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8/20/2019 BAMBA-MELEIRO_Filmes África Diaspora http://slidepdf.com/reader/full/bamba-meleirofilmes-africa-diaspora 1/326 FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA objetos de discursos MAHOMED BAMBA ALESSANDRA MELEIRO Org

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MAHOMED BAMBA

ALESSANDRA MELEIRO

Org

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ReitoraDora Leal Rosa

Vice-ReitorLuiz Rogério Bastos Leal 

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

DiretoraFlávia Goulart Mota Garcia Rosa

Conselho Editorial

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Charbel Ninõ El-Hani

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Evelina de Carvalho Sá Hoisel 

 José Teixeira Cavalcante Filho

Maria Vidal de Negreiros Camargo

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FILMESDA

ÁFRICAE DADIÁSPORA 

objetos de discursos

MAHOMED BAMBAALESSANDRA MELEIROOrg.

Salvador, EDUFBA, 2012

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2012, AutoresDireitos para esta edição cedidos à Eduba. Feito o Depósito Legal.

Projeto gráico, capa e editoração eletrônica Alana Gonçalves de Carvalho Martins

RevisãoIsadora Cal Oliveira

NormalizaçãoRodrigo Meirelles

Sistema de Bibliotecas – UFBA

Editora ailiada à

EdubaRua Barão de Jeremoabo, s/n - Campus de Ondina40170-115 - Salvador - BahiaTel.: +55 71 3283-6164 | Fax: +55 71 3283-6160www.eduba.uba.br | [email protected]

Filmes da África e da diáspora : objetos de discursos / MahomedBamba, Alessandra Meleiro, organizadores. - Salvador : EDUFBA,2012.

323 p. il.

ISBN 978-85-232-0999-5

1. Cinema africano. 2. Diáspora. 3. Cinema africano - Aspectossociais. 4. Cinema africano - Aspectos políticos. 5. Antropologia. I.Bamba, Mahomed. II. Meleiro, Alessandra.

CDD - 791.43

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[...] os cineastas africanos, ao tomarem parte das estruturas

multiculturais da Europa e dos Estados Unidos, entram no

nicho de filmes antropológicos tanto na televisão quanto nos

cinemas. As pessoas vão assistir aos filmes africanos como se eles

retratassem a realidade da África, em vez de vê-los como filmes.

Manthia Diawara

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Sumário

 Introdução 

9 FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORAimagens, narrativas, músicas e discursos

Narrativas pós-guerra civil Angolana e Moçambicana19 A EXPERIÊNCIA ANGOLANA DE GUERRA E PAZ

um olhar por meio da representação ílmica de Luanda emNa Cidade Vazia (2004), de Maria João Ganga, e em O Herói (2004),de Zezé Gamboa

  Antônio Márcio da Silva

43 RECONSTRUINDO O CORPO POLÍTICO DE ANGOLAprojeções globais e locais da identidade e protesto em O Herói Mark Sabine

75 RETRATOS DE MOÇAMBIQUE PÓSGUERRA CIVIL a ilmograia de Licínio AzevedoFernando Arenas

A onipresença da música africana em“filmes de autor” africanos

101 A CAMINHO DE UM AMADURECIMENTO NA UTILIZAÇÃO DAMÚSICA NO CINEMA AFRICANO Sembene, Sissako e Sené Absa

  Beatriz Leal Riesco

129 O FILME NHA FALA musical guineense de múltiplos trânsitos

  Jusciele Conceição Almeida de Oliveira  Maria de Fátima Maia Ribeiro

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Fronteiras, margens, alteridade e experiências diaspóricas

157 A COSMOPOÉTICA DA FRAGILIDADE Abderrahmane Sissako, a sensibilidade cosmopolitae a imaginação do comum

  Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro

189 FILMES DE REGRESSO o cinema africano e o desaio das fronteiras

  Amaranta Cesar

209 ESQUIVAS representações das margens no cinema beurCatarina Amorim de Oliveira Andrade

Realismo social, cinefilia e experimentação

223 UTOPIA, DISTOPIA E REALISMO NO CINEMA DE FLORA GOMES  Denise Costa

235 MOUSTAPHA ALASSANE, UM BRICOLEUR NO CINEMA DO NÍGERCristina dos Santos Ferreira

Imagens do corpo da mulher e figuras do “eu” femininoem quatro filmes

261 CONSTRUÇÃO DE UMA NARRATIVA DE APRENDIZAGEME MISEENSCÈNE  DO CORPO FEMININO EM HALFAOUINEE UN ÉTÉ À LA GOULETTE  DE FÉRID BOUGHEDIR

