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7743 ATIVISMO JUDICIAL E CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: REFLEXOS E TENDÊNCIAS DO INSTITUTO DO CONCURSO PÚBLICO * JUDICIAL ACTIVISM AND PUBLIC ADMINISTRATION CONTROL: A STUDY OF THE PUBLIC COMPETITION FOR ACESS TO PUBLIC JOBS Aline Sueli de Salles Santos RESUMO A Constituição de 1988 trouxe para seu texto a exigência de concursos públicos como regra para provimento dos cargos efetivos e empregos públicos (art. 37, II a IV), no contexto da definição dos traços fundamentais do regime jurídico administrativo no Estado Democrático de Direito. Isto, junto com os direitos e garantias fundamentais amplamente presentes no texto constitucional, levou a uma judicialização da vida brasileira e a uma paulatina postura ativista do Judiciário, refletindo no controle judicial da Administração Pública, que, ao que pese a quase total ausência de regulamentação legal, vem mudando profundamente o instituto dos concursos públicos e os direitos que dele se originam. PALAVRAS-CHAVES: CONCURSOS PÚBLICOS; ATIVISMO JUDICIAL; CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ABSTRACT The Brazilian Republic Constitution of 1988 defines the rule the process of competition for effective public employment (Article 37, II to IV) as a fundamental features of the public administration in a democratic state. This fact, together with the wide presence of public rights and fundamental guarantees in the Constitutional text led to a judicialization of the Brazilian public life and to a progressive activist posture of the judiciary on the rights interpretation, reflecting on an increasing judicial control of the Public Administration Acts. As consequence of both Constitutional regulation and judicial control, and besides the absence of textual regulation to the Constitutional dispositions on public competitions, the Brazilian legal practice about it is deeply changing the access to public jobs and their connected rights. KEYWORDS: PUBLIC COMPETITION, PUBLIC EMPLOYMENT, JUDICIAL ACTIVISM, PUBLIC ADMINISTRATION CONTROL. * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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ATIVISMO JUDICIAL E CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: REFLEXOS E TENDÊNCIAS DO INSTITUTO DO CONCURSO PÚBLICO*

JUDICIAL ACTIVISM AND PUBLIC ADMINISTRATION CONTROL: A STUDY OF THE PUBLIC COMPETITION FOR ACESS TO PUBLIC JOBS

Aline Sueli de Salles Santos

RESUMO

A Constituição de 1988 trouxe para seu texto a exigência de concursos públicos como regra para provimento dos cargos efetivos e empregos públicos (art. 37, II a IV), no contexto da definição dos traços fundamentais do regime jurídico administrativo no Estado Democrático de Direito. Isto, junto com os direitos e garantias fundamentais amplamente presentes no texto constitucional, levou a uma judicialização da vida brasileira e a uma paulatina postura ativista do Judiciário, refletindo no controle judicial da Administração Pública, que, ao que pese a quase total ausência de regulamentação legal, vem mudando profundamente o instituto dos concursos públicos e os direitos que dele se originam.

PALAVRAS-CHAVES: CONCURSOS PÚBLICOS; ATIVISMO JUDICIAL; CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

ABSTRACT

The Brazilian Republic Constitution of 1988 defines the rule the process of competition for effective public employment (Article 37, II to IV) as a fundamental features of the public administration in a democratic state. This fact, together with the wide presence of public rights and fundamental guarantees in the Constitutional text led to a judicialization of the Brazilian public life and to a progressive activist posture of the judiciary on the rights interpretation, reflecting on an increasing judicial control of the Public Administration Acts. As consequence of both Constitutional regulation and judicial control, and besides the absence of textual regulation to the Constitutional dispositions on public competitions, the Brazilian legal practice about it is deeply changing the access to public jobs and their connected rights.

KEYWORDS: PUBLIC COMPETITION, PUBLIC EMPLOYMENT, JUDICIAL ACTIVISM, PUBLIC ADMINISTRATION CONTROL.

* Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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INTRODUÇÃO

“Venha para o XxxxCursos, seja o mais competitivo e tenha o governo como patrão.” Esta frase de publicidade é dita inúmeras vezes por dia em rádio de grande audiência no Distrito Federal. E não podia ser diferente. Pelo olhar dos “concurseiros”, Brasília é a Meca dos concursos públicos.

Em Brasília ou fora dela, para aqueles que atuam na docência em Direito, a reverência aos concursos não é novidade (e muito menos deve ser para os alunos!).[1] Fora da área jurídica, o apelo também é significativo. Os anos do governo Lula, na contramão da reforma gerencial iniciada por seu antecessor, vem se caracterizando por uma ampliação do número de servidores, configurando-se como a “Era de ouro” dos concursos públicos.[2] A Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos (ANPAC) estima que, em 2005, o mercado ligado à preparação para concursos públicos (cursinhos, materiais didáticos, publicações etc.) movimentou mais de R$ 100 milhões e envolvia cerca de 500 mil pessoas interessadas em prestar concursos. Prevê, até 2015, a abertura de 250 mil vagas na esfera federal.[3]

Curiosamente, apesar do apelo social dos concursos (não só na comunidade jurídica), a legislação e a doutrina não se preocuparam muito com o tema, deixando a cargo do Judiciário o desenvolvimento de um marco regulador, por meio da jurisprudência, provocada a partir de inúmeras controvérsias entre a Administração Pública e os candidatos.

A análise do panorama jurídico-político nacional, envolvendo a judicialização da política e o ativismo judicial, se dá no contexto em que se desenrola o paradigma atual de Estado Democrático de Direito e impacta no controle judicial da administração pública e seus atos. Um dos institutos que mais despertam este controle é o dos concursos públicos, pelo interesse social que desperta e escassez de maior regulamentação. Busca-se, então, apresentar o instituto do concurso público na história e no paradigma atual brasileiro e refletir sobre as decisões e tendências que vêm se desenvolvendo.

1 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E ATIVISMO JUDICIAL: UMA REALIDADE BRASILEIRA

Se o Poder Judiciário foi considerado no seu nascimento nos Estados de Direito um Poder que se qualificava como neutro, nulo, técnico, assim se manteve durante muito tempo. Mas, depois de um par de séculos (e vários ciclos políticos) em que o poder estatal se concentrou ora no Legislativo, ora no Executivo, o Judiciário passa a ocupar um lugar de proeminência no Estado e na sociedade brasileira.

Neste meio século que nos distancia do último conflito mundial, os três Poderes da conceituação clássica de Montesquieu se têm sucedido, sintomaticamente, na preferência da bibliografia e da opinião pública: à prevalência do tema do Executivo, instância da qual dependia a reconstrução de um mundo arrasado pela guerra, e que

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trouxe centralidade aos estudos sobre a burocracia, as elites políticas e a máquina governamental, seguiu-se a do Legislativo, quando uma sociedade civil transformada pelas novas condições de democracia política impôs a agenda de questões que diziam respeito à sua representação, para se inclinar, agora, para o chamado Terceiro Poder e a questão substantiva nele contida ??Justiça. (VIANNA, 1996, p. 1)

Esta correlação de forças, no entanto, é de fundo mais político que jurídico, de modo que a Constituição de 1988 (CF/1988) traz no seu art. 2º que os três Poderes são independentes e harmônicos entre si. Mas uma leitura mais atenta e sistemática do texto constitucional dará a dimensão das imensas responsabilidades (possibilidades?) que passam a corresponder ao Judiciário, especialmente no que se refere à garantia dos direitos fundamentais, agora muito mais numerosos e complexos.

A expansão da cobertura constitucional, com o reconhecimento de direitos sociais e difusos, além dos direitos civis e políticos, atrelada à previsão de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV; CF/1988), é fácil explica o porquê da questão do acesso à Justiça ser essencial neste momento do Estado de Direito.

