Até o Sol Nascer

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de Lucianno Maza 1

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Até o Sol Nascer

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de Lucianno Maza

Um flat, decoração jovem e feminina, pop (estilo Imaginarium). Janela para o mar.

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Glória, 25 anos, bonita, loira, modelo. Está sentada no sofá folheando uma revista.Toca a campanhia. Ela abre a porta, do outro lado John, 29 anos, despojado.

Glória: Você demorou.

John: Desculpa aí.

Glória: Eu devia descontar...

John: Você é a Glória?

Glória: A própria, por quê?

John: Nada. Tão jovem...

Glória: Não gostou?

John: Gostei. Claro que gostei.

Glória: Então?

John: É que não costuma ser assim...

Glória: A portaria deixou você subir na boa, né?

John: Meu nome tava lá.

Glória: John! Que tipo de nome é esse hein cara?

John: Qual o problema?

Glória: Ninguém se chama John no Brasil.

John: Eu me chamo.

Glória: Mesmo?

John: É... (Pausa. Constrangido) Na verdade é João. Mas John é mais bonito, vende mais, né?

Glória: Se você tá dizendo João.

John: E eu não suporto que me chamem de João! Meu nome é John.

John percebe que ainda não entrou no flat.

John: Posso entrar?

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Eles entram, Glória fecha a porta.

John: Pô, bonitão seu apartamento.

Glória: Obrigada.

John: Meio pequeno, né? Apertado...

Glória: É um flat, John.

John: Você quer ir direto ao ponto ou...

Glória: Ou?

John: Quer ir mais devagar?

Glória: É... Acho que temos tempo, né?

John: Tem algo pra gente beber aí?

Glória traz duas garrafas de vodka ice. Eles abrem, brindam.

John: Não tem um salgadinho pra acompanhar?

Glória: Você não acha que tá sendo folgado demais pra um primeiro encontro?

John: Incomoda se eu fumar?

Glória: Eu tenho asma.

John: Ah, ok!

Glória pega em sua bolsa um saquinho com cocaína e começa a preparar uma carreira em cima de uma revista. Faz um canudinho com um dólar. John: Porra, você não tem asma?

Glória: Tenho.

John: Então, não pode fumar.

Glória: Coca não se fuma idiota...

John: Eu sei, mas não faz mal?Glória: Um pouco. Menos que cigarro, maconha... O nariz arde, coça... Mas

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incomoda menos que a fumaça.

Glória aspira uma carreira.

Glória: Sabia que Freud sugeria a utilização terapêutica da coca no tratamento de várias doenças? Inclusive da asma... E depressão...

John: Freud é?

Glória: Quer?

John vai à revista, mas antes que ela lhe dê o canudinho fala:

Glória: Mas eu vou descontar o valor da droga.

John: Caralho, você tá de sacanagem, tudo quer descontar cacete! Eu vou sair daqui te devendo.

Glória: Brincadeira vai...

John aspira uma carreira. Os dois riem e começam a se beijar intensamente. Toca a campanhia.

John: Pô, tá esperando alguém?

Glória: Tô.

John: Você não disse que íamos ter companhia...

Glória abre a porta, pega uma pizza, paga.

Glória: Você não queria comer alguma coisa?

Os dois se beijam novamente.

Glória: Calma John Travolta, a pizza vai esfriar.

Glória vai cortar a pizza enquanto John espera sem jeito,, ela volta com as fatias.

John: Não vai cortar a onda?

Glória: Vai... Mas tô com fome.

Eles começam a comer a pizza. Silêncio por um tempo.John: Tem catchup?

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Glória: Vai tomar no cu!

John: É bom com catchup, você ia ver como fica melhor...

Tempo. Eles terminam de comer a pizza.

Glória: Você faz isso há muito tempo?

John: O quê?

Glória: Procura garotas assim como eu?

John: Normalmente não são garotas. (Pausa) Como você.

Glória: Velhas?

John: Velhos. Na maioria das vezes.

Glória: Te dá tesão?

John: O quê você acha?

Glória: Eu te dou tesão?

John vai pra cima de Glória e começa a beijá-la.

Glória: Tira a roupa. Eu quero te ver antes. Só te ver. Pra saber se vale a pena...

