AZIZEDISSERTAÇÃO

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ROGERIO LOPES AZIZE A química da qualidade de vida: um olhar antropológico sobre uso de medicamentos e saúde em classes médias urbanas brasileiras Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Departamento de Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina. Orientadora: Profa. Dra. Sônia Weidner Maluf Florianópolis 2002

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Dissertação Rogerio Azize

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  • ROGERIO LOPES AZIZE

    A qumica da qualidade de vida:um olhar antropolgico sobre uso de

    medicamentos e sade em classes mdias urbanas brasileiras

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre, Programa de Ps-graduao em Antropologia Social, Departamento de Antropologia, Universidade Federal de Santa Catarina.

    Orientadora: Profa. Dra. Snia Weidner Maluf

    Florianpolis 2002

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo, antes de mais, s agncias de financiamento CNPq e CAPES, por

    terem facultado as bolsas que possibilitaram a consecuo deste trabalho, e ao Programa de Ps-graduao em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, pelo acolhimento institucional. A confeco de uma dissertao um trabalho solitrio, mas que por outro lado nunca se cumpre sem apoios que terminam por se revelar inestimveis. Sou grato

    minha orientadora Snia Weidner Maluf, por ter mostrado caminhos possveis

    para um projeto difcil de ser implementado. Durante o mestrado, abusei de sua qualidade de, segundo ela mesma, entender suscetibilidades. Alm disto, o seu trabalho de doutorado, sobre as culturas da nova era, foi-me grande fonte de inspirao, fornecendo dados e idias para que eu fizesse um exerccio comparativo;

    a todos os informantes que partilharam comigo as suas inquietaes e tambm

    queles que no pareciam ter grandes inquietaes. Sem a sua generosa disponibilidade, o trabalho no teria sido possvel. Espero que eu tenha utilizado suas falas de uma maneira responsvel compreend-las a razo de ser deste trabalho;

    a Rafael Lopes Azize, pelas sugestes e pela reviso possvel, dado o prazo

    apertado; Alinne Bonetti, pela leitura paciente e por sugestes importantes na organizao

    do trabalho; a Divaldo Paulino Pereira, pela amizade e pela grande ajuda na editorao, s

    pressas, quando o prazo final estava j batendo minha porta; a todos os colegas do mestrado e doutorado em Antropologia Social, que tiveram

    a pacincia de ouvir as mesmas idias repetidas vezes e generosidade para me presentear com suas contribuies.

    Por terem dividido seu conhecimento e experincia durante o curso de mestrado,

    agradeo s professoras Snia Weidner Maluf, Jean Langdon, Maria Amlia Schmidt Dickie, Ilka Boaventura Leite, Miriam Grossi e Carmen Rial. Um agradecimento especial professora Maria Regina de Azevedo Lisba, que, durante a graduao em Cincias Sociais, ajudou a despertar em mim os interesses que me trouxeram at aqui.

    Agradeo a amizade e os pacientes ouvidos de Enis Mazzuco, Marcos Duarte,

    Eduardo Riaviz e Vanessa Nahas Riaviz. Durante alguns perodos, fez-se necessria uma certa solido, silncio e

    tranqilidade para que eu conseguisse dar novo impulso ao trabalho. Pelo espao que me cederam em suas casas, com ou sem a presena das proprietrias, e pela confiana, sou muito grato s amigas Graa Carvalho e Cludia Mesquita.

    Agradeo aos meus pais, Azize Dibo Neto e Creusa Maria Gis Lopes, por todos

    os exemplos.

  • Segundo a Organizao Mundial da Sade (OMS), a depresso afeta cerca de 6% da populao mundial. (...) Nos prximos 20 anos, a depresso dever ser a maior causa de incapacitao social do planeta, perdendo apenas para as doenas cardacas.

    Jornal Folha de So Paulo, em reportagem sobre a chegada do Prozac em verso semanal, 6/09/2001.

    O mundo gasta 7 bilhes de dlares por ano com antidepressivos, o segundo medicamento mais vendido (o primeiro so os remdios para doenas cardiovasculares).

    Revista Veja, em reportagem sobre a depresso intitulada A doena da alma, 31/03/1999.

    A depresso considerada a quinta maior questo de sade pblica no mundo e, como tal, representa uma mina de ouro para os laboratrios farmacuticos. Para se ter uma idia, o segmento de antidepressivos movimenta globalmente 12 bilhes de dlares por ano. S no mercado brasileiro, h sessenta medicamentos, indicados para tratar os diferentes graus da doena.

    Revista Veja, em reportagem intitulada Mais uma plula da felicidade, sobre a chegada de um novo antidepressivo, o Ixel, 05/09/2001.

    Doena dispendiosa, de alto risco, crnica e reincidente, a obesidade afeta milhes de pessoas em todo o mundo, inclusive crianas. Embora no seja nova, ela assume agora propores epidmicas e est aumentando. Esta tendncia , sem dvida, alarmante em virtude das doenas associadas obesidade. (...) A obesidade sinnimo de perda da qualidade de vida.

    Site obesidade.com.br, mantido pela Roche, laboratrio farmacutico fabricante do Xenical.

    O estudo mais completo sobre impotncia, realizado pela Universidade de Boston, nos EUA, aponta para uma altssima incidncia do problema: 52% dos americanos com mais de 40 anos sofrem de algum tipo de disfuno sexual. (...) Ao longo dos 12 primeiros meses de comercializao no Brasil, 5 milhes de relaes sexuais podem ter sido movidas, real ou psicologicamente, base de sildenafil, nome do princpio ativo da droga (Viagra). Na ponta do lpis, isso significa que foram vendidas 13.698 unidades por dia, ou 570 por hora, ou 9,5 por minuto.

    Revista poca, em reportagem intitulada A turma do Viagra, 6/09/1999.

  • Novo remdio contra impotncia promete agir mais rpido do que o Viagra e com menos contra-indicaes. Alegria, alegria. No vai ser por falta de plulas que haver falta de sexo. Isso porque est para ser lanada mais uma droga contra a impotncia, mal que acomete, em algum grau, cerca de 50% dos homens acima dos 40 anos. Deve se chamar Uprima...

    Revista Isto , em reportagem intitulada Prazer em dez minutos, 8/03/2000.

    No so poucos os que vivem este drama, o da impotncia, de acordo com a psiquiatra Carmita Abdo, especializada em sexualidade, que colheu depoimentos de brasileiros de diversas regies do pas. Sua pesquisa aponta que 47% da populao acima de 18 anos tem algum grau de disfuno ertil. A boa notcia que os recursos para combater o mal esto aumentando, o que deve provocar uma nova corrida aos consultrios, fenmeno registrado em 1998, quando chegou por aqui o Viagra, do laboratrio Pfizer. At o final de outubro, as farmcias ganharo mais um medicamento para lutar contra o tormento da impotncia: o Uprima, do laboratrio Abbott. mais uma arma dentro do rico mercado de drogas facilitadoras da ereo, setor que movimenta anualmente U$ 3 bilhes de dlares no mundo.

    Revista Isto , em reportagem intitulada Arsenal do Prazer, 27/06/2001.

  • SUMRIO

    Resumo ........................................................................................................................................... 07 Abstract ........................................................................................................................................... 08 Introduo Medicamentos bons para pensar: contextualizando a discusso .............................09

    I.1 As plulas e a sua funo ..............................................................................................15 I.2 Diferentes, mas semelhantes: onde se cruzam as plulas?..........................................21 I.3 Como cheguei at aqui..................................................................................................23 I.4 Estrutura da dissertao................................................................................................24

    Captulo 1 Um campo diludo: os caminhos metodolgicos em uma antropologia

    no contemporneo urbano. ......................................................................................27 1.1 Eu era nativo e no sabia: minha experincia com medicamentos durante o

    mestrado ......................................................................................................................28 1.2 A complexidade do espao urbano: o campo por todos os lados ...............................33

    1.2.1 Medicamentos podem encurtar distncias ...............................................35 1.3 O campo como espao no-metdico .........................................................................37 1.4 Dificuldades em campo................................................................................................39

    1.4.1 A relao com os mdicos........................................................................40 1.4.2 A cultura da reclamao: queixas que levam a informantes que se

    queixam ....................................................................................................42 Captulo 2 Afirmando a doena: o discurso da biomedicina........................................................44

    2.1 Doena/Sade e cultura: a teoria da illness, disease e sickness e a opo pela categoria nativa............................................................................................................45

    2.2 Divulgando a doena: cenas da comunicao com o pblico no-usurio.................51 2.2.1 A doena depresso.................................................................................52 2.2.2 A doena disfuno ertil .........................................................................55 2.2.3 A doena obesidade .................................................................................59

    2.3 Divulgando o medicamento: cenas da comunicao com os mdicos e os usurios.62 2.3.1 Medicamentos para disfuno ertil .........................................................62 2.3.2 Medicamentos para obesidade.................................................................65 2.3.3 Medicamentos para depresso ................................................................67

    2.4 Os testes auto-aplicveis e questionrios ...................................................................68 2.4.1 ndice Internacional de Funo Ertil .......................................................70 2.4.2 Zung Assessment Test (depresso).........................................................73 2.4.3 ndice de Massa Corporal (obesidade).....................................................77

    2.5 Uma breve concluso parcial. ......................................................................................80 Captulo 3 No-remdios para no-curar no-doenas: o discurso dos usurios.................. ....82

    3.1 Plulas pelo caminho: observaes sobre o itinerrio teraputico ......................... ....86 3.2 Um discurso no patologizado................................................................................ ....91 3.3 A interao com outros campos culturais: a cultura do corpo magro e a cultura psi ..94 3.4 Outra breve concluso parcial ................................................................................ ....97

    Captulo 4 Diferentes sentidos em comunicao.................................................................... ....99 4.1 Circularidade cultural: a mesma direo, diferentes sentidos................................. ....100 4.2 Uma histria da doena e outra de si: mitos coletivos e mitos individuais ............. ....103 4.3 Sade e qualidade de vida: valores no esprito do tempo ...................................... ....109

    Concluses................................................................................................................................. ....113 Referncias bibliogrficas .......................................................................................................... ....116

  • RESUMO

    Nesta dissertao, parte-se da idia de que os conceitos de sade e doena, alm

    dos limites entre estados considerados normais ou patolgicos, tm grande interface com

    a cultura na qual esto sendo veiculados.

    Tomo como objeto etnogrfico tanto o discurso dos agentes da biomedicina

    ocidental como o discurso leigo referente aos chamados remdios do estilo de vida; a

    partir deste rtulo veiculado pelos meios de comunicao de massa, selecionei os

    medicamentos de maior visibilidade, a saber, as plulas Viagra, Prozac e Xenical, mas

    sem desprezar plulas fabricadas por laboratrios concorrentes, com o mesmo objetivo.