Percebe-se, então, que a Constituição de 1988 e seus desdobramentos vão se preocupar com a questão do acesso à justiça, fazendo com que as três ondas propostas por Cappelletti e Garth (1993) viessem banhar o panorama jurídico e social nacional, como:

- assistência judiciária para os pobres: a criação e estruturação das Defensorias Públicas e a ampliação significativa dos serviços de assistência judiciária (com a exigência de prática jurídica real nos cursos de Direito); indiretamente, a criação de tribunais especiais (de pequenas causas cíveis, criminais e federais);

- representação dos interesses difusos: o redimensionamento do papel do Ministério Público e a criação e ampliação de instrumentos processuais para a tutela coletiva de direitos e para a tutela de interesses coletivos;[4]

- um novo enfoque, mais amplo, de acesso à justiça para além de acesso ao Judiciário: projetos de Justiça Itinerante, mutirões judiciais, simplificação da linguagem jurídica (“juridiquês”), incentivo a formas alternativas de resolução de conflitos, entre outros[5].

Há, então, um conjunto de subsídios que possibilitam maior efetividade dos direitos fundamentais e reforçam o poder-dever do Judiciário de garanti-los, controlando, inclusive, a atuação omissiva ou comissiva dos Poderes Executivo e Legislativo.

Soma-se a todo este arcabouço jurídico e institucional a “demanda reprimida” por direitos em um país pós-ditadura militar, e não podia ser diferente o papel de protagonista que o Judiciário e o STF assumiram após a Constituição de 1988, como, ademais, vem acontecendo em grande parte do mundo ocidental.

Atualmente este fenômeno é conhecido como “judicialização” da vida, ou da política e das relações sociais, significando esta ampliação do raio de (atu)ação do Judiciário.

Vallinder e Tate (1995, apud CARVALHO, 2004, p. 117) chamam a atenção para o fato de que uma das condições necessárias para a expansão do poder judicial é o ambiente

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democrático, sendo incompatível a judicialização com regimes autoritários. Na mesma linha, Giselle Cittadino defende a judicialização como um reforço na lógica democrática.

É importante ressaltar, em primeiro lugar, que esse processo de “judicialização da política” – por mais distintas que sejam as relações entre justiça e política nas democracias contemporâneas – é inseparável da decadência do constitucionalismo liberal, de marca positivista, exclusivamente voltado para a defesa de um sistema fechado de garantias da vida privada. O crescente processo de “juridificação” das diversas esferas da vida social só é compatível com uma filosofia constitucional comprometida com o ideal da igualdade-dignidade humanas e com a participação político-jurídica da comunidade. Em segundo lugar, ainda que o processo de judicialização da política possa evocar um vínculo entre “força do direito” e “fim da política” – ou seja, a idéia de que as democracias marcadas pelas paixões políticas estariam sendo substituídas por democracias mais jurídicas, mais reguladoras –, é preciso não esquecer que a crescente busca, no âmbito dos tribunais, pela concretização de direitos individuais e/ou coletivos também representa uma forma de participação no processo político. Finalmente, é importante considerar que se a independência institucional do Poder Judiciário tem como contrapartida a sua passividade – o juiz só se manifesta mediante provocação –, os tribunais estão mais abertos ao cidadão que as demais instituições políticas e não podem deixar de dar alguma resposta às demandas que lhe são apresentadas. (2004, p. 106)

Para Luís Roberto Barroso,

A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, freqüentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. [...] Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. (2009, p. 6)

O Laboratório de Análise Jurisprudencial do STF traz uma sistematização feita por Keenan Kmiec dos usos atuais do termo “ativismo judicial” em sede doutrinária e jurisdicional:

a) prática dedicada a desafiar atos de constitucionalidade defensável emanados em outros poderes; b) estratégia de não-aplicação dos precedentes; c) conduta que permite aos juízes legislar da “sala de sessões”; d) afastamento dos cânones metodológicos de interpretação; e) julgamento para alcançar resultado pré-determinado. (apud VALLE, 2009, p. 21)

Mauro Cappelletti já percebia este movimento do Judiciário em meados da década de 1980, quando perguntava “Juízes legisladores?”, afirmando que “embora a interpretação judiciária seja e tenha sido sempre e inevitavelmente em alguma medida criativa do direito, é um dado de fato que a maior intensificação da criatividade da função jurisdicional constitui um fenômeno do nosso século” (1993, p. 31)

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Inequivocamente uma das principais características e conseqüências da judicialização da política e do ativismo é a intromissão do Judiciário em espaços tradicionalmente reservados ao Legislativo e Executivo, de tal forma que não são poucas os críticos e as críticas quanto a esta postura judicial. Lênio Streck, Vicente Barreto e Rafael Oliveira (2009) também tecem críticas contundentes sobre a atuação da Corte Constitucional nacional, acusando-a de permitir a realização de um “terceiro turno constituinte”. Para Oscar Vieira Vilhena, o Brasil caminha para uma “Supremocracia” (2008), apontando a autoridade do STF em relação às demais instâncias do Judiciário e em detrimento dos Poderes.

Na Alemanha, Ingeborg Maus, em um enfoque mais psicanalítico, vê na expansão da Corte Constitucional “a nova imago paterna [que] afirma de fato os princípios de uma ‘sociedade órfã’” (2000, p. 201). E nos EUA, Ran Hirschl (2004, apud VIEIRA, 2008, p. 57) aponta a expansão do sistema de mercado como motor do fortalecimento de uma “Juristocracia”.

Ao que pese as críticas, sem dúvida pertinentes, não se pode deixar de constatar que o perigo da ingerência de um Poder sobre os demais, o déficit de legitimação democrática, a ausência de controle social e a imprevisibilidade das decisões não são críticas pertinentes apenas ao Poder Judiciário. É certo que é o Poder Judiciário que ganha proeminência no panorama jurídico e social contemporâneo e, justamente por isso, merece um acompanhamento próximo e um olhar atento de todos, mas não se pode deixar de constatar a crise (funcional, de legitimidade, de efetividade) por que passam as instituições majoritárias, o Legislativo e o Executivo. A sociedade não pode ficar a mercê da conveniência e oportunidade destes Poderes em questões que afetam sua vida e seus direitos e interesses. É assim que “alguns tribunais, diante da inércia dos políticos e da impossibilidade de negarem uma decisão, são obrigados a pôr um fim em conflitos que deveriam ser resolvidos no âmbito político.” (CARVALHO, 2004, p.120)

Como pano de fundo para este cenário, as teorias neoconstitucionalistas e pós-positivistas[6] são elementos importantes na construção do paradigma emergente do Estado Democrático de Direito e seu compromisso com os direitos fundamentais, que impactam diretamente no controle judicial da Administração Pública.

2 CONTROLE JUDICIAL DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

No decorrer do séc. XX, o Estado de Direito passou por diversas e profundas modificações, partindo de um paradigma liberal, com uma atuação absenteísta por parte da Administração Pública, passando para o Estado de Bem-estar Social, exigindo uma postura prestacional e interventora, até chegarmos ao paradigma emergente do Estado Democrático do Direito, marcado pela entrada de uma fase pós-positivista.

Estes três grandes paradigmas de Estado

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tendencialmente se sucedem, em um processo de superação e subsunção (aufheben), muito embora aspectos relevantes dos paradigmas anteriores, inclusive o da antigüidade, ainda possam encontrar, no nível fático, curso dentre nós, a condicionar leituras inadequadas dos textos constitucionais e legais. (CARVALHO NETO, 2000).

