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As marcas do Cristo

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As marcasdo Cristo

federação espírita brasileira

Hermínio C. Miranda

As marcasdo Cristo

Lutero, o reformador

Vol. II

Sumário

SEGUNDA PARTE

LUTERO, O REFORMADOR

1 — o muNDo Em QuE NASCEu LuTEro ................................Introdução .............................................................................................

Digressão acerca da Historiologia ........................................................

Idade Média ..........................................................................................

A véspera da Reforma ..........................................................................

Questões sociais ..................................................................................

Vida econômica .....................................................................................

O sistema político ..................................................................................

As três crises da Igreja .........................................................................

O fundo do poço ...................................................................................

Os papas do Renascimento ..................................................................

A Inquisição ...........................................................................................

A Igreja na Alemanha ............................................................................

2 — o HomEm E A oBrASanto ou demônio? ................................................................................

As origens .............................................................................................

Epidemia de misticismo ........................................................................

Primeiros estudos ..................................................................................

As dores do espírito ..............................................................................

A caminho de Erfurt: a convocação ......................................................

O noviço ................................................................................................

A vida no convento ................................................................................

An gústias ...............................................................................................

A ordenação ..........................................................................................

A crise continua .....................................................................................

Uma influência decisiva: Staupitz .........................................................

Fundação da Universidade ...................................................................

O professor de Dialética .......................................................................

Viagem a Roma .....................................................................................

O Doutor em Teologia ...........................................................................

A luta externa e a paz interior ...............................................................

A doutrina começa a emer gir ................................................................

Os novos gentios ...................................................................................

O grande drama ....................................................................................

As indulgências .....................................................................................

Tetzel .....................................................................................................

As teses .................................................................................................

“Chegou aquele que esperávamos”... .................................................

O debate em Leipzig. Heidelberg .........................................................

A reação ................................................................................................

Convocação a Roma .............................................................................

Melanchthon: um reencontro ................................................................

Outro amigo: Frederico, o Sábio ...........................................................

“...é necessário que sofras...” ...............................................................

“Não recalcitres contra o aguilhão” ......................................................

Na calada da noite, uma porta falsa .....................................................

Uma atitude histórica ............................................................................

A missão Miltitz ......................................................................................

Encontro com Eck: pirotécnica oratória ................................................

Golpe por golpe ....................................................................................

O apelo à nobreza .................................................................................

A excomunhão: Levanta-te, Paulo! ......................................................

A citação de César — chamado de Deus ............................................

Afogamento em sangue ........................................................................

Worms — o point of no return ................................................................

Se Jesus me assiste... ..........................................................................

O conselho de Gamaliel ........................................................................

Wartburg, a CesarEia do século XVI .....................................................

Solidão e mediunidade .........................................................................

Pedro possuía trono? ............................................................................

A tradução da Bíblia ..............................................................................

Luteranos, não! ....................................................................................

Os profetas de Zwickau ........................................................................

Desordens e de sentendimentos ...........................................................

Uma sessão mediúnica em Wittenberg ................................................

As viagens e as epístolas ......................................................................

A Bíblia: uma retomada .........................................................................

Entre Deus e os homens .......................................................................

Novas ameaças .....................................................................................

A Reforma amplia-se .............................................................................

Po lêmica com Henrique VIII ..................................................................

A esquerda da Reforma ........................................................................

Livre-arbítrio e determinismo .................................................................

A Guerra dos Camponeses ...................................................................

Morte de Frederico ................................................................................

O casamento .........................................................................................

A Reforma se organiza ..........................................................................

Visita ções e a reforma do ensino ..........................................................

Protestantes ...........................................................................................

“Este é o meu corpo” ............................................................................

A bofetada de Satã ...............................................................................

Novos confrontos .................................................................................

A confissão de Augsburg ......................................................................

O longo e penoso diálogo epistolar ......................................................

A morte de João, o Constante ...............................................................

Consolidação da Reforma .....................................................................

O terro rismo ...........................................................................................

Melanchthon sob suspeita ....................................................................

A bigamia de Landgrave .......................................................................

Eck e Melanchthon ................................................................................

Ameaça turca ........................................................................................

O obreiro exausto ..................................................................................

A difícil tarefa da conciliação ................................................................

A última viagem .....................................................................................

O fim. Home nagens e saudades ..........................................................

3. A PErSoNALiDADE ..............................................................

4. oS AmiGoS ..........................................................................Staupitz ..................................................................................................

Melanchthon ..........................................................................................

Frederico, o Sábio .................................................................................

João, o Cons tante .................................................................................

João Frederico, o Magnânimo ..............................................................

Justus Jonas .........................................................................................

5. A TEoLoGiA .........................................................................

6. A mEDiuNiDADE ....................................................................

7. CoNCLuSÃo ..........................................................................

Segunda Parte

LUTERO, O REFORMADOR

1

o muNDo Em QuE NASCEu LuTEro

iNTroDuÇÃoDiGrESSÃo ACErCA DA HiSTorioLoGiA

Em nossos primeiros contatos com a História Universal, des cobrimos notável acervo de fatos, verdadeiro banco

de dados, tudo bem arranjado, catalogado, classificado e datado. Lá estão, também, as figuras humanas que movi­mentaram os acontecimentos, tal como passaram à memó­ria dos homens. Identificamos Júlio César, com a cabeça de basalto negro, belíssima peça de arte que se preservou. Henrique VIII é o do retrato de Hans Holbein, o jovem, hoje na Galeria Corsini, em roma. Napoleão é o soldado lendário do cha péu em tricórnio e mão no peito.

Por outro lado, os períodos históricos são nitidamente mar cados e delimitados. A Grécia brilhou no quarto século antes do Cristo, Roma alcançou as culminâncias da glória entre o ano 100 a.C. e o século quarto da nossa era. A Idade Média, que se seguiu ao apogeu romano, tem dia, mês e ano para terminar, em 1453, com a queda de Constantinopla

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em poder dos árabes. No dia se guinte, começa a Idade Moderna, que vai até 14 de julho de 1789, quando cai a Bastilha. Sempre cai alguma coisa nos limites cro nológicos das épocas históricas: Roma, Constantinopla, a Bastilha. Que irá cair para separar a idade atual da próxima?

Essa bem arrumada catalogação dos acontecimen­tos basta per feitamente àqueles que jamais voltam aos li­vros de história; mas, para os outros, é apenas o começo. Verificamos, mais tarde, que a cabeça de César, o retrato de Henrique VIII ou o tricórnio de Napoleão são apenas instantâneos de uma pose que se fixou para a posterida­de, não a essência do homem, suas motivações, seus im­pulsos, suas conquistas, suas misérias e grandezas. Um dia des cobrimos, atônitos, que só versando sobre o período do consulado e do império napoleônico, Thiers escreveu mais de vinte volumes. Se mergulhamos mais fundo no passado, nas poucas páginas que nos contaram no ginásio, a história de roma se amplia de maneira as sustadora, pois somen­te para estudar a decadência do império ro mano, Gibbon escreveu dois maciços volumes com cerca de duas mil pá­ginas. e Guglielmo ferrero escreveu outro tanto. isso não quer dizer, por outro lado, que conhecemos hoje todas as origens e implicações dos grandes movimentos históricos. Sobre Roma, por exemplo, que tem merecido enorme cota de atenção dos pensa dores, há uma torrencial literatura, tanto acerca do painel geral quanto de pormenores, como figuras destacadas de seus césares, de seus generais, de seus pensadores, artistas e aventureiros. Mas, no fundo, fica o mistério impenetrável das coisas: o como e o porquê.

— Os dois grandes problemas da história — escreve o bri lhante J. S. Reid, na sua autorizada Cambridge Medieval History — consistem em explicar a ascensão de roma e a sua queda.

