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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES MEMÓRIA AUTOBIOGRÁFICA: Através do álbum fotográfico Frederico dos Santos Cunha Malaca Dissertação de Mestrado em Arte Multimédia Especialização em Fotografia 2015

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

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MEMÓRIA AUTOBIOGRÁFICA:

Através do álbum fotográfico

Frederico dos Santos Cunha Malaca

Dissertação de Mestrado em Arte Multimédia

Especialização em Fotografia

2015

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

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MEMÓRIA AUTOBIOGRÁFICA:

Através do álbum fotografico

Frederico dos Santos Cunha Malaca

Dissertação orientada pela Prof. Doutora Margarida Medeiros

Mestrado em Arte Multimédia

Especialização em Fotografia

2015

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RESUMO

Memória autobiográfica: através do álbum fotográfico é uma dissertação teórico-prática que reflecte sobre um conjunto de questões em torno da memória e fotografia. A investigação parte da construção de um álbum fotográfico em formato tradicional e das suas capacidades enquanto suporte de memória autobiográfica. A formação de memórias no cérebro humano e a criação de suportes de memória virtual servem de mote para a investigação no campo da memória. A fotografia, ao permitir o registo de imagens da natureza sem a intervenção do indivíduo na sua representação disponibiliza um suporte que permite a inscrição de informação visual. Poderá o sistema de imagens do álbum fotográfico estabelecer uma analogia com o modelo de criação de memórias autobiográficas no cérebro humano? Através do álbum fotográfico faço uma análise à prática fotográfica e às características da memória humana e virtual, dando corpo a uma reflexão num vídeo ensaio.

Palavras-Chave: Fotografia; memória; psicologia; álbum fotográfico; autobiográfico;

ABSTRACT Memória autobiográfica: através do álbum fotográfico is a theoretical and pratical essay that reflects about a set of questions surrounding memory and photography. The research focuses on the construction of a tradicional photo album and its capabilities as a storage for autobiographical memories. The formation of memories in the human brain and the creation of virtual storage media serve as motto for the research in the field of memory. Photography, by allowing the record of images of nature without the individuals intervention on its behalf, offers a support that enables the visual information recording. Does the image system, conceived in the photographic album, establish an analogy with the model of creation of autobiographical memories in the human brain? Through the photographic album, I will do an analysis of photographic practices, the characteristics of human memory and virtual memory which takes the form of a visual in a video-essay.

Key Words: Photography, memory, psychology, photographic album, autobiography.

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Agradecimentos

Pais e Avôs.

Margarida Medeiros.

Niépce, irmãos Lumière. Kodak, Fujifilm.

Ana.

Buckley.

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Índice

RESUMO I .........................................................................................................................................ABSTRACT I ......................................................................................................................................Agradecimentos II ...............................................................................................................................Índice III .................................................................................................................................................Introdução 1 ........................................................................................................................................1. Memória 6 ........................................................................................................................................

1.1 Auxiliar de Memória 7 ............................................................................................................

1.2 Memória Autobiográfica 10 .....................................................................................................

2. Fotografia 11 .....................................................................................................................................

2.1 Objectos de Memória - Da lembrança ao ecrã 13 ...............................................................

3. Imagem e Memória - Objecto de reflexão 15 ..............................................................................

3.1 Philip Hoffman, a memória poética 16 .......................................................................................

3.2 Sérgio Oksman, ficção do real 18 ........................................................................................

3.3 Agnès Varda, fluxo da imagem 21 .........................................................................................

4.Reminiscências de Luz 23 ................................................................................................................4.1 Método 23 ..................................................................................................................................

4.2 Análise 25 ...................................................................................................................................

Conclusão 28 .........................................................................................................................................Referências 30 ........................................................................................................................................Anexos 32...............................................................................................................................................

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Introdução

A presente dissertação Memória Autobiográfica: Através do álbum fotográfico resulta da investigação de cariz teórico-prática em torno de um projecto de âmbito pessoal. O objecto em questão é um álbum fotográfico no seu formato tradicional, um livro, que vem sendo preenchido com fotografias da minha autoria, desde o ano de 2012. A prática fotográfica e o convívio entre fotografias é um ritual que faz parte da minha família. Os registos mais antigos que possuo pertenceram ao pai do meu avô materno e à mãe da minha avó materna, com uma pequena caixa de madeira que contém diversas imagens. Subsequentemente o dos meus avós maternos e da minha mãe com um conjunto de 4 álbuns, um pequeno arquivo do meu pai quando ainda solteiro. E um vasto conjunto de álbuns, mini-álbuns e envelopes com fotografias dos meus pais e minhas a datados durante a minha infância até ao presente. (FIG. 1). Verifico que a produção de fotografias tem vindo a ser exponencial ao longo das gerações, sendo que no presente já devo ter, no mínimo, igualado toda a produção de fotografias que os meus pais e avós registaram em aproximadamente 70 anos. Fazendo uma rápida análise aos discos rígidos que contém as minhas fotografias em suporte digital, são aproximadamente 80 mil registadas nos últimos 7 anos. Acredito que o contacto com o espólio fotográfico dos meus familiares me despertou, me influenciou e me moldou para recorrer à fotografia além de uma simples ferramenta de documentação familiar. No presente sirvo-me da fotografia como um veiculo de expressão de ideias, questões, sentimentos e reflexões como suporte às minhas investigações e obras artísticas. Ao ponderar as diversas opções que tinha sobre o projecto que viria a desenvolver para a dissertação de mestrado, optei por escolher uma matéria que me permitisse englobar diversas características que são inerentes nos diversos projectos artísticos que tenho vindo a realizar. Deste modo o estudo visa também aprofundar os processos e métodos que aplico, assim como as questões que derivam de temas relacionados com memória, arquivo e fotografia. Decorrente de um exercício proposto na disciplina de Projecto no primeiro ano de mestrado, criei um objecto vídeo do género documental no qual abordo a minha relação entre arquivo e o álbum fotográfico. Esse exercício permitiu o aparecimento de novas questões sobre uma prática tão comum em contexto pessoal/familiar, como fotografar e arquivar fotografias num álbum fotográfico. Ainda no início da investigação, questionei-me sobre os motivos pelos quais estava a desenvolver este trabalho. Apercebi-me em primeira instância que o álbum vinha sendo desenvolvido de modo instintivo e natural. Ao recorrer das práticas que tenho vindo a desenvolver ao longo dos meus trabalhos, os processos acabam por ser um reflexo do processo de cognição inerente a estes. A maior dificuldade passava então por desmontar esta naturalidade aparente e aprofundar realmente qual seria o seu significado. Necessitei de recuar e colocar a questão no primeiro acto que envolve o meu trabalho com imagens. “Porque fotográfo? Para não me esquecer.” A uma questão tão directa, a simplicidade da resposta escondia algo bastante complexo.

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Ao responder que não pretendo esquecer-me, significa que o que registo com uma máquina fotográfica é para mim algo que merece ser lembrado. No entanto creio que existe algo para além desse medo, existe também a necessidade de criar documentos que me permitam efectuar uma análise da minha experiência e relação com o mundo. Na obra de ficção 1984 (1949) do escritor inglês George Orwell (1903-1950) o personagem principal Winston vive sob o regime de um estado totalitário e controlador. Neste estado em que a actividade da escrita que não era ilegal mas era proibida, Winston começa a escrever um diário por sentir vontade de perpetuar em papel as suas próprias notas sobre si e o mundo:

“Quando não há testemunhos exteriores que possamos tomar como ponto de referência, até os contornos da nossa própria vida perdem nitidez. Uma pessoa recorda factos marcantes que muito provavelmente nunca ocorreram, recorda o pormenor de certos incidentes sem conseguir captar a sua atmosfera, e há longos períodos em branco onde não somos capazes de inscrever o quer que seja.” (Orwell, 1949: 35)

Neste breve parágrafo Orwell ressalva a importância da escrita e o seu valor como ferramenta ao serviço da memória, e as suas potencialidades como conteúdo de referência e análise para o indivíduo. Ainda que escrever e fotografar sejam duas ferramentas completamente distintas, eu encontrei na fotografia a forma de criar testemunhos exteriores que me permitam construir a minha identidade e memória. O acto de fotografar está para além do modo como relego numa imagem um fragmento temporal infimamente curto de um maior espaço de tempo vivenciado no passado. O meu crescimento na infância alimentando-me das fotografias do arquivo da minha família ajudaram-me a interpretar as imagens, criando as minhas próprias leituras sobre o que estas me davam a conhecer. Estes objectos são mais do que meras representações de um tempo. “A fotografia é um registo da tua vida” (Strand, 1923). Ela não só regista como comprova a minha experiência pessoal, construindo uma ligação entre mim e o mundo que me rodeia. Ao fotografar estou a relegar na imagem a importância de registar uma determinada informação de que posso fazer uso no futuro evocando um momento passado. Desde que iniciei a prática fotográfica, por volta de 2003, as fotografias que faziam parte do meu arquivo digital foram eliminadas uma série de vezes. Os problemas associados a estes acasos derivavam da instabilidade dos sistema operativos ou má utilização da minha parte. Actualmente a tecnologia encontra-se mais avançada, no entanto é recorrente ouvirmos episódios entre amigos de problemas semelhantes na qual a informação digital é eliminada. Com a introdução da fotografia digital, os processos de arquivo que até então eram praticados com o uso da fotografia em suporte película são completamente alterados. Os avanços tecnológicos por norma introduzem ferramentas que simplificam as tarefas que temos de executar para concluir uma determinada função. No entanto essa redução de funções, que visa permitir o uso do tempo para outras actividades, pouco tem ajudado, antes pelo contrário. A presença de dispositivos tecnológicos encontra-se cada vez mais enraizada no nosso quotidiano, forma de estar e de ser.

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Num artigo de opinião sobre a influência dos dispositivos electrónicos na saúde, disponível online através da BBC, Emmanuel A Stamatakis, professor no departamento de neurociências da universidade de Cambridge, e Richard Weiler, fisioterapeuta, defendem que “em essência, o nosso ambiente simplificou-nos a vida a um estado inerentemente preguiçoso e sedentário” (Stamatakis e Weiler, 2010). A crescente dependência de equipamentos tecnológicos, na sociedade global, em pouco ajudam no seu desenvolvimento pessoal. Estes revelam-se influências nas tomadas de decisão, podendo conduzir o indivíduo a comportamentos que se revelam prejudiciais à saúde, tanto física como mental. Resultante da instabilidade e do excesso de confiança dos equipamentos não tenho qualquer fotografia registada por mim entre o ano de 2002 e 2006. Desde então tenho mantido o arquivo com outros cuidados, efectuando backups regularmente de modo a não perder os respectivos conteúdos. O meu arquivo foi crescendo e sempre que o comparava com o da minha família, as minhas imagens pareciam não transmitir qualquer ligação emocional. A diferença no conteúdo das imagens era evidente. Cada um fotografou momentos e eventos em tempos e circunstâncias distintas. Ainda assim sentia que a culpa deste afastamento não estava nas imagens. Não me demovi e continuei a fotografar. Em meados de 2009 recordo-me de pegar numa antiga máquina fotográfica dos meus pais e ter registado um rolo de película. O contacto com a fotografia em película veio alterar por completo a relação que tinha com a fotografia. Até então todas as minhas imagens eram digitais, ficheiros electrónicos escritos com infinitos zeros e uns que só visualizava num ecrã. Senti algo diferente, estava a inscrever registos de luz e sombras num suporte físico. Porque, como sublinha Fontuberta,

“Assistimos a um processo irrefreável de desmaterialização. A superfície em que a fotografia argêntica se inscrevia era o papel ou material equivalente, e por isso ocupava um lugar, fosse um álbum, uma gaveta ou uma moldura. Em compensação, a superfície de inscrição da fotografia digital é o ecrã: a impressão da imagem sobre um suporte físico já não é imprescindível para que a imagem exista.” (Fontcuberta, 2010 :14)

