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3 Índice Introdução 5 CAPÍTULO I A Região Demarcada do Douro 13 1 - Caracterização 13 1.1 - Localização 16 1.2 - Área Geográfica 18 2 - Paisagem Natural 19 2.1 - S. Leonardo de Galafura 20 2.2 - Casal de Loivos 22 2.3 - São Salvador do Mundo 22 CAPÍTULO II As Obras do Homem Duriense 24 1 - A Natureza e o Homem 26 1.1 - A Cultura da Vinha 30 1.2 - Práticas Culturais e Formas de Condução 33 1.3 - Dimensão Cultural e Religiosa do Vinho 35 2 - Os vinhos do Douro 42 2.1 - Vinho do Porto 44 2.2 - Outras Denominações 48 2.3 - A Rota do Vinho do Porto 49 CAPÍTULO III As Gentes do Douro e a Sua Religiosidade 52 1 - A Intervenção Humana 52 1.1 - Manifestações de Religiosidade 59 1.2 - Religiosidade Popular 61 1.3 - As Procissões 66 2 - As Festas 70 2.1 - A Festa das Vindimas 83 2.2 – Festa dos Santos Populares 89 2.3 - Festa do(a) Padroeiro(a) 95 2.4 - Festas Marianas 97

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Índice Introdução 5

CAPÍTULO I

A Região Demarcada do Douro 13 1 - Caracterização 13 1.1 - Localização 16 1.2 - Área Geográfica 18 2 - Paisagem Natural 19 2.1 - S. Leonardo de Galafura 20 2.2 - Casal de Loivos 22 2.3 - São Salvador do Mundo 22

CAPÍTULO II

As Obras do Homem Duriense 24 1 - A Natureza e o Homem 26 1.1 - A Cultura da Vinha 30 1.2 - Práticas Culturais e Formas de Condução 33 1.3 - Dimensão Cultural e Religiosa do Vinho 35 2 - Os vinhos do Douro 42 2.1 - Vinho do Porto 44 2.2 - Outras Denominações 48 2.3 - A Rota do Vinho do Porto 49

CAPÍTULO III

As Gentes do Douro e a Sua Religiosidade 52 1 - A Intervenção Humana 52 1.1 - Manifestações de Religiosidade 59 1.2 - Religiosidade Popular 61 1.3 - As Procissões 66 2 - As Festas 70 2.1 - A Festa das Vindimas 83 2.2 – Festa dos Santos Populares 89 2.3 - Festa do(a) Padroeiro(a) 95 2.4 - Festas Marianas 97

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2.5 - A Festa do Natal 104 2.6 - A Festa da Páscoa 112 2.7 - A Festa do Corpo de Deus 115 2.8 - Algumas Tradições 117 3 - As Romarias 121 3.1 - Nossa Senhora dos Remédios 124 3.2 - Nossa Senhora da Piedade 126 3.3 - Outras Romarias 127 4 - Monumentos Religiosos 129 4.1 - O Culto aos Mortos 131 4.2 - As Alminhas 137 4.3 - Os Cruzeiros 146 Conclusão 154 Bibliografia 159 Anexos 166 Anexo I – Fotocópia: Mapa de Localização e Mapas da Região 167 Datas e Acontecimentos Importantes Anexo II – Tabelas das três áreas geográficas em que se divide o Douro 168 Anexo III – Ex-voto, na exposição “Jardins Suspensos” - Régua 169 Anexo IV – Vindima, como romaria 170 Anexo V – Tabela da Rota de algumas fogueiras de Natal 171 Anexo VI – Missa e Offissio de Defunctos (02-05-1884) 172 Anexo VII – Amostra do registo fotográfico de Cruzeiros e Alminhas 173 Caixa das Almas Anexo VIII – Fotocópia: Vários formatos de Cruzes 174 Anexo IX – Fotocópia: Colecção de cruzes (Iniciativa do Jornal de Notícias) 175

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INTRODUÇÃO

Com a criação, na Régua, da Companhia Geral das Vinhas do Alto

Douro, pelo Marquês de Pombal em 1756, inicia-se a grande odisseia dos

vinhos e a consequente fixação de gentes e populações.

Aqui há granito e xisto, carne e vinho, mel e azeite, castanha e amêndoa,

urze e esteva, estâncias termais e rios, florestas e socalcos, terra quente e terra

fria. Por isso se instalaram aqui muitos povos, encontrando-se, nesta região,

vestígios do Neolítico (menhires e alinhamentos, antas do tipo mamoa,

inscrições, pinturas em grutas), da cultura castreja (castros, esculturas

zoomórficas) e, sobretudo, da romanização (pontes e calçadas).

O Douro Vinhateiro é um hino constante à perseverança, coragem e

ambição dos homens. É também um hino à beleza e à natureza. A paisagem é

única e inesquecível, formada por encostas quase sempre abruptas e plantadas

de vinha, as mais antigas em socalcos bem escorados com fortes paredes de

pedra, as mais recentes em fileiras a trepar pelo monte. Em baixo de tudo, um

rio: o Douro, senhor da região, alimentado por múltiplos afluentes. Aqui o

difícil é escolher um lugar de sonho. Pois eles são muitos e cada um mais de

sonho que o anterior.