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além do mais, ainda não surgiram nos gabinetes da pesquisa historiadores “oficiais” em condições de pene­trar as motivações es pirituais das grandes personagens da saga humana. A historiologia é, ainda hoje, e agora mais do que nunca, basicamente materialista. Em sua esmaga­dora maioria, quase unanimidade, os historiógrafos pen­sam que são os acontecimentos ou as épocas que suscitam os homens, quando, ao contrário, os homens já renascem espiritual mente programados para suscitar de um modo ge­ral os aconteci mentos, dar forma e conteúdo a uma época. A História não é um jogo de azar, onde as coisas acontecem por acaso. Não é por acaso que Lutero lidera o movimento da Reforma, nem é por acaso que, em quase trinta anos de excomunhões, bulas, editos, ameaças e perseguições, nin-guém lhe toca num só fio do cabelo, a despeito de sua co­ragem indômita, que raia nitidamente pela temeridade, da audácia arrogante com que se dirige a papas, imperadores, reis, duques e outros nobres e prelados menores.

e como é difícil, agora, entender, em todas as suas im­plicações, o verdadeiro papel de Lutero no mundo que ele encontrou! É que vivemos hoje num contexto de liberdade de pensamento que ele próprio ajudou a formular e imple­mentar. E, ao fazê-lo, destruiu as estruturas segundo as quais nos seria mais fácil ava liá-lo. Quando buscamos pe­netrar o espírito daquela época — há apenas quatro séculos e meio! —, enveredamos por uma selva densa de relatos.

Tentemos figurar um exemplo, partindo do nosso rudi­mentar aprendizado da História. Lutero nasceu exatamen­te 30 anos depois da famosa queda de Constantinopla e, portanto, já do lado de dentro das fronteiras da chamada Idade Moderna. É, porém, um homem moderno, no senti­do atual da palavra? Certamente que não. Que espécie de mundo encontrou ele? Estavam liquidadas as estruturas

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medievais, segundo podemos inferir de uma análise super­ficial dos livros didáticos mais primários? E o que é medie­valismo? Que vem a ser feudalismo? Que regime político predominava naqueles tempos? Que tipo de estrutura so­cioeconômica, se é que havia alguma? Como viviam aque­las criaturas? Quem mandava em quem?

iDADE mÉDiA

Cada pergunta dessas representa um universo à parte. Come ça-se, por exemplo, com a expressão Idade Média, e a primeira coisa que se descobre é que as pessoas que vive­ram nesse período nem sequer conheciam tal classificação, que é inteiramente arbi trária e posterior. Arbitrária por­que foi colocada como um rótulo inexpressivo, à falta de melhor, para designar uma época mais ou menos distinta entre a idade chamada “antiga” e a “moderna”. Palavras, palavras, palavras, que aceitamos a contragosto, apenas por motivos de ordem didática. Num mundo em constante processo de mutação evolutiva — e às vezes involutiva — é difícil separar períodos e rotular épocas, mesmo porque os rótulos deformam em razão da própria limitação que im­põem. É comum, por exemplo, chamar a Idade Média de Dark Ages, em inglês, ou seja, Idade das Trevas. Por quê? Os iniciadores da expressão consideravam que aquele pe­ríodo histórico foi obscurantista, a verdadeira época da ig­norância. A expressão é inexata, pois as candeias humildes da cultura mantiveram­se acesas durante mil anos para re­acender as luzes do Renascimento. Parece, no entanto, que muitos dos grandes espíritos criadores e inovadores esta­vam, de fato, recolhidos ao mundo que para nós é invisível. o fogo sagrado, não obstante, per maneceu aceso ou pelo menos preservado debaixo das cinzas da indiferença, sob

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a vigilância dedicada de uns poucos abnegados que renas­ceram continuamente em missão de sacrifício e renúncia para preservar a luz.

E, de repente, há sobre a vida na Terra um impac­to tremendo que também não aconteceu por acaso: o Renascimento artístico e religioso. Que maravilhosa a in­tuição daqueles que pregaram, afi nal, um bom rótulo numa época brilhante: Renascimento. Renas ceram multidões de Espíritos experimentados nos caminhos da vida, para faze­rem renascer no coração dos homens a beleza, a espe rança, a fé, para fazerem renascer a chama da civilização que dor-mitava e vacilava, mas que não se havia extinguido.

Como seria, por exemplo, a Alemanha pré-luterana, laborató rio do renascimento religioso, tanto quanto a Itália seria o labo ratório da Renascença artística?

A VÉSPErA DA rEFormA

— Durante o meio século que antecedeu a Reforma — escreve Will Durant — todas as classes na Alemanha pros­peraram, exceto os cavaleiros (knights).

E aqui começam as interrogações que nos levam a pes­quisas praticamente intermináveis: que é um cavaleiro? Ou melhor, que era um cavaleiro? Nos tempos medievais, o cavaleiro era o nobre educado para a profissão das armas e admitido à sua ordem por meio de um ritual elaborado, constante de cerimônias especiais. Isto conferia-lhe direi­to a uma destacada posição militar e atri buía-lhe deveres, tudo rigidamente especificado segundo os códigos da épo­ca. Na Inglaterra, esse título foi incorporado à hierarquia nobiliárquica logo abaixo do “Baronet” e conferia ao seu portador o direito de ser chamado Sir. o cavaleiro era um paladino de causas nobres, devotado, usualmente, ao serviço

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de uma idealizada e romântica figura feminina, que era, muitas vezes, platonicamente amada.

As ordens foram inúmeras e algumas bem podero­sas e ricas, como a de Malta, a da távola redonda, a dos templários e tantas outras.

Por essa pequena amostra, podemos vislumbrar as difi­culdades que se interpõem àquele que deseja compreender a História. Há um inesgotável manancial de informações, e corremos o risco de nos embaraçarmos nos pormenores, perdendo a visão do conjunto.

Vamos, pois, em frente.A composição socioeconômica da Alemanha pré-lute­

rana po deria ser assim resumida: uns poucos eram servos, a minoria se compunha de proprietários e a grande maioria de camponeses loca tários que retribuíam aos senhores feu­dais com produtos, serviços ou dinheiro.

As queixas eram muitas, porque o poder dos senhores era incontestável e, por isso, arbitrário nas suas exigências e no rigor de suas imposições que ficavam a salvo de qual­quer interpelação judicial.

Como se formara, no entanto, por que razões, esse re­gime de opressão dos poderosos sobre os fracos?

QuESTÕES SoCiAiS

A Enciclopédia Britânica explica — verbete Feudalism — que a necessidade de proteção está na raiz desse fenô­meno. Pro teção contra os inesperados ataques de invaso­res, de bandoleiros ou de camponeses revoltados. Havia também de existir resguardo ante as descabidas exigências de funcionários públicos e até mesmo em face das exorbi­tantes tributações dos governos, quando eles tinham força e organização para isso.

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Mas e a proteção dos governos, que hoje nos parece, como dizem os ingleses, taken for granted, ou seja, pací­fica e admitida como normal e devida? As coisas, simples­mente, não funcionavam assim. O governo não dispunha de uma estrutura administrativa suficiente nem dos pode­res necessários para obrigar os grandes senhores, dos quais necessitava, em muitas circunstâncias. Além do mais, as autoridades governamentais não se interessavam, pura e simplesmente, pelos fracos e desprezíveis seres humanos que vi viam do seu labor. Cada um que procurasse proteção onde lhe fosse possível obtê-la. E isso tinha um preço. Não há, pois, ne nhuma originalidade nas organizações crimino­sas dos grandes cen tros civilizados hoje, que cobram pro­teção: estão meramente repe tindo uma velha fórmula de terrorismo arbitrário e impiedoso ante aquele que não tem alternativa senão aceitar a situação... ou perecer.