  Mahomed Bamba

289 CERZIDEIRA DE MEMÓRIAS 

narrativas do dilaceramento em Contos Cruéis de Guerra,de Ibea Atondi

  Lívia Maria Natália de Souza

305 DE CARTA CAMPONESA 1975 À CARTA A SAFI FAYE  Suzane Lima Costa

317 SOBRE OS AUTORES E ORGANIZADORES

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Introdução

FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORAimagens, narrativas, músicas e discursos

Os textos reunidos neste livro resultam de um exercício herme-

nêutico coletivo sobre um mesmo objeto: os ilmes da África e de

suas diásporas. São textos analíticos tecidos a partir de perspectivasdiversas: antropológica, literária, sociológica, estética e política. De-

pois de ter despertado o interesse dos críticos ávidos de novidade,

as obras dos cineastas africanos acabaram se constituindo em valio-

sos objetos de estudo para os pesquisadores universitários. Em re-

senhas, teses, dissertações e outros trabalhos acadêmicos, os ilmes

africanos são estudados como “textos” e pretextos a partir dos quais

se elaboram relexões teóricas abrangentes sobre questões identitá-

rias, culturais e ideológicas que formam o bojo do pensamento pós-

-colonial e dos cultural studies.

Os ilmes africanos, apesar de serem produtos culturais com tra-

ços idiossincráticos marcados, são também objetos estéticos e semi-

óticos. São textos que podem ser usados, lidos, estudados, reapro-

priados pelos diversos públicos cinematográicos com vista nos seus

particularismos culturais ou atentando para suas ousadias formais.

A tarefa analítica de circunscrever a pluralidade de sentidos de qual-quer objeto ílmico não dispensa, obviamente, o estudo dos fatores

contextuais que incidem na sua organização discursiva interna. Os

fatores extraílmicos,1 aliás, justiicam, muitas vezes, a seleção dos

1 Os estudos do cinema mundial numa perspectiva histórica, sociológica ou econômica (econo-mia do cinema), por exemplo, ao destacarem a importância de alguns desses fatores, têm con-tribuído muito para a compreensão das mudanças e da evolução das práticas cinematográicasem muitos países africanos.

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ilmes nos eventos cinematográicos. Acoplar o rótulo de “ilme afri-

cano” a uma obra, por exemplo, pressupõe um gesto de atribuição

que situa a dita obra num determinado espaço geográico e cultural.

Mas não podemos esquecer que um ilme africano é também um ob-

jeto signiicante. O contato dos diversos públicos com os ilmes faz

deles objetos de discursos e objeto dos mais diversos tipos de ativi-

dades interpretativas. Com isso queremos dizer que a grade de lei-

tura “culturalista” não deve se transformar numa norma ou no único

modus operandi na análise dos ilmes africanos. A mesma metodolo-

gia que preside ao estudo teórico dos ilmes ditos ocidentais devem

valer também para os ilmes dos cineastas africanos.

Ainal de contas, como diz Bourdieu (2002, p. 4), “os textos cir-culam sem seu contexto”, isto é, não levam consigo o campo da pro-

dução, nem solicitam uma grande leitura pré-determinada. Bourdieu

(2002) aliás, ia mais longe ao preconizar “uma ciência” que estudaria

as lógicas que condicionam a circulação internacional das ideias e

dos objetos culturais. Parte dessas lógicas está numa “série de ope-

rações sociais implicadas no processo de seleção (o que se publica,

quem traduz, quem publica?) e de selo (editora, coleção, prefácio

etc.)”. (BOURDIEU, 2002, p. 4) Tal “ciência”, na verdade, não passa deum estudo das condições de recepção das ideias e dos objetos sim-

bólicos. É neste processo que a análise ílmica, em meio acadêmico,

se constitui numa atividade heurística, mas também num campo de

recepção com suas lógicas divergentes.