    Procuro demonstrar que, dentro do sistema biomdico, diferentes significados

    podem ser atribudos s idias de doena/sade, cura e medicamento; esta diferena fica

    dependente de quem emite o discurso, do lugar social a partir do qual est falando, com

    quem e com quais fins.

    Tento colocar em prtica a idia de que os discursos de todos os agentes que

    circulam dentro do sistema biomdico so passveis de anlise simblica e discursiva. Isto

    vale para os usurios das plulas, como para os mdicos e indstrias farmacuticas.

    Enquanto o discurso dos agentes da biomedicina concentra-se em uma definio e

    divulgao das doenas obesidade, depresso e disfuno ertil, os usurios que

    entrevistei tendem a apresentar um discurso no-patologizado, que prioriza uma histria

    de si. Apesar desta diferena, os diferentes discursos no devem ser analisados de uma

    forma maniquesta, visto que esto em constante tenso e se influenciam mutuamente.

    Trabalho com a hiptese de que expresses nativas como qualidade de vida e estilo

    de vida, constantemente utilizadas pelos usurios dos medicamentos e pelos agentes da

    biomedicina ocidental, remetem a um mesmo campo semntico. Tal campo semntico

    seria delimitador de uma fronteira cultural nas sociedades urbanas ocidentais

    contemporneas.

    Palavras-chave: antropologia da sade; qualidade de vida; medicamentos; modernidade.

  • ABSTRACT

    The concepts of health and disease, beyond the boundaries between states

    considered as normal and those seen as pathological, have an important interface with the

    culture within which they bear applicability.

    I take as my ethnographic object both the discourse of western biomedicines

    agents and the laymans discourse on the so-called lifestyle drugs. Referring to this

    mass-media label, I selected those drugs with greater visibility, i.e., the pills Viagra, Prozac

    and Xenical, but not disregarding pills with the same objective made by competing

    laboratories.

    I envisage to show that, within the biomedical system, different meanings can

    be ascribed to the ideas of disease/health, cure and drug; such differences depend on who

    asserts the discourse, on the speakers social status, on his/her interlocutor and on the

    aims of his/her discourse.

    I assume that the discourses of all agents circulating within the biomedical

    system are susceptible of symbolic and discursive analysis. This holds to users of the pills

    as well as to doctors and pharmaceutical industries.

    Whereas the discourse of biomedicines agents focus on defining and publicize

    the diseases of obesity, depression and erectile disfunction, the users I interviewed tend to

    produce a non-pathologised discourse, which prioritizes a narrative of oneself. In spite of

    this discrepancy, the different discourses should not be analyzed in a manicheistic fashion,

    as they are in constant tension and mutually influence each other.

    I work on the assumption that native clauses like quality of life and lifestyle,

    constantly voiced by users of the drugs and by western biomedicines agents, refer to the

    same semantic field. Such semantic field would demarcate a cultural zone within western

    contemporary urban societies.

    Key-words: Anthropology of Health; drugs; modernity.

  • INTRODUO

    Medicamentos bons para pensar: contextualizando

    a discusso

  • 10

    Eu no gosto de medicamentos; tenho uma certa resistncia a consumi-los. Esta

    informao pode ser considerada desnecessria, a no ser que se acredite na

    importncia de se conhecer as motivaes ao menos algumas delas que levam

    escolha do tema de uma dissertao. Acredito que esta minha resistncia pessoal fez

    com que o sucesso de certos medicamentos entre as classes mdias urbanas chamasse

    a minha ateno e ajudou a despertar meu interesse pela investigao do campo cultural

    que propicia ou possibilita este sucesso.

    Independentemente do meu gosto particular, ou talvez por isso mesmo, percebi

    que alguns medicamentos so bons para pensar, como j disse Lvi-Strauss certa vez

    sobre a comida (ou sobre os mitos sobre a comida). Esta percepo se acentua quando

    se percebe que alguns medicamentos se destacam na multido de frmacos venda nas

    farmcias, seja por seu sucesso comercial, seja pelo grande apelo simblico junto ao

    pblico consumidor, ou ainda por ambos os motivos.

    Alguns destes produtos farmacuticos, no meu modo de ver, parecem fazer parte

    de prticas e representaes que mostram a plasticidade do campo de ao da

    biomedicina ocidental1. As fronteiras de atuao da biomedicina ocidental, e,

    conseqentemente, os usos que so feitos de seus medicamentos, so sensveis ao

    passar do tempo, a mudanas na viso de mundo, a novas descobertas cientficas. Dado

    esta plasticidade, categorias como medicamento, sade, doena e cura, que parecem j

    estar naturalizadas dentro do sistema biomdico, enquanto sistema cultural2, podem ser

    colocadas em perspectiva pelos agentes que circulam por esta cultura.

    Pretendo mostrar aqui que, dentro do sistema biomdico, diferentes significados

    podem ser atribudos s idias de sade/doena, cura e mesmo idia de medicamento.

    Tais significados variam conforme quem est falando, de onde est falando, com quem

    est falando e com quais fins. Caso esta percepo de campo fique bem demonstrada,

    ficar mais transparente a historicidade de certas idias veiculadas pelos agentes da

    biomedicina oficial, e do sistema biomdico como um todo, algo que se contrape

    naturalizao que costuma caracterizar o seu discurso. Este trabalho filia-se a uma

    1 Por biomedicina ocidental, entendo aqui um conjunto de saberes, prticas e tcnicas sobre

    doena/sade, hegemnicas dentro da cultura ocidental contempornea, cujos agentes principais so os mdicos e profissionais da medicina em geral, incluindo os laboratrios farmacuticos. Duarte (1998:17) utilizou o termo medicina cientifizante ocidental moderna como um sinnimo para biomedicina. 2 Est em Kleinman a idia se comparar diferentes sistemas mdicos tomando-os como sistemas

    culturais. Por sistema biomdico entendo aqui todo o conjunto de prticas e representaes que circula entre os agentes da biomedicina oficial e os usurios/consumidores dos produtos e servios prestados.

  • 11

    perspectiva terica que prope uma reflexo sobre os aspectos simblicos das prticas

    do sistema biomdico ocidental, tratando-o como mais um aspecto da cultura, e por isso

    passvel de anlise em um trabalho antropolgico.

    Entre as prticas do sistema biomdico ocidental est o uso de medicamentos

    produzidos pelos laboratrios farmacuticos. A cultura que cerca o consumo de alguns

    deles o objeto de anlise desta dissertao.

    Acostumados que estamos a ler as bulas dos remdios que consumimos como

    uma pura fonte de informao, portadoras de uma verdade cientificamente comprovada,

    esquecemos que este um documento que, como qualquer outro, foi produzido por mos

    humanas. Na interpretao biomdica, os eventos transcorridos entre a doena e a cura

    so muitas vezes lidos como fatos da natureza, de um fisicalismo inconteste. O que

    dificilmente colocado em perspectiva o fato de que esta interpretao fisicalista da

    doena tambm uma questo de crena; muitos trabalhos em antropologia j

    mostraram o quanto a crena no sistema mdico nativo3 pode influenciar o estado de

    sade das pessoas; por que seria diferente no caso da cultura ocidental?

    Do ponto de vista do antroplogo, as diversas faces de uma cultura, mesmo que

    seja a sua prpria, inscrevem-se no campo do simblico, oferecendo uma srie de

    significados anlise de quem se interessar analiticamente por elas. No caso de

    pesquisas em antropologia urbana, que incluem questes ligadas antropologia da

    sade, Russo resumiu em poucas linhas as inquietaes que podem surgir pelo caminho:

    Como mostrar que um ritual explicitamente religioso tambm teraputico, e, ao mesmo tempo, que um ato teraputico realizado num hospital tem inegvel valor ritual. Como ultrapassar a viso estritamente biolgica e objetivante do corpo humano, trazendo cena um corpo atravessado por crenas e mitos, um corpo que ao mesmo tempo produz significao e desafia o sentido. Esta talvez seja a real vocao de uma antropologia da sade: o atravessamento conceitual de fronteiras consagradas tanto pelo senso comum, quanto pelo stablishment cientfico. (Russo,1998:314)

    Talvez o grande desafio de realizar pesquisas que incluem questes ligadas

    antropologia da sade seja realmente o de desrespeitar as fronteiras estabelecidas e

    perceb-las tambm como fato cultural (idem, 1998). Este desafio parece tornar-se ainda

    mais interessante quando o objeto de anlise so prticas vinculadas biomedicina

    ocidental, visto ser este um conjunto de saberes que se pretende, de maneira geral, sem

  • 12

    fronteiras culturais ou geogrficas. Se o discurso do doente no pode ser tomado como a

    nica verdade, mas uma interpretao, o mesmo vale para as palavras dos laboratrios

    farmacuticos e dos mdicos.

    Concordo com Lefvre quando ele afirma que o sentido do medicamento no se

    esgota na sua dimenso teraputica (1991:17); pensar antropologicamente sobre

    medicamentos4 requer uma investigao sobre o seu sentido social, e um olhar analtico

    sobre os agentes envolvidos em sua produo, divulgao e consumo. Algo semelhante

    poderia ser dito sobre o conceito de doena, sobre o qual Sontag5 (1984:104) disse nunca

    ser um conceito inocente, no sentido em que est sempre atravessado pela cultura, pleno

    de valores simblicos e servindo de veculo para metforas que vo alm do fisicalismo

    das doenas. Podemos unir a medicamento e doena o conceito de sade, que nem

    sempre um oposto simtrico de doena. Uma das idias que recortam transversalmente

    esta dissertao a de que um idioma da sade vem sendo falado entre as classes

    mdias urbanas no ocidente; e o campo semntico que cerca este idioma no est

    necessariamente em oposio idia de doena.

    A expresso medicamento responde hoje por uma gama de produtos bastante

    heterognea. O mercado farmacutico mobiliza o interesse dos indivduos e tem seus

    lanamentos a ocupar manchetes de jornais e capas das maiores revistas de circulao

    nacional, no apenas no Brasil. A expectativa de lanamento de um medicamento

    previsto pelo fabricante para ser um futuro sucesso pode gerar um grande aumento no

    valor de mercado da empresa; uma m notcia, como resultados negativos na fase de

    testes de eficcia clnica, descobrimento de novos efeitos colaterais ou at mortes

    relacionadas ingesto de medicamentos6, pode gerar um efeito inversamente

    proporcional.