Na Idade Média, a solução para o pequeno era conse­guir o privilégio de ser aceito por um dos grandes e tra­balhar para ele o resto de sua vida a troco de sustento e proteção. Nos tempos romanos esse dispositivo tinha o nome de patrocinium. Mas havia outro: o do precarium, que amarrava a propriedade mais do que o homem. A terra era cedida a título precário a quem a trabalhasse, mas os direitos eram escassos e mal definidos, e os deveres, draco­nianos e indiscutíveis. A instituição era tão impiedosa e tão sem alternativas que o pequeno proprietário inúmeras ve­zes tinha de entregar suas terras ao senhor e depois recebê-las de volta sob o instituto do precarium, para continuar trabalhando até morrer numa propriedade que deixara de ser sua, pois nem seus herdeiros poderiam conservá-la, se assim resolvesse o senhor.

esses mecanismos socioeconômicos não pode­riam proporcio nar felicidade e liberdade, a não ser a uns

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poucos, a troco da opressão insuportável sobre quase to­dos. Por cima de tudo isso, ainda havia a tributação do dí­zimo, rigorosamente recolhido pela Igreja.

Não eram, pois, muito raras as revoltas de campone­ses, intei ramente despreparadas e, portanto, suicidas.

Uma delas foi a provocada pela Bundschuh — A Liga do sa pato (na realidade, era uma bota o símbolo adotado) —, em 1431, ao congregar os camponeses que viviam nas vizinhanças de Worms. Desses movimentos apoderavam-se alguns místicos que se diziam inspirados por Deus para conduzir as criaturas a um novo regime de paz, onde não haveria mais papas, nem imperadores, nem senho res feu­dais. Um desses foi um certo Hans Böhm, que, ao pregar a ideia de que tudo pertenceria a todos, atraiu a si considerá­vel massa de infelizes.

Em 1491, nos domínios do Abade de Kempten, na alsácia, também surgiu uma revolta desse tipo. dois anos depois, foi a vez dos súditos do Bispo de Strasbourg. Pleiteavam a abolição dos tri butos feudais e dos dízimos eclesiásticos, bem como o cancelamento de todos os débitos e a morte dos judeus. em 1502, a bandeira da subversão foi levantada pelos tributários do Bispo de Spira, que, arregi­mentando 7.000 homens, queriam pôr fim ao regime feudal, “caçando e matando todos os padres e monges”. Em 1512, Joss Fritz liderou outro movimento de revolta nas vizinhan­ças de Freiburg-im-Breisgau. Este queria poupar “Deus, o papa e o impera dor”, mas o sistema feudal de propriedade e extorsão deveria ser mergulhado em sangue. Fritz sobrevi­veu ao seu fracasso e tomou parte ativa na revolta de 1525, já em plena Reforma. Em 1517, uma liga de 90.000 homens intentara derrubar o regime feudal na Estíria e na Caríntia.

todos esses movimentos eram contidos logo de início ou com batidos e exterminados pela violência.

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ViDA ECoNÔmiCA

Enquanto isso, porém, outro tipo de revolução se pro­cessava na Alemanha, na indústria e no comércio. É bem verdade que a indústria ainda estava na fase do artesanato, mas já se esboçavam as primeiras organizações controla­das por empresários que forne ciam materiais e capital e adquiriam o produto para venda. A mineração progredia bastante e elevados lucros proporcionavam a exploração de jazidas de ouro, prata e cobre. Foi graças aos direi tos de lavra que lhe pagavam seus súditos que Frederico, o Sábio, teve independência suficiente para resistir ao Papa e ao Impera dor, quando se dispôs a proteger Lutero. Aliás, Hans Luther tam bém fez fortuna com a exploração de jazi­das de cobre. A mine ração foi uma aliada da Reforma.

Aos poucos emergia também o poder financeiro em famílias que se tornaram famosas e até legendárias, como os Welsers, os Hochstetters e os Fuggers. Todos eles com suas raízes implantadas em Augsburg, que, ali por volta do fim do século XV, no dizer de Durant, era “a capital finan­ceira da cristandade”. A fortuna dos Fuggers começa com Johannes Fugger, filho de um tecelão que, ao morrer, em 1409, deixou uma herança de 3.000 florins, estimada por Durant em 75.000 dólares. Quando o segundo Jakob, neto de Johannes e filho de Jakob, morreu em 1527, a fortuna foi esti mada em mais de dois milhões de guldens, ou seja, 50 milhões de dólares, “um lucro de 50 por cento ao ano duran­te dezesseis anos”, diz Durant com respeito e admiração.

É fácil imaginar o poder desses homens que dominavam pra ticamente toda a vida econômica do país, pois empres­tavam somas fabulosas aos mais poderosos, controlavam o vaivém do dinheiro e nada de importante se realizava sem o seu consentimento ou, pelo menos, conhecimento.

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Jakob Fugger construiu 106 casas para os pobres de Augsburg, mas, além de pobres, tinham de ser católicos para obtê-las. Infor ma o historiador americano que essa comuni­dade ainda existe e cobra 42 pfennings, menos de 1 dólar por ano, de cada família. Chamam-se “Fuggerei” as casas.

Com os Fuggers começa a era capitalista na Alemanha, e é aí que têm origem os futuros monopólios. É com eles que os donos do dinheiro passam a dominar os donos das terras. Os senhores feudais começavam a agonizar na boca dos cofres de Augsburg. Os banqueiros imiscuem-se em todos os negócios. Tudo lhes parece legítimo. O povo tam­bém assim acredita. era comum colocarem seus agentes na entrada das cidades para comprar, à vista, toda e qualquer mercadoria que se destinasse a ser vendida intramuros. Ambrose Hochstetter comprou todo o mercúrio que ha­via ao seu alcance e, depois, elevou o preço em 75%. Uma companhia alemã adquiriu ao rei de Portugal, por 600.000 guldens, uma enorme quantidade de pimenta-do-reino, pa­gando mais do que o preço de mercado, sob uma condição: Portugal cobraria ainda mais caro a qualquer competidor. o lucro era certo para ambos.

Com isso, riquezas imensas acumularam-se nas mãos de uns poucos e o poder político acompanhava-as. Parecia uma nova roma, onde o luxo desmedido instalava­se nas fa­mílias bafejadas pela for tuna fácil. Muitos compravam títu­los de nobreza. Joachim Hoch stetter e Franz Baumgartner gastavam 5.000 florins — 125.000 dó lares — num único banquete, ou jogavam paradas de 10.000 florins. Ulrich von Hutten classificou os ladrões em quatro categorias: mercadores, juristas, sacerdotes e cavaleiros; mas, a seu ver, os mercadores eram os piores.

Muitas cidades desenvolveram intensa vida financeira e comer cial, mas augsburg, futuro palco de algumas das

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mais importantes decisões da Reforma, era a mais próspe­ra. A influência de seus poderosos financistas estendia-se até à itália. sob o patrocínio de ricos mercadores, viviam intelectuais e artistas que “fizeram ecoar em Augsburg a Renascença italiana”. Konrad Peutinger, síndico, ou seja, prefeito, em 1493, era diplomata, erudito, jurista, latinista, helenista e antiquário. Com tudo isso, não perdia o gosto e o jeito para um bom negócio.