O que há de extraordinário na designação do Douro Vinhateiro para a

lista de património mundial, a título de paisagem, é que, sendo a região do

Douro um prodígio natural de excepcional beleza, é realmente também uma

construção humana, fruto da técnica, do trabalho e da cultura. O clima

singular, o vale do Douro, os solos de xisto, a série de montanhas que rodeia e

protege o rio e os vários vales dos pequenos afluentes são evidentemente feitos

da natureza. Mas o que lhe confere raro valor é o trabalho que a transformou,

criando uma obra humana que tudo deve à cultura e à história. Durienses em

primeiro lugar, mas também transmontanos, galegos, beirões e ingleses

deixaram naquelas encostas o melhor que tinham de si, o engenho, o esforço,

e, por vezes, o sangue.

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Durante muitos séculos, o Alto Douro ou Cima Douro, como também se

dizia, era evocado como um lugar exótico, que só almocreves atrevidos,

religiosos devotos ou aventureiros sem juízo seriam capazes de procurar. Os

caminhos difíceis e perigosos mais o calor do estio faziam do vale uma terra

que se devia evitar a todo o custo.

Só na segunda metade do século XVIII, com a explosão comercial do

vinho do Porto, é que o Douro começou, de facto, a despertar curiosidade, a

abrir-se para o exterior. Milhares de páginas escritas com paixão, desespero ou

raiva serviram para denunciar crises, bombardear políticas ou interesses, para

suscitar toda a espécie de questões sobre o Douro e o seu vinho. Foi talvez a

região do país mais debatida e comentada nas prosas dos políticos, dos

académicos, para não falar dos homens públicos com responsabilidade na

gestão de um produto que chegou a representar mais de metade das

exportações portuguesas.

Ir ao Douro já não é mais aquela aventura de outrora, que obrigava a

viagens tenebrosas e a percorrer caminhos onde só se chegava de mula. Agora

vai-se ao país do vinho de helicóptero, de comboio, de barco e de carro. O

comboio, apesar de permitir apenas imagens fugazes da paisagem, continua a

ser o meio de transporte que mais emoções provoca. Tem a vantagem de

caminhar lado a lado com o rio, devolvendo-nos a nostalgia do passado e

levando-nos de túnel em túnel, de estação em estação, embalados pelo silvar

do aço nos carris.

Para lá de embelezar a paisagem, o rio permite uma navegabilidade de

motivação turística, trazendo à região muitas dezenas de milhar de visitantes.

Depois da construção das barragens e respectivas eclusas, o que permitiu a

regularização do leito e consequente navegabilidade, é possível encontrar:

“embarcações para todos os gostos, desde simples barcos “rabelos”1 a imponentes barcos-hotéis que tornaram o Douro uma imensa auto-

1“É tipicamente um barco de rio de montanha, com o fundo chato, tendo por leme uma peça comprida e grossa em forma de pá ou remo quase do seu tamanho, a «espadela». São próprios para navegarem em águas pouco profundas e comportarem-se bem nas zonas de fortes rápidos. Da configuração deste barco com a sua imensa espadela, em forma de rabo,

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estrada fluvial com via verde, um lugar onde o assombro se povoa de sonhos e lendas, de cores e sons, de sabores e afectos e nos lança num poetar ininterrupto. Esta região tem conseguido atrair cada vez mais turistas, acima de tudo com a grandiosidade da paisagem, monumentos e gastronomia e uma forma imaginativa de mostrar a cultura deste povo; mas não basta a grandiosidade da paisagem, é preciso haver também bons hotéis, bons restaurantes, qualidade de serviço, aglomerados urbanos visitáveis”2.

Além dos crescentes benefícios económicos, o turismo traz benefícios

sociais, ao ampliar o mercado de trabalho e melhorar as infra-estruturas de

lazer. Ao contrário da indústria, o produto turístico não vai ao consumidor mas

é este que “vai ao produto”. Este consiste num conjunto de serviços cuja

qualidade é altamente dependente de factores externos, como os da qualidade

da infra-estrutura urbana e do meio ambiente. As indicações apontam para

uma ligeira ascensão no campo turístico:

“entre 1990 e 2000, o número de dormidas no vale do Douro cresceu 3%. A continuar assim, apesar das enormes potencialidades da região, só daqui a 50 anos seria um grande destino turístico... o vale do Douro tem, a nível mundial, um mercado potencial de 140 milhões de viagens turísticas anuais; dos potenciais 140 milhões de turistas, destacam-se os alemães (68,1%) e ingleses (60,2%)”3.

O Douro de hoje é a síntese desse seu passado particular. Viajar na região

não requer apenas um estado de permanente contemplação daquele que é

considerado o mais belo e doloroso monumento ao trabalho do povo

português; convida também a um esforço de conhecimento. Há sempre lugar

para novas descobertas, novas oportunidades de ver, sentir e compreender a

grandiosidade da obra de várias gerações de durienses, de galegos que para ali

migraram e dos ingleses que, por interesse ou deslumbramento, se lhe dedicam

há mais de 300 anos. O Douro, sua paisagem e patrimónios, é um desafio que

se renova em cada bardo de videiras, em cada trilho poeirento que rasga os lhe veio o nome rabelo”. PEIXOTO, Marco Aurélio, in Douro Precioso, Régua, Casa do Douro, 1990, p. 22. 2 In Jornal O PÚBLICO, de 24 de Agosto de 2003. 3 Idem, de 07 de Setembro de 2003.