Ter acrescentado a dimensão material às minhas fotografias mudou a minha relação com o meio fotográfico e as imagens. Permitiu-me soltar de amarras em torno de dogmas e práticas que impediam a evolução do meu trabalho enquanto autor, sem que pudesse fazer da fotografia uma técnica de registo das imagens ao serviço da expressão individual e artística. Esta nova relação com as minhas fotografias, agora impressas em papel despertou-me em mim algo que estava adormecido desde a minha infância quando observava as fotografias dos meus familiares. A capacidade de interpretar e ler as fotografias através de diversas perspectivas. Mais recentemente, ao fazer uma introspectiva sobre a minha relação com a fotografia, apercebi-me que os últimos anos tinham sido passados a construir objectos que serviam para expressar minhas ideias e reflexões. Necessitava de criar algo com algumas das minhas fotografias, sem que a este estivesse associado a qualquer tipo de pensamento crítico ou conceptual. Pretendia-me desprender de qualquer discurso artístico e simplesmente construir um objecto onde pudesse colocar

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as minhas lembranças. É desta forma que surge o álbum que serve de objecto de estudo para a presente dissertação. Deleguei neste objecto a responsabilidade de preservar um conjunto de fotografias que documentam a minha existência. Mas quem as observar no futuro, o que poderá dizer sobre mim? Sinto que através deste livro estou a construir a minha autobiografia com o recurso a fotografias. No entanto o que podem elas revelar da minha experiência pessoal nesse momento? Sempre que disponho de um conjunto de fotografias novas a colocar no álbum revejo também as outras que já fazem parte deste. Observá-las, desperta na minha mente imagens que evocam lembranças desses tempos. Como se uma máquina do tempo se trata-se permitindo-me recuar e percorrer as minhas memórias pessoais. Que capacidades dispõem o cérebro humano para gerar e arquivar estas imagens no pensamento? Relego no álbum fotográfico a capacidade de replicar as capacidades de arquivo e acesso do cérebro mas poderá ele ser o objecto ideal para representar as minhas memórias autobiográficas? Todas as questões que derivam do álbum fotográfico impulsionaram-me para o desenvolvimento de uma investigação em trono da memória e da fotografia, com o propósito de encontrar as respostas e adquirir novos conhecimentos

Memória Autobiográfica: Através do álbum fotográfico encontra-se dividida por vários capítulos onde são abordados os diversos temas que fazem parte da dissertação. O primeiro capítulo encontra-se reservado à pesquisa no campo da memória, este contém uma breve introdução ao estudo da arte da memória e como o homem desde a antiguidade relegou a sua informação em suportes de memória artificial. Recorrendo ao estudo de Frances Yates em A Arte da Memória, bem como a uma análise da analogia de Sigmund Freud entre um suporte de memória artificial e as capacidades do cérebro humano no texto Nota sobre o “Bloco Mágico”. Na conclusão do capítulo encontra-se o resumo de um estudo efectuado sobre as capacidades de memória do cérebro, através de uma perspectiva psicológica e neurológica. Em Memória Autobiográfica, abordo A Construção de Memórias Autobiográficas no Sistema de Auto-Memória de Martin A. Conway e Christopher Pleydell-Pearce, onde resumo conceito de Conhecimento Autobiográfico, cuja estrutura serve de base à construção de uma parte da vertente prática da dissertação. O segundo capítulo é dedicado à fotografia. Neste estabeleço uma relação entre a fotografia como suporte da memórias e como esta se tem adaptado às necessidades de comunicação do presente. É analisada a importância dos objectos fotográficos, em concreto o álbum fotográfico, através do livro de Geoffrey Batchen Forget Me Not, no âmbito da prática da fotografia digital e a sua divulgação via internet. Imagem e Memória - Objecto de reflexão, é o capítulo dedicado à análise de um conjunto de obras de diversos autores que fazem do cinema o suporte para expressar as suas emoções, reflexões e questões em torno da memória e da fotografia de uma forma transversal. On the Pond (1978) de Philip Hoffman, um curto poema visual filmado em 16mm a preto e branco onde o autor ao ser confrontado com um álbum de recortes, transporta para o ecrã as suas memórias e sonhos de um determinado período da sua infância. a story for the Modlins (2012) de Sérgio Oksman, apresenta uma história em torno

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do espólio fotográfico da família Modlin. Um filme em que as imagem e palavra se suportam na construção de uma nova memória. Ulysse (1982) de Agnès Varda, é uma investigação da realizadora e fotógrafa belga em torno de uma fotografia registada por ela em 1954. Em Ulysse, Varda explora as capacidades de interpretação da fotografia e com apenas uma fotografia é capaz de despertar na lembrança um infindável número de imagens. Reminiscências de Luz, dá nome ao capítulo dedicado ao processo que envolveu a construção do filme que dá corpo à vertente prática da dissertação. Encontra-se dividido em duas partes: descrição e análise. Na descrição é possível compreender a forma como o álbum tem vindo a ser construído. Assim como os recursos que envolveram o processo técnico de criação do filme reminiscências de luz. Em análise, é feita uma reflexão ao resultado final do filme sobre de que modo as obras dos artistas analisados, outros não presentes em análise, o conceito de memória autobiográfica e a análise fotográfica foram essenciais para a realização do filme. Com esta investigação procuro aprofundar, através de recursos teóricos e práticos, as respostas a um conjunto de questões que envolvem a minha prática artística e pessoal com as imagens fotográficas. Para além do aprofundamento teórico dos temas centrais da dissertação, coloco em análise os processos de trabalho que dão origem ao filme reminiscências de luz. Os critérios metodológicos utilizados na realização da dissertação teórico-prática são os seguintes: as citações são apresentadas segundo o sistema autor-data (nome, data: página); as citações de maior dimensão são apresentadas no centro do texto, as citações em língua estrangeira foram traduzidas por mim; os títulos das obras apresentam-se em itálico seguidos do respectivo ano de realização entre parêntesis; as notas de rodapé contem informações adicionais ao texto; o presente texto não obedece ao acordo ortográfico em vigor.

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1. Memória

Memória, define-se como sendo a faculdade através da qual o indivíduo é capaz de preservar ideias, imagens ou outros pensamentos, função que permite o registo de experiências do passado manifestando-se através de lembranças . Este talvez seja o 1

principal significado que envolve a palavra, contudo diversos conceitos têm sido construídos em torno das suas diversas características. Assim como o uso do termo é recorrente em diversos contextos que vão para além da faculdade humana. Apesar de ser uma característica que define parte do funcionamento do cérebro humano, esta capacidade não é exclusiva ao Homem. Nos últimos anos a indústria tecnológica tem-se centrado no estudo das funções de memória, com o objectivo dotarem dispositivos electrónicos com capacidades de arquivo e registo de informação. Um dos principais aspectos que determina o início da minha investigação para esta dissertação, advém do fenómeno mental que ocorre a quando da visualização de fotografias. Ao fazerem despertar no pensamento imagens e experiências do passado em torno da realidade representada na imagem. Deste modo, conduzi a minha investigação para o campo da psicologia e da neurologia, com o objectivo de obter conhecimento em torno das capacidades de memória do cérebro humano e as necessidades do Homem criar dispositivos de memória virtual. Ao longo do crescimento do indivíduo, este vai adquirindo consciência das suas capacidades de registo, reprodução e interpretação de experiências anteriormente vividas em memória. Questionei-me se seria possível transpor estas estas capacidades para um objecto que reunisse um conjunto de imagens que representassem a memórias pessoais de um indivíduo. A vontade de dotar os objectos com capacidades de memória não é recente. O que se pretende ao delegar a informação em objectos, é que estes a possam conservar e ser consultados durante o máximo período de tempo, mediante a durabilidade do suporte de inscrição. Ainda antes da intervenção da psicologia e da neurologia na compreensão de funcionamento do cérebro humano, já no período da antiga Grécia diversas personalidades ligadas ao campo das ciências humanas se dedicavam a estudos, que visavam a criação de técnicas e esquemas com o propósito de preservar de grandes quantidades de informação no cérebro. Frances Yates (1899-1981), historiadora inglesa, dedicou um estudo em torno deste assunto que se apresenta compilado no livro The Art of Memory (1966). Este reúne uma generosa quantidade de informação, em torno da intervenção desta arte no campo do pensamento humano desde o período da antiga Grécia até aos inícios do século XVII. Estas técnicas apelidadas de Arte da Memória , do latim ars memorie, “(…)consistem em memorizar com o recurso a uma técnica que coloca ‘locais’ e ‘imagens’ na memória.

Descrição segundo dicionário online Porto Editora http://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa-aao/1

memória. Consultado em 2 Setembro 2015

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Estas são denominadas como ‘mnemónicas’ ” (Yates, 1966: xi). Yates recorre à história do 2

poeta grego Simónides de Ceos (556 a.C. - 468 a.C.), descrita no De Oratore (55 a.C.), um tratado sobre a arte da retórica e do diálogo escrito pelo filósofo grego Cícero (107 a.C - 43 a.C ), para demonstrar como Simónides dá origem a uma técnica de memorização de ‘locais’ e ‘imagens’.

“Ele infere que as pessoas que desejam treinar a faculdade de memória, devem selecionar locais e formar imagens mentais de coisas que eles desejam lembrar e armazenar essas imagens nos respectivos locais. De modo que a a ordem dos locais irá preservar a ordem das coisas e as imagens das coisas denotem coisas em si. Devemos empregar os lugares e imagens da mesma forma que se recorre a um quadro de cera e se inscrevem neste palavras.” (Cícero, 55 a.C. apud Yates, 1966: 2)

As capacidades de memória humana têm sido adaptadas à época em que se vive. Seria impensável nos dias de hoje recorrer a este tipo de sistemas com o objectivo de armazenar a informação que é produzida. Até porque grande parte da informação não são apenas palavras e uma grande parte é criada com o recurso a dispositivos electrónicos. No entanto o método de Simónides é pioneiro “numa época, em que desprovido de técnicas de inscrição, sem papel para tomar notas ou outro de consulta, o treino da memória se revela de importância vital” (Yates, 1966: 4). Deste modo pode-se considerar que a técnica empregue por Simónides se revela como um dos primeiros suportes de memória artificial, no qual se delega ao dispositivo a capacidade de registar um dado número de informações.

1.1 Auxiliar de Memória

No presente, o indivíduo está exposto a uma grande quantidade de informação,veiculada por rápidos canais de transmissão. É compreensível que as capacidades cerebrais se centrem mais no processamento desta do que propriamente no seu arquivo. É verdade que as capacidades naturais de cada indivíduo não são todas iguais e nem todos se encontram expostos ao mesmos níveis de informação. Assim sendo será normal fazer recurso a dispositivos que possibilitem o registo de variados tipos de informação, consoante as necessidades do próprio. Pode-se confiar e delegar nestes dispositivos as capacidades cognitivas de memória?

Escopas, um nobre da Tessália, desejou que Simónides preparasse um poema em sua homenagem para ser apresentado 2

durante um jantar. Com o propósito de diversificar o seu poema, Simónides introduziu neste referências a Castor e Pólux. Escopas insatisfeito com a referência aos gémeos da mitologia grega, pagou apenas metade do que havia prometido a Simónides pelos seus serviços. Durante o jantar Simónides recebe uma mensagem em que dois jovens aguardam por ele fora do palácio. Ao procurar por estes junto à entrada, o tecto do salão onde se realizava o jantar ruiu acabando por matar Escopas e os convidados. Conta a história que no momento de identificar os corpos para prestar homenagem fúnebre, Simónides relembrara os locais onde estes estavam sentados durante o banquete. Interpretação da história a partir da tradução em inglês do tratado de Oratore de Cícero. http://www.utexas.edu/research/memoria/Cicero.html, consultado em 27 de Setembro 2015.

