Bachelard Materialismo Interpretação Usp Letras1329

download Bachelard Materialismo Interpretação Usp Letras1329

of 36

description

Materialismo interpretação.

Transcript of Bachelard Materialismo Interpretação Usp Letras1329

  • O MATERIALISMO RACIONAL DE GASTON BACHELARD

    PERSPECTIVAS EPISTEMOLGICAS E ANTROPOLGICAS

    1. INTRODUO

    As caractersticas da obra Le Matrialisme Racionnel tm naturalmente suscitado comentrios e interpretaes que so, sobretudo, do foro restrito da epistemologia. Foi esta, sem dvida, a rea dentro da qual o autor teceu preferencialmente as suas .consideraes ou no fossem os desenvolvimentos da cincia contempornea, os sieius pressupostos e as suas consequncias, que, de um modo dominante, o preocupavam e atraam. Assim sendo, em princpio, nada h da nossa parte que se oponha aos sucessivos aprofundamentos que, nesse sentido, vm sendo feitos do livro em causa. Diramos apenas que lamentamos a relativa e incompreensvel escassez dos mesmos.

    Mas se a orientao dominantemente escolhida correcta, tambm legtimo que se encare a possibilidade de um alarga-mento das perspectivas de anlise. Estamos convictos de que todos lucraro com um tal procedimento, o qual, embora consi-derando as motivaes primeiras da obra que, alis, por serem as primeiras no so inevitavelmente as nicas , as dilatar e as re-interrogar luz de novas reas de reflexo.

    O estudo da problemtica antropolgica subjacente ao mate-rialismo racional tem de ser visto, neste contexto, como mais um contributo que, con juntamente com outros de natureza diversa, aspirar a explorar uma faceta bastante esquecida de um con-

    __ 7

  • ceito que, de outra maneira, sairia necessariamente empobrecido em tudo quanto respeita sua complexidade multidimensionaL Isto , h qui no desperdiar as potencialidades que o mesmo encerra no nos submetendo, por isso, a catalogaes rgidas e a classificaes mais ou menos automticas e institucionalizadas, Catalogaes e classificaes essas que, entretanto, tendem a remeter todas as consideraes de teor antropolgico sobre os escritos de Bachelard para a sua obra potica

    Mas este trabalho, adiante-se desde j, no tem a preten-so de cumprir um projecto to ambicioso como aquele que aca-bmos de anunciar: ele ser, em ltima instncia, o seu prprio anncio...

    Atentos aos inconvenientes que advm de um afunilamento inquestionado das pticas de estudo de uma qualquer questo, conscientes tambm dos parmetros fundamentais dentro dos quais evoluem as reflexes bachelardianas no Matrialisme Ration-nel, deter-nos-emos em alguns dos principais aspectos episteno-lgicos inerentes noo que este ttulo destaca para, finalmente, passarmos a um brevssimo esboo do que poder ser uma sua abordagem tipicamente antropolgica. Realce-se que no h, deste modo, qualquier inteno de subalternizar a importncia dos referidos aspectos epistemolgicos nem de os submeter a um esquema prvio de tratamento antropolgico. Muito pelo con-trrio, este tratamento ser condicionado pela crtica que deles faremos.

    Talvez estejamos perante um ensaio de meta-epistemologia com finalidades antropolgicas...

    2. CONSIDERAES GERAIS

    Desde que se acompanhe a evoluo dos conhecimentos cientficos sobre a matria no perodo contemporneo, somos levados a ficar surpreendidos com o facto de que o materialismo possa ainda ser tido, pelos filsofos, como uma filosofia simples, at mieismo como uma filosofia simplista. Com efeito, os proble-^ mas considerados pelas cincias da matria multiplicam-se actual-mente e diversificam-se com uma tal rapidez que o materialismo cientficose o seguirmos apenas no detalhe dos seus pensa-mentos efectivos est em vias de se tornar a filosofia mais complexa e mais varivel que se pode ter (M.R.,1).

    8

  • Estas palavras iniciais de G, Bachelard permitem-nos tra-ar, partida, algumas das caractersticas fundamentais das opes do autor e que interessam directamente para o desenvol-vimento de umas tantas consideraes prvias que nos propo-mos fazer*

    Constatamos assim que: > no conhecimento cientfico contemporneo que encon-

    trado o detonador inalienvel da necessria mudana de sentido da reflexo filosfica

    Admitido o ponto anterior, desdobra-se todo um con-junto de ataques que sero desferidos contra o materialismo mecanicista e, concorrentemente, contra o idealismo transcenden-dental e espiritualista,

    -Como alternativa superadora destas doutrinas filosficas tradicionais, Bachelard desenvolve o materialismo racional que, por vezes, chega a insinuar-se enquanto expresso filosfica do materialismo cientfico.

    Uma das preocupaeis centrais da reflexo bachelardiana , de facto, a denncia do deslocamento e do encobrimento ope-rados pela filosofia clssica prevalecente em relao ao cerne da problemtica cientfica contempornea. Esta situao apontada como responsvel pelo enorme desfasamento, pela inadequao, que existe entre o pensamento filosfico e as exigncias do pro-gneisso cientfico mais recente. Com efeito, este obriga a uma profunda reconverso dos princpios do conhecimento, a qual os filsofos profissionais continuam a querer ignorar preferindo permanecer no universo especulativo das generalizaes, das intui-es ilusrias, das unificaes precipitadas e das dicotomizaes inviveis.

    Estas distores empreendidas pela filosofia talvez no interessassem tanto a Bachelard se no interferissem de maneira bastante directa na epistemologia do trabalho cientfico. Disto no se apercebero, contudo, muitos homens de cincia, empe-nhados como esto na sua pesquisa disciplinar. Para o filsofo da cultura atento torna-se um fenmeno flagrantemente claro: Um pano de fundo de filosofia alimentada de convices no discutidas muitas vezes o refgio nocturno do cientista* Ele cr que a sua filosofia um resumo do seu saber; ela no muitas vezes seno a juventude do seu saber, sieno um condensado dos primeiros interesses que o impeliram para o seu saber, O cien-

    9

  • tsta no professa mesmo sempre a filosofia clarividente da sua prpria cincia. (...) A cincia no tem a filosofia que merece (M.R., 19-20).

    Que filosofia tem ela ento? Precisamente a filosofia que se fica pelas aparncias ou pelas formas dos objieictos. Exemplos: a dialctica bergsoniana que pairava somente sobre um mundo de objectos no se comprometendo verdadeiramente no conheci-mento da matria e todo o materialismo natural, ingnuo e caduco que, apregoando a v afirmao de uma complexidade que estaria em reserva nas coisas, acaba por desembocar num irracionalismo e tender para o idealismo espiritualista ao ignorar a dialctica da intervieno objectivante da aco racional.

    neste contexto que emerge a determinao de Bachelard em se centrar mo interior da actividade cientfica, no materialismo cientfico. Este ser o ncleo de toda uma teorizao que, a par dos seus xitos, ter de enfrentar os riscos das suas limitaes: entre os xitos figura, sem dvida, a constatao dos graves des-vios epistemolgicos que decorrero de uma persistncia dos esquieimas filosficos tradicionais; entre as dificuldades sobressai a ausncia de uma perspectiva histrica alargada que explici-tasse amplamente as relaes entre a evoluo dos discursos cien-tficos e as estruturas econmico-sociais e polticas, bem como um certo enovelamento das correntes filosficas criticadas. A aposta na edificao de uma filosofia coerente e adequada aos princpios epistemolgicos da cincia sua contiennpornea, essa, se uma dificuldade que constantemente assaltar o desenvolvi-mento da sua obra, tambm uma das chaves do seu xito.

    Rompendo, pelo menos parcialmente, com as poderosas correntes espiritualistas e intuicionistas, o nosso autor vai pro-curar identificar e incrementar um novo racionalismo. Oposto ao formalismo e ao inatismo discordante do idealismo clssico , cptico face ao realismo materialista, promove a matria racional. Uma notria alterao de conceitos, ainda que frequentemente prisioneira de uma terminologia hesitante e alheia, serve este projecto. As solues e as vias que ele encontra so, contudo, para alguns comentadores, revolucionrias apenas na aparncia pois conservariam, por exemplo, um idealismo encoberto por um vocabulrio materialista e dialctico. A verdade que pensamos que, depois de Bachelard, nada ficou na mesma, inclusive, os devaneios de poder do filsofo... A filosofia directa da

    10

  • matria contrapondo-se ao materialismo qu
  • antropolgico Este espao para a filosofia , todavia, proporcio-nado pela indagao epistiemolgica que no deixar de benefi-ciar de um alargamento da sua problemtica e dos caminhos que lhe do acesso evitando, deste modo, o seu encurralamento: que a dialctica da razo cientfica, depois de detectados os mltiplos meandros do seu desenvolvimento, , com redobrado vigor, uma dialctica do conhecimento e, por o ser, igualmente uma dimen-so fundamental da realizao da natureza humana. Atiram-sie para as profundezas do passado histrico as formulaes filos-ficas dominantes ao demonstrar-se a inevitabilidade da sua supe-rao por ela ser, inclusive, inerente prpria ascenso a estdios superiores da condio humana (a ideia de uma hierarquia no conhecimento intimamente associada de progresso no> , com efeito, estranha a Bachelard),

    Qualquer abordagem que queira enquadrar as estruturas do pensamento cientfico, que a epistemologia desvendou, tem agora de enfrentar tambm o homem que, com elas, se delineou A abertura da epistemologia antropologia no assim um acaso: uma exigncia filosfica da prpria epistemoloiga.