    3 Especialmente nas sociedades tribais, difcil estabelecer os limites entre teraputica e religio

    (Russo, 1998). 4 Um esclarecimento sobre o uso da expresso medicamentos deve aqui ser feito. Uma

    possibilidade seria optar pela expresso remdio como uma expresso genrica para designar os produtos farmacuticos em geral. Escolhi falar em medicamentos pela maior exatido deste termo; remdio, na cultura ocidental, parece ter uma riqueza semntica maior, no sentido em que se presta a um nmero maior de usos, mais metafricos. Medicamento pareceu-me um termo mais preciso. De qualquer forma, ambas as expresses aparecem no discurso nativo, como veremos nos captulos 2 e 3. 5 A autora no est exatamente fazendo um estudo terico sobre o tema. Trata-se de um ensaio

    fundamentado em sua prpria experincia. 6 Falecimentos ocorridos aps a ingesto da plula Viagra foram notcia bastante divulgada nos

    meios de comunicao. Mais recentemente, a morte da cantora Cssia Eller foi relacionada ingesto de Plasil. O laboratrio fabricante reagiu prontamente, afirmando que no havia registro de nenhum caso de bito relacionado ao consumo do medicamento.

  • 13

    Para o senso comum, a denominao medicamento cobre um grande conjunto de

    produtos com o objetivo de tratar (e, se possvel, curar) estados considerados patolgicos

    pela biomedicina. Mas vamos deixar o senso comum para trs, tentando destacar a partir

    deste grande conjunto de produtos denominados medicamentos uma categoria com

    caractersticas especficas. A partir deste fundo impreciso da realidade (Magnani,

    1996:38) que caracteriza quase tudo o que cerca o contemporneo urbano, desta mancha

    que s parece homognea a um primeiro olhar, tentarei estabelecer uma relao entre o

    recente sucesso de alguns medicamentos e os valores da cultura que cerca este

    consumo. Ateno especial ser dada ao discurso sobre a qualidade de vida, uma

    expresso to freqentemente utilizada quanto pouco definida, a qual voltarei em outros

    momentos deste texto. Como ponto de partida, tomarei as representaes sociais, o

    significado atribudo ao consumo e o tipo de uso de certos medicamentos na cultura

    ocidental contempornea. Vamos mostrar como categorias naturalizadas como doena,

    medicamento (ou remdio) e a idia de cura podem ser ressignificados, dependendo do

    sentido atribudo experincia de desconforto e ao tipo de uso que se faz dos

    medicamentos, mostrando a convivncia de vrias vozes e diferentes significados para

    estas categorias.

    No de hoje que o mercado farmacutico cria alguns produtos que se destacam

    na multido de caixas que povoam as farmcias. Como em qualquer outro segmento que

    envolva produo, concorrncia e consumo, alguns produtos so comunicados com mais

    competncia e encontram consumidores, enquanto outros fracassam. Mas os ltimos

    anos foram marcados por lanamentos que chamaram especialmente a minha ateno:

    refiro-me a alguns produtos que ganharam, nos meios de comunicao de massa, o rtulo

    de lifestyle drugs, ou remdios do estilo de vida. Ouvi pela primeira vez esta expresso

    em uma reportagem da revista poca de 6/9/1999. O tema da reportagem era a plula

    Viagra, que havia sido lanada no Brasil cerca de um ano antes da data de veiculao da

    revista. No meio da reportagem, abre-se um box com o ttulo a auto-estima em alta o

    sucesso dos remdios conhecidos como lifestyle drugs, as drogas do estilo de vida7.

    Neste box, os remdios em destaque eram o Prozac, o Xenical e o Propcia, alm do

    prprio Viagra que aparece como tema central da reportagem.

    O rtulo remdios do estilo de vida interessou-me imensamente, ainda mais pelo

    fato de que a reportagem no trazia uma definio, deixando a categoria em aberto. Ao

  • 14

    tomar contato com esta reportagem, eu estava na fase de complementao de um

    trabalho cujo assunto era justamente o significado que estava sendo atribudo ao

    consumo da plula Viagra8. O que seriam estas outras plulas e qual seria sua funo? Do

    que se trataria este rtulo no qual o Viagra e outras drogas to diferentes em seus

    objetivos se enquadravam?

    Posteriormente, veremos que as expresses qualidade de vida e estilo de vida tem

    presena freqente nos discursos que fazem referncia tanto aos medicamentos Viagra,

    Xenical e Prozac, quanto s doenas ou desconfortos relacionados e eles. Algumas

    vezes, estes discursos parecem estar relacionados idia de que as plulas no so

    usadas somente para combater um mal, desconforto ou doena, mas funcionam como um

    elemento que ajuda o indivduo a recuperar a sua auto-estima, outra expresso que

    aparece com freqncia no material de campo.

    No estou reduzindo a categoria remdios do estilo de vida a estes trs

    produtos9. O rtulo maior do que a minha etnografia, mas ajuda a demarcar um campo

    cultural ligado ao uso de determinados medicamentos. Para esta dissertao,

    particularmente, as marcas selecionadas para compor o ponto de partida da etnografia o

    foram por serem as mais visveis, serem marcas que atingiram grande sucesso no

    mercado de frmacos e terem se tornado uma espcie de termo genrico para a sua linha

    de atuao10.

    De qualquer forma, mesmo que o meu recorte diga respeito a um campo cultural,

    mais do que ao uso de qualquer remdio especfico, escolhas arbitrrias teriam que ser

    feitas.

    7 A traduo do termo em ingls drugs pode deixar alguma ambigidade. A revista optou pelo

    termo drogas. Na minha opinio, traduzir por medicamentos do estilo de vida ou ainda remdios do estilo de vida evita a confuso com as drogas ilcitas. 8 Azize, Rogrio Lopes. Metforas da masculinidade: um estudo de caso com consumidores de

    Viagra. Trabalho de Concluso de curso apresentado como requisito parcial para obteno do grau de bacharel em Cincias Sociais, Universidade Federal de Santa Catarina, 1999. Mimeo. 9 No incluo entre os remdios que marcam o ponto de partida desta etnografia, por exemplo, o

    Propcia, plula citada na mdia como um dos remdios do estilo de vida. Esta plula foi anunciada pelo seu laboratrio (Merck) como a cura da calvcie, sendo o primeiro remdio via oral para o problema. Na minha opinio, o discurso sobre esta plula est limitado a questes estticas; a calvcie no tem o estatuto de doena que o discurso biomdico imprime obesidade, disfuno ertil e depresso. Dei preferncia a plulas que tratam sintomas sobre os quais pode recair o rtulo de doenas. 10

    Desenvolverei esta idia logo a seguir.

  • 15

    I.1 As plulas e a sua funo

    Antes de desenvolver mais o recorte desta pesquisa, faz-se necessrio esclarecer

    o que so estes remdios e que sintomas eles se prope a tratar. Para tanto, farei uso de

    uma srie de informaes veiculadas pela mdia, mas tambm nas bulas e monografias11

    dos medicamentos. Meus conhecimentos em farmacologia e bioqumica esto prximos

    do zero. Para minha sorte, no necessrio explicar o funcionamento dos medicamentos

    utilizando a linguagem biomdica; limito-me a descrever para que eles servem.12

    O Prozac (fluoxetina o elemento ativo), produzido pelo laboratrio Eli Lilly,

    classificado como um antidepressivo. A plula funciona como um inibidor seletivo de

    serotonina, uma das substncias encarregadas de propagar os estmulos nervosos no

    crebro (os neurotransmissores), cujo desequilbrio est associado ao mal ou doena

    conhecida como depresso. Ele a plula mais conhecida entre as novas geraes de

    medicamentos com este fim. Aparentemente, o grande sucesso comercial do Prozac deu-

    se pelo fato desta plula apresentar menos efeitos colaterais do que os seus antecessores

    no combate depresso, os remdios conhecidos como tricclicos13. Dados de 1999

    apontam que as vendas da plula Prozac superaram U$1,6 bilho ao ano, sendo que mais

    de 25 milhes de pessoas no mundo j teriam experimentado o Prozac14.

    O Xenical (orlistat o elemento ativo), produzido pelo laboratrio Roche, foi

    lanado no Brasil no incio de 1999. A plula um medicamento prescrito para controlar o

    peso, sendo til para o tratamento da obesidade e do excesso de peso prejudicial

    sade. Caso o tratamento indicado na bula seja seguido risca, a plula deve ser

    ingerida junto com cada uma das trs refeies principais do dia. Quanto atuao, o

    Xenical age diretamente no sistema digestivo, impedindo que cerca de 30% da gordura

    11

    As monografias so documentos sobre os medicamentos, mais detalhados que as bulas, criados pelos laboratrios farmacuticos e voltados para os profissionais da medicina. A qumica do medicamento descrita com riqueza de detalhes, assim como os testes realizados para medir sua eficcil clnica e outras informaes. 12

    Quando for necessrio, no resta opo a no ser utilizar a terminologia nativa do campo farmacutico. 13

    Esto inseridos nesta categoria o Anafranil e o Tofranil. Estes agem diretamente na produo de serotonina e noradrenalina (neurotransmissores). A serotonina est ligada motivao, energia e ateno, enquanto a noradrenalina est ligada impulsividade, ao apetite e libido. 14

    Estas informaes foram veiculadas na Revista poca, n.68, ano II, 6/09/1999. Infelizmente, no encontrei uma fonte para atualizar estes dados. Uma caixa com 28 plulas, sendo que, em geral, a prescrio mdica de uma plula por dia, sai por R$103 ou cerca de U$43, valores vlidos para janeiro de 2002.

  • 16

    ingerida com a dieta seja absorvida em cada refeio, sendo este excesso eliminado

    com as fezes.15 O sucesso comercial do Xenical, um certo tom de novidade e triunfalismo

    com o qual ele foi lanado no Brasil, est ligado sua forma de atuao: ele no atua no

    sistema nervoso central, mas somente na absoro de gordura no intestino delgado. Esta

    caracterstica o diferencia de outros remdios para emagrecer, muitos deles derivados de

    anfetaminas, conhecidos como bolinhas16. Como o Xenical no funciona como um

    inibidor de apetite, o usurio no perde a fome; apesar disso, o uso da plula deve ser

    acompanhado por uma dieta com baixa ingesto de gorduras, ou o usurio pode ser

    acometido por diarrias, um efeito colateral apontado na bula, e do qual muitos usurios

    reclamam (tanto os entrevistados por mim quanto pelos veculos de comunicao). Aps

    trs meses de lanamento do Xenical no Brasil, uma reportagem informava17 que o

    remdio virou mania nacional (...) chegou para dominar o mercado. Estima-se que a

    venda do ms de janeiro tenha sido em torno de 285 mil caixas18.