o SiSTEmA PoLÍTiCo

o sistema político fora até então apoiado nos cavalei­ros, que, como vassalos rurais dos grandes senhores feu­dais, suportavam praticamente toda a estrutura do poder e mantinham funcionando o mecanismo social. Já vimos, no entanto, que eles começavam a esvaziar-se militar, eco­nômica e politicamente. os príncipes mais importantes e as cidades livres introduziram o sistema de arregimentar tropas mercenárias para proteção de seus domínios, pois a proteção ainda era a tônica do organismo que teimava em perma necer medieval. além disso, com o poder econô­mico de que dis punham esses príncipes e aquelas cidades, suas tropas, mais bem equipadas e treinadas, começaram a usar armas de fogo, fora do alcance dos empobrecidos ca­valeiros, que eram facilmente derro tados em qualquer es­caramuça a que se atrevessem. Com o tempo, pressionados pelo esvaziamento político e econômico, muitos cava leiros passaram também a assaltar, desenvolvendo banditismo ge­neralizado. Eram os “barões ladrões”. Alguns, mais cruéis, corta vam as mãos daqueles aos quais haviam assaltado. Götz von Berlinchingen, que perdera uma das mãos a ser­viço do seu prín cipe, juntou um bando de nobres e lidera­va assaltos a cidades como Nuremberg, Darmstadt, Metz e

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Mainz, isso em 1512, quando Lutero estava com 29 anos de idade. Franz von Sickingen — todos com o “von” indicativo da nobreza — praticou horrores em Worms. Vinte e duas cidades da swabia — inclusive augsburg, Ulm, freiburg e Constança — uniram-se através de seus nobres de mais ele­vada hierarquia social e moral para formar a Liga Swabia, a fim de combater os barões ladrões. A guerra particular, que cada um podia mover à vontade, foi declarada ilegal; não obstante, conclui Durant, “a Alemanha, às vésperas de Lutero, era cenário de desor dens sociais e políticas, “regi­me universal da força”, segundo ex pressão de Leopold von Ranke, no seu livro sobre a Reforma.

“Os príncipes seculares e eclesiásticos que presidiam o caos” — prossegue Durant — “contribuíam com sua venali­dade, suas dife rentes moedas e direitos alfandegários, sua competição pela ri queza e posição, suas distorções da Lei Romana, para proporcionar a si mesmos autoridade quase absoluta à custa do povo, dos cava leiros e do imperador.”

Com isso, logicamente, a Alemanha era uma colcha de retalhos de muitos e poderosos interesses, em conflito permanente e impla cável. Ninguém tinha autoridade ge­neralizada e indiscutível, ou, pelo menos, razoavelmente respeitada. Durant assinala que, se o Imperador (católico, naturalmente) tivesse maior autoridade sobre os príncipes alemães, a reforma teria sido esmagada, ou, no mí nimo, retardada. era muito forte o contraste entre o poder discri­cionário dos príncipes e a fraqueza dos imperadores, que, embora possuidores de título pomposo, eram, em grande parte, figuras de corativas, que a tradição do Sacro Império Romano mantinha. Nem mesmo dispunham de uma es­trutura econômico-financeira e tribu tária para sustentar as exigências do poder; muito menos ainda reconquistar fatias consideráveis que se haviam esvaído nas mãos de

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seus antecessores. Frederick III (1440–1493) dedicava-se à Astro logia e à Alquimia, e preferia a paz e a tranquilidade de seus jar dins em Graz. Já no fim de seu longo reinado de 53 anos, teve um rasgo de genial inspiração, ao casar seu filho Maximiliano com Maria, herdeira de Carlos, o Temerário, da Borgonha. Quando Carlos partiu para o mundo espiritu­al, em 1477, os Habsburg her daram os Países Baixos.

além disso, os imperadores eram eleitos pelos prínci­pes, o que, em larga margem, os tornava dependentes dos seus eleitores, a quem deveriam cortejar como qualquer ve­reador moderno, mesmo porque dependiam de suas tropas quando um perigo maior amea çava o Império. Os que se uniam ao Papa tinham melhores chances de êxito, mas os que tentavam — e não passava de tentativa in glória — opor-se ao Vaticano, poucas condições tinham de sobre vivência política. Maximiliano, por exemplo, sonhou ingenuamente com a possibilidade de depor Júlio II — logo quem! — para tor nar-se, ao mesmo tempo, Imperador e Sumo Pontífice, convertendo a cristandade numa teocracia de direito, dado que já o era de fato. Era, porém, no dizer preciso de Durant, “constitucionalmente e financeiramente incapaz de sus­tentar seus projetos”. Depois de várias tentativas infrutí­feras de reformar a administração do Im pério e restaurar a grandeza dos Habsburg, imitou a política diplo mático-casamenteira de seu pai, aceitando a oferta de fernando, o rei católico, que propunha o casamento de Joana com Felipe, filho de Maximiliano. Durant, impiedoso, infor­ma que a noiva was a bit off-color mentally, ou seja, um pouco desequilibrada men talmente, mas trazia consigo a Espanha como dote. Pobre Joana! Passou à História com o nome de “a Louca” e morreu desesperada de amor e sau­dade, quando seu belo Felipe partiu subitamente para o mundo espiritual. A pungente história de Joana ainda está

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à espera de uma recriação genial que traga de volta à vida todo o impacto da tragédia que viveu. Seu filho Carlos nas­ceu em Ghent, a 20 de fevereiro de 1500, ao amanhecer o século XVI, para morrer aos 58 anos, na Estremadura. Viveu um período difícil da História, pois foi o Imperador da reforma. ainda o veremos um pouco mais.

AS TrÊS CriSES DA iGrEJA

O grande poder daquele tempo, no entanto, era o da igreja, tanto no campo estritamente religioso como no polí­tico, social e econômico. Não era mais a igreja dos apóstolos e dos Mártires que sofria a opressão terrível do poder civil nem a Igreja medieval que partilhava o poder civil, mas a Igreja transviada, que domi nava todos os poderes.

Para ficarmos ao abrigo de falsos julgamentos, estare­mos, nesta breve análise, limitados, tanto quanto possível, ao relato insuspei tíssimo de Daniel-Rops, no quarto volu­me da sua vasta “História da Igreja do Cristo”.1

Rops identifica três aspectos distintos na crise que ha­via to mado conta da Igreja: a crise de autoridade, a crise de unidade e a crise de espírito. Da primeira resultou o cisma; da segunda, o desmembramento da cristandade, que per­deu o ramo oriental da Igreja; da terceira, “o desmorona­mento das bases cristãs”, pelo des gaste moral daqueles que se diziam representantes do Cristo na Terra.

— a custo podemos imaginar, nos nossos dias — escre­ve Rops —, o poder que possuía este mundo clerical e a in­fluência que ele exercia em todos os domínios. Fornecendo largamente os efetivos necessários para o serviço das pa­róquias, das capelas e dos mos teiros, a inumerável milícia

1 A Reforma Protestante, IV volume, Livraria Tavares Martins, 1962.

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dos que haviam recebido a tonsura — e que, por isso, bene­ficiavam-se de preciosos privilégios — encontrava-se ainda em toda parte: na corte dos reis, nos castelos principescos, nas Universidades e na solidão dos eremitérios. era sobre um verdadeiro exército de clérigos — um décimo talvez da população adulta da Europa — que a autoridade da Igreja se apoiava. (Grifo meu.)

No cimo dessa pirâmide de poder, sentava-se o Papa, com um prestígio imenso, incontestado. Como esse poder não haveria de atrair os ambiciosos? Rops chama a isso de “monarquia eclesiás tica”, mas, na verdade, era bem mais que isso, porque, tido como herdeiro de S. Pedro e ungido de Deus, o Papa se sobrepunha aos mais poderosos impe­radores, que não eram considerados realmente investidos no poder, senão depois de consagrados, ungidos e coroa­dos pelo Papa ou seu representante autorizado. Não devia o espí rito sobrepor­se à matéria? e não era a igreja a dona­tária dos bens espirituais? Portanto, cabia-lhe, sem apelo, dirimir, em última instância, e consagrar no poder aqueles que a cortejavam, e criar embaraços e impedimentos àque­les que não afinassem com a super potência do Vaticano. essa doutrina fora sendo sutilmente formu lada e forta­lecida ao longo do tempo, desde a reforma gregoriana do século XI. Bernardo, no século seguinte, falou em “pleni­tude do poder” papal. Inocêncio III e os juristas do século XIII empres taram a essas especulações a força e o poder de doutrina incon testável. os papas de avignon deram os retoques finais nessa tendência irreversível que é o açam­barcamento do poder, bola de neve que cresce irremedia­velmente pelo próprio momentum do seu impulso.

