Auto-referência, Discurso e Autoridade Jornalística

14
 Auto-referência, discurso e autoridade jornalística Fernanda Lima Lopes Resumo A categoria dos jornalistas possui uma determinada autoridade no espaço social. O poder de fala que detêm e o lugar que eles ocu- pam são fruto de uma série de negociações, muitas delas travadas por meio do discu rso. A busca da autoridade não se dá apen as através daquele discurso direcionado ao outro, mas também atra- vés do discurso auto-re ferencial. Neste trabalh o, são analisadas matérias sobre um projeto de lei propondo a criação de um Con- selho Fed era l de Jorn alis mo. Ness as matérias, o jorn alis ta se auto- referencia e, pela forma que ele organiza seu discurso, ele traça estratégias de negociação da autoridade jornalística. Veremos que o debate suscitado nas páginas dos jornais remete ao jornalista de tal forma que enfoca algumas características da prossão e pro- move associações semânticas com valores tais como “liberdade de impr ensa ”. Ao mesmo tempo em que usam o espaço da mí- dia para se auto-referenciarem, os jornalistas também promovem, Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, gradua da em Comunicação Social/Jo rnalis mo pela UFMG. Docente do curso de Comunicação Social do Centro Universitário do Leste de Minas (MG, Bra- sil). E-mail: [email protected]

description

Auto-referência, Discurso e Autoridade Jornalística

Transcript of Auto-referência, Discurso e Autoridade Jornalística

  • Auto-referncia, discurso eautoridade jornalstica

    Fernanda Lima Lopes

    ResumoA categoria dos jornalistas possui uma determinada autoridade noespao social. O poder de fala que detm e o lugar que eles ocu-pam so fruto de uma srie de negociaes, muitas delas travadaspor meio do discurso. A busca da autoridade no se d apenasatravs daquele discurso direcionado ao outro, mas tambm atra-vs do discurso auto-referencial. Neste trabalho, so analisadasmatrias sobre um projeto de lei propondo a criao de um Con-selho Federal de Jornalismo. Nessas matrias, o jornalista se auto-referencia e, pela forma que ele organiza seu discurso, ele traaestratgias de negociao da autoridade jornalstica. Veremos queo debate suscitado nas pginas dos jornais remete ao jornalista detal forma que enfoca algumas caractersticas da profisso e pro-move associaes semnticas com valores tais como liberdadede imprensa. Ao mesmo tempo em que usam o espao da m-dia para se auto-referenciarem, os jornalistas tambm promovem,

    Mestre em Comunicao pela Universidade Federal do Rio de Janeiro,graduada em Comunicao Social/Jornalismo pela UFMG. Docente do cursode Comunicao Social do Centro Universitrio do Leste de Minas (MG, Bra-sil). E-mail: [email protected]

  • 2 Fernanda Lima Lopes

    nessas matrias, uma aproximao com o poder institucional, en-tendida aqui como mais uma estratgia de negociao da sua au-toridade e do seu poder de fala.

    Palavras-chave: Auto-referenciao; Conselho Federal de Jor-nalismo; construo da autoridade.

    ApresentaoEm agosto de 2004, o Congresso brasileiro recebeu um projeto delei com a seguinte ementa: cria o Conselho Federal de Jornalismo-CFJ, institui o Cdigo de tica e altera a legislao sobre o exer-ccio da profisso de jornalista. O fato ocupou os espaos damdia at o ms de dezembro, quando o projeto foi finalmenterejeitado pela Cmara. Essa cobertura pode ser considerada es-pecial por abordar um assunto que diz respeito diretamente aosque se encontram no mago do processo de produo da notcia.Um projeto de lei de um Conselho para bancrios, ou socilogos,ou alguma outra categoria profissional, possivelmente no cha-maria a mesma ateno dos meios de comunicao. Mas por tersido uma proposta diretamente ligada ao exerccio do jornalismo,o assunto acabou ocupando espao e tempo nos meios de comu-nicao e ampliando para a sociedade um debate que poderia tersido travado apenas no interior da categoria.