    O Viagra, produzido pelo laboratrio Pfizer, uma plula indicada para o

    tratamento da impotncia sexual masculina ou, segundo a bula, trata-se de uma

    teraputica oral para a disfuno ertil. Trata-se do primeiro medicamento oral contra a

    impotncia19. A plula passou a ser comercializada nos EUA em abril de 1998 e chegou s

    farmcias brasileiras em junho deste mesmo ano. Aps trs anos de comercializao no

    Brasil, em 2001 o Viagra passou a ocupar a posio de medicamento mais vendido no

    pas, seguido pelo Cataflan, um tradicional antiinflamatrio.20 O sucesso comercial da

    15

    As informaes sobre o Xenical que esto entre aspas neste pargrafo foram retiradas da bula do remdio. 16

    As verses modernas das anfetaminas so encontrados no mercado sob o nome comercial de Desobesi-M, Inobesin, Nobese AP, Absten, Dasten, Dobesix LP, Fagolipu, Nofagus, Dualid S, Fastium, Hipofagin e Inibex. Na descrio dada pela Revista Veja, estes medicamentos so estimulantes do sistema nervoso central, funcionam como potentes inibidores da fome, sem os riscos dos medicamentos antigos. O Brasil est entre os maiores consumidores mundiais destas drogas. Fonte: Veja Sua Sade, parte integrante da Revista Veja, n.12, ano 34. 17

    Parece-me interessante no adotar uma postura ingnua quanto ao carter puramente informativo das reportagens sobre medicamentos. A confiabilidade destas reportagens, enquanto fonte de informao para uma pesquisa antropolgica vai at certo limite. Estas reportagens, como veremos de forma mais aprofundada no decorrer da dissertao (especialmente nos captulos 2 e 3), servem como um efetivo veculo publicitrio para as marcas das plulas e mesmo para o reforo da idia de que um determinado sintoma uma doena. O limite entre o propagandstico e o noticioso fica difcil de definir. No tenho como confirmar, por exemplo, a informao de que as novas verses das anfetaminas no causam dependncia. 18

    Fonte: Revista Isto , n.1539, 31/03/1999. O Xenical passou a ser comercializado no Brasil no dia 11/01/1999. Um ms de tratamento com Xenical sai ao custo de R$200, ou U$80, valor vlido para janeiro de 2002. 19

    Fonte: Revista poca, 06/09/1999. 20

    Fonte: Jornal Dirio Catarinense, 18/05/2001, a partir de uma pesquisa do Instituto IMSHealth. Segundo esta mesma fonte, o faturamento com este medicamento no Brasil chegou a U$5 milhes

  • 17

    plula pode ser atribudo ao seu alto ndice de eficcia clnica, mas tambm deve ser

    levado em conta que as teraputicas anteriores para tratar o mesmo sintoma eram e

    ainda so consideradas altamente invasivas e desconfortveis. Entre elas, posso citar as

    injees intracavernosas, aplicadas diretamente no pnis pouco antes da relao sexual.

    A caixa de Viagra contendo quatro cpsulas custa em torno de R$60, ou U$25, valor

    vlido para janeiro de 2002.

    Atualmente, as trs plulas das quais falei respondem por uma fatia considervel

    do lucro de seus laboratrios. Mas Viagra, Xenical e Prozac no foram apenas um

    sucesso em termos comerciais. Por motivos que podem passar pela originalidade da

    plula em termos da sua atuao bioqumica, ou pela competncia do laboratrio produtor

    em comunicar o seu produto para os pblicos leigo e especializado, estas marcas ocupam

    um espao muito especial no imaginrio dos indivduos pesquisados. Mesmo com o

    lanamento de outras plulas mais modernas por laboratrios concorrentes, os remdios

    citados continuam, at o momento de concluso desta pesquisa, como lderes de vendas

    em seus segmentos.

    Apesar disto, o meu objeto de pesquisa vai alm destas plulas. verdade que

    todas as pessoas com quem conversei21 so ou j foram usurias de ao menos uma das

    plulas citadas; mas isto no significa que seu itinerrio teraputico seja limitado a este

    uso. Por vrios motivos os usurios podem trocar de plula. Foi raro encontrar algum tipo

    de fidelidade a uma marca em especial. A escolha ser influenciada pelo preo da plula,

    pelo lanamento de novos produtos e outras estratgias de uso e abandono que veremos

    mais tarde.

    Estamos frente a um itinerrio teraputico fluido, que vai alm de uma marca, alm

    do uso de medicamentos e alm mesmo da fronteira das prticas associadas

    biomedicina. Mais do que marcas especficas, interessa-me a cultura que cerca o

    consumo destes medicamentos, o sentido atribudo ao seu consumo e o cruzamento

    desta prtica teraputica com outras culturas e hbitos que circulam no espao urbano

    ocidental contemporneo. So estes dados que vo propiciar o estabelecimento de

    fronteiras simblicas22 que marcam tambm os limites desta etnografia.

    no ano da pesquisa, resultado que est convencendo os produtores a comear a fabric-lo no Brasil. 21

    Falarei no prximo captulo sobre o que compe os dados etnogrficos, a metodologia utilizada para colet-los e as dificuldades encontradas em campo. 22

    Cf. Velho, 1981:16.

  • 18

    Nesta dissertao, trabalho com a hiptese de que os usurios das plulas Viagra,

    Prozac, Xenical e similares dividem um campo semntico comum, um idioma que faz uso

    freqente e peculiar das idias de sade e qualidade de vida. Mais do que uma hiptese,

    a idia de campo semntico serviu como uma espcie de roteiro para o trabalho de

    campo, ajudando a vislumbrar pontos em comum entre relatos que se oferecem como

    projetos individuais a um primeiro olhar. Os usos que so feitos destas plulas constituem

    processos imersos e mediados por contextos culturais especficos (Langdon). A idia de

    campo semntico pode ser til para ajudar na definio deste contexto. Neste sentido,

    uma influncia importante vem da forma como Duarte (1986) utilizou esta idia. O autor

    vai falar em campo, esfera e ainda classificao semntica para se referir a um rico e

    variado vocabulrio ligado ao radical nervos entre as classes trabalhadoras urbanas, se

    comparado a um quadro mais simples do vocabulrio que designa experincias de bem-

    estar entre estas mesmas classes (idem:31). Uma esfera semntica pode funcionar como

    uma boa pista etnogrfica.23

    Mas, se estamos falando aqui de estratgias teraputicas fludas e ricas em

    interconexes, onde nem sempre encontrei fidelidade a apenas uma linha de tratamento,

    e ainda menos fidelidade a uma ou outra plula em especial, por que o destaque dado a

    certas marcas como Viagra, Prozac e Xenical? A resposta no simples, mas o caso j

    tem antecedentes no Brasil.

    A simples meno destes nomes j remete a todo um universo ligado s doenas

    com as quais estes medicamentos esto relacionados (se os sintomas forem entendidos

    como doenas). Estas so marcas que ocupam um lugar muito especial na cultura dos

    indivduos de classe mdia com quem conversei. Algumas reportagens e notcias

    coletadas em revistas e jornais de circulao nacional podem ilustrar a idia que tento

    defender aqui. A seleo brasileira de futebol, durante o ano de 2001, mas no somente,

    vinha tendo uma seqncia de maus resultados, inclusive contra adversrios outrora

    considerados bem mais fracos. No dia 9 de agosto daquele ano, o time venceu a seleo

    do Panam por um placar considerado elstico para a modalidade: 5 x 0. No dia seguinte,

    o caderno de esportes do jornal Folha de So Paulo, que, como se sabe, est entre os

    mais importantes do pas, trazia como manchete principal a frase Meia hora de Prozac-

    23

    Outros autores importantes fizeram uso desta noo de campo semntico como uma ferramenta de anlise. Velho (1999:14) vai fazer uso do conceito de rede de significados, a partir do conceito estabelecido por Geertz, para mostrar como uma linguagem comum pode surgir mesmo em ambientes heterogneos, como a esquina de uma grande metrpole; Good (1977) faz uso da

  • 19

    tenso, Brasil leva uma hora para abrir o placar e marca cinco gols em 30 minutos.

    Segundo a reportagem, a seleo teria sido dominada, apesar do resultado, por muito

    estresse e afobao; segundo o tcnico, com o resultado a confiana teria voltado ao

    time.

    mais do que bvio que a equipe como um todo no havia sido tratada com a

    plula que aparece na manchete ou com qualquer outro antidepressivo. Mas o uso do

    nome da plula, em um espao que sequer est dedicado ao tema sade ou algum

    congnere, mostra duas coisas: em primeiro lugar, que a depresso, doena que o

    remdio se prope a tratar, j uma categoria apropriada por um pblico leigo, seno a

    manchete sequer seria entendida24; em segundo lugar, que a plula Prozac ocupa um

    lugar especial em termos de reconhecimento pblico, no apenas entre os profissionais

    da biomedicina, do contrrio nome estaria ocupando aquele espao. Prozac, ento, vira

    sinnimo de antidepressivo, num fenmeno equivalente ao j ocorrido com outros

    produtos no Brasil, como nos casos em que ns tiramos um Xerox em vez de uma

    fotocpia, compramos Bombril em vez de palha de ao, mesmo que ela seja de outra

    marca, alm de fazermos a barba com uma Gillette, em vez de usarmos uma simples

    lmina de barbear.

    Aps o lanamento do Prozac, outras marcas de antidepressivos j surgiram no

    mercado, seno com o mesmo tom de triunfalismo em sua divulgao, mas com

    promessas de at maior competncia qumica.25 Apesar disso, o Prozac continua a ser

    uma marca de referncia para antidepressivos, ao menos para o pblico leigo. Isso traz a

    possibilidade de que a fora de um medicamento no apenas definida pela novidade em

    seu padro de funcionamento bioqumico. O Prozac marca uma espcie de campo

    cultural e ganha um significado muito maior do que a plula em si. Aparentemente, por

    expresso cadeia semntica, para analisar as articulaes entre uma folkillness iraniana (o mal do corao) e outros pontos da cultura local, como gnero. 24

    Um anncio publicitrio assinado pelo Governo da Bahia com o objetivo de incentivar o turismo para este Estado acabou por mostrar tambm uma face desta popularizao da depresso e seus remdios entre o pblico leigo. Este anncio todo ocupado pela foto da orla de uma praia deserta, mar azul de um lado, verde das plantas do outro. A parte inferior do anncio tapada por uma faixa preta, onde se l Para lembrar que um antidepressivo, colocamos esta tarja preta. O anncio de pgina dupla foi veiculado em grandes revistas de circulao nacional, como parte integrante de uma campanha publicitria maior. 25

    Uma delas, o Ixel, fabricado pelo laboratrio Roche, foi divulgado com destaque em uma reportagem na Revista Veja, n.35, ano 34. O remdio anunciado como sendo menos agressivo e mais potente do que o Prozac. Antes do surgimento do Ixel nas farmcias, encontrei um anncio publicitrio assinado pelo Laboratrio Roche, na revista Dilogo Mdico n. 3 ano 16, com a chamada Aguarde o novo antidepressivo da Roche. Esta publicao voltada para o pblico

  • 20

    mais novidades que surjam no mercado de medicamentos antidepressivos, esta carga

    simblica permanece.