    Mas, depois & tudo isto, o nico homem que resta ser o homem racionalista o cientista? Ser, de facto, a cidade cientfica um tecido social atomizado? Temos fortes razes para pensar que no, desde que nos recusemos a circunscre-ver as concluses da reflexo bachelardiana, de uma forma deli-berada e arbitrria, s suas motivaes primeiras para, despre-conceituadamente, as explorarmos at s suas derradeiras con-sequncias.

    Percorramos, pois, o caminho que, da epistemologia, nos leva aos horizontes da antropologia...

    3, AS ETAPAS DA EPISTEMOLOGIA

    3,1 Objecto e matria

    Uma das mais significativas preocupaes de Bachelard no Matrialisme Rationnel a de proceder desmontagem do con-tedo de duas noes que, com frequncia, esto na origem de indesejveis equvocos: so elas as de objecto e de matria*

    12

  • A este propsito destaque-se, desde j, a sua afirmao de que h uma essencial solidariedade objecto-matria a qual no permite, nomeadamente, a subalternizao desta em funo daquele ou a reduo daquele a esta. Para esse efeito, o terreno da objectivida decientfica reperspectivado atravs da crtica das proposta filosficas tradicionais a um tal respeito e quie so agrupadas em torno de duas correntes principais: a do materia-lismo clssico e a do idealismo das formas. Num caso tende a ser sobrevalorizada a matria enquanto complexidade objectiva (exterior); no outro privilegia-se a forma apriorstica e objecti-vante diante da matria.

    Valer a pena determo-nos, sobretudo, naqueles que o nosso autor apresenta como sendo os verdadeiros vectores cons-titutivos da matria em si miasma e em referncia ideia de objecto.

    3.1.1. A resistncia e as transformaes materiais como instncias especficas da noo (d?e matria

    A admisso da resistncia como instncia da matria afigura-se como imprescindvel para a constituio do materia-lismo activo e serve para, objectivamente, demonstrar as insu-ficincias dos propsitos do racionalismo geomtrico estrito pre-sente na doutrina bergsoniana.

    A solidez das substncias , neste contexto, um dos dados a que recorre Bachelard para ilustrar a legitimidade de uma filosofia directa da matria que, por o ser, consagrar a noo de campo de obstculos, correlata da de resistncia, contra todo o expansionismo idealista da forma: os projectos vo contra os obstculos. Com efeito, na concepo bergsoniana, o primado iria para as categorias do sujeito que conhece, o qual, pelo projecto, realizaria na matria o seu prprio plano, utili-zando designadamente a solidez como um meio e ignorando que, com frequncia, a forma depende da solidez em si mesma. Quanto mais precisa se tem de tornar a forma, mais se torna urgente ter-se em considerao a matria que a recebe (M.R., 13).

    Com a valorizao das transformaes materiais, Bache-lard procura igualmente atingir a filosofia idealista das formas

    13

  • (diga-se de passagem que, muitas vezes, mais nas suas expres-ses vulgarizadas do que nas suas verses originais)* Alerta agora para a existncia de uma dinmica interior matria que se manifesta atravs de transaces materiais, de misturas de substncias, de uma aco verdadeiramente volumtrica que faz com que ela se subtraia precisamiente ao domnio da forma ao exprimir, de uma maneira directa, as suas potencialidades de deformao. A forma perde os privilgios imcondicionados que detinha, a matria sai assim das prises da forma. Da que a cincia da matria tenha de ser percorrida pelo inter-mate-rialismo que se instrui nas reaces mtuas de diversas subs-tncias (M.R., 17).

    Para se compreender o nexo destas achegas de Bachelard h que ter bem presente que a matria de que ele nos fala a que se constri na interveno dialctica do conhecimento' cien-tfico pois apenas h conhecimento cientfico de objectos fabri-cados tecnicamente, elaborados experimentalmente, nunca de um conceito geral de matria natural e estabelecido dentro de uma continuidade e de uma dependncia relativamente a um primitivo conceito prprio do senso-comum.

    S assim se perceber o motivo que o leva a recusar uma assimilao da matria ao objecto que seria, afinal, o objecto da intuio vulgar: esta deixa escapar a dinmica racional profunda da matria ou, simplesmente, despreza-a quando desponta nos limites da sua indiscriminada auto-suficincia* O pensamento cientfico, afirma-nos em (o)posio extrema, nega o objecto para descobrir a matria {M.R., 24). que pela perspectiva objectiva, ao fazer-se do objecto um correlato da atitudo objec-tiva, ignora-se que ele (e a forma) so instantes da prpria matria e desprezam-se os obstculos materiais desde o momento em que estes introduzam contradies tais que tornem absurdo o mundo inicialmente visado. Sacrifica-se, ento, a matria por causa da irracionalidade de que ela aparece imbuda para se salvar a cmoda harmoinia que transmite a clareza objec-ti vante,

    Bis que possvel, contudo, alcanar uma clareza mate-rialista: o materialismo, enfrentando a diversidade dos fenme-nos, pode ordenar e hierarquizar as substncias com coeficien-tes de segurana comparveis aos coeficientes do conhecimento das formas (M.R., 63), sem que isto signifique que a homoge-

    14

  • neidade dessas substncias seja redutvel a uma homogeneidade sensvel. Esta homogeneidade sensvel, de que partem muitos filsofos tomando-a como um dado apreendido por uma espcie de comunho ntima, nada tem a ver com a homogeneidade material que no s obtida, atravs do intermaterialismo, pela aplicao de tcnicas progressivamente rectificadas, como tam-bm, no sendo uma mera categoria, o ponto de partida duma dialctica materialista (M.R., 64).

    Concluindo, o objecto no est mais, antiteticamente, diante do sujeito e da sua conscincia. H antes um processo de peine-trao da objectividade, empreendido pelos mtodos cientficos, que normaliza a matria, isto , que faz com que ela deixe de ser o informe e o informvel ( 2 ) , situao que justificara a tese da centralidade da conscincia, sede das categorias com que se partia para a descoberta de um objecto que era uma coisa e no um resultado. Ora, o objecto institui-sie agora no termo de um longo processo de objectividade racional, noutros termos, o debate faz-se decididamente em torno de um objecto sem valor realstico directo na experincia comum, de um objecto que preciso dfsignar como um objecto segundo, de um objecto que precedido de teorias (M.R., 142).

    32. Dialctica do processo de produo dos conhecimen-to cientficos

    extremamente difcil apurar, de uma forma sinttica e, ao mesmo tempo, razoavelmente1 precisa, o que Bachelard entende por dialctica. M. Vade, por exemplo, inventaria seis sentidos, partida diversos, chegando classificao^ seguinte (3): dialc-ticas objectivas, ou seja, as que s'ei reportam ao objecto cientfico (ex,: matria-energia); dialcticas entre mtodos cientficos (ex.: anlise-sntese, descrio-construo); dialcticas epistemo-lgicas gerais (

  • Embora Vade tenha chegado a esta classificao no termo de uma pesquisa que cobre o conjunto da obra de Bachelard, podemos, pelo mosso lado, adiantar que a extrema variedade que ela comporta descortinvel apenas no Matralisme RationneL Torna-se assim, de facto, quase impossvel dar uma simples defi-nio deste conceito que seja suficientemente abrangente pelo que desistiremos de um propsito desse tipo, Limitar-nos-emos caracterizao de alguns aspectos fundamentais em ligao eistreita com a problemtica da produo dos conhecimentos cien-tficos, contexto em que a dialctica , alis, decisiva.

    Feitas estas reservas, passemos anlise de um significativo extracto que nos permitir extrair um conjunto inegavelmieinte importante de concluses,

    A doutrima das valncias qumicas, mesmo que se examine apenas no perodo moderno, pode, repetimo-lo, desenvolver-se sob duas formas conforme sistematize o aspecto propriamente qumico ou se preocupe com as correlaes electrnicas no fen-mteno qumico das valncias. Mas atendo a que o electro loca-lizado no segue a mecnica clssica, a que o electro mo tomo e na molcula obedece aos princpios da mecnica quntica, somos conduzidos para uma dialctica fundamental. uma reforma radical da compreenso dos fenmenos que exigida se quiser-mos comparar as explicaes qumicas e as explicaes electr-nicas (M./?., 138).

    De que dialctica fundamental se trata aqui? Que reforma radical dos fenmenos se exige? Poder-se-ia pensar que haveria agora lugar para uma proposta de pura e simples substituio de uma teoria por outra. Todavia no isso que acontece, Bachekrd fala-nos an*es, de uma maneira empolgada, dos contornos de uma dupla compreenso, dos desenvolvi-mentos paralelos duma cincia na verdade duplamente activa. Em simultneo, destaca as insuficincias da dialctica hegeliana (exactamente por ela no poder comportar a complexidade desta sua proposta: Quando Hegel estudava o destino do sujeito racional sobre a linha do saber, no dispunha seno de um racio-nalismo linear, de um racionalismo que se temporalizava sobre a linha histrica da sua cultura realizando os movimentos suces-sivos des diversas dialcticas e snteses (idem). O novo racio-nalismo ser, para Bachelard, aquele que repercute e abrange o pensamento matemtico mormente nos seus desenvolviifleritos

    16

  • no-euclideanos no campo da geometria, ou seja, um raciona-lismo com vrios registos* O racionalismo, j to nitidamente multiplicado na filosofia matemtica moderna .pela multiplicidade das dialcticas de base, pela oposio das axiomticas, recebe, nos domnios da fsica e da qumica contemporneas, uma multi-plicidade de linhas de cultura visando um mesmo objecto (idem).

