Aula 21.08.13 Com a palavra_o_senhor_presidente

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" -CELI .EGINA JAl~l)IM PINTOn~\lO - ~~

COM A PALAVRA.O SENHOR PRESIDENTE

/JOSESARNEYo discurso do Plano Cruzado

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COMA PALAVRA OSENHOR PltESIDENTE

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COMA PALAVRA OSENHOR PRESIDENTE

o capítulo tem como objetivo analisar o rimeiro momento dono discurso overnamental do a detendo-se nospronunciamentos do presidente da República José Sarncy duranteo período do mês de março. Estes documentos - es ecialmenteimportantes porque marcam ~ do Plano Cruzado f, mais doque isso, já definem, surpreendentemente, o seu sucesso. A 28 defevereiro o presidente anuncia o Plano de Estabilização Econômi-ca; quinze dias após esta data anuncia o sucesso do Plano. inflaçaoo inimigo número um do ais, \ ra um problema i assa. .

s documentos a serem analisados são de três naturezas. Oprimeiro, sem dúvida o mais importante, é o pronunciam~to d3presidente em cadeia de rádio e televisão, quando anuncia nplano(de refu;mas. U~ronunciamento presidcrlcial em cadeia nacionalé uma exceção, o presidente da República só fazum pronunciamen-"todesta natureza quando tem uma mensagem especial a transmitir.É um momento simbólico - o governo, na pessoa de seu mais altofuncionário, se apresenta solenemente ao público. No horário deaudiência quase absoluta de televisão, às 20h:30m (entre o "JornalNacional" e a chamada da novela das oito da RedeGlobo), uma vozem offanuncia a formação da cadeia nacional e introduz o orador:"com a palavra o Senhor Presidente da República José Sarney". Opresidente apresenta-se em sua mesa de trabalho ou em um púlpito,ladea o ela bandeira nacional e lê seu pronunciamento.

O segun . tipo de documen to a ser analisado constitui-se detranscriçoes do programa semanal "Conversa ao Pé do Rádio". Noque pese ser transmitido em cadeia de rádio, a natureza destedocumento é completamente diversa do pronunciamento emcadeia derádio e tevê: em primeiro lugar, faz parte de uma rotina,

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"todas as semanas no mesmo d~ e no mesmo horário o presidentefala por alguns poucos minutos no rádio; em segundo, é umprograma transmitido às 6h:30m da manhã e portanto dirigido aostrabalhadores urbanos e rurais em um dos raros momentos em queouvem rádio. Ao contrário dos pronunciamentos de exceção nohorário nobre de televisão, a "Conversa ao Pé do Rádio", desde seupróprio título, é marcada pelo informalismo e por uma relaçãodireta entre o cidadão José Sarney e o povo. Não é o governo quese-apresenta, mas a pessoa do presidente que conversa em umalingua e coloquial.

terceiro ipo de documento a ser analisado trata-se Q,e umpronunciamen~ intrago~o. O presidente da República fala aosgovernadores- e estado que foram especialmente convocados aBrasília para se inteirarem do novo Plano. Íi o presidente falando as,eus pares políticos, correligionários ou não, que no momento

_eram peças fundamentais para o sucesso do Plano Cruzado. Odocumento reveste-se de importância para os propósitos esta

, ise porque crvc, antes de tudo, como contraponto aosciarncn tos do presidente diri Tidos a i eiro.

análise que se segue não tomará cada documento como umaunidade. Os documen rão tratados como um todo na medidaem que eles formam a matriz do discurso o ruzado: seu anúncio,SÔd cõnvocação popular, a vitória. A natureza de cada documentosó será evocada quando ela for marcan te para o en tendimento dasconstruções discursivas.

Duas preocupações marcarão a análise: a primeira refere-se àconstrução do enunciado - CRUZADO: o que é o Plano Cru-zado; porque foi implementado; quais são as suas conseq üências. Asegunda refere-se à construção do sujeito no interior do discurso eé especialmente importante na análise do discurso político, pois éda capacidade de interpelação do sujeito cnuriciador, isto é, pela suacapacidade de sujeição, ue se realiza o discurso. O sucesso políticodo Plano Cruza advi da capacidade do enunciador de,

o 1tlCOScapazes de agir no social através dasujeição.~

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o inimigo rrúm ero um: a inflação

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o Plano de Estabilização Econômica) popularmente conhecidocomo Plano Cruzado) constituiu-se em torno do combate àinflação. Em linhas gerais poderia ser resumido da seguinte forma:os grandes problemas nacionais (desenvolvimento) dívida externa)fomeetc.) têm uma grande causa-a inflação) que é declarada peloPlano como a inimiga número um da sociedade brasileira e por issovale o esforço conjunto para combatê-Ia.

Antes de efetuar a desconstrução do conceito de inflação nointerior do discurso presidencial vale chamar a a rcnção para accntralidadc do tema na política brasileira a partir da década de 50.Repetidas vezes desde a instauração da política dcscnvolvimcnrisrade Juscelino Kubirschck, os enfrentamentos políticos e as grandescrises nacionais tiveram entre suas questões de fundo o processoinflacionário) como são exemplos a eleição presidencial de 1960que elegeu Tânio Quadros) o golpe militar de 1964 eosanoscríticosdo governo Figueiredo. Sem espaço neste momento para umadiscussão ampla da política inflacionária no Brasil e das diversasformas como essa foi articulada no discurso dos governos e dospartidos políticos) necessita-se) mesmo assim) enfatizar um pontoem particular: o discurso político brasileiro contemporâneo cons-truiu a questão da inflação de forma tal que a média da populaçãodo país) mesmo sem entender o mecanismo econômico que gera a·inflação) a percebe como um grande mal na medida em que associainflação a aumento do custo de vida.

A partir da década de 70, a a sociação da ir Ilação om p ejuízofoi perpassada pela popularização da Caderneta dePoupança, queprovocou uma espécie de ilusão coletiva de ganho exatamenteatravés do processo inflacionário. Se isto é verdade e tudo indicaque sim (basta apreciar a reação dos poupadores durante 1986)não chega a invalidar) entretanto, a percepção do processo inflacio-nário como causa da perda do poderaquisitivo. De fato a reação dospoupadores não é ao fim da inflação; é, diferentemente, uma reaçãoà diminuição "dos ganhos" entendidos como reais e não percebi-dos como correção monetária pura e simplesmente.

Em síntese, O que é necessário ter presente é a centralidade do

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"\problema da inflação no discurso político brasileiro a partir dadécada de 50 e sua internalização por parte da população do país,o que se constitui em um ponto fundamental para se entender ascondições de emergência do discurso do Plano Cruzado e suaconseqüente capacidade de criaruma grande rnobilização naeional.

No pronunciamento do dia 28 de fevereiro a INFLAÇÃO .éapresentada pela primeira vez como o inimigo número um. Em .duas oportunidades, a mesma construção está presente.

"A inflação tem sido o pior inimigo da sociedade"."A inflação tornou-se o inimigo número um do povo" .

Já neste primeiro momento, o discurso define claramente oinimigo - o "sujeito" em relação ao qual ela construirá o antago-nismo. O grande inimigo nunca é definido analiticamente: é buscainútil tentar achar rcs osta no discurso para as seguintes questões:o que é a inflação? ~são suas caus~iEm contraposição, ain ação é enuncia a corno uma síntese simbólica dos problemas dopaís.

No programa "Conversa ao Pé do Rádio ", de 14 de março,Sarney enuncia a inflação de uma forma definitiva: ':g inflação!todos sabem,J~ o m~l". Este é um enunciado-síntese, a ele poderfiser acresceu ados, em uma relação paradigmárica, todos os outrosatributos da inflação no decorrer dos pronunciamentos do mêsdemarço. O enunciado merece uma reflexão ainda que sucinta. Trêsaspectos aqui são particularmente importantes: o primeiro articulaa idéia de consenso sobre a existência do problema "todos sabem";o segundo refere-se à presença do verbo "ser" no passado, isto é,todos sabem que alguma coisa era, mas não e mais (note-se queSarney está falando quinze dias após o lan a nto Plano); o ter-ceiro relaciona-se com a presença do rti o definido a inflaçãoera o mal, o que exclui a existência de qualquer outro mal-o úni-co mal era a inflação. Portanto, a 14 de março todos já sabiam quenão existe mais "o mal": os problemas estavam resolvidos.

O enunciado não aparece solitário, ele é uma síntese e sedesdobra no decorrer de todo o mês. O quadro da página seguinteesclarece a questão em foco.

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A inflação

28/02-Tem sido ~.. o pior inimigo da sociedadeConfisca ~ o salárioConfisca o pãoTornará ~ .lctra morta reajustes e aumentos

reais de salário( , ) ,. 1'"e uma arigusna so itarra(é) .Irnplacâvcl com os mais

desprotegidosTornou-se o inimigo número um: do povo

03/03Tinha um aspecto perversoCorrigia ~~ ocapitalNão corrigia o salário

14/03(era) a vantagem dos cspcculadoresEra enganosaEra 0 m al

A listagem acima permite a visualização das questões apontadasanteriormente. Tomando os tempos verbais como referência,percebe-se claramente que a inflação só aparece como problemapresente no dia do anúncio das medidas para contê-Ia, nos dois.outros pronunciamentos já aparece como um problema do passa-do. Quanto aos tempos verbais, ain-da é preciso chamar a atençãopara a presença do verbo "tornar" no futuro. O cnunciadocornplc-to é o seguinte:

"A inflação a continuar nos índices atuais em poucos meses,e até mesmo em poucos dias, tornará letra morta os reajustese os aumentos reais de salário que o trabalhador obteve comtanto suor e com tanto risco".

