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EVENTO
IX ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, RJ, 2001
TÍTULO DO TRABALHO
GLOBALIZAÇÃO E METRÓPOLE
A Relação entre as Escalas Global e Local: O Rio de Janeiro (Este artigo consta do 1º volume dos anais do supracitado evento, págs. 73-84)
AUTOR
Glauco Bienenstein Arquiteto, Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ, MSc. em Geografia pelo
IGEO/UFRJ e Professor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense.
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GLOBALIZAÇÃO E METRÓPOLE A Relação entre as Escalas Global e Local: O Rio de Janeiro
Glauco Bienenstein*
1. Introdução
No presente trabalho, parte-se da orientação oferecida por HARVEY (1996: 48)
de que é necessário investigar o papel exercido pelo processo urbano no atual redesenho da
“distribuição geográfica das atividades humanas e da dinâmica político-econômica do
desenvolvimento geográfico desigual.”1 Esta proposta se inscreve na compreensão da
importância e da centralidade assumidos por espaços e lugares de diferentes escalas
geográficas nos processos sociais e econômicos, que, por sua vez, podem não somente
redefinir a importância e o papel de escalas historicamente construídas, como criar outras
(Cf. SWYNGEDOUW, 1997).2
Assim sendo, argumenta-se que o padrão contemporâneo de gestão e realização da
riqueza, orientado por uma lógica expansiva caracteristicamente seletiva (somente alguns
setores da economia) e excludente (apenas alguns segmentos sociais nela envolvidos), tem
determinado um padrão de gestão, investimento e produção do espaço urbano, também
seletivo (somente algumas parcelas da cidade) e excludente (apenas algumas poucas
classes são beneficiadas), conformado pela superimposição do critério de viabilidade
econômica capitalista vigente neste final de milênio.
O referido padrão realiza-se através de um regime de acumulação específico - de
caráter financeiro - cuja dinâmica econômica apoia-se, predominantemente, na apropriação
de riqueza por meio de atividades especulativas “baseadas em posições nos mercados
imobiliário, financeiro e nas transações comerciais”,3 no contexto de uma paradoxal
articulação entre as circulações financeira e industrial. Desse modo, destaca-se a
emergência da financeirização,4 enquanto padrão sistêmico de riqueza do capitalismo
contemporâneo, globalmente dominante.
* Arquiteto, Doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ, MSc. em Geografia pelo IGEO/UFRJ e Professor da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. 1 HARVEY, D. “Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio”. In: Espaço & Debate. São Paulo: Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos, nº 36, 1996, pp. 48-64. 2 SWYNGEDOUW, E. “Neither Global nor Local “Glocalization” and the Politics of Scale”. In: Spaces of Globalization: reasserting the power of the local. Edited by Kevin R. Cox. New York: The Guilford Press, 1997, p. 139 e 142. 3 “Novo capitalismo intensifica velhas formas de exploração”. Folha de São Paulo, caderno especial sobre globalização, entrevista com François Chesnais, 02.11.97, p. 4. 4 Essa noção é aqui compreendida na perspectiva de BRAGA, 1997: 195. Segundo esse autor, “A dominância financeira – a financeirização – [constitui-se na] expressão geral das formas contemporâneas de definir, gerir e realizar riqueza no capitalismo”. BRAGA, José C. “A Financeirização da Riqueza”. In: Economia e Sociedade. Campinas, SP: Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, 1993.
3
Este quadro tem repercutido nas diversas escalas sócio-geográficas, promovendo
diversas transformações e constrangimentos nas formas de administrar e produzir as
aglomerações humanas, especialmente aquelas localizadas nos países do capitalismo
periférico.
As novas formas de gestão - empresarial - de cidades, a crescente privatização da
vida cotidiana - interiorizada em complexos objetos urbano-arquitetônicos (Cf. SANTOS
1997: 170)5 - e o aumento da miséria, da exclusão e da violência urbana em virtude das
significativas alterações do mundo do trabalho, constituem algumas das formas manifestas
do mencionado padrão nas grandes cidades, notadamente naquelas que fazem parte do
circuito mundial de valorização financeira e patrimonial, nestes tempos conformados por
“um novo ciclo de “compressão do tempo-espaço” na organização do capitalismo”.6
Sugere-se que este conjunto de expressões pode ser lido como produto, na cidade,
das novas formas de gestão e realização da riqueza capitalista, distintas daquelas que
caracterizaram o explosivo crescimento da economia mundial do pós-guerra, estimulador
de considerável expansão da urbanização (Cf. HOBSBAWM, 1995: 257)7, no contexto do
que é denominado de “fordismo”. Nesse sentido, é aqui assumido que as transformações
em curso na economia, iniciadas nas duas últimas décadas, já possuem uma dimensão
social e física visível em nossas cidades, intrinsecamente articulada ao regime de
acumulação e/ou desenvolvimento em curso na escala mundial.
Dessa maneira, tendo-se em mente que a atual dinâmica econômica globalmente
dominante tem, através de um paradigma totalizador e homogeneizador, submetido aos
mesmos imperativos os diversos planos da vida e da sociedade, aí incluídas a urbanização
e as cidades do mundo contemporâneo, indaga-se:
(1º) Como os mencionados imperativos têm repercutido em espaços
metropolitanos brasileiros, aqui compreendidos como loci atraentes de
valorização do capitalismo periférico?
(2º) Quais são os instrumentos, dispositivos e novas instituições relacionadas à
gestão urbana que o setor público vem lançando mão para o enfrentamento e/ou
adequação às referidas repercussões?
(3º) Do ponto da vista da produção, quais são os novos produtos e/ou objetos os
quais, através da reorganização de funções e espaços que abrigam novas formas
5 SANTOS, M. A Natureza do Espaço Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 2ª ed. 1997. 6 HARVEY, D. A Condição Pós-moderna, São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 7. 7 HOBSBAWM, E. A Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
4
de gestão e realização da riqueza, têm reconfigurado o espaço e a vida cotidiana
das supracitadas metrópoles?
A indicação de algumas das possíveis respostas a tais indagações materializa o
principal desafio deste trabalho que tem a cidade do Rio de Janeiro como campo empírico. 2. Globalização e Capitalismo Contemporâneo: Algumas Notas
Do ponto de vista da economia política das relações internacionais, o atual
processo de reestruturação econômica na escala mundial, pode ser compreendido através
do “esforço estratégico bem-sucedido de restauração da hegemonia [capitalista] mundial
dos EUA, posta em xeque durante os anos 70”,8 cujos reflexos têm repercutido,
sobremaneira, na escala planetária, sobre diversas esferas da vida, da economia e da
política, conformando/identificando-se com o que tem sido denominado de globalização.
O termo globalização encontra-se consagrado. Difundido pela mídia, vulgarizou-
se, ganhando “numerosos adeptos no universo político-ideológico”.9 Indicando um
processo considerado inexorável, ao qual todos devem se submeter, o mencionado termo
tem servido para qualificar e/ou justificar uma diversidade de fatos e processos
relacionados às políticas macro-econômicas que vêm sendo adotadas no bojo de ajustes
estruturais, especialmente aqueles levados a cabo em países ditos emergentes.
No presente trabalho, parte-se do entendimento de que o capitalismo vem
experimentando, especialmente a partir da década de 1980, “um modo de funcionamento
específico - e de diversos pontos de vista importantes e novos”10 que caracterizam uma fase
peculiar de seu desenvolvimento.
