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Antônio Fernando de Araújo Sá 37 HISTÓRIA E ESTUDOS CULTURAIS: O Materialismo Cultural de Raymond Williams Antônio Fernando de Araújo Sá Doutor em História Cultural pela Universidade de Brasília Professor Associado do Departamento de História da Uni- versidade Federal de Sergipe Email: [email protected] Resumo Este artigo pretende estabelecer uma reflexão sobre a atualidade das ideias do pensador marxista Raymond Williams sobre as principais tendências da teoria cultural contemporânea. Herdeiro da tradição britânica de crítica cultural materialista, que articula a produção artística às condições materiais da sociedade, seu trabalho transitou entre a crítica e a produção literária, ao mesmo tempo em se preocupava com uma crítica cultural que interviesse na sociedade contemporânea. Desse modo, seu projeto inte- lectual coloca as principais questões em jogo nos estudos culturais, proporcionando uma leitura instigante da “crise da cultura contemporânea”, especialmente por polemizar com alguns setores dos estudos culturais, que abdicaram de uma crítica engajada contra a sociedade capitalista. Palavras-chave: Marxismo, Estudos Culturais, Sociedade Contemporânea, Pensadores Radicais e Nova Esquerda. Abstract This article aims to establish a reflection about the relevan- ce of the Marxist thinker ideas, Raymond Williams and the main aspects of the contemporary cultural theory. Heir to the British tradition of cultural materialist criticism, combi- ning an artistic production to material conditions of society, Williams´ work moved between criticism and literary pro- duction. He also looked, with special attention, at the cul- tural critic as a way to intervene in contemporary society. Thus, his intellectual project poses the main issues in cultu- ral studies, providing a provocative reading of “Crisis of con- temporary culture”, especially arguing with some sectors of cultural studies, who abdicated critical engagement against capitalist society. Key-words: Marxism, Cultural Studies, Contemporary So- ciety, Radical Thinkers and New Left. PONTA DE LANÇA. Ano 4, n.8, p. 37-44. Abr 2011 - Out 2011

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    HISTRIA E ESTUDOS CULTURAIS:O Materialismo Cultural deRaymond Williams

    Antnio Fernando de Arajo SDoutor em Histria Cultural pela Universidade de BrasliaProfessor Associado do Departamento de Histria da Uni-versidade Federal de SergipeEmail: [email protected]

    Resumo

    Este artigo pretende estabelecer uma reflexo sobre a atualidade das ideias do pensador marxista Raymond Williams sobre as principais tendncias da teoria cultural contempornea. Herdeiro da tradio britnica de crtica cultural materialista, que articula a produo artstica s condies materiais da sociedade, seu trabalho transitou entre a crtica e a produo literria, ao mesmo tempo em se preocupava com uma crtica cultural que interviesse na sociedade contempornea. Desse modo, seu projeto inte-lectual coloca as principais questes em jogo nos estudos culturais, proporcionando uma leitura instigante da crise da cultura contempornea, especialmente por polemizar com alguns setores dos estudos culturais, que abdicaram de uma crtica engajada contra a sociedade capitalista.

    Palavras-chave: Marxismo, Estudos Culturais, Sociedade Contempornea, Pensadores Radicais e Nova Esquerda.

    Abstract

    This article aims to establish a reflection about the relevan-ce of the Marxist thinker ideas, Raymond Williams and the main aspects of the contemporary cultural theory. Heir to the British tradition of cultural materialist criticism, combi-ning an artistic production to material conditions of society, Williams work moved between criticism and literary pro-duction. He also looked, with special attention, at the cul-tural critic as a way to intervene in contemporary society. Thus, his intellectual project poses the main issues in cultu-ral studies, providing a provocative reading of Crisis of con-temporary culture, especially arguing with some sectors of cultural studies, who abdicated critical engagement against capitalist society.

    Key-words: Marxism, Cultural Studies, Contemporary So-ciety, Radical Thinkers and New Left.