John tira a roupa, fica nu na frente dela. Glória o olha. Glória começa a tirar sua roupa e coloca um cd pra tocar.

Glória: São 20 centímetros mesmo?

John: Vem medir...

Glória caminha pra John.Música.Black-out. Tempo. Glória tossindo muito. A luz é acesa.Eles estão deitados, John está fumando, Glória tossindo.

Glória: Apaga essa merda!

John: (apagando o cigarro) Desculpa. É que eu preciso dar uma tragada depois

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da transa. Pra relaxar de vez.

John se levanta e começa a vestir sua roupa.

Glória: O que você tá fazendo?

John: Me arrumando ué.

Glória: Pra quê?

John: Ir embora...

Glória: Não!

John: Você não tá satisfeita?

Glória: Bem...

John: Eu não gozo duas vezes seguidas...

Glória: Não é isso... Fica mais um pouco. (Pausa) Por favor.

John: Não dá, eu tenho hora.

Glória: Eu vou te pagar um extra, pode ficar tranqüilo.

John: O quê mais você quer? Você não gozou? Ou tava fingindo?

Glória: Fica aí, relaxa, fica à vontade, mas fica.

John: Sei... Eu fico aí você me cobra até um danoninho que eu comer. Tô fora.

Glória: É sério.

John: Posso te perguntar uma coisa que eu pensei assim que você abriu a porta?

Glória: Nada a esconder...

John: Não fala besteira, todo mundo tem alguma coisa a esconder.

Glória: O quê você quer saber John?

John: Por quê uma garota como você precisa de um cara como eu? Você é nova, loirinha, linda, tem a maior pinta de ter grana, mora nesse puta flat bacana. Pode ter o cara que quiser, é só estalar os dedos que vem um monte de marmanjo atrás de você... Glória: Isso é o que você pensa.

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John: Corta essa Glória... Se você ainda fosse uma coroa...

Glória: Eu tenho a tara de pagar pra me comerem, só isso.

John: Tara? Não você não tem taras, nem deixou me deixou comer o cu... Eu não tenho nada a ver com isso, nada mesmo. Pagando eu como até patinho de borracha. Mas sei lá, tem alguma coisa em você...

Glória pega em sua bolsa um dinheiro e entrega pra John.

John: Aqui tem muito mais que o combinado.

Glória: É pela sua consulta de análise. (Pausa) Anda, se manda daqui. Beijo, tchau querido. John...

John: Eu vou mesmo.

John coloca sua camiseta, e olha pra uma revista que está por ali. Olha de perto.Glória se constrange.

John: É você? É você aqui na capa? Pô, tu é famosa! Sabia que já tinha vista sua cara antes... Caralho! Eu comi uma celebridade!

Glória: Cala a boca imbecil.

John: Você faz novela né? Não... Não fala! Você fez aquele reality-show! Acertei?

Glória: Quer sair daqui?

John: Me dá um autógrafo Glória! Glória de quê hein? Ah... Tá aqui: (lendo errado na revista) Heinroth?

Glória: (com sotaque alemão) Heinroth.

John: Ah! Bonitão hein? É gringo né?

Glória: Alemão.

John: Alemão... Posso tirar uma foto contigo? Meu celular tem câmera e...

Glória: Vai se foder!

John: Desculpa, eu não queria te irritar.

Glória: Você nem sabe quem eu sou cara.John: Eu sei que é famosa, tá aqui na capa dessa revista.

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Glória: É...

John olhando pelo apartamento acha outras revistas com Glória na capa.

John: Porra! É revista pra caralho, hein?! Tu é famosa mesmo! Mas diz aí, em qual novela você tá?

Glória: Na que a senhora sua mãe assiste.

John: Não precisa esculhambar também.

Glória: Eu não faço novela nenhuma.

John: Ah não? Então...

Glória: Sou modelo. (Pra si) Por enquanto.

John: Modelo é?

Glória: Lê aí o que dizem as revistas.

John: Essa aqui tá em inglês, né?

Glória: E a outra em japonês.

John: Pô. Chique você hein? Tá até em revista do outro lado do mundo. Como é que eles fazem pra te entender?

Glória: Você tá perdendo seu tempo aqui.