Os novos conteúdos da acumulação capitalista na escala planetária têm apontado
para uma conformação da economia mundial que envolve dimensões “tecnológicas,
organizacionais, políticas, comerciais e financeiras que se relacionam de maneira
dinâmica gerando uma reorganização espacial da atividade econômica e uma claríssima
re-hierarquização de seus centros decisórios”.11 Ou seja, é a partir de um significativo re-
arranjo sócio-geopolítico da dinâmica econômica - predominantemente financeira -, que se 8 TAVARES, Maria da Conceição. “Poder e Dinheiro”. Folha de São Paulo, caderno Dinheiro, 07.12.97, p. 2-5. 9 COUTINHO, Luciano. “Nota sobre a natureza da globalização”. In: Economia e Sociedade. Campinas, SP: Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, junho, 1995, p. 21. 10 CHESNAIS, F. “A Emergência de um Regime de Acumulação Mundial Predominantemente Financeiro”. In: Praga, estudos marxistas 3. São Paulo: HUCITEC, 1997b, p. 19. 11 “Isto aparece de maneira clara na forma codividida em que Estados Unidos, Alemanha e Japão comandam a economia mundial, como também na maneira em que Estados Unidos, França e Inglaterra ainda mantêm em suas mãos a batuta das grandes decisões geopolíticas e militares, depois do desaparecimento da União Soviética. Mas tudo isto reaparece da mesma forma ainda que com outras cores quando olhamos para as novas relações hierárquicas que se estabelecem entre os espaços nacionais a partir da realocação global dos capitais que vai seguindo a trilha aberta pela desregulação dos mercados, sobretudo os de natureza financeira.” [grifo
5
pode afirmar a emergência de “um novo modo de funcionamento sistêmico do capitalismo
mundial ou, em outros termos, de uma nova modalidade de regime de acumulação”
(CHESNAIS, 1997a).12
Dessa maneira, refletir sobre as transformações em curso na dinâmica econômica
capitalista, implica considerar três questões estratégicas, as quais BRAGA (1993: 25)13
resume da seguinte forma:
1ª) dominância financeira ou financeirização do capitalismo, com origem na
década de 1960, ligada à “instabilidade e [às] transformações contemporâneas do
capitalismo norte-americano”, principalmente a partir do denominado Credit
Crunch;14
2ª) formatação das corporações capitalistas contemporâneas que, longe de
manifestar o tradicional recorte setor produtivo versus setor financeiro,
apresentam-se enquanto macroestruturas financeiro-industriais que têm
experimentado velozes transformações;15
3ª) emergência, nos planos nacional e internacional, de uma paradoxal dinâmica
econômica, correspondente a “mudanças nas formas de movimento do sistema
[onde] as crises e reestruturações obedecem a processos distintos em relação a
outros momentos históricos”.16
Nesse contexto, a fugacidade das formas de valorização do capital é viabilizada
pela articulação entre diversas inovações financeiras e técnico-produtivas, imprimindo alta
velocidade à realização dos investimentos. Tais inovações permitem uma nova cadência à
dinâmica econômica que, a partir de novos arranjos entre liquidez e imobilização de
capital, engendra o atual padrão de desenvolvimento capitalista dos países centrais. Um
processo que articula crescimento com inflação controlada, num ambiente de turbulência e
fragilidade financeira que, aos poucos, vai tomando conta da economia mundial.17
Neste quadro, que aponta para crescente instabilidade econômica e globalização
financeira, materializa-se um padrão multifuncional de organização da economia que
articula diferentes esferas de valorização do capital. A disponibilidade e a conseqüente nosso] (FIORI, J. Luís. “A Globalização e a Novíssima Dependência”. In: Em Busca do Dissenso Perdido: ensaios críticos sobre a festejada crise do Estado. Rio de Janeiro: Insight, 1995, p. 220. 12 “Novo capitalismo intensifica velhas formas de exploração”. Folha de São Paulo, caderno especial sobre globalização, entrevista com François Chesnais, 02.11.97(a), p. 4. 13 BRAGA, José Carlos de Souza. “A Financeirização da Riqueza”. In: Economia e Sociedade. Campinas, SP: Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, agosto, 1993. 14 Resumidamente, o Credit Crunch pode ser entendido como o momento (1966) em que a economia norte-americana experimenta uma situação próxima de um colapso financeiro, “da magnitude daquele que se verificou na virada para a década de 30”.” (BRAGA, id. ibid., 1993, p. 33) 15 BRAGA, id. ibid., 1993, p. 26. 16 BRAGA, id. ibid., 1993, p. 27.
6
incorporação de inovações tecnológicas e métodos organizacionais expressivos da
concorrência intercapitalista, levaram à queda de barreiras entre setores, empresas,
mercados e nações, promovendo um amplo leque de tipos de fusão entre formas de riqueza
e engendrando complexas e intrincadas corporações financeiro-industriais na escala
global.18
Tais corporações assim como os novos movimentos gerais de valorização do
capital que emergem dessa configuração na escala mundial, dão substância ao que
BRAGA (1993) denomina de “paradoxo da financeirização” que se processa “/.../ no
âmbito de uma macro-estrutura financeira internacionalizada - formada por corporações
privadas e bancos centrais - [e], se expressa na valorização dos diversos ativos financeiros
numa velocidade superior à expansão mundial da produção e do comércio de bens e
serviços.” 19
Nesse sentido, ao nível econômico mundial, tornam-se ainda mais complexas as
formas de articulação entre moeda, crédito e patrimônio, conformando um padrão de
gestão e realização da riqueza capitalista razoavelmente diferente do anterior, cujas
características gerais são a seguir sintetizadas: (I) instabilidade do sistema monetário
internacional, onde o padrão dólar apesar de problemático, não encontra outro que o
substitua; (II) volatilidade das taxas de juros; (III) incerta paridade entre moedas
impedindo uma estabilidade monetária razoavelmente duradoura; (IV) estruturação da
defesa da riqueza e do patrimônio através de macro-estruturas financeiro-industriais; (V)
ciclos tecnológicos inovadores, curtos e rápidos, com base nos segmentos eletro-eletrônico
e metal-mecânico; (VI) intensificação da capitalização e da realização da riqueza fictícia
através da articulação mercado - Estado.20
Tais aspectos indicam a dimensão da reestruturação capitalista deste final de
século, que tem como principais elementos a inflação, o desemprego, a estagnação relativa
e a reorganização econômica plena de incertezas. Ou seja, através de uma paradoxal
articulação entre as circulações financeira e industrial, observa-se uma dinâmica
econômica cujo movimento especulativo, convivendo com a inserção de inovações
técnicas, combina crescimento econômico com desemprego estrutural e determina
17 BRAGA, id. ibid., 1993, p. 29-30. 18 BRAGA, id. ibid., 1993, p. 35-39; DEDECCA, Claudio Salvadori. “Racionalização Econômica e Hetereogeneidade nas Relações e nos Mercados de Trabalho no Capitalismo Avançado”. In: Crise e Trabalho no Brasil: modernidade ou volta ao passado? Organizadores: Carlos Eduardo Barbosa de Oliveira, Jorge Eduardo Levi Mattoso. - São Paulo: Scritta, 1996. (Pensieri), p. 87. 19BRAGA, id. ibid., 1993, p. 57. 20 BRAGA, id. ibid., 1993, p. 44.
7
alterações da estrutura ocupacional e das oportunidades de emprego, aumentando o quadro
de miséria e exclusão.21
Nesse sentido, poder-se-ia finalizar este item através da enunciação de duas
questões que orientam este trabalho. São elas:
1ª) em contraste com as tentativas pretéritas de expansão generalizada do
denominado regime “fordista”, que apontava para a “a elevação geral do nível de
vida das grandes massas”,22 quais seriam os desdobramentos sócio-econômicos e
espaciais do novo regime de acumulação mundial predominantemente financeiro
que está calcado em atividades essencialmente especulativas?23
2ª) Quais seriam as expressões sócio-espaciais decorrentes da mudança, em curso,
no regime de acumulação nos grandes centros urbanos do país, considerando a sua
inserção periférica na dinâmica capitalista na escala mundial?