    PONTA DE LANA. Ano 4, n.8, p. 37-44. Abr 2011 - Out 2011

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    Para Vencio Arthur de Lima

    Desde meados do sculo XX, os Estudos Culturais tm exercido grande fascnio entre os intelectuais de todos os continentes do planeta, constituindo-se num amplo movimento intelectual, relativamente institucionaliza-do. Os Estudos Culturais britnicos tm sua origem em uma conjuntura terica especfica nos anos 1950, na qual o debate cultural estava num beco sem sada entre o no refinado determinismo econmico do marxismo comunista britnico e o endmico conservadorismo poltico e elitismo cultural do movimento liderado por F. R. Leavis, que, a partir da revista Scrutiny, criada em 1932, empreendeu uma cruzada moral e cultural contra o embrutecimento praticado pela mdia e pela publici-dade (MILLNER, 1994, p. 45).

    mesma poca, historiadores e militantes do movi-mento operrio tambm reconhecem o patrimnio urbano e operrio das canes industriais, atravs de clubes de folk, trazendo consigo o debate sobre a cul-tura popular. Este inventrio etnogrfico das canes durante o processo de industrializao inglesa realiza-do por historiadores autodidatas, como o comunista ingls Ewan Macoll, formar o imaginrio dos jovens historiadores da dcada de 1960 em torno da History Workshop. No podemos esquecer a emergncia da histria local, construda por historiadores profissio-nais, sindicalistas e militantes polticos, utilizando-se da metodologia da histria oral, consolidada ao longo dos anos 1970, com o objetivo de recuperar the voice of the past (SAMUEL, 1991, p. 102-118).

    Nessa conjuntura, podemos perceber uma articulao entre os Estudos Culturais britnicos e a Histria Social inglesa de aproximao do social e do cultural com a pu-blicao de trs livros: Utilizaes da Cultura (1957) de Ri-chard Hoggart, Cultura e Sociedade (1958), de Raymond Williams e A formao da classe operria inglesa (1963), de E. P. Thompson. Estes textos seminais e de formao fundamentaram a reflexo sobre cultura e sociedade nos anos 60/70, introduzindo elementos novos para se pen-sar as questes de cultura (HALL, 2003, p. 131-159).

    O primeiro livro insiste que a ao das novas foras ligadas cultura de massa est mudando os valores e significa-dos da cultura da classe trabalhadora, como o caso do mundo da cano de clube (os anteriormente mencio-nados clubes de folk) que vai sendo substitudo pouco a pouco pelas canes de rdio, das variedades da televiso e dos programas da rdio comercial. Hoggart denunciava a tendncia uniformizao cultural com a constituio de uma cultura sem classe, mais pobre por ser completa-mente incaracterstica. Entretanto, tambm rejeitava a po-larizao entre a cultura erudita e cultura popular, na me-dida em que esta ltima um espao de aprendizagem e formao de senso crtico, resultado de um processo de dominao e resistncia (HOGGART, 1975, p. 220 e 222).

    J o livro de Williams se propunha a realizar uma ampla reviso dos fatos relativos histria cultural, tomando como palavra-chave o conceito de cultura na sua interli-gao com a vida social. Sua inteno foi a de descrever e analisar o complexo desses traos, dando idia de seu de-senvolvimento histrico. Desse modo, o autor percebeu que no poderia restringir-se ao conceito de cultura, pois, na histria da palavra, na estrutura de seus significados, o que ele via era um movimento amplo e geral de idias e sentimentos (WILLIAMS, 1969, p. 19). Portanto, o objetivo do livro era uma tentativa de mostrar que o conceito de cultura e a prpria palavra surgiram no pensamento in-gls durante a Revoluo Industrial. Entretanto, para ele, seu objetivo no foi apenas distinguir as palavras-chave do sistema de referncia do mundo contemporneo (in-dstria, democracia, classe, arte e cultura), mas tambm de relacion-los com suas origens e efeitos.

    Assim, o importante no s analisar o contedo, mas tambm o emissor e o destinatrio da mensagem cul-tural. Tomando as comunicaes como um sistema de produo baseado materialmente e socialmente deter-minado, o autor foi sensvel s implicaes do desenvol-vimento tecnolgico sem cair no determinismo tecnol-gico, especialmente por conta do fascnio hoje exercido pelas novas tecnologias de informao. Por outro lado, vindo da tradio de estudos literrios, Williams tratou tambm das especificidades do texto, sem cair no mo-dismo terico da autonomia absoluta do sistema de sig-nificados (GARNHAM, 1998, p. 123-131).