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Com o despertar das ciências no renascimento, como a biologia, vão-se aprofundando os conhecimentos em torno da anatomia do corpo humano. Da mesma forma que o corpo se divide por áreas e sistemas, também a ciência que o estuda se especializou. O estudo do cérebro na área da medicina ficou reservado à neurologia e psicologia, na área biológica à neurociência. A psicologia, segundo a APA , define-se como 3

o estudo da mente e do seu comportamento, envolvendo todos os aspectos que estão subjacentes às acções do indivíduo. Sendo o cérebro o órgão que determina os comportamentos do ser humano, podemos considerar que parte da psicologia estuda o que vulgarmente é considerado como personalidade. A complexidade que envolve o estudo do cérebro, em termos neurológicos está longe de poder ser descodificada em tão poucas palavras. Ainda que o seu estudo envolva o cérebro, o comportamento físico do sistema nervoso não está contemplado na presente dissertação. A pesquisa incide no comportamento psicológico, as suas reacções perante estímulos, as suas capacidades de memória e uma aproximação ao processo de formação de memórias. O que me despertou o interesse em alguns artigos que do campo da psicologia e psicanálise providenciando pistas e informações para a as minhas dúvidas em torno da memória. Sigmund Freud (1956-1939), médico neurologista e psicanalista, no seu texto Nota sobre o “Bloco Mágico”, de 1925, estabelece uma relação entre o funcionamento do cérebro e a escrita num dispositivo de registo da época, o bloco mágico. “Quando desconfio da minha memória (…) posso completar e garantir a sua função tomando notas” (Freud,1925: 242). Depreende-se através do pensamento de Freud que o que está por detrás deste registo de informação, é o receio de perca. Perca das capacidades de memória do indivíduo em registar uma informação, e que esta possa “permanecer inalterada, ou seja, que escape às deformações que a memória poderia vir a sofrer” (Freud,1925: 242). De modo a efectuar a inscrição das notas Freud indica dois procedimentos possíveis, um em que faz a inscrição de informação recorrendo a papel e outro em que faz uso de um quadro de giz. Ao comparar os dois, Freud aponta as suas capacidades e limitações. O papel oferece um traço mnemónico duradouro com as desvantagens de se esgotar uma vez preenchido (sendo necessário recorrer a uma nova folha) e pode perder o seu valor quando esta não tiver qualquer interesse. No quadro de giz, o suporte tem capacidade de inscrição ilimitada e permite que sejam apagadas no momento sem ter de recorrer a um novo suporte, contudo este não oferece capacidades de um registo duradouro.

“Portanto, irrestrita capacidade receptora e conservação de traços duradouros parecem excluir-se mutuamente nos dispositivos que substituem a nossa memória; ou a superfície de recepção tem de ser renovada ou as anotações tem de ser eliminadas.” (Freud,1925: 243)

Estes dispositivos parecem não ser os ideais para replicar as funções de memória do cérebro humano. Freud enumera uma quantidade de instrumentos da sua época que replicam e auxiliam diversas funções do ser humano, como óculos, câmara fotográfica, corneta acústica. “Comparado-o a eles, os dispositivos que auxiliam a nossa memória

American Psychological Association - http://www.apa.org/support/about-apa.aspx?item=7 consultado em 21 3

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parecem deficientes, pois o nosso aparelho psíquico realiza justamente o que não podem fazer: tem ilimitada capacidade de receber novas percepções e criar duradouros- mas não imutáveis - traços mnemónicos delas ” (Freud, 1925: 243). O cérebro parece assim ter um ponto a seu favor, dispondo de uma capacidade infinita de receção e registo de estímulos. No entanto as memórias que este regista estão sujeitas a transformações ao longo do tempo. Freud intrigado com um dispositivo de nome Bloco Mágico, um predecessor do Magna Doodle , decide investigar este e através do seu funcionamento estabelece uma 4

analogia com o cérebro humano. Bloco Mágico é constituído por uma folha translúcida, com uma base em resina. A folha é constituída por duas camadas, sendo a superior de celulóide e a de baixo um papel encerado. Ao escrever-se no celulóide pressiona-se o papel encerado contra a resina, e as ranhuras que se geram na resina ficam visíveis no celulóide. Para apagar as inscrições basta levantar a folha que contem as duas camada. Freud constata que o celulóide apenas serve de protecção à folha encerada e todos os registos que são efectuados, acabam sendo perpetuados na cera, sendo possível a sua observação recorrendo a um iluminação adequada. “O Bloco fornece não apenas uma superfície receptora que sempre pode ser usada novamente, como uma lousa, mas também traços duradouros da escrita, como um bloco de papel normal” (Freud, 1925:246). Da mesma forma que o indivíduo ao longo da vida está exposto a estímulos e acções exteriores que são registadas no cérebro de forma permanente. O bloco mágico tal como o cérebro permite registar e evocar determinada informação durante um determinado período de tempo, eliminando-a mediante a importância desta para o indivíduo. No entanto, independentemente deste acto de eliminação, estas deixam a sua marca tal como as que ficam na resina que serve de base ao Bloco Mágico. A sua memória vai-se construindo com base em toda a informação que recebe. Freud estaria longe de pensar que aproximadamente 40 anos após a sua morte, a industria tecnológica iria começar a comercializar computadores pessoais com funções de memória artificial que replicam as ideias apresentadas na sua Nota sobre o “Bloco Mágico” . Estabelecendo uma analogia entre a folha de papel e o quadro de giz de Freud é possível encontrar memórias virtuais nos mais diversos dispositivos electrónicos que necessitam destas. São análogas: ROM, memória que uma vez inscrita apenas se torna disponível para leitura, sendo limitada ao espaço que dispõem; e RAM, memória que permite leitura e escrita num determinado tempo e função. Os suportes de memória virtual parecem ter um aspecto positivo a seu favor, nomeadamente ás suas capacidades de arquivo. Uma vez inscrita determinada informação esta pode ser apagada, mas não se transforma ou adquire nova forma. Os suportes poderão estar sujeitos a marcas do tempo ou agentes externos, ainda que se reduzam a partes insignificantes da sua existência estes vão mantendo traços primitivos. Ao contrário do cérebro humano, que por estar constantemente exposto a uma conjunto de estímulos e acções que interferem com o seu pensamento, conduz a que as suas memórias se vão transformando ao longo do tempo. Depreendo que memórias

Magna Doodle consiste num quadro de desenho magnético. É constituído por um ecrã de magnético, uma caneta com 4

um íman na ponta e partículas negras magnetizadas O ecrã é composto por 3 camadas de plástico, sendo a do meio perfurada em forma de favo. Esta camada encontra-se preenchida com um liquido que permite sustentar as partículas á superfície quando a ponta da caneta toca na superfície do ecrã. How Magna Doodle Works - Craig Freudenrich http://www.howstuffworks.com/magna-doodle.htm consultado em 22 Setembro 2015

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virtuais são um bom suporte para registar e documentar informação no entanto estas são dotadas de uma pequena parte das capacidades de arquivo do cérebro humano. Estas não se encontram dotadas, no presente, das capacidades de interpretação de acções exteriores, emoções e cognição que um indivíduo desenvolve ao longo da vida. Resta saber, até quando.

1.2 Memória Autobiográfica Ao realizar as primeiras abordagens às fotografias que constituem o meu álbum fotográfico, apercebi-me que estas me faziam recordar desses momentos no passado através de uma espécie de sistema de referência. Exemplificando de uma maneira geral. Ao observar uma imagem, um elemento presente na imagem evocava outro momento não presente na imagem em especifico e partindo deste podia gerar um outro novo ou fixar o pensamento neste evento. Estas ligações podem ser infinitas e assemelham-se ao acto de navegação na internet através de hiperligações. Durante algum tempo tentei estabelecer um raciocínio que me ajuda-se a conceber um esquema com o propósito de compreender melhor este processo mental. Acabei por não o conseguir realizar. No entanto ao fazer uma pesquisa em torno da memória surgiu um conceito que contém um esquema que me auxiliou a construir as principais cenas do filme reminiscências de luz. Neste subcapítulo apresento um breve resumo da primeira parte de A Construção de Memórias Autobiográficas no Sistema de Auto-Memória , Base de Conhecimento Autobiográfico, 5

no qual as ideias e respectivo esquema de apresentação servem de auxiliar para a elaboração da parte prática. Martin A. Conway, investigador de neurociência e memória autobiográfica, director do departamento de psicologia da City University London. Christopher W. Pleydell-Pearce, investigador de neurofisiologia, professor no departamento de psicologia experimental na universidade de Bristol. Ambos colaboram regularmente com o propósito de investigarem as capacidades de memória do cérebro humano. No estudo que ambos assinam, A Construção de Memórias Autobiográficas no Sistema de Auto-Memória (2000), estes descrevem-no como “um modelo de memória autobiográfica no qual as memórias são transições mentais dentro de um sistema auto-memória (SMS) . 6

O SMS contêm uma base de conhecimento autobiográfico e um conjunto de objectivos do indivíduo . Dentro do SMS, processos de controlo modelam o acesso à base de 7

conhecimento autobiográfico, construindo permanentemente sugestões com o objectivo de activar as estruturas de conhecimento autobiográfico e assim formarem memória específicas” (Conway e Pleydell-Pearce, 2000: 261). Conway e Pleydell-Pearce referem também que a memória autobiográfica é um campo de estudo altamente complexo cuja investigação envolve diversas áreas de

The Construction of Autobiographical Memories in the Self-Memory System http://www.homepage.psy.utexas.edu/5

HomePage/Class/Psy394U/Bower/11%20Soc%20Cog%20Personality/XX%20Constr%20Life%20Stories/Autobio%20Mem-Conway.pdf consultado a 7 Novembro 2014

Abreviatura do termo em inglês ‘Self-Memory System’6

Denominado de Working-Self é conceito consiste numa complexa hierarquia de objectivos no quais as memórias são 7

codificadas e retribuídas. Este regula a construção de novas memórias no SMS e o respectivo acesso base de conhecimento autobiográfico. Este conceito é activo e mutável. Reflecte e regula o comportamento, ajustando-se, analisando e interpretando diferentes situações. http://www.homepage.psy.utexas.edu/HomePage/Class/Psy394U/Bower/11%20Soc%20Cog%20Personality/XX%20Constr%20Life%20Stories/Autobio%20Mem-Conway.pdf consultado a Novembro 7 2014

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investigação da psicologia como cognitivo, social, clínico e neuropsicológico, dando origem a diferentes perspectivas e conceitos. O termo memória autobiográfica refere-se ao recurso da memória “em episódios específicos e memórias pontuais. Para o conhecimento conceptual, genérico e esquemático que temos das nossas vidas, conhecimento autobiográfico. Estas duas formas de representação de memória de longo prazo quando são combinadas num acto de lembrança formam uma memória em especifico”(Conway e Williams, 2008: 893). O conhecimento autobiográfico contem o conhecimento adquirido pelo indivíduo ao longo da vida. Neste a informação encontra-se em três níveis específicos: períodos da vida, eventos em geral e conhecimento de evento específico. As seguintes descrições dos respectivos níveis, são sínteses interpretadas do estudo elaborado por Conway e Pleydell-Pearce, (2000: 262-264). Períodos da vida, representam o conhecimento geral em torno de locais, acções, actividades, planos, objectivos e características de uma determinada época. Este conhecimento também é capaz de identificar o início e o final deste período, mas nem sempre de uma forma clara. O conteúdo do conhecimento geral deste período pode ser agrupado em temas ou assuntos que são invocados neste período de tempo. Eventos gerais, representam eventos em específico de períodos da vida e englobam também eventos que se repetem ou um conjunto de eventos que estão relacionados entre si através de um tema. Este tema, tende a estar associado a episódios no qual o indivíduo adquire novas competências, e o que o insucesso ou sucesso destas representam para a sua personalidade. Conhecimento de evento específico, permite que se gere de uma imagem detalhada de uma determinado episódio. Ao contrário da informação contida em períodos da vida e eventos gerais, esta não se encontra organizada em grupos ou evocações. Esta informação tende simplesmente a aparecer no pensamento.