Esta é a riqueza da noção de paradigma, originalmente cunhado por Thomaz Kuhn, na forma em que é utilizado por Menelick de Carvalho Neto (2000). Se por um lado o paradigma apresenta a possibilidade de se compreender o modelo de desenvolvimento (científico, para Kuhn, do Estado, para Carvalho Neto) e sua lógica por meio de seus aspectos centrais, resumidos em grandes esquemas gerais, e suas rupturas; de outro, reconhece que padece de simplificações e que, por isto, só é válido se apresenta os pressupostos contextuais sobre os quais se assenta.

Gustavo Binenbojm também adota esta abordagem analisar a crise por que passa o Direito Administrativo. Ele lembra que

há momentos específicos em que dado ao acúmulo de anomalias não solucionadas dentro do paradigma, surgem teorias subversivas do próprio paradigma, que põem em xeque a sua legitimidade e propõem novas formas de conceber o objeto e a própria metodologia de trabalho da ciência jurídica. O que tradicionalmente era aceito como premissa passa ao centro do debate científico, travando-se uma batalha teórica ente desafiantes e desafiados. Nestas circunstâncias [...] trata-se de um momento de crise de paradigma. (2009, p. 26-28)

Tendo como fundamentos de legitimidade e elementos estruturantes do Estado Democrático de Direito as idéias de democracia e direitos fundamentais, ele (BINENBOJM, 2009, p. 23-45) identifica 4 antigos paradigmas e propõe, em substituição, outros novos para a disciplina.

- Dever de proporcionalidade (como forma de cedência recíprocas entre interesses públicos e privados legítimos), em detrimento da supremacia do interesse público sobre o interesse privado;

- Princípio da juridicidade administrativa (constitucionalização do Direito Administrativo), e não mais apenas a sujeição à legalidade administrativa como vinculação positiva à lei (submissão total do agir Administrativo);

- Teoria dos graus de vinculação à juridicidade (em desfavor da dicotomia ato vinculado versus ato discricionário), em desfavor da intangibilidade do mérito administrativo (incontrolabilidade das escolhas discricionárias da Administração);

- Administração Pública policêntrica (com o surgimento de agências independentes), sobrepondo-se a um Poder Executivo unitário (relações de subordinação hierárquica).

Esta mudança de paradigmas foi fortemente impactada, se não impulsionada, pela migração dos contornos gerais da Administração Pública e do Direito Administrativo para a Constituição de 1988, dedicando-lhe todo o Capítulo VII (art. 37-43), além de vários outros dispersos pelo texto (como os que tratam de concessões e permissões de serviço público – art. 175; bens públicos – art. 20/29; ordenamento urbano – art. 182,

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entre muitos outros), possibilitando, nas palavras de Alexandre de Moraes (2002), uma Teoria Geral do Direito Constitucional Administrativo.

Tendo como eixo central o art. 37, esta Constituição inaugura a apresentação expressa de alguns princípios que vinculam toda a Administração Pública. “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:” e segue uma longa lista de incisos.

O mesmo texto que impingiu à Administração a observância destes princípios (e outros, de forma implícita, como é o caso da razoabilidade e proporcionalidade, que decorrem do devido processo legal[7], previsto no art. 5º, LIV), manteve ao Judiciário o poder-dever de zelar pela proteção dos indivíduos e da sociedade quando dispôs “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV).

Há, então, um impacto na forma como o controle da Administração Pública pelo Judiciário vem operando no contexto do Estado Democrático de Direito, ampliando suas fronteiras, borradas pela crise de paradigmas e pelo seu papel nesta nova ordem. “Apesar da assimetria existente entre os poderes (LIJPHART, 1989), o Judiciário vem ocupando um lugar estratégico no controle dos demais, principalmente do Executivo.” (CARVALHO, 2004, p.115)

Apenas como exemplos deste momento jurídico-político de controle judicial da Administração Pública no Brasil, pode se apontar inúmeros casos de obrigação de implantar (ou ampliar) políticas públicas ou oferecer prestações específicas (STF, SL/235; AgRegRE/393175; STA/268), que acabou por provocar no STF a realização de uma audiência pública para a área da saúde; a vedação de nepotismo (Súmula Vinculante nº 13), a demarcação das terras indígenas Raposa-Serra do Sol (STF, Pet./3388).

Os certames públicos, em que a Administração busca selecionar parceiros para dela fazerem parte como servidores públicos é tema importante e amplamente discutido em âmbito judicial, haja vista os princípios constitucionais envolvidos, o interesse da sociedade nas relações decorrentes das competições realizadas e os recursos públicos envolvidos. São estas disputas, especialmente as chamadas de concursos públicos, que vai se analisar daqui em diante

3 SELEÇÃO DE PESSOAL PARA O ESTADO E PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A submissão a concurso público (de provas ou de provas e títulos) é o modo pelo qual o Estado brasileiro contemporâneo optou para selecionar, em regra, seus futuros

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servidores públicos. Esta não é, no entanto, a única fórmula conhecida para recrutar as pessoas (físicas) que prestarão serviços para o Estado, denominadas agentes públicos.

José Cretella Jr. (2006, p. 352) aponta vários meios que foram utilizados pelos povos ao longo da história: compra e venda, herança, arrendamento, sorteio, nomeação, eleição e concurso. Destes, os três primeiros não são mais formas legítimas de investidura na função pública, ficando relegados a um modelo de Estado patrimonial, com sua confusão típica entre o patrimônio privado (da autoridade) e público (do povo, da sociedade).

Os demais, no entanto, continuam tendo sua utilidade, em maior ou menor grau, para os diferentes grupos de agentes públicos. O sorteio pauta-se nas “leis do acaso”, e pode ser puro e simples ou condicionado, quando se dá entre pessoas que apresentem determinadas condições. Ainda é utilizado como critério final de desempate em concursos públicos e demais certames administrativos.

A nomeação refere-se à designação para que determinada pessoa ocupe cargo público feita por um único órgão ou por meio da manifestação de mais de mais de um órgão (ato complexo).

A escolha pelo sufrágio (direto ou indireto) é o que caracteriza a eleição, enquanto que o concurso pode ser entendido como

a série complexa de procedimentos para apurar as aptidões pessoais apresentadas por um ou vários candidatos que se empenham na obtenção de uma ou mais vagas e que submetem voluntariamente seus trabalhos e atividades a julgamento de comissão examinadora. (CRETELLA JR., 2006, p. 356)

Importante ressaltar que esta definição proposta por Crettela Jr. é mais abrangente e atemporal, não incorporando elementos específicos compatíveis pelo contexto atual do Estado Democrático de Direito brasileiro, como se verá abaixo.

Vê-se que o concurso rege-se pela idéia de meritocracia, entendida como “um sistema que privilegie o mérito e as pessoas que efetivamente trabalham.” Neste sentido, “a questão da meritocracia e da sua avaliação é polêmica para toda a teoria da administração moderna e envolve uma dimensão política não só no Brasil como em outros países também.” (BARBOSA, 1996, p. 58-59) A existência de um sistema meritocrático, ao mesmo tempo em que se constitui em uma forma isônomica de valorização do bom trabalhador, também busca captar e manter os melhores quadros para a entidade que ele se vincula(rá).[8]

O uso destes métodos para seleção varia conforme a classe de agente público que se deseja recrutar. Eles podem ser classificados em quatro tipos, de acordo com Maria Sylvia di Pietro (2003): agentes políticos, particulares em colaboração com a Administração Pública, servidores públicos e militares.

Os primeiros são aqueles que desempenham função política, no sentido de formar a vontade superior do Estado. São tradicionalmente os membros do Poder Executivo e Legislativo, e, mais recentemente, também os membros do Poder Judiciário e até do Ministério Público. Estes agentes são investidos por meio de eleições (chefe do

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Executivo e membros do Legislativo), nomeações (ministros e secretários no Executivo, membros dos Tribunais e chefes dos Ministérios Públicos) e concursos. Ressalte-se que no que se refere ao vínculo laboral dos membros do Judiciário e do Ministério Público, eles se equiparam a servidores públicos, ainda que com estatutos próprios.