    Outros exemplos podem ser citados para demonstrar o poder semntico que estas

    marcas criaram, sendo que uma das causas pode ser atribuda super-exposio dos

    medicamentos nos meios de comunicao de massa. Num caso semelhante ao anterior,

    chamou minha ateno a manchete do caderno Folha Equilbrio, do mesmo jornal Folha

    de So Paulo, veiculado em 14/06/01. A reportagem de capa anunciava que novas

    drogas contra a impotncia, de ao mais rpida e duradoura, chegam s farmcias a

    partir do fim do ano. A manchete fala por si: Novos Viagras vm a26. O nome dos novos

    medicamentos, tema da reportagem, sequer aparece na capa, mas to somente no corpo

    da reportagem.

    Mais do que sinnimo de antidepressivo, remdio contra impotncia ou para

    controle da obesidade, Prozac, Viagra e Xenical tornaram-se sinnimos, cada um a sua

    maneira, de um certo bem-estar.

    A popularidade destas trs plulas reflete-se no material encontrado em campo.

    Boa parte dos anncios publicitrios, reportagens, informativos e folhetos recolhidos

    fazem referncia a estas plulas mais conhecidas ou tm conexo com elas, o que as

    torna um objeto etnogrfico importante para este trabalho. Sem dvida, trata-se de

    marcas centrais em seus segmentos em termos simblicos. Com isso, os nomes Prozac,

    Viagra e Xenical passam a transcender o seu significado literal. Some-se a isto o fato de

    que o discurso biomdico oficial, que caracteriza como doenas a depresso, a disfuno

    ertil e a obesidade, tem ampla divulgao entre o pblico leigo. Mesmo que a

    patologizao destes sintomas no se verifique com tanta fora entre os usurios que

    entrevistei, como veremos a seguir, eles compartilham da opinio de que se trata de

    estados que recebem um sinal negativo.

    Apesar da fora destas marcas, importante salientar ento que este no um

    trabalho sobre elas. A dissertao no se limita a tratar das representaes sobre o

    consumo somente de Prozac, Viagra e Xenical, j que o interesse recai sobre todo um

    campo cultural, do qual estas plulas so apenas uma parte. Enquanto esta pesquisa

    estava em desenvolvimento, outros medicamentos com um perfil semelhante foram

    especializado, sendo distribuda gratuitamente para os mdicos. Como se v, a divulgao de um novo medicamento ocorre em vrias frentes, fazendo uso de diferentes veculos e linguagens. 26

    Numa outra reportagem de capa, desta vez na revista Manchete de 27/03/99, lia-se Vem a o super-Viagra dois novos medicamentos, o Vasomax e a Regitina, chegam ao Brasil em trs

  • 21

    lanados. O Viagra tem a concorrncia de outras marcas como o Vasomax, a Regitina e o

    Uprima, fabricados por outros laboratrios; o Prozac tem a concorrncia de outras marcas

    como o Ixel, anunciado como um medicamento menos agressivo e mais potente do que

    o Prozac; medicamentos como o Reductil, para controle do apetite, tambm aparecem no

    trabalho de campo, tanto na fala de usurios como entre o material de publicidade

    recolhido e analisado.27

    I.2 Diferentes, mas semelhantes: onde se cruzam as plulas?

    Em um primeiro momento, estabelecer os limites do meu trabalho de campo

    mostrou ser o maior desafio da dissertao. Tentarei mostrar neste tpico qual o fio

    invisvel que une o consumo de medicamentos to diferentes entre si em um mesmo

    campo cultural, assumindo que todas as escolhas feitas aqui no poderiam ser outra

    coisa seno arbitrrias.

    Limitando-nos a um iderio que pode ser considerado de classe mdia,

    pensemos no significado que vem sendo atribudo sade. Um dos fios condutores deste

    trabalho a idia de que contemporaneamente o significado de sade j no se limita

    mais ao de um vocbulo que se ope a um estado de doena. Na verdade, este

    entendimento no novo. O prprio conceito de sade formulado pela OMS

    Organizao Mundial da Sade em 1948, ano da sua fundao, j traz esta concepo:

    sade o mais completo bem estar fsico, mental e social, e no apenas a ausncia de

    enfermidade. A amplitude dada ao conceito no sem conseqncias.

    Mais de meio sculo depois, este conceito tcnico parece ter sido absorvido por

    uma razovel parcela da populao no ocidente, em especial aquela que tem acesso aos

    produtos e servios que podem ser chamados de sade28. Como o estado de sade j

    meses e prometem acabar de vez com a impotncia. Exemplos semelhantes a estes se multiplicam entre as peas coletadas em campo. 27

    Vale dizer ainda que a pesquisa no se limita a outros medicamentos com o mesmo princpio ativo do Viagra, Prozac e Xenical. Por isso, quando falar daqui por diante em Viagra, Prozac, Xenical e similares, a expresso similares significa to somente que incluo neste grupo tambm outros medicamentos utilizados com o mesmo fim, a saber, o controle das doenas depresso, obesidade e disfuno ertil; logo, no deve ser confundido com o uso feito pelos laboratrios farmacuticos, para quem similar um remdio com o mesmo princpio ativo. 28

    Refiro-me especialmente faixa considerada de classe mdia, com acesso, no caso brasileiro, a planos de sade privados e maior possibilidade de consumo de medicamentos, especialmente aqueles mais caros. A idia de produtos de sade vai alm dos j citados: poderiam ser enquadrados neste rtulo tambm a oferta variada de tcnicas ligadas a atividades fsicas, assim

  • 22

    no corresponde a apenas um estado de no-enfermidade, o conceito torna-se ainda

    mais plstico. bem possvel que uma pesquisa entre o pblico leigo em busca de uma

    definio exata para o que seria o mais completo bem estar fsico, mental e social

    chegasse a resultados muito variados e difceis de resumir. O conceito de sade chega

    nos dias de hoje hipertrofiado (Lefvre, 1991), com uma grande possibilidade de usos,

    acompanhado por outras noes como a de qualidade de vida e estilo de vida, que

    podem ser situadas no mesmo campo cultural. Ser o outro da doena, ser um estado de

    no-enfermidade, agora apenas um dos significados que a idia de sade pode ter.

    Sade e qualidade de vida marcam um campo semntico to cheio de significao

    quanto na impresso inicial vago em seus contornos, para utilizar uma leitura de

    Duarte (1986:9) sobre o campo semntico em torno dos nervos entre as classes

    trabalhadoras. Se considerarmos a quantidade de novos produtos lanados no mercado

    (sejam eles medicamentos ou no) que podem tratar desconfortos ou promover um

    estado ainda mais completo de sade, este volume de significaes possveis fica ainda

    maior.

    A sade torna-se ela mesma um produto a ser adquirido, simbolizada em

    medicamentos, em alimentos naturais, em atividades que fazem bem ao corpo em

    termos genricos. Provocar bem-estar passa a ser um argumento to utilizado para a

    venda e compra de produtos de sade quanto reverter um mal-estar.

    Tanto estilo de vida quanto qualidade de vida sero tratados nesta dissertao

    como termos nativos. O seu uso generalizado dentro do sistema cultural biomdico no

    qual situei o eixo central desta pesquisa, sendo utilizado tanto pelo pblico leigo quanto

    pelo especializado. Definir estes conceitos no uma tarefa fcil. Assim como o conceito

    contemporneo de sade que destaquei aqui, estas expresses parecem cheias de

    significados possveis, adaptvel a um sem nmero de situaes. Diz-se que o consumo

    do medicamento X pode melhorar a sua qualidade de vida; mas diz-se tambm que

    dedetizar a sua casa pelo sistema Y pode melhorar a sua qualidade de vida; o mesmo

    vale para o consumo do biscoito W. Buscar apreender o sentido atribudo a esta

    expresso uma das tarefas a que me proponho neste texto.

    Mais tarde, veremos que estas noes so utilizadas com freqncia pelos

    laboratrios farmacuticos nas peas informativas e publicitrias onde se divulga a

    existncia, o estatuto e a possvel cura das doenas depresso, obesidade e disfuno

    como produtos que prometem promover sade, como iogurtes, produtos light em geral, alimentos vitaminados e todos os alimentos que vm sendo chamados de funcionais.

  • 23

    ertil, alm dos medicamentos associados. Por ora, quero apenas destacar que estas

    expresses marcam um campo semntico que parecem funcionar como um elo que

    define os limites de uma cultura da sade, da qual os medicamentos aqui colocados em

    perspectiva mostram uma face.

    I.3 Como cheguei at aqui

    Durante o segundo semestre de 1999, realizei uma pesquisa que tinha como

    sujeitos-informantes consumidores da plula Viagra e mdicos urologistas e andrologistas,

    e como preocupao central perceber qual o significado atribudo ao consumo desta

    plula. Interessava-me tambm naquela ocasio o campo cultural29 em volta deste

    produto, sendo que o enfoque mais especfico estava sobre a questo da masculinidade,

    uma sub-rea vinculada aos estudos de gnero.

    O Viagra foi lanado no Brasil em abril de 1998, mas sua presena j era percebida

    antes disso, com um bom volume de espao dedicado ao medicamento nos meios de

    comunicao de massa impressos e eletrnicos, num debate temperado por manchetes

    como A plula do prazer, A plula da potncia, O melhor amigo do homem, Ufa! At

    que enfim.... A adeso plula foi grande: pouco mais de um ano depois, em setembro

    de 99, uma reportagem informava que ao longo dos 12 primeiros meses de

    comercializao no Brasil, foi vendida uma mdia de 13.698 caixas da plula por dia30. Na

    poca, o preo de uma caixa com quatro plulas estava em torno de R$54.