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vinhedos em diagonal, em cada quinta ou miradouro. O grande motivo que a

primeira região demarcada e regulamentada do mundo tem para oferecer ao

turista é assim esta espécie de caldo de cultura que sintetiza a natureza pródiga

de um vale, a vinha e o vinho do Porto. Mas o Douro é muito mais: aldeias

pitorescas de gente hospitaleira, onde apenas se chega por estradas secundárias

e por vezes sinuosas, paisagens de cortar a respiração, trechos bucólicos na

margem do rio, gastronomia regional, pesca, caça, estradas ideais para

expedições de «todo-o-terreno», entre muitas outras ofertas. Conhecer o

Douro é um desafio...

Com os vinhos, o mel, o azeite e as amêndoas, os monumentos, as

quintas e os socalcos, os montes e os rios, o Douro é um paraíso quase

esquecido, quase perdido, apesar de se darem os primeiros passos para o

desbravar, com a criação, por exemplo, da Rota do Vinho do Porto e a

multiplicação dos cruzeiros rio acima, das caves de Gaia até à zona dos

vinhedos.

Paisagem imortalizada por poetas e escritores continua a seduzir milhares

de pessoas vindas de todo o Mundo; uma região imensa, banhada por um rio, o

Douro, onde os homens, num esforço hercúleo, cultivam a vinha e lutam pela

subsistência. O cerne deste estudo consiste na abordagem da relação do

homem com a natureza, procurando compreender as relações entre o homem

duriense e as suas convicções religiosas.

Este trabalho insere-se no contexto de um Mestrado em Património e

Turismo; e se o património é para ser fruído, até porque a melhor maneira de

utilizar e guardar é dar a conhecer, achamos motivação suficiente fazer incidir

este estudo sobre a região do Douro que é Património Mundial e onde o

Turismo começa a dar passos de gigante.

Antes de mais, este trabalho, pela motivação exposta, inscreve-se numa

procura fundamental: qual o contributo do “religioso” no Património e

Turismo desta região? Sabemos que a cultura do Douro, como é reconhecido

nos mais diversos quadrantes, tem algo a ver com o aspecto religioso:

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“Começa hoje a esboçar-se um consenso em torno da importância social, cultural e económica do chamado Turismo Religioso. Aquilo que hoje é conhecido como Turismo Religioso corresponde a uma realidade muito complexa em razão da multi-funcionalidade que caracteriza as deslocações e da diversidade de motivações. Sabemos que a peregrinação a um determinado local sagrado pode envolver percursos turísticos que não são cobertos pela motivação religiosa; e sabemos, também, que nesses locais sagrados estão muitos turistas cuja deslocação não pode ser explicada por convicções religiosas”4.

Conhecer o envolvimento natural e a paisagem que o homem duriense,

ao longo dos tempos, construiu no respeito pela Natureza para tirar dela o

melhor partido; conhecer e aprofundar o passado de um povo é afiançar e

enriquecer a sua própria identidade, trazendo ao conhecimento de todos a

riqueza cultural da sua história; tendo isto em conta, neste trabalho tentarei

obter um maior conhecimento das gentes do Douro, na componente religiosa.

Com o objectivo de procurar compreender os comportamentos e atitudes

no campo da religiosidade, o trabalho agora apresentado, divide-se em três

capítulos, relacionados com as temáticas sobre as quais centrei a minha

pesquisa.

No primeiro capítulo, para além de localizar e caracterizar a região,

salientarei a paisagem natural onde a grandeza, a ruralidade, a ocupação

humana e a beleza são aspectos a ter em conta. Aliás, bastará subir ao topo de

qualquer das montanhas circundantes (os miradouros) para desfrutar de vistas

magníficas.

Para além da grande riqueza paisagística, no segundo capítulo tentarei

realçar o contributo do homem duriense no enriquecimento da paisagem

duriense. Não são apenas os valores da ruralidade e a riqueza paisagística que

atraem os turistas, mas também o património monumental, a gastronomia e,

sobretudo, os óptimos vinhos de mesa, onde sobressai o rei dos vinhos: o

Vinho do Porto, a que as pessoas também chamam vinho fino ou generoso.

Para o homem do Douro o objectivo da sua conduta começa e termina

nos seus planos, nas suas metas e nos seus projectos, tendo como fim último 4 STILWELL, Peter, [et al.] Turismo e Património Religioso, in Síntese, nº. 174 (Julho/Setembro), Fátima, S.S. Ferreira e Silva, 2004, p. 35.

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os interesses comuns, pois ele sabe que a terra que possui não é propriedade de

ninguém (mas defende-a até à exaustão) e não faz parte de nenhuma herança;

é um empréstimo feito pelas gerações futuras, a quem terá de prestar contas.

Uma das coisas que mais cansam é a luta permanente com os dissabores,

frustrações e contrariedades, porque para fazer algo de grande tem que se lutar

muito e tomar uma determinação extrema; o homem do Douro não se deixa

cair nem ir facilmente abaixo ante as adversidades, daí que possamos dizer tal

como D. Quixote: «cada um é filho das suas obras»5.

No terceiro capítulo evidenciarei o dia-a-dia individual e colectivo, o

carácter, procurando entender e relacionar a atitude religiosa do homem

duriense perante tamanha monumentalidade e tão rara beleza. Sem me deter

em análises ou sondagens sobre a prática dominical ou debater as causas do

fenómeno sociológico da diminuição da presença do número de fiéis na

celebração dominical, achei por bem encaminhar este estudo sobre as

manifestações de religiosidade nesta região, sobre a experiência de

participação e celebração, debruçando-me, em particular, nas festas e romarias

e na atitude perante a morte. Se é nas festas que melhor se expressa a

religiosidade popular, procurei entender, através da observação directa e de

inquéritos, feitos às Comissões de Festas e aos Párocos, a religiosidade destas

pessoas.