As novas tecnologias de armazenamento e reprodução (e de

download   legal ou ilegal) de ilmes vêm facilitando o acesso rápido

às obras e ilmograias de cineastas africanos. Este fator tecnológico

possibilita, de um lado, a organização de pequenas mostras e eventosculturais em torno dos ilmes provenientes da África e de suas res-

pectivas diásporas. Por outro lado, permite que esses ilmes sejam

objetos de estudos. Parafraseando Bourdieu (2002), podemos dizer

que, no caso da circulação internacional dos ilmes africanos, cabe,

em última instância, aos críticos, aos espectadores e aos diversos es-

tudiosos do cinema, eles próprios inseridos em campos e contextos

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diferentes, reinterpretarem esses ilmes em função de objetivos ou

critérios particulares.

É, no contexto particular deste livro, a lógica da apropriação dos

ilmes estrangeiros pela análise crítica que predomina e dá uma cara

de leituras cruzadas ao conjunto das contribuições. No seu texto, Be-

atriz Riesco se interessa pelos ilmes de três renomados cineastas

africanos da jovem guarda que não só se destacam por um estilo pes-

soal na mise-en-scène, mas também pelo uso expressivo e autoral da

música em seus trabalhos. A forte presença dos ícones e índices audi-

tivos sempre contribuiu para dar este tom e esta cor tão idiossincrá-

ticos hoje reconhecidos às obras provenientes das cinematograias

ditas periféricas. Porém, ainda há poucos trabalhos que questionemos cinemas africanos pela análise da música presente nas narrati-

vas. Ora os ilmes africanos não são nem avarentos nem desprovidos

desta dimensão sonora. Ao contrário, da primeira geração dos cine-

astas até os mais contemporâneos nota-se uma preocupação em dar

um “sotaque” local aos seus ilmes pelo recurso ao canto em línguas

africanas e às diversas sonoridades dos instrumentos percussivos

(harpa, djembe, tatã) que fazem a riqueza das músicas africanas. Se

Beatriz preferiu se interessar à análise desta dimensão sonora e mu-sical no registro do cinema autoral, é porque ela tem a convicção de

que está havendo uma mudança e uma consciência mais clara no uso

da música nas ilmograias de alguns cineastas africanos.

Já Antônio Márcio da Silva analisa as experiências angolanas du-

rante e após quatro décadas de extensas guerras através de repre-

sentações ílmicas no maior centro urbano de Angola, Luanda, nas

obras Na Cidade Vazia, de Maria João Ganga, e em O Herói, de Zezé

Gamboa. O autor vê, através de O Herói, que Angola será capaz de sereconstruir por meio de diferentes dinâmicas sociais e pessoais que

ajudarão seus cidadãos a superarem os traumas e as perdas enfren-

tadas por mais de quatro décadas. Na cidade vazia, para ele, entre-

tanto, é mais cético com relação a tais mudanças e possibilidades,

explicitando que a exploração dos mais fracos pelos mais fortes tem

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sido perpetuada desde a era colonial – e continuará assombrando os

angolanos.

Mark Sabine também se debruça sobre O Herói, de Zezé Gam-

boa – um dos três ilmes realizados em Angola no ano de 2004 –,

tanto por se interessar pelas críticas realizadas sobre a sociedade

angolana e sobre a ordem política da nação pós-conlito, quanto pelo

fato do ilme haver engajado uma audiência internacional geralmen-

te alheia às especiicidades culturais e históricas de Angola. Sabine

enfatiza que, antes de alcançar uma audiência local, os cineastas an-

golanos devem assegurar inanciamento e outras facilidades de pro-

dução fora de seu próprio país. Este mesmo cenário caótico de apoio

ao cinema nacional reaparece em outro país africano, Guiné Bissau.O diretor Guineense, Flora Gomes, num verdadeiro “percurso de

combatente”, conseguiu reunir meios e condições para se airmar

proissionalmente, tanto em âmbito interno quanto internacional. E

foi justamente com base nesses diversos trânsitos ísicos e culturais

– como as viagens da protagonista do ilme Nha fala entre Guiné-

-Bissau – França – Guiné-Bissau (África-Europa) – que as autoras

Jusciele Oliveira e Maria Ribeiro analisaram o ilme de Flora Gomes.

O artigo pontua que a articulação de diferenças, a negociação e aconciliação entre tradições e modernidades têm como protagonistas

mulheres guineenses envolvidas em relações de gênero e em inscri-

ções identitárias e continentalidade – África e Europa, lado a lado –

que transcendem fronteiras geopolíticas e culturais.

