Aula inaugural de marcelo barros ciências da religião unicap

11
1 O papel das ciências da religião no mundo pluralista Marcelo Barros Contam que, em uma cidade do primeiro mundo, um homem passeava em um balão dirigível e, a um determinado momento, sentiu-se perdido e baixou o balão até uma altura possível de se comunicar, viu um homem andando na estrada e perguntou: - Meu amigo, será que você pode me ajudar? Em meu passeio, me perdi. E estou com um problema: tenho um encontro importante às duas da tarde e, pelo que vejo, não vou conseguir chegar. Será que você pode me dizer onde estou. O rapaz respondeu: - Claro que eu o ajudo. O senhor está em um balão dirigível a 10 metros e meio de altura a 45 graus de latitude sul e 32 de longitude oeste. Do balão, o homem respondeu: - Muito obrigado, pela informação. Por acaso, você não é teólogo? O rapaz respondeu: - Exatamente. Sou teólogo. Como o senhor descobriu? - Muito fácil. Você só pode ser um teólogo. Aceita ajudar, mas dá a informação de uma maneira tal que eu continuo perdido do mesmo jeito e não sei o que fazer com a informação que me deu.

Transcript of Aula inaugural de marcelo barros ciências da religião unicap

Page 1: Aula inaugural de marcelo barros   ciências da religião unicap

1

O papel das ciências da religião no mundo pluralista

Marcelo Barros

Contam que, em uma cidade do primeiro mundo, um

homem passeava em um balão dirigível e, a um determinado

momento, sentiu-se perdido e baixou o balão até uma altura

possível de se comunicar, viu um homem andando na estrada e

perguntou:

- Meu amigo, será que você pode me ajudar? Em meu

passeio, me perdi. E estou com um problema: tenho um

encontro importante às duas da tarde e, pelo que vejo, não vou

conseguir chegar. Será que você pode me dizer onde estou.

O rapaz respondeu:

- Claro que eu o ajudo. O senhor está em um balão

dirigível a 10 metros e meio de altura a 45 graus de latitude sul e

32 de longitude oeste.

Do balão, o homem respondeu:

- Muito obrigado, pela informação. Por acaso, você não

é teólogo?

O rapaz respondeu:

- Exatamente. Sou teólogo. Como o senhor descobriu?

- Muito fácil. Você só pode ser um teólogo. Aceita

ajudar, mas dá a informação de uma maneira tal que eu continuo

perdido do mesmo jeito e não sei o que fazer com a informação

que me deu.

Page 2: Aula inaugural de marcelo barros   ciências da religião unicap

2

É verdade. O senhor tem razão. Mas, se eu não me

engano, eu também me arriscaria em dizer: o senhor só pode ser

político.

O outro riu e retrucou:

- Sou mesmo. Como é que o senhor adivinhou tão

rápido?

Foi a vez do rapaz responder:

- Facílimo. O senhor está perdido, não sabe de onde

veio, nem para onde vai. Nem por isso deixa de usar o dinheiro

do povo para passear. Promete coisas que já deveria saber que

não pode cumprir. Espera que outros resolvam seus problemas e

ainda encontra um jeito de dizer que eu sou culpado do senhor

continuar perdido... Só pode ser político.

Embora não pense que essas imagens caricaturadas

tanto do teólogo como do politico sejam justas com relação à

maioria das pessoas que exercem essas funções, eu me lembrei

dessa história porque vocês estão começando um período de

estudo de ciências da religião que, de certa forma, une em vocês,

o melhor do teólogo e o melhor do político. A tarefa de vocês é

dialogar com uma teologia que tenha utilidade concreta e

imediata para o mundo e uma política que tenha como objetivo

um mundo mais justo... Permitam-me a mim que sou um

permanente estudante de teologia e apenas admirador das

ciências da religião, conversar com vocês sobre como vejo o

papel das ciências da religião no horizonte do mundo atual e

principalmente dentro de uma universidade católica, como essa

na qual estamos. Como escolho o estilo provocativo, me sinto

livre de imaginar horizontes possíveis e lançar questões e

Page 3: Aula inaugural de marcelo barros   ciências da religião unicap

3

possibilidades, para no final tentar amarrar alguma coisa. O

importante é refletirmos juntos. Minha provocação é só para

puxar conversa.

