Auto de paixão e da alegria, de Luís Alberto de Abreu - cannovaccio

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AUTO DA PAIXÃO E DA ALEGRIA Luís Alberto de Abreu Enredo Uma das características da cultura popular é não estabelecer nítidas fronteiras entre o tempo e o espaço. Do ponto de vista da cultura popular tanto São Tomé quanto Adão andaram pela Bahia e Jesus Cristo, quando veio ao mundo, andou pregando para os lados da Paraíba que é só alguns “par de léguas” distante de Jerusalém, que é perto da terra onde viveram os “ Doze pares de França”, que é próxima do Oriente onde se deram as “Mil e umas noites”... A diversidade do tempo e dos acontecimentos é reduzida, na cultura popular, a um todo único, simultâneo e contínuo. E, obviamente, cômico. Foram essas características de liberdade (geográficas e históricas) e inventividade que permitiram, em nosso auto de natal Sacra Folia, que a Família Sagrada, em sua fuga para o Egito, se perdesse no caminho e viesse esbarrar no Brasil. E aqui cumprisse saga tão grande que só conseguiu retornar a Jerusalém quando Cristo fez doze anos e foi visto ensinando doutrina entre os doutores do templo. Essas mesmas características estarão presentes em nosso Auto da Paixão e da Alegria, que pretende celebrar, do ponto de vista risonho e inusitado da cultura popular, o drama da Paixão e a Alegria da ressurreição de Cristo.

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AUTO DA PAIXÃO E DA ALEGRIA

Luís Alberto de Abreu

Enredo

Uma das características da cultura popular é não estabelecer nítidas

fronteiras entre o tempo e o espaço. Do ponto de vista da cultura

popular tanto São Tomé quanto Adão andaram pela Bahia – e Jesus

Cristo, quando veio ao mundo, andou pregando para os lados da

Paraíba que é só alguns “par de léguas” distante de Jerusalém, que é

perto da terra onde viveram os “ Doze pares de França”, que é

próxima do Oriente onde se deram as “Mil e umas noites”...

A diversidade do tempo e dos acontecimentos é reduzida, na cultura

popular, a um todo único, simultâneo e contínuo. E, obviamente,

cômico. Foram essas características de liberdade (geográficas e

históricas) e inventividade que permitiram, em nosso auto de natal

Sacra Folia, que a Família Sagrada, em sua fuga para o Egito, se

perdesse no caminho e viesse esbarrar no Brasil. E aqui cumprisse

saga tão grande que só conseguiu retornar a Jerusalém quando Cristo

fez doze anos e foi visto ensinando doutrina entre os doutores do

templo.

Essas mesmas características estarão presentes em nosso Auto da

Paixão e da Alegria, que pretende celebrar, do ponto de vista risonho

e inusitado da cultura popular, o drama da Paixão e a Alegria da

ressurreição de Cristo.

Nessa história (que aproveita os “causos” populares que registram a

passagem de Cristo adulto pelo Brasil) os heróis populares João Teité

e Matias Cão, acossados por uma série de dificuldades econômicas e

sobrenaturais são obrigados a fugir e a se engajar num grupo de

peregrinos liderados por um pregador. Nesse, João Teité logo

reconhece o Cristo que conheceu em criança, nos acontecimentos do

auto Sacra Folia. As dificuldades não cessam e nossos heróis,

fugindo, acompanham Cristo até a Judéia onde travam contato com

outros seguidores de Cristo e testemunham os principais

acontecimentos da vida, paixão, morte e ressurreição de Cristo. Fica

evidente que o número dos apóstolos de Cristo foi catorze. No

entanto, a tradição registrou como doze, em primeiro lugar porque a

tradição é sábia e, em segundo lugar, porque a tradição só registra

personagens de grandes feitos o que não é o caso de João Teité e

Matias Cão.

Canovaccio

Prólogo

No prólogo, o anjo anunciador, São Gabriel, é o arauto que informa ao

público as características do auto a ser representado, mistura de dor e

riso como é próprio da experiência do homem. Um auto que celebra o

tempo em que Deus andava desarmado entre os homens, época em

que o mundo era outro. Anuncia os personagens presentes no auto e

narra suas características, em especial de João Teité e relembra sua

infausta participação no auto de natal, Sacra Folia.

CENA 1

As coisas para Matias Cão e João Teité não tem dado muito certo.

Depois de um período de relativa prosperidade da micro-empresa que

a administração de João Teité levou à bancarrota, os dois são

acossados por problemas econômicos, cobranças em cartório, ordens

de despejo e intimações da justiça. O pior, no entanto, ainda está por

vir: João Teité firmou um pacto com um estranho homem para se dar

bem na vida. Como entrada deu-lhe a sombra. Teité é um homem sem

sombra. Desconfiado, Matias quer ver os termos do contrato e não só

descobre que Teité, sem perceber vendeu a alma como sua

assinatura também está presente no documento. A coisa se complica

quando todos os credores, inclusive o demônio, chegam para a

cobrança. Os dois pedem ajuda ao anjo que, depois de alguma

relutância, os auxilia na fuga.

CENA 2

Cansados de tanto fugir e, ainda perseguidos (justiça, demônio e

banco nunca abandonam seus devedores), os dois se juntam a um

grupo de peregrinos e se fazem passar por eles. O líder desses

peregrinos não é outro se não, o próprio Cristo. Teité o reconhece,

pergunta da família, lastima a morte de José e relembra as cajadadas

que levou. Cristo recrimina a vida que ele tem levado junto com Matias

Cão. Teité tenta se explicar, inclusive o pacto que fez. (Tenta se

mostrar como vítima das circunstâncias sociais no que é mais

incisivamente repreendido por Cristo). Ao final Cristo os perdoa e os

deixa ficar entre eles. O anjo, de asa quebrada, resultado da briga com

os credores e o diabo para dar fuga aos dois, narra as andanças de

Cristo pelas terras do Brasil.