Em primeiro lugar, sugere-se que a espacialização do atual regime de acumulação,
em contraste com o período “fordista” estimulador de um boom imobiliário abrangente
(habitação principalmente),24 venha a indicar uma considerável expansão seletiva dos
investimentos urbanos. Ou seja, o regime de acumulação em curso, baseado na
financeirização da riqueza, tende a espacializar-se de maneira fragmentada, espelhando
intenso processo de concentração de capital e riqueza, principalmente nos países do
capitalismo periférico.
Dando continuidade à nossa reflexão, são, a seguir, enunciados alguns aspectos e
indicações relativas às possíveis repercussões desse processo nas cidades. 3. Reestruturação Econômica e Espaços Metropolitanos: Algumas Notas
A nova geografia do mundo é, na dominância do atual regime de acumulação,
conformada no radical e claro delineamento social, econômico e político das nações
hegemônicas, de um lado, e na não menos radical (embora não tão clara) subserviência do
que resta no mundo, de outro.
O jogo de interesses (articulados ou não) das nações da Tríade,25 sob a égide dos
EUA tendo em vista suas iniciativas visando a reconstrução de sua hegemonia na escala
21 Dessa maneira, “[a] problemática desta dinâmica é a de uma instabilidade estrutural - marcada por flutuações de perfis mutáveis e por uma tensão entre expansão e estagnação relativa no longo prazo - distinta, portanto, de momentos pretéritos do capitalismo em que ocorriam grandes depressões e ‘crashes’ financeiros generalizados”. (BRAGA, id. ibid., 1993. p. 57) 22 CHESNAIS, op. cit., 1997a, p. 4. 23 CHESNAIS, id. ibid., 1997a, p. 4. Adota-se aqui, a noção de regime de acumulação, termo este emprestado da teoria da regulação, no sentido marxista (CHESNAIS, op. cit., 1997b, p. 20). 24 HOBSBAWM, op. cit., p. 257-258. 25 Bloco formado pelo Japão, E.U.A. e Europa.
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global, tem moldado um receituário que propugna crenças, ações e decisões a serem
tomadas pelas demais nações, considerando sua inserção na considerada inexorável
dinâmica da globalização. Desse receituário, a questão da competitividade alcança
proeminência, passando a ditar as políticas desregulacionistas e/ou flexibilizadoras que,
como instrumento privilegiado na captação de recursos, permeiam tanto a geografia
política mundial quanto as diversas nações e suas respectivas regiões e espaços de
importância econômica, tais como as metrópoles.
Dentre as diversas medidas que os EUA tomaram para a retomada de sua
hegemonia econômica e política, acredita-se que duas foram de singular relevância para o
revival das cidades. Trata-se da redução da carga tributária sobre o consumo,
especialmente de bens duráveis, e do financiamento de investimentos no setor terciário e
nas indústrias de alta tecnologia. (Cf. TAVARES, 1997: 39-40).26
Talvez, por essa via, se possa entender a ressurreição, ainda que problemática, das
cidades que, com a falência da velha estrutura produtiva-comercial de que tanto
dependiam, passam a enfrentar um quadro de crise, cujos contornos mais sensíveis são
percebidos através de problemas relativos à erosão de sua base econômica e fiscal.
O enfrentamento desse quadro de crise foi e tem sido tratado na perspectiva do
que HARVEY (1996: 49) denomina de “empresariamento urbano”, ou seja, a formação de
um complexo espectro de coalizões sócio-políticas visando a organização do espaço da
cidade, com o objetivo de adequá-la à atual dinâmica econômica, ou seja, de inseri-la no
atual circuito de reprodução e valorização capitalista. Nessas coalizões, o governo urbano
constitui-se num dos principais agentes do complexo conjunto de forças que passam a lidar
com a cidade, organizando suas feições e estrutura espacial e social (Cf. HARVEY, 1996:
52).
Nesse sentido, o empresariamento urbano percorre um caminho que, longe dos
períodos anteriores caracterizados por políticas de redistribuição de renda (habitação,
saúde, educação, por exemplo), privilegia um comportamento empresarial com relação à
gestão e à produção da cidade, visando o seu ajuste ao quadro de possibilidades que tem
sido delineado pelas transformações econômicas das duas últimas décadas.27
26 “/.../ Apesar de terem perdido a concorrência comercial para as demais economias avançadas e mesmo algumas semi-industrializadas, nos produtos de tecnologia de uso difundido, os EUA estão investindo fortemente no setor terciário e nas novas indústrias de tecnologia de ponta, na qual esperam ter vantagens comparativas. Os EUA não parecem interessados em sustentar sua velha estrutura produtiva-comercial. /.../”. (TAVARES M. da Conceição. “A retomada da hegemonia norte-americana”. In: Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997, p. 46-47) 27 Esta tendência é resumida de forma clara e objetiva por HARVEY (op. cit., 1996: 50), quando afirma que “[h]á uma concordância generalizada de que a mudança [de comportamento das administrações urbanas] tem algo a ver com as dificuldades que atingiram as economias capitalistas desde a recessão de 1973. Desindustrialização, desemprego, aparentemente “estrutural” e generalizado, austeridade fiscal tanto a nível nacional como local, combinados com uma onde crescente de neoconservadorismo e um apelo muito
9
Assim sendo, uma série de iniciativas administrativas passa a constar do
receituário a ser seguido pelos diversos (e “modernos”) governos locais, promovendo,
inclusive, a homogeneização das atitudes de um considerável leque de administradores,
dos mais variados matizes políticos e ideológicos.
Deste receituário, destacam-se três iniciativas mutuamente determinadas:
formação de parcerias entre o setor público e a iniciativa privada; implementação de novos
instrumentos e instituições voltadas para o governo urbano; desregulação e/ou
flexibilização do aparato legal da cidade.
Nesse contexto, “/.../ governos locais e regionais tornaram-se mais salientes
assim como indústrias tornaram-se mais diversificadas e moveram-se para além das
normas fordistas e da produção de massa de larga escala padronizada /.../.”28
A forma que esta concepção/tendência foi alardeada e assumida mundo afora
acarretou, especialmente no capitalismo periférico, a competição - insana - entre lugares, aí
incluídas as metrópoles. Consubstancia-se então um dos aspectos da estratégia ideológica
da globalização - tudo que a ela se opor estará não somente contra a força da modernidade
como, também, fadado ao fracasso. Assim sendo, todas as esferas da vida social - Estado,
legislação, meio ambiente - são contaminadas pela retórica da competitividade.
Articuladas às tendências econômicas desses tempos de competitividade
interurbana, tais iniciativas indicam algumas das principais saídas através das quais as
cidades buscariam escapar da estagnação, o que repercute decisivamente em sua
urbanização.
Ainda no nível do receituário prescritivo, surgem, a partir de experiências que
obtiveram bons resultados na inserção competitiva de contextos urbanos, grupos de
consultores técnicos que, a exemplo das agências supranacionais de regulação macro-
econômica, transformam-se em referência técnica no que concerne à gestão urbana,
difundindo, através da venda de serviços e orientações, diretrizes para a resolução dos
“problemas urbanos”.29
Além disso, na medida que as dificuldades enfrentadas pelas cidades a partir das
mudanças na economia tem redundado no acirramento de problemas diversos na vida
mais forte (conquanto mais freqüente na teoria do que na prática) à racionalidade do mercado e da privatização, fornecem um quadro para compreender porque tantos governos locais, muitas vezes de diferentes conotações políticas e munidos de diferentes poderes legais e políticos, tomaram todos uma direção bastante semelhante. A maior ênfase na ação local para combater tais males também parece ter algo a ver com o declínio dos poderes do Estado-Nação no controle do fluxo monetário internacional e os poderes para maximizar a atratividade local para o desenvolvimento capitalista. Pelas mesmas razões, o crescimento do empresariamento urbano pode ter tido um papel importante numa transição geral na dinâmica do regime de acumulação de capital (fordista-keynesiana) para um regime de “acumulação flexível” /.../” 28 HIRST P. & THOMPSON G., Globalização em Questão. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998, p. 361. 29 A consultora catalã Tecnologies Urbanas Barcelona S. A., TUBSA, constitui-se num exemplo emblemático.