    Um dos dados de campo que mais chamou a minha ateno durante a pesquisa foi

    o fato de que alguns conceitos que eu tinha como dados a priori eram colocados em

    perspectiva. Em geral, os entrevistados afirmavam que no tinham uma doena, que o

    Viagra no era usado como um remdio, e, conseqentemente, que no havia nada a ser

    curado. Estas expresses apareciam nas entrevistas com usurios acompanhadas de

    uma negativa, o que contrastava com o discurso dos mdicos, que tendia a patologizar o

    processo. Mas, naquele momento, no cheguei a dialogar com a rea de antropologia da

    29

    Com isso quero dizer que as entrevistas de campo com usurios e uro-andrologistas eram apenas parte dos dados coletados. Tambm coletei e analisei a campanha publicitria veiculada pelo laboratrio farmacutico fabricante, peas de marketing direto voltadas para os mdicos, e o discurso na mdia. Esta pesquisa resultou em um trabalho apresentado para a obteno do grau de bacharel em Cincias Sociais, pela Universidade Federal de Santa Catarina. 30

    Fonte: Revista poca, n. 69, ano II, 6 de setembro de 1999.

  • 24

    sade, com a qual eu ainda no tinha tido contato. Abordar esta interface ficou como um

    n a ser desfeito, ou melhor, pesquisado.

    Poucos meses depois de terminada a graduao em Cincias Sociais, fui aprovado

    para o mestrado em Antropologia com um projeto que propunha uma pesquisa mais

    abrangente, que inclua o Viagra entre o que vinha sendo chamado nos meios de

    comunicao de massa de lifestyle drugs, os remdios do estilo de vida. Este termo

    inclua tambm outros produtos farmacuticos, como o Prozac e o Xenical.

    A partir deste interesse, dediquei-me a construir um objeto de pesquisa cujas

    fronteiras estivessem definidas por um argumento mais forte do que um rtulo como

    remdios do estilo de vida, um termo nativo para o qual no encontrei uma definio

    exata.

    I.4 Estrutura da dissertao

    Mesmo sabendo que as escolhas feitas durante a confeco de um texto

    acadmico so arbitrrias, creio que vale a pena descrever e justificar a forma como este

    trabalho est organizado. Se classificar j uma forma de analisar, ento a forma como o

    texto foi distribudo em captulos j pode dizer muito sobre as pginas a seguir.

    O captulo 1 vai trazer um exerccio de auto-distanciamento, no em relao a

    uma cultura ou a uma experincia alheia, mas a algo vivido por mim mesmo durante a

    experincia de campo. Relato a forma como fui medicado durante um certo perodo do

    ano de 2001, poca em que foi realizada esta pesquisa. Os personagens do antroplogo

    buscando ajuda e informaes junto aos mdicos, e o do paciente fazendo queixas e

    sendo medicalizado por um mdico acabaram por se misturar. Enquanto, naquele

    momento, a experincia mostrou-se desconfortvel, posteriormente acabou funcionando

    como uma espcie de experincia compartilhada que me ajudou a superar algumas

    deficincias de aproximao e compreenso em relao cultura a que me propus

    analisar.

    Ainda no captulo 1, comento sobre os aspectos tcnicos da minha trajetria de

    campo, dificuldades no contato com os mdicos e usurios e coleta de material

    etnogrfico. O campo acaba por ser construdo atravs da formao de uma rede de

    informantes, que surge via contatos pessoais e no via o contato com os mdicos, como

    inicialmente previsto.

  • 25

    No captulo 2, dou incio ao relato da experincia etnogrfica propriamente dita.

    Neste espao, procuro realizar uma classificao das diferentes vozes do campo

    biomdico oficial, definido aqui como composto pelos laboratrios farmacuticos

    fabricantes das plulas e pelos mdicos. Procuro salientar as diferenas que foram

    percebidas entre o discurso voltado para o pblico leigo, no-usurio das plulas, por um

    lado, e o discurso voltado para os mdicos e usurios das plulas, por outro. Para o

    primeiro grupo, mostro que o destaque dado para uma divulgao da doena em si,

    seus sintomas e tratamentos possveis; j para o segundo, a divulgao de produtos

    especficos e comparaes entre diferentes elementos ativos de diferentes plulas

    ganham destaque. Ainda no captulo 2, uma sesso especial destinada a uma

    apresentao dos testes auto-aplicveis, uma regularidade encontrada durante o trabalho

    de campo. Trata-se de testes e questionrios que, atravs de seus resultados, podem

    definir os limites entre estados normais e patolgicos.

    O captulo 3, por sua vez, o espao destinado para os relatos dos usurios das

    plulas. Tento mostrar pontos em comum, mas tambm as especificidades de cada uso.

    Merece ser sublinhada a forma como categorias naturalizadas no discurso biomdico so

    tratadas pelos usurios: boa parte deles negou ativamente, ou aps terem ouvido de mim,

    categorias como doena, remdio e cura ao se referirem ao seu prprio estado fsico;

    um discurso no-patologizador ou que, ao menos, coloca esta questo em perspectiva,

    articulando uma abordagem patolgica com um relato mais centrado em uma histria

    peculiar de si, ficando para segundo plano um relato sobre a doena e o remdio.

    Algumas observaes sobre o itinerrio teraputico dos usurios, assim como sobre as

    estratgias de uso e abandono das plulas, tambm tm espao aqui. Em respeito

    privacidade dos informantes que tornaram esta pesquisa possvel, todos os nomes e

    informaes que pudessem identific-los foram trocados ou omitidos.

    No captulo 4, permito-me um vo terico, articulando a etnografia apresentada

    nos captulos anteriores. Fao uso da idia de circularidade cultural para mostrar que o

    discurso dos agentes da biomedicina (mdicos e indstria farmacutica) e o discurso dos

    usurios apresentam pontos de articulao e mtua influncia, no podendo ser

    analisados de forma maniquesta. Neste mesmo captulo, procuro mostrar que a diferena

    entre estes dois discursos pode ser lida luz da diferena entre mitos coletivos e mitos

    individuais.

  • 26

    Ao final, em poucas pginas conclusivas, procuro mostrar as possveis

    articulaes futuras que podem dar origem a artigos ou a uma continuao deste trabalho

    em uma nova etapa de ps-graduao.

    Sobre esta diviso dos captulos, principalmente no que se refere aos captulos 2 e

    3, resta dizer que se trata de um artifcio metodolgico implementado com o objetivo de

    organizar os dados de campo e viabilizar sua apresentao em um espao to curto

    quanto o que tenho aqui. No gostaria de ver esta classificao entendida como

    traduzindo uma viso de mundo maniquesta ou mesmo simplista; em vez disso, procurei

    realizar escolhas que no somente facilitassem a minha anlise, mas tambm dessem um

    sentido ao texto e leitura. Na verdade, a etnografia apresentada a seguir est assim

    dividida por opo do autor e no por refletir uma fronteira de claros contornos que o

    campo tivesse me mostrado; o discurso sbio e o discurso leigo sobre os remdios do

    estilo de vida esto em constante atrito e contato, influenciando um ao outro e provocando

    uma constante negociao dos sentidos atribudos s categorias doena, remdio e cura.

  • Captulo 1

    Um campo diludo:

    os caminhos metodolgicos em uma

    antropologia no contemporneo urbano

    Eu sou eu e as minhas circunstncias. Ortega y Gasset

  • 28

    1.1 Eu era nativo e no sabia: minha experincia com

    medicamentos durante o mestrado

    O que significa a velha estorinha de que antroplogos sofisticados escolhem sociedades sofisticadas para estudar, os mais ansiados trabalham com culturas onde a ansiedade dominante? Gilberto Velho, 1987:129

    Entre os meses de maro e maio de 2001, j completados os crditos do

    mestrado, e j dentro do perodo previsto em meu cronograma inicial para realizar o

    trabalho de campo, fui tomado por um estado de desnimo. Pouco trabalhei, quase

    nada escrevi, pouco evolu em direo minha dissertao; passei boa parte deste

    perodo pensando em como sair dele e refletindo sobre o que havia me levado at ali,

    tentando entender qual seria a natureza daquela crise, termo que utilizo na falta de

    denominao melhor ou mais exata. Mesmo posteriormente, passado aquele estado

    de (des)nimo e quando j estava escrevendo a dissertao, ainda no havia

    encontrado uma resposta satisfatria que explicasse o porqu da situao; ou

    simplesmente cansei de procur-la.

    menos o meu estado de nimo e mais a minha experincia especfica como

    paciente e consumidor de medicamentos que pretendo relatar neste captulo.

    Passados em torno de 45 dias improdutivos no que se refere ao mestrado, realizei

    uma consulta como paciente junto a um gerontologista31, com o qual eu e outras

    pessoas da minha famlia j haviam se consultado em outras ocasies. Este mdico

    era considerado por meus familiares, de forma unnime, um profissional competente,

    atencioso, sendo uma das caractersticas que mais chamavam a ateno de todos o

    fato de que as consultas eram demoradas, feitas aparentemente sem nenhuma

    pressa, com longos questionamentos e requisio de vrios exames. No custa nada

    fazer um check-up geral de vez em quando era a frase de incentivo que eu ouvia de

    tempos em tempos dos meus familiares, na tentativa de convencer-me a visitar este

    mdico, visto que eu no tinha problema de sade algum para relatar.

    31 Da forma como percebi a experincia de membros da minha famlia, alm de relatos de outros pacientes do mesmo mdico, o consultrio de gerontologia j no mais espao exclusivo de pessoas consideradas idosas. H uma tendncia de que este se torne um espao de tratamento do estado de envelhecimento de cada qual, analisando como est a sade biolgica em relao idade cronolgica. Fazer um check-up geral parece ser uma expresso de uso comum, que designa um conjunto de exames que embasa o diagnstico e as concluses do mdico. Pessoas de qualquer idade passam a ser pacientes em potencial: na minha casa, trs geraes diferentes (na casa dos oitenta, cinqenta e vinte anos) j se consultaram com este profissional, alm de outros amigos e amigas da famlia.

  • 29

    Na situao especfica a qual me refiro, meu irmo tinha uma consulta

    marcada, mas pediu-me para desmarc-la porque teria que viajar. Pensei ento em

    aproveitar este horrio para mim mesmo, tendo um duplo objetivo em mente: pedir

    ajuda para encontrar usurios-informantes e relatar o meu estado fsico. Minha

    esperana era a de que este mdico poderia ser de grande ajuda no que diz respeito

    pesquisa, visto j haver um contato pessoal e familiar previamente estabelecido. No

    consultrio, o meu discurso inverteu a ordem das queixas; afinal, no se justificava

    marcar uma consulta para pedir ajuda para a minha pesquisa, e nem me parecia

    eticamente correto, j que esta ateno deveria ser conquistada comigo ocupando o

    papel de antroplogo, no de paciente. Foram dois diferentes momentos de queixa:

    primeiro, reclamar da falta de energia e desnimo, e de como isso estava

    atrapalhando o meu ritmo de produo e atrasando o cronograma de trabalho; depois,

    reclamar do trabalho em si, comentando sobre o seu teor, a falta de informantes, e

    fazendo a seguir um pedido de ajuda. importante salientar este duplo momento da

    consulta, j que dificilmente eu iria a um mdico relatar somente um estado de

    desnimo (j que, na minha opinio pessoal, minha situao estava longe do que

    poderia ser considerado um estado patolgico, constituindo um perodo de melancolia

    normal combinado com uma baixa disposio para o trabalho).