1 – Um olhar sobre a diversidade religiosa atual

Outro dia, soube de um dado que, como leigo no

assunto, me impressionou muito. Soube que no censo realizado

no Brasil em 2010, entre as perguntas que o recenseador devia

fazer a cada brasileiro, uma delas era: “Qual a sua religião?”. O

meu espanto foi que no final quando foram classificar as

respostas a essa pergunta, descobriram 35 mil respostas

diferentes. 35 mil possibilidades de dizer que religião cada um

segue no Brasil. Eles acharam demais e conseguiram sintetizar ou

agrupar em 500 respostas diferentes. Mas, mesmo assim, é

muito. É claro que não se tratam exatamente de 500 religiões

diferentes, menos ainda de 35 mil. São modalidades

diferenciadas sobre como as pessoas se colocam quando se trata

da pertença às religiões ou diante do fenômeno religioso.

É claro que podemos dizer que são tentativas de

respostas à busca mais profunda de dar sentido à vida. Quem

lida com religião, não lida somente com instituições e estruturas

antigas. Lida também e principalmente com formas como as

pessoas expressam sua busca de sentido para o viver tanto no

plano pessoal como coletivo. Não sei quantas religiões estariam

classificadas aí, mas vamos imaginar que cada uma delas

pudesse ter uma teologia para explicar e aprofundar sua visão

própria de Deus, da fé, e sua razão de ser e missão no mundo.

Essas teologias seriam uma visão a partir de dentro de cada uma

Page 4: Aula inaugural de marcelo barros   ciências da religião unicap

4

e em si seriam dirigidas para os fiéis ou pessoas que têm

afinidade com cada uma.

Será que as ciências da religião poderiam explicar essa

diversidade e o lugar de cada uma delas para a assembleia dos

crentes de todas e dos que não seguem nenhuma? Será que as

ciências da religião conseguiriam mediar o diálogo entre o

mundo cultural, social e político, perdido no balão em que está

divagando, e a teologia que sempre corre o risco de dar

respostas corretas, mas que não servem concretamente para

nada nesse mundo de fora da cultura própria daquela religião?

Ainda considerando que seja assim, é claro que não é a mesma

coisa a resposta pelo sentido da vida de um intelectual que

acredita que os anaunaques, antigos deuses dos sumérios, eram

seres interplanetários que vieram ao mundo cinco mil anos antes

de nossa era e o sentido da vida de um grupo de moradores de

um morro do Rio de Janeiro, de Salvador ou do Recife, que tem a

cada dia de lidar com a vida e a morte, a sobrevivência e a

urgência de reafirmar sua dignidade humana ameaçada.

Nesse caso, ao lidar com a religião, seja ela uma

comunidade de Xangô, seja uma comunidade neopentecostal, as

ciências da religião estão lidando com um elemento importante

da resistência cultural e da expressão afetuosa das pessoas. O

fato de compreender e acompanhar as pessoas em seus

devaneios de amor (individuais ou coletivos) não nos tornam

ingênuos em aceitar instituições que usam o sagrado para

legitimar o seu poder, como nesses dias se pode ver tão

frequentemente nos jornais e televisões ou outras que exploram

economicamente as pessoas para fortalecer seu império

Page 5: Aula inaugural de marcelo barros   ciências da religião unicap

5

econômico e tomam a religião como mercadoria e sua teologia

como negócio.

2 – Formas de compreender a função das ciências da

religião

A interdisciplinaridade e a tentativa de olhar de forma

mais ampla possível vai fazendo com que as fronteiras das

ciências não somente se cruzem, mas se relativizem. Tenho a

impressão de que a discussão sobre o próprio nome da disciplina

se se trata de Ciências das Religiões ou se se pode simplesmente

denominar “Ciência da religião” tem sido útil porque mostra uma

complementaridade de objetos de estudo e de métodos que se

somam e se interpenetram1.

Essa riqueza não impede a polêmica e certos mal

entendidos. Desde que nasceu a teologia da libertação foi

acusada por setores conservadores de Igrejas cristãs de ser

sociologia da religião e não teologia. Agora essa mesma acusação

se faz com a teologia do pluralismo religioso. Para esses setores

conservadores, isso representa uma acusação, como se fazer

ciências da religião fosse uma degradação, uma diminuição em

relação à teologia.

Talvez se possa dizer que, no século IV, Santo Agostinho,

ao fazer teologia a partir da filosofia platônica, fez ciência da

religião. Às vezes em seus textos o limite entre teologia e

filosofia é muito tênue. No século XIII, Santo Tomás de Aquino

fez o mesmo com a filosofia aristotélica. Hoje, uma teologia para

responder aos problemas concretos da humanidade tem de não 1 - Cf, MARCELO CAMURÇA, Ciências sociais e Ciências da Religião, Polêmicas e Interlocuções, São

Paulo, Paulinas, 2008, 0. 20.

Page 6: Aula inaugural de marcelo barros   ciências da religião unicap

6

só dialogar, mas inserir-se junto com a sociologia, a antropologia

e outras ciências para aprofundar seu objeto de pesquisa e seu

caminho de elaboração.