Por que a presença deste futuro? f\ resposta é bastante simples.No'enunciado, a questão central não é a inflação mas' .s reajuste

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e os aumentos reais de salário". Na medida ern que o governocongela os salários como uma das formas de combate à inflação nãopoderia, sob pena de criar uma posição muito difícil para si,enunciar o verbo no presente ou no passado. Enunciando-o nofuturo, resguarda duplamente a ação positiva do governo: por umlado afirma que existe no momento ganhos reais, por outro tomamedidas para manrê-Ios.

Retomando a listagem acima cabe chamar a atenção para apresença, por duas vezes, do artigo indefinido como introdutor àscaracterísticas da inflação. O primeiro caso encon trá-se ainda dia 28de fevereiro - "uma angústia solitária" ."Nesta afirmação a indefi-nição é anulada pelo complemento "solitária" -se ela era solitária,a inflação passa a ser "A ANGÚSTIA". Diferente, entretanto, c ouso do arti o indefinido quando Sarney fala aos r adorcs.." ...a inflação brasileira tinha um aspecto perverso". A inflação uando_j:OllOc~para o grupo reduzido de políticos, p tocondensador e simbólico e passa para o campo dos problemas queo governo necessita resolver. A construção "um aspecto perverso",permite pensar a inflação como depositária de "outros aspectos",perdendo assim qualificação simplista e simbólica dos pronun-ciamentos para grande público.

Ainda em relação à questão da inflação apresentada 'como OtvIAL, cabem algumas observações. Em primeiro lugar, apresentan-do-a como O MAL, A ANGÚSTIA SOLITÁ1UA, o enunciadordesarticula-a da situação concreta do país. Todo o resto vai bcrn ,não existindo portanto nenhuma relação entre a problemáticasócio-econômica do país e a inflação que, sem ser definida, sem tercausas, aparece como um mal solitário e como a única ameaça:vencendo-se O tvIAL, tudo estará bem. Em segundo lugar, deve-se observar que este tvIAL está articulado na fala de Sarncy à causada pobreza das classes populares, as referências a "salário", "pão","mais dcsprotcgidos"; são claros indícios. A inflação não temcausas, só tem efeitos no discurso de Sarney.

A identificação da inflação como o "O lvIAL" que ataca o paíspermite ao discurso construí-Ia como o inimigo número um dopovo brasileiro. O discurso de Sarncy é sem dúvida um discursomobilizador-tem um objetivo claro de mobilizaro povoem favor

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do plano de governo. O discurso mobilizador por excelência é umdiscurso que constrói um inimigo-semprcse apresentando comoa negação de um estado de coisas dado. Mesmo que este-seja umdiscurso conservador, a união de um lado se dá em contraposiçãoa um inimigo de outro. O discurso do Cruzado também se colocadentro desta lógica: de um lado o governo junto ao povo, de outroa INFLAÇÃO. O~ue é -interessante e particular neste caso § aincxistência de su ·eit hi cretos na constru ão oa oni inflação e um ma s no Não existe em suabase nenhum suje , ts õricarncnrc identificável. Odiscurso não se coloca como antagônico a nenhum setor social, anenhum grupo de interesse: banqueiros, industriais, comerciantes,assalariados, operários, todos estão mesmo lado no discursocontra a inflação, esta última um "sujeito' inca az de ser corporj-

d-ficado or sujeitos históricos concretos na ro osta de Sarne J Essa-ausência é muito SI cativa na medida em que possibilita a análiseem duas direçãe. primei ,na direção de uma caracterização dodiscurso do Cruzado, onde a ausência indicaria uma tendênciaconciliador-conservadora (nenhum dos setores sociais é responsá-vel pela crise). A segunda, na direção da análise de política, onde aausência apontaria para o fracasso econômico do Plano, na medidaem que este não reconhece os pólos de poder responsáveis pelainflação, pelo caos financeiro e pela depressão econômica.

Colocando a inflação como o grande mal - o inimigo númeroum - os pronunciamentos tratam de construir a posição dogoverno em relação ao problema. - posiçao do governo é apresentadacorpo a daquele que se prepara en renta e ence a 10 a 30. E par-ticularmente 10 ssante que n s enuncia os que se referem à açãodo governo em relação à inflação, essa é sempre apresentada comoo adjetivo de um substantivo que ela mesma provoca: a inflação éuma força dotada de características próprias e independente davontade e do fazer do governo até o momento do Plano. Algunsexemplos são esclarecedores: '

"Desejamos combater a INÉRCIA INFLACIONÁRIA"."Vamos continuar crescendo agora livres do ILU-

SIONISMO INFLACIONÁlUO".

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"Estamos derrubando os N1UROS DA FORTALEZAINFLACIONÁRIA" .

" ... enfrentar o PROBLE1v1A INFLACrONÁIUO".

o governo apresenta-se, após en unciar a questão, como capaz deresolvê-Ia. Dois segmentos dos programas "Conversa ao Pé doRádio" de 14 e 21 de março, respectivamente, são significativosneste particular.

1. "Com a inflação a vantagem era dos espcculadorcs.Agora é a vez dos trabalhadores.

Sem inflação vamos ter mais desenvolvimento, maisemprego, melhores preços e mais lucros ... já podemos afirmarque deixamos para trás, junto com a inflação, a mentalidadedoentia da exploração e da mesquinhez."

2. "O congelamento dos preços e o combate à inflaçãoseguem tão. bem quanto o crescimento das atividadesprodutivas. No princípio algumas indústrias que nãoacreditavam no plano contra a inflação hesitaram, mas asnotícias que temos, as consta rações que fizemos é de que taisvoltaram a produzir."

Os dois fragmentos acima contêm um leque abrangente deconseqüências do fim da inflação. A abrangência vai ao encontro doque se apontou anteriormente: a incxistência de um referenteconcreto contra o qual secombate. A inflação prejudica a todos, seufim beneficia igualmente a todos. A primeira afirmativa da passa-gem citada acima deve ser analisada cuidadosamente ara nãocausar conclusões equivocadas: o anta Tonismó claro s eculad -8?'7trabalha~ pode levar à conclu'- de uc discurso secoloca do lado da classe traba~ versus classe burguesa. Noemanto o parágrafo imediatamente posterior dilui qualquer in-terpretação deste tipo: sem a inflação haveria "mais emprego,melhores pre os, mais lucros". Os lucros não se contrapõem aotrabalho . são resultados deste: são a negação da "mentalidadedoentia da xploração e da mesquinhez". O lucro está articuladoao "cresci cn to das atividades produtivas", ao fato de que "as

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"Ar:, principais decisões são as seguintes:Criação de uma nova moeda - cruzado; cxrinção do

cruzeiro com paridade inicialde um cruzado por mil cruzeiros;conversão automática em cruzados de noras, moedas edepósitos a vista no sistema bancário, cxrin ção-cia correçãomonetária gcneralizada;escala móvel de salários; congelamento

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indústrias voltaram a produzir". Como a inflação é uma ameaça atodos, todos são beneficiados com o seu fim: trabalhadores,industriais, banqueiros.

Retomando as principais questões referentes à inflação nos pro-nunciamentos de março, osseguintes pontos devem ser destacados:

L A inflação é apresentada como sendo a condensação de todosos problemas brasileiros. Assimdefinida, ela é construída como umdos pólos de um antagonismo, que coloca como sua antítese todoo povo brasileiro, visto como o conjunto dos cidadãos. O discursode combate à inflação, por não constituir sujeitos sociais concretos,por ser a luta contra um inimigo, não é um discurso de ruptura coma conjuntura de forças vigentes, mas um discurso de conciliação.

(2. O discurso não é explicitamente antiinflacionário, mas dedeclaração que a inflação acabou. Exatamente porque a inflaçãonão está imbuída de sujeitos concretos, a luta contra a inflação nãoé uma luta que enfrenta resistência. Como não há "defensores deinteresses inflacionários" -a resistência da inflação é nula - com-batê-Ia é um ato de vontade que foi levado a efeito pelo p'0verno epelo povo. No momcnjo em que a decisão foi tomada,/~eixou deexistir a infla ã- . Daí encontrar-se, já nos primeiros mo~odiscurso da vitória. .~-~

O ano esta 1 lza ão Econô ica conhecido como .)Ianoruza o, foi enunciado em detalhes pelo presiden te no seu

pronunciamento de 28 de fevereiro. Posteriormente todas asquestões referentes a ele foram tratadas pelos ministros. Ao enun-ciar as medidas, dois aspectos têm realce: o destaque à posição daclasse trabalhadora, por um lado, e a preocupação; por outro, denão colocar o Plano como a negação de qualqucrinrcressc dentrodo país. Em relação ao primeiro ponto merece ser transcrito em suaíntegra o fragmento que enumera as medidas:

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E

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total de preços, tarifas e serviços; criação de um mercadointerbancário; seguro-desemprego, A...~TIGA E JUSTAASPIRAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA; garantia derendimentos dos depósitos da caderneta de poupança efortalecimento da nossa moeda em face de outras moedas."

\

III

Como está 'explícito, as medidas são enumeradas de uma formaimpessoal, sem' referência aos executores ou às suas possíveisconseqüências e/ou repercussões. I-Iá apenas uma 'exceção, quan-doé enunciada a criação do seguro-desemprego, "antiga e justaaspiração da classe trabalhadora", Éo governo, em meioà descriçãode medidas que atingem diferentemente os diversos segmentossociais, nomeando somente a classe trabalhadora, mais ao queisto,nomeando uma de suas medidas como o atendimento das "justasreivindicações-da classe trabalhadora", Tal referência pode indicarpelo menos dois caminhos, n~ise do di~urso: 10 rimeiroindicaria a classe trabalhadora como o principal parceiro do govcr-~ oposição '3 outros setores. RSta posição dificilmente sesustenta pelo que já foi dado a observar uando da construção dopólo de antagonismo no discurso; segundo indicaria exatamenteo contrário, o pólo de resistência às me· I as: a classe trabalhadoranão é portanto o sujeito parceiro mas o sujeito a ser conquistado.Deve-se tor:nar em consideração que naquele momento a classetrabalhadora (operários urbario-indusrria is) era o único sujeitopoliticamente construído por um discurso de oposição ao governo.