E, como poder atrai e conquista mais poder, o papa­do foi reu nindo em suas mãos todas as fontes de autorida­de e rendimento. “No século XIV” — diz Rops — “o papa

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tornara-se o verdadeiro se nhor das nomeações, não só em certos casos definidos por João XXII, na constituição Ex Debito, mas também todas as vezes que tal lhe agradasse, pelo simples lançamento duma “reserva”.

essa reserva assegurava a palavra final em importan­tes dio ceses e mosteiros vagos. a coisa, todavia, ia além, pois inven tou-se a “graça expectativa”, que consistia em nomear um sucessor para o cargo que ainda estava por va­gar­se, ou seja, ainda ocupado.

Paralelamente, desenvolveu-se o que Rops chama de “prolife ração do fisco pontifício”. Para suprir e alimentar os cofres, sempre ávidos, da Igreja, quase todos os recursos passaram a ser válidos, desde a arrecadação dos dízimos — instituído por ocasião das Cruzadas — até os direitos de despojo, que incidiam sobre a heran ça dos prelados fale­cidos. “Tudo isso” — segundo Rops — “constituía um belo arsenal fiscal, a que os papas de Avignon ligaram toda a atenção e os maiores cuidados.”

Mesmo assim, porém, os orçamentos eram sempre de­ficitários e novos recursos foram criados pela inesgotável inventiva dos “fis calistas” da Igreja, como, por exemplo, os “rendimentos que os bispos e outros dignitários auferiam por ocasião das visitas canô nicas que faziam aos estabele­cimentos que lhes estavam confiados”. Logicamente, como assinala o eminente autor católico, tais “exces sos deviam ter os piores resultados”. E tiveram mesmo.

a igreja tornara­se um governo civil como os outros, com secretarias, um corpo de funcionários, diplomatas e técnicos de muitos ofícios.

O chamado “trono de São Pedro” tornou-se o posto mais cobi çado do mundo. Ninguém se lembrava mais de que o amado pes cador não teve trono algum, andava de sandálias pobres e empoei radas pelos caminhos e praias da Galileia.

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E, assim, entre o final do século XIV e o princípio do sé-culo XV, a confusão foi terrível, pois havia papas em Roma, em avignon e em pisa. Quando se convocava um concílio para depor um papa e eleger outro, o deposto recusava­se a renunciar e o eleito se considerava com direito ao posto.

O Concílio de Constança, convocado para resolver uma dessas pendências, foi um escândalo universal que até hoje espanta mesmo os observadores predispostos à tolerância ou à complacência. Havia três papas no poder. “Amontoados por uma forma incrível” — es creve Rops — “viram-se, por­tanto, na cidade trinta e três cardeais, perto de quinhentos bispos, dois mil representantes das universi dades e alguns cinco mil padres, sem falar das embaixadas de todos os soberanos, de quarenta duques, de trinta e dois príncipes, de quinhentos cavaleiros, cada um escoltado pelo seu sé­quito, no total, conforme o cronista Ulrico de Riechtal, de algumas cem mil almas! Pormenor lamentável e que vem lançar uma luz estranha (que luz!) sobre os componentes desta assembleia da Igreja: setecentas mu lheres públicas vieram alugar os seus quartos em Constança. Não foi, por certo, para reformar os costumes que tal fato se deu.”

Foi esse o Concílio que condenou à fogueira o “here­siarca” boêmio João Huss, que, no dizer de Rops, “cometeu a imprudência de se meter neste canônico vespeiro”.

Também não é de admirar-se que a Igreja do Oriente tenha desejado (e conseguido) dissociar-se de um corpo reli­gioso tão com prometido e maculado de erros clamorosos.

— Evocar os pormenores dessas múltiplas crises — es­creve Rops — que assinalaram a agonia da Cristandade me­dieval não é coisa que entre no quadro duma história da igreja. Mas... pode remos abstrair­nos dela?

Não podemos, porque essas crises são da própria es­sência da agonia. Com uma cúpula desorientada e voltada

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apenas para seus interesses pessoais, o corpo da igreja ago­niza realmente.

— Há cristãos que se enfrentam e entrematam com uma vio lência e uma vontade de aniquilamento do adver­sário que são coi sas novas e que revelam suficientemen­te quanto estava longe o antigo ideal de fraternidade dos filhos de Deus. São, muitas vezes, homens da Igreja que se encontram envolvidos nestes sangrentos conflitos, sem que, com isso, a Igreja ganhe alguma coisa que não seja a ruína e o luto.

o FuNDo Do PoÇo

Rops utiliza-se de 320 páginas das 600 que compõem o quarto volume da sua “História” para relatar as mazelas que se abateram sobre a Igreja Católica. Não vamos nem tentar resumir aqui o seu trabalho; isso seria fazer injus­tiça à sua obra. É melhor reme ter o leitor interessado ao seu livro. tomemos apenas os tópicos de maior interesse e importância à inteligência do nosso próprio trabalho.

— As crises que abalam as sociedades humanas — diz ele, adiante — são sempre, a princípio, crises espirituais: os aconteci mentos políticos, bem como as perturbações sociais, não fazem senão traduzir em fatos um desequilí­brio que tem uma causa pro funda. É nas zonas secretas da consciência, por meio da obscura dialética dos ideais e das paixões, que se elabora o destino do mundo: e as forças no­vas que fazem ruir os impérios são aquelas mesmas que todo o homem enfrenta nas trevas do seu coração cúmpli­ce. As crises de autoridade e de unidade que a Cristandade conheceu durante os anos de transição do século XIV para o sé culo XV não podem escapar a esta regra: é evidente que

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uma crise de espírito as explica e as comanda e é essa mesma crise que dá aos seus dramas a sua verdadeira explicação.

Parece, no entanto, que não é só crise de autoridade, porque autoridade, a rigor, sobrava, excedia mesmo. A cri­se era moral, porque se haviam apoderado da tremenda máquina montada em nome do Cristo Espíritos ávidos de mando, com enorme capacidade de liderança, mas empe­nhados exclusivamente no exercício de suas paixões huma­nas. Esse mal na cabeça contagiava todo o corpo e, no dizer de Rops, essa era uma “estranha época em que se reali zava esta marcha para o abismo”.

A despeito de toda a crise, Rops assegura-nos que “o nível espi ritual é elevado, tão elevado como o da véspera. as almas santas são certamente numerosas, muito nume­rosas, em todos os países e em todos os meios”. Isso é, em parte, verdadeiro. deus nunca deixou o mundo abando­nado à sua própria sorte. Mesmo nos mo mentos de crises mais dolorosas, há sempre entre nós Espíritos voltados para Deus, integrados na mensagem do Cristo. O proble ma e a tragédia dessas épocas de exceção é que tais Espíritos, mansos, pacíficos, mais depurados que o comum dos ho­mens, não se interessam pelos postos de mando, de onde poderiam exercer influência salutar. É da própria natureza deles ficarem à margem, mais interessados na sustentação da chama do amor e da fé do que em impor sua vontade para impor ordem ao tumulto que reina à sua volta.

— Angústia, exaltação, desregramento: se quisermos assinalar os traços dominantes da fé nesse fim da Idade Média, são estas as palavras que nos acorrem obrigatoria­mente à pena — informa rops.

— Misticismo desregrado e simbolismo exacerbado misturam-se a um realismo que está também no espírito do tempo: o sublime roça pelo ridículo — diz ele, mais à frente.