“O conhecimento presente nestes três níveis podem ser organizados numa estrutura definida como conhecimento de memória autobiográfica. O conhecimento presente no nível períodos da vida providencia pistas que podem ser usadas para indexar um um conjunto de eventos gerais, e o conhecimento a este nível indexa-o ao conhecimento de evento em específico. (…) Uma memória autobiográfica específica é resultado de um padrão de activação em torno dos índices da estrutura de conhecimento.” (Conway e Pleydell-Pearce, 2000: 261).

A estrutura de conhecimento de memória autobiográfica (FIG. 2) desenvolvida em torno do pensamento de Conway e Pleydell-Pearce em A Construção de Memórias Autobiográficas no Sistema de Auto-Memória serviu de base à pesquisa fotográfica e os exercícios de memória são realizados na vertente prática da dissertação.

2. Fotografia

É recorrente em diversas conversas com amigos, na qual o assunto toca a área da fotografia, referir que um dos motivos que me encaminhou para a prática da fotografia é o de não saber desenhar. Refiro-me ao desenho como técnica de reprodução de objecto. No

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entanto, tenho vindo a assimilar que desenhar, pouco ou nada tem a haver com essa ideia de reprodução. No entanto, sinto que no meu subconsciente algo me fazia afastar do desenho e me aproximava da fotografia e dos seus valores. Com um certo distanciamento, interpreto que as minhas consultas aos álbuns de fotografia dos meus familiares durante a infância foram fundamentais no crescimento da minha educação visual. Fruto dos tempos ou mero traço de personalidade, uma das características que me define é a impaciência. Esta pode ser interpretada de diversos modos, mas nos seus sinónimos encontro outras nas quais me revejo de forma mais assertiva, como ansiedade e inquietação. Creio que é dentro de um espírito de ansiedade que nasce a fotografia. Quantos pintores terão entrado numa câmara escura e pensado que a tela, colocada sobre a projecção da imagem que reflectia do exterior, poderia adquirir propriedades que permitam o registo da luz sem a necessidade de recorrer à pintura para a representar. Será impossível estimar quantos devem ter tido essa ideia, no entanto um deles parece identificar-se com o meu caso pois não dominava o desenho e tinha em si uma grande inquietação: como fixar representações de imagens naturais num suporte. William Henry Fox Talbot (1800-1877), cientista e linguista de origem inglesa, descreve em Breve Esboço Histórico da Invenção da Arte , sobre como desistiu da pintura e se dedicou à investigação de um método científico que permitisse registar a imagem que observava através de uma câmara clara, “despojada de ideias que a acompanham e considerada apenas na sua natureza última” (Talbot, 1844-46: 47). Talbot procurava uma forma prática de registar as imagens, sem a intervenção ou expressão pessoal do indivíduo, com o intuito de contemplar a beleza em estado puro da natureza. Esse era certamente um dos seus motivos para se dedicar à investigação em torno da criação de suporte físico com capacidades de registo de imagem, através de luzes e sombras, que até então só eram possíveis de contemplar através da observação sobre uma câmara clara. Talbot não foi o único a estudar e experimentar o novo suporte, a fotografia é fruto de sucessões de experiências. Outros inquietos como Nicéphore Niépce (1765-1833) com seu processo heliográfico, Louis Daguerre (1787-1851) com o daguerreótipo, são apenas alguns dos que contribuíram para que se pudesse fazer da fotografia uma técnica de reprodução de imagens da realidade. Não só a técnica permitia a documentação da realidade, como individualidades associadas ao movimento realista do século XIX ajudaram a construir as imagens que se registavam com esta técnica, manifestando que “ o fotógrafo deve saber reproduzir os objectos diante da sua lente, abdicando por completo da liberdade do artista (…)” (Kracauer, 1927: 268). Também o lado comercial soube tirar partido desta mimetização da realidade. Ao americano George Eastman (1854-1932), fundador da Eastman Kodak Company (1888), deve-se grande parte da popularização e introdução da prática fotográfica nos lares em todo mundo. É através da comercialização de aparelhos fotográficos de baixos custos, fortes campanhas publicitárias apelando à simplificação da técnica (FIG. 3) e na propaganda da ideia que a fotografia permite registar momentos que de outra forma desvaneceriam do pensamento que a Kodak apela às massas para registar os seus objectos de memória (FIG. 4). Difícil tem sido deste então não associar fotografia a memória ou lembrança.

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2.1 Objectos de Memória - Da lembrança ao ecrã

Geoffrey Batchen (1956), professor, escritor, curador, tem dedicado parte da sua vida a investigar a história da fotografia. No seu livro Forget Me Not, editado em 2004, o autor dedica uma investigação na relação entre fotografia e memória. Servem de base para a sua investigação um conjunto de objectos que contemplam reproduções fotográficas, criados e adornados por pessoas vulgares do século XIX e XX como: álbuns, peças de joalharia, quadros. Antes de Batchen se envolver na análise destes objectos, coloca um questão em torno da fotografia e a sua relação com a memória. Será a fotografia uma boa maneira de evocar as lembranças do passado? Este responde que o conceito que define memória é lato e existem diversas maneiras de evocar as lembranças. “As fotografias podem despertar na memória um ente passado (…) e talvez se recorde quem ele seja(…). Mas a fotografia poderá não trazer à memoria os traços da pessoa tais como a sua maneira de andar, falar ou o som da sua voz(…).” (Batchen, 2004: 15) Numa entrevista concedida ao magazine Cabinet em 2004, quando questionado 8

sobre a distinção entre fotografia e memória com as diferentes tomadas de posição perante o assunto, Batchen refere que a prática da fotografia em contexto pessoal e os objectos 9

criados em torno desta, distância-se de outros contextos no qual a fotografia é utilizada. Em contexto pessoal “a ênfase é na forma como o indivíduo se relaciona com fotografia. A memória centra-se nos donos da imagem e não na imagem em si” (Batchen, 2004) . Batchen sugere que a relação emocional que as pessoas estabelecem com as fotografias ao criar novos objectos em torno destas “constituem um comentário céptico na capacidade da fotografia providenciar uma convincente experiência de memória” (Batchen, 2004: 48). É em torno da criatividade e da vontade de relegar num objecto o registo de uma memória efectiva que surge o álbum fotográfico. O fascínio do novo suporte na segunda metade do século XIX fez despontar interesse e o consumo da fotografia na classe média. “Os fotógrafos, no intuito de capitalizarem o seu negócio, tirando partido do desejo dos consumidores disporem as suas fotografias, começaram a vender álbuns de fotografias nos seus estúdios” (Bosch, s.d). O formato livro, na sua forma tradicional, assume grande preponderância no seio familiar, por se tornar um objecto de características personalizáveis e único.

“Álbuns dão aos seus donos a oportunidade de determinar e desenhar como as suas fotografias vão ser dispostas e observadas. As imagens podem ser dispostas numa sequência, com legendas, textos e decoração de acordo com o seu gosto pessoal, (…) estes elementos podem enriquecer as imagens, desenvolvendo nestas a capacidade de provocar emoções. (…) Os álbuns dão a uma pessoa comum a oportunidade de representar as suas autobiografias em combinações expressivas de palavras e imagens.” (Batchen, 2004: 49-57)

Desde o seu aparecimento no século XIX até ao presente, o álbum fotográfico tem-se transformado assumindo diversas características. Na sua forma tradicional, este assume 10

o formato de livro. Um objecto que se pode tocar e ao virar as suas páginas “colocar-mos

http://cabinetmagazine.org/issues/14/dillon.php. consultado em 20 Março 20158

Designada também como fotografia vernacular.9

Colecção online digital de diversos álbuns fotográficos desde 1850 até ao presente. https://www.loc.gov/rr/print/coll/10

photoalbums.html#2000, acedido em 10 Dezembro 2015

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as fotografias em movimento através do espaço e numa narrativa sequencial metafórica” (Batchen, 2004: 49). Com a introdução da fotografia digital, a imagem deixou de necessitar de um suporte físico para a sua observação. O papel foi substituído por um ecrã que faz recurso da eletricidade, códigos digitais e hardware para reproduzir todas as imagens possíveis. Inclusive actualmente, o próprio equipamento que regista a fotografia permite o seu arquivo e consulta, tal como um álbum fotográfico. Na presente época, que em termos de enquadramento histórico fotográfico eu gosto de apelidar de terceira democratização fotográfica , a produção de imagens fotográficas é cada vez mais um hábito entre a 11

população mundial. De acordo com um estudo efectuado em 2015 pela Futuresource à 12

cerca da prática fotográfica na população mundial, revela que esta teve um crescimento nos últimos 10 anos. O número de indivíduos a fotografar atingiu os 4 mil milhões (a população mundial é estimada em 7 mil milhões) e o registo de fotografias por ano passou a 1.2 triliões . Segundo o estudo, este crescimento deve-se em grande parte ao crescente 13

número de pessoas que usam smartphones para fotografar regularmente.

Fará sentido no presente edificar um álbum fotográfico tradicional? O álbum fotográfico foi criado como forma de “perpetuar os feitos da vida de um indivíduo (…), através das fotografias, uma família constrói um registo de imagem (…) onde pouco importa o que se regista desde que as fotografias sejam amadas. ” (Sontag, 1977 :8). O álbum era encarado com um objecto que permitia arquivar as recordações de uma família, dando a conhecer estas a um círculo restrito de familiares e amigos.

Com a chegada da fotografia digital, os valores que até então se encontravam associados à fotografia vão sendo moldados pelos critérios que emergem de uma nova era. A revolução operada nas tecnologias de informação, com as rápidas velocidades de comunicação e os avanços na área da tecnologia informática, têm permitido que a prática e a comunicação com o recurso à fotografia adquira novos contornos. Fontcuberta (2010: 15) defende que a “a fotografia digital é uma imagem sem lugar e sem origem, desterritorializada, não tem lugar porque tem lugar em toda a parte.” Se os antigos donos do álbum partilhavam as suas lembranças directamente com os seus amigos ou familiares, com as capacidades da internet e as ferramentas web 2.0 uma fotografia pode agora ser partilhada em qualquer local do mundo.

Ainda que seja possível edificar um álbum no formato livro, existem no mercado diversas empresas que dedicam parte da sua actividade a este tipo de negócio, com a larga escala da produção fotográfica a ser registada com suporte digital, a tendência é que seja através de um dispositivo digital que a fotografia se consuma. Segundo a notícia publicada

1ª, com a comercialização e a acesso ao grande público da fotografia através da Kodak Company. 2ª, introdução da 11

fotografia digital no mercado. 3ª que combina: a massificação dos suportes móveis (smartphones) com as suas capacidades de registo de imagem, e a transmissão de dados via internet a grandes velocidades.

http://futuresource-consulting.com/2015-12-Image-Capture-Devices-8490.html acedido em 18 Dezembro 201512

1.200.000.000.000.000.00013

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em 2015 pelo The Irish Times , um estudo de mercado conduzido pela agência Amárach 14

Research para a FujiFilm Irlandesa revela que apenas 43% dos inquiridos imprimem as fotografias que registam. Existem na internet diversas plataformas que possibilitam o arquivo e partilha de fotografias, inclusive permitem a organização destas através da criação de álbuns/colecções virtuais. Alguns funcionam de forma exclusiva com a fotografia como o Google Fotos, Flickr, Smug Mug ou 500px, disponibilizando também vários serviços pagos mediante as necessidades do utilizador. As redes sociais, como Facebook, 15

Instagram, Twitter ou Tumblr, oferecem a possibilidade de arquivar e consultar fotografias, assim como outros conteúdos digitais. Estes para além de disponibilizarem o alojamento de uma forma gratuita, incluem nas suas funcionalidades ferramentas, como: caixas de texto, sistemas de gratificação (‘gostos’, favoritos) e partilha, onde o foco primordial se centra na interacção dos diversos utilizadores com o conteúdo.