O segundo ponto em relação à apresentação do plano refere-se·àsua colocação não-antagônica a nenhum setor, e neste particulardois grupos são focos de preocupação: a classe média e a.iniciativaprivada. O "recado" para a classe média é claro: "a poupançacQQQnu~~oteg~da" ~"~glléj7 e_pre:ta~õesdo B,NH ~o,n?elado~',Para a rrucianva 'privada a posiçao e ainda mais explícita: ~pretendemos imobilizar o dinamismo do mercado e a u'an a da•. •.InICIativa nva a .

A apresentação do Plano reforça as características do discurso jámencionadas - o Plano apresenta uma proposta de consenso ondenão existe antagonismo entre sujeitos concretos e históricos.

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o presidente fala

A questão do sujeito enunciador do discurso presidenci31 brasileiroé particularmente importante por duas características da discur-sividadc da política contemporânea do país: a herança gcrulista e aincxistência de agrcrniações polírico-partidárias fortemente cnrai-zadas na sociedade civil. Este não é o espaço para aprofundar estasquestões, entretanto cabe localizá-Ias um pouco mais precisarncn-te~ra introduzir a problemática específica que está sendo tratada.

~A heran{agetulista. A memória política do povo brasilci otem um ponto de encontro na 1 rura e . et ar as. Não foi olongo tempo em que permaneceu no governo que lhe dá estacentralidade, r.p.asantesde tudo as formas como Getúlio CQ!lStitIlÜJ.:,.se~uanto sujeito naq.uçle período, a forma como "determinou"sua "entrada na história" e, além disso, as formas como a luta polí-tica posterior tem incorporado esta tradição (a disputa entre dife-rentes forças políticas pelo direito às homenagens a cada dia 24 deagosto é um exemplo contundente do que se está querendo dizer).

O período da história política brasileira que está definitivamente(pelo menos até o momento) gravado no imaginário popularbrasileiro tem nome e sobrenome e chama-se Getúlio Vargas. OEstado Novo, denominação do período em que Vargas foi ditador,só tem sign ificado, atualmcn te, para estudiosos e pa ra rcrnancsccn tesde suas prisões políticas. .&. inexisténcia de agremiações políticasfortemente enraizad asna sociedade civil. A história repu J.:>licanabrasileira é. a hist' .gQlítica sem . os. A questão é centra para o entendimento dapolítica contemporânea brasileira. Entender este problema envolvedescartar uma visão simplista da política latino-americana em gerale do Brasil em particular, envolve perceber o próprio "EstadoNovo" não como o responsável pela situação, mas apenas comomais um elo desta história sem partidos. A facilidade com queVargas acabou com as agremiações partidárias em 1937 se repetecom os militares na década de 60. Os decretps que determinaramo fim dos partidos parecem ter tido o po er ma rICO e . ro 1 10 olí' . . o {a perma-nência das clivagens Blancos/Colorados no Uruguai C União

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Cívica Radical/J usticialismo na Argentina, no que pese os aterra-dores períodos ditatoriais pelos quais estes aíses ram, são boasreferências como ntraste e rea 1 adc política brasilcir

Esta inexistência provoca uma série conseqüências a~e para os propósitos deste estudo duas delas sãoparticularmente importantes: ~9a . e-sc às próprias formascomo se dá a co i -o dc for as no il1tcrior do Estad ,ondc o

xeutiva aparece acima dos artidos o íticos, sendo que a estesesta ervado---um ugar na ante-sala do poder, lugar de espectadorprivilegiado, nada mais, além disso. A pLCSCl F na políticabrasileira atual e o og são bonsexemplos do papel su a terno do partido político enquanto insti-tuição cnraizada na sociedade.

y A segunda conseqüência deriva da primeira. Na medida em queas relações do poder e o equilíbrio de forças passam apenas tcnua-mente pelospartidos,~~~~~~~~Desta forma, uma questão se impõe: se o pre:..sidcn te da República não tira do respaldo partidário sua sustenta-çã~onde esta se localiza? Responder a esta questão é uma tarefalnstigante mas resistirei à tentação - o que interessa aqui é pensarque, na medida em que esta resposta não está dada pelo discursopolítico, o presidente se constitui no seu in terior como fonte do seupróprio poder.

Destas rápidas observações, poder-se-ia concluir que há umatendência no discurso político brasileiro de "irnperializar" o presi-dente da República, quer colocando-o acima das lutas políticas,quer lhe atribuindo a "essência" de onde emana o poder. Frente aestas observações, torna-se funda cntal a análise do suo . o enun-ciador no discurso presidencial. sujeito da enunciação " já esempre, constituído pcla.intcr-di cursivi a e e orma específica,inserido no que poderia ser chamado de discurso político brasileiro;o sujeito enunciador se constrói no ato da fala redimensionando osujeito da enunciação. O sujeito enunciador se concretiza através detrês posicionalidades: o' U"; O "NÓS", o "GOVERNO", ondeo "eu" é central. A análise que se segue pretende apreender asformas como estas três posicionalidades se constroem, sua unifor-midade, suas fragmentações.

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A presença do "eu" como local de construção do sujeitoenunciador é dupla e diferentemente importante. Por um ladodeve-se considerar o statusteórico do "eu" na construção do sujeito

. individual. Aenuncia ão o "e ", s do Lac 1) o momento daÍnser ãoeda iferenciaçãodosujeitoc . otalnalinguagem-o "eu" é a marca a inserção individual) é o reconhecimento aomesmo e o "tu" e conse üentementc de outros "cus"! que~am de acordo com qucm fula, -

teses de Lac 1978) são profícuas )ara sc cnsar algumasdimensões o olítico -a presença do "eu" enquanto enuncia ornão pode ser considerada como um modo dc fala) J~ _

~a-pãrtic Ja-rãCinseFÇa~~u en~Por outro lado, rornarído a presença d "eu" a partir do

reconhecimento da "impcrializaçâo" da figura do presidentc,~análise deste tipo específico de construção do su·cito enunciador éuma dimensão n amental ara o cntendi ento das formas dcconstrução o SUjeIto na política brasileir c das formas como se

'---apresentam as relações dc oder E do-socie ade civil.eu presidencial se constrói no discurso de março de uma

forma particular calcado em dois pilares: a construção do poderpessoal - o "eu" decide; e a construção da relação Estado-sociedade civil - o "eu" é quem fala com o povo. Como já foiapontado anteriormente, a fala presidencial do mês de março temum momento em que se dirige a seus pares - aos governadores deestado. A comparação entre um fragmcnto da fala inaugural de 28de fevereiro com a dirigida aos governadores baliza claramente ainserção do "eu" na política nacional.

A 28 de fevereiro) em cadeia de rádio e televisão) o presidenteanuncia o "eu" logo na introdução) quando fala do programa dereformas.

"Vcnho meditando há tempos sobre sua oportunidade,medimos conseqüências, avaliamos riscos e pesamos resultados.Minha consciência c meu dever para com o país não mefizeram hesitar. A política tem um compromisso e os homensde Estado não podem fugir à força do destino na hora dedecisões maiores."

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Para os governadores o presidente declara:

"Há alguns meses, venho meditando sobre o problemada inflação e discutindo com meus auxiliares dessa áreao que deveríamos fazer e estabelecemos alternativas, estu-dando detalhadamentc todos os planos, acompanhamosos países que viveram de certo modo a mesma experiên-cia. "

A comparação entre os dois parágrafos permite algumas obscr-vaçõcs intcressanrcs. Nópronunciarnente de 28/2 o "eu" é ccnrral ,mediado apenas por uma passagem do "nós" que não se afirma,pois logo em seguida o "eu" retoma o discurso. No pronunciamen-to aos governadores a situação se inverte: é o "nós" que comandaa ação, "nós" este que está claramente definido (eu e meusauxiliares), o "eu" tem pouca presença. Tnteressante perceber cornoos textos se organizam em torno da expressão que se repete:"Venho meditando". No primeiro caso o "eu" medita sobre aoportunidade das medidas; o ato de meditar (ato solitário) denotasentido de continuidade, de tempo e de seriedade. O "dono" dameditação é o dono da decisão (oportunidade das medidas), étambém o que rcrn consciência e dever, e, mais do que isso, se defineparadigmaticamente como homens de Estado, que tomam deci-sões - o "eu" portanto decide. No segundo caso, a expressãoorganiza o texto de forma direta: o "eu" não medita sobre tomardecisões, mas apenas sobre a existência do problema, a decisão sedesloca para o "nós", claramente colocado como o governo. Noprimeiro caso o presidente imperial se constrói na sua relação como povo, no segundo um interIocutor do governo comunica a seuspares uma grave decisão. Ou tros fragnicn to~ destes mesmospJ:9-ounciamcn tos reforçam a-posiçao dicotÔmica do presidenre-:-Estes referem-se à relação do "eu" enunciador com as medidastomadas. No pronunciamento de 28 de fevereiro os seguintesfragmentos são bons exemplos:

"- determinei mudanças fundamentais.""- minha decisão não foi tomada em nenhuma hora de

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precipitação, ela é assumida num momento de confiança nomeu país."

"- decidi conceder um abono geral"; "cuidei de estabe-lecer também o reajuste automático."

"- preparei com muito trabalho o caminho para que estasmedidas pudessem ser tomadas."

Para os governadores a declaração é. sucinta:

"Fui" obrigado a tomar medidas graves."