O segundo tipo indica aqueles que prestam serviços ao Estado, sem vínculo empregatício, com ou sem remuneração, podendo fazê-lo sob títulos diversos, como delegação do Poder Público; requisição, nomeação e designação; e gestão de negócios. Aqui o vínculo é, em geral, transitório e não obedecendo, necessariamente, aos meios tradicionais de seleção (ainda que o sorteio seja uma realidade para convocar jurados e mesários, por exemplo).

E os militares, ao que pese possuírem regimes estatutários próprios, calcados nos princípios da hierarquia e da disciplina característicos destas corporações, não apresentam, conceitualmente, diferenças significativas com a categoria dos servidores públicos.

Os servidores públicos são “as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos” (DI PIETRO, 2003). Englobam servidores estatutários, os empregados públicos e os servidores temporários.

É justamente para a seleção dos servidores públicos que o concurso se presta com maior intensidade, no contexto de um Estado burocrático, que busca assegurar a isonomia e a impessoalidade entre os cidadãos, e até mesmo de um Estado gerencial, com vistas ao alcance da eficiência. É por isto que os concursos públicos alcançaram desde muito status constitucional no ordenamento brasileiro e são, hoje, regra para o ingresso no serviço público. Mas nem sempre foi assim, como se verá no percurso histórico-constitucional.

4 OS CONCURSOS PÚBLICOS NA HISTÓRIA DO DIREITO BRASILEIRO

O instituto dos concursos não é novo no panorama jurídico-administrativo brasileiro. Mesmo sob domínio português, na Colônia, sob a égide das Ordenações reais, já é possível apontar um embrião: a “leitura dos bacharéis”, pelos quais a Casa de Suplicação, órgão superior com funções judiciais, administrativas e políticas do Estado Português absolutista, controlava o acesso à Magistratura, por meio de uma habilitação que envolvia não só conhecimentos técnico-jurídicos, mas também relativos à origem e história familiar do candidato. Ao que pese o caráter desigual que compunha parte da “leitura dos bacharéis”, esta forma de seleção contrastava com os outros métodos de recrutamento naquele momento, e insinuava, para alguns setores, o início de “uma administração profissional, com especialização, assalariamento e definição estatutária

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de funções. Um desses segmentos, já ‘burocráticos’ é a carreira judicial.” (WEHLING; WEHLING, 2004, p. 248-249)

A independência do Brasil e a criação de um Estado de Direito vai se apoiar no princípio da igualdade de todos perante a lei[9], o que pode ser observado, sob o ângulo do funcionalismo público, no disposto da Constituição de 1824: “todo o cidadão pode ser admitido aos Cargos Públicos Civis, Políticos, ou Militares, sem outra diferença, que não seja dos seus talentos, e virtudes.” (do art. 179, XIV) Este mandamento, sob variadas redações, vai aparecer em todas as constituições, até a atual.

Isto não levou, no entanto, a que meios de seleção sob esta ótica fosse uma regra geral no Estado brasileiro. Suas primeiras constituições deixavam a critério do chefe do Poder Executivo o exercício das suas competências de “nomear magistrados” e “prover os demais empregos civis e políticos” (art. 102, III e IV), conforme a Constituição Imperial, de 1824; e “prover os cargos civis e militares de caráter federal, salvas as restrições expressas nesta Constituição” (art. 48, 5º), nos dizeres da 1ª Constituição Republicana, de 1891. Percebe-se que permanece aí um forte traço patrimonialista[10].

Mais próximo da atual configuração dos concursos, o Direito Constitucional brasileiro conhece expressa previsão desde o governo Vargas e o início de um estado burocrático no Brasil[11], onde se podia ler na Constituição de 1934:

Art. 170 O Poder Legislativo votará o Estatuto dos Funcionários Públicos, obedecendo às seguintes normas, desde já em vigor:

[...]

2º a primeira investidura nos postos de carreira das repartições administrativas, e nos demais que a lei determinar, efetuar-se-á depois de exame de sanidade e concurso de provas ou títulos; (grifos nossos)

Note-se que a extensão da exigência de concursos públicos é bastante restrita, já que ela só vale para a primeira investidura (sendo possível provimentos derivados, sem que se desse novo concurso); dos cargos de carreira (e não para os cargos isolados); com a avaliação podendo ser feita exclusivamente na modalidade de títulos (sem a realização de provas).

É possível encontrá-los ainda em outras passagens, como a garantia de estabilidade depois de 2 anos aos funcionários nomeados em função de concursos (10 anos para a estabilidade dos demais) (art. 169), a exigência de concursos para os cargos do magistério oficial (art. 159), de juízes estaduais (art. 104, a) e de membros do Ministério Público Federal (art. 95, § 3º), daí decorrendo garantias específicas para cada um dos cargos.

Depois de 1934, a previsão da exigência de concurso público para o provimento de cargos públicos povoam todos os textos constitucionais nacionais, quer tenham sido promulgados ou outorgados.

Apesar da entrada para um regime ditatorial (Estado Novo de Vargas), não se encontrará mudança relevante na previsão geral de concursos na Constituição de 1937

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(manutenção de concursos de provas ou títulos, para primeira investidura, em cargos de carreira, com estabilidade após 2 anos – art. 56, “b”, “c”; e exclusão da exigência expressa de concurso para o Ministério Público Federal e magistério oficial).

A redemocratização veio com outra Constituição, em 1946, onde, em linhas gerais, repetiu-se o que estava previsto em 1934, indicando que eles não são apenas para a primeira investidura em cargos de carreira, mas também para todos que a lei determinar (art. 186). Mantém a estabilidade em dois anos, volta a exigência para categorias específicas, como as que encontramos na primeira Constituição da Era Vargas (Magistratura estadual, com participação da OAB - art. 124, III; Ministério Público Federal – art. 127; professores catedráticos – art. 168, VI) e dispõe sobre a situação dos funcionários interinos (art. 23).

Na Constituição de 1967 já se pode perceber uma maior abrangência e rigidez na exigência de concursos, quando se lê que “a nomeação para cargo público exige aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos.” (art. 95, § 1º, grifos nossos). Ou seja, já não se trata mais apenas de primeira investidura, nem se cinge a cargos de carreiras, valendo para assumir qualquer cargo, excluindo os cargos em comissão (art. 95, § 2º). Também ficou vetada a realização de concursos apenas por títulos. A aquisição da estabilidade manteve o prazo de dois anos, mas vetou a efetivação e a estabilidade daqueles que não aprovassem em concurso (art. 99).

Magistratura federal e estadual, Ministério Público Federal e magistério mantêm dispositivos específicos (arts. 118; 136, I; 138, § 1º; 168, V; respectivamente).

Este texto apresenta uma curiosidade no que se refere aos concursos: ele está previsto, de forma geral, dentro da Seção VIII (Dos Funcionários Públicos) do Capítulo VII, que trata do Poder Executivo. O art. 106 estende este regime aos demais Poderes e esferas da Federação.

Com o recrudescimento do regime ditatorial civil-militar, é feita a Emenda Constitucional 1/1969, que a maior parte da doutrina constitucional nacional entende como uma nova Constituição. Além de fortes restrições aos direitos civis e políticos[12], os concursos públicos também sofreram um refluxo, voltando a serem exigidos apenas para a primeira investidura (art. 97, § 1º), não trazendo o veto de estabilidade para não-aprovados em concursos (art. 100). No que resta, segue a Constituição precedente, com exceção de uma novidade que inaugura no Direito constitucional brasileiro: o prazo máximo de validade de 4 anos, contados da homologação (art. 97, § 3º, incluído pela EC 8/1977).