“Definitivamente, as fotos já não servem tanto para armazenar lembranças, nem são feitas para serem guardadas. Servem como exclamações de vitalidade, como extensões de certas vivências, que se transmitem, compartilham e desaparecem, mental e/ou fisicamente.” (Fontcuberta, 2010:32)

O que outrora era celebrado entre familiares e se fazia como um acto de devoção em torno das lembranças de cada um, é agora replicado em número de ‘likes’, favoritos ou partilhas como aceitação ou rejeição do que o indivíduo pretende comunicar com as suas fotografias ao mundo. A mais recente vaga de tecnologias de informação, alterou por completo a relação e o consumo de imagens fotográficas. A fotografia tem demonstrado ao longo da sua história saber-se adaptar aos valores de cada época e o momento actual comprova a sua vitalidade e elasticidade. Ainda que seja possível edificar um álbum segundo os cânones tradicionais, este não pode competir com as ferramentas digitais ao nível da comunicação, alcance, capacidade de arquivo e portabilidade. É impensável andar com as fotografias impressas de uma vida no bolso de um casaco, no entanto um telemóvel com um cartão de memória com uma capacidade razoável consegue fazê-lo. O álbum fotográfico mantém-se como sendo um objecto único, que pode ser personalizado à imagem do seu autor onde as suas características materiais fazem transmitir os valores que outras épocas transmitiram perante a imagem fotográfica. Este aspecto talvez seja crucial nas distinções entre os dois mundos (digital / material), mas na verdade o que os separa não é a origem da imagem mas a vontade do seu criador. É a inquietação. A inquietação que se vive actualmente, ao recorrer da fotografia como forma de transmissão e evidencia do presente, que difere da inquietação de quem usa a fotografia como um forma de garantir que no futuro se possa recordar o passado.

3. Imagem e Memória - Objecto de reflexão

http://www.irishtimes.com/business/technology/fewer-than-half-of-people-print-photos-research-finds-1.2161480 14

acedido em 8 julho 2015

Como a impressão de fotografias e fotografias, criação de website, acesso a mais espaço de arquivo.15

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3.1 Philip Hoffman, a memória poética Pode a memória fazer despertar imagens que exprimam e manifestem os nossos sentimentos mais íntimos? Cada suporte artístico dispõem de características que são exploradas em torno da mensagem que o autor pretende veicular. Philip Hoffman, cineasta canadiano nascido em 1955, encontrou no cinema a sua ferramenta de eleição para expressar as suas inquietações, dotando-as do seu próprio ritmo e personalidade. Através da biografia disponível no seu site ficamos a saber que Hoffman desenvolve o interesse 16

pela fotografia ainda durante a sua infância. Diplomado em Arte Multimédia, trabalhou como assistente do cineasta inglês Peter Greenway (1942-), é actualmente membro do departamento de vídeo e filme da universidade de York em Toronto. Os seus filmes de género documental são caracterizados pela intimidade com que trabalha o tema principal da sua obra, a sua autobiografia. Desde o final da década de 70 até à actualidade o seu cinema é marcado pela sua abordagem experimental, o que torna as suas obras uma referência no cinema canadiano. Os seus primeiros filmes, On the Pond (1978) e The Road Ended at the Beach (1983), reflectem ambos, questões em torno de fotografia e memória. Em The Road Ended at the Beach Hoffman persegue um ideal de vida na estrada, inspirado pelo livro On the Road (1957) do escritor norte americano Jack Kerouac (1922-1969). Neste filme Hoffman aventura-se pela estrada com um grupo de amigos onde acaba por fazer uma visita o fotógrafo Robert Frank (1924-), autor das fotografias do livro The Americans (1958) no qual Frank retrata os Estados-Unidos da América através de uma perspectiva fotográfica muito próxima da experiência da vida na estrada do seu amigo Kerouac. Hoffman termina a sua aventura na estrada com uma certa melancolia e decepção por não ter encontrado durante a sua viagem as imagens que idealizava da geração beat.

On the Pond, o primeiro filme realizado por Hoffman aos 23 anos de idade, é um exercício de memória, no qual confrontas as memórias pessoais de eventos, pessoas sonhos e ambições que marcaram a sua infância com o presente. Em aproximadamente 10 minutos, Hoffman concretiza um filme que reúne fotografia , lembrança e nostalgia de uma forma muito singela e emocional. O inicio do filme é marcado por um conjunto de fotografias que é apresentado num ritmo sequencial, escuta-se o som de um projector fotográfico e vozes que comentam e se alteram sempre que surge uma nova fotografia. Nestas, surgem crianças e as palavras de quem comenta, são marcadas por uma certa nostalgia e saudade daquele tempo ao ponto de alguém exclamar que “pretende voltar atrás.” As fotografias vão-se alternando e os detalhes em torno das personagens que fazem parte desta história, vão se adensando por quem comenta as fotografias. Através das imagens verifica-se a passagem do tempo, as estações do ano e o território onde estas são registadas. O lago, que dá título ao filme, é onde se concentram diversos eventos e actividades realizadas pelos familiares e amigos de Hoffman durante a sua infância. Com a chegada do inverno o lago congela e somos transportados até uma época da sua vida em que o hóquei no gelo estava presente na vida e nos sonhos de Hoffman.

http://www.philiphoffman.ca/film/home.htm acedido em 15 Março de 201416

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As fotografias vão sendo intercaladas com video no qual Hoffman projecta uma observação sobre si próprio, através de um ponto de vista exterior, em que este brinca com o seu cão no gelo. No plano seguinte surge um livro de recortes, onde é possível ver diversos jogadores profissionais de hóquei. O som remete para o ambiente de um recinto desportivo com o público a incentivar os seus jogadores e equipas, e de um treinador a puxar pelas capacidades físicas dos seus atletas. Através do som, somos conduzidos pela sua ambição de infância, tornar-se um grande jogador de hóquei no gelo. O tempo passou Hoffman cresceu, o hóquei no gelo é passado, restam os seus troféus e as suas memórias. Sente-se uma homenagem à amizade que partilhava com o seu fiel companheiro de brincadeiras no gelo. Escuta-se o som de um projetor de cinema que enrola a película na bobine e a agulha de um gira-discos no final de um disco. Um movimento de câmara panorâmico descreve o espaço, estamos num quarto, onde é possível ver troféus de hóquei. Hoffman está deitado na cama e fecha o livro de recortes que havia aparecido a meio do filme. Este cena permite a contextualização e compreensão de todas as imagens que fazem parte deste pequeno filme. Neste momento é assimilado pelo espectador que as imagens apresentadas são as lembranças que estão presentes na memória de Hoffman e como a observação do livro de recortes as fez despertar. O que inicialmente apontava como sendo recordações em torno de um conjunto de fotografias da sua família acaba por mostrar sentimentos e sonhos que marcaram Hoffman numa determinada época da sua vida. E se dúvidas ainda restam sobre a sua intenção, no último plano do filme Hoffman abandona a sua casa e dirige-se para o lago gelado onde se junta ao jovem Hoffman que joga hóquei com um cão. É a reunião de dois tempos distintos, o confronto de passado e presente numa imagem e um tempo. On the Pond é um filme no qual se demonstra a capacidade das imagens colocarem o pensamento a viajar no tempo à procura de lembranças de uma determinada época. Passamos a vida a esquecer as nossas experiências passadas e a substituir no pensamento as mais antigas por outras mais recentes. No entanto os objectos, em particular as fotografias, estabelecem conosco uma afinidade que nos permite evocar esse tempo com maior evidência. “Talvez a maior parte das imagens são como ferramentas que nos aliviam da dificuldade de dar forma ao passado, que é em grande parte constituído de raros, impulsos, flashes de cor e fragmentos que procuram uma estrutura.” (Sandlos, 2001 :13) No momento em que Hoffman mostra as fotografias aos seus familiares, as suas reacções são curtas, como fragmentos, evidenciando alguns elementos que estão presentes na imagem e que recordam as lembranças da família naquele tempo.“É possível que o processo de construção de um filme pessoal dependa mais de lapsos de memória do que memória.” (Sandlos, 2001: 16). Estas suscitam palavras, pontuações e comentários resgatados de um texto maior.

Hoffman apropria-se destes fragmentos para dar forma ao seu passado, é com estes que faz uma caracterização de uma fase da sua infância, dando a conhecer o que rodeava. A sua família, os amigos, o cão, as actividades junto ao lago e o hóquei. É através do hóquei, com a sua observação do livro de recortes, que Hoffman evoca o seu passado para o ecrã onde expõem as imagens dos seus sonhos e ambições pessoais de uma forma muito íntima, ao serviço da construção de memória. Trabalhar num registo autobiográfico, envolve um

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conflito constante em torno daquilo que é dado a conhecer tornando-o público, e o que se mantém privado. Mais facilmente se transporta as nossas emoções para uma personagem, do que expomos as nossas emoções na primeira pessoa. Hoffman parece ter encontrado um meio termo sem comprometer a sua história. Não invade de uma forma explicita a sua privacidade, antes pelo contrário. A subtiliza com que trabalha as imagens conduz-nos mais em torno dos seus sentimentos e sonhos do que propriamente a sua vida privada. Talvez se tenha perdido um bom jogador de hóquei mas ganhou-se um poeta que expressa as suas emoções e memórias através de imagens em movimento.

3.2 Sérgio Oksman, ficção do real No decorrer do primeiro ano de mestrado quando iniciava o processo de investigação, tive o primeiro contacto com o filme de Sérgio Oksman, a story for the Modlins (2012), na disciplina de projecto orientada pela professora Susana Sousa Dias. A sua visualização foi determinante, uma vez que nesse momento pesquisava por artistas e obras cujo o foco principal fosse o objecto fotográfico. Aproximadamente um ano após ter visualizado o filme entrei em contacto com o realizador de forma a poder visionar o filme novamente. Este acedeu ao meu pedido prontamente, demonstrando grande disponibilidade, o que me permitiu estudar e realizar uma análise mais aprofundada sobre o seu trabalho. Sérgio Oksman, brasileiro nascido a 1970, originário de São Paulo onde iniciou os seus estudos em jornalismo, tendo mais tarde estudado cinema em Nova Iorque. Em meados dos anos 90 inicia a sua actividade como realizador de documentários para cinema e para televisão. Actualmente reside em Madrid onde é professor de cinema na ECAM e dirige a sua produtora de conteúdos audiovisuais Dok Films. 17

Em 2003 o fotógrafo espanhol Paco Gómez (1971-), membro fundador do colectivo NoPhoto, ao passar por uma rua perto de sua casa em Madrid encontra junto a um lixo um vasto conjunto de cartas, documentos, roupas, vídeos e fotografias que pertenceram aos Modlin, um família de origem norte americana. Este recolheu o máximo de material que pode e procedeu durante anos a uma investigação em torno desta família, que pode ser consultada no livro Los Modlin publicado em 2013. Em 2006, Paco decide passar a história desta família para o cinema e entra em contacto com Sérgio Oksman para assumir a realização. Oksman, debate-se durante alguns anos em torno do projecto, realizando uma série de versões finais sem que alguma destas o tenha satisfeito na plenitude . Até um dia ter encontrado o dispositivo, sobre qual assenta a versão final do 18

filme permitindo o relato da história desta peculiar família.

a story for the Modlins, tem início com um ‘fast forward’ do filme Rosemary’s Baby (1968) do realizador polaco Roman Polanski (1933-). O filme avança em ritmo acelerado e um narrador vai resumindo a sua história até em que na cena final do filme, a velocidade regressa ao normal e num dos planos da cena, a imagem congela. Uma aproximação na

Escuela de Cinematografía y del Audiovisual de la Comunidade de Madrid.17

Informação obtida a partir de uma carta aberta da equipa de rodagem do filme. Disponível na internet, através da 18

página do filme em : http://www.astoryforthemodlins.com. acedido em 20 Junho 2015