John: Ué, não era você mesma que queria que eu ficasse hein Glória?

Glória: E você não ia ficar.

John: Ah, mas eu pensava que você era uma louca. Uma dessas filhinhas de papai deprimidas... Mas não, é diferente! Você é uma modelo famosa.

Glória: Então senta aí.

Glória prepara mais duas carreiras de cocaína e as cheira.

John: Tu é mó tamanduá, hein?! Bem que eu já tinha ouvido falar que vocês modelos cheiram pra caralho, teve até aquele caso...

Glória beija John pra calar a boca dele.

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Glória fica um pouco nervosa.

Glória: Você tem nojo de mim?

John: Não!

Glória: Você tem nojo de mim que eu sei!

John: Não fala merda.

Glória: Eu sei que você tem nojo de mim, tá me olhando e tem nojo. Eu vejo nos seus olhos.

John: Se você vai entrar em nóia é melhor eu ir embora.

Glória: Isso vai, deixa essa nojenta sozinha.

John: Eu não tenho nenhum nojo de você cacete. É você quem devia ter nojo de mim.

Glória: E eu tenho.

John: Porra.

Glória: Fico imaginando em quantos cus imundos de merda você não meteu esse pau nojento. Ou será que eles é que metem em você?

John: Cala a boca!

Glória: Mas eu gosto de você mesmo assim. João.

John: John!

Glória: João. Joãozinho.

John: John porra! John!

Glória: Jo-ão. Jo-ão.

John fica nervoso, pega Glória pelo braço e grita com ela.

John: John! Repete comigo sua puta: John. Glória: Isso me aperta, me machuca. John...

John solta Glória e vai pra um canto. John: Desculpa. Eu não sou assim... Você me deixou nervoso. Eu...

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Glória: Eu quis te deixar nervoso.

John: Pra quê?

Glória: Pra quê você tivesse raiva. Pra quê você sentisse algo por mim...

John: Eu sou o primeiro?

Glória: Primeiro o quê?

John: Primeiro que você chama aqui?

Glória: Não, é claro que não.

John: Parece.

Glória: Mas não é.

John: Por quê eu? Eu sou tão comum...

Glória: Por isso mesmo. Eu gosto de caras comuns, com cara normal, como qualquer um que a gente esbarra na rua. Sem nada demais, nada de especial.

John: É, eu sou bem comum mesmo.

Glória: Foi difícil achar um essa noite. Você. A gente só vê loirinho baby-face e negão sarado nesses sites.

John: São os tipos que eles mais gostam.

Glória: Quem?

John: Os caras que contratam a gente. Gente como eu sempre sobra, somos os últimos da noite, às vezes nem rola pelo site, tem que ir pra rua mesmo. Eu estranhei sua ligação.

Glória: Todos estranham.

John: Se soubessem quem você é...

Glória: Ninguém nunca soube, só você porque viu essas merdas de revistas.

John: Você não gosta delas?

Glória: Elas estão aqui não estão? Não posso falar que não gosto... Mas na minha

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casa nem tem, só aqui mesmo.

John: Sua casa? Não é aqui?

Glória: Quando eu venho pro Brasil. Mas eu moro em Nova York. Às vezes Londres, Paris, Tóquio...

John: Legal! Sempre quis ir conhecer o mundo.

Glória: (desanimada) Eu também, eu também sempre quis. Mas cansa.

John: O mais longe que eu fui foi Fortaleza, meu pai é de lá.

Glória: Belas praias.

John: Então é isso Glória.

John dá desajeitados beijos na bochecha de Glória.

John: Foi um prazer te conhecer!

Glória: Me faz companhia.

John: Eu tenho que ir pra casa...

Glória: Só até o sol nascer.

John: Você não tá bem né?

Glória: Já deu pra perceber?

John: Vai ver é a coca que não te fez bem.

Glória: Você já cheirou açúcar?

John: Hã?

Glória: É! Açúcar... Açúcar cristal não, nem refinado. Mas açúcar de confeiteiro, sabe?

John: Do quê você tá falando agora?

Glória: Você falou e eu lembrei de quando cheirei açúcar.

John: Mas por quê?

Glória: Por quê eu lembrei?

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John: Não. Por quê você cheirou açúcar.