    Por outras palavras: a dialctica que lesta no cerne do racionalismo cientfico uma dialctica da complementaridade e no tanto uma dialctica da contradio o que explica que Bachelard chame a ateno para uma multiplicidade de linhas de cultura visando um mesmo objecto

    Para ele; o que de facto importante que se coloquem, e se vejam os conceitos dentro das relaes que mantm com os seus fundamentos tericos. Assim, um novo conceito, ou, pelo menos, uma nova formulao de um conceitodentro de um prodesso de rectificao , nega os anteriores apenas dentro das condies actuais que lhe deram origem. Estas condies envolvem as outras no seio de uma progresso em espiral que, sendo sobretudo envolvente, contrai as precedentes retirando-lhes, sem as eliminar, a possibilidade de extenso indiscriminada e, por isso, abusiva, Aquilo a que Bachelard chama dialctica alerta Canguilhem o movimento indutivo que reorganiza o saber alargando as suas bases, em que a negao dos conceitos e dos axiomas no seno um aspecto da sua generalizao, A esta rectificao dos conceitos, Bachelard chama alis envolvi-mento ou incluso da mesma 'maneira que superao, ( . , , ) As contradies nascem no dos conceitos, mas do uso incondi-cional de conceitos de estrutura condicional ( 4 ) , Podemos, deste modo, afirmar que a dialctica da contradio lgica , por si mesma, estranha dialctica bachelardiana.

    As rupturas no processo de conhecimento cientfico, mais do que -antagonisimos ou negaes, evidenciam principalmente as diescontinuidades de princpios que separam este conhecimento do do fsenso-comum e dos estdios que ele anteriormente per-correu, O saber no nunca cumulativo, isto , ele no evolui atravs de uma mera sobrieposio de dados colhidos num objecto exterior e sempre no sentido de uma tranquila progresso para a Verdade, Ele no igualmente dinamizado por uma dialctica objectiva ( 5 ) , No se trata, em caso algum, de uma dialctica exterior ao prprio processo do conhecimento, dialctica que,

    _ , jy

  • noutras obras, chega a ser classificada de apriorstica. A dialc-tica, para Bachelard, atravs do binmio rectificao-complemen-taridade interior ao procasso de produo dos conhecimentos cientficos, exprime, em primeio lugar, a ilegitimidade de toda e qualquer forma de dogmatismo. por isso que o esprito cien-tfico moderno realiza um exacto doseamento de prudncia e de audcia, sendo incessantemente animado por uma espcie de dialctica da inveno e da reflexo (M.R.t 123).

    neste contexto, alis, que ide nos fala da necessidade da persistncia de uma dvida potencial que se apressa a distinguir da dvida prvia cartesiana pois aquela, ao contrrio desta, no pode em nenhuma circunstncia desaparecer, mesmo perante uma experincia bem sucedida: actualizando-se, a dvida deve renas-cer a cada momento isto porque no estamos nunca seguros de que o que foi fundamental continuar a s-lo. A auto-crtica, qual se tem de submeter todo o saber cientfico, provoca recti-ficaes recorrentes que podem atingir as noes de base, o mesmo dizer, os fundamentos: um esprito dogmtico nomea-damente o de um filsofo enquistado nos parmetros tradicionais do saber consideraria tais pressupostos como insusceptveis de serem ultrapassados. Eis a razo que explica os ataques de Bachelard aos filsofos que, no que concerne especificamente ao conhecimento da matria, teimam em querer sempre fundamen-tar de uma vez por todas ( 6 ) . A dialctica viva do reciona-lismo e da realizao que a prpria dinmica do pensamento cientfico combate a noo, seja ela qual for, que se tormes um fssil da memria: cada uma delas, inclusive a de valncia qumica, tem um campo de aplicao restrito.

    Temos assim que o raciomalismo caracterstico do materia-lismo cientfico o racionalismo materialista dialctico porque activo e aberto: activo ao dirigir as experincias sobre a matria, aberto por lhe ser inerente a proliferao de proble-mticas em que se confrontam orientaes e perspectivas no coincidentes, as quais ordenam uma diversidade crescente de matrias. Esta expresso diversidade crescente, utilizada por Bachelard, identifica inequivocamieinte uma dialctica em que a sua evoluo no s no anula a pluralidade como a incentiva na medida em que no consentnea com nenhum progresso linear aprioristicamente traado. O vector racionalista teide, sem dvida, a ser o dominante mas no quadro paradigmtico da

    18

  • cincia contempornea e, mesmo assim, sem bloquear uma impor-tante variedade axiomtica. O realismo, esse1, intransigente-mente atacado* -o, contudo, no por ser visto como uma bar-reira que ameaasse o avano de uma eventual hegemonia teinta-cular e asfixiante do racionalismo materialista mas, precisamente, por apresentar a realidade como o suporte absoluto de um conhe-cimento em que apenas haveria a distinguir sucessivos aprofun-damentos de um real imutvel.

    Ao mesmo tempo, o racionalismo materialista definido como um racionalismo ordenador, isto , que; organiza a diver-sidade da matria tornando-a racional e nunca uma fonte de irracionalidade. Desta maneira, a matria entra na esfera da razo dialctica, condio imprescindvel para que se configure, afinal, enquanto objecto cientfico. Da que as descobertas cien~ tficas sejam imprevisveis somente para aqueles que esto fora do seu processo de construo e que, portanto, ignoram as pistas que, dentro dele, vo sendo abertas.

    Esta previsibilidade das descobertas no pode, no entanto, ser confundida com um apriorismo, que rapidamente resvalaria para o dogmatismo, o qual Bachelard se obstina em combater. Na sua ptica, o dogmatismo desponta, conforme vimos, quando se no admite o carcter situado e restrito dos fundamentos encon-trados. Ora, no isto que o racionalismo materialista impe o que, como evidente, contrariaria de imediato a abertura com que se o caracteriza. A previsibilidade das descobertas decorre muito simplesmente da prpria racionalidade de uma matria que se integrasem se diluir na actividade cientfica. Animada pela tenso das investigaes, desencadeia problemas bem colo-cados a que se ligam experimentaes rigorosas que leivam a concluses vlidas no quadro coerente das condies necess-rias da organizao racional das experincias do materialismo construdo*

    O primado da dimenso racionalimbuda de uma dia-lctica que , sobretudo, um movimento de (re) construo recusa os fundamentos absolutos mas exactamente para abrir caminho tecelagem de raciocnios que, por seu turno, consti-tui activamente a ^necessidade progressiva, a que exercita pro-gressiva e regularmente o pensamento humano mo seu trabalho cientfico (MJ?., 145) sob a impulso das matemticas. Deste modo, designadamente na qumica quntica, as direces tetra-

    19

  • dricas no so meras hipteses. So antes calculadas de acordo com o princpio da razo necessria submetendo-se s exign-cias de um mtodo de conhecimento g>etral racional.

    Podemos pois dizer que a dialctica do materialismo racio-nal , simultaneamente, uma dialctica envolvente, diversifica dor a e realizadora remetendo, respectivamente, para os planos das rectificaes recorrentes, do polifilosofismo e da complementari-dade e do progresso racional.

    3.3. O real cientfico

    Atravs de tudo quanto ficou dito transpareceu j, leviden-temente, a maneira como Bachelard encara o real no mbito do conhecimento cientfico contemporneo. Valer todavia a pena determo-nos um pouco mais neste aspecto atendendo impor-tncia de que ele se reveste.

    Com efeito, convm nunca esquecer, partida, que, no texto bachelardiano, o real cientfico que est em causa, ser-vindo o real do senso^comum de termo de comparao que per-mite, por contraste, o delineamento daquele. Dei facto, o real do senso-comum, enquanto real natural apreendido pelas intui-es primeiras, no chega a constituir-se como um objecto de reflexo autnomo. Entre um e o outro emergem, entretanto, os pontos de ruptura que marcam as descontinuidades qu>ei separam o conhecimento vulgarem estreita conexo com as cincias e as filosofias tradicionais daquele que caracteriza a actividade gnosiolgica, designadamente, da qumica e da fsica contempo-rneas para a qual urge encontrar formulaes filosficas ade-quadas.

    fcil, neste contexto, surpreendermos no Matrialisme Rationnel um ataque cerrado ao realismo, o qual havamos j assinalado. Em contrapartida, steria extemporneo assimilarmos esse ataque a uma recusa global e incondicional de toda e qual-quer forma de realismo. Seria ainda precipitado interpret-lo como sinal de um projecto de desqualificao pura e simples da realidade ino-cientfica. O que Bachelard sistematicamente des-promove a tendncia mais ou menos inconsciente para o esta-belecimento de continuismos que no considerem, e procurem mesmo contrariar, as especificidades do real cientfico e, por ine-

    20

  • rncia, do real do sengo-cmum, ditadas pela prpria evoluo dos conhecimentos* O carcter englobante da dialctica bache-lardiana consagra essa dualidade do real,

    A verdade que, dentro da confuso e da inrcia reinantes, surge como principal vtima o conhecimento cientfico contempo-rneo, o qual v os seus pressupostos e as suas consequncias epistemolgicas e filosficas constantemente deturpadas pelas vises tradicionais do saber, A questo do real cientfico , a partir do esboo desta situao, tratada de modo exemplar. Iremos acompanh-la dei perto durante algum tempo.