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    No mesmo patamar, podemos incluir o livro de Thomp-son como renovador da abordagem cultural dentro da tradio marxista britnica, quando analisa as experi-ncias da classe trabalhadora dos anos 1790/1830, par-tindo do questionamento do determinismo econmico e a negao da ao humana, na medida em que, para ele, o marxismo pode ser melhor entendido como uma teoria da histria, no como leis da histria, em que os seres humanos vivem padres de desenvolvimento pr--determinados (KAYE, 1989, p. 160).

    Em seu magnfico livro, A Formao da Classe Operria Inglesa (1963), Thompson estabelece um dilogo com a noo de classe dentro da teoria marxista, reafirmando--a como um fenmeno histrico, que unifica uma srie de acontecimentos dspares e aparentemente desconec-tados, tanto na matria-prima da experincia como na conscincia. Nesse sentido, ao contrrio daqueles que pensavam a classe como uma estrutura, o historiador prope como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocor-rncia pode ser demonstrada) nas relaes humanas (THOMPSON, 1987, p. 9).

    Os textos fundadores de Williams, Hoggart e Thompson, cada um a seu modo, tinham vinculaes histricas com a luta social e cultural da classe operria, combatendo as concepes elitistas de educao e, principalmente, propugnando a definio de uma cultura comum, su-ficientemente ampla para incluir a cultura popular ou a cultura mediada pelos meios de comunicao de massa (SHULMAN, 2004, p. 178).

    Desse modo, nestes trabalhos, a cultura era entendi-da como lugar da luta pela hegemonia, forjando um amplo dilogo com Nova Esquerda e o movimento trabalhista na Gr-Bretanha (MILNER, 2007, p. 420-427; MELLOR, 1992, p. 663-670).

    Contudo, nas ltimas dcadas, percebemos que as prin-cipais correntes do pensamento nas cincias humanas esto marcadas pela disperso terica, com o desmoro-namento da teoria predominante na dcada de 1970 marxista, feminista e estruturalista e o fim da rebeldia dos radicalismos polticos nos anos 1980. Assim, os Estu-dos Culturais, desde os anos 1990, parecem ter se afasta-

    do do momento marxiano inicial, presente nas obras de R. Williams, E. P. Thompson e Stuart Hall. Paulatinamente, as categorias como culturalismo, estruturalismo, ps-es-truturalismo e ps-modernismo tm balizado as prticas pedaggicas e o campo da pesquisa dos Estudos Cultu-rais nos mais diversos Departamentos das Universidades de todo o mundo. Isso parece ter levado a uma posterior despolitizao dos Estudos Culturais. Ainda assim talvez os Estudos Culturais sejam a ltima verso do tradicional projeto vanguardista de transpor as barreiras entre arte e sociedade, mas esse projeto passa por um processo de institucionalizao (EAGLETON, 2006).

    No debate atual sobre as possibilidades e perspecti-vas dos Estudos Culturais, a obra de Raymond Williams (1921-1988) reafirma a atualidade do dilogo entre a histria e os Estudos Culturais, a partir da tradio britnica de crtica cultural materialista, que articula a produo artstica s condies materiais da socieda-de. Ao mesmo tempo em que transita entre a crtica e a produo literria, ele se preocupa com uma crtica cultural que analise e intervenha na realidade social. Desse modo, seu projeto intelectual proporciona uma leitura instigante da crise da cultura contempornea, especialmente por polemizar com os estudos de cul-tura, especialmente durante os anos 1990, que abdi-caram de uma crtica engajada da cultura.

    Aps mais de 20 anos de sua morte, mais que neces-srio rever o legado terico de Williams, a partir do con-ceito de materialismo cultural, que bem demonstra que as denominaes nunca so inocentes: a fixao de um sentido resultado de disputas que envolvem mui-to mais que a lingstica (CEVASCO, 2001, p. 115). Para compreend-lo, necessrio observar duas dimenses de Williams: a trajetria pessoal e o movimento intelec-tual ligado New Left britnica. O carter formador de sua origem operria um dos diferenciais que marcam o pensamento de Williams, como fica claro no prefcio ao livro Marxismo e Literatura, em que lembra que os ar-gumentos culturais e literrios eram, na realidade, uma extenso da aplicao poltica e econmica do seu cres-cimento numa famlia de classe operria, ou uma forma de filiao dela (WILLIAMS, 1979, p. 8).