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imagem dos figurantes que compõem cena, evidência a presença de Elmar Modlin, o patriarca da família Modlin. A ficção de Polanski acaba por aqui e na imagem surgem um conjunto de fotografias, cartas e documentos encontrados por Paco Gómez. Mas será que a ficção terminou? Uma imagem a branco emerge, umas mãos vão dispondo fotografias de Margaret e Elmar, o casal Modlin (FIG. 5). Uma grande parte do filme é suportado por este dispositivo de apresentação de imagens. Esta tomada de visão coloca o espectador na posição do narrador, que conta a história em torno das fotografias que vai dispondo no ecrã. Ao replicar a acção de contacto e manuseamento das fotografias, transmite uma forte sensação de proximidade entre a história que vai sendo contada e o espectador. O filme vai-se desenrolando, as fotografias vão-se sobrepondo como camadas do tempo, e o narrador vai acrescentando mais pormenores da história da família. Após vários fracassos na carreira de actor, Elmar e Margaret decidem ir viver para Madrid. Por terras espanholas, a família concentra-se na actividade artística de Margaret. Ela dedica-se à pintura, de temas ligados ao apocalipse onde Elmar e o seu filho Nelson são tomados como modelos e referências para os seus quadros. O narrador continua a sua versão da história em torno dos Modlin, com novas fotografias, documentos, cartas, sons e vídeos. Provas que constituem a existência desta família. Mas qual a veracidade da história que o narrador está a contar? Até que ponto estes factos são reais? Sérgio Oksman é muito honesto e num momento em que o espectador ainda esta desprevenido de atenção, nos primeiros minutos do filme, coloca o narrador a dizer o seguinte: “Encontrei a história dos Modlin espalhada pelo chão como um puzzle quebra -cabeças, foi desta maneira que ela veio parar às minhas mãos. As mãos de um estranho, que as vais juntar como ele bem entender.” Em entrevista concedida para o site C7nema, 19

Oksman responde à questão do processo de edificação da história dos Modlin.

“Desde o começo sabíamos que para cada foto havia centenas de vazios. Não seria possível fazer uma biografia de pessoas que já estavam mortas e que não havíamos conhecido. Procurar informação para preencher estes vazios seria uma tarefa infrutuosa. Intuíamos que estes documentos reais deveriam ser amalgamados através de ferramentas da ficção. Para conseguir uma aproximação a pessoas reais através de documentos reais, deveríamos estar abertos a mecanismo subjetivos e arbitrários.” (Oksman, 2012).

Não existe qualquer ligação de Oksman aos Modlin até à realização do seu filme. É uma família anónima, com o qual não tem qualquer ligação afectiva nem estabeleceu qualquer conhecimento pessoal enquanto vivos. Tudo o que resta a documentar a sua existência são estes objectos e estas fotografias. Podemos considerar então que a história desta família se resume ao que foi encontrado. Ainda assim, estes não são suficientes para apresentar a sua vida tal como foi na realidade. Os objectos que são mais recorrentes ao longo do filme, são fotografias. Eles são o motor da história em torno dos Modlin. O que tem estas fotografias a dizer? O narrador conta a sua versão do que estas lhe fazem suscitar

http://www.c7nema.net/entrevista/item/31161-entrevista-a-sergio-oksman-o-homem-que-deu-uma-historia-aos-19

modlin.html acedido a 22 junho 2015

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no pensamento. Este dispositivo voz/imagem, cria uma certa tensão que desperta um misto de curiosidade em torno da família e dúvida sobre a sua história.

Os valores por norma associados à fotografia, como evidência de verdade, conduziram a sociedade a aceitar a fotografia como uma prova da realidade. Mas até que ponto ela nos informa sobre esta realidade? John Berger (1926-), no seu ensaio crítico Appearances (1982), dedica o primeiro capitulo do seu texto à questão da ambiguidade em torno da imagem fotográfica. Berger, ao observar uma fotografia de um homem e um cavalo, analisa como esta faz despertar no seu pensamento um conjunto de questões. Quem é aquele homem? De que ano é? Como se chamava o cavalo? O jogo pode ser infinito tanto em questões como nas respostas. “A fotografia oferece uma prova irrefutável de que este homem e este cavalo realmente existiram. Contudo ela não nos diz nada sobre o seu significado ou existência” (Berger, 1982: 62). Berger vaticina que uma fotografia para além de conter uma mensagem do evento, é fruto de um corte na continuidade temporal. O afastamento ente passado e presente, imagem fotografada e leitor, neste caso Oksman, é de tal maneira grande que a única forma de contar a história dos Modlin passou por juntar as evidências e preencher os espaços em vazio dando forma a um universo ao critério do leitor. Apesar das fotografias apropriadas terem pertencido realmente aos Modlin, o recurso em exclusivo a estas como matéria de estudo da sua vida, serve apenas para limitar certos aspectos da especulação que é possível fazer com estas. O que gera um afastamento do seu real significado. A fotografia parece conter na sua génese ambiguidade. “Todas as fotografias são ambíguas. Todas as fotografias são retiradas de uma continuidade.” (Berger, 1982: 65) Se ambiguidade é fruto de descontinuidade, a continuidade produzirá exactidão? Esta reflexão de Berger sobre a descontinuidade vai de encontro com o que senti as diversas vezes que visualizei o filme. Existe um momento do filme em é reproduzido um pequeno filme feito em casa dos Modlin. São aproximadamente 6 minutos em que Elmar e Margaret percorrem várias divisões da sua casa, onde ambos mostram e explicam os quadros que Margaret pinta. Ainda que este seja fruto de um pequeno momento das suas vidas, sente-se uma maior proximidade com o significado e o mistério que rodeia a vida dos Modelin. Mas se por um lado as imagens são ambíguas e susceptíveis de interpretação livre, a palavra/narração que acompanha a observação das fotografias dos Modelin encaminha o espectador para um significado.

“A fotografia, irrefutável como prova mas fraca em significado, é construída de significado através das palavras. E ás palavras (…) é conferida autenticidade pela irrefutabilidade da fotografia.” (Berger, 1982: 66)

Oksman usa as palavras com mestria para colar todos os pedaços e moldar a sua história dos Modelin. As fotografias conferem credibilidade e sustentabilidade à narrativa que está a ser contada. No entanto, estas acabam por gerar no espectador mais atento uma certa dúvida em torno da interpretação que está a ser feita das imagens. É compreensível que Oksman se tenha debatido com os mais variados impedimentos que o conduziram à realização de diversas versões finais. Certamente ao trabalhar as fotografias deve ter-se perdido nas diversas interpretações que uma fotografia pode tomar. Independentemente de

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todos os problemas que tenha tido antes, o resultado final apresenta um filme muito cativante que desperta o interesse na história dos Modlin e na ambiguidade em torno da fotografia. Oksman constrói a história dos Modlin a partir de um conjunto de objectos que transportam as aparências do que foram as suas vidas. O recurso a ferramentas que fazem parte do cinema de ficção e documental, como o discurso na primeira pessoa ou o recurso ao ponto de vista e a manipulação das fotografias, permitem que nos deixemos conduzir através da narrativa e do significado que Oksman atribui a estas fotografias. O constante confronto entre documento e ficção faz de a story for the Modlins um filme que serve para demonstrar as ambiguidades da fotografia e como estas pode ser utilizadas na construção de memória. A ficção certamente não terminou com o plano final de Rosemary’s Baby.

3.3 Agnès Varda, fluxo da imagem Observar uma imagem fotográfica pode fazer despertar na nossa memória um conjunto de lembranças e ideias que se encandeiam dando origem a outras novas imagens. Este processo pode ser feito até se esgotarem todas as capacidades de evocação de imagens, ou o cansaço mental de por terminado esse desafio. O acto pode-se repetir um número de vezes quase infinito, todas as opções e caminhos trilhados pela mente serão sempre diferentes. Um processo cuja simplicidade e rapidez de formação de imagem mental no nosso pensamento esconde a complexidade de processamentos efectuados pelo cérebro. Agnès Varda, nascida a 1928 em Bruxelas, reside em França. Desde 1955 tem construído uma obra cinematográfica impar. A sua obra é marcada pela alternância entre a ficção e o documentário. Ambos com abordagens que podem ser caracterizadas pela sua maneira única trabalhar a realidade e diversos temas da sociedade contemporânea. O experimentalismo da sua obra cinematográfica torna Agnès Varda uma cineasta de excepção. Ainda que Agnès Varda faça do cinema a sua principal ferramenta de expressão, é através da fotografia que ela constrói os seus primeiros trabalhos. “Como fotógrafa é consciente do poder do significado que cada elemento da imagem desenvolve. A fotografia de Varda atribui uma grande importância ao assunto, (…) não fazendo da fotografia um mero exercício de luz, cor e textura, mas a conjugação de elementos e relações entre estes é devidamente cuidada com o objectivo de produzir significado entre estes.” (Smith, 1998: 13) A prática fotográfica exerce no seu percurso grande influência, ao ponto de recorrer a esta como referência nos seus filmes. Para a análise desta pratica tomei como referência na presente investigação uma reflexão ao seu filme documental de 1982, Ulysse. O primeiro plano de Ulysse apresenta uma fotografia (FIG. 6). Esta fotografia aparenta ser na margem de um rio de um mar onde o solo é composto por pequenas rochas. No canto inferior direito está uma cabra deitada, no superior esquerdo uma criança que olha na direcção da cabra e um homem adulto que contempla o horizonte. Ambos se apresentam nus. Durante alguns segundos é possível contemplar a fotografia sem que nada interrompa ou condicione a leitura da imagem. Estes segundos são os suficientes para que no pensamento do espectador cresçam uma série de questões em torno da natureza desta imagem. Questões estas que em breve se dissipam quando surge a voz de Agnès Varda a

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descrever esta fotografia. Esta fotografia é o porto de partida para Varda efectuar uma investigação em torno da memória e os significados que a imagem encerra. Para isso confronta os intervenientes presentes na imagem cerca de 30 anos após ter registado a fotografia. O primeiro é o homem, Fouli Elia. No seu atelier Varda coloca-o nu, oferece-lhe umas rochas da praia e uma cópia da fotografia. Ele não parece recordar-se daquele momento em particular. No ecrã vão surgindo outras fotografias registadas por Varda na época. Fouli diz-se recordar melhor de certos elementos da sua indumentária, fazendo alusão a uns sapatos e um casaco, do que propriamente os momentos. É curioso que este termine a sua intervenção no filme de Varda com a frase “eu não me quero lembrar”. Ulysse é nome da criança presente na fotografia que dá título à fotografia e ao filme. Já adulto e com família constituída, é dono de uma livraria. Varda recua no tempo e coloca no ecrã um conjunto de fotografia realizadas na época em que convivia com Ulysse, quando este ainda era criança. O local onde habitava, os seus vizinhos, o seu gosto pela fotografia. A sequência de imagens evocadas pela sua memória estão ligadas através das suas palavras. Este sistema de evocação/apresentação é usado de forma recorrente ao longo do filme com grande mestria e simplicidade. Ulysse ao observar a fotografia parece não se recordar daquele momento. No entanto o seu comportamento corporal e a expressão que tem ao comunicar com Varda parecem evidenciar uma certa evasão ao momento registado e às questões. Cria a dúvida se realmente não se lembra daquele período da sua vida ou simplesmente o pretende oprimir e eliminar do seu pensamento. Uma vez mais outro interveniente representado na fotografia parece refutar uma ligação a esta. “A memória é um processo que está intimamente ligado à sua subjectividade: é um processo profundamente pessoal que depende inteiramente da experiência pessoal” (Smith, 1998: 154). Os dois têm certamente os seus motivos para rejeitar ou não quererem evocar as lembranças que podem estar associadas ao momento das suas vidas em que a fotografia foi registada. “A memória implica um certo acto de redenção. O que é recordado foi salvo do nada. O que é esquecido foi abandonado.” (Berger, 1978: 54). Construir memória implica reconhecer o que pretendemos relembrar e condenar o que pretendemos esquecer. É da vontade do próprio optar entre o que guardar ou eliminar da sua memória, ainda que não se possa efectivamente eliminar o trauma ou o consequência de uma experiência do passado. A fotografia não transporta só em si o registo factual do momento que regista. A sua imagem tem a capacidade de despertar em quem a observa uma diversidade de leituras. Ao mostrar a fotografia à Bienvenida, mãe de Ulysse, ficamos a saber que naquele período da sua vida Ulysse sofria de uma doença nos ossos que o poderiam afectar para o resto da vida. Para ela, a fotografia não era certamente uma boa recordação. Nada poderá apagar a experiência pela qual passou e é portanto compreensível que esta queira fazer desaparecer do seu pensamento as recordações dessa época. Num último esforço Varda tenta confrontar uma cabra com a fotografia. Mas o que se pode esperar da opinião ou reacção de um animal sobre uma imagem? Esta por mastigar uma cópia da fotografia. Varda sente não encontrar nos seus intervenientes representados na fotografia qualquer resposta ao que procura, contudo prossegue a sua investigação em torno desta.