    A auto-referncia nas matrias jornalsticas uma prtica re-lativamente comum. Dentro da definio auto-referenciais estoenquadradas matrias jornalsticas que cobrem assuntos que di-zem respeito categoria dos jornalistas, como por exemplo, aque-las em que reprteres so os personagens principais, como a his-tria de Tim Lopes (reprter da rede Globo assassinado por tra-ficantes), ou a de Jayson Blair (reprter demitido do New YorkTimes por ter inventado matrias) e ainda as de jornalistas refnsde terroristas ao redor do mundo. So tambm auto-referenciaisas matrias que se pautam por fatos provenientes do interior dasredaes, ou a partir de outras coberturas, como os textos surgi-

    www.bocc.ubi.pt

  • Auto-referncia, discurso e autoridade jornalstica 3

    dos na imprensa do Brasil, em 2004, a partir da denncia de quea revista Veja teria mentido, dez anos antes, numa srie de repor-tagens acusando de corrupo o deputado Ibsen Pinheiro.

    Ao se auto-referenciarem, os jornalistas reforam valores, cons-troem sua memria, apresentam-se sociedade como detentoresde um poder de fala, expem caractersticas de seu trabalho queeles acreditam ser importantes, relembram fatos da memria co-letiva envolvendo a categoria, colocam-se em oposio a outrosgrupos... Esse , portanto, lugar de lutas pelo sentido da profisso,ou seja, local estratgico em que os atores buscam um consensoprovisrio sobre suas competncias tpicas e sua autoridade.

    Nos textos sobre o CFJ, os jornalistas se auto-referenciam e,por ocuparem um lugar privilegiado na ordem do discurso, aca-bam por produzir e reproduzir aspectos que vo constituir suaidentidade e reforar sua autoridade. O que se pretende, pela an-lise dessas matrias entender o que est no discurso (e para almdele) quando esse grupo produz enunciados sobre um fato relativoao prprio universo.

    Foram recolhidas matrias jornalsticas1 sobre o tema, que sa-ram no jornal O Globo, no perodo de agosto de 2004 a dezem-bro de 2004. A poca coincide com o perodo de apresentaodo projeto de lei no Congresso, sua tramitao e a deciso final,validada pela votao na Cmara, em 15 de dezembro de 2004.Ao longo desses cinco meses, O Globo publicou 35 matrias, in-cluindo textos opinativos e informativos. A maioria delas 27matrias concentra-se no ms de agosto, aparecendo em 20 edi-es do ms, o que significa que, algumas vezes, o jornal trouxemais de um texto sobre o assunto no mesmo dia. O tema ocupoua capa em cinco edies: trs delas em agosto, uma em setembroe uma vez em dezembro. Curiosamente, em outubro e novembrono houve sequer uma nota. A rarefao das matrias ao longo dotempo j era um fenmeno esperado, j que a tendncia do jorna-

    1 O termo matrias est sendo designado para se referir a textos opinati-vos e/ou informativos.

    www.bocc.ubi.pt

  • 4 Fernanda Lima Lopes

    lismo tratar com nfase a novidade e ir, aos poucos, diminuindoa cobertura sobre ela. Em dezembro, quando a Cmara de De-putados vota o projeto, o assunto retorna s pginas da imprensa,mas tambm sem muito alarde. A maior concentrao dos discur-sos acontece no momento posterior ao que o projeto do Conselhoentra na pauta do Congresso. O primeiro texto, publicado em 6de agosto, uma notcia, essencialmente informativa, com poucasfontes, isenta de entrevistas e que, basicamente, apenas apresentao fato. Os textos que se seguem comeam a suscitar um debate,revelando a formao de dois plos o dos que so contra o Con-selho e dos que se mostram a favor.

    Do total de textos, 28,57% so opinativos, dentre os quais trsso editoriais. O jornal O Globo, nesses cinco meses, s deu es-pao para dois textos declaradamente a favor do Conselho Federalde Jornalismo. Os editoriais so todos radicalmente contra a cria-o da autarquia. Os outros artigos tambm tendem rejeio daproposta, embora alguns autores at defendam que o jornalismoprecisa ser fiscalizado. Contudo, eles no reconhecem o Conselhonos moldes em que foi proposto como uma boa alternativa pararealizar essa fiscalizao.