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    Da New Left britnica, herdeira da tradio marxista in-glesa, iniciada em 1910 e reiterada em 1946, com o Comunist party historians group (E. P. Thompson, Eric Hobsbawm, Cristopher Hill e Rodney Hilton), o autor em-preende um esforo crtico de anlise da conscincia so-cial em seus aspectos concretos da vida cotidiana. Desde os anos 1940, havia a percepo de que o estudo sobre a cultura possibilitava entender o funcionamento da so-ciedade numa perspectiva crtica, visando transform-la. Nesse sentido, a educao para adultos foi parte impor-tante da atuao institucional da New Left, destacando a participao ativa de R. Williams e E. P. Thompson na Workers Education Association, um projeto de instruo universitria para adultos. Por outro lado, a criao da re-vista New Left Review, em 1960, representou o acesso na Inglaterra da produo intelectual do marxismo ociden-tal, com a traduo e discusso das obras de G. Lukacs, A. Gramsci, B. Brecht, a Escola de Frankfurt e o marxismo francs. Esta revista desempenhou um papel fundamen-tal na formulao do materialismo cultural (CEVASCO, 2001, p. 120 e seguintes).

    Podemos identificar trs fases da produo intelectual de Raymond Williams. O primeiro perodo est centrado na categoria de experincia para a anlise literria e dra-mtica, em obras como Reading and Criticism (1950), Dra-ma from Ibsen to Eliot (1952), Preface to filme (1954) e Dra-ma in Performance (1954). O segundo momento aquele em que o autor desenvolve uma anlise geral da cultura dentro da estrutura literria, dialogando com a herana de F. R. Leavis e a tradio cultural materialista britnica. As obras representativas deste perodo so Cultura e So-ciedade (1958) e Long Revolution (1961). J na dcada de 1970 e 1980, Williams concentrar-se- seus esforos na construo de uma teoria materialista da cultura, forjada nos livros Marxismo e Literatura (1977) e Cultura (1981) (LONGHURST, 1990, p. 519-527).

    Fixar-nos-emos nas duas ltimas fases da obra de Willia-ms, na medida em que formula uma crtica consistente metfora base e superestrutura presente no marxismo, j que as noes de cultura, ideologia, linguagem, simbli-co eram insuficientemente desenvolvidas por conta do reducionismo e economicismo vigente dentro do mar-xismo (HALL, 2003, p. 199-218). No prefcio ao livro Mar-

    xismo e Literatura (1977), Williams descreve brevemente o materialismo cultural como uma teoria das especifici-dades da produo cultural e literria material, dentro do materialismo histrico (WILLIAMS, 1979, p. 12). Como no possvel pensar o marxismo sem a ideia de deter-minao, Williams concebe o materialismo cultural como alternativa metfora base/superestrutura, pensando a cultura como produto e produo de um modo de vida determinado, e no como reflexo de uma base socioeco-nmica (CEVASCO, 2001, p. 138).

    O importante no seu trabalho sua preocupao em enfocar conceitos no como codificaes fechadas, mas como movimentos histricos, que levam s vezes a for-mulaes conflitantes, em torno do problema central da teoria marxista da cultura: os modos de sua deter-minao social e econmica. A arte tambm material, na medida em que uma atividade que se desenvolve sobre algo que material, seguindo formas e conven-es que so histricas e sociais. Portanto, a sociedade constituda e constituinte da cultura. Ento, o que se busca definir a unidade qualitativa do processo scio--histrico contemporneo e especificar como o poltico e o econmico podem e devem ser vistos nesse processo (WILLIAMS, 1979, p. 146 e 148).

    Dois conceitos so fundamentais para o materialismo cul-tural. Primeiro, pensando a cultura no contexto de uma totalidade social em processo, Raymond Williams sugere que a teoria de hegemonia de Gramsci abre para o estu-do da cultura um campo de possibilidades polticas enor-mes. Nela, as formas de determinao poltica das prticas culturais devem ser pensadas de modo mais conjuntural e flexvel do que o modelo marxista clssico. Segundo Gramsci, as ideias s se tornam efetivas se, ao final, elas se juntarem a uma constelao particular de foras sociais. Nesse sentido, a luta ideolgica faz parte de uma luta so-cial geral por controle e liderana - pela hegemonia.