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cotidiana (miséria, violência, degradação espacial), tanto as expectativas sociais, quanto a
sociabilidade urbana acabam sendo afetadas.30
Nesse sentido, observa-se que as pautas de recuperação das cidades tendo em vista
sua inserção competitiva, têm incluído orientações que têm acirrado a dialeticidade entre o
dinamismo do capitalismo atual, de corte excludente, e a emergência de situações e/ou
constrangimentos impeditivos da competitividade propriamente dita. Assim, as referidas
orientações, na impossibilidade de produzir alteração na dinâmica capitalista, acabam por
tratar apenas de seus sintomas. Dessa forma, tem-se, de um lado, administradores e
cidadãos (especialmente aqueles incluídos na esfera do consumo) que afirmam seu direito
de buscar alternativas para o desenvolvimento da cidade. Por outro lado, a emergência e o
incremento de grupos sociais excluídos, produto da atual dinâmica da acumulação. Surge
então uma antinomia entre incluídos e excluídos expressiva do fato de que todos os
envolvidos são, essencialmente, habitantes da cidade. Porém, não se trata de uma cidade
em abstrato. Trata-se de uma cidade que, por constituir-se produto de uma relação social
específica, do capital, só reconhece como cidadãos, aqueles inscritos na esfera do
consumo. Ou seja, uma cidade onde o homem não se constitui um ser genérico real, mas
sim um indivíduo delimitado, limitado a si mesmo (Cf MARX, s/d, p. 27). Nesse contexto,
“[a] aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade
privada. /.../. [Com isso, o] privilégio é substituído pelo direito.”31 Fica, assim, esclarecido
o caráter aparente da mencionada antinomia. Num direito orientado pela propriedade
privada, o uso de força se legitima e é ratificado pela emergência de iniciativas que
reforçam a dinâmica que a tudo isso engendra.32
A partir de agora, visando a complementação destas notas, serão detalhadas três
diretrizes gerais do receituário estimulador da competitividade urbana anteriormente
indicadas. Este movimento permite esclarecer algumas das principais tendências e aspectos
relativos ao lugar das cidades no atual processo de reestruturação econômica em curso no
mundo.
30 Tal como HARVEY (op. cit., 1996: 51) ressalta, “[a] urbanização também configura certos arranjos institucionais, formas legais, sistemas políticos e administrativos, hierarquias de poder e similares. Estes também dão à “cidade” qualidades objetuais que podem dominar as práticas diárias e conduzir a uma cadeia de ações subseqüentes. E, finalmente, a consciência dos habitantes urbanos é afetada pelo conjunto de experiências do qual derivam percepções, leituras simbólicas e aspirações. Em todos estes aspectos há uma contínua tensão entre forma e processo, entre sujeito e objeto, entre atividade e coisa. É tão tolo negar o papel e o poder de reificação, a capacidade das coisas que criamos de retornar a nós enquanto formas de dominação, como atribuir a tais coisas a capacidade para a ação social.” [Grifo nosso] 31 MARX, K. A Questão Judaica. Rio de Janeiro: Achiamé, s/d, p. 27, 31 e 71. 32 O uso contumaz da força pública policial passa então, a ser incluído no rol de iniciativas relativas à gestão urbana. O discurso do resgate dos espaços públicos aos “habitantes” da cidade constitui-se num dos campos privilegiados de tal iniciativa. Esta tem sido a forma através da qual algumas administrações locais têm tratado, por exemplo, dos camelos, moradores de rua – especialmente nas áreas centrais de grandes capitais, e áreas nobres invadidas por sociais excluídos.
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A primeira delas, ou seja, a formação de parcerias entre o setor público e a
iniciativa privada constitui-se talvez num dos principais pilares das novas feições e
estrutura do governo urbano sintonizado na competitividade.
Tais parcerias se estruturam no bojo de alianças e coalizões que configuram o
novo perfil dos governos urbanos. A complexidade dessas parcerias tem requerido que sua
realização seja empreendida por agentes de singular centralidade e peculiaridade na cena
sócio-política urbana. Nesse sentido, prefeitos e/ou administradores urbanos carismáticos e
líderes empresariais destacados compõem o rol de possíveis agentes capazes de instaurar e
direcionar o denominado empresariamento urbano.
Este processo adquire substância a partir da unificação e/ou integração de
reivindicações locais com o objetivo de “tentar atrair fontes externas de financiamento,
novos investimentos diretos ou novas fontes geradoras de emprego.”33 A montagem dessa
pauta determina a reforma do próprio perfil do governo local, estimulando diversas
alterações que reconfiguram as concepções de governo e as demandas sociais.
No rol dessas parcerias se inscrevem aquelas iniciativas concentradas no
desenvolvimento pontual e, não mais, conforme na época “fordista”, centradas no
território, visando a melhoria das condições de determinado grupo sócio-geográfico de
maior porte. Aí se incluem empreendimentos imobiliários e programas de reciclagem de
um determinado segmento da mão de obra local.
Além disso, no bojo do processo de empresariamento urbano, também ocorre a
emergência de instrumentos e instituições voltados para a agilização do governo urbano,
segunda importante diretriz visando a competitividade. Ou seja, tais instrumentos e
instituições têm como um de seus principais objetivos a otimização do aproveitamento de
oportunidades de investimento e financiamento consubstanciadas em diversas formas de
valorização/acumulação.
Nesse sentido, no que se refere aos instrumentos, destaca-se o planejamento
estratégico, foro privilegiado de discussão de reivindicações, projetos e prospecções
orientadas pelo interesse empresarial. Tal instrumento vem ocupando o lugar de outros -
tais como, no caso brasileiro, dos planos diretores - que eram (e, de certa maneira, ainda
são) identificados e elaborados a partir de uma perspectiva que reconhecia o papel central
dos governos locais como estabilizadores da sociedade capitalista, a partir das
reivindicações realizadas, por exemplo, por associações comunitárias, grupos de defesa do
meio ambiente (Cf. HARVEY, 1996: 52).
12
Ainda no âmbito desta diretriz, destaca-se a criação de novas instituições que
buscam organizar, perseguir e realizar atividades com fins lucrativos, constituindo-se em
outra iniciativa dirigida à promoção econômica da cidade. É, muitas vezes a partir delas
que se desenvolve o que tem sido denominado de city marketing, através de, por exemplo,
desburocratização de procedimentos da máquina administrativa pública, promoção de
feiras, festivais, exposições e campanhas promocionais.
A “flexibilização” do aparato legal, notadamente no que diz respeito à regulação
do uso e da ocupação do solo urbano, constitui-se a terceira e última diretriz voltada à
adequação da cidade aos requisitos da competitividade. Ela está calcada na noção de
redução dos custos locais.
Muitas vezes, sob a alegação de que a legislação existente emperra iniciativas,
retendo possíveis investimentos na cidade, a desregulação e/ou flexibilização do aparato
legal pode adquirir considerável importância, acarretando, inclusive, a legitimação de
processos centralizadores do poder e da autoridade.