Glória: Eu tava na fixação, o pó acabou, eu precisava cheirar alguma coisa, tinha um potinho de açúcar no quarto do hotel. Buenos Aires. Era açúcar desse bem fininho, de confeiteiro sabe? Aí bati duas carreirinhas e cheirei.

Os dois riem.

Glória: Açúcar pra adoçar meus dias.

John: E deu onda isso?

Glória: Ah sim! O maior barato!

John: Sério?

Glória: (caçoando) O único problema foi quando eu dormi, porque eu acordei com várias formiguinhas entrando no meu nariz.

Os dois riem de novo. Glória vai até a cozinha.

Glória: Quer uma Coca? De beber...

John: Aceito.

Glória volta com duas latas de coca-cola light.

John: Pô, só tem light?

Glória: Só tomo light. Preciso me manter magra. Muito magra.

John: Mas e a pizza?

Glória: O pó compensa.

John: Boa dieta essa sua hein?

Glória coloca uma música. “Manias” com Wilson Simonal. Pega a sua coca-cola mistura com alguma bebida num copo. Fica olhando para a janela enquanto bebe.

John: É bonito né?

Glória: O quê?John: O mar... Puta vista!

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Glória: É... Faz tempo que não entro no mar.

John: Não gosta de ir à praia?

Glória: Não posso. Tenho que estar sempre branquinha.

John: Quem é? A música.

Glória: Wilson Simonal.

John: Não conheço.

Glória: Imagino... Mas gosta?

John: É diferente, som antigo. Nunca tinha ouvido falar. Mas é bom.

Glória: Dizem que ele foi um traidor da classe musical, denunciava os amigos pros militares na década de 60. Não é estranho como um homem com essa voz tão linda e sensível possa ter sido um filho da puta traidor dos amigos? Nada provado...

Tempo.

John: (bocejando) Essa música me dá sono.

Quebra do clima. Glória tira a música.

John: Na verdade tá meio tarde, né?

Glória: E você tem hora pra dormir?

John: Claro, hoje em dia não passo das quatro de jeito nenhum.

Glória: Já passou...

John: Hoje.

Glória: Eu tenho uma merda de insônia, sabe? Quando consigo dormir já passam das cinco, seis... Eu me encho de Dormonid... Dois dedos de Black Label e um comprimido, toda noite. Nos dias mais tranqüilos tomo uma meiota só. Mas acho que o remédio já perdeu o efeito em mim. E hoje... Ainda tô com jet leg da viagem.

John: Quando você chegou?

Glória: Dois dias.

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John: Pra quê você toma tanto remédio?

Glória: Porque não consigo dormir. E o que eu queria era poder me manter adormecida.

John: Eu só não consigo dormir quando tenho alguma preocupação séria, contas atrasadas...

Glória ri.

John: Você deve ganhar muito dinheiro não é?

Glória: É...

John: Rica?

Glória: No Brasil sim.

John: Quanto dá pra tirar desfilando?

Glória: Tá interessado?

John desfila na frente dela, com certa seriedade.

John: Você acha que eu levo jeito? Tem que fazer cara de mau não é? Antipático...

Glória ri, John também.

John: Por quê vocês não sorriem?

Glória: Porque não tem motivo.

John: Lá na agência, do site, tem uns caras que são modelos também. Desfilam e

tudo. Bonitão eles, você tinha que ver.

Glória: Posso imaginar, se tem cara de modelos devem ser uns sem-graça.

John: Os clientes e as poucas clientes não acham.

Glória: Eu convivo com tanta gente que dizem que é linda, cool, pretty... Cansei de gente perfeita, com corpo perfeito, rosto perfeito.

John: Isso é porque você faz parte disso, vê todo dia esse tipo de gente. É esse tipo de gente.

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Glória: É, a beleza é bem banalizada na minha vida.

John: Você é linda, sabia?

Glória: Meu rosto podia ser mais delicado, e eu preciso perder dois quilinhos. É o que todos dizem.

John: Se eu fosse bonito como esses caras de que falei eu não fazia programa. Sei lá... Ia viver só desfilando por aí. Mas eu não sou nada bonito.

Glória: Isso não tem nada a ver com beleza às vezes.