    Comecemos, ento, por verificar que o racionalismo, o mate-rialismo e o realismo so amplamente reformulados e dialectizados atravs de uma dinmica que, percorrendo-os, os aproxima mas no terreno de um novo quadro epistmico. S assim captaremos o sentido profundo da ruptura que deve ser provocada no seio do materialismo exactamente para permitir que se compreenda como o materialismo discursivo e progressivo se afasta do mate-rialismo naif. que o materialismo ordenado, sado das segu-ranas do realismo, encontra-se com as certezas do racionalismo. S o duro trabalho do pensamento e da experincia cientficas pode soldar o realismo e o racionalismo (M.R., 17-18),

    Assiste-se, deste modo, a uma conteno das fronteiras do realismo ingnuo de que as filosofias materialistas clssicas par-tilhavam e que as filosofias idealistas nunca chegaram a ultra-passar, deste estado de coisas que, em sntese nos d conta o extracto seguinte: Os dilogos de Berkeley estabelecem-se entre dois filsofos extremistas: um homem que! cr imediatamente na realidade do que v e do que toca e um filsofo que se absorve na conscincia da realidade primeira do> seiu esprito. As questes so grosseiras, as respostas dogmticas, O realista postula toda a realidade, o idealista afirma todo o esprito. Do lado idealista, nenhuma aluso estrutura cultural do esprito. Nenhum dos dois filsofos se situa na histria do pensamento e da experincia humanas. Discute-se o problema do conheci-mento do mundo exterior sem mesmo invocar a discursividade dos conhecimentos (M,/?,, 194),

    Se, para superar as lacunas do mateialismo, Bachelard nos fala da necessidade de um entrecruzamento (renovado entre o realismo e o racionalismo a ser operado pelo trabalho do pen-samento e da experincia cientficas, a propsito do idealismo

    * 21

  • dvga o reconhecimento de um nacionalismo solidrio de uma tcnica a instalar precisamente entre o idealismo e o realismo. Quer dizer, partindo da crtica de duas atitudes filosficas, em princpio, distintas, vemos que ele prope, indistintamente, a inclu-so do vector racional como nico capaz de permitir a eBesctiva implementao de um novo olhar epistemolgico susceptvel de repercutir as exigncias do esprito cientfico :emergente. H tam-bm, implicitamente, um abandono claro do recurso radicaliza-o das dicotomizaes que traria, como resultado inevitvel, o enovelamento das suas propostas nas disputas da metafsica que, na generalidade, se revelaram incapazes de se libertar das teias do realismo imediato. De facto, para Bachelard, este , final-mente, apangio tanto das filosofias materialistas institudas como do idealismo desde o momento em que ambos os sectores sobre-valorizam a precedncia de um real ainda que de natureza diversa que, para o conhecimento, se apresenta como um dado. Mas eis que a actividade do homem instaura entre o esprito ocioso e o mundo contemplado a realidade humana. O racio-nalismo aplicado que traz provas por intermdio da ttecnicidade a filosofia transaccionai que arreda as dvidas gerais. O poder da variao fenomenotcnica uma instncia nova da filosofia. Ela duplica o real atravs do realizado {M.R., 197). Ou ainda: O dado substitudo pelo trabalhado e o trabalho das matrias repercute-se num trabalho das noes (idem). A mat-ria (progressivamente) racionalizada , enfim, o real cientfico: um real (progressivamente) racional tecido na dinmica realiza-dora da discursividadei construtora do conhecimento cientfico onde os progressos da racionalidade e os progressos da realiza-o se reforam mutuamente.

    3A. Fenomologia e Fenomenotcnica

    A fenomenologia clssica designao que, em Bacbeiard, tem um sentido muito amplo frequentemente criticada pelas suas insuficincias e compromissos que legitimam, entretanto, como alternativa, a proposta de uma fenomenotcnica a qual assenta numa tripla ruptura: do estatuto da conscincia, do objecto do conhecimento e da investigao cientfica propria-mente dita.

    22

  • fenomenologia clssica participava de todos os pressu-postos das filosofias da contemplao sendo a o sujeito, obvia-mente, um sujeito que contempla ao usufruir do privilgio das determinaes visuais, por outras palavras, do primado das intui-es primeiras condicionadas pelas formas apriorsticas que orga-nizam o todo dentro dos contornos de uma cincia formal. Desta maneira, a intencionalidade da fenomenologia tradicio-nal aquela que prolonga a da conscincia comum. Da que seja, inevitalvelmentie, uma intencionalidade sem grande profun-didade subjectiva e sem alcance verdadeiramente objectivo (M.R., 208) Sem alcance objectivo porquie! repercute a atitude natural remetendo-se para uma descrio de objectos que consi-dera completamente delineados pelas snteses alcanadas sobre dados materiais imediatos mesmo que, para tal, haja que despre-zar a dinmica da matria entretanto considerada como plo de irracionalidade e de desordem. Sem profundidade subjectiva porque pretere o racional em funo do consciencil: sacrifica o trabalho produtor e criador da razo para salvar o poder de uma conscincia que constata a ordem do mundo.

    A fenomenotcnica, sendo a fenomenologia do materia-lismo instrudo, abrange necessariamente a matria trabalhada, a matria em trabalho, a construo dos objectos cientficos e o intermaterialismo. Na verdade, agora, um conceito cientfico se e apenas se for tcnico, o mesmo dizer, se for acompanhado de uma inerente tcnica de realizao, de uma operao de cons-truo intelectual que faa dele um objecto da cincia.

    H, nestas circunstncias, um implcito reconhecimento de uma alterao muito profunda no estatuto ie mo papel da cons-cincia, fenmeno que, alis, Bachelard pe frequentemente em evidncia, embora o estudo da dimenso subjectiva da fetnome-notcnica no ocupe no Matrialisme Rationnelcomo ele, de resto, o diz um lugar central. Mesmo assim, sobre esta pro-blemtica, possvel rfeter duas noes complementares que, no seu conjunto, definem a situao global da nova ideia de cons-cincia. So elas as de conscience opinitre e de conscience mlangeante. Como estas expresses so de difcil traduo, con-servamo-las aqui na sua verso original.

    A primeira, que praticamente sinnima da de conscin-cia do trabalho, correlaciona-se intimamente com a instncia da resistncia e decorre do princpio de que o obstculo sus-

    23

  • cita o trabalho: fortalece e aumenta o esforo do corpo e, reforando a conscincia que tem um objecto, inscreve forte-mente o seu carcter direccional na realidade material, o que leva a sobrepor ao racionalismo geomtrico um racionalismo da resistncia material. Atravs dela, o cientista torna-se cons-ciente das margens de aplicao de um conceito particular (M.R., 15) e rompe, de facto, com a dominao das intuies primeiras, estticas e apriorsticas.

    Quando Bachelard pergunta se a conscience opinitre pode formular projectos materialistas preparando a adminsitrao das foras a suscitar (M.R., 12), se se pode despertar a conscin-cia no prprio contacto com a materialidade (idem), ou ainda, se a conscience opinitre pode formar ideias, esquemas, hip-teses referentes resistncia material (idem) apesar de serem questes que ficam sem uma resposta explcita, abre-nos um pouco mais a porta atravs da qual poderemos chegar a uma compreenso minimamente segura do alcance deste conceito que, temos de o aceitar, permanece bastante obscuro ao longo das poucas pginas em que especificamente abordado.

    Temos assim que a conscincia que emerge da episte-mologia bachelardiana no , em caso algum, uma conscincia que se limite a receber impresses e a emoldur-las com as suas formas, (Parecei-nos, entretanto, que as interrogaes que aca-bmos de transcrever, mais do que meras perguntas, so antes afirmaes pois destacam as caractersticas do esprito cient-fico, do pensamento cientfico, do racionalismo aplicado, que prope em toda a sua obra epistemolgica, que o con-ceito original de conscincia que utiliza, sobretudo, para poder cotejar de perto as suas posies com as da filosofia tradicional, vai revelando, cada vez mais, um contedo demasiado estreito ' isto julgamos ser evidente incompatvel com a subverso que se opera sobre os pressupostos dessa filosofia. Com efeito, a conscincia de que Bachelard nos fala no nem uma cons-cincia solitria passa-se a privilegiar a sua insero social nem uma conscincia tributria do sujeito comodamente insti-tudo: o sujeito, segundo alguns autores, deslizaria mesmo para um quase-sujeito, O que claro que ele entronca decidida-mente num processo dialctico.