No primeiro caso, fica transparente o exercício da autoridadepessoal. Os verbos são fortes: por um lado, }")ETER.J\UNAR,DECIDIRe revelam um trabalho contínuo e solitário, por outro,PREPARAR, CUIDAR EM ESTABELECER. "Preparei commuito trabalho" está muito próximo de "venho meditando". Todaa ação é pessoal e conotativa de quem tem poder. Na fala aos gover-nadores o "eu" apresenta-se de maneira completamente distinta: aoração é enunciada de forma diversa (fui obrigado). Não há tomadade decisão, há apenas conseqüências - o que obrigou, ou quemobrigou? O sujeito não aparece como responsável por sua ação.

Na construção do "eu" na fala de março, um momento fun-damental é a relação que se estabelece entre o "cu" e o "povo".Entre as formas de interpelação -leia-se construção do sujeito-o momento que o sujeito enunciador se enuncia através de suarelação com o outro é um momento privilegiado. Esta relaçãoganha significado ainda mais especial na medida em que se toma emconsideração as condições de emergência do discurso políticobrasileiro, isto é, as formas específicas como a irnpcrializaçãopresidencial foi construída na história republicana. São, fundamen-talmente, duas as formas como é consrruida a relação eu-povobrasileiro: através de um exercício de autoridade e através da relaçãoinformal.

O exercício da autoridade se constrói através da voz de comandoe tem como rcfcrcncial a posição do cnunciador enquanto sujeitoda enunciação. A autoridade se constitui no interior do discurso,mas ao mesmo tempo ela tem uma existência anterior "- a

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existência da autoridade presidencial. A 28 de fevereiro o presiden tedeclara nos parágrafos conclusivos de seu pronunciamento:

"Posso me dirigir a você, brasileira ou brasileiro, parainvesti-Ia num fiscal do presiden te

conclamo para esta luta os brasileiros."

Na "Conversa ao Pé do Rádio" de 14 de março o enunciadopraticamente se repete:

"Quero convocar o povo

Convoco portanto brasileiros e brasileiras."

o presidente "INVESTE", "CONCLAlvlA", "CONVOCA".Três observações devem ser feitas: a primeira refere-se ao fato daautoridade anterior. Só pode investir e convocar quem tem poderpara tal-o poder anterior ao momento da cnunciação. A segundaressalta o caráter particular do verbo investir. A investid ura é um atode autoridade, um ato de poder: o senhor investe seu cavaleiro depoderes que são por direito do primeiro. A investidura semprepressupõe a autoridade de investir - um ato de vontade do sobe-rano. a Slmet da investidura caracteriza-se como não-de-mocrática a nor· é um atº-detrajetória única/o investido não ttmvoz. OS OISOU rosver O -convocareconclamar-noquepcseiarnbérn serem argumcn tos de autoridadc - têm sen tido maisdifuso. Pensando em uma relação simétrica cn trepares é fácil pensarnos seguintes enunciados

ConvocoOs correligionários a

Os companheiros aConclamo

Os camaradas a

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mas é de difícil aceitação pensar em substituir os verbos por"investir" sem pensar em substituir os termos que se seguem noenunciado. A convocação e a conclamação têm dupla trajetória,podemnãoseraceitas-o conclama o e/ou o convocado têm voz.Finalmente, uma erceira o se - diz respeito ao fato de que arelação de autorida c entre o eu e o povo, através dos verbosdestacados pretende um efeito específico, isto é, a mobilizaçãopopular. Pela primeira vez desde o golpe militar de 1964 o Estadose mobiliza e não ~ o alvo da mobilização contra si, como haviaacontecido nacampanha pelas "diretas-já", em 1984.

Bastante diferente da construção descrita acima é a encontradano programa "Conversa ao Pé do Rádio" dia 7 de março de 1986- o primeiro programa após o lançamento oficial do Plano deEstabilização Econômica. Neste momento o argumento de auto-ridade desaparece e o que toma o seu lugar é uma linguageminformal que tende a uma relação de reciprocidade, onde o poderparece ter-se deslocado:

-"Há uma semana ... resolvi pedir ao povo que ajudasse o

governo na fiscalização

Todos recordam o apelo quefizàs brasileiras e aos brasileiros'para que assumissem o papel de meus represen tan tcs pessoais.Tenho certeza de que consegui transmitir sinceridade nopedido.

o nosso povo, que ao aceitar o meu pedido

Faço um apelo a todos os brasileiros ...

E por isso, eu repito, você é o presidente porque opresidente é você."

Tanto tomando este enunciado em termos gerais como analisan-do suas partes é possível perceber a diferença da colocação do " "Os verbos deixam aqui de ser ordens - o verbo central é e iracompanhado dedais substantivos que seguema mesma lin a: o

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------------------ ......••,.....

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apelo; o pedido. Tais signos invertem a relação de poder, que nãose localiza mais no "eu" mas naquele ao qual se pede alguma coisa,naquele para o qual se faz um apelo. Uma semana antes, opresidente investira o povo como fiscal, agora ele recoloca ainvcstidura "rodos recordam o apelo que fiz". O apelo não nega,por outro lado,a autoridade presidencial, na medida em que oapelo foi feito para que o povo "assumisse o papel de meusrepresentantes pessoais". O que muda radicalmcn te é a forma comoa autoridade é cxcrcida. Em um primeiro momento o poder estavacom o presidente, em um segundo está .com o povo; a sínteseaparece quando se dá a sirnbiosc "você é () presidente porque opresidente é vo~ê". Este enunciado final cria algumas complicaçõesem termos de análise política: em si ele permite algumas interpre-tações diversificadas. Caberia por exemplo sem nenhum problemaem um discurso totalitário, mas definitivamente este não é o caso.A interpretação que mais se aproxima da relação do enunciado como resto do discurso parece sera que aponta para o discurso populista \de Estado, inserido em condições de emergência particulares, ondese acentua a ausência de partidos e a impcrialização do presidente.É dentro desta dinâmica que se pode entender o deslocamento do"eu" entre investir, apelar e pedir.

Finalmente, em relação à constru ção do "eu" deve-se ressaltar osmomentos que o "eu" fala de si, não de sua ação, Il1aSde suanatureza - a questão fundamental aqui é a do destino. A 28 defevereiro aparece:

"Chegamos à cxaustão nos paliativos e não foi para isso queincxplicávcis caminhos do destino me fizeram presidente daRepública."

A 14 de março a construção se repete:

"O destino me entregou esta tarefa."

Quando o "eu" fala de destino refere-se à morte do presidenteeleito Tancredo Neves, entretanto a questão n50 se limita a estaconstatação. Em primeiro lugar, porque é claro, para qualquer

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observador, que a situação vivida por um político com a trajetóriade José Sarncy, que havia chegado à posição de vicc-prcsidcnrc,rompendo para isso até mesmo com O partido que presidia, nãoconfigura nenhuma artimanha do destino. Um vicc-prcsidcntcchegar à presidência da República é um ato de rotina políticaprevista em constituição, portanto não tem nada de inexplicável.

O discurso entretanto constrói o ato do destino e para isso nãotem dificuldade pois tem como matéria-prima a trágica noite de 14de março de 1985 seguida da agonia e morte de Tancredo. Estassituações foram vividas pela população dcn tro de um imaginárioque combinava destino e misticismo e que foi cuidadosamenteorquestrado pelas randcs redes nacionais de tevê. Dentro destequa ro mtra lscursivo o "eu" cnunciador do Plano Cruzadoencontra espaço para se construir, em alguns momentos, comoagente passivo de uma ação provocada pelo destino. Na falado dia28 de fevereiro o sentido claramente rncssiânicode uma missãoestápresente através da ação provocada pelos "incxplicávcis caminhos ..."

A construção do sujeito enquanto "nós" possibilita a análise apartir de duas dimensões no discurso político; o "nós" comomomen to privilegiado da relação do "eu" com o povo e o "nós" emcontraposição a vocês - a quem o discurso se dirige.

No discurso de março a segunda dimensão é claramente domi-nante: o "nós" refere-se ao governo e é indicador de decisões esucessos ao longo do ano que havia passado) n50 indica entretantotomadas de decisões precisas, estas s50 enunciadas pelo "eu"(DETERMINEI).

O "nós" que se constrói como governo, apesar de momentos deambigüidade, aparece fundamentalmente como urna ação que tevelugar no passado e se mantém até o momento ou uma ação que terálugar no futuro; constrói-se como vitorioso e eficiente - é a açãocompetente do governo. No anúncio das medidas a 28 de fevereiroo "nós" é restaurador.

"resgatamos a democracia .recuperamos a economIa .devolvemos os empregos .promovemos a restauração do poder de compra do salário...

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voltamos a comandar nosso destino de economia dinâmica eautodeterrninada ... "

O" ,,,. I idnos aqui parece estar c ararncnrc construi o como governo,principalmente pelo uso dos verbos devolver e promover arestauração, ....,.é o "nós" devolvendo a vocês (os assalariados).

O "nós" assim construído perde a sua transparência quando opronunciamento constrói a síntese das medidas.

".0 Brasil passou a ser respeitado, o povo e o governo,juntos, edificaram esta primeira etapa da restauração nacional."

Se a "restauração nacional" é a palavra-síntese dos enunciadosacima, o "nós" pode aparecer não corno o "governo" mas como ogoverno mais o povo. Entretanto o enunciado parece ocupar umadupla posição: ao mesmo tempo em que constrói um posiciona-mento claramente governamental, deixa espaço para a construçãogoverno-povo, sem no entanto permitir que as vitórias do governosejam vividas como vitórias independentes do povo.

a mesmo tipo de construção do "nós" repete-se no programa"Conversa ao Pé do Rádio" de 14 de março. Novamente a açãoaparece no passado como a definidora do sucesso presente e umfragmento é especialmente significativo.

"Vencemos todas as dificuldades) felizmente vencemos,deixamos para trás o medoc a violência, deixamos para trás oódio que separava os brasileiros.