É com este background que o Estado e a sociedade brasileira chegam ao processo constituinte de 1986, que resultou na Constituição de 1988 e em uma configuração da Administração Pública e do seu funcionalismo muito diferentes do que se tinha até então no panorama nacional.

5 CONCURSOS PÚBLICOS PÓS-CONSTITUIÇÃO DE 1988

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Podem-se analisar os concursos públicos no contexto do Estado brasileiro contemporâneo sob duas perspectivas: uma jurídica e outra social.

Num momento em que o mundo, inclusive o Brasil, enfrenta uma grave crise no mundo do trabalho, representada pela precarização e flexibilização das relações trabalhistas e um forte aumento do desemprego, a estabilidade oferecida aos detentores de cargo público passa a ser um grande atrativo. Além disso, tem-se os altos salários normalmente atribuídos às clássicas carreiras jurídicas e outras tantas da área técnica, administrativa ou fiscal, que, exigindo apenas a titulação de nível superior, também oferecem uma remuneração muito atraente frente aos valores praticados pela iniciativa privada. Como exemplo, o concurso em andamento para Analista Judiciário – área judiciária, do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão (TRE/MA), promovido pelo CESPE em 2009, com a exigência de bacharelado em Direito, teve uma procura de mais de 400 candidatos por vaga (para outras áreas administrativas, cuja formação superior poderia ser variada, a concorrência passou dos 850 por vaga). A remuneração inicial dos aprovados será de cerca de R$ 6600,00.

O acesso ao serviço público por meio de concursos também não exige diplomas de escolas conceituadas; experiência profissional; relações, contatos e indicações profissionais; determinadas características físicas, psicológicas e mentais, que normalmente são requisitos observados pelo mercado de trabalho e que deixa muitos grupos sociais alijados da atuação na área privada.

Não se pode afastar, também, a própria valorização atribuída pela sociedade aos concursos, vistos efetivamente como instrumentos de moralidade e isonomia, possibilitando ascensão social e inserção profissional. Ademais, a história do Brasil mostra que tradicionalmente nunca foi extirpado de fato os ranços patrimonialistas do Estado, como provam os recentes escândalos de atos secretos no Senado e a própria edição da Súmula Vinculante nº 13 e as manifestações raivosas de agentes públicos que ela provocou.

Ao que pese o enorme impacto social dos concursos, não houve a construção de um arcabouço legal que trouxesse uma regulação mais abrangente ao tema. Sob a ótica jurídica, os concursos públicos são quase órfãos, estando regrados em alguns poucos incisos na Constituição vigente dentro da Seção I, do Capítulo VII, que trata das Disposições gerais sobre a Administração Pública. Na esfera federal, os concursos receberam tratamento em dois artigos da Lei º 8112/1990, que institui o Estatuto do Servidor Civil Federal.

È verdade que recentemente alguns entes federativos vêm tentando regulamentar os concursos, como o governo federal que editou o Decreto 6944/2009, e se verá abaixo, e a Lei nº 3697/2005 do Distrito Federal, julgada inconstitucional por vício de iniciativa. Também órgãos de controle interno de carreiras, como o CNJ e o CNMP, estão regulamentando os concursos ligados à magistratura e ao Ministério Público (Resolução/CNJ nº 75/2009 e Resolução/CNMP nº 14/2006), mas o resultado ainda é bastante tímido.

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Os concursos públicos tampouco conseguiram maior sucesso junto à academia[13] e à doutrina. Estão disponíveis no mercado infindáveis materiais para concursos (didáticos e de auto-ajuda), apenas recentemente vai-se encontrar uma tímida produção sobre o assunto, especialmente na área de Direito Administrativo e voltada a uma abordagem mais pragmática[14]. Honrosas exceções são o livro “Concurso público e Constituição”, coordenado por Fabrício Motta (2005), congregando artigos de importantes administrativistas brasileiros que refletem vários aspectos do instituto além de uma coletânea da série OAB Ensino Jurídico, “Formação jurídica e inserção profissional” (2003).

Mas vejamos o que diz a Constituição de 1988:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

I - os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;

III - o prazo de validade do concurso público será de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual período;

IV - durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira;

[...]

VII - a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;

Logo, os concursos públicos devem, inequivocamente, ser realizados no âmbito de toda a Administração, direta e indireta (inclusive pessoas jurídicas de direito privado), de todos os Poderes, de todos os entes federativos, e estão sujeitos aos princípios que regem a Administração, em especial os da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput).

Ela buscou garantir, como todas as demais, a universalidade do acesso ao serviço público como agente do Estado, conforme o disposto no art. 37, I, nos limites que a lei exige para cada cargo, emprego ou função. Esta limitação está condicionada ao que dispõe o art. 7º, XXX, com respeito aos direitos dos trabalhadores (“proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil”) e o art. 39, § 3º (“Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII,

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XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.”)

A extensão do direito de acesso a estrangeiros (ainda que não universal) é uma inovação desta Constituição e foi fruto da Reforma Administrativa ocorrida na década de 1990, que culminou na edição da Emenda Constitucional nº 19/1998[15]. Este acesso, no entanto, é condicionado à aprovação em concurso público, nos moldes ali previstos.

Os concursos são exigidos para que o cidadão seja investido na função pública, quer sejam cargos públicos efetivos (cujas relações de trabalho serão estatutárias e com previsão de estabilidade, após 3 anos de efetivo exercício – art. 41), quer sejam de empregos públicos (cujo vínculo é celetista). A partir deste dispositivo, ficou proibido que um servidor passe a um cargo de carreira diferente daquela que ele ingressou por concurso (por meio de ascensão ou transferência, por exemplo).

A Constituição permite a contratação sem concurso para casos específicos, quais sejam:

- cargos em comissão e funções de confiança, ambos declarados em lei de livre nomeação e exoneração, destinados apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento. As funções só são acessíveis a servidores efetivos e os cargos devem ser preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei (que ainda não existe) (art. 37, II c/c V);

- contratação por tempo de serviço para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, IX), nos moldes da Lei nº 8745/1993, que exige que o recrutamento seja feito, em regra, “mediante processo seletivo simplificado, sujeito a ampla divulgação, inclusive através do Diário Oficial da União” (art. 3º);

- membros dos STF (art. 101), do STJ (art. 104), dos Tribunais Regionais Federais, dos Estados, do Distrito Federal e Territórios (art. 94), dos Tribunais de Conta (art. 73, § 2º), com ingresso por meio do quinto constitucional.

A Constituição traz ainda o prazo de validade de cada concurso, limitando-o a 2 anos, prorrogáveis por igual período (art. 37, III), dando ao aprovado o direito a ser convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira, durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação (art. 37, IV). A decisão de prorrogar ou não está dentro do campo da discricionariedade da Administração Pública, que, como foi visto, passa por profunda revisão dos seus contornos e de sua sindicabilidade. Da mesma forma, o direito do aprovado a ser convocado extrapolou o direito de preferência previsto constitucionalmente, conforme entendimento jurisprudencial que vem se consolidando. Os reflexos destas mudanças no concurso público serão analisados a seguir.

Por fim, a Constituição trouxe uma conquista da cidadania para as pessoas deficientes. Este direito está também previsto na Lei nº 7853/1989, a Política Nacional para a integração da pessoa portadora de deficiência, na Lei nº 8112/1990 (art. 5º, § 2º - reserva de até 20%), e regulamentada pelo Decreto nº 3298/1999.

Quanto à disciplina da Lei nº 8122/1990, pouco avança com relação ao que já estava instituído.

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Art. 11. O concurso será de provas ou de provas e títulos, podendo ser realizado em duas etapas, conforme dispuserem a lei e o regulamento do respectivo plano de carreira, condicionada a inscrição do candidato ao pagamento do valor fixado no edital, quando indispensável ao seu custeio, e ressalvadas as hipóteses de isenção nele expressamente previstas.