    Urge que nos libertemos dos quadros mentais e da prpria semntica que a tradio filosfica nos legou se quisermos

    24

  • apreender as profundas alteraes de sentido que Bachelard intro-duz sob a capa de uma terminologia que, apesar de tudo, nem sempre mudada em perfeita sintonia* Aceite esta observao, nada nos impedir de perceber que a conscience opinitre parti-cipa, sobretudo, na dinmica da matria e a frmula que ele encontrou para, marcando o carcter no-bruto e no-passivo desta, realar, ao mesmo tempo, a interveno racional da acti-vidade cientfica que torna a matria que se objectiva indisso-civel do plano da dialctica do prprio processo do conheci-mento cientfico, A conscincia que se desperta e se ergue no contacto com a materialidade a conscincia que formula pro-jectos que atingem a instncia da resistncia material mas que podem e devem ser continuamente reformulados em funo desta* Da a ideia de trabalho que aqui, talvez, no queria dizer mais do que dialctica

    No que concerne conscience mlangeanie, Bachelard for-nece-nos uma definio mais precisa* Ei-la: uma conscincia que acompanha vrios objectos, vrias matrias, que participa em tudo o que se funde, em tudo o que se insinua, conscincia que se agita diante de toda a matria que se agita (M.R., 15), Definio complementar e amplificante a qual demonstra bem que no estamos perante duas conscincias, mas apenas diante de duas formas de abordagem concorrentes de uma s conscin-cia complexa e multifacetada*

    A conscience mlangeante , ao fim e ao cabo, a cons-cincia do inter-materialismo e que, por isso, se embrenha e se compromete com a dure ntima do tempo da matria para a captar a prpria aco das misturas das substncias que escapa ao universo restrito da clareza objectivante* Esta, submetendo-se aos privilgios da forma, despreza tudo quanto' tenha a ver com os limites indecisos da matria em si mesma* Estabelece-se a diferena capital entre a conscincia diante do objecto e a conscincia diante da matria*

    A fenomenotcnica aparece-nos, neste contexto, como uma nova fenomenologia que, contrapondo-se fenomenologia do sujeito contemplador, surge da actividade humana que reordena a natureza atravs de snteses formuladas sobre bases tericas bem explcitas, em funo da coordenao racional destas bases tericas (MJ?,, 23)* uma fenomenologia da experimen-tao e da produo racional que abate a dicotomia sujeito-

    25

  • -objecto para fazer prevalecer a ideia de um prces pene-trante o qual, ultrapassando as imagens materiais do senso--comum, realiza a objectividade materialista. E o que a objectividade materialista? , nem mais nem menos, aquela que, emergindo da relao duma matria particular com uma outra matria particular, implica uma actuao rectificante da conscincia que, para tal, se tem de libertar das impresses pri-meiras e inconscientes do sujeito. A conscincia rectificante, situada no ponto de interseco das duas conscincias de que falmos, , afinal, o real ponto de partida da fenomenologia materialista (M.R., 29), isto , da fenomenotcnica.

    3,5. O estatuto social do materialismo racional

    O materialismo instrudo inseparvel do seu estatuto social (MJ?., 31)* Esta afirmao, por si mesmadesenrai-zada do seu contexto original , seria facilmente subscrita por qualquer pensador marxista pensamos que sem dificuldades de maior. Todavia, se a reintegrarmos no corpo da obra que aqui objecto do nosso estudo, rapidamente nos aperceberemos que essa adopo no seria assim to fcil. Com efeito, a dimenso social do conhecimento aparece, em Bachelard, com um sentido muito prprio que no se encaixa pacificamieinte em nenhuma das correntes filosficas dominantes. Vejamos porqu.

    Este cuidado em integrar no conhecimento cientfico a com-ponente social, traduz uma preocupao que, pela maneira como fundamentada e tratada, se afasta consideravelmente quer do materialismo dialctico, quer do idealismo. Relativamente ao segundo, representa uma reaco dirigida contra as prerrogativas da conscincia individual e solitria que tudo abarcaria, autono-mamente, a partir dos seus quadros transcendentais e rgidos. Diferentemente do primeiro, remete, de preferncia, para um uni-verso (social) bem mais circunscrito do que aquele em que os autores marxistas pretendem ver desenvolver-se, logo partida, os discursos cientficos de molde a que se consagre inequivoca-m)ente o papel determinante das estruturas ideolgicas, polticas e econmicas da sociedade global. No materialismo dialctico* contemplada ainda uma dialctica objectiva, exterior ao processo

    26

  • de conhecimento em causa, isto sem prejuzo de nele intervir. Em Bachelard, essa dialctica omitida e, talvez, recusada. Da as reservas de um autor como ML Vade: Face aos idea-lismos especulativos que ele combate, d prioridade ao facto de conhecermos as matrias apenas atravs de actividades (contacto; iexperincia, instrumentos) que obrigam a rectificar os nossos conhecimentos ou concepes anteriores todas mais ou menos imaginrias, idealistas, etc. Face ao materialismo filosfico que combate igualmente, d prioridade ao carcter social e tcnico das nossas actividades de conhecimento. Ora, tudo isso tem uma grande coerncia, centrada no facto de que para ele a acti-vidade essencial. Mas por isso mesmo rejeita a tese da objecti-vidade dos nossos conhecimento, o facto de que os nossos conhe-cimentos sejam cada vez mais objectivos. Estes so, para ele, conhecimentos de objectos fabricados tecnicamente por uma socie-dade organizada racionalmente: a cidade-cientfica. Mas Bache-lard no tem teoria cientfica da sociedade. A organizao racio-nal da cidade-cientfica um facto, um facto emprico e abstracto, um meio neutro fora das lutas sociais e ideolgicas (7).

    Pelo nosso lado, estamos plenamente! de acordo com Vade quando ele afirma que, para Bachelard, o conhecimento (cien-tfico) um conhecimento de objectos fabricados tecnicamente na cidade-cientfica a qual uma sociedade organizada racio-nalmente. Estaremos ainda de acordo com a ideia de que, dos textos bachelardianos, no irrompe nenhuma teoria cientfica da sociedade (em geral). J nos restam as mais srias dvidas quanto ao rigor da ltima assiero transcrita.

    Repare-se que o autor citado, para conseguir levar a bom termo a sua tese de que Bachelard se insere amplamente na his-tria das filosofias idealistas tese central do seu livro , pro-cede a uma subtil mas capital confuso que a que o leva a identificar, sem mais, a organizao racional da cidade-cient-fica com um meio neutro fora das lutas sociais e ideolgicas. Aos nossos olhos, esse realmente um ideal epistemolgico de Bachelard mas no a constatao de um facto actual. Se acei-tarmos partir para uma leitura interpretativa das duplas por ele constantemente invocadas, comearemos a descobrir elementos que, no mnimo, esbatero a concluso a que chega Vade. Com que sentido sero trazidas ao seu texto as oposies con-vices inconscientes / convices racionais, vida onrica / vida

    27

  • racional, homem nocturno / homem diurno, onirismo / intelectua-lismo, imagens / ideias, etc? Proporcionar a atenuao progres-siva ,no trabalho cientfico, do primeiro dos plos de cada uma destas oposies em benefcio do outro? Sem dvida que ser isto que o cientista deve tentar alcanar mas sem que tal, evi-dentemente, signifique que se enfrenta j uma situao de facto consumado ou que se preveja, a prazo, a sua consumao. Por outras palavras: o cientista deve, incessantemente, ter como meta epistemolgica a libertao da razo cientfica de pressupostos inconscientes, no discutidos e empricos que tero uma influn-cia indesejada no curso dos seus raciocnios e na apreciao que deles faz. Pensamos que, hoje em dia, nenhuma comente epis-temolgica contestar, partida, a legitimidade de um objectivo deste tipo. Ele mesmo um dos motores da actividade; cientfica. O que se revelaria como controverso e mesmo insustentvel seria a afirmao da existncia actual ou futura de uma comunidade des cientistas usufruindo de uma ruptura absoluta, de um corte, relativamente a esses pressupostos e, em conexo, de uma inde-pendncia face s componentes ideolgicas que percorrem a sociedade global Bachelard nunca faz uma afirmao dessas com a qual, alis, empobreceria irremediavelmente o mbito da sua dialctica: sendo as filosofias tradicionais persistncias con-temporneas de expresses adequadas a discursos cientficos ultrapassados o mesmo ser dizer que elas so agora ideolo-gias prope simplesmente que haja uma vigilncia crtica quanto s suas interferncias nas construes cientficas recentes. Mas chega, inclusive, a denunciar a iluso do homem de cincia para o qual no restam dvidas sobre uma efectiva e ntida separao entre as convices inconscientes e as racionais.

    verdade que, por exemplo, a sua psicanlise materia-lista parte de uma diviso entre a vida racional e a vida on-rica ou tem, pelo menos, como misso estabelec-la. No se confunda, todavia, esta arrumao metodolgica com uma com-partimentao de facto. O psiquismo, segundo ele nos diz, parti-cipa de uma dupla situao, isto , da que deriva das suas convices espontneas indiferentemente designadas por ima-gens, sonhos, etc. e dos resultados do trabalho cientfico ideias, convices racionais, etc. Desta nossa actual refe-rncia dupla situao de todo o psiquismo entre tendncia pra a imagem e tendncia para a ideia, deve subsistir que por muito