Comumente se diria que a distinção entre teologia e

ciências da religião é que o objeto de estudo pode ser o mesmo,

mas o ponto de partida seria diverso. As ciências que estudam a

religião seriam o olhar leigo e de fora, enquanto a teologia

partiria da fé e seria um olhar a partir de dentro. Esse tipo de

visão parece ingênua porque imagina para a teologia uma fé

desvinculada de uma cultura concreta e desenraizada da história.

Seria como se existisse em estado puro algo chamado fé e não a

expressão da fé na cultura semita, a expressão ou as várias

expressões de fé em cada cultura humana, condicionada pelo

tempo e pelo espaço na qual ela é expressa.

Além disso, por outro lado, sempre houve na história

uma teologia confessional e chamemos, se quisermos, de cúria

ou de corte, mas sempre houve também uma teologia laical e

por excelência crítica que, em uma linha mais bíblica, não fala só

de Deus, nem da Igreja, mas da forma como as pessoas

vivenciam aquilo que a fé chama de reino de Deus ou projeto

divino no mundo. Não tem como objetivo provar ou defender

dogmas. Seu trabalho é construir metáforas, ou melhor,

descobri-las na realidade da vida cotidiana e nos acontecimentos

do mundo. Como forma estrutural de linguagem, a metáfora é

aberta e plural. Não é dogmática. Não tem a pretensão de dizer o

que é certo ou errado, mas de acompanhar a humanidade em

sua busca de sentido para a vida.

Page 7: Aula inaugural de marcelo barros   ciências da religião unicap

7

Nunca ouvi ninguém de direita ou de esquerda, de

teologia aberta ou fechada que negasse a Dietrich Bonhoeffer o

título de um dos teólogos mais importantes da primeira metade

do século XX. Todos reconhecem que a teologia dele teve e tem

uma profunda influência na teologia evangélica e católica como

teologia da realidade e como um dos precursores do que depois,

na América Latina, se chamou teologia da libertação. Entretanto,

a teologia de Bonhoeffer é totalmente laical e secular. Em uma

de suas cartas, escritas na prisão para Eberhard Bethge, ele

retomou um conceito da filosofia do direito, formulado pelo

holandês Hugo Crócio no início do século XVII e o aplicou à

realidade social e política da sociedade de seu tempo. Ele

defendeu que “devemos viver com Deus como se não houvesse

Deus” (“etsi Deus non daretur”)2.

Temos aí teologia e ciências da religião, ao mesmo

tempo. Ele construiu toda sua teologia assim. Uma teologia

judaica e cristã faz isso a partir das fontes da revelação bíblica

lida histórica e culturalmente. Uma teologia hindu a partir das

tradições hindus. Uma teologia da tradição ioruba ou fon a partir

dessas culturas. Mas, essa teologia leiga, profética e livre se

insere em uma realidade eclesial e religiosa, mas até para ajudar

a instituição precisa da liberdade de pesquisa e de dialogar

verdadeiramente com as ciências do mundo. Por isso precisa das

ciências da religião.

Ofélia Pérez, diretora do Centro de Estudos das Ciências

da Religião em Havana me disse que até os anos 90, para alguém

22 - CF. D. BONHOEFFER, Resistência e Submissão, Cartas da prisão, São Leopoldo, Ed. Sinodal, varias

edições – trata-se da famosa carta de 30 de abril de 1944 (não tenho aquí a citação de páginas do libro).

Page 8: Aula inaugural de marcelo barros   ciências da religião unicap

8

entrar no curso de ciências da religião na Universidade de

Havana, um dos requisitos era que a pessoa não tivesse religião.

Acreditava-se que só alguém ateu poderia ser suficientemente

isento para fazer uma sociologia ou antropologia do fenômeno

religioso ou fazer uma análise objetiva das diversas instituições

religiosas que existem em Cuba. Conforme ela me relatou, a

mudança não se deu por alguma norma da universidade ou do

governo. Foram as próprias pessoas que, ao pesquisarem se

envolviam com o objeto de pesquisa. Descobriram que o

problema não é o fato de se envolver e sim como e para que.

Um psicólogo que faz terapia de casal deve entrar na

relação, mas deve saber como e de que forma pode ajudar. O

médico que luta contra uma epidemia de doença tropical na

África tem de aceitar correr riscos para cumprir sua missão. Há

coisas que se compreendem melhor e se analisam mais

profundamente quando são vistas “de fora” e outras que só se

compreendem “de dentro”. Então parece que o problema não é

que a teologia vê a partir de dentro e em função de dentro,

enquanto as ciências da religião veem de fora e a partir de fora.