    Imaginava que este seria um estado passageiro, uma reao do corpo a uma

    fase atribulada, e que logo eu voltaria ao que eu considero ser o meu ritmo usual de

    produo. Mas havia um problema cuja urgncia eu colocava acima de minha

    preocupao com o estado fsico (no sentido mais amplo do termo, abrangendo

    tambm a disposio intelectual e psicolgica): o tempo estava passando, eu estava

    atrasado em relao ao cronograma de trabalho previsto no projeto, e mais um ou dois

    meses improdutivos iriam comprometer o prazo de defesa desta dissertao. Durante

    este perodo, as horas pareciam voar, e os dias iam junto com elas. Como, em nossa

    cultura, tempo algo que se tem, ou se perde, ou ainda algo que cabe a cada

    pessoa organizar o seu, sentia-me responsvel pelo passar de horas em que nada

    parecia acontecer. A percepo subjetiva que ns temos do passar do tempo pode ser

    uma companheira desagradvel e exigente.

    Comentei durante a consulta alguns fatos pessoais que poderiam ter levado a

    um estado de tristeza e desnimo: uma morte na famlia, o fim de um relacionamento

    afetivo, o trmino dos crditos na ps-graduao e das obrigaes com hora marcada,

    a obrigao de dar incio a um trabalho de longo prazo que se mostrava complicado.

    Aps este breve relato inicial, o mdico fez uma srie de perguntas, emitidas em

    blocos, s quais eu respondia positivamente, nem sempre com grande convico. Em

    um mesmo agrupamento de questes, sem intervalos, eram abordados temas de

  • 30

    contedo diverso, como o meu estado geral de disposio, passando pela vontade de

    trabalhar, sono e o apetite, se estava com dificuldade de concentrao, como andava

    a auto-estima, se acordava bem, etc. Era um discurso articulado, que ligava um tema

    ao outro, sem intervalos.32 Os questionamentos eram diversos e variados em seu

    contedo, o que contrastava com as minhas respostas curtas. Em alguns momentos, o

    tom do mdico parecia mais com o de uma afirmao que pedia uma confirmao, do

    que com o de um questionamento em busca de uma resposta.

    A situao pela qual passei, e que posteriormente se tornou alvo de reflexo

    tanto do paciente quanto do antroplogo, contrasta com a forma como Maluf interpreta

    a relao entre terapeuta e paciente nas medicinas doces ou terapias alternativas:

    "O dilogo entre paciente e terapeuta adquire dinmicas diferentes segundo o tipo de terapia. Essas prticas possuem, no entanto, em comum a importncia dada expresso do paciente ou daquele que participa do trabalho espiritual. A performance do terapeuta consiste, de um certo modo, em

    engajar seu paciente na conversao". (Maluf, 1996)

    Minha experincia neste consultrio parece mais prxima da forma como

    Foucault descreve o estatuto do paciente dentro de diferentes espaos da medicina

    oficial. Segundo ele,

    "... no hospital, o doente sujeito de sua doena, o que significa que ele constitui um caso; na clnica, onde se trata apenas de exemplo, o doente o acidente de sua doena, o objeto transitrio de que ela se apropriou. (...) A clnica no um instrumento para descobrir uma verdade ainda desconhecida; uma determinada maneira de dispor a verdade j adquirida e de apresent-la para que ela se desvele sistematicamente". (grifos do autor) (Foucault, 1980:66)33

    Tenho dvidas sobre se a diferena estabelecida pelo autor entre o estatuto do

    paciente na clnica e no hospital encontra equivalente na prtica contempornea, mas

    no tenho ferramentas para ensejar um debate neste momento. De qualquer forma,

    pensar o espao da clnica como um local onde se aplica um conhecimento e uma

    classificao j previamente estabelecidos, enquadrando os pacientes em um dos

    diagnsticos pr-existentes, cujo nmero finito, explicaria o desequilbrio entre o

    espao cedido para o meu relato e para o desempenho do mdico. A performance do

    mdico consistia em enquadrar-me de forma competente e convincente num

    32 Posteriormente, uma amiga que visitou o mesmo mdico contou-me, em tom jocoso, que ela no conseguia falar na consulta, referindo-se ao fato de que o mdico falava muito, e nem sempre com um vocabulrio inteligvel.

  • 31

    diagnstico, enquanto a minha parecia consistir em um papel de coadjuvante,

    confirmando um conjunto de sintomas previamente conhecidos34.35

    Voltando cena de minha consulta, comentei com o mdico que no gostava

    de consumir medicamentos, em especial quando se tratava de intervenes mais

    duras, como eu caracterizei o tratamento com antidepressivos. Alm disso, no

    achava que fosse o caso, visto que aquele desnimo era uma exceo, e no um

    estado ao qual eu retornava ciclicamente. O mdico concordou que eu estava longe

    de um estado depressivo, relatando que depresso hoje uma doena bem definida,

    que pode ser identificada, diagnosticada e tratada. Apesar disso, ele deu-me uma

    receita na qual constavam trs itens, afirmando que se tratava de um remdio

    fitoterpico36 com funo antidepressiva (Hiperex, elemento ativo Hypericum

    perforatum), outro um equilibrador geral das funes do corpo (Arcalion, elemento

    ativo sulbutiamina), e um terceiro era eliminador de toxinas, indicado para quem

    costuma praticar exerccios fsicos (Taurargin, base de aspartato de arginina e

    taurina37)38, atividade que eu mantenho regularmente. O argumento de que se tratava

    de um remdio fitoterpico, no caso do Hiperex, fez com que eu aceitasse melhor a

    indicao, j que ficava caracterizada uma interveno mais branda. Analisando

    depois do acontecido, este me pareceu ser o momento em que a possibilidade de

    medicalizao e o teor deste processo estavam sendo negociados, sendo que o

    paciente teve seu quinho de participao. O mesmo no deixa de valer para o

    momento do diagnstico: eu j cheguei ao consultrio com um discurso que negava

    um quadro de depresso.

    Durante vrios dias aps esta consulta, mantive a receita no bolso e no

    comprei os remdios. Por um lado, eu tinha medo do que, no incio em tom de

    33 No captulo 2, retomarei a discusso sobre o estatuto do paciente e da doena junto ao campo da biomedicina. 34 Em mais de um momento no decorrer da dissertao, a diviso de poder entre mdico e paciente no que toca o diagnstico e a medicalizao ser abordada. Ver, em especial, o tpico sobre os testes auto-aplicveis no captulo 2 deste texto. 35 Posteriormente, soube que o mesmo mdico havia indicado o mesmo remdio (Hiperex) para a minha av, cujo marido (meu av) havia falecido h pouco tempo. Certo dia, minha me, reclamando que andava um pouco desanimada, perguntou se no poderia consumir o que restara da minha caixa, sendo que isto no era uma recomendao do mdico. 36 Segundo um folheto sobre fitoterpicos coletado na sala de espera de um consultrio, tratam-se de medicamentos compostos exclusivamente por substncias derivadas de plantas ou partes de plantas. 37 Chamou minha ateno o fato de que a Taurina o mesmo elemento (uma protena, pelo que eu sei) presente nas bebidas energticas cujo consumo entrou em moda recentemente no pas, na linha do Redbull, Flash power e outros. O consumo destas bebidas, misturadas com destilados como o Usque, Vodca ou Tequila, comum nos bares em Florianpolis. Nestes locais, uma lata com X ml custa em torno de R$7,00. 38 Outras drogas com frmula semelhante parecem estar ganhando visibilidade. Na Folha de So Paulo de 29/10/01, um produto chamado Targifor C (aspartato de arginina e acido ascrbico) anuncia que combate a fadiga, melhora a disposio e ainda aumenta as resistncias naturais do organismo, seguido pelo slogan voc mais animado. O anncio foi veiculado na Folha Teen, caderno especial do jornal voltado para leitura de adolescentes, e usava como estratgia de seduo o bagao em que pode ficar um vestibulando.

  • 32

    jocosidade, eu chamei de tornar-me nativo39. Afinal, tratava-se de remdios com o

    objetivo de melhorar o desempenho psquico, fsico e intelectual (segundo as bulas), o

    que no parecia estar to longe do objetivo que move os meus informantes. Por outro

    lado, cogitei o fato de que a experincia de consumo poderia de alguma forma

    enriquecer o trabalho de pesquisa. Mesmo assim, eu gostaria de vencer aquela fase

    sem ajudas deste gnero, ouvindo a minha subjetividade, entendendo os porqus por

    trs do processo. Mas, como j disse, no havia tempo a perder.

    Meu objeto de pesquisa no estava mais somente em volta, mas, literalmente,

    dentro de mim. Apesar da minha plula antidepressiva ser classificada como um

    fitoterpico, senti-me envolto pelo mesmo sistema de queixa-diagnstico-remdio-

    expectativa de cura dos meus informantes (apesar de, como veremos no decorrer

    deste texto, alguns destes conceitos no serem usados pelos consumidores que

    entrevistei). Aps um ms, conversando com o mdico na consulta de retorno,

    comentei que me sentia muito melhor. Este acaba por ser um momento em que o

    mdico tem a oportunidade de verificar a eficcia da sua ao profissional, e tambm

    a do remdio indicado. Lembro-me que, logo na minha entrada no consultrio, o

    mdico fez aluso ao fato do meu semblante transparecer uma melhor disposio.

    Esta observao no foi baseada em nenhuma espcie de exame bioqumico, j que

    nenhum exame havia sido requisitado nesta ocasio, mas em uma comparao entre

    a minha performance nesta consulta de retorno e na de um ms antes.