    28

  • comprometidos que estejamos nas vias do intelectualismo no devemos jamais perder de vista um plano de fundo do psiquismo onde germinam as imagem (M.R*, 19) Frequentemente acrescenta , esta dupla situao esta encoberta aos olhos do qumico francamente empenhado na cultura moderna. O cien-tista cr, com efeito, como o dizamos mais acima, ter riscado com um trao definitivo todo um mundo de imagens sedutoras (idetn.) E que forma sustenta essas imagens sedutoras? Pre-cisamente a de uma filosofia mal elaborada, ou seja, a de uma filosofia que no mais do que uma condensao de primeiros interesses subordinada aos cnones das doutrinas clssicas

    Aps tudo o que se acabou de expor, julgamos que sier correcto dizer-se que, no Matralisme Rationnel, da cincia emerge um projecto de superao autnoma dos nveis tem que labora a reflexo filosfica dominante. Verifica-se, de igual modo, que as correntes filosficas clssicas so globalmente ati-radas para o rol das sobr>evivncias (desajustadas) do passado e, enquanto tal, combatidas. Haveria assim apenas lugar para um papel negativo das ideologias, nunca se assistindo a uma dialctica positiva cincias-ideologia(s) que, como o pretende o materialismo dialctico, implementasse e corporizasse o progresso do conhecimento no seio de uma ideologia cientfica: as relaes entre as cincias e as ideologias saldar-se-iam sempre, no texto bachelardiano, por um combate dirigido por aquelas com o apoio das respectivas reflexes epistemolgicas contra estas. Se isto ocorre, contudo, porque a cincia no tem a filosofia que merece tornando-se urgente, por isso, lanar as bases de uma filosofia renovada e adequada cincia contempornea. Concorrentemente, impe-se a tentativa de reduo dos vestgios ideolgicos, nomeadamente do realismo, com que os investigado-res integrados na cidade cientfica julgam poder erguer, por vezes, a sua filosofia.

    Esta comunidade1 cientfica no , assim, neutra. Ao pro-curar romper, pela sua organizao racional, com pressupostos que sendo do senso-comum so, afinal, da sociedade global e que se transformariam numa priso estreita para o progresso pluricntrico da cincia se se assumissem como fundamentos abso-lutos ela reconhece a sua (incmoda) insero social. Importa aqui, uma vez mais, que no se identifique a noo de ruptura como um meio que servisse para aniquilar um dos elementos ! que

    2 9

  • se confrontam. Ela antes o espao intermdio da espiral da dialctica envolvente.

    Se Bachelard no tem uma teoria cientfica da sociedade, julgamos que isso acontece, sobretudo, porque um tal domnio estava fora das preocupaes imediatas da sua investigao e no porque, ipso-facto, negasse a possibilidade e o interesse da sua elaborao, O projecto bachelardiano , isso sim, mais res-trito do que aquele que anima o materialismo dialctico o que no o torna, automaticamiesnte, reducionista. Logo, quando trans-gredimos as suas margens, temos de ter conscincia das fronteiras epistemolgicas dentro das quais o mesmo se constituiu, condio necessria para que, da transgresso,

  • Horizontes antropolgicos sero os espaos que o homem (e a reflexo sobre ele) convidado a percorrer atravs do texto do Matrialisme RationneL

    No essencial, as poucas pginas que se seguem contero uma re-leitura, conscientementie dirigida para o objectivo anun-ciado, de tudo quanto ficou para trs, acrescentando^se elemen-tos novos sempre que deles dispnhamos e se revelem decisivos Re-leitura essa que, sendo incompleta, estrutura o esqueleto de estudos posteriores*

    42. Dimenso antropolgica do coaihccimento

    S, Moscovici caracteriza o sc. XX como aquele que faz do progresso cientfico o critrio das relaes entre as socieda-des existentes e das relaes no interior de cada uma delas (8), A fsica quntica, a cosmologia relativista e as matemticas assu-mem, na sua opinio, o primado que, nos dois sculos anteriores, coubera, sucessivamente, questo poltica e questo social. Pondo depois em evidncia o fenmeno novo de que agora a interveno experimental no obedece mais a um modelo de representao concreta da realidade que fazia dos instrumen-tos intermedirios prticos graas aos quais o sujeito da aco ou do conhecimento aborda e apreende um objecto ou uma reali-dade j formadas; que, pelo contrrio, ela atinge e constitui, at um certo ponto, o objecto e o real, metamorfoseando-os ou recompondo-os depois de, por isso, ter destrudo os estados ante-riores, conclui que no portanto a fraqueza, a imperfeio do homem que a experincia e a sua aparelhagem suprem, mas a fraqueza e a imperfeio das foras materiais, da natureza ( 9 ) ,

    Trata-se, com efeito, de urna alterao de perspectiva que leva necessariamente a uma rearrumao dos vectores fundamen-tais atravs dos quais se procura apreender a situao do homem no mundo*

    Poder-se- dizer, contudo, que esta alterao mais apa-rente do que real j que ela no deixa de continuar a consagrar, dentro da boa tradio da cincia galilaico-cartesiana, a ideia de um Homiem tendencialmente dominador da natureza o qual, por acrscimo, se veria presentemente munido de surpreendentes e eficazes recursos para consumar essa atitude dominadora, A cin-

    31

  • cia ocuparia assim o lugar do poltico >e do social apenas por causa dos meios de poder que hoje em dia indiscutivelmente outorga. As anlises sociolgicas confirmam este raciocnio sendo tambm consonantes algumas passagens do prprio Bachelard. Pela qumica e pela fsica nuclear escreveu ele, o homem recebe .inesperados meios de poder, meios positivos que ultrapas-sam todos os devaneios de poder do filsofo (M.R., 5). O homem ainda segundo palavras suas torna-sie um demnio posi-tivo que administra foras reais pela ligao estreita e dur-vel da vontade de poder e da vontade de saber Destaque-se, com o mesmo sentido, o evidente optimismo com que ele encara o progresso cientfico, progresso que aprofunda a capacidade interventora da cincia contempornea de que o homem beneficirio.

    Reparemos, contudo, que h trs pontos cruciais para a tradio da cincia clssica que Bachelard no hesita em abater. So eles:

    a dicotomia sujeito/objecto; o cogito; a ideia de um progresso linear. Contra o primeiro, privilegia o conceito de relao, contra

    o segundo, o de cogit&mus* A relao insere-se no princpio da essencial discursividade do pensamento racional que afronta os pressupostos apriorsticos bem como o determinismo mecanicista. O esboo de um cogitamus inviabiliza, principalmente, a atitude contemplativa e, ao mesmo tempo, em apertada conexo com o conceito anterior, abre caminho dialctica da construo do conhecimento cientfico a qual, por seu turno, rompe com o cogito cartesiano que coextensivo conscincia, integrava todo o psi-quismo humano deixando na penumbra o papel da comunidade cientfica, em benefcio da auto-sistncia do sujeito individual (10). No progresso cientfico, pelo seu lado, passa a ter cabimento uma diversidade de vias exploratrias ainda que, entretanto, seja-mos forados a aceitar que Bachelard tende a dirigir esta diver-sidade, em termos de devir da cincia, sob o peso que atribui ao racionalismo materialista

    Deste modo, estamos em condies de verificar que, se ao remeter-se o homem para uma dialctica do conhecimento, nos seus diferentes planos e direces, se lhe aponta um projecto de poder, ao mesmo tempo, afirma-se que ele no mais a sede

    32

  • majestosa de decises que, tranquilamente, pressupunham esse poder prvio e potencial , aguardando-se somente o decorrer do seu exerccio efectivo.

    Se verdade que, em Bachelard, o homem se no deslum-bra perante uma ordem natural rigidamente estruturada que lhe incumbiria descobrir, verdade tambm que o homem, no passa, pura e simplesmente, a impor a sua ordem Intimamente percor-rida a dimenso humana pela dimenso do conhecimento, aquela participa da rede (estrutural mvel, diferenciada e instvel que se oferece agora como matriz geral do discurso 11). Para ns mesmos este , alis, um dos rumos mais importantes que se des-cortina no pensamento bachelardiano. No ser por acaso que ele se desenha logo no incio do Matriaisme Rationne onde, depois de se alertar para o facto de ser niecessrio que os homens se unam para saber e para compreender, para tocar nos pontos de onde parte o movimento do saber, se lescreve: Pode ento atingir-se o homem :na sua vontade de obra coordenada, na tenso da vontade de pensar, em todos os seus esforos para rectificar, diversificar, ultrapassar a sua prpria natureza, E as provas mais tangveis desta ultrapassagem, no as encontra-remos ns na ultrapassagem da experincia comum, na ultrapas-sagem da prpria natureza? Porque, quer o queiramos quer no, tudo se duplica no homem atravs do conhecimento. Por si s, o conhecimento um plano do ser, o plano da potencialidade do ser, potencialidade que cresce e se renova na prpria medida em que o conhecimento cresce. A cincia contempornea faz entrar o homem num mundo novo. Se o homem pensa a cincia, renova-se enquanto homem pensante (MJ?., 1-2). Nestas cir-cunstncias, o homem no , sem mais, um ser que conhece: ele um ser que s se definir plenamente (mas tambm progressi-vamente) ma medida em que participa na dialctica do conheci-mento (cientfico).