Por um lado a beleza desta região fascina qualquer um, por outro lado, e

não se tratando de acontecimentos insólitos, mas de ritos sociais, o aspecto

religioso poderá caracterizar a vida religiosa habitual desta região. Na época

actual verifica-se nas pessoas um sentimento de insatisfação e de vazio, um

desejo de regenerar a existência e de refazer a vida. A abundância de bens e as

comodidades materiais não resolvem os conflitos interiores e exteriores, não

alcançam a paz e o sentido da vida; o nosso tempo caracteriza-se por uma

profunda amálgama de culturas e religiões, pelo que podemos encontrar

sintomas de vazio e de inquietação interior, havendo a tendência em procurar

5 CERVANTES, Miguel de, O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, Barcelona, Mediasat Group, 2004, p. 581.

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as soluções na religião. Há desassossegos do viver humano, diante dos quais é

impossível ficar indiferente. Por isso não admira que a temática religiosa no

viver das pessoas seja, frequentes vezes, articulada com os contornos da

inquietação existencial.

As abordagens do problema religioso sobrelevam mais uma atitude

interior de inquietação. Tal não significa que a questão religiosa tenha sido

relegada para segundo plano. A temática religiosa flui directamente da

contemplação da beleza; a questão religiosa é aqui segredada pela imensidão e

grandiosidade da sua natureza. Daí que esta harmonia pacificadora ajude a

acolher a religiosidade que dá à região do Douro elevação e sentido. A força

da religião tem sido enorme em toda a parte e ao longo dos milénios;

interessa-nos falar das regras da vida, do seu sentido concretizado na fé e

vivido na experiência, da experiência global deste sentido na prática de todos

os dias, na economia, nas igrejas, imagens, figuras, preces, tradições, lendas e

canções, procurando encontrar as motivações globais de vida.

Para tal, dado ser importante que o património artístico-religioso seja

dado a conhecer às pessoas, não vou aqui enumerar e descrever as igrejas e

capelas da região e muito menos a sua riqueza artística, que é enorme, mas,

proponho-me, tão somente, elaborar um roteiro dos cruzeiros e alminhas,

tendo por base um exaustivo trabalho de campo levado a cabo nos vinte e um

concelhos dos quatro distritos (Bragança, Guarda, Viseu, Vila Real) que

compõem esta região, uma vez que pouco existe relativamente a este tema no

que diz respeito à região do Douro. Com este roteiro não pretendo realizar um

trabalho crítico da História da Arte, mas sim um levantamento simples e

concreto de todos os cruzeiros e alminhas, chamando a atenção para a

conservação ou não desses monumentos e para a sua importância na vida das

populações locais. É que, nos dias de hoje, fala-se muito na defesa e

conservação do património (seja ele de que tipo for), por isso há que pôr em

prática aquilo que apenas se exprime oralmente.

Creio não exagerar ao afirmar que a riqueza artística dos Cruzeiros e

Alminhas, que “descobri” nesta região, são o testemunho da fé das

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comunidades que, com tanto carinho, os levantaram e primorosamente os

conservaram. Estas obras, de cariz popular, são a expressão viva dos

sentimentos de profunda espiritualidade dos seus criadores e promotores. Para

lá da intenção religiosa há que sublinhar a sensibilização das pessoas perante a

riqueza dum património que é seu e que se orgulham de possuir.

O desenvolvimento desta temática tem por finalidade constituir um

complemento a estudos de idêntica natureza, procurando, não apenas,

contribuir para um conhecimento mais aprofundado desta região, mas

também, para realçar, através das mais diversas formas (arte popular, festas,

procissões, romarias, orações, tradições, etc.), a atitude religiosa das gentes do

Douro.

Como reconhece António M. P. Cabral, muito se tem dito e escrito sobre

o Douro: “Desde os meados do século XIX que o Douro começou a ter alguma

visibilidade literária. Às vezes com muita rapidez, mas quase sempre com

indisfarçada emoção, dele falaram muitos autores...”6

Para expressar a importância, a imponência, a beleza, a riqueza e pobreza

desta Região, deste Rio e destas Gentes, servi-me da nitidez e expressividade

de alguns textos desses autores; acima de tudo interessa-nos realçar os motivos

de interesse desta região no que se refere ao património natural, ambiental,

paisagístico, etnográfico, arquitectónico e artístico. Certamente que, em todas

estas áreas, a região detém bens patrimoniais de considerável valor; no

entanto, será, preferencialmente, o património etnográfico (festas e romarias) e

o património artístico (alminhas e cruzeiros), o alvo das nossas atenções.

Naturalmente que deste património, cada aldeia, vila ou cidade, terá algo a

mostrar.

6 CABRAL, António Manuel Pires, Douro Leituras (uma antologia de textos sobre o Alto Douro), Viseu, Tipografia Guerra, 2002, p. 22.