    Em relao s matrias informativas, difcil classific-lascomo positivas ou negativas, contra ou a favor, sem imprimir juzode valor.

    A apresentao quantitativa acima fornece uma viso geral docorpus selecionado, contudo, a inteno deste trabalho fazeruma anlise mais qualitativa das matrias, entendendo-as comodiscursos que concentram importantes representaes de um grupode atores sociais.

    www.bocc.ubi.pt

  • Auto-referncia, discurso e autoridade jornalstica 5

    Tabela 1: Distribuio das matrias por ms e por categoria

    MSOPINATIVAS

    INFORMATIVAS TOTALA favor doCFJ

    Contra oCFJ

    Agosto 2 8 17 27Setembro 0 0 6 6Outubro 0 0 0 0Novembro 0 0 0 0Dezembro 0 0 2 2TOTAL 10 25 35

    Negociando a autoridade do discurso no espaosocialTendo como objeto o discurso auto-referencial em matrias jorna-lsticas, este trabalho levanta a hiptese de que o jornalista, pelodiscurso, constri sua autoridade e seu poder de fala perante asociedade. No caso da auto-referenciao, a estratgia adotada a de expor certos aspectos de sua identidade e reforar algunsvalores, trabalhando assim a difuso de uma certa imagem. Umdos principais valores mencionados nas matrias tem a ver coma liberdade de imprensa. Conforme vimos, a maioria dos textosadota uma posio contrria ao Conselho Federal de Jornalismo eum dos principais argumentos para a rejeio da proposta se apiano fato de que o CFJ pode ameaar a liberdade de expresso e olivre trabalho do jornalista.

    Antes de aprofundar nessa discusso, necessrio apresen-tar as linhas tericas que guiaram a presente anlise. O primeiroautor que vem dar suporte ao trabalho o lingista russo MikailBakhtin2 . Em primeiro lugar, Bakhtin importante porque nos

    2 Embora, a princpio, esse autor tenha trabalhado com a anlise literria

    www.bocc.ubi.pt

  • 6 Fernanda Lima Lopes

    fazer entender a linguagem como efeito das estruturas sociais, ouseja, a lngua no um sistema independente das pessoas que autilizam. Ao contrrio, ela precisa das pessoas; sua formao etransformao so resultado dos usos e organizaes que a soci-edade imprime a ela. Assim, a lngua, de certa forma, reproduzas estruturas sociais, os dominantes e dominados, mas tambmabriga as lutas sociais e os embates ideolgicos. Ao enfatizar anatureza social da lngua, Bakhtin est quebrando com a tradioestruturalista dos estudos lingsticos, que via a lngua como umsistema de regras prprias.

    Seguindo a abordagem bakhtiniana, temos a compreenso deque os significados no so eternos e nem intrnsecos, isto , ossentidos que os signos tm vo sendo formados nas interaes so-ciais. Nada esttico ou perene. O que vlido e aceito em certocontexto pode ser transformado dependendo de reorganizaes noespao social ou de mudanas nas condies em que as interaesacontecem. O signo vivo.

    Outra caracterstica do signo apontada por Bakhtin a exis-tncia de uma dialtica interna. (...) todo signo ideolgicovivo tem, como Jano, duas faces. Toda crtica viva pode tornar-seelogio, toda verdade viva no pode deixar de parecer para algunsa maior das mentiras. (Bakhtin, 2004:47)

    Outro aspecto importante do trabalho de Bakhtin diz respeito situao de dilogo, lugar de busca pelo verdadeiro (e no pelaverdade). No dialogismo presente nos textos ou na interaosocial de discursos - as partes tm conscincia de que a verdade inalcanvel, j que as mudanas so infindveis. O dilogo exigeque no se procure essncia, mas sim consenso.