    Portanto, a melhor forma de se conceber a relao entre ideias dominantes e classes dominantes em termos de processos de dominao hegemnica. Nesse sentido, no que se refere ao desempenho dos meios de comunica-o na construo da hegemonia, h a sugesto de que devemos analis-los no apenas como suportes ideol-

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    gicos dos sistemas hegemnicos de pensamento, mas tambm como lugares de produo de estratgias que objetivam reformular o processo social (MORAES, s/d).

    Inspirando-se nestas ideias, Williams reafirma a mobili-dade das articulaes polticas e ideolgicas das prti-cas culturais, pois depende da rede de relaes sociais e ideolgicas na qual esto inscritas e como conseqn-cia dos caminhos por onde, em determinada conjuntura particular, se articulam com outras prticas. O termo es-trutura de sentimento, forjado por ele para dar conta da relao dinmica entre experincia, conscincia e lingua-gem, outro conceito central dentro da teoria do ma-terialismo cultural, na medida em que representa qual-quer sentido da cultura de um perodo. As estruturas de sentimento so, antes, precisamente aqueles elementos particulares dentro da cultura mais geral que ativamen-te antecipa subseqentes mutaes da cultura geral em si, isto , elas so completamente contra-hegemnicas (MILLNER, 1994, p. 55).

    A citao de Williams explicativa do conceito pode ser considerada longa, mas esclaredora:

    As estruturas de sentido podem ser defini-das como experincias sociais em soluo, distintas de outras formaes semnticas sociais que foram precipitadas e existem de forma mais evidente e imediata. Nem toda a arte, porm, se relaciona com uma estrutura contempornea de sentimentos. As forma-es efetivas da maior parte da arte presen-te se relacionam com formaes sociais j manifestas, dominantes ou residuais, sendo principalmente com as formaes emer-gentes (embora com freqncia na forma de modificaes ou perturbaes nas ve-lhas formas) que a estrutura de sentimento, como soluo, se relaciona. Mas essa solu-o especfica no nunca um mero fluxo. uma formao estruturada que, por estar na margem mesma da disponibilidade semn-tica, tem muitas das caractersticas de uma pr-formao, at que as articulaes espe-cficas novas figuras semnticas so des-cobertas na prtica material por vezes de formas relativamente isoladas, que s mais

    tarde so vistas como parte de uma gerao (com freqncia de uma minoria) significa-tiva, e que por sua vez em muitos casos tem ligao substancial com seus antecessores (WILLIAMS, 1979, p. 136).

    Como explica Cevasco, a estrutura de sentimento a articulao de uma resposta a mudanas determina-das na organizao social. Esse conceito serve, ento, para trazer teoria o sentido que se vive efetivamente na prtica social. Portanto, para Williams, experincia sempre social, material e histrica. Nesse sentido, a es-trutura de sentimento

    a articulao do emergente, do que se escapa fora acachapante da hegemonia, que certamente trabalha sobre o emergen-te nos processos de incorporao, atravs dos quais transforma muitas de suas arti-culaes para manter a centralidade de sua dominao (CEVASCO, 2001, p. 158).

    Vemos aqui Williams uma aproximao com a proposta de Lucien Goldman, no que se refere ideia de estrutu-ralismo gentico, que continha em si mesmo uma rela-o entre os fatos social e literrio, cuja relao no era uma questo de contedo, mas de estruturas mentais (HALL, 2003, p. 138). Essa vinculao ao pensamento de Goldman, sugerida por Stuart Hall, se manifesta em um artigo escrito por Williams em memria do autor franco--romeno. Num primeiro momento, com o livro The Long Revolution, quando ainda no dialogava diretamente com as obras de G. Lukcs e L. Golmann, representan-tes do marxismo ocidental, Williams j propunha uma leitura da cultura como modo de vida, na qual criticava a frmula marxista de base e superestrutura, propondo uma ideia mais ativa de um campo de foras que se de-terminam mutuamente, mas tambm de forma desigual. Nesse sentido, alm de estudar as formas expressas nas obras de arte, temos de articul-las tambm a formas e relaes da vida social mais geral. Posteriormente, o au-tor se aproximou do arcabouo conceitual de Goldmann, por meio da noo de estrutura de sentimento, de-monstrando a justeza de suas ideias em torno do sujeito coletivo, na qual o artista ou cientista social faz sua refle-xo no fora, mas no interior da sociedade, bem como do conceito de viso de mundo, como uma particular e