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CAPÍTULO I

A REGIÃO DEMARCADA DO DOURO 7

Quando se fala desta região estamos a referir-nos à Região Demarcada

mais antiga do mundo, onde o rio Douro, a terra, a paisagem e as pessoas

estreitaram laços; para a definir, nada melhor que esta citação:

«... a região mais impressionante, mais rica, mais atribulada e mais desconhecida de Portugal. Tão impressionante, que ninguém a vê, que não abra os olhos de assombro. Tão rica, que produz o oiro líquido de maior reputação nas sete partidas... Talvez não se possa descrever melhor esta região montanhosa e agreste, onde o homem a golpes de energia e tenacidade, esmigalhou e transformou em terra os “altivos pendores da cordilheira de bronze” e nela fez erguer altares onde a cepa “come pedra e bebe sol”. A inclinação do terreno xistoso, a disposição das montanhas e a peculiaridade do seu clima, diferenciam o Douro de todas as outras regiões do País»8.

1 – Caracterização Esta região, também denominada Douro Vinhateiro, é duma riqueza

ímpar, não tanto pelo produto daí resultante, mas acima de tudo pela sua

paisagem arrebatadora, tal como descreve João de Araújo Correia: “tem

montes que não deixam de crescer, videiras que ninguém pode contar,

oliveiras que vivem a rezar e um rio que não pára de correr”9.

7 Primeira Região Demarcada do Mundo, por Lei de 1756, alterada através dos tempos e confirmada em 1921; estende-se de Barqueiros a Barca d’Alva pelos vales do rio Douro e seus afluentes. 8 Citação, in Boletim da Casa do Douro, nº. 338, Régua, (Novembro de 1989), p. 23. 9 Poema inscrito no muro da estação de caminhos de ferro da Régua.

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Tal como diz Miguel Torga, “Doiro, rio e região, é certamente a

realidade mais séria que temos”10. Também Rogério Reis afina pelo mesmo

diapasão ao afirmar:

“É-o na sua história, no seu humanismo, no património monumental e paisagístico, no ancestral e melhor vinho do mundo, na produção de energia eléctrica e na portentosa estrada líquida, ora com magníficos lagos artificiais”11.

A vinha nesta região, segundo alguns historiadores, é uma cultura

milenar; já durante a ocupação romana se cultivava a vinha e se fazia vinho

nos vales do Alto Douro. Na Península Ibérica a viticultura era tão intensa que

o Imperador Domiciano12 mandou arrancar metade dos vinhedos.

No Boletim da Casa do Douro, de Junho de 1990, são descritos alguns

traços mais significativos da história dessa região:

“A região do Douro, demarcada e regulamentada a partir de 1756 por Sebastião José de Carvalho e Melo, ao tempo Primeiro Ministro de D. José I, Rei de Portugal, é hoje constituída por cerca de 40.000 hectares de vinha implantados nos cerca de 250.000 hectares da sua área total, distribuídos por quatro distritos, vinte e um concelhos e cento e setenta e cinco freguesias. A vinha que se espalha por 90.000 parcelas, distribui-se por três sub-regiões: o Baixo Corgo, o Cima Corgo e o Douro Superior, podendo afirmar-se que nas duas primeiras ela é a cultura predominante, enquanto que na outra, a cultura da vinha alterna frequentemente com outras culturas, entre as quais sobressai a oliveira e a amendoeira. Os vinhedos começam a surgir nos 70 metros de altitude, nível do rio em Barqueiros, para, a partir daí, começarem a subir rio e encosta acima até aos 650/700 metros, em vertentes xistosas em que o granito aflora de onde a onde e de declive acentuado que obriga, não raras vezes, a avultados encargos com o terraceamento das margens do Douro que hoje lhe dão o aspecto de gigantesco anfiteatro”13.

10 TORGA, Miguel, Portugal, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1967, p. 46. 11 REIS, Rogério, Boletim da Casa do Douro, nº. 341, Régua, (Fevereiro de 1990), p. 47. 12 Este Imperador viveu e reinou no século I. 13 in Boletim da Casa do Douro, nº. 345, Régua, (Junho de 1990), p. 5.

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Da mesma forma, António Barreto foca aspectos essenciais quanto à

instalação das pessoas, salientando que, nesta região, devido ao acidentado dos

terrenos e ao perigo das cheias:

“As povoações situam-se de preferência nos altos das montanhas, por vezes a meia-encosta, só raramente se instalaram nas margens do Douro ou dos seus afluentes. O rio Douro corre a pouco mais de 50 m de altitude. Ora, Mesão Frio fica a quase 400 m de altitude; Vila Real a 460 m; Alijó a 600 m; Murça a 500 m; Vila Flor a 700 m; Alfândega da Fé a 520 m; São João da Pesqueira a 640 m; Tabuaço e Armamar a mais de 500 m e Lamego a 400 m. A Régua é uma excepção, o Pinhão também”14.

A exposição do sol, factor fisiográfico de grande importância na

caracterização climática de qualquer região, reveste-se no Douro de redobrado

interesse já que permite uma melhor compreensão do comportamento da vinha

nas diferentes situações. A margem norte do rio está sob a influência de ventos

secos do sul, estando a margem sul exposta aos ventos do norte, mais frios e

húmidos, e a uma menor insolação. A temperatura do ar é mais alta15 nos

locais expostos a sul do que nos locais expostos a norte. As temperaturas

médias anuais variam entre 11,8 e 16,5º C. Para termos uma ideia das

temperaturas na região, vejamos a descrição de Torga: “As lajes de xisto

reluziam como brasas pela encosta acima”16. Ou então, esta outra descrição de

António M. P. Cabral:

“O Sol aquece o xisto do Douro ao rubro... no Julho, no Agosto, um socalco, a esta hora da madrugada, é a boca dum forno. Por isso estoiram as rochas, torcem os trilhos da linha férrea e tomba asfixiada a cotovia. É o que diz o Junqueiro: - a cepa do Alto Douro come pedra e bebe fogo”17.