    de Dostoivski (2005), ou pensado as relaes entre marxismo e filosofia dalinguagem (2004), no podemos considerar sua obra distante dos estudos emcomunicao. Alis, como afirmaMarina Yagello, que assina o prefcio da 11a

    edio do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, ele (Bakhtin) aborda,ao mesmo tempo, praticamente todos os domnios das cincias humanas, porexemplo, a psicologia cognitiva, a etnologia, a pedagogia das lnguas, a comu-nicao, a estilstica (...). (Bakhtin, 2004: 13).

    www.bocc.ubi.pt

  • Auto-referncia, discurso e autoridade jornalstica 7

    A busca pela verdade atravs do dilogo tambm valorizadapor Foucault3. Ele diz: No intercmbio de perguntas, no trabalhode elucidao recproca, os direitos de cada pessoa so de algummodo imanentes discusso. Derivam da situao de dilogo.(Foucault apud Rabinow, 1999: 17). A prtica dialgica est con-ceitualmente oposta noo de polmica, qual Foucault re-jeita, por significar uma relao com um interlocutor hermtico,no aberto a negociaes, e que s quer convencer a outra parte deuma verdade j dada. Por esse motivo, a polmica, no entenderde Foucault, no uma boa forma de travar conhecimento. Elaseria apenas o embate entre dois pontos de vista arraigados e sempretenso de avano.

    O discurso jornalstico, em geral, no evidencia uma prticadialgica. Ao contrrio, quase sempre ele um enunciado verti-cal, uma voz nica que se autodenomina capaz de narrar os fatosdo mundo. Contudo, a partir do momento que o texto se dirige aum interlocutor tentando abrir espao para uma reao e permi-tindo a continuao de um debate, ele pode conter traos da pos-sibilidade dialgica. Nesse sentido, o projeto de lei do ConselhoFederal de Jornalismo suscitou na imprensa um debate, com di-reito a algum grau de dilogo entre plos opostos, principalmenteatravs de matrias opinativas. Embora das dez matrias de opi-nio publicadas no perodo de agosto a dezembro de 2004, apenasduas tenham sido explicitamente a favor do Conselho, foi possvelperceber nos textos indcios de dilogo, com o desenvolvimentode argumentaes tecidas em relao ao plo antagnico.

    Mesmo as matrias classificadas como informativas traziam odebate das posies seja pela fala de um entrevistado, seja peladescrio da repercusso do assunto no meio poltico, seja pelonoticiamento das idas em vindas do projeto nas instncias legisla-tivas.

    3 Foucault em entrevista a Paul Rabinow, rejeita a polmica como forma detravar conhecimento, j que essa relao supe um interlocutor hermtico, queno est aberto a negociaes, mas que s quer convencer a outra parte de umaverdade j dada.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8 Fernanda Lima Lopes

    Apesar de terem sido encontrados traos dialgicos no dis-curso dessas matrias, o fenmeno que se revelou ao longo doscinco meses de cobertura jornalstica nas pginas de O Globo foimais um carter de polmica (no sentido dado por Foucault) queuma busca pelo verdadeiro.

    Quase a totalidade das matrias de O Globo ataca o projetodo Conselho. Os que so contra comparam a criao da autarquiacom a volta da censura do perodo militar. Os textos fazem alusoa caractersticas antidemocrticas4 e usam, freqentemente, ter-mos como autoritrio e autoritarismo. Vrios deles remetemao tempo da ditadura, trazendo memria as lutas e dificuldadesdos jornalistas de outrora. O fim gradual da represso representoupara a categoria a recuperao da liberdade de imprensa, um va-lor pelo qual eles tanto lutaram. Essa auto-referncia, juntamentecom uma ancoragem num passado marcante para a sociedade bra-sileira, tem o intuito de provocar associaes mentais entre o mo-mento histrico e a discusso do presente.