A propósito da inserção de inovações no urbano visando o aumento da
competitividade, vale destacar a centralidade atribuída à dimensão do consumo.34
Já se observa essas tendências em algumas cidades brasileiras, dentre elas a cidade
do Rio de Janeiro.
Os constrangimentos da atual dinâmica da acumulação, principalmente no que se
refere à exclusão (social) e à ampliação da fragmentação sócio-espacial das cidades,
articulados às possibilidades instauradas pelas inovações técnicas - especialmente no
campo das telecomunicações e da gerência administrativa - têm acarretado a introdução de
novos objetos na malha urbana. A peculiaridade físico-funcional de tais objetos, a sua
inserção seletiva e pontual, tem implicado no redesenho da paisagem, configurando
inclusive, novas formas de pensar e fazer a arquitetura.35
33 HARVEY, op. cit., 1996, p. 52. 34 Este processo é também apontado noutra indicação de HARVEY (op. cit., 1996: 54-55), bastante esclarecedora destes tempos de desenvolvimento excludente. “Uma região urbana pode também aumentar sua situação de competitividade a partir da divisão espacial do consumo. Isso é mais do que simplesmente atrair dinheiro para uma região urbana através de atrativos turísticos e/ou destinados a aposentados. O estilo consumista da urbanização pós- 1950 promoveu uma base ainda maior para participar do consumo de massa. Se, por um lado, a recessão, o desemprego e o alto custo dos financiamentos diminuíram essa possibilidade para significativas parcelas da população, por outro lado, ainda persiste um grande poder de consumo (em grande parte alimentado pelo crédito). /.../ Os investimentos, no intuito de atrair o consumo, paradoxalmente se aceleram como reação à recessão generalizada; cada vez mais se concentram na qualidade de vida, na valorização do espaço, na inovação cultural e na elevação da qualidade do meio urbano (inclusive a adoção de estilos pós-modernistas de arquitetura e de desenho urbano), nos atrativos de consumo (estádios, centros de convenções, shopping centers, marinas, praças de alimentação exótica), entretenimento /.../ se tornaram facetas proeminentes das estratégias da renovação urbana. Acima de tudo, a cidade tem que parecer como lugar inovador, excitante, criativo e seguro para viver, visitar, para jogar ou consumir. /.../” 35 A transcrição a seguir indicada do trecho de artigo publicado em revista especializada da área de arquitetura e urbanismo ilustra esta indicação. “Agregando valores e incorporando tecnologias de ponta, a Torre Norte [um dos edifícios que compõem o Conjunto Empresarial Nações Unidas, que está sendo implantado na Marginal Pinheiros, em São Paulo], recém-inaugurada em São Paulo, é celebrada como exemplo de vanguarda arquitetônica da era pós-industrial ou de uma nova ordem geopolítica mundial. E se credencia como paradigma para os projetos de edifícios de escritórios no país. /.../ Anunciada como modelo de vanguarda no país, a Torre Norte,
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Além dos shopping centers, é importante acrescentar enquanto novas expressões
materiais da dimensão do consumo, as configurações arquitetônicas que combinam
funções anteriormente dispersas na paisagem das cidades. Neste grupo, destacam-se os
centros hoteleiros, de convenções e os centros de entretenimento, lazer e consumo.
Na perspectiva de SANTOS (1997: 200), esses objetos presentes no cotidiano das
grandes cidades do mundo capitalista “/.../ dão margem a uma nova modalidade de
escassez, e a uma nova segregação.” Instauram com isso, novas formas de valorização do
capital e novas sociabilidades. Valorização que resulta da emergência de novos
investimentos, formatações jurídico-administrativas, saberes e serviços decorrentes da
concepção e da localização desses empreendimentos. A nova sociabilidade (hábitos, modos
de vida e usos do espaço urbano) surge no bojo da crescente privatização e “guetificação”
da vida cotidiana nestes objetos, tendo em vista a sua configuração físico-funcional. Estes
processos, por sua vez, alimentam e definem outras modalidades de escassez e segregação,
favorecendo a dinâmica de acumulação urbana. Isto é, o acirramento da exclusão coloca,
através desses objetos, novas possibilidades de acumulação na cidade.36
Tais empreendimentos reúnem funções urbanas em áreas da metrópole capitalista
contemporânea moldadas por uma modernização pontual e/ou compulsória, especialmente
a partir dos anos 80. As diversas estratégias acionadas por seus empreendedores e
administradores, visando garantir o maior prolongamento de sua vida útil, complementam
o delineamento de uma importante face da atual urbanização, repleta de contrastes.
Nesse sentido, ressalta-se que a crescente importância de tais objetos, constitui-se
num indicador de que, mais uma vez, a dinâmica capitalista, sem eliminar nenhuma de
suas contradições, reconfigura-se justamente através do novo patamar - excludente - de sua
dinâmica. O caso dos shopping centers, nesse particular é, na história recente da
urbanização capitalista, o mais emblemático.
Ainda sobre a importância dos mencionados objetos, torna-se necessário destacar
dois aspectos: definem uma nova escala, configurada pela articulação de duas outras, a
urbana e a arquitetônica, e, pela reprodução de um ambiente livre de contradições, vêm
adquirindo crescente relevância nas cidades, especialmente quando se trata de analisá-los /.../ se soma a outros ícones e campanários da Marginal-Berrini [importante e recente eixo comercial e empresarial da cidade de São Paulo], como a Nestlé (ex-Philips), World Trade Center, D&D, Robocop, o Birman 21, entre tantos, configurando, com seus componentes cenográficos ou simbólicos, o diagrama de uma paisagem conectada cada vez mais ao circuito de uma ordem mundial movida a números, dígitos e estatísticas, que foge de nossa compreensão [sic]. À semelhança de outras torres, que emergem na Ásia, na Europa e na América, ela se encaixa, com certeza, no conceito da nova “geopolítica dos arranhas céus” (Fulvio Irace, Lotus 101), que se seguiu à abertura do mercado internacional. Assim, a torre foi projetada para sediar grandes empresas internacionais, como a Microsoft.” WOLF, José. “Observatório do futuro”. In: A U - Arquitetura e Urbanismo. São Paulo: Editora PINI, ano 15, nº 86, out./nov., 1999, p. 88.
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no contexto urbano dos países de capitalismo periférico, marcados por contrastes ainda
maiores entre opulência e miséria. 4. O Rio de Janeiro no devir competitivo: contexto e particularidade Como não poderia deixar de ser, no Brasil, a questão da competitividade alcança
proeminência, materializando-se nas diversas políticas desregulacionistas e/ou
flexibilizadoras como instrumento privilegiado na captação de recursos. Nesse sentido,
instaura-se um projeto de modernização que, sob a alegação da indispensável inserção do
país na globalização, vincula o aumento da competitividade interna à reestruturação de
diversas instâncias do Estado e da sociedade, atingindo direitos e conquistas sociais
garantidos pela Constituição Federal de 1988. A retórica do aumento da competitividade
articulada à globalização, espraia-se nas cidades brasileiras de grande porte, favorecendo
leituras voltadas ao desenvolvimento de sua capacidade competitiva individual.
Sintonizadas com o novo ideário – que secundariza o modelo de desenvolvimento
baseado na eficiência e na igualdade através do privilégio atribuído à eficiência e à
competitividade – a gestão de cidades adquire novo formato. Além disso, o incremento das
contradições sociais nas cidades, tem determinado a emergência de novos e complexos
objetos arquitetônico-urbanos que, interiorizando determinadas funções antes localizadas
na via pública, instauram uma segunda natureza razoavelmente adequada à redefinição da
dinâmica econômica.