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Na Alemanha pré-luterana, há imagens do Cristo que escon dem, no interior, uma bexiga cheia de sangue, que, por dispositivos especiais, flui das chagas. Muitas imagens da Virgem têm no ven tre uma espécie de postigo que se abre para que se veja o “Menino Jesus” no interior de seu corpo... Há coisas ainda piores.

Mistura­se misticismo doentio com os maiores desre­gramentos morais. Até sacerdotes participam da “festa dos loucos” e da “festa dos asnos”. Há missas cômicas. Dança-se e canta­se em ce mitérios e em igrejas. o culto dos santos é desvairado e interes seiro. Um santo para dor de dente, outro para cuidar de pústulas, outro para doenças da bexiga.

— Temos de confessar — escreve Daniel-Rops — que a reforma, ao atacar o culto excessivo dos santos, não deixa­rá de ter alguma razão.

alguma?O culto das relíquias é outra enormidade. A igreja do

Castelo em Wittenberg tinha 19.000 relíquias, das mais disparatadas ori gens e supostamente ligadas aos mais ele­vados momentos históricos do Cristianismo. Há um co­mércio desenfreado de ossos de santos. Um copo passa por ter sido aquele que Jesus teria dado à Sama ritana. Há pe­daços de pão que sobraram da Ceia final de Jesus com seus apóstolos.

A ignorância generalizada das legítimas raízes do Cristianismo, tal como as preservaram os Evangelhos, é uma constante motiva ção para os mais terríveis transviamentos.

“A crença no demônio é tão forte” — escreve Rops — “que as pessoas o veem em ação por toda parte e não hesi­tam em ter relações com ele ou, até, em lhe pedirem certos serviços.”

a bruxaria amplamente se divulga e se pratica. a per­seguição que lhe move a Inquisição apenas a confirma e

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é nela, no depoi mento dos próprios inquisidores, que se constata que um terço da cristandade vive mergulhada na sua prática. Decretos conciliares proíbem que as mulheres “voem de noite a cavalo sobre um pau para irem celebrar festas do Demônio”. Pode-se, hoje, imaginar com que facili­dade se misturavam aí fenômenos autênticos, explo rações, mistificações e fantasias. Despreparados para distinguir a verdade da fraude, a ficção da realidade, os inquisidores, desinfor mados, remetiam todos os que fossem apanhados às fogueiras “pie dosas” e “purificadoras”. Rops lembra que não apenas a Inquisição confirmava a bruxaria, mas até mesmo uma bula papal — de Eugênio IV — “deu-lhe con­sagração oficial”.

Inúmeros médiuns — especialmente mulheres — fo­ram assim inapelavelmente destroçados no tormento da fogueira, quando poderiam, muito melhor, ter servido a um intercâmbio inteligente e renovador entre as duas faces da vida, tal como nos tempos da igreja primitiva.

de degrau em degrau, a decadência do clero (expres­são de Rops) mergulha cada vez mais fundo.

Ultrapassando a veemente condenação de Santa Catarina, Santa Brígida, da Suécia, fala no “lupanar” em que se transformou a Igreja. Santa Coleta passa noites de angústias inomináveis ante as visões em que a Igreja apa­rece manchada de crimes horríveis. Diniz, o Cartuxo, sai de um estado de desprendimento — então se chamava êxtase — declarando ter visto “a Igreja totalmente desfi gurada; do alto da cabeça até a planta dos pés, já não se pode encon­trar ali a pureza”.

isso é linguagem de lutero? Não, o mundo espiritual em palavras e visões candentes manda o seu recado, que ninguém quer ouvir.

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Rops fala no vício mais frequente de que se pode acu­sar o clero medieval: o espírito de lucro. Tudo vale dinhei­ro, tudo pode ser trocado por dinheiro. O exemplo vem de cima, “da Cúria Pon tifícia”, diz o escritor católico. O com­portamento moral não é dos melhores, mas pior do que isso — acha Rops — é o absenteísmo dos sacerdotes, que não se interessam pelo pastoreio de suas ove lhas. O despreparo desses prelados é de estarrecer.

— Quando aparecem os pregadores da reforma — escre­ve Rops —, cheios de zelo e familiarizados com a Escritura, a igno rância do clero católico muito lhes facilitará a sua tarefa. Um observador notará então: “Como podem os pa­dres lutar contra as más doutrinas (?!), se eles não sabem mesmo quais as boas e quais são as heréticas?”.

as doutrinas não são más pelo simples fato de serem heréticas. O Cristo foi um grande e maravilhoso herético. Graças a Deus! Do contrário, não teríamos o Cristianismo.

as ordens religiosas também estavam em crise. até as Cla rissas, fundadas por aquele luminoso Espírito que foi Clara, espécie de alter ego de francisco de assis, estavam mergulhadas em desor dens inconcebíveis ante as regras que haviam jurado respeitar: jantares suntuosos, longas visitas, animadíssimas conversas nos salões.

A situação era, de fato, desoladora. Acha Rops — e com ele não concordamos neste passo — “que, entregue a si pró­pria, a alma cristã degrada­se, o sal da terra torna­se insí­pido e o fer mento já não faz levedar a massa”. A questão é que a alma cristã não estava entregue a si própria; estava entregue a líderes divor ciados do Cristo. A corrupção vinha de cima.

“Se tivesses um papa tão santo como desejas”, — pre­gava Ber nardino de Sena — “ele não poderia mesmo assim expulsar mais padres e prelados. teria de deixar um para

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agradar ao rei ou a um barão, e outro para agradar a outros poderosos senhores... É impossível reformar a Igreja, en-quanto a cabeça viver em guerra com os seus membros.”

E Rops conclui:— Temos de reconhecer que o santo tinha razão.Lutero sabia disso tudo, mas, quando ele o diz, com

igual veemência, sinceridade e autoridade, atiram-se a ele como a um cão danado.

— todas as tentativas de reforma — escreve ainda rops, páginas adiante — serão tão ineficazes como numerosas, enquanto se atacarem os efeitos da crise e não as suas cau-sas: o estado da sociedade, a intromissão da Igreja nas es­truturas temporais e a degradação do ideal cristão pelos apetites e interesses.

Não é preciso dizer mais nada, para justificar a veemên­cia e a indignação de Lutero, que, cedo, na sua experiência, se desen cantou quanto a uma reforma interna, a partir de um processo de autocrítica. onde estavam os líderes eclesi­ásticos capazes de tais gestos de renúncia e humildade?

Na autorizada e insuspeita opinião de Rops — e é ver­dade —, a Igreja por enquanto não chegara ao fundo do poço. Ainda viriam os “papas do Renascimento”.

oS PAPAS Do rENASCimENTo

— Pontificados como o dum Sisto IV, dum Inocêncio VIII e, sobretudo, dum Alexandre VI, o Borgia, não podem ser evocados por um católico sem que o rubor lhe suba ao rosto. E, por muito equi tativos que queiramos ser em nosso julgamento, seria de detestável apologética deixar de usar duma justa severidade. (rops.)

É preciso, no entanto, não tratar com demasiada seve­ridade esses pobres irmãos espirituais que se perderam nas

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suas paixões. Suas fraquezas interiores encontraram livre campo de ação num mundo que agonizava, à míngua de recursos espirituais. distan ciado das fontes evangélicas, qualquer um de nós se transvia e se alucina ante o brilho enganador das glórias mundanas. Esquecidos do Cristo, somos cegos conduzindo cegos, e vamos TODOS para o abismo.

Os padrões morais haviam decaído demais. No jogo pesado do assalto ao poder que representava o chamado “trono de S. Pedro” valia tudo. Em 1478, por exemplo, foi assassinado, em plena missa na catedral de santa Maria da Flor, Giuliano de Medicis. Seu irmão Lorenzo escapou ao punhal para fazer o que Rops chama de “ver dadeira car­nificina entre os conjurados que pôde prender, bem como entre os seus amigos”. Um sobrinho do Papa, casado com uma senhora da família Sforza, havia tramado o assassi­nato no qual outro Della Rovere, cardeal de 18 anos, tam­bém estava envolvido. O pior é que até mesmo o Papa se manchara nesse episódio, acom panhando o desdobrar da conspiração, aconselhando frouxamente a que sangue não fosse derramado.