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Encontra-se com um grupo de crianças na rua a quem mostra a fotografia e um desenho feito por Ulysse em criança a partir da fotografia. As crianças lêem a fotografia e interpretam-na á sua maneira, interrogando-se e confabulando sobre a sua natureza. Uma delas constata que prefere a fotografia em detrimento do desenho por esta apresentar uma representação mais real. “O que é real no dia em que foi até à praia?” constata Varda, que nos transporta no tempo até ao dia 9 de Maio de 1954. Por entre a evocação de um conjunto de fotografias da época, recorre ao jornais para demonstrar o que era noticiado e ocorria em França nessa data. Ficamos também a saber que nesse ano inicia a realização do seu primeiro filme. Deste modo diz Varda ter “contextualizado a imagem na sua vida e no tempo como ensinam na escola. Mas as histórias e interpretações que se podem retirar destas não estão presentes na imagem.” Ulysse é o exemplo perfeito de simplicidade e complexidade que envolve a interpretação de uma imagem fotográfica. A sua capacidade de evocar no pensamento novas imagens e lembranças é única e pessoal. Esse processo pode ser conduzido ao infinito, uma vez que cada imagem dá origem a uma nova imagem no pensamento. Estabelecendo um paralelismo entre a capacidade da memória humana evocar imagens e as ferramentas tecnológicas. Este acto aproxima-se de uma navegação na internet, saltando de hiperligação em hiperligação. A interpretação de uma fotografia é pessoal, condicionada pela experiência de vida de cada indivíduo. Inclusive o próprio autor, que sabendo distanciar-se da sua memória fotográfica, da ligação afectiva e emocional que rodeia aquele fragmento de tempo pode ao longo do tempo conceber novas interpretações dessa imagem.

4.Reminiscências de Luz

4.1 Método O objecto audiovisual que resulta da investigação presente na dissertação, tem o nome de reminiscências de luz. É um vídeo com duração de 12 minutos que retrata a minha relação com a fotografia e a actividade em torno da construção de um álbum fotográfico. A primeira acção que tomei perante o álbum foi uma análise às fotografias que até ao momento fazem parte deste. Classifiquei-as nas seguintes categorias: locais (Figueira da Foz, Peniche, Caldas da Rainha, Lisboa, sítios), transito/movimento, Verão, mar, Ana, Amigos e observações (FIG. 7). Através destas categorias identifiquei nas imagens as diversas características formais que as permitiam ser rotuladas dentro desse grupo. Muitas fotografias repetem as categorias, sendo possível estabelecer relações entre os diversos grupo, como é o exemplo: mar/Peniche/verão. Após esta separação por pequenos grupos, e apesar das imagens estabelecerem ligações entre si. Esta separação não fez despertar em mim qualquer relação entre experiência e memória. Isto é, no pensamento uma fotografia evocava mentalmente a recordação de um determinado tempo e espaço específicos e não as associava com as restantes imagens da categoria.

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De todas as categorias apenas uma, e só em algumas imagens isso se reflecte. É nas fotografias que tenho do mar, que se repetem imensas vezes. Estas são registadas quando vou fazer caminhadas sozinho pelas praias (FIG. 8). Essas imagens que são bastante semelhantes em termos de conteúdo formal (mar e horizonte) e remetem-me sempre para o estado emocional introspectivo e contemplativo que está sempre presente em mim durante essas caminhadas. Assim sendo percebi que este não seria o melhor caminho a tomar relativamente ao que pretendia construir. Senti que se queria trabalhar em torno das lembranças que uma fotografia desperta tinha de fazer uma investigação mais centrada em exemplos concretos e não numa das categorias que tinha determinado. Na impossibilidade de replicar a capacidade evocativa de todas as fotografias, o que ira tornar o filme impossível de realizar, recorri apenas a algumas fotografias que servem para exemplificar o processo de construção de memórias autobiográficas. Sempre que preencho o álbum com novas fotografias recorro ao mesmo método. Faço uma observação ao meu arquivo fotográfico digital e de película na procura de fotografias que entendo que merecem o seu espaço no álbum. Por vezes acabo por não escolher nada e simplesmente contemplo as imagens. Umas vezes perco-me nas lembranças que estas me despertam, outras dou origem a novos apontamentos que servem de base para desenvolvimento de trabalhos futuros. No caso de seleccionar um grupo de imagens, preparo-as para impressão em papel fotográfico, coloco no álbum e preencho um pequeno papel que indica: local, data e o equipamento que registou aquela fotografia. Inicialmente este último campo fazia sentido, com o tempo reconheço que este não tem qualquer importância e transmite uma informação desnecessária. No entanto e de forma a manter a coerência, tenho mantido o registo desta informação. O método de selecção de imagens é aleatório, intuitivo, e não responde a conceitos pré determinados. É difícil admitir que não existe um critério na escolha das imagens, ou que este é totalmente aleatório. Sei que realidade não é isso que se sucede, no entanto o que pretendo dizer é que estas escolhas são tomadas com base em critérios emocionais e afectivos, e não propriamente racionais. No entanto quero pensar que este tem sido construído de uma forma espontânea dentro dos condicionalismos impostos pelas constantes tomadas de decisão inerentes à técnica fotográfica. As fotografias no álbum não se encontram organizadas de forma cronológica. Uma vez delimitado o campo de acção, procedi a uma procura no meu arquivo de imagens e vídeos que se relacionassem com as lembranças que a fotografia escolhida do álbum evocasse. Este processo foi reconstruído por várias vezes, até estabelecer uma relação de compromisso entre as imagens presentes na minha memória e o que as fotografias e vídeos poderiam evocar. Apesar da delimitação que impunha em cada fotografia, muitas vezes perdia-me neste processo por estas despertarem na minha mente novas imagens. Para este processo foi importante o recurso ao conceito de conhecimento autobiográfico de Conway e Pleydell-Pearce que me ajudou a balizar o campo de acção das imagens. Criei um pequeno guião que me pudesse auxiliar na criação de uma estrutura sólida em termos narrativos. Como é um processo normal de construção de um filme, este foi sendo alterado ao longo do tempo, no entanto tentei respeitar ao máximo a estrutura clássica de três actos: disposição, confrontação e resolução.

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Além dos vídeos e fotografias de arquivo, efectuei novas filmagens com o propósito de montagem e sequência narrativa do filme. Uma cena do filme contém filmagens efectuadas pelo meu pai registadas em cassete vhs no final da década de 80 e na primeira metade dos anos 90. O conteúdo destas foi digitalizado de modo a ser utilizado no filme. As novas filmagens foram efetuadas com o recurso a uma máquina fotográfica digital e um telemóvel. As faixas sonoras contêm: narração, sons e duas música de características meta diegéticas. O som do mar foi gravado para o filme, todos os outros som foram retirados de vários vídeos do meu arquivo. Uma vez concluído o filme, foi construído um texto narrativo que acompanha quase toda a duração do filme, onde vou descrevendo algumas dos acontecimentos registados nas fotografias e coloco algumas questões/reflexões em torno de fotografia, memória e o álbum fotográfico. A edição e tratamento de vídeo e som foi efectuada recorrendo ao software de edição, Final Cut Pro. 4.2 Análise A componente prática da dissertação exerceu uma grande influência na forma como foi conduzida a pesquisa. Desde no início da investigação sabia que pretendia realizar este objecto com o recurso ao vídeo. Durante o período de licenciatura, a minha formação incidiu numa forte componente prática de realização de pequenos exercícios vídeo e no estudo das imagens em movimento. Devido às capacidades do vídeo de uma máquina fotográfica ou de um telemóvel, a portabilidade destes equipamentos e a sua presença do meu dia-a-dia, tenho a possibilidade de efectuar registos em vídeo com uma qualidade de imagem bastante aceitável. Ainda que todo o método e prática da minha actividade enquanto artista se desenvolva com o foco na fotografia, é recorrente utilizar o vídeo como forma de explorar as suas características enquanto ferramenta de expressão e documento. O vídeo apropriou-se das características do cinema e tornou-se um meio de expressão mais amplo. Neste é possível cruzar influências de diversas áreas artísticas, conceber novas abordagens e experiências em torno da imagem, o que resulta em objectos de uma estética muito própria. Uma das características que são próprias do cinema é a sua forma de trabalhar o tempo, estabelecendo a sua própria duração ao contrário da fotografia. Como constata André Bazin (1918-1958) ao confrontar a fotografia com o cinema, “a fotografia não cria eternidade como o faz a arte; ela embalsama o tempo(…), o filme não se contenta em conservar o objecto envolvido, (…) ele liberta a arte da sua catalepsia. Dotando pela primeira vez nas imagens a capacidade de duração” (André Bazin, 1958: 264). No entanto ao recorrer da fotografia como objecto de representação no filme, estou criar um novo tempo e a dotar a fotografia de duração. Outro dos aspectos que é inerente à sua linguagem e que está presente em todos os meus trabalhos fotográficos, é a montagem. A montagem é a ferramenta que permite agregar um conjunto de imagens, com o propósito de as conduzir em função de uma determinada ideia ou pensamento. Mas não só as imagens servem os propósitos da montagem, também o som desempenha um papel fundamental na construção de sequência. Como é caso em reminiscências de luz, onde através da narração vou conduzindo o espectador pelas narrativas e histórias que despertam com as fotografias.