    Na posse destes elementos, sentimo-nos obrigados a lanar um brteve olhar sobre o significado antropolgico da tese da ruptura entre o conhecimento cientfico e o conhecimento do senso-comum. que no sendo legtimo afirmar-se, a partir dela, que Bachelard prope a eliminao absoluta deste segundo nvel do conhecimento em funo do primeiro, mesmo aceitando-se que h, entre os dois, uma descontinuidade, tambm no correcto que se diga que o homem comum sucumbe face ao homem de

    33

  • cincia. Atesta-o bem, alis, o reconhecimento explcito de uma dupla base de uma antropologia completa , todavia, inques-tionvel o sentido humana mas hierarquicamente realizador do racionalismo cientfico. Mas se, por ser dialecticamente progres-sivo, superador, tambm envolvente. No se eonfunda, pois, hierarquia com contradio e, muito especificamente, com exclu-so. Quanto a este aspecto, a antropologia, bachelardiana , sem dvida, uma antropologia completa. Contudo, tal no acontece custa de uma viso grosseiramente unitria do homem mas, como vimos, por causa dos contributos da crtica epistemo-lgica que, discriminando os patamares ascendentes do conheci-mento, proporciona a compreenso e a implementao da tenso realizadora que assalta esse homem a qual, a ser depreciada, a sim, o amputaria irremediavelmente Esta amputao seria, ento, encoberta pelos lugares-comuns que habitualmente se asso-ciam ideia de uma natureza humana imutvel e a priori a ser desvendada no territrio sacrossanto da unidade sincrtica do homem nunca a ser construda.

    Tenha-se sempre bem presente, no seguimento de E. Morin, que uma abertura antropolgica cuja necessidade , nos nossos dias, vital para a sobrevivncia do prprio homem indissoci-vel da crtica dos princpios tradicionais do conhecimento (12).

    4.3. O homem como sujeita do conhecimento cientfico

    Ao longo do Matrialisme Rtionnet so constantes os ata-ques categoria de sujeito conforme ela foi debitada pelas filo-sofias idealistas, A categoria de processo dialctico, entretanto, emerge em detrimento desse mesmo sujeito.

    Facilmente se podero adivinhar as consequncias extre-mas que adviriam desta situao se, com D. Lecourt, admitssemos que um no-sujeito as matemticas ocupa o lugar deixado vago pelo sujeito das filosofias clssicas. Todavia, embora com-preendamos o alcance da expresso usada pelo autor citado, no somos aqui to radicais (13). Limitamo-nos a aceitar que a crtica bachelardiana incide sobre todo e qualquer sujeito emprico ou transcendental, para rejeitar, deste modo, no s a debilidade de um psiquismo contingente como tambm a fixidez e a abstra-

    34

  • o de um cogito universal Subscreveremos, por isso, a posio de J. C. Margolin o qual prope que chamemos ao sujeito humano de Bachelard operador concreto. Esta designao, potencialmente menos equvoca que a de D. Lecourt, recobre segundo as suas prpria palavras a actividade operatria, construtora, laboriosa, sempre recomeada, sempre inacabada que a de um homem ou de uma equipa situado historicamente, enraizado socialmente, dotado de um certo tipo ou de um certo nvel de formao tcnica e cultural (14). Homem situado num grupo a cite scientifique que constitui, deste modo, o sujeito de uma actividade cientfica cujas estruturas no reduzem o esta-tuto desse sujeito ao de uma mera resultante de condicionamen-tos exteriores Muito simplesmente, o sujeito que Bachelard carac-teriza um sujeito racional e no um (sujeito consciencial), criador e produtor, que, encontrado no aprofundamento racio-nalista da conscincia, se reconhece e se compromete na dis-cursividade dos conhecimento em vez de ser cioso representante de uma conscincia solitria, imediatamente clara e tranquila , divorciada dessa mesma discursividade*

    Importa recordar que a concepo de sujeito especialmente visada por Bachelard, a que Bergson associa a um homem enquanto manifestao de um lan criador mas livre, segundo ele, desprezada e subalternizada exactamente pelo desenvolvi-mento da inteligncia racional do homo sapiens. Em Bergson, a identificao do homem, na sua especificidade vital, encontra-se pelo distanciamento em relao razo cientfica que, adaptada ao conhecimento e domnio da matria inerte, se revela incapaz de apreender a particularidade e a originalidade dos fenmenos da vida, em contrapartida, domnio privilegiado da intuio. Ora, no Matrialisme Rationnel o homem define-se preferencialmente como um dos plos da dialctica racional a qual proporciona a relao dinmica entre ele e a matria (no mais matria inerte!) sem, todavia, o dissolver: O verdadeiro princpio produtor do materialismo activo, o prprio homem, o homem racionalista (M.R., 33). Esta posio altera todos os dados do problema porque agora o homem no isolvel da matria que, pelo conhe-cimento cientfico, , ela tambm, racional. O isolamento rec-proco dos elementos desta dupla clssica uma iluso que idea-lista quando transposta para o terreno da filosofia da cincia, A epistemologia bacbelardiana verifica a ilegitimidade de um tal

    _ 35

  • procedimento ao nvel do conhecimento cientfico contemporneo, a histria das cincias detecta e confirma a marcha progressiva que conduz a esse conhecimento. Assim, a tese central de Bergson surge como uma indesejvel e arcaica fixao em estdios prece-dentes e ultrapassados.

    O homem emerge como um sujeito dialecticamente racional cujo acesso matria no mediato mas antes reconvertido pela mtua insero, daquele e desta, na relao dinmica que apa-mgio do processo do conhecimento cientfico.

    4.4. Homem, cultura c natureza: concluso...

    O homem homem pelo seu poder de cultura, A sua natureza, a de poder sair da natureza pela cultura, de poder dar, nele e fora dele, a realidade facticidade (M.R., 32).

    Este pequeno extracto servir-nos-, numa primeira abor-dagem, sobretudo para recapitular e confirmar algumas das prin-cipais concluses de teor antropolgico a que temos aqui chegado a propsito do pensamento baehelardiawo. Parecendo-mos ser evidente que a cultura em causa, na passagem acima trans-crita a cultura cientfica entendida como geradora de objectos segundos que so resultados e no dados, atendendo a que pela progressiva realizao do poder que essa cultura lhe confere que o homem se define enquanto homem, demarcando-se da natureza, julgamos ser, de facto, legtimo concluir-se que, para Bachelard:

    no h uma natureza humana previamente constituda; h, pelo contrrio, uma razo dialctica que, impulsio

    nando as construes cientficas, exclui, todavia, a natureza que as precede.

    Da que: 1. Os discursos cientficos sejam expresses de um pro-

    cesso dei homiaiizao crescente. 2. O homem de cincia represente um estdio relativa-

    mente avanado de realizao da natureza humana. 3. Haja uma descontinuidade entre o homem comum e

    o cientista (15), o que, conforme temos insistido, est longe de significar uma anulao global daquele em funo deste: a noo de corte estranha a Bachelard.

    36

  • Mas, com estas certezas, vm tambm algumas dvidas cujo impacto no podemos deixar que fique encoberto. Passa-mos a enumer-las:

    'No aceitar Bachelard a existncia de um certo fundo a ptiori que indica o sentido evolutivo da natureza humana e que, por ser extremamente formal, acaba por passar despercebido?

    No se anunciar, atravs das suas palavras, em vez de uma superao, um simples deslocamento das fronteiras da dico-tomia homem/natureza?

    Dentro de que medida que a sada do homem da natureza obedece a um preconceito antropocentrista?

    Dvidas embaraosas diramos mesmo indiscretas que parecem ameaar a harmonia e a coerncia do nosso discurso quando este se abeira do seu final. Contudo, talvez no haja discursos harmnicos sem dvidas coerentes...

    A verdade que Bachelard, apesar ,das suas mltiplas pro-postas revolucionrias, no podia inunca deixar de ser, ele mesmo, um homem do seu tempo e, enquanto tal, algum que tambm estava sujeito ao jogo das ideologias, A ideologia humanista era uma entre estas. ela que o leva, nomeadamente, a caracterizar a cultura (humana) e a natureza em termos de superioridade e de inferioridade relativas: A enorme massa da natureza desor-denada diante do pequeno lote dos fenmenos ordenados pelo homem no pode servir de argumento para provar a superiori-dade do natural sobre o cultural. Bem pelo contrrio, a cincia contempornea que se desenvolve e que cria a partir do enorme caos natural d todo o seu sentido potncia de ordem latente nos fenmenos da vida (M.R., 32).

    Quer dizer, impossibilitado em momentos bem precisos, que so, por sinal, aqueles em que se levanta com maior acuidade a temtica antropolgica, de passar por cima da dicotomia cul-tura/natureza, embora critique a o sentido escolhido pelas pers-pectivas tradicionais, no se consegue libertar dessa mesma dico-tomia. 6 que foi ela, afinal, quem serviu de pano de fundo para toda a trajectria epistemolgica que operou sobre um campo de anlise o qual, ao mesmo tempo que se expandia para novos espaos, se abrigava igualmente, em termos de dialctica sujeito--objecto (material), dentro do primeiro dos plos convencionados.

    Sendo o mundo natural, no quadro desta lgica, um mundo de fsseis do pensamento cientfico quase desprovido de fen-

    37

  • menos inter-materiais, a dialctica do conhecimento tem de ser activada a partir da realidade humana solidria da sociedade tcnica que constitui o meio cultural Logo, pressupe-se que o homem tem, para se realizar pelo conhecimento, de se sobrepor aos constrangimentos naturais. Para o fazer, s nele prprio > e no colectivo a que pertence que pode encontrar o neces-srio mpeto criador que o levar a ordenar os fenmenos, A natu-reza no-culturalizada aguarda no exterior?

