Voc no

    entende eles no ningum T, eu no entendo, mas voc tambm no entende. No Marco,

    agora no, vamos conversar melhor, no tem motivo. Eu tenho motivo. Voc no entende no

    o pessoal que t se afastando sim por minha causa ou por causa deles, mas esto se

    40

  • afastando. No Marco, por favor, agora no Preciso disso, Clara. Ela desaba, no segura

    nenhuma lgrima, mas no diz mais nada. No tenta mais nenhuma reao, apenas limpa o rosto

    eventualmente e coa a orelha. Eu no digo mais nada, est decidido. Preciso disso.

    Ficamos neste silncio por bastante tempo, at que a pizza chega. Clara vai ao banheiro e fica

    l por uns 10 minutos. Na sada, ofereo um pedao de pizza. Marco, vou pra casa. Preciso conversar

    com voc outra hora. T, voc quer porque quer este tempo, que tenha. No sei porque voc quer,

    nem se voc precisa, mas se voc diz, ok. T entendendo isto como uma das suas loucuras dos ltimos

    meses. No Clara, pensei No, no pensou. Antes de comear a chorar novamente, ela pega a

    bolsa e antes de sair diz Olha, t indo, mas preciso conversar com voc direito. Pensa, de verdade,

    nesse tempo que voc diz querer, viu? Vou te ligar pra combinar um dia pra vir aqui conversar.

    Conversar direito! T. Antes de fechar a porta ela volta o rosto e olha pra mim, parece que quer

    dizer mais coisas, mas no diz. Ouo somente a porta batendo atrs dela.

    Sinto-me estranho no restante da noite. Estranho, mas bem. Uma mistura de alvio com vazio.

    A TV permaneceu ligada o tempo todo, mas no tenho ideia do que estava passando. Na cabea,

    algumas imagens de Clara, outras imagens do consultrio. Tento comer a pizza, mas no consigo.

    Provavelmente a estranheza afetou meu estmago, ou tambm poderia ser um dos resultados negativos

    dos exames. Vejo o telefone, uma mensagem de Clara: Vc me magoou muito hoje. Quero cv direito.

    Amanha? Respondo: Sexta. S isto, bem seco, no quero que Clara sinta o que eu estou sofrendo,

    ou o que vou sofrer.

    Com essa sensao estranha, essa mistura esquisita de alvio e vazio, de tristeza e alegria, deito-

    me na cama e espero pelo sono. Ele no vem.

    41

  • 0. Quarta-feira

    Se eu estivesse l veria um campo gramado, algumas rvores, um salo grande, e bastante

    gente. Bastante gente mesmo, cinquenta, setenta cem pessoas. Veria que essas pessoas formaram

    diversos subgrupos, alguns mais prximos do salo, outros mais longe, mas todos falando sobre mim.

    Tambm veria outros grupos chegarem, algumas pessoas sarem do salo, amparando ou sendo

    amparadas; pessoas chegando, pulando de um subgrupo para outro. Se eu estivesse l veria pessoas

    tomando gua, rindo, chorando, se abraando, sentando nos poucos bancos a disposio, e

    conversando.

    Se eu estivesse l veria o grupo de meus amigos de infncia, muitos que no me viam h muito

    tempo e que permaneceriam sem me ver. Eles lembrando dos tempos em que corramos juntos, das

    brincadeiras, de quando estudvamos juntos, e principalmente de quando no estudvamos, juntos;

    meus amigos se lembrando de quando comeamos a ver as meninas com olhos de homens, e contando

    histrias engraadas, entre uma lgrima e outra.

    Se eu estivesse l veria as pessoas do trabalho, todas as pessoas do trabalho, de empregados a

    chefes. Luis com o rosto plido sem dizer uma palavra o tempo todo, Paulo sentado chorando com

    mais dois colegas ao lado com os braos no seu ombro. Os outros colegas comentando como eu era

    uma pessoa boa no servio, e que viam que eu estava passando por dificuldades; contando sobre as

    vezes que cheguei de ressaca no trabalho, e como isso os divertia, inclusive em como eu conseguia

    trabalhar daquela forma. Se eu estivesse l escutaria as vrias histrias e conversas, divertidas ou

    chatas, que tnhamos durante os cafs durante o expediente. Veria Paulo se levantando, puxando o

    brao de Luis, e ambos sarem para respirar, e depois dizer, enxugando as lgrimas, Como assim

    Luis? Esse fim de semana o Marco tava legal. Como assim? A gente saiu sbado! No sei. No

    precisava disso no precisava. Se eu estivesse l sentiria a respirao forte do Luis neste momento.

    Ele tava mal j tinha um tempo, todo mundo viu isso. Mas no precisava s vezes acho que a gente

    podia ter ajudado mais deixando as lgrimas inundarem s