Podemos dizer que deixamos para trás o cruzeiro."

Neste pequeno trecho do programa, o "nós" se confunde como povo através da negação de uma série de problemas que sãoconstruídos como equivalentes: medo-violência-ódio-cruzeiro. O"nós" é a nova situação - a Nova Repú blica (governo e .povo) -medo) violência e ódio referem-se à situação anterior-ao governoautoritário. O corte entre o velho e o novo fica claro, quando secnu ncia.

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- . ---_ ..._..--._---_._----~--~_._---...••.

"Neste país ninguém é discriminado por motivos políticos,ideológicos, religiosos, econômicos, sociais ou profissionais."

Este novo país é, pois, articulado sem mediações ao fim docruzeiro (que pode ser lido como fim de inflação). Este é ummomento único no discurso de março, é o momento no qualaparece a ruptura com a situação anterior. A pergunta que necessitaser respondida é: por que o aparecimento deste discurso de rup-tura neste momento específico? Parece que a resposta deve serbuscada na euforia da mobilização dos primeiros quinze dias doPlano. O pronunciamento tem uma 1ar~lInente ufanistapresente mesma na sua c ru ã lea , on e to as asafirmações sao intro UZl as por cixarnos para trás". O fra gmen tocitado acima é seguido de

"Podemos dizer que deixamos para trás a inflação. Deixamospara trás desgraças como a correção monetária.

Deixamos para trás a inflação ... "

Em síntese, este pronunciamento é um excelente exemplo daforma como o "n s" a-r-:R-' e cons rUI o no iscurso ao mesmotempo em que articula o povo, preserva a unidade do governo.

O "nós" enquanto governo também aparece como futuro tantono pronunciamento de fevereiro como de 14 de março. Aocontrário do "nós" no passado, este não é ambíguo, colocando-seclaramente como "o governo". Destespronunciafl1entosasseguintcspassagens são esclarcccdoras: A 28 de fevereiro ..

"Tomaremos todas as decisões ...- desejamos cortar a inércia inflacionária- não pretendemos imobilizar o dinheiro- vamos continuar crescendo- cstarnos certos que o sistema financeiro [cumprirá as

suas funções]- ainda enfrentamos a força de hábitos [inflacionários]- não bastará nossa firmeza."

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II

A 14 de março

"Não vamos perrmnr que a covardia, a tibieza ou adesconfiança criem qualquer nostalgia."

Os fragmentos acima permitem perceber dois tipos distintos deconstrução no q\le pese unidos pela centralidade do "nós" enquan-to governo. pP.HmeirQ}efere-se a um argumento de autoridade-o nós se coloca como o árbitro e executor d35 medidas, através dasexpressões "tomaremos todas as decisões", "não vamos permitir".~ cons.truªt. é articulada através de verbos com significa-

õfulCO){íue transmitem sentido de pretensão, intenções e nãoordens e tomadas de decisão: desejar, pretender; construir; estarcerto; enfrentar .(acompanhado do ainda). Para se entender estaperda de ênfase do "nós", deve-se prestar a atenção a quem estasafirmações são dirigidas. Não é o governo falando com °povo, maso governo dirigindo-se aos setores mais poderosos da sociedade: abanqueiros e à iniciativa privada em geral: "Não pretendemosimobilizar o dinamismo do mercado e a pujança da iniciativaprivada". No momento em que o discurso refere-se especificamen-te ao sistema financeiro, fica clara a forma como este é construídono Plano.

,

"Estamos certos de que o sistema financeiro neste novo . 11_.-ambiente de seguran a cumprirá cOl"n. ficiência redobram ~~.suas fun ões de transfe· fundos 3ra a nossa atividade I

produtiva." .-r-:-:- ~ cJ-.a- ~ ...9-

~ ~~? I!

O "nós" governamental perde sua autoridade cse relaciona com !o outro - "o sistema financeiro" respeitando sua força, seu poderque está além do governo: o "nós" nada fará cumprir em relação aeste segmento da sociedade, apenas tem expectativas em relação aele.

Já foi referido anteriormente o caráter conservador do discursode março-86, caracterizado pela ausência total de uma posição deruptura, de corte entre dois grupos na sociedade etc. O exercíciodeautoridade do "nós" enquanto governo reforça o caráter: o "nós"

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só exerce sua posição de poder, complcrarncn te, quando o interlo-cutor é diluído como por exemplo "nós não permitiremos".Quando o intcrlocutor é nomeado, e especialmente quando se re-fere à classe dominante (setores), o "nós" passa apenas a "desejar".

Paralelamente ao "nós" construído como governo, mesmo queem alguns rnorncntos diluído, aparece ao lon go do discurso demarço o "nós" como a soma de governo e povo. Esta construçãopretende 'provocar um efeito específico, isto é, trazer o povo parajunto do governo para que se assegure a vitória do Plano. Este é omomento de mobilização através da construção de um novo sujeitoque tem uma tarefa específica: fiscalizar os preços dos produtoscongelados pelo governo.

A 7 de março, no programa semanal de rádio, a construçãoreferida acima aparece claramente:

"Agora não podemos nos dispersar e não podemos relaxar.Vamos manter a fiscalização, vamos fazer valer a força da lei,sem violência, mas com firmeza, para que os preços sejamrespeitados e o congelamento funcione."

nmelra a lrmaçã (não podemos nos dispersar), ,temum valor~foi uma frase famosa de Tancredo Nevcsquando eleito

presidente da República. O "n6s" está claramcn te indicado comoo conjunto dos brasileiros. Mesmo quando o discurso se refere à lei(vamos fazer valer a força da lei) não é ao governo que o "nós" serefere, mas a todos; isto fica explícito pela,alusão aos distúrbios derua ocorridos nosprimeiros dias do Plano Cruzado. O mesmo tipode "nós", reaparece na "Conversa ao Pé do Rádio" do dia 21 demarço.

"Temos todos nós, brasileiros, interesses em manterestáveiso,s preços."

--+ É portanto através da mobiliza ão como fiscal que o "nós"~ nstrOlal en . a ep enaentreo overnoeo ov .Aquiosujeito

enunciador constrói-se e constrói o sujeito enunciado sem media-ções. Quando a relação se constitui a.parrir da presença do "eu" e

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do povo, ou do "nós" e do povo, a identificação entre sujeitoenunciador-enunciado é construída por uma identificação pautadana diferença. O "povo" é diferente do "nós" e do "eu" porque estesúltimos aparecem como a au toridadc, como o governo, como oEstado, como o presiden te "imperial". Ao con rrário, a construçãodo "nós" sem mediações é o "nós" que tem possibilidades de serum "nós" democrático. Isto no entanto envolve alguns outrosproblemas: entre eles destaca-se como fundamental o fato de quea presença deste "nós" não obrigatoriamente indica um discursodemocrático (pode em alguns casos indicar até um discurso. tota-litário), mas, por-outro lado, sua ausência dificilmente indicará umdiscurso democrático. Este só é possível na medida em que adecisão política for mediada por um "nós" que não envolva aexistência de um princípio de poder por somente uma das partesque o formam.

Ainda em relação à presença do "nós" no discurso de março,deve-se fazer referência à forma específica como aparece nopronunciamento dos governadores. Como já foi observado quan-do da análise da construção do "eu", este é um momento bastanteparticular na medida em que o inrcrlocuror nJO é o povo, mas parespolíticos. O "nós" neste momento constrói-se como governo semnenhuma ambigüidade, governo este que é distinto de governado-res, que estavam no lugar de interlocutor das decisões do primeiro.O "nós" neste pronunciamento aparece da seguinte forma:

"estabelecemos alternativas ...estudamos dcralhadarncnrc todos os planos ...acompanhamos os países q uc viveram a mesma cx-

• A • "pertenCIa ...

o "nós" := governo se constrói pela seriedade e eficiência natomada de decisão, muito distinto do "nós" ufanisrico que aparecenos pronunciamentos que se dirigem ao povo.

O governo é a r forma através da qual o su'eito de~ ;:n~ncia~o se constrói enquanto sujeito enllnciador. Pelo seu

próprio sentido institucional, o governo tem um significado instau-rado na inrcrdiscursividadc, enquanto o "eu" e o "nós" não

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possuem significado anterior ao discurso enunciado, .só se consti-tuindo enquanto dotados de significantes no momento da fala. Aqualidade particular do "governo" deve ser considerada na análiseda sua inserção discursiva e, mais do que isto, deve-se tomar emconta a forma como o "governo" se constitui nos discursosanteriores ao momento do Plano Cruzado. Não cabe nos limitesdas preocupações deste capítulo uma análise detalhada dossignificados do "governo" no discurso político brasileiro; entretan-to, mesmo com esta ressalva, vale chamar atenção para um aspecto:o antigovernismo do discurso popular, entendido aqui como odiscurso do senso comum.

O discurso do senso comum oscilou por muitas décadas entredois sentimentos: o antigovernismo e a dissociação entre vidapessoal e política governamental. O primeiro está longe de serindicador de um alto grau de polirização; ao contrário, estárelacionado com Um sentimento de apoliricismo que poderia serresumido da seguinte maneira: o governo é corrupto e incapaz desolucionar problemas, em suma a famosa frase - "eu tenho horrorde política". O segu ndo refere-se ao não-reconheci men to por partedo cidadão da estreita relação entre as políticas governamentais e atrajetória de sua vida pessoal. Este distanciamento não impede quese institua uma relação personalizada entre indivíduos ou gruposcom o governo, principalmente ao nívc\ da política local. Ogoverno federal, entretanto, tende a ser percebido como umaentidade distante, com interesses próprios, sem interferências nosproblemas concretos do cotidiano, o que provoca uma postura deindiferença, de descrença, chegando ao que se poderia chamar deum antigovernismo. ~.