Possivelmente poderíamos dizer que as ciências da religião

teriam um olhar a partir da universidade – da

interdisciplinaridade e de um compromisso mais com o mundo e

as pessoas envolvidas nas religiões, como cidadãos e

construtores desse mundo.

3 – Convite para uma missão difícil, mas urgente

Page 9: Aula inaugural de marcelo barros   ciências da religião unicap

9

“Até aqui os cientistas quiseram compreender o mundo.

O importante é transformá-lo”3, propôs Marx. Uma das coisas

mais difíceis de compreender é porque as religiões e tradições

espirituais nasceram, todas elas, para transformar o mundo, se

tornaram na história, não somente elementos de conservação,

mas de resistência e bloqueio à transformação. Até hoje, a

mística é algo sempre revolucionário no sentido de

transformador, mas a religião, quase por natureza, é elemento

de tradição e de apego ao passado e ao status quo. Marx chegou

a dizer que a religião é o suspiro da criatura oprimida, a alma de

um mundo sem coração, o ópio do povo”4.

Na América Latina, nas últimas décadas, alguns setores

de Igrejas cristãs e também de religiões negras e indígenas se

colocaram em um processo revolucionário. Na Bolívia, esse

processo novo se chama justamente “insurreição indígena”, no

Equador, “revolução cidadã” e na Venezuela, “processo

bolivariano”. E cada vez mais um grande número de estudiosos

desses processos chegam a conclusão que sem a participação

das bases ligadas às Igrejas e religiões autóctones nesses

processos sociais, dificilmente esse caminho levará a algum

resultado novo e transformador. Tanto por causa da importância

numérica e cultural da religião na América Latina, como pela

força mística do seu potencial revolucionário. Já em 1932, no

Peru, José Carlos Mariátegui, um dos mais importantes

intelectuais marxistas da América Latina, escrevia: “A força dos

3 - KARL MARX, na 11ª Tese sobre Fuerbach. Citado por NAYAR LOPEZ CASTELLANOS, Perspectivas del

Socialismo Latinoamericano en el siglo XXI, Havana, Ocean Sur, 2012, p. 101.

4 - Cf. KARK MARX, Critique de la Philosophie du Droit de Hegel, Introducción en Karl Marx et F. Engels,

Sur la Religion, Textes choisis, Paris, Ed. Sociales, 1960, p. 41.

Page 10: Aula inaugural de marcelo barros   ciências da religião unicap

10

revolucionários não está na sua ciência, mas na sua fé, na sua

paixão, na sua vontade. É uma força religiosa, mística espiritual...

A emoção revolucionária... é uma emoção religiosa. As

motivações religiosas se deslocaram do céu para a terra. Elas não

são divinas, mas humanas e sociais”5.

E as revoluções sociais e políticas que partem das

comunidades indígenas e negras precisam desse potencial. Há 40

anos, foi a Teologia da Libertação que assumiu a tarefa de

inserir-se nos processos sociais da época e elaborar uma teoria a

partir da prática que pudesse ser útil na caminhada. Hoje, essa

contribuição teológica continua válida e atual, mas quem sabe se

para esses novos processos, seria mais uma plataforma de

ciências da religião que poderia cumprir essa tarefa profética –

interpelar continuamente as instituições religiosas sobre sua

função e ajuda-las a compreender melhor o que o mundo espera

delas.

Não pensem que estou pedindo para vocês se

desviarem do objetivo de suas pesquisas e agora se voltarem

para a política. Não. Estou propondo que ajudem as religiões a

recuperarem a dimensão revolucionária e transformadora de sua

fé. Isso tem um aspecto religioso mesmo e um aspecto social e

político que é urgente no nosso continente. E penso que as

ciências da religião podem sim cumprir um papel de nos ajudar a

descobrir como as religiões podem se renovar no seu potencial

místico e revolucionário.

5 - JOSÉ CARLOS MARIÁTEGUI, El Hombre y el Mito, El alma matinal, Lima, Biblioteca Amauta, 1970, p.

22.

Page 11: Aula inaugural de marcelo barros   ciências da religião unicap

11

Se as tradições espirituais e religiosas voltarem a ser

laboratórios de utopias, as ciências da religião ajudariam as

religiões a discernir as utopias dignas desse nome como não

caminho – irrealizáveis e irreais, das utopias que tornam possível

o caminhar e embora não sejam realizáveis imediatamente, aqui

e agora, têm força mobilizadora e devem estar presentes no

nosso processo.

Na porta de uma casa em Havana li um cartaz que bem

se poderia aplicar às ciências das religiões se vocês aceitarem o

convite que fiz aqui: “Somos tão realistas que queremos o

impossível e por ele lutamos”.