14 BARRETO, António, Douro, Lisboa, Edições Inapa, 1993, p. 71. 15 «Em Maio, no Douro, o calor é já coisa que queima. Em Junho, ao sol, já escalda. Em Julho e Agosto, mesmo à sombra, sufoca-se e abrasa-se. À hora do sol intenso, assam-se sardinhas nos carris do caminho de ferro!» - Kol de Alvarenga (citado in António Barreto – Douro, p. 112.) 16 TORGA, Miguel, Vindima (edição, tendo como base o texto da 5º. edição), Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2001, p. 19. 17 CABRAL, António Manuel Pires, Douro Leituras (uma antologia de textos sobre o Alto Douro), Viseu, Tipografia Guerra, 2002, p. 147.

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16

Os valores máximos das temperaturas médias anuais distribuem-se ao

longo do Rio Douro e dos vales dos seus afluentes, em especial os da margem

direita (nomeadamente o rio Tua e a ribeira da Vilariça). Relativamente às

amplitudes térmicas diurnas e anuais, verifica-se que têm maior valor em

Barca d’Alva e menor em Fontelo, facto que é explicado pela distância ao

mar18.

1.1 – Localização 19 A Região Demarcada do Douro situa-se ao longo do vale do rio Douro e

dos seus afluentes, desde Barqueiros, concelho de Mesão Frio, a ocidente, até

Masouco, concelho de Freixo de Espada à Cinta, a oriente, numa extensão de

cerca de 97,5 Km. Apresenta contornos muito irregulares quer a Norte quer a

Sul, principalmente nos Distritos de Vila Real e Bragança, onde os limites, nos

concelhos de Murça e Vila Flor distam cerca de 25 Km, para no concelho de

Carrazeda de Ansiães ficar a escassos metros do seu leito.

Na sua grande maioria o solo apresenta naturais dificuldades, em especial

as elevadas temperaturas e a inclinação que, em alguns casos, pode atingir

cerca de 30%. Os vales e as encostas são compostos por xistos; só o esforço

colectivo de várias gerações conseguiu manter e preservar o património desta

região:

“O solo da região em boa verdade não existe, pois é pelo fraccionamento da rocha-mãe, aquando da preparação do terreno para plantação, que ele se “fabrica”. Pode afirmar-se que a grande maioria dos terrenos pertencem aos xistos do Câmbrico e do Pré-Câmbrico”20.

Os solos são assim na sua quase globalidade derivados de xistos, onde a

influência da acção do Homem é muito marcada, durante os trabalhos de 18 http://www.ivp.pt./pt/Regiao/ em 03-05-2002. 19 Anexo I – Mapas. 20 in Boletim da Casa do Douro, nº. 338, Régua, (Novembro de 1989), p. 2.

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arroteamento e terraceamento que antecede a plantação da vinha,

nomeadamente através de mobilizações profundas com desagregação forçada

da rocha e consequente aprofundamento do perfil e modificações na

morfologia original, acrescida da incorporação de fertitlizantes; Miguel Torga

descreve este solo como:

“...um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas, hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Terra Quente e Terra Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas... Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá. Pão de milho, de centeio, de cevada e de trigo. Pão integral. Por ser pão e por ser amassado com o suor do rosto. Sabe a trabalho. Mas é por isso que os naturais o beijam quando ele cai no chão...”21

O pão e o vinho são elementos difundidos em todo o ambiente

mediterrâneo e comuns à nossa mesa. Estes não são encontrados directamente

na natureza, mas são fruto do trabalho feito pelo homem em favor do homem;

daí que também, da mesma forma, João de Araújo Correia acentue:

“O pão, símbolo do nosso sustento, é um condenado. Ninguém considera que foi ele o levantador de cidades, o arroteador de montes e o secador de lagunas. Ninguém confessa o que lhe deve... Só o trabalhador humilde, em certas aldeias, o resgata da vil indiferença. Beija-o quando lhe cai ao chão”22.

A individualidade do Douro deve-se à sua localização, sendo grande a

influência que exercem as serras do Marão e de Montemuro, servindo como

barreira à penetração dos ventos húmidos de oeste. Situada em vales

profundos, protegidos por montanhas, a região caracteriza-se por ter invernos

muito frios e verões muito quentes e secos23.

O Boletim da Casa do Douro, de Novembro de 1989, caracteriza assim o

clima desta região: 21 TORGA, Miguel, Portugal, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1967, pp. 27-31. 22 CORREIA, João de Araújo, Passos Perdidos, Lisboa, Portugália Editora, 1967, p. 72. 23 Daí o velho ditado: “três meses de Inverno e nove de Inferno”.

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Quanto ao clima, este caracteriza-se por uma queda pluviométrica relativamente pequena, que decresce de jusante para montante do Rio Douro, traduzindo assim a continentalidade progressiva. A pluviosidade média anual ronda os 900 mm na Régua, 700 mm no Pinhão, 500 mm no Tua e 400 mm em Barca d’Alva. Na temperatura, passa-se o inverso dado que cresce de jusante para montante, tendo como valor médio 18º na Régua, 19º, 20º e 21º respectivamente no Pinhão, Tua e Barca d’Alva”24.