CENA 3

Cristo tem de voltar à Galiléia e deixa recomendações a seus fiéis.

João Teité insiste em seguir Jesus e, aparentemente, é por fé em sua

doutrina mas na verdade é por outras razões. Uma delas é por receio

dos credores. Outra é pelas promessas de fartura no reino de Jesus

que Teité acredita ser terreno. Outra idéia é que está nascendo, em

sua cabeça, a idéia para um excelente negócio.

Voltam à Judéia e Teité começa a reclamar da pobreza do reino de

Cristo, coisa que ele imaginava, pelo depoimento dos peregrinos, algo

riquíssimo. Depois, aquela terra é mais desértica que as caatingas de

onde vieram. Sem outras opções, seguem Jesus.

CENA 4

Testemunham os milagres de Jesus, a ressurreição de Lázaro, a cura

de leprosos, a visão dos cegos. Teité, sempre faminto, encontra Maria

(que ele respeitosamente chama de Dona Maria). Maria lembra-se

dele e de suas peripécias. Teité quer saber quando vai haver outro

casamento como o das Bodas de Canaã que ele ouviu falar que foi

fartura de bebida e comida. Maria lhe revela que o reino de Cristo é o

reino do espírito. Teité desanima e sai a procura de Matias Cão.

CENA 5

Encontra Matias que ouve uma pregação de Cristo. Insiste com Teité

que precisa falar com ele. Propõe a Matias voltar ao Brasil, na Judéia

as coisas também vão mal e filosofa que pobre é “questão de pobreza,

não de geografia”, “João Teité é João Teité em qualquer lugar do

mundo”. Matias não quer sair. Viu o diabo rondando por ali,

conversando com Judas (talvez pedindo informações sobre eles) e se

sente mais seguro com Cristo. Conta até que o diabo andou querendo

fazer Cristo passar para o seu lado. Mas Cristo foi macho e não quis.

Teité, decide ficar e lançar mão de seu último trunfo: um negócio da

China. Voltam para junto de Cristo e Matias percebe furioso que

enquanto conversava com João Teité, Cristo fez a multiplicação dos

pães e dos peixes e que já terminou a distribuição. Teité lhe diz que

sua idéia tem a ver com isso mesmo.

CENA 6

Na frente do templo, expõem a Cristo a idéia. Fazem a exposição

como se estivessem numa reunião de negócios, entre executivos.

Provam a facilidade dos lucros, o mercado aberto, o interesse da

mídia. Todo o negócio é em torno dos milagres de Cristo. Cristo ouve

pacientemente a arenga dos dois enquanto ao fundo os vendilhões

anunciam suas mercadorias. Súbito, Cristo se levanta e desce a

guasca nos vendilhões. Volta e pergunta e encara os dois. Os dois

assustados juntam seus papéis, sua pasta executivo e saem sem dizer

uma única palavra.

CENA 7

Teité tem delírios de fome e definitivamente decide voltar ao Brasil,

independentemente do risco. Vai aproveitar que o diabo está distraído,

vigiando Cristo, e vai dar no pé. Matias não quer ir, envolveu-se com

uma prima do apóstolo Tomé. Teité convence Mastias. Ouvem-se

então “hosanas” e vêem Cristo passar ovacionado por uma multidão

que o aclama como rei dos judeus. Teité fica embasbacado e acha

que finalmente o reino de Cristo chegou, o reino de riquezas e fartura.

Acena para Cristo e o segue, desistindo de voltar.

CENA 8

Teité se lamenta: as coisas se precipitaram. O que Teité pensava que

seria um golpe de estado, uma tomada de poder não deu certo. Agora

estão ali, com medo, preparando a ceia que Cristo falou que seria a

última. Matias ajuda e arrumar a santa ceia. Matias está furioso e se

recrimina por ter ouvido João Teité. Querem fugir mas não têm como.

Ouviu dizer que os romanos estão a procura de Jesus e seus

seguidores. Relatam os acontecimentos da ceia, inclusive a acusação

que Cristo fez a Judas. Cristo foi ao Horto da Oliveiras. Recebem a

notícia que Cristo foi preso. Resolvem fugir mas encontram Maria que

lhes pede que fiquem. Com relutância, ficam.

CENA 8

Junto de Maria acompanham toda a dolorosa via crucis. Ao final

acompanham o enterro de Cristo. João Teité tem um momento de

desespero. Agora ele está nas mãos do demo, enterrou-se a

esperança dos pobres que não têm esperança no mundo. Maria

esbraveja e passa-lhe uma descompostura.

CENA 9

Cristo ressuscita e aparece a várias pessoas. Teité não acredita.

Encerrado junto com os outros apóstolos no cenáculo, diz que só

acredita quando Tomé vier lhe dizer. Entra Tomé e narra o milagre.

Após ele Cristo entra e se anuncia ressuscitado. Após seu tempo,

Cristo ascende aos céus. Teité faz um emocionado discurso de

esperança e espera sua volta.

EPÍLOGO

Após a ascensão, os apóstolos resolvem fazer uma votação para

escolher um novo apóstolo no lugar de Judas que se enforcou. João

Teité se candidata mas os apóstolos resolvem cancelar a votação e

escolher Tiago. Decidem que Teité não vai pregar mas vai

testemunhar a misericórdia divina que salva até um traste como Teité.

Teité recupera sua sombra e volta ao Brasil. Matias fica enroscado

com a prima de Tomé.

FIM