Art. 12. O concurso público terá validade de até 2 (dois) anos, podendo ser prorrogado uma única vez, por igual período.

§ 1o O prazo de validade do concurso e as condições de sua realização serão fixados em edital, que será publicado no Diário Oficial da União e em jornal diário de grande circulação.

§ 2o Não se abrirá novo concurso enquanto houver candidato aprovado em concurso anterior com prazo de validade não expirado.

Indica que o concurso pode se dar em duas etapas, que a participação está condicionada ao pagamento de taxa prevista no edital (cujo valor deve guardar correspondência com o custeio do certame) e veta a abertura de novo concurso enquanto houver um válido com aprovados. A isenção do pagamento das taxas de inscrição em concursos no âmbito do Poder Executivo Federal está regulamentada pelo Decreto nº 6593/2008.

É fácil perceber que temas sensíveis e corriqueiros do universo dos concursos públicos não encontram guarita na Lei. A exigência de submissão a exames de aptidão física e psicotécnico, o prazo mínimo para publicação de datas e locais de prova, requisitos de características individuais específicas, os concursos para cadastro de reserva entre outros, sem falar de uma organização dos direitos e deveres dos concursandos e da Administração Pública, até com a previsão de sanções administrativas e penais.

A fim de enfrentar (ou minimizar) estas questões, o Poder Público Federal emitiu muito recentemente (final de agosto) o Decreto nº 6944/2009, que veio a regulamentar vários destes temas acima elencados, entre seus art. 10 a 19.[16] Tem relevo aqui alguns pontos como:

- limite de nomeação de candidatos aprovados em até 50% a mais do número de vagas previsto no edital (art. 11);

- organização das fases, provas e critérios para avaliação no concurso (art. 13);

- sessões públicas e gravadas das provas orais e defesa de memorais (art. 13, § 3º);

- exigência de previsão legal (e editalícia) para provas de aptidão física, conhecimentos práticos específicos e exame psicotécnico, bem como a indicação em edital de técnicas, metodologias etc. (para os primeiros) (art. 13 e 14);

- restrição do uso do exame psicotécnico a questões “que possam vir a comprometer o exercício das atividades inerentes ao cargo ou emprego disputado no concurso”, não sendo mais possível a aferição de “perfil profissiográfico” (art. 14);

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- prazo de no mínino 60 dias da publicação do edital e realização das provas (ressalvados casos devidamente motivados pelo Ministro) (art. 18, I e § 2º);

- dispositivos exigidos no edital, enfatizando que a comprovação de escolaridade e experiência profissional, se exigidas, devem ser comprovadas apenas quando da posse (art. 18, parágrafo único).

Ao mesmo tempo que a edição deste decreto estabelece e uniformiza regras gerais de concursos em toda a esfera do Executivo Federal (devendo influenciar os outros Poderes e esferas da Federação), também indica a necessidade de uma normativa mais estável e abrangente de modo a dar mais segurança e transparência para os concurseiros de todo país. Questões sensíveis como o direito subjetivo à nomeação dentro das vagas previstas no edital, composição de bancas, preparação e correção de provas não foram abordadas neste decreto ou deixaram larga margem de discricionariedade, como a abertura de concursos para cadastro de reserva (art. 12).

Os muitos Projetos de Lei que tramitam na Câmara dos Deputados referentes a concursos públicos enfocam muitas destas situações, mas não há indicativos claros que breve serão motivo de deliberação e aprovação. Há projetos dispondo sobre isenção de taxas de inscrição (PL 777/2003); normas gerais (PL 252/2003); direito à nomeação (PL 4109/2008); crime de fraude a concurso público (PL 1086/1999), entre tantos outros, todos com vários apensos.

Se por um lado cresce o interesse da sociedade sobre os concursos públicos, o grande espaço normativo vazio tem possibilitado muitas desavenças entre concursandos e Administração Publica, e como o Legislativo não responde, o Judiciário é chamado a intervir. E não tem se furtado a fazê-lo.

6 OS REFLEXOS DO ATIVISMO JUDICIAL SOBRE OS CONCURSOS PÚBLICOS

Se a judicialização e o ativismo judicial são fenômenos do nosso tempo, os concursos públicos, apesar de sua previsão constitucional desde 1934, também o são, como se buscou demonstrar.

Qual o resultado desta interação? Como o antigo instituto do concurso público vem sendo reconstruído sob o paradigma do Estado Democrático de Direito?

Como não podia deixar de ser, o panorama legal (bastante lacunoso) e social (valorização e interesse) dos concursos públicos propiciou uma intensa judicialização deste assunto. A crise do Direito Administrativo, sua constitucionalização e o xeque a antigos dogmas como a supremacia do interesse público e a impossibilidade de controle judicial da discricionariedade administrativa, cedendo em favor da ponderação e

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respeito a direitos individuais formam o pano de fundo que possibilitam ao Judiciário exercer seu ativismo no que se refere aos concursos.

Mesmo antes da constitucionalização da Administração Pública, o STF tem sido demandado a decidir sobre diversos aspectos dos concursos públicos. Já foram editadas várias súmulas envolvendo os concursos públicos, das quais merece destaque:

- Súmula 15: Dentro do prazo de validade do concurso, o candidato aprovado tem o direito à nomeação, quando o cargo for preenchido sem observância da classificação.

- Súmula 683: O limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face do art. 7º, XXX, da Constituição, quando possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido.

- Súmula 684: É inconstitucional o veto não motivado à participação de candidato a concurso público.

- Súmula 685: É inconstitucional toda modalidade de provimento que propicie ao servidor investir-se, sem prévia aprovação em concurso público destinado ao seu provimento, em cargo que não integra a carreira na qual anteriormente investido.

Nota-se, até pela distância numérica, que a primeira súmula não foi editada recentemente, tem como base legal a Constituição de 1946. Ou seja, claramente não é produto da judicialização da política nem do ativismo judicial daquele órgão. Seu conteúdo, inclusive, não vai além de um desdobramento lógico da idéia de classificação, inerente aos certames de concurso.

Já as 3 últimas são de 2003. Os precedentes citados para a edição das súmulas, no entanto, são mais antigos, quase todos praticamente decididos pelos ministros da composição anterior do STF, alguns até com base na Constituição de 1967. Da leitura dos acórdãos não é possível encontrar ali, no conjunto dos acórdãos relacionados a cada súmula, um discurso de viés pós-positivista e/ou ativista: não há qualquer ênfase na defesa dos direitos fundamentais e nem fundamentação baseada em princípios; na maioria esmagadora deles, estes temas nem sequer aparecem.

Vale perceber que a Súmula 683, ao que pese indicar especificamente a possibilidade de limitação em função de idade, vem sendo utilizada, em conjunto com o art. 39, XXX (que exige previsão legal), para auferir a possibilidade de outras discriminações no edital.

Mas ainda que o ativismo não tenha atingido (ainda) estes instrumentos processuais, ele vem sendo expresso nas decisões que vem criando uma jurisprudência naquele órgão sobre concursos.

Face à ausência de lei regulamentadora dos cargos comissionados exigida pelo art. 37, V, da Constituição, o STF já decidiu com base nos princípios da proporcionalidade, moralidade e impessoalidade, pela manutenção da declaração de inconstitucionalidade de lei que criava cargos em comissão, não entendendo pertinente o argumento da separação de poderes e da impossibilidade de controle do mérito administrativo.

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AGRAVO INTERNO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ATO NORMATIVO MUNICIPAL. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. OFENSA. INCOMPATIBILIDADE ENTRE O NÚMERO DE SERVIDORES EFETIVOS E EM CARGOS EM COMISSÃO.