A Sisto IV sucedeu Inocêncio VIII, que deveu sua elei­ção às articulações de Giuliano Della Rovere, o futuro Júlio II, “de quem era e continuou a ser a criatura”, diz Rops. No fundo, era um bom homem, afável, doentio, mas extre­mamente fraco de vontade. Sa bia-se da existência de dois filhos naturais do novo Papa.

— O resvalar da Igreja, sob tal Pontífice, não podia se­não acelerar­se — escreve rops.

a venalidade dos cargos e das dispensas era lei uni­versal. Rops fala no escândalo das bulas falsas, que “uma oficina fabricava, e que autorizavam tudo, incluindo a con­cubinagem dos padres! O Sacro Colégio” — prossegue —

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“encontrava-se povoado por cardeais mundanos, grandes amadores de palácios suntuosos e festas licen ciosas, entre os quais figurava um sobrinho do Papa, criança de treze anos, João (Giovanni) de Medicis, revestido da púrpura para agradecer a seu pai, o grande Lourenço, o fato de ter casado sua filha com o bastardo do Papa. Este casamento foi celebrado por Inocêncio VIII, no seu próprio palácio.

Alexandre VI, homem de notável conteúdo humano e grande administrador, perdeu-se nas suas paixões.

— Para reinar — escreve Rops — escolheu o nome de Ale xandre, como recordação — deu ele a entender — do conquistador do mundo. Seu pontificado de onze anos (1492 – 1503) deveria ser o mais deplorável que a história cristã conheceria; com Alexandre VI, o Borgia, a Igreja ace­lera a própria decadência... e afunda.

Pobre Espírito! Quantas angústias aflitivas não iria encontrar pelos séculos afora para redimir, perante sua consciência atormen tada, as loucuras de um período tão conturbado da História! A Igreja, que se dizia do Cristo, transformou­se em mero instrumento dócil e poderoso de tantas e tão desvairadas paixões.

Seu filho César, com 7 anos de idade, já dispunha de um bispado em pamplona, de onde auferia as rendas, natu­ralmente. Sua filha Lucrécia casou-se no próprio Vaticano, “no meio dum luxo inaudito”. Deve-se a esse Papa (1499) a famosíssima bula que concedia aos fiéis indulgências plenárias, bem como às almas do purgatório, desde que aqueles dessem esmolas destinadas à recons trução e em­belezamento da Igreja de São Pedro. Estava implantada a terrível prática da indulgência, segundo a qual o Céu po­dia ser comprado como qualquer mercadoria. Esse, aliás, foi o ponto de partida, a fagulha que acendeu a chama da reforma protestante.

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Em vão deblaterou Savonarola pelos púlpitos da Europa. Aca bou queimado vivo, pois estava incomodando, com o seu verbo inflamado, os donos do mundo.

A iNQuiSiÇÃo

por esse tempo, levantou­se ainda a um triste apogeu de glória negra a sombra terrível da Inquisição, que, espe­cialmente em terras espanholas, alcançou “êxito” invulgar na sufocação de qualquer sus peita de heresia.

Rops é aqui bastante cauteloso, ao dizer:— Do que foi verdadeiramente a obra da Inquisição

espanhola só se deve falar com extrema prudência, vis­to que, também sobre este ponto, a imaginação popular muito fantasiou.

isso é verdade, em parte. e realmente temos de falar com prudência a respeito de tão lamentáveis momentos históricos, para não reacender ódios irracionais. É também verdade que a imagi nação popular muito fantasiou, mas o que fica de realidade, uma vez retirada a fantasia, é um acervo de loucuras e de fanatismo dificilmente igualado na história do ser humano. Ou se deveria dizer desumano?2

É grande o esforço — compreensível — de Daniel-Rops para minimizar o impacto trágico da Inquisição.

— Foram muitas, sem dúvida, para quem pensa que a religião do amor não se instaura pela força — escreve ele —, mas isso é outro assunto. A verdade é que a Inquisição fez pesar sobre toda a Espanha uma atmosfera de medo e de severidade — quase de terror — muito semelhante àquela que, obedecendo a outras exigências, o Tribunal

2 O maior conhecedor da Inquisição é H. C. Lea, mas seus livros são hoje raridades bibliográficas.

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Revolucionário fez pesar sobre a França de 1793. E o que é não menos certo é que o povo espanhol não somente a aceitou, mas também a quis e bendisse, como uma mani-festação dessa fé ardente até ao heroísmo, que lhe permi­tia forjar o seu destino.

A “justificativa” é pobre, em que pesem a autorida­de e a eru dição do autor francês. Instaurar a religião do amor pela força não é outro assunto. o assunto é o mesmo. Destas mazelas espiri tuais, não obstante, nem mesmo os protestantes dos primeiros tem pos ficaram imunes, pois ali também medrou a negra flor da into lerância religiosa. Melanchthon aplaudiu Calvino, quando Miguel Servet foi queimado vivo, porque lhe parecia uma boa ação livrar a sociedade de um herético que perturbava a paz e a harmo­nia do rebanho.

A conclusão de Rops é dúbia: — Principalmente contra os “marranos”3, essa ação (da

Inqui sição) foi de tal modo dura que a Santa Sé comoveu-se e recomen dou aos inquisidores mais moderação. Trata-se, no fim de tudo, de violência que uma consciência cristã não poderá aprovar, mas que pareciam necessárias.

Como parece necessário aquilo que a consciência cris­tã não aprova, isso não está explicado...

pio iii foi o papa seguinte, mas morreu pouco tempo depois da sua eleição, vitimado pelo reumatismo. Sucedeu-lhe Júlio II, fascinante figura histórica pelo poder e brilho da sua personalidade dominadora. papa belicoso e amigo das artes, enveredou pela conquista militar, comandando pessoalmente suas tropas, a despeito da avançada idade. Foi sob o impulso da sua vontade férrea que Michelangelo

3 Marrano era o judeu, que, embora oficialmente convertido ao catoli­cismo, continuava secretamente na prática da religião hebraica.

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pintou, algo a contragosto, os imortais afrescos da Capela Sistina. Também Rafael e Bramante trabalharam para ele. Era uma época de gênios que ainda não se repetiu.

Foi durante o pontificado de Júlio II, papa franciscano, que Lutero visitou Roma. Governou a Igreja de 1503 a 1513, lamen tando não ter alcançado o poder mais jovem. Mesmo assim, res taurou, em grande parte, o poder político e o do­mínio territorial do Vaticano.

Sucedeu-lhe Leão X, que morreria em 1521, em pleno período da reforma.

Chegamos a Lutero. Antes, porém, uma visão rápida sobre a Igreja na Alemanha.

A iGrEJA NA ALEmANHA

É sintomático da aguda consciência que tinham os prelados alemães da caótica situação da Igreja o fato de que muitos deles, dos mais elevados, aceitavam pronta­mente as críticas amargas que começaram a ser feitas à Instituição. O alemão foi sempre um povo ordeiro e dis­ciplinado. A anarquia que predominava, do Vaticano até o monge mais humilde, não podia ser do agrado dos bons e sinceros católicos alemães. a despeito de uma ou outra heresia, de alguns céticos e até mesmo ateus de certa proe­minência, “a religião florescia na Alemanha” — diz Durant — “e a esmagadora maioria do povo era ortodoxa e — en­tre seus pecados e seus copos — piedosa. A família alemã” — prossegue o historiador americano — “era quase uma igreja em si mesma, onde a mãe servia como catequista e o pai como sacerdote; a prece era fre quente, e obras de­vocionais familiares eram encontradas em todos os lares. Para os que não sabiam ler, havia livros de figuras, a Biblia Pauperum (Bíblia dos Pobres), ilustrando as histórias do

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Cristo, de Maria e dos Santos. Gravuras da Virgem eram tão nu merosas quanto as do Cristo; o rosário era recitado com esperan çosa frequência; Jakob Sprenger, o Inquisidor, en­controu uma fra ternidade fundada para repetir o rosário; e uma prece alemã era dirigida à única Trindade realmente popular: ‘Glória à Virgem, ao Pai e ao Filho’.”