    Sintetizando: na articulao das teses epistemolgicas e dos pressupostos antropolgicos que se encontram os pontos mais frgeis do pensamento bachelardiano. Todavia, no nos parece que a sua deteco comprometa o essencial do projecto do autor*

    Primeiro de tudo, as suas concesses inconscientes s ideo-logias clssicas confirmam aquilo que ele escreveu a propsito da sobrevivncia e da interferncia actuais das mesmas. Depois, tambm conforme escreveu vezes sem conta, falta uma nova filo-sofia, uma nova viso do mundo e do homem que responda s exigncias da cincia contempornea. Filosofia necessria e difcil. Mas a verdade que s com ela se poder perceber que a nova cincia no pensa contra os esquemas conceptuais anteriormente engrandecidos mas por cima deles, descortinando outros horizon-tes antropolgicos. Presentes mas adiados,

    A epistemologia bachelardiana contm uma antropologia prisioneira, paradoxalmente vigiada e ainda olhada atravs dos olhos da filosofia passada que so, apesar de tudo, os dele, os meus, os nossos...

    Adalberto Dias de Carvalho

    38

  • NOTAS

    (*) Autour de Bachelard Epistmologue, in Bachelard (Colloque de Cerisy), Union Gnrale d'Editions, Paris, 1074.

    (2) No podemos, a este propsito, deixar de recordar que Bachelard, sobretudo nas suas primeiras obras, subverte a noo numeno legada por Kan. Como escreveu D. Lecourt, a noo bachelardiana no s no kantiana no conforme noo que se designa sob o mesmo termo na Crtica da razo pura mas mesmo radicalmente antikantiana. Acrescenta ainda, mais frente, estie mesmo autor: Se relermos um artigo como Noumne et microphysique convencer-nos-emos sem dificuldade do sentido antikantiano da noo bachelardiana de numeno. Ela empregue precisamente para expri mir que a fsica contempornea transgride o interdito kantiano produzindo, graas ao valor indutivo das matemticas, objectos que escapam intuio sensvel. No portanto uma noo problemtica cujo uso seria negativo: mas uma noo absolutamente positiva que tem por funo retirar todo o limite ao conhecimento cientfico. Bachelard reenvia a noo de nmeno contra os pressupostos da filosofia crtica. (Bachelard ou le Jour et Ia iVuit, Grasset, Paris, H974, pp. 89 e 92).

    (3) Cf. Bachelard ou le Nouvel Idalisme Epistmologique, Ed. Sociales, Paris, 1075, p. 167.

    (4) Dialectique et Philosophie du Non chez Gaston Bachelard, in Etudes d' Histoire et de Philosophie des Sciences, Vrin, Paris, 193, p. 196.

    (5) No se pode assim tomar letra a afirmao introdutria do Mat- rialisme Rationnel de que o desenvolvimento da qumica daqui por diante to necessariamente implicado nas necessidades econmicas desenha uma linha particularmente ntida do materialismo dialctico (M.R., 6). Com esta passa gem, Bachelard pretende apenas alertar para as consequncias que o desenvol vimento cientfico tem para a sociedade em geral ,sobretudo ao nvel das trans formaes industriais. A expresso materialismo dialctico usada um tanto ou quanto livremente.

    (6) Tambm sobre esta relao entre a dialctica bachelardiana e a crtica ao dogmatismo se pronuncia J. -M. Benoist partindo, para isso, da an lise de La Philosophie du Non. A propsito deste tema, chama a ateno para o facto de, em Bachelard, a lgica dialctica apoiada na contra dio surgir como singularmente pobre e insuficiente quando se trata de pensar o desenvolvimento e a proliferao polifnica e policntrica dos novos campos cientficos sobre os flancos ds antigos espaos monolticos e seguros. Esta dialctica teria mesmo muito poucas possibilidades de assumir a impor tncia de uma racionalidade cientfica aberta e plural, dado que se limita contradio, servindo antes a prossecuo de um vector de alcance terico res trito. O np bachelardiano no portanto assimilvel ao no do marxismo, ainda menos ao do hegelianismo tradicional. (La Rvolution Structurale, Grasset, Paris, 1975, pp. (1011-1194).

    (7) Op . cit3 p. 254, s.p.n. (8) Essai sur VHistoire Humaine de Ia Nature, Flammarion, Paris, 19717, p. 30. (9) Ibid., p. '393.

    39

  • (10) Cf. J. -C. Margolin, Bachelard, Seuil, Paris, 1977, p. 93. C11) Cf. J. -M. Benoist, op. cit, p. 196. (12> Cf. La Mthode Ia N ature de Ia Nature, Seuil, Paris, 19775 pp. 9-14. (13) Cf. D. Lecourt, op. cit., pp. 102-103.
  • BIBLIOGRAFIA

    Apesar de nos termos apenas detido na anlise da obra Le Matrialisme Rationnel (S.a ed., PUF, Paris, 19172), para um estudo alargado do conceito que este ttulo consagra h que considerar ainda, pelo menos, os seguintes livros tambm de autoria de G. Bachelard:

    La Formation de VEsprit Scientifique, 2.a ed., Vrin, Paris, 1977. Le Nouvel Esprit Scientifique, 13.a ed., PUF, Paris, 1075. La Philosophie du Non, 7.a ed., PUF, Paris, 1975. Le Rationalisme Appliqu, 5.a ed., PUF, Paris. 1975. Essai sur Ia Connaissance Approche, 4a ed., Vrin, Paris, 1973. Quanto a trabalhos sobre Bachelard que especiBcamentei se debrucem

    sobre o conceito de materialismo racional, enquanto tema central cuja sur-surpreendente escassez j tivemos ocasio de lastimar , apenas conhecemos um:

    Dadognet (F.) Le Matrialisme Rationnel de Gaston Bachelard, in Cahiers de VInstitut des Sciences Economiques Appliques, Paris, junho de 19612.

    Estudos, em geral, sobre G. Bachelard h, como se sabe, muitos. Abster--nos-emos de transcrever aqui a sua enorme lista. Para alm dos que se encon-tram j devidamente referenciados nas notas, realaremos agora somente alguns daqueles que tm um interesse evidente para o aprofundamento do tema que abordmos:

    Benda (J.) La Critique du Rationalisme, ed. du Club Maintenant, Paris, (1949.

    Canguilhem (G.) Sur Une Epistmologie Concordataire in Hommage Bachelard, PUF, Paris, |19S7.

    Castellana (M.) // Surrazionalismp di Gaston Bachelard, ed. Ciaux, Npoles, 119174

    . Durand (G.) Les Structures nthropologiques de Vlmaginaire, PUF, Paris, il-96i3.

    Ginestier (P.) Pour Connaitre Ia Pense de Bachelard, Bordas, Paris, 1966 (contm uma importante bibliografia).

    Hyppolite (J.) L/Epistmologie de Gaston Bachelard, in Revue de VHistpire des Sciences et de leurs Applications, n. 1!2, Paris, 19164.

    Lalonde (M.) La Thorie de Ia Connaissance Scientifique selon Gasto Bachelard, Fides, Montreal, H966.

    Lecourt (D.) L/Epistmologie Historique de Gaston Bachelard, Vrin, Paris, 1969.

    Pour une Critique de rEpistmologie, Maspero, Paris, (1972. Marques (A.) O Modelo Racionalista de G. Bachelard, in Filo

    sofia e Epistemologia, ed. A Regra do Jogo, Lisboia, 1978. . Martin (R.) Dialectique et Esprit Scientifique chez Gaston Bache-

    lard, in Les Etudes Philosophiques, n. 4, Paris, out.-nov. de 19613. Oudeis (J.) Llde de Rupture Epistmologique chez Gaston Bache

    lard, in Revue de VEnseignement Philasophique, Paris, fev.-maro de 1971.

    41

  • BACHELARD'S RACIONAL MATERIALISM EPISTEMOLOGICAL AND ANTHROPOLOGICAL PERSPECTIVES

    ABSTRACT

    The connections between the themes: rupture scientific knowledge/com-mon knowledge double basis of a complete anthropology; statute of the subject conception of man; knowledge as a dialeeical construction dicho-tomy culture/nature, are the fundamental items within the context of a reflexion about the presuppositions and the anthropological implications! inherent in the epistemological proposals of G. Bachelard's book The Rational Materialism. We think these aspects remain insufficiently studied.

    LE MATRIALISME RATIONNEL DE BACHELARD PERSPECTIVES PISTMOLOGIQUES ET ANTHROPOLOGIQUES

    RSUM

    Les rapports entre les thmes: rupture connaissance scientifique/connaissance du sens-commun double base d'une anthropologie complte; statut du sujet ide d'homme; connaissance en tant que construction dialectique^dichotomie culture/nature, ce son les rfrences principales au sein d'une rflexion sur les fondements et sur les implications anthropologiques prsentes dans les proposi-tions pistmologiques de l'ouvrage de G. Bachelard Le Matrialisme Rationnel. On pense que ces aspects demeurent insuffisament approfondis.

    42