O discurso do Plano Cruzado é uma tentativa concreta dereverter o discurso antigoverno. No que pese a ccnrralidade do"eu" que se relaciona com o que se está chamando de "impcriali-zação" do presidente, o discurso para se realizar enquanto talnecessita de construire/ou reconstruirosignificado do "governo".

A instauração do "governo" no discurso ocorre por duas vias:através da relação do governo com o povo e através da própria defi-nição da função e natureza do governo enquanto tal. A primeira re-lação se constitui a partir de duas consrruçõcs-padrão: "o governo

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precisa do povo" e "o povo está com o governo". Por que ogoverno precisa do povo? No discurso de março a resposta é dadade maneira simples - porque o governo para ser eficaz precisa decolaboração. Esta colaboração é limitada e restrita à função defiscalizar o congelamento dos preços. O governo, como se verálogo a seguir, é um executor- de políticas e para isso necessita deajuda. Esta construção aparece nos quatro programas "Conserva aoPé do Rádio" do mês de março. Ovcxcrnp lo retirado do programade 7 de março é-significativo:

"Resolvi 'pedir ao povo para que ajudasse o governo nafiscalização... _

ajudem a fazer uma fiscalização que o governo, com todosos seus funcionários, órgãos e forças não conseguiria jamaisrealizar. "

v O fragmento acima revela três aspectos im )ortantes na consrru-~ ção do overno' em 'meir lugar deve-se prestar a atenção na

intermediaçao do "eu" na relação governo-povo. Não é o governoque solicita ajuda, mas o "eu" que pede ao povo; em~, apresença do governo como uma entidade que se encontra separadado povo, entidade que toma a decisão e que só depois solicita apresença deste e,~, esta solicitação é feita para uma tarefaespecífica, isto é, scalizar uma política do governo. Para que oapelo seja respondido positivamente o povo deve estar apoiando ogoverno. O discurso não pede este apoio, ele vai mais longe, eleconstrói no próprio discurso este apoio, através da construção dopovo apoiando e do governo merecendo este apoio. Dois exemplosaqui são significativos: '

A 19 de março o discurso coloca:

"O país tem vivido momentos de inequívoca sintonia dogoverno com toda a sociedade brasileira."

E a 21 do mesmo mês aparece:

"O governo defende o interesse do povo e o povo ajuda ogoverno a ser eficaz. "

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o governo portanto se constrói como o canal de reprcscntaçãQ~ CIOSinte resses do povo E, para que a construção se complete, o

""dlscurso avança na caracterização do governo com um claro intuitode reverter o. discurso do senso comum -. o governo se define. Adefinição do governo aproxima-se bastante da construção do "nós"governamental- o princípio articulador é a eficácia, o trabalho. A '14. de março o presidente explicitamente declara:

~ O~![( ;0 governo não é uma festa é um mutirão de trabalho.".~?/- ~- , -

A declaração: "O governo nãoé uma festa" só ganha sentido porsua negação "o governo é uma festa", o que se completaria corn aafirmação "este governo não é uma festa". I'or nenhum princípio _da teoria política ou da tradi ão olítica os conceitos de governo eesta poderiam estar associadQs. É impensávcl, por exemp o, ima-

ginar uma afirmação como esta no discurso de overnanteinglês, francês, soviético ou mesmo americano. .ntrcrant a afir-mação em um pronunciamento do residente brasl elro· tem umsentido de ru tura com o passado não só em re açao ao governomas também em relação ao iscurso do senso comum (não seria a[esta uma mistura de ineficácia e corrupção?). À festa se contrapõeo trabalho - a eficácia. Dos enunciados que conferem funções aogoverno Iistarn-se as seguinte afirmações:

111rr'

o governo vigiará com energianão poupará empenho e energiavem patrocinando mudanças na sociedade brasileirafará cumprir a lei ..se compromete a ser exemplo de rra balho.

.-----------------a..i:I

É este "governo" que exerce autoridade, punindo (e apenas aogoverno cabe punir, nem o "eu" nem o "nós" punem), que é o localde mudanças e que dá o exemplo de trabalho, que busca apoio nopovo para cumprir sua tarefa e que tem o apoio do povo, exatamen-te porque cumpre a sua tarefa.

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o outro no discurso presidencial

A ro ematIca os su ·eitos enunciado deve começara ser discutidapela ccntralidade destes no discurso político. Todo o discurso, porsua própria natureza, constitui e é constituído por sujeitos. Todoo discurso também se dirige ao "outro", daí todo o discursoestabelecer urnarelação de sujeição entre o sujeito enunciador e ooutro, aquele ~quem procura sujcitar- o discurso só existe atravésda sujeição.

Transpondo esta problemática geral iscurso político, aquestão adquire novos contornos O discurso político por suanatureza, tem sua sobrevivênsia re ro u .número de novos sujeitos que cons roi, o que não acontece porexemplo com o discurso científico, que pode sobreviver c reproduzir-se em uma pequena comunidade de estudiosos. Por cssa suacaracterística, o Iscurso po I ico se constrOl na ans!a c su·citar oq~e provoca efeitos concretos na dinâmica da Slla construção.Enquanto os discursos científicos sujeitam pelo enunciado daciência, o discurso político acrescenta, ao enunciado dos seusprincípios, o enunciado do próprio sujeito. Entre o sujeito cnun-ciador e O "indivíduo concreto" a quem se pretende sujeitar,

/J e!!.ÇQil.tr:a--seo sujeito <;J)I]Oc:.@doque se poderia chamaraté mcsmo,de '·VI uo ncreto ro etado· uanto li cito su·cita no

discurso O criün ciador. Iara melhor colocar a questão vale aexemplificação: umdlSCurso político x que tem como enunciadorZ é enunciado em uma sociedade y que é composta pelos sujeitossociais a, b, c, construídos por discursos anteriores. Este discursonão exerce sua natureza de sujeitar através de uma relação Z ~ a,b , c, mas através da seguinte construção: Z ~ A, )~, C, D = a, b, c,onde as letras maiúsculas representam a rearricuIação dos sujeitossociais em um dado discurso político. A presença de "D", sujeitosocial não existente entre os sujeitos inrcrdiscursivos, indica apossibilidade que se abre ao discurso político de construir novossujeitos. No caso estu~a neste ca itulo têm-se três sujeitosenunciados principais, ov, o t a alhado e fisca] o presiden-te, onde os dois prirncir corresp m às lctras maiúsculas naequação e o último à letra "D". Em qualquer dos casos, esta

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interme Ia é fun amenta no lscurso político: s~sujeit er s aâo curso.e- ~al~ nã~

a situaçao pode ocorrer somente em casos dC(]}scursÜSãftamentetécnicos dirigidos a platéias muito bem-definidas: a apresentação deuma política econômica por parte de um ministro de Estado a um ,grupo de empresários pode prescindir de tal inrcrrncdiação, nãosendo entretanto isso a regra.

Em relação ao discurso do Plano Cruzado, o momento deconstrução de sujeitos enunciados é de crucial importância, pois éatravés dela que o discurso busca a sua legitimidade, ou, melhordito, busca construir sua posição hegemônica na sociedade bra-sileira.

A o ruzad permite perceber com clarezaa pr ocupação central dos sujeitos cnunciador de construíremdois sujeitos enunciados:~ e os t 3 hador . Esta preocu-pação permite pensar em~ trajetória possível para o discursopolítico brasileiro do ano de 1986, isto é, atrajcrória populista deconstrução de posicionalidades populares por frações do grupodominante, que ao mesmo tempo rcdcfincrn sua própria posiçãoem relação a outras frações e desconstroem e reconstroem posicio-nalidades olíticas de discursos anteriores c/ou discursos antagô-nicos. A nálise do Iscurso e março· dica que se por um lado háclaras manifestações de iscurso populista, por outro a trajetória étruncada; a indicação das manifestações é a própria presença dossujeitos, povo e trabalhadores; a indicação do limite é a ausência daconstrução do antagonismo) substituído pela postura implícita)nunca declarada) do consenso, da pretensão, do grande pactosoc~l. ~

O sujeito "povo havia estado ausente do discursobras} elro u todo o o remomen tos e discurso mobilizador o ov era substituído porpátria e nação e nos momentos de oposiçao o povo apenas apareciacomo o contraste à exceção, no caso aqueles que constituíam aoposição - os subversivos. O ano de 1981 marca a reentrada dopovo no discurso político através da campanha das diretas; no anoseguinte foi também o povo que festejou a vitória de Tancredo echorou nas ruas o fim de uma esperança.

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A morte de Tancredo, a ascensão dcSarney à presidência, marca,por um ano, a ausência do povo no discurso político. Ele reaparececom a fala inaugural do Plano Cruzado a 28 de fevereiro - é ogoverno através do "eu" presidencial que reintroduz no discurso oconceito de povo. No discrso de março ov surge porque éconvocado pelo -governo; é solicitado a ser agente do rpo lOCO com uma-tarefa es ecí apoiar o governo porque estee cn e os seus interesses apesar de estes interesses serem sempre

apresentados de forma difusa. O sujeito "povo" enunciado porSarney tem qualidades específicas: o povo tem coragem paradominar o seu inimigo número um - a inflação.

Nas catorze referências feitas ao "povo" no discurso de março,sete referem-se à criação de identidade entre governo e povo e estaidentidade é criada ou através da ação conjunta ou através dacaracterização da própria identidade. No primeiro caso o governoconvoca o povo para ação. No pronunciamen to de 28 de fevereiro,em duas oportunidades, aparece esta relação. No segundo parágra-fo, .Samey afirma:

"Juntos, Governo e Povo, tomemos uma decisão grave edifícil, ela marcará a sorte de nossa sociedade nos próximosanos. "

Em outra passagem do mesmo pronunciamento, ao referir-se àsrealizações do ano de 1986, Sarney enuncia:

"O povo e o governo juntos cdificararn essa primeira etapada obra de restauração nacional."