No – aparente – ocaso do Estado como principal vetor de desenvolvimento e
gestão urbana, as parcerias público-privada passam a conduzir a pauta de desenvolvimento
e investimento das cidades.
Esta pauta é operacionalizada através de instrumentos de gestão que, levando em
conta os agentes privilegiados nas decisões e destinos da cidade, tendo em vista o novo
padrão de acumulação e investimento, consagrarão objetivos, instituições e os papéis a
serem desempenhados pelos administradores das aglomerações urbanas.37
Nesse contexto, a flexibilização do aparato legal de base “fordista” e o plano
estratégico como instrumento meramente indicativo, adquirem importância e centralidade,
conformando-se como nova praxis de regulação e planejamento da cidade na era da
desregulação competitiva, razoavelmente distinta do approach normativo expressivo das
36 As oportunidades de valorização do capital através desses empreendimentos adquirem tamanha importância, que passam a fazer parte do portafólio de diferentes tipos de investidores, especialmente em tempos de crise de liquidez. 37 A nova atitude a ser tomada por tais administradores também se configura através do esgotamento do padrão de intervenção do Estado em seus diversos níveis de governo, promovendo o colapso do tradicional padrão de financiamento das políticas públicas e inviabilizando o que foi aqui denominado de “fordismo” periférico.
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demandas do capital da “época de ouro” que caracterizou o período após a Segunda
Guerra.
Além disso, numa outra escala de concepção e intervenção, também se destacam
aqueles instrumentos que promovem a requalificação da imagem da cidade, leia-se, da
imagem física de parcelas da cidade.
A absorção desta nova racionalidade, associada à atração de investimentos através
da instauração de um clima de “dinamismo” e “modernidade”, conduz à redução da escala
de intervenção. Nessa perspectiva, as propostas e as práticas voltadas para a requalificação
de setores e/ou parcelas da cidade ganham corpo, respondendo às necessidades dos novos
gestores da cidade no fazer e no refazer a cidade. Nesse movimento, o desenho pontual
expressa a forma pela qual a cidade deverá ser tratada, substituindo antigas prescrições
normativas - e generalizantes - correlatas ao regime fordista.
Os espaços a serem privilegiados e/ou contemplados pelas intervenções públicas
são aqueles que possibilitam maior fluidez de informação e de capital e aqueles que podem
conferir à cidade elementos expressivos de dinamismo e modernidade. Tais elementos,
segundo os apologistas dessa concepção, permitem reerguer - física, econômica e
socialmente - a área objeto de intervenção, difundindo suas vantagens a outras escalas e
locais da cidade.
No que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro, ressalta-se indicações relativas à
inflexão da política urbana, frente ao novo cenário econômico internacional e nacional.
Em primeiro lugar, pode-se afirmar que, desde a gestão César Maia (1992-1996),
a denominada crise de paradigma associada a processos econômicos e sócio-políticos
originários do final dos anos 60 e concretizados nos anos 70 e 80, modificou-se de maneira
emblemática. Pelo que se pode perceber, há em curso na cidade do Rio de Janeiro um
deslocamento nas formas de pensar e agir sobre o urbano por parte do executivo municipal,
em direção a concepções e práticas identificadas com o “empresariamento” da
administração urbana (Cf. HARVEY, 1996: 49).
Não sem constrangimentos o executivo municipal do Rio de Janeiro vem (desde
1992) buscando explorar tendências sócio-econômicas mundiais, na tentativa de adequar
e/ou articular a cidade ao contexto da atual reestruturação capitalista, a partir de uma
perspectiva periférica.
Do ponto de vista da administração do espaço urbano, essa trajetória se
conformou no conjunto de políticas tais como o esvaziamento do Plano Diretor Decenal e a
diversificação/fragmentação da política urbana, a qual, por sua vez, permitiu a valorização
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de outros instrumentos de gestão. No bojo desse conjunto podem também ser incluídas a
flexibilização e/ou desregulação da base legal da cidade e o planejamento estratégico. Tais
iniciativas lançaram as bases para o que tem sido denominado de “planejamento
negocial”38, que, pelo que pôde ser apreendido na pesquisa realizada junto aos técnicos da
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, significa um novo arranjo jurídico-administrativo
de gestão da cidade. Jurídico porque, como não poderia deixar de ser, requer uma base
legal, ainda que fluida, e administrativo, porque traz à cena da gestão urbana, uma nova
articulação e/ou formatação público-privada no fazer e refazer a cidade.
Neste cenário, sob a alegação da necessidade de atrair recursos, investimentos e
desenvolvimento para o município face às características do novo regime de acumulação
vigente, a escala do planejamento da cidade tem sido reduzida, especialmente no que se
refere à implantação de grandes - e, muitas vezes, polêmicos – projetos.39 Assim sendo,
pode-se inferir que à fragmentação aparente da dinâmica econômica atual corresponde a
fragmentação real das formas de planejamento e produção da cidade. Não se trata mais de
estabelecer parâmetros ditos “rígidos”, mas sim regras flexíveis (“modernas” – sic),
compatíveis com a fluidez de todo o sistema.40
Esta forma de atuar sustenta e articula novos instrumentos e instituições de gestão
nos seus diversos níveis e/ou escalas de proposição/intervenção. Nesse sentido, “O adjetivo “negocial” denota, aliás, mais uma conseqüência do que um ponto de partida: o que se pretende é requalificar a cidade (no sentido alargado) atuando por intervenções concretas sempre e onde é possível reunir um conjunto de condições físicas e fundiárias e de agentes públicos e privados dispostos a passar do “poder fazer” ao “fazer mesmo”; e aquilo que mais efeitos benéficos possa trazer aos sistemas da cidade. /.../ O caráter negocial deste processo [de descoberta de áreas e organização da intervenção] tem, obviamente, regras diferentes das da negociação corrente entre privados, pela transparência, pelos limites irrenunciáveis do interesse público em presença, pela visão estratégica ou do plano existente, ainda que com menos rigidez ou mais interativa. E mesmo quando se trata de intervenções que envolvem apenas entidades públicas a
38 Esta denominação é, as vezes, substituída por outra, “planejamento adaptativo” e/ou “gerenciamento negocial”. (PORTAS, Nuno. “DO VAZIO AO CHEIO”. Mimeo, novembro de 1999, p. 2). Neste interessante artigo, o autor articula de forma clara alguns dos principais elementos estruturantes da “política urbana” vigente na atualidade na cidade do Rio de Janeiro. 39 Talvez se possa também compreender tais projetos como “projetos de grande visibilidade” (PORTAS, op. cit., 1999: 1 e 2),. 40 É sugestivo desta diretriz o trecho, abaixo transcrito, de um artigo de um dos mais importantes mentores da nova concepção (e/ou pauta) de gestão e planejamento assumida pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro. “Vazios urbanos, oportunidades estratégicas, planejamento adaptativo, gerenciamento negocial e projetos urbanos. Eis alguns conceitos que nas últimas duas décadas do século aparecem com freqüência associados, conotando um estilo de planejamento dito “pós” ou “transmoderno”, assumido pelas políticas e práticas urbanísticas, invocando razões práticas de operacionalidade, raramente justificadas pelo discurso teórico. Dir-se-ia responderem à uma inevitabilidade, mais envergonhada à esquerda do que à direita, mais aceita pela urbanística do que pelo direito, mais perturbadora no seio da tradição de planejamento européia do que anglo-americana. /.../ Por isso, planejamento adaptativo (com regras de jogo em vez de parâmetros) e gerenciamento negocial, são as duas caras de uma mesma e nova moeda. Assumindo, quer do nosso conhecimento do funcionamento dos sistemas urbanos, quer a insuficiência de recursos públicos para assegurar o seu comando em toda parte ao mesmo tempo. Por isso o novo “estado local” acabaria por adotar frontalmente a adaptabilidade e a negociação como processos integrantes do planejamento, procurando orientar a iniciativa e o investimento privado para áreas de interesse coletivo, que tradicionalmente não lhe caberia assegurar, oferecendo em troca garantias de edificabilidade, fiscais e outras, isto é, a rentabilidade média suficiente para que a oportunidade que, por hipótese, interesse às duas partes, não seja perdida.” [Grifo do autor] (PORTAS, op. cit., 1999, p. 6 e 7).