John: Vida de merda essa de michê, e michê fudido. Fudidaço!

Glória: Imagino.

John: Não, você não imagina. Você não faz a menor idéia do que é.

Glória: Mas você agüenta isso tranqüilamente.

John: E o que eu vou fazer? Minha vida é essa, por enquanto. Mas eu tô juntando uma grana aí... Quero morar na Região dos Lagos, sabe?

Glória ri.

John: É sério! Ter uma casinha, tocar um quiosque, ter minha família, uma vida tranqüila, essas coisas.

Glória: Esse é o seu sonho John?

John: O maior que eu posso ter.

Glória: Nós temos só os sonhos que podemos realizar, não é isso?

John: A Luana e eu estamos mesmo economizando pra isso.

Glória: Ah, você tem uma namorada?

John: Mulher.

Glória: Casado... E o que ela pensa de você, aqui.

John: “É assim mesmo”, ela pensa.

Glória: Ela não tem ciúmes?

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John: Claro. O que você acha?

Glória: Deve ser difícil pra ela...

John: A gente tá acostumado sabe? Somos osso duro há muito tempo. (Pausa) Ela... Ela também... Ela também faz programa.

Glória: Pra mulher é mais difícil fazer não é?

John: Bem... (Pausa) Ela não é mulher.

Glória: Como assim?

John: A Luana é travesti.

Glória: (rindo) Você tá de sacanagem! Você namora um traveco?

John: (sério) Travesti. Uma travesti, se fala assim no feminino.

Glória: (com certo nojo) Você é muito puto mesmo!

John: Qual o problema? Por quê você não me parece menos imunda do que a Luana. Nem um pouco.

Glória: Não me compara à...

John: Eu amo muito a minha mulher. Do jeito que você nunca vai ser amada por ninguém.

Glória: Como é que você pode falar em amor no meio dessa putaria toda? Como é que vocês podem conseguir se amar numa vida tão ordinária assim?

John: Não sei Glória... Não sei. Mas a gente se ama. Não tem explicação. Mas pra você deve ser difícil entender mesmo. Ela é a única que me compreende, que soube me amar. Um anjo na minha vida.

Glória: Anjo não tem sexo.

John: O meu anjo tem os dois!

Tempo.

Glória: Eu nunca amei assim sabe? Nunca sofri por amor, nem nada disso. Talvez eu tenha feito uns garotos do colégio sofrerem, só isso. Você tem razão John, eu não faço idéia do que pode ser isso que vocês sentem. Tão evoluídos, modernos, mas românticos. (Ri de si própria) Eu tenho muito a aprender com você não é?

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John: E quem te disse que eu tô disposto à te ensinar?

Glória: Porra! Você não precisa me tratar assim também...

John: Você me fez ficar aqui, perder minha noite, tá falando um monte de merda, me ofendeu ainda há pouco sabia? Quer que eu te trate como uma princesa?

Glória: É que é difícil entender.

John: Inveja.

Glória: Isso! Inveja! Eu tenho inveja de você John! Inveja de trepar com as bichinhas que pagam uma mixaria pela tua porra. Inveja de você e da sua “mulher” travesti! Das suas vidinhas miseráveis de merda. Do amor de vocês! Inveja do amor!

John se levanta, vai sair. Glória impede.

Glória: Não vai.

John: Tchau Glória. Glória: Desculpe, eu não quis falar isso. Eu tô confusa... O álcool...

John: Você deve estar acostumada a tratar os outros assim.

Glória: Eu...

John: Posso imaginar o jeito que você fala com as pessoas que trabalham pra você, que vivem à sua volta.

Glória: Não é isso.

John: Mas comigo não! Eu não sou teu empregado. Sou free-lancer!

Glória: É que às vezes eu falo o que eu não devia, o que eu nem penso. É foda John, é foda mesmo. Eu sei que eu magôo as pessoas, eu sei que eu não sou boa cara. É uma coisa que não sei... Eu acabo falando mesmo, e estrago tudo.

John: Ninguém deve ter saco pra te aturar não é?

Glória: Só os meus puxa-sacos.

John: Te cuida.

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John começa a sair, mas pára escutando Glória.

Glória: Você que não imagina o quê é a minha vida. Assim como eu não imagino a sua.