Os parágrafos indicam duas formas de construir a "ação" dopovo, a primeira via convocação, a scgu nda via construção de umpassado comum. A 14 de março as duas formas se fundem:

"Quero convocar o povo para uma outra batalha, a batalhada produção."

O importante aqui @<l forma rr..~,..,. ° residente introduz

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, .;;; o ovo no discurso - como parceiro con vocado pelo governo. A~{lL~ação do overno nunca a arece co ma res osta à ação do povo~inde cn , o povo que age, que tem interesses própnos, nãoI- ~curso. Os interesses do povo s6 se constroem nay medida em que o governo os defende.

O segundo casoda relação governo-povo no discurso constitui-se na construção da identificação entre os dois. A 14 de março,Sarney declara:

"O governo e o povo deixaram de ser coisasdiversas) masexpressão de um único desejo"

A forma repete-se a 21 do mesmo mês:-

"O que está acontecendo hoje no Brasil é um perfeito en-tendimento entre o povo e o governo. É um ato inédito emnossa História. O governo defende o in teresse do povo e opovo ajuda o governo a ser eficaz) a acenar."

Analisando conjun tarncnre estes dois fragmentos, pode-seobservar) por um lado, a ambigüidade da rcIaç50 do governo como povo' expresso em dois momentos que aci mcnte são 1 os C0111 ocguivalcntes: único cscJo = mrcrcsscs do povo. Por outro lado)poder-se-ia estabelecer uma outra equivalência: governo e povodeixaram de ser coisas diversas - "é um fato inédito na nossaHistória". E finalmente aparece no segundo fragmento a posiçãodo povo: ajudar o governo. Portanto, no que pese a existência daconstrução de uma ação conjunta entre governo e povo, que secoloca no discurso como tendo até um passado comum, o momen-to é construído como excepcional, não pela ação do povo mas pelaação do governo, que age e pede auxílio ao povo. Esta relação estásintetizada em um parágrafo do mesmo dia 21.

"Este Brasilsério, do trabalho) das grandes medidas, é semdúvida o país que o povo quer."

Ainda sobre o sujeito "povo" vale.observar uma longa passagem

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do pronunciamento de 28 de fevereiro, passagem retoricamenteconstruída, onde o presidcn te fala da coragem do povo: !.."

"Mas não bastará a nossa firmeza se f..ilrar a coragem dopovo.

Foi a coragem do povo que nos rcinrrod uziu na democracia;foia coragem do povo que restaurou o crescimento econômico;foi a coragem do povo que assegurou a negociação soberanada nossa dívida externa, será a coragem do nosso povo que vaiderrotar a inflação.

E essa coragem do povo será e é a minha coragem."

t;f ora em 1 elr ? O termo pode sersubstituído por muitos outros sem nenhuma alteração de sentido,como por exemplo sacrifício, apoio, ação. O sentido vago é.importante no discurso. Cabe ao interlocutor preencher a lacuna apartir dos discursos prévios que o forma: de que coragem se fala?Sobre que manifestação de coragem o discurso se pronuncia? Esteexemplo deixa claro o argumento retórico da rnobilização .dodiscurso de março, que ao mesmo tempo em que busca a mobili-zação, constrói vagamente o sujeito mobilizado, reservando destaforma espaço maiorpara sua ação em um discurso de compromisso,onde poucas coisas ficam claras.

O trabalhador é ~'1!1~aiS importanteifo discur-so de março - o ~ antes de tudo endereçado a ele; Aexemplo da construção do sujeito "povo", o trabalhador tambémse instaura no discurso através de sua relação com o governo, queantes de tudo defende o seu interesse. ..

"A defesa do poder de compra dos assalariados" (28/2)."O trabalhador. .. deve ver na moeda que recebe no fim de

cada mês a retribuição de seus esforços" (7/3)."Oportunidade de emprego para os tra balhadorcs".

Estas construções estão muito próximas das observadas emrelação ao povo. O governo também defende os interesses dostrabalhadores, entretanto em relação a estes últimos O discurso

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reconhece interesses concretos· anteriores, o que não é o caso dopovo. A 28 de fevereiro, quando Sarney descreve as medidas doPlano de Estabilização Econômica, refere-se a um único sujeitoquando anuncia a criação do seguro-desemprego.

"Justa aspiração da classe trabalhadora."

Mais adiante, no mesmo pronunciamento, Sarncy, comentandoos efeitos da inflação, diz que essa acaba com

"Aumentos reais de salários que o trabalhador obteve comtanto suor e tanto risco.')

Nota-se, nos dois enunciados acima, que o discurso constrói otrabalhador como um sujeito independente em relação ao governo,ele tem aspirações e conquistas anteriores. O último fragmento éparticularmente in teressante, pois o presiden te refere-se "ao suor eao risco", é pouco viável que esteja falando da luta salarial dostrabalhadores, senão por outra coisa, porque o governo não iriacaracterizá-Ia como tendo riscos. É mais plausível articular suor erisco com trabalho, com merecimento.

Avançando na ná Ise o su °cito "gabalhador" cabe respondera qual trabalhador o discurso se refere. De maneira geral otrabalhador do discurso pode ser associado ao operário urbano,apesar de isso nunca estar explícito no discurso. Tal associaçãotorna-se possível por duas razões:.a primeira deve ser encontradanas condições de erncr ê' iscurso. Ern 1986 a única'oposição or anizada Nova Re ú lic ~ra~o~'I~)~T~~J....U.-v-~~SIn ical, CUT armada e operários urbanos e tendo sua r ndc~rça no centro paulisr . É no discurso

petista quese encontra a construção mais e a orada do trabalhador.A Nova República e especialmente o Plano Cruzado necessitamreconstruir a posicionalidade deste segmento social. Soma-se àscondições de emergência uma' série de indicadores claros nointerior do próprio discurso, como o "seguro-desemprego", "a de-fesa do poder de compra do assalariado", "o primeiro a ser defen-dido será o trabalhador brasileiro", "oportunidades de emprego".

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Mesmo com estas indicações) o discurso) em certos momentos,abre mão das especificidades que levam a relacionar trabalhadorcom o operário. O melhor exemplo está no pronunciamento de 14de março.

"Com a inflação) a vantagem era dos cspccu ladorcs, agoraé a vez do trabalhador; a vez dos lucros sólidos) ganha maisquem produz e vende por melhores preços) é a vez dacompetência) é a vez da produtividade."

Trabalhador neste segmento é quem trabalha) que é equivalentea ter lucros sólidos) porque quem os tem é quem produz mais) istoé) quem trabalha mais) quem é trabalhador e não especulador.Aqui) ao mesmo tempo que aparece aquele que poderia ser iden-tificado como o antagonismo fundamental construido no discursodo Plano Cruzado) se concretiza a diluição do sujeito "trabalha-dor" e conseqüentemente a diluição do próprio antagonismo. Otrabalhador deixa) neste momento) de ser aquele que tem suaatividade na indústria; o operário) assim como o cspcculador, perdesua especificidade enquanto sujeito concreto. Na medida em quelucro e trabalho são equivalentes) todos podem ser trabalhadores aomesmo tempo que todos podem ser virtualmente cspcculadorcs.

o fiscal do - a garantia do sucessokb~~~~

O discurso do Cruzado realiza-se no primeiro mês. Foi lançado a28 de fevereiro e no fim do mês de março a "inflação já não existe)a especulação é coisa do passado) e o Brasil é um país sério e detrabalho". A questão que se coloca é de corno se construiu tãorapidamente o discurso do sucesso. A resposta está na capacidadedeste discurso de construir um sujeito novo C unificado - o fiscaldo presidente. Este é o grande ganho na obra de engenharia políticaque constituiuo Plano Cruzado) isto é.sua capacidade de constituirum novo sujeito com uma qualidade in rcrpclativa invejável. Comoeste sujeito se constitui? Antes de buscar no discursoseu aparecimen-to explícito) que se dá desde o primeiro momento) deve-se retomar

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as questões anteriormente discutidas, que são) em última análise) ascondições de emergência do mais importante sujeito da políticabrasileira na história recente do país. REsumidamente pode-seen erar estas condições como as seguintes:

.edução da pro emanca s cIo-econômica brasileira ~fom ;d~go; o pça· e u ação ets}) à inflação) que per es'iiaaefinição econômica perden o desta forma suas causas estru-turais), e ganha uma dimensão simbólica - de inimigo número umd~OVO brasileiro. O combate tor~a-se uma questão de vontade.

2. ato de vontade se concretiza em um plano, o Plano deEsta ilização Econômica apresentado como um conjunto demedidas - de atos do gove.rno - que transformarão as condiçõessociais, de miséria, de fome etc, e as condições econômicas (falta deinv stimento, desvalorização dos salários etc.,) do país.

O Plano se constrói na relação do presidente da Repúblicacom o povo. Mais do que um plano governamental, é um planopessoal. O "eu" presidencial sofre as angústias solitárias dos proble-mas do país, medita sobre esses e sobre os caminhos do destino(caminhos messiânicos) que o colocam na presidência da Repúblicae) frente a isso) decide e apresenta ao país o Plano de EstabilizaçãoEconômica .

. O presidente, de posse da solução) se dirige aos trabalhadorese a povo, a quem o plano deve atender sem abrir mão da posiçãoque o Estado autoritário lhe confere, o "eu" presidencial constituios dois sujeitos) nascidos diretamente do discurso) sem existênciaanterior, sem memória, sem história. Nenhuma luta popular éarticulada, nenhuma vitória é lembrada. O país era o caos (governomilitar) e a tragédia (a morte de Tancredo Nevés). No ·caos e natragédia não existia o povo, nem o trabalhador, ele é construído demaneira fluida e sem história: é instaurado autoritariamente pelo"eu" presidencial no discurso inaugural.