    Tambm do outro lado do debate ideolgico sobre o ConselhoFederal de Jornalismo, os que se posicionam a favor da criaoda autarquia no se dizem favorveis nem censura nem ao auto-ritarismo. Embora em plos opostos, os dois lados que debatemo assunto defendem um certo papel do jornalista, que inclui seudever tico de informar, e tambm manifestam concordncia emrelao ao direito de informao da sociedade. Ambos partilhamde uma mesma noo de liberdade de imprensa. O principalponto de discrdia est ancorado na defesa da criao ou no deum rgo ligado ao governo para orientar, disciplinar e fiscalizaro exerccio do jornalismo.

    Se por um lado os jornalistas se auto-referenciam a partir da

    4 Dois exemplos: Matria informativa, publicada no caderno O pas, napgina 12, no dia 15 de setembro tem como ttulo Lula, na ANJ, diz quecensura no voltar. O texto assinado pela reprter Soraya Aggege, de SoPaulo. / Matria opinativa, publicada na pgina 7, de Opinio, no dia 24 deagosto. Seu autor Luiz Garcia faz uma crtica ao presidente Lula que manifestaapoio ao Conselho e que fez uma vista ao Gabo, pas cujo governante est h37 anos no poder e que tem pouca intimidade com a democracia

    www.bocc.ubi.pt

  • Auto-referncia, discurso e autoridade jornalstica 9

    memria de um passado de lutas contra o poder, por outro lado,as matrias jornalsticas freqentemente se distanciam da auto-referncia e se pautam por um tratamento oficialesco em rela-o ao tema. A priori, o principal grupo interessado no debateseriam os prprios jornalistas, mas o que se percebe que grandeparte das fontes envolvidas na discusso nem sempre possui umaligao direta com o debate da categoria. O enfoque das matrias,dos ttulos e fotografias dado principalmente em relaes a fon-tes governamentais, tais como o presidente da repblica Lula (dias18/08/04, 15/09/04, 16/06/04), o vice-presidente Jos de Alencar(22/08/04), o presidente do STF Nelson Jobim (17/08/04), o mi-nistro do trabalho Ricardo Berzoini (07/08/04, 21/08/04), o chefeda Casa Civil Jos Dirceu (10/09/04), o ministro da Justia Mr-cio Thomas Bastos (capa em 10/08/04) e outros integrantes dopoder pblico. Em 11 de agosto, numa matria que ocupou toda apgina 8 do caderno O pas, um box traz um texto cuja principalfonte o presidente do Superior Tribunal de Justia, ministro Ed-son Vidigal. O entrevistado discorre sobre liberdade de imprensa,sobre o direito que a sociedade tm informao, mas ao final,surpreendentemente, o presidente do STJ afirma: No li o pro-jeto, mas o que est escrito na Constituio o que vale, o quese impe. Isso nos faz pensar: se ele sequer leu o projeto, porquedeveria estar opinando sobre ele?

    A participao de fontes tais como associaes ou entidadesjornalsticas visivelmente menor. Quase nunca esto em ttulosou fotos. A organizao que mais aparece a Fenaj (pelo fatode ter sido ela a elaborar a proposta e entreg-la ao governo) e aAssociao Nacional de Jornais ANJ (por tomar frente na posi-o contrria), mas tambm aprecem, em menor intensidade, Re-prteres sem Fronteiras, Associao Brasileira de Emissoras deRdio e Televiso - Abert, Associao Brasileira de Imprensa ABI, Associao Brasileira de Jornalismo Investigativo - Abraji.Os jornalistas tiveram uma forte tendncia em valorizar gruposdetentores do poder estabelecido, em detrimento de posicionar a

    www.bocc.ubi.pt

  • 10 Fernanda Lima Lopes

    discusso do Conselho sob o foco de seus principais afetados (elesmesmos).

    Entendemos, contudo, que esse comportamento tambm umaestratgia de reforar a autoridade jornalstica. O discurso jorna-lstico no s reflete as hierarquias presentes na rede social comoserve tambm para reproduzir os estatutos dominantes. s vezes,h um ou outro texto capaz de ser instrumento de desestabilizao,de questionamento e de inovao em relao s velhas estruturas,mas a grande crtica de que, em geral, o jornal mantm uma vi-so tradicional e de repetio de valores pretensamente hegem-nicos. Ainda que as matrias sobre o CFJ contivessem crticas poltica do governo, tais crticas no significavam uma inovaona abordagem discursiva, ou seja, no quebravam com o signifi-cado dominante do signo ideolgico.