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negociação existe e, por vezes, com obstáculos mais difíceis de ultrapassar, por bons ou maus motivos...”41 [Grifo do autor]
Porém, não foi percebida junto aos técnicos da PCRJ entrevistados, a importância
para a negociação do que PORTAS (1999) chama de “visão estratégica ou do plano
existente”. Ou seja, a idéia de que há que se ter algum tipo de orientação de fundo nas
intervenções, sejam elas de qualquer escala e/ou natureza não está muito clara para parte
da equipe técnica da Prefeitura.
O tão propalado binômio plano – projeto, conceito chave na nova formatação do
discurso e da prática do planejamento urbano implementado pelo executivo municipal
especialmente desde 1996 (gestão Luiz Paulo Conde), embora do ponto de vista teórico
surja contextualizado na dinâmica e nas projeções da cidade, tem sido, de acordo com as
entrevistas realizadas, adotado de forma relativamente solta. Dessa maneira, a crítica à
desarticulação dos elementos do referido binômio, remete-se ao fato de que, em nenhum
momento das entrevistas realizadas, a equipe técnica da PCRJ que aparentemente tão bem
internalizou o referido conceito, soube de fato, esclarecê-lo. As observações aqui feitas
com relação ao caráter estreito da requalificação de áreas através de ações pontuais não
significam sua linear condenação. A crítica encontra-se centrada no fato de que sua adoção
enquanto instrumento privilegiado tem acontecido de forma desconectada de uma política
urbana mais abrangente.
Alguns, talvez, podem alegar que este tipo de política já se encontra contemplada
no Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, especialmente nas estratégias nº 2 “Rio
acolhedor” (que inclui o Rio Cidade) e nº 3 “Rio integrado” (que inclui o Favela – Bairro).
Contudo, ao se considerar, por exemplo, o processo de elaboração do referido Plano e a
amplitude dos diversos projetos nele elencados, percebe-se a afirmação de perspectiva bem
distinta daquela delienada pelo Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro, talvez,
um dos últimos resquícios do discurso normativo modernista e, portanto, portador de um
projeto - ainda que utópico - mais abrangente, para a cidade, neste final de milênio.42
41 PORTAS, op. cit., 1999, p. 3. 42 Talvez, não por acaso, PORTAS (1999) articule as idéias de sua interessante contribuição, a partir da idéia-força de preenchimento de vazios urbanos, destacando a “atuação por projetos” como um dos caminhos e/ou possibilidades a serem privilegiadas: “A oportunidade de reaproveitamento do vazio [urbano] em conformidade com o planejamento (revisto quando necessário), porém resultando da negociação caso a caso em termos de obrigações e benefícios, cria as condições necessárias e suficientes para uma atuação por projetos que se caracteriza por ser não uma previsão, mas sim uma operação concretizável no terreno que, se espera, tenha sobre seu entorno efeitos de contaminação positiva.” (PORTAS, op. cit., 1999, p. 2) [Grifo do autor]. Desta indicação, entende-se importante destacar a concepção de gestão baseada na negociação (ainda que somente para o aproveitamento de vazios urbanos) caso a caso, no contexto de um contínuo processo de revisão das diretrizes de planos. Cabe indagar até que ponto esta correlação entre plano e projeto (representada pelas propostas de reaproveitamento de vazios urbanos) pode ser trabalhada no sentido de garantir algum projeto mais abrangente - espacial e temporalmente falando - de cidade e de sociedade (local). Pelo que se tem observado, esta concepção tem funcionado muito mais no sentido de legitimar a dinâmica urbana moldada às atuais necessidades do capital do que propriamente sugerir um projeto de cidade e sociedade mais adequado às necessidades e expectativas da comunidade local, especialmente dos perdedores e/ou excluídos.
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No que se refere ao processo de reconfiguração de papéis e poderes no âmbito da
administração municipal, destaca-se não somente o redesenho da estrutura administrativa
propriamente dita da Prefeitura do Rio, como também a criação de instituições que, têm na
Agência Rio e na Secretaria Especial para Assuntos Estratégicos as expressões mais
contundentes da nova concepção de gestão urbana carioca nesses tempos de
competitividade. Desnecessário dizer que, nesta reconfiguração, a posição privilegiada é
ocupada pelos interesses privados.
Considerada uma iniciativa inspirada pelo Prefeito Luiz Paulo Conde, a Agência
de Desenvolvimento da Cidade do Rio de Janeiro, Agência Rio, foi criada em junho de
1997 com o objetivo de realizar uma interface entre a iniciativa privada e o executivo
municipal, viabilizando projetos de interesse da cidade.43 Esta instituição agrega um
conjunto bastante eclético de elementos (sócio-fundadores) em seu quadro social, sendo
presidida por um advogado e ex-presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro.44
Num encarte promocional, o então Prefeito Luiz Paulo Conde apresenta a criação
da Agência como um instrumento voltado a conferir “/.../ agilidade à reunião de forças [do executivo municipal] com a iniciativa privada para aproveitar todas as possibilidades de conjugar o interesse do Governo com o interesse empresarial, em benefício do interesse público. Novo aparato institucional capaz de animar o ambiente econômico da Cidade, a Agência de Desenvolvimento da Cidade do Rio de Janeiro traduz acima de tudo a certeza de voltar a exercer seu grandioso papel no País.”45
Pode-se relacionar o teor desse enunciado com duas novas competências
atribuídas às administrações locais nesses tempos de competitividade. São elas, o alcance
da consertação (dos interesses públicos e privados) e, enquanto um derivativo deste, a
implementação de iniciativas de natureza econômica que visem a ampliação do campo de
atuação do governo da cidade. (Cf. BORJA & CASTELLS, 1997: 156)
A Secretaria Especial para Assuntos Estratégicos, implementada juntamente com
outras secretarias especiais (do Trabalho, Monumentos Públicos, de Trânsito, antiga de
43 A criação da Agência inscreve-se nas prescrições de BORJA & CASTELLS (LOCAL Y GLOBAL, La Gestión de las Ciudades em la Era de la Información. Madrid: Santillana, S.A. Taurus, 1997), especialmente naquela que estipula que “/.../ Actualmente la promoción económica requerirá que el gobierno local tenga competencia y medios – en colaboración com otros actores públicos y privados pero com iniciativa propria para desarrollar zonas de actividades empresariales, para crear bancos com líneas de capital-riesgos, para promover empresas públicas y mixtas competitivas com el sector privado, para realizar compañas internacionales que atraigan feriales y centros de convenciones y parques industriales y tecnológicos, para estabelecer oficinas de información y asesoramento a empresarios e inversores locales e internacionales, etc.”43 [Grifo nosso] 44 Associação Comercial, a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, a Fundação Getúlio Vargas, o Instituto Brasileiro de Administração Municipal, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a Bolsa de Gêneros Alimentícios, assim como os jornais do Comércio, O Dia, O Globo e o Jornal do Brasil. Dados coletados em 1998. 45 Um novo Rio está nascendo. Venha investir. Apresentação do encarte promocional da Agência Rio, assinado pelo Prefeito da cidade do Rio de Janeiro, arquiteto Luiz Paulo Conde, s/d, p.1.