Em suma, [as condições de emer"· ra o nascimento do~scal do preSIdente po em ser resum~urso de carae::.tcrísticas messiânicas de Sarne onde os problemas são unificadossimbolicamente na mflação, onde a solução se constrói como umato de vontade do "eu" presidencial, onde a unidade do enunciadorse constrói através da unidade do enunciado - todos, o povo e os

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trabalhadores (todos os que trabalham) tornam-se um só sujeito:o fiscal do presidenre=-> que tem existência, mais uma vez, nodiscurso, através de um ato de vontade.

Na fala inaugural o eu presidencial dá vida à sua criação:

"Todos estaremos mobilizados nesta luta, cada brasileir~ou brasileiro será e deverá ser um fiscal dos preços.

E aí posso me dirigir a você, brasileira e brasileiro, parainvesti-Ionurn fiscal do presiden te, para a execução fiel desseprograma em todos os cantos deste Brasil."

o fiscal do' presidente nasce, portanto, da unificação de cadacidadão (brasileira ebrasilciro; você). É o "indivíduo" desnudadode toda e qualquer qualidade de sujeito que é in vestido como fiscal.O discurso ignora qualquer mediação histórica, de classe, deposição política. Um exemplo fictício esclarece a questão: se odiscurso enunciasse "brasileira e brasileiro [ou você], não importandoqual sua filiação política partidária, deve ser um fiscal...", ter-se-iauma construção distinta - o eu enunciador reconheceria a existên-cia prévia da fragmentação do sujeito político, o sujeito partidário,mas isso não acontece: antes do fiscal, existia apenas o "você":brasileira e brasileiro. '

Em pronunciamentos nos dias 4 e 14 de março, o fiscal dopresidente ganha uma "função" qualificada, não é apenas aqueleque controla os preços, mas torna-se o povo fazendo história.

A 4 de março o fiscal é nomeado da seguinte forma:

"maior voluntariado vivido na nossa história e de umamobilização conseqüente em todos, espontaneamente de-monstrando confiança no presiden te."

Dez dias depois:

"A todos a minha palavra é não esmorecer. Os fiscais dopresidente continuam. mobilizados ... é o povo brasileirofazendo história."

Nas duas passagens acima, reforça-se a criação prcsidcncial- o

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sopro de vida constantemente renovado. f: através desta criação-da confiança do outro no "eu" - que o povo faz história. Aconstrução do outro (o fiscal) chega a seu momento de ápice no dia21 de março, no programa radiofônico "Conversa ao Pé do Rádio".Este é um momento de especial importância no discurso de sujeiçãodo fiscal porque é o único momento de complexidade na constr~-ção.

"Cada brasileiro tornou-se o fiscal do presidente. Noprincípio para garantir o cumprimcn to dos preços e agora parao que envolve o cumprimento da lei.

Ser fiscal do presidente é exigir serviços pó blicos eficazes.Ser fiscal do presidente é exigir que as escolas ensinem,

sejam organizadas, que a assistência médica funcione, que osserviços de transporte cumpram horários e se cobrem tarifascorretas.

Ser fiscal do presidente é confiar na igualdade de todospcran te a lei.

Ser fiscal do presidente é impedirque os preços congeladosnos níveis do dia 28 de fevereiro sejam remarcados oualterados. .

Ser fiscal do presidente é, principalmen te, não deixar queo paíspare sob qualquer pretexto. É impedir que os pessimistastenham sucesso, é impedir que os boarciros espalhem opânico. É desmascarar as mentiras contra o povo.

Ser fiscal do presidente é chamar as autoridades para queelas façam curnprira lei. Ser fiscal do presidente não é fazerjustiça com as próprias mãos, mas acreditar que o governo furácumprir a lei, doa a quem doer."

A definição do que é ser fiscal do presidente, a partir do textoacima, tem três momentos claros. O primeiro é a separaçãopresidente/governo. O presidente dcfine o fiscal çomo aquele queexige do governo que cumpra o seu dever (escolas, saúde, serviçospúblicos etc.). É clara aqui a dicotomia prcsidente/governo; seriaimpensável o "eu" exigir que o outro exija do "eu" o cumprimen todo dever. O presidente - o "eu" - coloca-se portanto acima do'

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governo em uma relação direta com o fiscal. Aqui aparece umatendência populista do discurso, que entretanto é logo quebradapela segunda forma de definição do fiscal: a confiança na igualdadede todos perante a lei. A lei é o governo (o governo fará cumprir alei), e o fiscal deve confiar no seu cumprimento ao mesmo tempoque deve exigir o cumprimento da lei (escolas, saúde ctc.). Umenigma aparentemente de dificil solução, só possível de en-tendimento se forem tomadas em consideração as condições deemergênciado"eu imperial": o eu construídosobre um frágil podere numa relação ambígua com o governo.

A contradição se resolve na terceira forma de construção dofiscal: entre a fórmula eu = fiscal versus governo e a fórmula do eu= governo H fiscal, a segunda é vencedora. O texto conclui rcco-locando o fiscal em sua "função" de conrrolador de preços. O fiscaltem sua existência porque tem uma função, que é a de defender oPlano de Estabilização Econômica contra os inimigos do governo.A função, em última instância, "é chamar a autoridade", "éacreditar no governo". O fiscal garante o sucesso do discurso doCruzado porque se constrói como o sucesso de um plano degoverno personalizado no "eu" presidencial.

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\~otas eonclusg

À guisa de conclusão serão indicados ai uns on toslscurs eSl enCla o mês de março-8 ,relacionados a duas-rspectiv 6· a primeira refere-se à própria dinâmica d9. constr ção

so que inau ura o Plano Cru gunda efcre-se àrelação entre a análise de discurso c a análisede po itica , preten-dendo mostrar os efeitos concretos do discursivo na luta política.

No que se relaciona à dinâmica da construção do discurso demarço-86, três pontos devem ser destacados:

L O discurso de março-86 não é um momento inicial de umaconstrução discursiva que se contrói ao longo do ano, isto é, nodecorrer da implantação do Plano Cruzado. Ao con rrário, é umdiscurso que já corirérn em seu interior o sucesso do projeto políticoque propõe.

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lcgislativo; judiciário) orno os artidos olítico., no caso dodiscurso de março o PMDB e o PFL. Nenhum destes dois pólosaparecem como dotados de poder; esse emana dodiscurso única eexclusivamente do presidente da Repú blica. O fenômeno pode seranalisado a partir de dois conceitos: tanto pode ser um fenômenodc condensação como de deslizamento. O primeiro caracterizariauma situação ondc o presidente, com condições de liderançaparticulares, como no caso de um líder carismárico , apareça nodiscurso como um "eu" sin rctizador, representando a força de umpartido ou de ,um governo. No segundo caso caracteriza umasituação onde o poder emana de fora das instituições políticaslegítimas e principalrnente legalmente constiruidas, daí não apare-cer no discurso, havendo um deslizarncnro para a figura do "eu"presidencial enunciador, que aparece como dotado de grande somade poder.

O discurso de março-86 parece aproximar-se basran te do segun-do caso. Não é crível pensar em José Sarney como um líder parti-dário e/ou popular capaz de constituir-se como sujeito enu nciadoratravés do artifício de condensação. Muito mais verossímil, no quepese mais pessimista, é pensar na fraqueza das instituições políticasno país e na inconsistência dos partidos políticos, que mais uma vezencobrem nesta nova fase da história brasileira o centro de decisãopolítica, que com a abertura democrática não perdem poder, masperdem voz, buscando por isso o sujeito presidente da República-atá-se frente a um fenômeno de dcslizarncnto.8O Plano Cruzado foi um gr~nde ucesso poh ~ c um grande

~ e,nSluanto política economlCa. I'ais resultados não sãoconseqüência de um ano de implementaçao do Plano, pois estavamdados já no discurso de março. O sucesso político do Plano estámarcado, por um lado, pela construção da eficácia do governo, queaparece como dotado de vontade política para resolver o problemacentral dopaís - a inflação. Como a resolução é uma questão devontade e o governo tem está vontade, não existe mais o problema.Por outro lado, este sucesso se constitui a partir da in trod uçãona política brasileira do cidadão - o fiscal do Sarncy. A soma deeficácia do governo com a participação cívica Uo cidadãogarante osucesso do plano. ~)

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Se o Plano foi um sucesso político o mesmo não pode serafirmado em relação à sua face econômica. Sem entrar na discussãoda eficácia do choque heterodoxo, o que se pode analisar a partirdo discurso de março é a forma como a inflação foi construída. Ainflação não continha responsáveis, nem interesses, isto é, não era'alimentada por sujeitos históricos concretos. Aparece como anima-da por moto próprio - como o inimigo. Em vista disso, o discursonão é capaz de provocar uma ruptura, colocando de um ladoaqueles que lutam contra a inflaçãoe de outro os que se aproveitamdela. É a natureza conciliatória e conservadora que determina dea~o o fracasso econômico do Plano.

l.~./.t.inalmente, a questão que deve ser respondida refere-se aoefêlfo do discurso do Cruzado a médio prazo. Apontar-se-ão aquios dois mais marcantes. O nmeiro efere-se ao r torno do antivernism Aue se soma agora ao antiestatismo: o governo é cor-rupto e inefic:ar.EStC retorno tem roupagens novas na medida emque tem um novo intcrlocutor, a direita empresarial, que ganhouespaço para seu discurso liberal na medida em que o Plano Cruzadofalhou .

.~ O s~-ttrrd<o)rrõSlu:illlttãaddé o surgimento de um novo sujeito - ofiscald siludido Eumsu'eito esor alll~a o pquesuaongemfoio cidadão, à espera de uma voz que lhe restitua a ilusão- cons-truída en uanto fiscal em um discurso auroritárjo. É inca az de seorganizar- talvezesteja à espera que um novo discurso autoritário

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