    Conforme Bakhtin aponta em Marxismo e Filosofia da Lin-guagem, as formas hierarquizadas da sociedade influenciam asformas de enunciao e os principais modos de comportamento.Assim, a manifestao do pensamento, a formulao de concei-tos e pr-conceitos, os julgamentos so organizados dentro de umgrande repertrio: o mesmo sistema lingstico. Isso vlidopara o jornalismo, mas tambm vlido para grupos que se de-nominam de resistncia, ou para aqueles que manifestam umponto de vista antagnico ao majoritariamente proposto. Todostrabalham com os mesmos signos, embora tentem dar aos seusdiscursos uma nova significao.

    Um argumento contrrio pode sugerir que nem sempre as enun-ciaes so influenciadas pelas formas hierrquicas da sociedade.Vrios trabalhos tericos na comunicao procuram identificarmomentos e lugares em que os discursos so desestabilizados.Citam-se formas de luta e resistncia que pretendem fazer umaprofunda quebra capaz de alterar o sentido e a utilizao de umsigno.

    Ainda assim, o que se defende, que, mesmo aqueles que sepropem mais radicais e mais distantes em relao ao repertriodominante, esto constantemente, por meio do comportamento

    www.bocc.ubi.pt

  • Auto-referncia, discurso e autoridade jornalstica 11

    ou do discurso, trabalhando na mesma freqncia que os primei-ros. Alis, eles precisam disso, afinal, no h como realizar umarevoluo capaz de transformar toda estrutura ideolgica e todosentido simblico que dela provm.

    (...) classes sociais diferentes servem-se de umas e mesma lngua. Conseqentemente, em todo signoideolgico confrontam-se ndices de valor contradi-trios. (...) Na verdade, esse entrecruzamento dosndices de valor que torna o signo vivo e mvel, capazde evoluir (Bakhtin, 2004:46)

    melhor acreditar que a produo de sentido se compara aum campo de batalha (Hall, Bakhtin). Os conceitos, as noes,as concepes acerca do que o verdadeiro so fruto de uma ne-gociao. Os enunciados podem mudar, e efetivamente mudamao longo da histria, mas essas quebras no surgem de uma von-tade automtica de um grupo que quer romper com o hegemnico.Elas so fruto de um processo e se do a partir de reorganizaese novas apropriaes de um velho signo no espao social. 5

    Nomundo atual, falar de liberdade automaticamente fator deempatia com os interlocutores, mas houve um tempo na histriaque o clamor por liberdade foi visto pelos dominantes como umaprofunda ameaa ao sistema estabelecido. J vai longe a era dosmonarcas, e os direitos de votar ou de se expressar livremente soquase que mundialmente propagados. Sabemos que ainda existemlugares e momentos em que esses direitos no so respeitados,mas o discurso ocidental hegemnico a de defesa desses valores.

    Para os jornalistas, a liberdade de imprensa um baluarte emsua atividade. E esse valor encontra amplo apoio na sociedade,

    5 Um exemplo disso apresentado por Stuart Hall (ano) em relao tem-tica do racismo. Ele sabe que as categorias de alto e baixo, to enraizadas emnossa sociedade, vo continuar existindo, mas entende que possvel dinami-zar essa binaridade atravs da valorizao das diferenas.

    www.bocc.ubi.pt

  • 12 Fernanda Lima Lopes

    que comunga das mesmas noes a respeito dos direitos huma-nos. Quando os jornalistas se auto-referenciam atrelando sua ima-gem como defensores da liberdade de imprensa, esto galgandouma certa autoridade em relao a esse valor. Eles esto se auto-denominando portadores dessa bandeira. Isso reflete uma estrat-gia de defesa. Por trs do muro da liberdade de imprensa, qual-quer um que ataque a categoria dos jornalistas estaria igualmenteatacando um patrimnio maior, pertencente a toda a sociedade.