A precipitação, distribuída assimetricamente, varia com regularidade ao

longo do ano, com valores maiores em Dezembro e Janeiro (nalguns locais em

Março), e com valores menores em Julho ou Agosto. Nos meses mais

chuvosos, a precipitação tem valores entre 50,6 mm (Barca d’Alva - Douro

Superior) e 204,3 mm (Fontes - Baico Corgo); nos meses menos chuvosos, os

valores de precipitação, oscilam entre 6,9 mm (Murça - Cima Corgo) e 16,2

mm (Mesão Frio - Baixo Corgo). Em termos de valores anuais, estes variam

entre 1 200 mm (Fontes) e 380 mm (Barca d’Alva), podendo dizer-se que a

quantidade de precipitação decresce de Barqueiros até à fronteira espanhola.

1.2 – Área Geográfica 25 A sua área é cerca de 250.000 hectares, que se distribuem pelo Baixo

Corgo (45.000 ha), Cima Corgo (95.000 ha) e Douro Superior (110.000 ha).

Mas só 12% desta (30.000 ha) se encontram ocupados com vinha, estando

repartida do seguinte modo: 51,8% no Baixo Corgo, 35% no Cima Corgo e

13,2% no Douro Superior.

A área geográfica, segundo o Decreto Lei Nº. 254/98, de 11 de Agosto e

Decreto Lei Nº. 190/2001, de 25 de Junho, correspondente à Denominação de

Origem “Douro”, é a mesma que se encontra demarcada para a produção do Vinho

do Porto e abrange os seguintes distritos, concelhos e freguesias, tradicionalmente

agrupadas em três áreas geográficas mais restritas, conforme os esquemas

24 in Boletim da Casa do Douro, nº. 338, Régua, (Novembro de 1989), p. 2. 25 http://douro.com.sapo.pt/Vinhos.htm em 02-07-2003 (Adaptado).

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descriminados26. A região dilata-se por 21 concelhos e 170 freguesias, um todo que

envolve mais de 30.000 lavradores e um território onde, em formosos anfiteatros

vinhateiros, se localizam à volta de 200.000.000 de cepas27. Por seu lado as 24

Adegas Cooperativas, espalhadas pela região, fazem os possíveis para servirem

produtores e consumidores.

A área consagrada por esta imensa riqueza paisagística e cultural, engloba os

municípios de Mesão Frio, Peso da Régua, Santa Marta de Penaguião, Vila Real,

Alijó, Sabrosa, Carrazeda de Ansiães, Torre de Moncorvo, Lamego, Armamar,

Tabuaço, São João da Pesqueira e Vila Nova de Foz Côa28.

2. – Paisagem Natural A área classificada do Alto Douro Vinhateiro engloba cerca de 25 mil

hectares, o que representa 10% de toda a Região Demarcada do Douro, que

desde há duas centenas de anos produz aquele que é considerado um dos

melhores vinhos do mundo: o Vinho do Porto.

A região, classificada pela UNESCO como Património da Humanidade29,

caracteriza-se por uma arrebatadora beleza paisagística, dominada pela

geometria dos vinhedos e socalcos recortados nas encostas; as vistas são

deslumbrantes. Um Reino Maravilhoso, é como Miguel Torga define esta

paisagem:

“Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso... não só existe, como é dos mais belos que se possam imaginar... a vista alarga-se de ânsia e de assombro. Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa,

26 Anexo II. 27 Números apontados por Rogério Reis in Boletim da Casa do Douro, nº. 341, Régua, (Fevereiro de 1990), p. 48. 28 http://www.lifecooler.com em 03-07-2002. 29 A região foi reconhecida pela UNESCO, como Património Mundial; título concedido ao Douro pelo Centro do Património Mundial, em reunião anual que teve lugar em Helsínquia a 14 de Dezembro de 2001, tendo em atenção as características da paisagem cultural evolutiva viva do Alto Douro.

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bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia”30.

O Douro e as suas encostas talhadas à mão, onde se produz um dos mais

famosos vinhos do mundo, passou recentemente a ser considerado paisagem

cultural e património mundial da UNESCO. Por isso, é que Torga exclama:

“Beleza não falta em qualquer tempo, porque onde haja uma vela de barco e uma escadaria de Olimpo ela existe. Mas a própria beleza deve ser entendida. Não é subir aos restolhos de Lagoaça, contemplar o abismo, e quedar-se em êxtase. Não é espreitar de S. Salvador do Mundo o Cachão da Valeira, e sentir calafrios. Não é descer de Sabrosa para o Pinhão, estacar em S. Cristóvão, e abrir a boca de espanto. Não é ir a S. Leonardo de Galafura ou ao miradouro de S. Brás, olhar o caleidoscópio, e ficar maravilhado. É compreender toda a significação da tragédia, é ser nesse chão árido e hostil um novo criador de vida, é dar aí uma resposta quotidiana à morte, transformar cada ravina em parapeito de esperança e cada bagada de suor em gota de doçura”31.

A natureza e a paisagem animam e entusiasmam Miguel Torga que, pela

observação das belezas naturais e pelo enraizamento na natureza, o levam a

cantar um hino às forças que emanam dessa natureza: “falo da natureza / e

nas minhas palavras vou sentindo / a dureza das pedras / a frescura das

fontes, / o perfume das flores”32.