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    organizada forma de ver o mundo. Para Williams, os atos criativos compem, dentro de determinado perodo his-trico, uma comunidade especfica: uma comunidade visvel na estrutura de sentimento e demonstrvel, acima de tudo, na fundamental escolha das formas (WILLIAMS, 2005, p. 20 e 24-25).

    Portanto, a discusso terica sobre a cultura no pode se isentar do mais rigoroso exame de sua prpria situao e das formaes sociais e histricas em que se insere, ou de uma anlise conjunta de suas premissas, proposies, mtodos e resultados (WILLIAMS, 2007, p. 163). Enfim, o importante estudar as prticas e produtos culturais sem perder de vista os condicionamentos histricos exis-tentes, fugindo, assim, da leitura do texto em si, prxima de um formalismo que rejeita, aprioristicamente, a hist-ria. Desse modo, o paradigma da linguagem continua a ser um ponto de partida chave para o entendimento do texto, mas centrado na perspectiva de uma linguagem social sistemtica e dinmica, distinta do paradigma lin-gustico. Na anlise histrica, o que se apreende a

    atividade extensa e interpenetrante de formas artsticas e relaes sociais reais ou desejadas. (...) Trata-se da descoberta constante de formaes genunas que se-jam simultaneamente formas artsticas e localizaes sociais, com toda a evidncia propriamente cultural de identificao e apresentao, posio local e organizao, inteno e inter-relao com outros, mo-vendo-se to claramente em uma direo as obras elas mesmas como em outra: a resposta especfica sociedade (WILLIA-MS, 2007, p. 175).

    Essa assertiva proposta em conferncia realizada em 8 de maro de 1986, em Oxford, se contrapunha ao ce-nrio do debate literrio dos anos 1980, marcado pelo novo historicismo, cujo expoente Stephen Greenblatt colocava, sob fogo cerrado, as noes de verdade his-trica, causalidade, padro, propsito e direo, de cla-ra perspectiva ctica do ponto de vista epistemolgico. Tambm no mbito da historiografia, Frank Ankermist, em The Origins of Postmodernist Historiography (1994), afirmava que o historiador ps-modernista reivindica a

    substancialidade do texto, pois a representao histrica consiste, essencialmente, na produo de um objeto lin-gustico que tem a funo cultural de ser um substituto para o passado ausente e que o texto histrico deve ser tratado como objeto. Ao relacionar-se com o conjunto de variaes do tema saussuriano da difference, a teoria ps--modernista conduz suas reflexes sobre a diferena, em muitos casos, resultando na tese de que no existe nada fora do texto (ANKERSMIT, 1994).

    O impacto dessa virada lingstica para os estudos cul-turais se materializa nas afinidades eletivas com as ideias de M. Bakhtin, na medida em que, com Marxismo e Filoso-fia da Linguagem, este ltimo exerceu uma funo crtica no deslocamento terico geral da metfora base e su-perestrutura para uma concepo do ideolgico plena-mente focado em discurso-e-poder. Com ele, se estabe-leceu o carter definitivamente discursivo da ideologia, ao afirmar que O domnio da ideologia coincide com o domnio dos signos. (...) Tudo que ideolgico possui um valor semitico (HALL, 2003, p. 230). Tambm reiterou que a luta pelo significado se d como desarticulao e rearticulao dos diferentes ndices de valor ideolgico dentro do mesmo signo (BAKHTIN, 1988).

    Desse modo, o trabalho de Bakhtin colaborava em dar respostas s novas teorias da linguagem e semitica, ao enfatizar a linguagem como o meio por excelncia atra-vs do qual as coisas so representadas no pensamento, sendo, portanto, o meio no qual gerada e transforma-da. Porm, na linguagem, a mesma relao social pode ser distintamente representada e inferida. E isso ocorre porque a linguagem, por natureza, no fixada a seus referentes em uma relao de um por um, mas multir-referencial: pode construir significados em torno do que aparenta ser a mesma relao social ou fenmeno.