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Transportes, de Turismo e de Projetos Especiais) através da Lei nº 2537/97, de 03.03.97,
tem “/.../ por finalidade elaborar e coordenar planos, programas e projetos, bem como
proceder à captação de recursos e ao estabelecimento de parcerias com instituições
públicas e privadas, visando a consolidação do desenvolvimento equilibrado da Cidade do
Rio de Janeiro /.../.”46
Segundo informações obtidas junto a PCRJ, a Secretaria Especial para Assuntos
Estratégicos tem um perfil marcadamente técnico cuja incumbência é elaborar e idealizar
projetos e perspectivas futuras para a cidade do Rio de Janeiro, realizando estudos e
pesquisas, assim como articular e coordenar projetos junto a outras secretarias e órgãos do
Executivo Municipal.
Por meio destas indicações confirma-se a concepção que enfatiza a complexidade
e a amplitude das conexões sócio-políticas que têm conformado a cidade enquanto ator
social. A questão é saber quais serão os grupos priorizados nesse processo.
Finalmente, como importante subconjunto de elementos relativos ao Rio de
Janeiro, destaca-se, de forma resumida, alguns aspectos relativos à reconfiguração espacial
da metrópole carioca, centrando a análise na Barra da Tijuca.
Indiscutivelmente, encontram-se presentes, na dinâmica metropolitana carioca,
transformações ligadas tanto à descentralização e seus impactos no núcleo central quanto à
ratificação de setores residenciais seletivos. A combinação de tais transformações pode ser
reconhecida na Barra da Tijuca, percebida como nova centralidade seletiva e sócio-
espacialmente fragmentada. Nessa perspectiva, corroborando a constatação de outros
estudos e pesquisas, esta área da cidade, além de típico setor residencial seletivo, vem “se
constituindo em um centro de negócios periférico que pode ser visualizado nos office
parks.”47 [Grifo do autor]
Tais objetos, juntamente com os já bem conhecidos condomínios fechados e/ou
exclusivos, os shopping centers, os clubes privé e os mega-centros de lazer e
entretenimento materializam o atual processo de reconfiguração e modernização
excludente e atomizada da metrópole (e da sociabilidade). Desse modo, à tão propalada
fluidez de processos requerida pelo atual regime de acumulação, corresponde, em sentido
contrário, a necessária “fixidez” de elementos de reprodução sócio-espacial dos interesses
dominantes.
46 Diário Oficial do Município, 05.03.97, p. 02. 47 PACHECO, Suzana Miranda. “TERCIARIZAÇÃO E REESTRUTURAÇÃO URBANA NO RIO DE JANEIRO”. In: Boletim GETER, ano I, nº 1, fevereiro de 1998, p. 2.
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Embora a Barra da Tijuca seja compreendida, pela maioria dos técnicos da PCRJ
entrevistados, como uma área que “se faz autonomamente”, vale ressaltar que a sua
valorização dependeu dos grandes investimentos nela realizados.48 5. À Guisa de Conclusão Conforme se tentou demonstrar, novos instrumentos, instituições e práticas
levadas a cabo pela administração municipal do Rio de Janeiro assim como novas formas
de apropriação e/ou produção de determinadas parcelas da referida cidade, constituem
expressões fenomênicas do já mencionado padrão de acumulação de caráter seletivo e
socialmente excludente.
Na articulação multi-variável, multi-escalar e fragmentada de espaços e lugares
determinados pela atual dinâmica econômica, além dos supracitados instrumentos e
instituições definidores de novas concepções e escalas de reflexão e intervenção na cidade,
constata-se também a crescente importância de objetos arquitetônicos-urbanos cuja
complexidade e centralidade conferem uma nova escala sócio-geográfica de estruturação
tanto do espaço quanto da vida e da sociabilidade urbana desse tipo de metrópole.
Sugere-se que a utilização de tal escala possa ser compreendida através do termo
“ambiente construído”. Entende-se que este termo pode ser tomado como uma importante
categoria de análise da urbanização deste final de milênio, de caráter seletivo, fragmentado
e excludente. Acredita-se que, através da mencionada categoria, talvez se possa apreender
uma considerável parcela da complexa articulação entre fenômenos econômicos, sociais e
culturais resultantes do atual redesenho do desenvolvimento geográfico desigual.
Finalmente, no que diz respeito à inserção do Rio de Janeiro no discurso e nas
práticas relativas à competitividade entre cidades, considera-se importante ressaltar nesta
conclusão alguns pontos de singular relevância e complexidade na análise do caso do Rio
de Janeiro.
Apesar de se correr o risco de exagerar, talvez se possa dizer que César Maia,
percebendo o que se configurava no plano nacional (desregulação e abertura comercial por
exemplo), lançou as bases, no nível local, para adequação e/ou aproveitamento das
mencionadas transformações. Porém, tendo-se em mente este contexto, não seria exagero
dizer que as administrações César Maia e Luiz Paulo Conde resgataram a centralidade da
cidade do Rio de Janeiro no ideário da urbanização brasileira, cuja posição havia sido
perdida e/ou obscurecida para a cidade de Curitiba (período Jaime Lerner). Este resgate se 48 A Via Amarela constitui-se num exemplo emblemático.
21
concretizou através de um projeto de modernização (conservadora), cujo caráter seletivo
(direção dos investimentos) e predominantemente excludente (somente alguns poucos
segmentos sócio-espaciais incluídos)49 pode ser considerado sintonizado com o atual
regime de acumulação. Essas indicações reafirmam César Maia como demiurgo brasileiro
da recente forma de pensar e agir no urbano brasileiro, no contexto das possibilidades
abertas pelo regime de acumulação (capitalista) deste final de milênio. Seu exemplo é tão
emblemático que muitos dos itens e procedimentos de gestão de seu governo, em especial
o planejamento estratégico, vêm sendo incorporados por outras municipalidades brasileiras
de médio e grande porte.
Nesse contexto, a negociação público-privada, passou a conduzir a pauta
orientadora do desenvolvimento e do investimento na cidade. Esta pauta é
operacionalizada através de instrumentos de gestão tais como: (I) flexibilização do aparato
legal de base “fordista” e emergência do plano estratégico como nova praxis de regulação e
planejamento da cidade na era da desregulação competitiva; (II) emergência de uma nova
escala de concepção e intervenção, destacando-se a requalificação da imagem da cidade,
ou seja, a imagem física de parcelas do espaço físico da cidade; (III) esse movimento vem
respondendo às necessidades dos novos gestores da cidade, e aos anseios da categoria
profissional dos arquitetos, que se re-insere no fazer e no refazer a cidade. Nesse sentido, o
desenho pontual materializado no binômio plano – projeto, expressa, ainda que de maneira
truncada e, muitas vezes problemática, a forma pela qual a cidade tem sido (e deverá ser)
tratada, substituindo antigas prescrições normativas - e generalizantes - correlatas ao
regime fordista.
Todas essas indicações sugerem que a atual dinâmica econômica, vulgarmente
denominada globalização, vem redefinindo a relação entre economia e política, já
repercutindo, como estratégia ideológica atualmente hegemônica, nas diversas escalas
sócio-geográficas da produção e da vida social.
Assim sendo, compreende-se que fragmentação e exclusão readquirem um novo
significado e importância na pauta de discussões sobre a cidade a qual, acirrando
tendências ontologicamente fundadas do capitalismo, tem se configurado como um todo
cujas partes constituintes têm se articulado num ambiente de progressiva polarização
sócio-espacial.
49 Em que pese esta característica não há como negar que o programa Favela – Bairro constitui-se peculiar contraponto a ela.