2.1 – S. Leonardo da Galafura 33 Como é descrito na obra «Lugares a visitar em Portugal», deste

miradouro, a meio caminho entre a Régua e Vila Real, abarca-se o essencial

da paisagem do Douro: 30 TORGA, Miguel, Portugal, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1967, pp. 27-30. 31 Idem, ibidem, pp. 46-47. 32 TORGA, Miguel, Diário (X), Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1965, p. 964. 33 Convém acrescentar que S. Leonardo de Galafura é um monte onde existe uma capelinha em honra de S. Leonardo e daí se avista o Douro, ao fundo, e os vinhedos circundantes, bem como uma paisagem que deslumbra a vista e impressiona pela mistura de cheiros.

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“É injusto dizer que São Leonardo é o rei dos miradouros durienses; isso significa deixar de fora panoramas tão notáveis como os de Lagoaça, Penedo Durão, São Salvador do Mundo ou Casal de Loivos, para só citar estes quatro. Contudo, neste miradouro há como que o essencial da paisagem do Alto Douro: as arribas, de onde o olhar cai a pique, o espectáculo da vinha cultivada em socalcos, as quintas do vinho do Porto e, lá em baixo, o serpentear do rio, agora domado pela sucessão de barragens e acompanhado ao longo da margem direita pela linha férrea do Douro”34.

É um dos mais impressionantes miradouros sobre o fantástico vale do rio

Douro para se admirar a região do Douro. Nada lhe falta; os vales cavados dos

rios Douro e Corgo, as vinhas a perder de vista, as aldeias arrumadas nas

encostas, as casas de quinta, os fraguedos e a solidão de uma pequena capela,

dedicada a S. Leonardo, que a devoção popular ergueu há muitos anos.

Miguel Torga, que amou este lugar, para ele único, descreveu este monte

como “um navio de penedos”35, cujo capitão é S. Leonardo, que vai “a

navegar num doce mar de mosto”36, sorvendo os cheiros “a terra e a

rosmaninho” típicos da região. O escritor comparou este miradouro a um

barco gigantesco de pedra que aqui tivesse encalhado para a eternidade. E

continua a divagar, descrevendo:

“O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio... Um poema geológico. A beleza absoluta”37.

34 VASCONCELOS, Maria Antónia, Lugares a Visitar em Portugal, Lisboa, Selecções do Reader’s Digest, 2001, p. 67. 35 TORGA, Miguel, Diário (IX), Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 889. 36 Idem, Ibidem, p. 889, (Poema a S. Leonardo de Galafura). 37 Idem, Diário (XII), Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1995, p. 1234.

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Todos se referem a este miradouro com um misto de assombro e

admiração:

“Dei uma saltada a S. Leonardo de Galafura e descortinei, deslumbrado, o majestoso panorama circundante, com o Douro lá no fundo e os vinhedos impecavelmente alinhados a subir em socalco pelas encostas a cabo, infindáveis plantios de vinha”38.

2.2 – Casal de Loivos Lá em cima, a aldeia, depois, a vinha, «deitada aos ombros de montes

risonhamente acidentados», como disse Fialho de Almeida. A vista abarca, em

frente, a Quinta das Carvalhas, em baixo, a da Roêda, e ao lado direito, a da

Foz. Ao fundo, o Pinhão e o Douro, numa curva serpentina, abrindo assim

uma das mais belas paisagens do Douro vinhateiro.

Uma varanda sobre o Pinhão e o vale aberto e curvo do Douro. Uma

nova perspectiva sobre o mesmo palco grandioso. A aldeia, ainda alvar,

cresceu no alto de encostas íngremes, envolta em anéis de videiras. Fica, por

estrada, a meia dúzia de quilómetros do Pinhão, mas, ao primeiro olhar, parece

que lhe toca os pés.

2.3 – S. Salvador do Mundo Cinco quilómetros a leste de S. João da Pesqueira fica um sítio chamado

o Ermo. Aqui a encosta desce abrupta até ao rio; “é uma colina solitária que

mansamente se vai levantando até subir muito alto e descer depois, abrupta,

sobre as águas do rio Douro, que parecem ficar a uma distância infinita”39. Lá

do alto, avistava-se em tempos o famoso Cachão da Valeira, onde naufragou o

barão de Forrester e outros menos famosos, hoje amansado pela barragem. O

38 FREIRE, António, Lendo Miguel Torga, Porto, Edições Salesianas, 1990, p. 238. 39 VASCONCELOS, Maria Antónia, Lugares a visitar em Portugal, Lisboa, Selecções do Rider’s Gigest, 2001, p. 70.

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lugar era de tal modo perigoso que os marinheiros, ali chegados,

encomendavam a alma ao criador, entre súplicas a S. Salvador do Mundo. É

um lugar antigo e sagrado. As aras votivas lá deixadas pelos Romanos

testemunham-no, tal como as capelinhas cristãs:

“os eremitas cristãos foram construindo capelinhas, marcando os passos da subida como se fossem os passos de Cristo para um calvário. Restam as do século XVIII. Lá no alto é São Salvador do Mundo. É já o Paraíso, e ali mora um Deus poderoso mas compassivo que reparte milagres a quem os vem pedir. Nos muros do templo, tabuinhas40 pintadas contam essas histórias das concretas ajudas de Deus, e os homens que viajam até ao Ermo e sobem a colina e olham o misterioso curso do rio e a amplidão das montanhas, mesmo que não avistem outros homens, sabem que não se encontram sós”41.

40 “As tabuinhas” são uma referência aos ex-votos que ainda se encontram nalgumas capelinhas e ermidas. Anexo III. 41 VASCONCELOS, Maria Antónia, op. cit., p. 71.