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reminiscências de luz, é resultado de um conjunto de influências provenientes da área do cinema e do vídeo. Para além das obras e dos autores presentes no capítulo Imagem e Memória que servem de referência para a investigação, existem outra(o)s que são referências na minha ligação a este meio, cujas obras considero como fundamentais para a construção deste objecto. Durante a pesquisa tive oportunidade de visualizar o trabalho de Chris Marker (1921-2012), Sans Soleil (1983). Marker contempla através dos sons e imagens uma reflexão na primeira pessoa em torno da construção de memória. Através da narração contempla textos que me fizeram despertar a atenção sobre o tema (FIG. 9). Histoire(s) du Cinéma (1987-1998), de Jean-Luc Godard (1930-), é um ensaio dividido em 8 partes na qual o realizador francês escreve as suas próprias histórias em torno de diversos períodos históricos do cinema. Godard recorre a qualquer material passível de ser utilizado no filme como filmagens, pinturas, fotografias, gravações de voz, texto, sons, música. A realização deste filme só se torna possível com a tecnologia e ferramentas de vídeo das quais Godard, tira partido da técnica de montagem e efeitos de sobreposição, criando relações entre os diversos elementos e conferindo num novo significado nas imagens. Saliento este aspecto de influência significativa, para a montagem do meu filme. A componente visual dos filmes do realizador americano Wes Anderson(1969-). Em todos os seus trabalhos assina planos que são já tornaram marcas da sua obra. Os planos reproduzidos em ‘slowmotion’ e os planos ‘God’s-eye-view’ (FIG. 10) filmados “ em ângulos perpendiculares e apertados(…) onde a cena permite dar um tempo para espectador admirar objectos que definem a personagem” (Seitz, 2013: 56). No filme recorro ao plano ‘God’s-eye-view’ de forma a que o espectador observe as fotografias através da minha perspectiva. Integrando o meu ponto de vista no corpo do espectador. Contacts (2004) e Entre-Imagens (2014), duas séries onde é explorado o universo de diversos fotógrafos, os seus percursos, influências, métodos e processos de trabalho. Contacts é da autoria de Roger Ikhlef, Robert Delire e Sarah Moon (1979-). Dividida em 3 volumes dá a conhecer os trabalhos dos mais influentes fotógrafos contemporâneos mundiais. Entre-Imagens é um projecto de Pedro Macedo e Sérgio Mah, dedicado a um conjunto de fotógrafos relevantes em Portugal. Para além deste conjunto de obras, a análise do Conhecimento Autobiográfico apresentado no primeiro capítulo da dissertação, serviu de base para a construção de 3 momentos (infância, ‘Lisboa’, mar) que considero fulcrais no filme. Segundo o conceito de Conway e Pleydell-Pearce, de forma a gerar uma memória autobiográfica, esta deve recorrer a toda a informação presente no conhecimento autobiográfico do indivíduo , cruzando e identificando o período de vida (com locais, acções, actividades), eventos gerais, e eventos em específico. No momento ‘Lisboa’, através da fotografia da ponte 25 de Abril evoco a primeira vez que estive a viver na cidade em 2012 e a segunda vez em 2014. Documentei os locais onde estive e as actividades que desenvolvi durante a minha estadia. Descrevo as rotinas, e coloco no ecrã imagens de lembranças especificas que foram evocadas pelos meu pensamento durante a realização do filme, como é o caso do vídeo a preto e branco da ponte e um plano no interior da casa.

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Segundo o conceito Conway e Pleydell-Pearce apenas este momento pode ser classificado como uma memória autobiográfica, por ser determinado através de um período de vida, com diversos eventos gerais e em específico. O final do momento ‘Lisboa,’ termina com um plano do rio Tejo que contem o poema Abismo (s.d.) de Fernado Pessoa (1888-1935). Recorri a este poema, uma vez que neste o 20

poeta estabelece uma relação com um momento de contemplação do rio Tejo e a procura interior. Este sentimento de contemplação e reflexão que o rio oferece, foi associado à fotografia da praia que faz despertar o momento mar. Neste momento, classificado com evento geral, onde as fotografias se vão repetindo e sobrepondo dou a entender que este é uma actividade que se repete de forma regular durante a minha vida. Através do som, procurei replicar a experiência de conflito interior de pensamentos e a tranquilidade que o local e o som das ondas do mar inflectem no meu estado de espírito, apaziguando um estado de espírito conflituoso que se transforma em calma e paz interior. O momento infância, retrata um período de vida, e através deste não é despertada qualquer memória autobiográfica, sendo uma mera sequência de fragmentos de vídeo documentados pelo meu pai. Em termos sonoros, a narração vai sendo determinada pela forma como as imagens aparecem no ecrã. Ou seja, as imagens é que determinam a palavra. Sendo que existe num momento no qual esta função se inverte, em que as palavras é que determinam imagens no meu pensamento. A reprodução de um som específico que se repete ao longo do filme, antevê um ‘flashback’, quando é colocada no ecrã a imagem de algo que me foi despertado na memória, mas que se encontra fora da narração. O filme contem duas faixas musicais que se revezam entre si durante o filme. As músicas Olson (1998) e Wild Life Analisys (1996) pertencem ao grupo de música electrónica Boards of Canada. A reprodução destas foi invertida com a intenção de através do som conceber uma analogia de retrocesso temporal, assim como a sua velocidade de reprodução foi ajustada para a duração total do filme.

http://arquivopessoa.net/textos/574 consultado em 6 Outubro 201520

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Conclusão

Memória Autobiográfica: Através do álbum fotográfico é o resultado da pesquisa em torno de questões que derivam de memória e fotografia. Aliando reflexões e ideias, de diferentes áreas de estudo, foi possível conceber um pensamento em torno dos suportes de memória virtual e como memória e fotografia se cruzam. A criação dos suportes de memória virtual permitiram que o Homem perpetuasse num objecto um conjunto de informações, que até então só podiam registar e evocar através da sua capacidade memória. Na análise de Freud aos suportes que replicam essas funções verificam-se as fragilidades e virtudes destes sistemas. Através do estudo do Conway e Plydell-Pearce é possível verificar que de forma a despertar uma memória autobiográfica, é necessário evocar um sistema complexo de processos que cruzam toda a informação processada e arquivada pelo indivíduo durante a sua vida, a base de conhecimento da memória autobiográfica. Depreende-se que os suportes de memória virtual são ferramentas úteis que registam um determinado dado, servindo apenas como agentes de registo e activação de memória, e que não replicam o processos cumulativos e interpretativos inerentes às capacidades de memória do cérebro. Com o aparecimento da fotografia, esta permitiu a inscrição de fragmentos de luz recorrendo a um novo suporte. A sua forte ligação ao real e a sua capacidade de criar provas fidedignas da existência rapidamente serviu de mote para a sua democratização e comercialização entre as massas, apelidando este novo suporte como o registo de memórias pessoais. Com a fotografia digital e as mais recentes inovações no campo da tecnologia e das telecomunicações, a fotografia passa ter o ecrã digital como suporte e a sua comunicação é agora global. Esta introdução vem alterar os comportamentos e valores das pessoas perante a imagem fotográfica. O que outrora era registado com o intuito de evocar o passado no futuro, no presente ganha novos contornos ao se integrar na experiência de comunicação do momento. Também a fotografia, enquanto suporte de memória virtual, falha no processo de construção de memória, por ser dotada apenas da capacidade de registo e activação de lembranças. O álbum fotográfico, sendo um objecto que possibilita a personalização e integração de um sistema de imagens, permite estar além do mero registo autobiográfico. Uma vez que este dispõem da capacidade de arquivar elementos que documentam parte da história de um indivíduo. O álbum possibilita a cada leitura a concepção de uma nova interpretação e significado em torno das imagens que registam a vida do indivíduo que o criou. No campo artístico a abordagem em torno do tema de memória é bastante vasto, sendo um tema recorrente em todas as áreas artísticas. O trabalho de Philip Hoffman transmite uma forte capacidade de construção de emoções afectivas através da relação pessoal que estabelece com as imagens. De todos os trabalhos analisados, este é o que se revela como o mais evidente na geração de memórias autobiográficas segundo o conceito de memória autobiográfica. Ainda que a obra de Agnès Varda apresente momentos nos quais se formam memórias autobiográficas, o seu filme e o de Sérgio Oksman acabam por se revelar como objectos mais analíticos e reflexivos. A obra de Varda é essencial para desmontar uma série de questões sobre a fotografia, como a memória fotográfica e a capacidade da fotografia

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despertar no pensamento uma série de imagens em torno desta. Oksman, segue o mesmo caminho, revelando a capacidade ambígua das imagens fotográficas e como através destas e das palavras é possível construir histórias com diferentes memórias e significados.

Estas obras foram determinantes para que reminiscências de luz pudesse se construído com o propósito de atribuir significado a um conjunto de fotografias. A investigação permitiu adquirir novas perspectivas e conhecimentos, assim como desmontar uma série de questões em torno da capacidade de memória dos objectos, das capacidades do indivíduo e das características do meio fotográfico. Memória Autobiográfica: Através do álbum fotográfico é uma singela homenagem em torno dos objectos fotográficos e a sua importância na documentação e construção de memória de um indivíduo.

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Kracauer, 1927 Kracauer, Siegfried. Fotografia. in Alan Trachetenberg Ensaios sobre Fotografia de Niépce a Krauss. (Trad. Manuela Gomes). Orfeu Negro. 2013. 268 Orwell, 1949 Orwell, George, 1984. Antígona. 2012. 35

Sandlos, 2001 Sandlos, Karyn e Hoolboom, Mike. Landscape with shipwreck : first person cinema and the films of Philip Hoffman. Images Festival of Independent Film and Video e Insomniac Press. 2001 pp 13-16. [Acedido em 26 Novembro 2014] http://www.philiphoffman.ca/film/publications/lws/HOFFMAN1a.pdf

Seitz, 2013 Seitz, Matt Zoller, The Wes Anderson Collection. Abrams Books. 2013. 56

Smith, 1998Smith, Alison. Agnès Varda. Manchester University Press. 1998. [Acedido em 23 Set 2015] https://books.google.pt/books?id=IxgNAQAAIAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false

Sontag, 1977 Sontag, Susan. On Photography. Penguin Classics. 2014. 8

Stamatakis e Weiler, 2010Stamatakis, Emmanuel e Weiler, Richard. Laziness will send us to an early grave. 2010 [Acedido em 20 Junho 2015] http://www.bbc.com/news/health-11442101

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Talbot, 1844-46 Talbot, William Henry Fox. Breve esboço Histórico da Invenção da Arte. in Alan Trachetenberg Ensaios sobre Fotografia de Niépce a Krauss. (Trad. Luís Leitão). Orfeu Negro. 2013. 47

Yates, 1966Yates, Frances. The Art of Memory. Ark Paperbacks. 1966. xi, pp 2-4 [Acedido em 20 Novembro 2014] http://monoskop.org/images/b/be/Yates_Frances_A_The_Art_of_Memory.pdf

Referências Vídeo

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Godard, Jean-Luc (1988-1998), Histoires(s) du cinéma. Disponível em DVD

Hoffman, Philip, (1978), On the Pond. Disponível em https://vimeo.com/38672820 , acedido em Abril de 2014.

Macedo, Pedro e Mah, Sérgio (2014), Entre-Imagens. Disponível em http://www.entreimagens.com, acedido em Maio de 2015

Marker, Chris (1983), Sans Soleil. Disponível em DVD

Oksman, Sérgio, (2012), A Story for the Modelins. Disponível em https://vimeopro.com/ecam/a-story-for-the-modlins, acedido em Junho de 2015.

Delire, Rober; Ikhlef, Robert e Moon, Sarah (2004), Contacts, Disponível em DVD

Anexos

reminiscências de luz disponível em https://vimeo.com/150111474 (password : luz) e no Cd-Rom que acompanha a dissertação.

FIG. 1 Espólio fotográfico pertencente aos meus pais.

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FIG. 2

A estutura do conhecimento autobiográfico definida por Conway e Pleydell-Pearce. Estrutura de formação de uma memória autobiográfica e sequência de activação a partir de períodos da vida, despertando eventos gerais e subsequentemente episódios em específico.

FIG. 3Anuncio da Kodak, no primeiro número da The Photographic Herald and Amateur Sportsman, Novembro 1889. [Acedido em 9 Abril 2014] Disponível em http://www.thehenryford.org/exhibits/pic/1999/99.aug.html

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FIG. 4 Anuncio de 1922 da Kodak australiana apelando à memória. [Acedido em 5 Abril 2014] Disponível em http://nzetc.victoria.ac.nz/tm/scholarly/VUW1922_42Spik-fig-VUW1922_42Spik073a.html

FIG. 5 Fotograma do filme a story fot the modlins.

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FIG. 6 Fotograma da fotografia de Agnès Varda em Ulysse.

FIG. 7 Conjunto das diversas fotografias do meu arquivo organizadas por categorias.

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FIG. 8 Fotograma da sequência de fotos mar do filme reminiscências de luz.

FIG. 9 Fotograma do filme Sans Soleil de Chris Marker, evocando a memória.

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FIG. 10 Fotogramas de filmes de Wes Anderson com o plano ‘God’s eye’ Moonrise Kingdom (2012), The Life Aquatic with Steve Zissou (2005), The Royal Tenenbaums (2001), Darjeeling Limited (2007), Rushmore (1999) e Bootle Rocket (1996).

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