    Aps esta consulta de retorno, seguindo as indicaes do mdico, cortei o uso

    das plulas. Apesar disso, guardo as caixas at hoje em casa, como uma espcie de

    recordao40, e tambm porque achei que as informaes contidas nas bulas

    poderiam ser teis posteriormente, na redao da dissertao. Relendo-as, j na fase

    de escrita deste texto, encontrei os seguintes dados: Arcalion um medicamento do

    39 Voltarei a este assunto em breve. 40 Uma amiga, antroploga, riu da situao e fez um comentrio que me limito a reproduzir: Ou as caixas das plulas ocupam o lugar de totens modernos, ou os xams que garantiram a tua cura?. Vale a pena lembrar a forma divertida e espirituosa pela qual Miner (1976) prope o estranhamento de certas prticas entre os Nacirema: o ponto focal do santurio uma caixa ou cofre embutido na parede. Neste cofre so guardados os inmeros encantamentos e poes mgicas sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais preparados so conseguidos atravs de uma serie de profissionais especializados, os mais poderosos dos quais so os mdicos-feiticeiros, cujo auxilio deve ser recompensado com ddivas substanciais. Contudo, os mdicos-feiticeiros no fornecem a seus clientes as poes de cura; somente decidem quais devem ser seus ingredientes e ento os escrevem em sua linguagem antiga e secreta. Esta escrita entendida apenas pelos mdicos-feiticeiros e pelos ervatrios, os quais, em troca de outra ddiva, providenciam o encantamento necessrio. Os Nacirema no se desfazem do encantamento aps seu uso, mas os colocam na caixa-de-encantamento do santurio domstico. Como tais substncias mgicas so especificas para certas doenas e as doenas do povo, reais ou imaginrias, so muitas, a caixa-de-encantamentos est geralmente a ponto de transbordar. Os pacotes mgicos so to numerosos que as pessoas esquecem quais so suas finalidades e temem us-los de novo. Embora os nativos sejam muito vagos quanto a este aspecto, s podemos concluir que aquilo que os leva a conservar todas as velhas substncias a idia de que sua presena na caixa-de-encantamentos, em frente qual so efetuados os ritos corporais, ir, de alguma forma, proteger o adorador.

  • 33

    sistema nervoso central e neuro-muscular, agindo como fator natural de resistncia

    fsica, de eficincia intelectual e de equilbrio psquico; Hiperex indicado para

    quadros de distrbios psicovegetativos (distrbios psquicos com efeitos sobre o

    estado fsico), estados depressivos, medo e/ou agitao nervosa (ansiedade); a ao

    esperada do Taurargin a reduo dos sintomas decorrentes da estafa mental e

    fsica, (sendo indicado para) astenia fsica e psquica, ao bioenergtica antifadiga,

    perturbaes do sono e neuro psquicas, alteraes da capacidade intelectual.

    Desconfiei de tantas promessas, mas devo admitir que me senti melhor aps trinta

    dias.

    Quando lembro daquele perodo de desnimo, ainda penso nos porqus

    daquele estado que no lembro ter vivenciado antes. As perguntas continuam em

    aberto.

    1.2 A complexidade do espao urbano: o campo por todos os

    lados

    A busca por mais sade e uma maior qualidade de vida um tema do

    contemporneo, do qual o consumo das plulas Prozac, Xenical e Viagra e outras

    plulas similares apenas uma face. Mais a frente, tentarei mostrar de que forma a

    expresso qualidade de vida vem sendo utilizada em relao sade e outras

    questes do cotidiano; por ora, sublinho que ela se tornou uma espcie de palavra-

    chave, com usos os mais diversos.

    Como um sujeito atravessado pela cultura onde est inserido e compartilhando

    destes cdigos, vi-me implicado e prximo ao meu objeto, que, para utilizar uma

    metfora de Geertz, no parecia estar no final do corredor, nem no quarto ao lado,

    mas no meu prprio quarto.

    O material resultante de um trabalho de campo com estas caractersticas no

    pode ser isolado em fitas gravadas; o que vou tratar aqui como campo vai alm do que

    eu imaginava inicialmente como o meu material de anlise. O conjunto da etnografia

    acaba por ir alm das entrevistas semi-dirigidas e das reportagens e peas

    publicitrias coletadas. Meu objeto desde cedo se mostrou sem forma definida; o

    campo, neste caso, assemelha-se mais ao que eu chamaria de um descampado, um

    grande espao ao ar livre, do qual difcil estabelecer os contornos. No possvel

    circunscrever a um nico espao o grupo e o conjunto de experincias retratados

    nesta dissertao.

    Quando fazemos qualquer espcie de anlise em sociedades complexas

    contemporneas, uma grande dificuldade estabelecer os limites e as caractersticas

    do grupo o qual estamos propondo analisar. Em certos casos, como acredito ocorrer

  • 34

    aqui, a prpria idia de grupo deve ser colocada entre aspas; minha etnografia no

    explora um espao facilmente demarcvel, e os usurios de Prozac, Viagra, Xenical e

    similares no se renem em uma associao. Por estes motivos, estabelecer

    experincias suficientemente significativas para criar fronteiras simblicas

    (Velho,1981:16) um desafio e uma preocupao presentes durante toda a pesquisa.

    Por um lado, h que se fugir da homogeneidade que se apresenta a um primeiro olhar,

    buscando as diferenas que se escondem sob grandes palavras como remdios,

    doentes e doenas; por outro, preciso atentar para pontos em comum, explorando

    similaridades. A partir de pistas etnogrficas, tentando no perder o equilbrio, o

    antroplogo segue esta circularidade da cultura, tentando perceber fronteiras e no

    perder de vista os limites da pesquisa. O exerccio de se mover do discurso particular,

    expresso individual onde a cultura se manifesta, para o discurso mais amplo da

    cultura nos coloca no centro da complexidade urbana, espao onde tantas

    combinaes de hbitos so possveis e um trabalho comparativo faz-se necessrio.

    Afinal, se o psiquismo simples elemento de significao para um simbolismo que o

    ultrapassa, por outro lado e ao mesmo tempo o nico meio de verificao de uma

    realidade cujos aspectos mltiplos no podem ser apresentados fora dele mesmo.

    Esta idia faz parte do projeto de superao da dicotomia entre social e individual,

    fsico e psquico que corta a obra de Mauss, sendo que, para ele, o psicolgico est

    subordinado ao social. Mas esta frase no conclui o debate com uma soluo

    simplificadora. Concordo que este

    "debate no tem sada, a menos que se perceba que as duas ordens no esto em uma relao de causa e efeito (seja qual for, alis, a posio respectiva que se atribua a cada uma), mas que a formulao psicolgica apenas uma traduo, no plano do psiquismo individual, de uma estrutura propriamente sociolgica". (Lvi-Strauss, 1974:7)

    O movimento constante que se pede do antroplogo na cidade entre as

    manifestaes individuais e as representaes sociais tambm foram pensadas por

    Magnani, para quem

    "o que caracteriza o fazer etnogrfico no contexto da cidade o duplo movimento de mergulhar no particular para depois emergir e estabelecer comparaes com outras experincias e estilos de vida semelhantes, diferentes, complementares, conflitantes no mbito das instituies urbanas, marcadas por processos que transcendem os nveis local e nacional". (Magnani, 1996:49-50)

  • 35

    Foi em busca de retratar esta complexidade que combinei entrevistas individuais

    (incluindo tambm o relato da minha experincia pessoal) com anlise das

    representaes sociais coletivas sobre a cultura da sade e dos remdios do estilo de

    vida.

    Para justificar um recorte e criar coerncia para um projeto, seria preciso definir

    onde esto a unidade e a descontinuidade internas a tal conjunto41, como disse Velho.

    Utilizo propositadamente a expresso criar coerncia, para mostrar o quanto nossas

    escolhas, recortes e conceitos so arbitrrios; estamos sempre criando novas

    membranas, outras subdivises, e, por que no, novas realidades. E a isso que, a

    meu ver, damos o nome de recorte de campo.

    1.2.1 Medicamentos podem encurtar distncias

    O tema da distncia em relao cultura que cerca o consumo destes

    medicamentos esteve presente durante todo o processo de pesquisa e escrita desta

    dissertao, e por isso preocupei-me em relatar a minha experincia enquanto

    indivduo medicalizado. Mesmo tendo vivido pessoalmente o processo, tenho

    conscincia de que o relato feito acima permeado pelo sentido atribudo

    experincia vivida, estando informado por todo um campo cultural do qual eu sou um

    observador interessado do ponto de vista da anlise antropolgica, mas tambm,

    simultaneamente, no qual eu sou um indivduo que participa e vivencia certos cdigos,

    estando submetido a certas prticas. Minha experincia de medicalizao ajudou-me a

    confrontar o que Velho chamou de distncia psicolgica (1987:124) com o campo

    cultural desta pesquisa. claro que confrontar no sinnimo de superar

    totalmente, visto que no tenho aqui nenhuma pretenso neutralidade, sobre a qual

    muita tinta j correu em textos antropolgicos. Discutindo a situao do antroplogo

    que pesquisa no ocidente, na cidade, em sua cultura de origem, Velho defende que,

    mesmo

    "na grande metrpole, seja Nova Iorque, Paris ou Rio de Janeiro, h descontinuidades vigorosas entre o mundo do pesquisador e outros mundos, fazendo com que ele, mesmo sendo nova-iorquino, parisiense ou carioca, possa ter experincia de estranheza, no-reconhecimento ou at choque cultural comparveis de viagens a regies exticas`". (Velho, 1987:126-27)

    41 Minha preocupao no definir um conceito para o rtulo remdios do estilo de vida e com isso justificar o recorte da pesquisa. As unidades e descontinuidades que procuro aqui sero mostradas atravs da apresentao do material etnogrfico, deixando falar as diferentes vozes que atuam no consumo e difuso destas plulas.

  • 36

    Continuando com Velho, ele diferencia o que seria uma distncia social e

    uma distncia psicolgica entre pesquisador e pesquisado. Eu no estava

    particularmente preocupado com a primeira, visto que a discusso sobre o consumo (e

    o consumo em si) dos remdios do estilo de vida no est longe do meu cotidiano42.

    Se havia uma preocupao neste caso, era quanto necessidade de estranhamento

    no que se refere a uma cultura que me familiar, no sentido em que tambm eu sou

    um sujeito de classe mdia urbana. Creio que mais reflexo seria necessria quanto

    distncia psicolgica com a cultura analisada, visto a minha resistncia ao uso de

    medicamentos, em especial no contexto no qual estou pesquisando. Este momento de

    crise e medicalizao parece-me ter sido til neste sentido.

    Posteriormente, durante as entrevistas que realizei, acabei encontrando entre

    meus informantes um eco das minhas inquietaes naquele momento43: sentia-me

    melhor por causa dos remdios, por mrito pessoal ou por uma combinao dos dois

    fatores?; as causas do desconforto estariam dentro ou fora de mim?; e mesmo a

    preocupao com a vida profissional e a pressa em voltar a funcionar bem.

    importante marcar o carter relativo da idia de tornar-me nativo com a qual

    trabalhei na seo anterior. No compree