    Os discursos so perigosos, oferecem riscos (Foucault, 2003).Podem esconder vontades de verdade, podem estar sob o efeitode coeres, podem reforar ou excluir certos valores. Foucaultaponta a dificuldade em apagar o temor que as pessoas tm emrelao aos perigos dos discursos, mas prope que uma anlisedo mesmo pode ser feita a partir de uma suspenso da soberaniado significante. (idem). Suspender, aqui, no significa derrubar,mas pr em questo aquilo que freqentemente dito e natural-mente aceito.

    Em nossa sociedade, no h espao para se dizer tudo. Con-forme Foucault, os discursos sofrem coeres; existem procedi-mentos capazes de classific-los como mais importantes, comoo dos mdicos, ou insignificantes, como o dos loucos, por exem-plo. Outras vezes, os discursos ficam restritos a alguns locais deapario, ou ainda, so cerceados no mbito dos sujeitos que opronunciam:

    (...) trata-se de determinar as condies de seufuncionamento, de impor aos indivduos que os pro-nunciam certo nmero de regras e assim de no per-mitir que todo mundo tenha acesso a eles. Rarefao,desta vez, dos sujeitos que falam; ningum entrar naordem do discurso se no satisfizer a certas exign-cias ou se no for, de incio, qualificado para faz-lo(Foucault, 1993:37).

    A nfase dada pelos jornais s matrias sobre o Conselho Fe-deral de Jornalismo deve ser entendida como um reflexo do poder

    www.bocc.ubi.pt

  • Auto-referncia, discurso e autoridade jornalstica 13

    que o jornalista tem de ocupar aquele lugar de fala. Existe umconjunto de fatores que permite que ele tenha essa autoridade di-ante da sociedade. Aquilo que a sociedade entende como funodo jornalismo no mundo contemporneo resultado de um pro-cesso de construo de identidade que ainda no terminou; umprocesso que envolve imerso numa estrutura de poder, relaescom outros grupos, negociao de autoridade, aprimoramento decapacidades tcnicas, concepo de uma tica prpria, enfim, es-tabelecimento de fronteiras. A categoria dos jornalistas consti-tui um universo relativamente autnomo de relaes sociais (Tra-quina, 2005) e se apresenta como um grupo detentor de saberes econhecimentos especializados, caractersticas que, para Bourdieu,so suficientes para constituir um campo.

    Autonomia do campo, no entanto, no significa quebra do sig-nificante dominante. Como vimos at agora, essas matrias refle-tem mais uma submisso do discurso jornalstico s hierarquiassociais que uma inovao, transgresso ou resistncia. Ainda quea posio majoritria tenha sido de rejeio criao do ConselhoFederal de Jornalismo, a construo do pode de fala do jornalistaest ancorada em aproximar-se cada vez mais com o discurso he-gemnico. No h uma vontade de transformao ideolgica, mash um esforo para reforar a importncia social e a autoridade dojornalista como portador inquestionvel da verdade.

    RefernciasBAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. So

    Paulo: Hucitec, 2004

    BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoievski. Riode Janeiro: Forense Universitria, 2005. Trad. Paulo Be-zerra.

    DELEUZE E FOUCAULT. os intelectuais e o poder In: FOU-CAULT, MICHEL. Microfsica do poder. Rio de Janeiro:Graal, 2000 (1972). P. 69-78.

    www.bocc.ubi.pt

  • 14 Fernanda Lima Lopes

    FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. So Paulo: Loyola,2005 (1970).

    FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 1997.30.ed. (1975).

    HALL, Stuart. The spetacle of the other. In:

    RABINOW, Paul. Poltica da verdade: Paul Rabinow entrevistaMichel Foucault. In: Antropologia da razo: ensaios dePaul Rabinow. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1999. p.17-25

    TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo. Vol II. A tribojornalstica uma comunidade interpretativa transnacional.Florianpolis: Insular, 2005.

    www.bocc.ubi.pt