John: O que eu sei é que você tem tudo pra ser feliz. Não tem motivo nenhum pra ficar choramingando sua vida. Você imagina quantas menininhas não querem teu lugar?

Glória: As menininhas que querem meu lugar! Eu sei bem... Elas tem conseguido sabe? As menininhas... Eu não sou mais uma menininha. Aquela menininha gaúcha, estranha, grande, cumprida, que tiraram da casa dos pais com 13 anos e levaram pro mundo. Eu não sou mais a menininha que quando fez 15 anos invés de ganhar uma viagem pra Disney dos pais, pagou a viagem dos pais pra Disney, e dos primos. Menininha John... Que fumava maconha e usava bombinha. Eu não sou mais a menininha que todos os donos de agência queriam levar pra cama. E levaram, por pouco, por nada! Eu não sou mais a menininha que trepava com a colega que dividia o apartamento só porque não tinha tempo de procurar um cara. A menininha mais sexy do Brasil, do mundo. A menininha exótica... Mistura brasileiríssima de alemães com índios e um pitada de cucaracha. Latina caliente! John... A minha menininha já era... Agora são outras menininhas que tomam meu lugar. Que pegam meus trabalhos, que desfilam pras grifes que um dia eu fui exclusiva.

John: Ah, sem essa... Você não veio pra cá trabalhar e tudo?

Glória: Vim, porque no Brasil ainda acham que eu sou a melhor só porque moro fora daqui. Aqui acham que eu ainda faço sucesso no mundo. Eu tô sim num anúncio de página inteira numa revista de Londres, mas é campanha beneficente. E o outdoor em Tóquio é de uma grife de lingerie de quinta, made in china, mas que se chama “From Brazil”, a foto sou eu e uma mulata. Eu tenho vinte e cinco anos John, sou uma senhora já, vou sobreviver no mercado mais três ou quatros anos só... Depois já era. Uma vaga lembrança em matérias do Vogue. Tô no meu fim.

John: Mas você ainda tem dinheiro.

Glória: Tenho mesmo. Juntei uma grana que não precisava trabalhar até morrer...

John: Então?

Glória: Vou fazer o quê com essa grana toda?

John: Sei lá... Vai viajar!

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Glória: Eu já conheço o mundo inteiro cara. Ou quase... Mas eu não tenho a menor vontade de gastar meu dinheiro indo conhecer as Filipinas por exemplo.

John: Compra coisas então... Casa, carro, roupa, sei lá.

Glória: O quê eu mais faço é isso... Comprar, comprar e comprar.

John: Doa teu dinheiro, faz caridade!

Glória: Eu não sou tão idiota assim.

John: Olha... Você pode fazer muitas coisas. Sei lá, vira atriz! Todo mundo vira atriz não é?

Glória: Eu não tenho o menor talento, e sei bem disso. Nem cara de pau suficiente pra mesmo assim tentar.

John: Então, pode abrir um negócio...

Glória: Só pra passar o tempo né?

John: Então não faz nada, fica empurrando com a barriga até morrer.

Glória: Pra você isso parece ótimo.

John: Quem dera eu não precisasse trabalhar Glória. Já tinha saído daqui, dessa cidade. Pegava a Luana e zarpava daqui, pra bem longe. Sei lá: Araruama! Ia só namorar e ver o tempo passar.

Glória: Vidão!

John: Você já teve sua vida agitada, tá na hora de querer coisas tranqüilas, não?

Glória: Tranqüilidade é algo que eu nunca tive.

John: Compra tranqüilidade Glória. Compra! Tudo se pode comprar.

Glória: Até amor?

John: Até um cara.

Glória: Por quanto tempo?

John: Até quando seu dinheiro durar. (Pausa) Ou a paciência dele.

Glória: Você tá tendo comigo até agora...

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John: Eu tô precisando de grana, só isso.

Glória: Imagino. Como você começou com isso John? Por quê?

John: Não importa muito como eu entrei nessa vida. Só que eu tô nela, sabe? Eu tento não pensar no passado, nem em todas as merdas que me trouxeram até aqui. Mas tem umas histórias muito boas, faz tempo que tô nessa. Teve um cara que se apaixonou por mim, me caçou e pegou no meu pé até eu uma porrada certeira nele pra me deixar em paz. Porra, ele era a cara do meu pai! E teve uma vez, uma única vez, que eu me apaixonei por uma cliente. Eu ainda não conhecia a Luana.