I – Cabe ao Poder Judiciário verificar a regularidade dos atos normativos e de administração do Poder Público em relação às causas, aos motivos e à finalidade que os ensejam.

II – Pelo princípio da proporcionalidade, há que ser guardada correlação entre o número de cargos efetivos e em comissão, de maneira que exista estrutura para atuação do Poder Legislativo local.

III – Agravo improvido. (STF, RE/365368, j. em 22.05.2007)

Outro tema importante que o STF vem decidindo sob o manto do ativismo é o reconhecimento do direito subjetivo à nomeação de aprovados em concursos públicos, ainda sob determinadas condições.

DECADÊNCIA - MANDADO DE SEGURANÇA - ATO OMISSIVO. Tratando-se de ato omissivo - no caso, a ausência de convocação de candidato para a segunda fase de certo concurso -, descabe potencializar o decurso dos cento e vinte dias relativos à decadência do direito de impetrar mandado de segurança, prazo estranho à garantia constitucional.

CONCURSO PÚBLICO - EDITAL - PARÂMETROS - OBSERVÂNCIA BILATERAL. A ordem natural das coisas, a postura sempre aguardada do cidadão e da Administração Pública e a preocupação insuplantável com a dignidade do homem impõem o respeito aos parâmetros do edital do concurso.

CONCURSO PÚBLICO - EDITAL - VAGAS - PREENCHIMENTO. O anúncio de vagas no edital de concurso gera o direito subjetivo dos candidatos classificados à passagem para a fase subseqüente e, ao lfim, dos aprovados, à nomeação. Precedente: Recurso Extraordinário nº 192.568-0/PI, Segunda Turma, com acórdão publicado no Diário da Justiça de 13 de setembro de 1996. (STF, RMS/23657, j. em 21.11.2000)

Esta e outras decisões indicam que quando há previsão editalícia e surgem novas vagas durante a vigência do concurso, ou quando elas sendo preenchidas por servidores temporários, deve se garantir o direito à nomeação.

Vê-se já na leitura da ementa de acórdão paradigmático do tema a adoção de uma argumentação baseada na dignidade da pessoa humana. Da leitura do voto encontram-se os princípios da moralidade e da impessoalidade, do concurso público e entende que a Administração deve respeito ao concursando a partir das leis do edital.

No mesmo acórdão o STF discute o grau de discricionariedade da Administração Pública de prorrogar os concursos públicos, indicando que havendo vagas a serem preenchidas abertas na vigência do concurso, candidatos aprovados e previsão editalícia, a discricionariedade Administração é minimizada no tocante à prorrogação do prazo de validade do concurso.

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Percebe-se no voto do relator, Ministro Marco Aurélio, a linha que norteou seu posicionamento (vencedor, por maioria):

A República Federativa do Brasil, constituindo-se em Estado Democrático de Direito, tem como um dos fundamentos, [sic] a dignidade da pessoa humana – art. 1º, inciso III da Constituição Federal. Na realização de um concurso público, que muito tem a ver com este direito natural do homem, as normas de regência fazem-se direcionadas ao equilíbrio na relação jurídica candidato-Estado.

O tema está mesmo na pauta do dia, exigindo decisões do STF, de tal modo que se reconheceu repercussão geral, nos moldes estipulados pós-EC 45/2004 para a apreciação de Recurso Extraordinário (art. 102, § 3º), no RE 598099, assim ementado: “DIREITO ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. CANDIDATO APROVADO ENTRE AS VAGAS PREVISTAS NO EDITAL. DIREITO À NOMEAÇÃO. PODER DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL.” O Ministro Menezes Direito, relator, assim se manifestou:

Considero que a matéria constitucional presente nestes autos extrapola o interesse subjetivo das partes, na medida em que se discute a limitação do poder discricionário da Administração Pública em favor do direito de nomeação dos candidatos que lograram aprovação em concursos públicos e que estão classificados até o limite de vagas anunciadas no edital que regulamenta o certame.

A questão possui repercussão, notadamente, no aspecto social ao atingir diretamente o interesse de relevante parcela da população que participa dos processos seletivos para ingressar no serviço público.

Afeta, também, a Administração Pública Federal, Estadual e Municipal que, a partir da decisão emanada por esta Suprema Corte, poderá elaborar e realizar os concursos públicos ciente da extensão das obrigações que possui em relação aos candidatos aprovados e incluídos no rol das vagas ofertadas no processo seletivo.

Assim, considero presente a repercussão geral. (STF, RE/598099, j. em 24.04.2009)

Assim, em um futuro próximo é possível que se tenha uma decisão mais definitiva (na medida em que uma decisão de RE pode ser considerada como tal) sobre este tópico dos concursos públicos, que, sem dúvida, é uma das mais sensíveis e caras aos concursandos. A julgar pelos precedentes, é possível esperar que eles, em breve, estarão mais protegidos do arbítrio (disfarçado de discricionariedade) da Administração.

Navegando pela mesma maré, mas parece que à frente do posicionamento do STF, o STJ acaba de decidir pelo direito subjetivo à nomeação dos aprovados dentro da quantidade de vagas indicada pelo edital, independente de qualquer irregularidade no provimento do cargo, independente, inclusive, do concurso ainda estar em sua validade[17].

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) avançou na questão relativa à nomeação e posse de candidato aprovado em concurso público. Por unanimidade, a Quinta Turma garantiu [no RMS 27311, j. em 04.08.2009] o direito líquido e certo do candidato aprovado

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dentro do número de vagas previstas em edital, mesmo que o prazo de vigência do certame tenha expirado e não tenha ocorrido contratação precária ou temporária de terceiros durante o período de sua vigência. (STJ, 2009)

Além desta decisão, o STJ tem um amplo repertório de julgamentos relativos a concursos públicos, com posicionamento sobre exames psicotécnicos, prova de aptidão física, correção de provas, vagas reservadas a pessoas com deficiência, entre outros tantos temas, soltos em meio de mais de 3600 acórdãos que voltam como resultado de pesquisa de jurisprudência sobre o tema no site do STJ. Teria o concursando, como cidadão comum, condições de descobrir seus direitos?

CONCLUSÃO

São sabidos os potenciais problemas do avanço do ativismo judicial, da qual vale relembrar os riscos à legitimidade democrática, desviando os focos de decisão dos lugares tradicionalmente de deliberação majoritária; riscos à politização da Justiça, no sentido de que o Judiciário não pode agir de forma livre, partidária ou tendenciosa, devendo, muitas vezes, agir de forma contra-majoritária; e o limite à capacidade institucional do Judiciário, na medida em que as demandas se tornam mais complexas, será o poder judicial o mais apto a dar as melhores respostas? (BARROSO, 2009) Mas, frente o atual momento por que passa o instituto do concurso público e a sociedade brasileira, não se pode negar o papel essencial que o Judiciário vem desempenhando, barrando excessos legislativos e omissões e abusos administrativos.

Não se pode perder de vista, todavia, que o que de fato a sociedade precisa é da construção de um regime geral de concursos públicos, que só pode se dar por meio de Lei. Certamente a existência de parâmetros mais seguros, deve desafogar um pouco o Judiciário quanto a este tema, ainda que não vai blindá-lo, como sói acontecer com qualquer situação que passa a ser regida por uma norma (mais leis, mais possibilidades de questionamentos com base nela).

Os concursos alcançaram uma grande valorização social, quer pela conjuntura econômica e laboral, quer seja pelos princípios de isonomia e meritocracia que eles encerram. O instituto clama por uma regulamentação abrangente que leve em conta os novos paradigmas inaugurados pelo Estado Democrático de Direito e suas repercussões na relação da sociedade e do indivíduo com a Administração Pública.