— alguns dos clérigos — escreve ainda durant — eram tão religiosos quanto o povo. Deve ter havido — a despeito de que seus nomes eram raramente ouvidos por sobre o estrépito feito pelo mal — ministros fiéis da fé para pro­duzir ou sustentar pie dade tão ampla no seio das classes populares.

Esta observação indica que ainda havia sacerdotes pu­ros e bem-intencionados, que realmente pastoreavam seus rebanhos. Mas a verdadeira fé e a prática do Cristianismo, embora deformado e cheio de crendices, tinham passado para o coração mais simples do povo. Bem dizia o Cristo (Mateus, 11:25):

— Eu te bendigo, Pai, Senhor do Céu e da Terra, por­que ocultaste estas coisas aos sábios e as revelaste aos pequenos.

A sabedoria do povo, inata, mais humilde, é muito grande. Foi sobre esta massa humana — que, a despeito de toda a cor rupção dominante, se preservara na fé rela­tivamente pura — que a mensagem renovadora de Lutero causaria maior impacto. A absor ção das ideias da Reforma foi tão pronta, rápida e total que, quando a Igreja desper­tou para a realidade do problema e para a profundidade das questões envolvidas, as camadas populares já estavam comprometidas com a reforma e dedicadas a ela, levadas pela intuição inata do bem.

É certo, porém, que a celeuma que a Reforma levantou na Alemanha e, depois, no mundo inteiro, resulta muito

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mais da inves tidura espiritual de Lutero do que das ideias propriamente ditas. Muitos outros “heresiarcas” haviam pregado coisa semelhante e nada aconteceu. Às vezes, evidentemente, porque os tempos ainda não estavam ma­duros, pois não se pode deixar de atribuir uma elevada par­cela de autoridade espiritual a Wyclif e a João Huss. Estes pagaram o preço do pioneirismo. Acontece, porém, que, na Alemanha pré-luterana, havia, por exemplo, hussitas, ha­via valden ses que negavam a distinção entre sacerdotes e leigos, havia mís ticos que não aceitavam a obrigatoriedade de intermediários entre o homem e Deus e que pregavam uma experiência religiosa mais interior do que externa. Em 1466 — Lutero ainda não nascera —, Johan e Lewin Eger denunciaram as indulgências como farsa. Johannes von Wessel, um professor da Universidade de erfurt, onde Lutero estudaria mais tarde, pregou a predestinação e a eleição pela graça, rejeitando ainda as indulgências, os sa­cramentos e as preces aos santos. Declarou ainda:

— Desprezo o papa, a Igreja e os Concílios: rendo culto ape nas ao Cristo.

Foi condenado pela Inquisição, retratou-se e morreu na prisão, em 1481, dois anos antes do nascimento de Lutero. O embrião da Reforma está quase todo nas suas ideias.

Wessel Gansfort — erradamente conhecido como Johannes Wessel — negou a confissão, a absolvição, as in­dulgências, o purga tório. Sua norma de fé era a Bíblia, a re­gra única, que transformou em fonte exclusiva da salvação. O próprio Lutero reconheceu nele inequívoca identidade de pensamento e declarou, em 1522, que, se tivesse conhe­cido os escritos de Wessel antes, certamente seus ini migos diriam que ele apenas plagiou.

Nenhum desses destemidos Espíritos levou avante a tarefa, a despeito de atuarem na mesma época, na mesma

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seara, com a mesma matéria­prima popular, ante a mes­ma igreja corrompida. Não obs tante, mal lutero pregou as teses à porta da igreja de Wittenberg, levantou­se uma celeuma que a ele próprio, e em primeiro lugar, surpreen­deu mais do que a qualquer outro. É a isso que podemos chamar de “investidura espiritual”.

Era preciso vir revestido daquela autoridade, convoca­do, como dizia Paulo aos Gálatas, “desde o seio de minha mãe”, trazendo no corpo espiritual “as marcas do Cristo”, para enfrentar, aparente mente sozinho, o poderio tremen­do da igreja aliada aos reis.

— A Igreja Alemã — diz Johannes Janssen, autor ca­tólico ci tado por Durant — era a mais rica da Cristandade. Estimava-se que cerca de um terço de toda a terra naquele país estava em mãos da Igreja, o que tornava mais censu­rável nas autoridades eclesiás ticas estarem sempre empe­nhadas em aumentar suas possessões. Em muitas cidades os edifícios e instituições da Igreja cobriam a maior parte do terreno.

Além disso, havia a fortuna pessoal dos prelados mais eminen tes ou daqueles que, à margem de sua limitada ati­vidade como pastores de almas, cuidavam mais de seus in­teresses comerciais e financeiros.

Acresce que a pesada tributação eclesiástica drenava impor tâncias consideráveis do tesouro alemão para a Roma dos papas, o que despertou na Alemanha um profundo res­sentimento que se apoiava no nacionalismo.

pio ii exigiu 20.500 guldens para confirmar Diether von Isen burg no arcebispado de Mainz (Maiença). Como Diether recusasse o pagamento daquela soma extorsiva, o Papa o excomungou! Diether contratou um emérito juris­ta de Nuremberg, Gregor Heimburg, para cuidar do caso, especialmente junto à opinião pública, mas foi tudo em

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vão, ainda que, por momentos, parecesse que o Papa sairia der rotado. Os agentes do Vaticano conseguiam neutralizar todos os mo vimentos de Heimburg e, por fim, o Papa no­meou Adolf de Nassau em substituição a Diether. Houve luta armada entre os dois arce bispos, mas Diether foi der­rotado, “em guerra sangrenta”, diz Du rant. Diether, espíri­to combativo e enérgico, escreveu um manifesto alertando o povo contra aqueles desmandos e conclamando os líde res alemães à união contra a opressão romana. esse manifes­to não produziu grande efeito, mas teve o singular privi­légio de ser um dos primeiros documentos impressos por Gutenberg.

a drenagem de recursos continuou implacável. o im­perador Maximiliano queixava-se de que o Papa arrancava da Alemanha uma receita cem vezes superior à sua.

— “Mil fatores e influências — eclesiásticos, intelectu­ais, emo cionais, econômicos, políticos, morais — se soma­vam, após séculos de obstrução e supressão, num remoinho que atiraria a Europa ao maior tumulto desde a conquista de Roma pelos bárbaros” — escreve Durant, que prossegue: — “O enfraquecimento do papado pelo exílio de Avignon e pelo Cisma; a quebra da disciplina monástica e do celibato sacerdotal; a luxúria dos prelados; a corrupção da Cúria; a atividade mundana dos papas; a moral de Alexandre VI; as guer ras de Júlio II; a descuidada jovialidade de Leão X; o tráfico de relíquias e a mercantilização das indulgências; o triunfo do Islam sobre a Cristandade nas Cruzadas e nas guerras turcas; a crescente familiaridade com as crenças não cristãs; o influxo da Ciência e da Filosofia árabes; o colapso da escolástica no racionalismo de scotus e no ce­ticismo de Ockham; o fracasso do movimento conciliar em implementar uma reforma; a descoberta da antiguidade pagã e da América; a invenção da imprensa; a dissemina­