    Terry Eagleton assinala que o ressurgimento do interes-se na obra de Bakhtin nos anos 1980 prometia unir as preocupaes textuais, corporais ou discursivas dos ps--estruturalistas a uma perspectiva mais histrica, mate-rialista ou sociolgica. Compartilhando com esta leitura, Williams pode ser considerado o principal representan-te do materialismo cultural, realizando uma espcie de ponte entre o marxismo e o ps-modernismo e, ao mes-

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    mo tempo, reavaliando radicalmente o primeiro e ado-tando uma atitude cautelosa diante dos aspectos mais acrticos, no histricos e duvidosamente modernos do segundo (EAGLETON, 2006, p. 347 e 350).

    Em Quando foi o Modernismo?, Williams acentua essa po-sio crtica diante do ps-modernismo, ao sugerir que a nica maneira de romper com a fixidez no-histrica do ps-modernismo retomar o rumo da tradio moder-na e antiburguesa. Para tanto, necessrio determinar o processo que fixou o momento do modernismo, iden-tificando o mecanismo da tradio seletiva. Segundo ele, depois que o modernismo foi canonizado os artistas marginais ou rejeitados tornam-se clssicos do ensino organizado e de exposies itinerantes nas grandes ga-lerias das cidades metropolitanas. Assim, o modernismo confinado a este campo altamente seletivo, sendo-lhe negado tudo o mais, num ato de pura ideologia, cuja pri-meira e inconsciente ironia que, absurdamente, pra a histria, mata-a. Sendo o modernismo o trmino, tudo o que vem depois no levado em conta de desenvol-vimento. depois, enterrado no passado (WILLIAMS, 2007, p. 34-35). Nesse sentido, o modernismo perdeu sua postura antiburguesa, e conseguiu uma confortvel inte-grao no novo capitalismo internacional. Se quisermos romper com a fixidez no histrica do ps-modernismo devemos buscar e contrapor uma tradio alternativa extrada das obras esquecidas e deixadas na extensa margem do sculo XX, em que em um futuro moderno a comunidade possa ser imaginada novamente.

    Podemos afirmar que a leitura marxista de Williams se aproxima daquilo que Stuart Hall chamou de um marxi-mo sem garantias, na medida em que a abertura relati-va ou a indeterminao relativa necessria ao prprio marxismo enquanto teoria. Desse modo,

    compreender a determinao em termos de estabelecimento de limites e parmetros, da definio de espaos de operao, das condies concretas de existncia, do car-ter do j dado das prticas sociais, em vez da previsibilidade absoluta de resultados espe-cficos, a nica base de um marxismo sem garantias finais (HALL, 2003, p. 292).

    A ideia de que no existe leitura neutra ou inocente da cultura talvez seja uma das principais vitrias da te-oria cultural, capitaneada por R. Williams. na dialtica da luta cultural, que devemos buscar o significado de um smbolo cultural, pois ele atribudo em parte pelo campo social ao qual est incorporado, pelas prticas s quais se articula e chamado a ressoar. O que importa no so os objetos culturais intrnseca ou historicamente determinados, mas o estado do jogo das relaes cultu-rais (HALL, 2003, p. 258).

    Por certo, retomar obras holsticas, como a do autor aqui analisado, favorecem o enfrentamento da perda de iden-tidade, de rigor e fecundidade dos Estudos Culturais, oca-sionado pelo efeito Babel de sua institucionalizao e in-ternacionalizao, com a hiperfragmentao dos estudos e temticas das pesquisas atualmente desenvolvidas.

    Sabemos que os estudos culturais abarcam mltiplos discursos, bem como numerosas trajetrias distintas, o que tentei propor um retorno ao debate de que h toda a diferena no mundo entre a compreenso da po-ltica do trabalho intelectual e a substituio da poltica do trabalho intelectual (HALL, 2003, p. 217), pois, como apontou Adrian Mellor (1992, p. 670): Forget the political reversals; look at the triumphs of Theory.

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