Também é necessário se pensar em aprimorar as avaliações dos concursos a fim de torná-los mais aptos a avaliar e a selecionar o agente de acordo com seus méritos e com as necessidades e perfil do cargo e da entidade, visando a eficiência. Com isto o interesse público será preservado e o cidadão vai ser duplamente respeitado: como concursando e como administrado. E afinal, são estes, ao fim e ao cabo, as razões de ser do próprio Estado.

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______. Poder Judiciário, “positivação” do direito natural e política. In: Estudos Históricos, vol. 9, nº 18, 1996. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/195.pdf>. Acesso em 01 set. 2009.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista de Direito do Estado, Rio de Janeiro: Renovar, a.3, n.12, p. 55-75, out./dez. 2008.

WEBER, Max. Economia e sociedade. São Paulo: Editora da UnB; Imprensa Oficial, 2004. v. 2.

WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Direito e justiça no Brasil colonial: o Tribunal de Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

[1] Diferente da maioria dos cursos superiores, o curso de Direito não habilita imediatamente seus egressos a nenhuma profissão específica, mas constitui-se em pré-requisito essencial para o desempenho de várias profissões (Magistratura, Ministério Público, advocacia, para ficar só nas carreiras jurídicas constitucionalmente citadas) e um grande trunfo para uma infinidade de funções, especialmente no poder público (muitas delas, com ótima remuneração). As possibilidades são vastas, mas todas vão depender de aprovação em concurso púbico (ou exame público, no caso da OAB). Estas imbricações vêm provocando fortes impactos nos cursos de Direito, objeto da pesquisa do doutorado da autora.

[2] “Nos seis anos e cinco meses do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o número de servidores ativos teve um aumento de 53.800 - cerca de 100 mil chegaram a ser contratados e a tomar posse, mas quase a metade pediu demissão por uma série de razões, entre elas transferência de local ou aprovação em concursos realizados pelos poderes Judiciário e Legislativo ou por estatais.” (O Estado de São Paulo, 13/05/2009)

[3] Corroborando (talvez ultrapassando) a previsão da ANPAC, em 2 de setembro de 2009, o jornal Correio Braziliense trouxe, em reportagem de Letícia Nobre, a seguinte manchete: “77.782 vagas para o funcionalismo público: o total será preenchido por concurso e atenderá às necessidades dos Três Poderes, Ministério Público da União e Conselho Nacional do Ministério Público. Em 2010, 56.861 selecionados deverão ser contratados”.

[4] Podem ser aqui elencados no primeiro grupo o mandado de segurança coletivo (art.5º, LXX) e as ações civis públicas (art. 129, III); e no segundo grupo, as ações de controle concentrado (art. 102-103) e incidental de constitucionalidade, a argüição de descumprimento fundamental (art. 102), o mandado de injunção (art. 5º, LXXI) e a ação popular (art. 5º, LXXIII); além dos instrumentos para garantir direitos individuais, como o habeas corpus (art. 5º, LXVIII), o habeas data (art. 5º, LXXII) e o mandado de segurança individual (art.5º, LXIX), entre outros.

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[5] Estas várias iniciativas de acesso à justiça vêm no bojo da criação do prêmio Innovare, por parte de vários órgãos de classe de profissões jurídicas (como AMB, CONAMP, ANPR, OAB e outras) para “identificar e difundir práticas pioneiras e bem sucedidas de gestão do Poder Judiciário brasileiro que contribuam para a modernização, melhoria da qualidade e da eficiência dos serviços da Justiça”. O prêmio mesmo é um exemplo desta proposta. Já está em sua VI edição. Maiores informações em: <http://www.premioinnovare.com.br/>.

[6] Para uma aproximação sobre o tema do neoconstitucionalismo, confira Alexandre Garrido da Silva (2006), e sobre o pós-positivismo, veja Luis Roberto Barroso (2007)

[7] Há autores que não distinguem estes dois princípios e outros que sim. A respeito desta controvérsia, conferir PEREIRA, 2006.

[8] Não se irá perquirir, neste trabalho, qual é a concepção de mérito que informa o recrutamento de servidores para a Administração Pública e em que medida os procedimentos e as avaliações praticadas nos concursos públicos são, de fato, capazes de realizar esta seleção. Também não se pode olvidar que o sistema meritocrático não se encerra na seleção, devendo perpassar toda a estrutura funcional, com avaliações de desempenho periódicas como parte da cultura institucional.

[9] Não se desconhece que, no caso brasileiro, este princípio basilar do liberalismo clássico que informa a criação dos Estados de Direito, sofreu uma profunda restrição com a manutenção da escravidão negra.

[10] Para Max Weber (2004, p. 240), o patrimonialismo é uma forma de dominação derivada da dominação patriarcal, quando se o poder político é exercido da mesma forma que o poder doméstico. “O funcionalismo patrimonial, com a progressiva divisão das funções e racionalização, sobretudo com o aumento das tarefas escritas e o estabelecimento de uma hierarquia ordenada de instâncias, pode assumir traços burocráticos. Mas em seu caráter sociológico, o cargo genuinamente patrimonial distingue-se tanto mais do burocrático quanto mais puro se apresenta em cada um deles o respectivo tipo. Ao cargo patrimonial falta sobretudo a distinção burocrática entre a esfera ‘privada’ e a ‘oficial’. Pois também a administração política é tratada como assunto puramente pessoal do senhor, e a propriedade e o exercício de seu poder político, como parte integrante de seu patrimônio pessoal, aproveitável em forma de tributos e emolumentos.” (WEBER, 2004, p. 253),

[11] Segundo, ainda, o entendimento de Max Weber (2004, p. 198-200), o funcionalismo burocrático rege-se por: competências oficiais fixas ordenadas mediante regras; hierarquia de cargos e da seqüência de instâncias; base em documentos cujo original é guardado por funcionários subalternos; atividade oficial especializada pressupondo uma intensa instrução na matéria; emprego da plena força de trabalho dos funcionários; administração dos funcionários com base em regras fixas e abrangentes de conhecimento do corpo burocrático.

[12] Estas perseguições impactaram no próprio instituto do concurso, uma vez que muitos perseguidos foram impedidos de assumir em concursos públicos que tinham sido aprovados e cujas nomeações alcançaram sua classificação, razão pela qual a Lei nº 10559/2002, que regulamenta a anistia política no Brasil prevista no art. 8º do ADCT,

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prevê: “Art. 2o São declarados anistiados políticos aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, por motivação exclusivamente política, foram: [...] XVII - impedidos de tomar posse ou de entrar em exercício de cargo público, nos Poderes Judiciário, Legislativo ou Executivo, em todos os níveis, tendo sido válido o concurso.”

[13] Além do Direito, os concursos públicos também não são objeto importante de estudo em nenhuma área do conhecimento, sendo raros os trabalhos em disciplinas afins (como Psicologia, Administração, Sociologia, Educação, Economia, entre outros)

[14] Neste sentido SPITZCOVSKI, 2004; TOURINHO, 2008; MACHADO JR., 2008.

[15] A Lei nº 9515/1997 incluiu na Lei nº 8112/1990 (Estatuto dos servidores públicos federais): “Art. 5º, § 3º As universidades e instituições de pesquisa científica e tecnológica federais poderão prover seus cargos com professores, técnicos e cientistas estrangeiros, de acordo com as normas e os procedimentos desta Lei.”

[16] O Decreto nº 6944, de 21 de agosto de 2009 tem como ementa: “Estabelece medidas organizacionais para o aprimoramento da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, dispõe sobre normas gerais relativas a concursos públicos, organiza sob a forma de sistema as atividades de organização e inovação institucional do Governo Federal, e dá outras providências.” Como se vê, não é exclusivo sobre concursos públicos.

[17] Acórdão ainda não publicado até 17.08.2009.