Glória: Mas onde se ganha o pão...

John: Comer a carne, eu sempre comi. Mas aquela mulher, ela tinha, sei lá, quarenta, me sacaneou muito Glória. Adorava trepar comigo e não ter que pagar. Mas nunca sequer passou pela cabeça daquela puta andar de mão dada comigo, me beijar antes de dormir, nada dessas porras que a gente precisa também. Ela dizia que jamais ia namorar um michê, que nunca ia me apresentar pras amigas dela.

Glória: O quê você fez John?

John: Chorei. (Pausa) O quê qualquer um faz numa situação dessas não é?

Glória: O quê a gente faz não é?

John: Dois meses depois um colega de trabalho me apresentou a Luana, ela trabalhava num parque perto do apartamento dele, e eles tomavam café da manhã juntos quando ele voltava pra casa. Não é sensacional isso?! Eles tomavam café, contavam como tinha sido a noite, riam, davam dois beijinhos na bochecha e ela ia pra casa dela. Um dia fui tomar café com eles... Depois nunca mais o meu colega teve a companhia dela.

Glória: (irônica) Linda história de amor!

John: Amor que não é ridículo não é amor.

Glória: Quase não dá pra acreditar.

John: Eu sei.

Glória: A gente idealiza tanto esse amor, não é? Eu acho que por isso nunca consigo me relacionar com ninguém, porque sei que não vai ser como devia ser, ou como eu idealizei que seria.

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John: Pensa menos Glória... Só isso.

Glória passa a mão pelo rosto de John que tira delicadamente a mão dela.

Glória: Uma vez eu escorreguei e caí feio na passarela. Levantei e continuei a andar. Segui em frente. Depois eu chorei de dor sozinha.

John: Já tentou procurar alguém nesses sites de relacionamento? Deve funcionar melhor pra você do que site de acompanhantes.

Glória: Os anjos caídos agarram as virgens no meio do feno enquanto a lua os devora.

John: Quê isso?

Glória: Li em algum lugar.

John: Eu não leio, tenho mais coisa pra fazer.

Glória: Você é lindo.

Glória coloca uma música. “Chance (Atmosphere)” do Joy Division (versão ‘pennine sound studios’). Começa a tirar sua roupa. Fica completamente nua. E dança com John.Ela tem o olhar perdido, choraria se conseguisse, mas não tem lágrimas. John começa a beijá-la intensamente. Black-out.

Glória: O que você acha de vir nas próximas noites? Eu fico mais quatro dias. Você pode ser meu acompanhante por esse tempo? Vem amanhã e depois, e depois...

John: Não sei se é bom.

Glória: Só esses dias...

John: Ilusão.

Glória: Eu vou pagar bem.

John: A Luana não gosta de dormir sozinha por muitos dias seguidos.

Glória: Eu também não.

John: Por quê você não procura outro?

Glória: É...

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John: Ou não procura, só vive.

Glória: Posso te dar um abraço?

John: Você já fez coisas bem piores comigo.

Glória sorri e o abraça. Desfaz.

Glória: Eu sei que tô fantasiando. Que isso aqui não é um filme de amor. Você é só um puto, um cara qualquer, que deve estar me achando um porre. Mas eu preciso fingir que existe uma chance, que no fim de tudo, no meio de toda droga existe uma chance de final feliz pra mim. Eu quero pensar que essa não vai ser uma noite qualquer, sabe? Por mais difícil que seja, eu preciso tanto ter fé, algum dia. Ilusão de ter ilusão.

Tempo.

John: Tá na minha hora.

Glória: Você tem mesmo que ir?

John: O sol já tá nascendo!

John beija Glória na boca, delicadamente. Ele pega uma das revistas.

John: Posso levar? Lembrança.

Glória: Você volta amanhã?

John: Não.

John sai. Glória fica sozinha, esmaecendo-se. “All The Lonely People” dos Beatles. Black-out.

Fim.

Escrito no início do inverno de 2007 para Victor e Raquel.

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