Denise Costa, em seu artigo, acredita que o cinema de Flora Go-

mes pode ser visto como um contínuo de pensamento que prossegue

em construção em cada um dos seus ilmes – sua predileção por i-

nais inconclusos nos permite imaginar que façam parte de uma con-tinuidade intertextual e que sua obra seja parte de um pensamento

que vem sendo formulado pelo realizador a respeito de questões his-

tóricas e políticas de seu país.

As experiências do exílio e do trânsito entre diferentes paisagens

culturais, entrelaçadas com as paisagens da memória, os panoramas

da história recente da globalização, e a questão do cosmopolitismo

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da agenda internacional (as migrações transnacionais, o combate à

pobreza como meta milenar global, direitos humanos etc.) são ques-

tões articuladas pelo cinema de Abderrahmane Sissako, segundo o

artigo de Marcelo Souza Ribeiro. Para Ribeiro, o cinema de Abder-

rahmane Sissako constitui um exemplo de cinema transnacional,

tanto por suas bases estruturais (recurso a diferentes fontes de i-

nanciamento, trabalho com técnicos, proissionais e atores de dife-

rentes nacionalidades etc.) quanto pelo conteúdo de suas narrativas

e pelas formas de sua narração. Nascido na Mauritânea, criado no

Mali e atualmente residente na França, Sissako é um cineasta que

vive o exílio e cujo cinema está intimamente ligado a esta posição.

Para Sissako, os movimentos que o colocaram na condição de imi-grante foram motivados pelo próprio cinema.

Para um conjunto signiicativo de ilmes assinados por realiza-

dores africanos, que vivem ou viveram a experiência da imigração, o

retorno ao país de origem é a ocasião para representar um processo

de (re)posicionamento identitário. Esse é o campo de interesse de

Amaranta Cesar, que investiga a maneira como a encenação dessas

trajetórias de um país a outro pode dar lugar tanto a novas opera-

ções de subjetivação, quanto a um cinema singular, que se cria nosinterstícios das identidades – e que ela chama de ilmes de regresso.

No artigo, a pesquisadora se interessa, especialmente, pelos ilmes

La vie sur terre, de Abderrahmane Sissako e Bled Number One, de Ra-

bah Ameur-Zaïmeche. Ao encenar o retorno ao país natal do cineasta

migrante, esses dois ilmes operam atravessamentos de fronteiras

diversos para além dos limites geográicos. A análise do cinema dias-

pórico francês e africano pelo viés da interculturalidade é feita, tam-

bém, por Catarina Andrade, através do ilme A esquiva, que narra ahistória de um grupo de adolescentes de diferentes origens étnicas

vivendo na periferia parisiense. Para a autora, o ilme nos leva a re-

letir sobre o fato de que, entre o ontem e o hoje, pouco mudou na

relação centro/periferia, dominante/dominado.

A representação do cinema africano a partir de dentro, de seu

lugar de origem, no Niger, é feita principalmente por um grupo de

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quatro cineastas autodidatas. No contexto da pequena produção ci-

nematográica do país, Moustapha Alassane se apresenta como prin-

cipal diretor, e são dois ilmes da trajetória de Alassane que a autora

Cristina Ferreira identiica como marcantes: uma icção de média-

-metragem, na qual elabora sua própria leitura do gênero western, e

um ilme de animação, em que o autor constrói uma sátira política.

Reletindo sobre a tensão entre “o poder dizer tudo” e “o não

poder mostrar tudo” no contexto de uma cinematograia não oci-

dental e da representação orientalista da mulher no cinema do Ma-

grebe (como Tunísia, Marrocos, Argélia ou Egito), Mahomed Bamba

analisa as estratégias de representação icônico-narrativa da igura

e do corpo da mulher em duas obras do realizador tunisiano FéridBoughedir, Halfaouine e Un été à la Goulette. Para o autor, este novo

orientalismo manifesto e ideologicamente assumido nas sociedades

do Magrebe acaba sendo retratado por cineastas magrebinos nas ic-

ções. Ao analisar a representação da intimidade das mulheres numa

civilização em que elas vivem cobertas da cabeça aos pés, Bamba co-

loca em questão se os preceitos morais e éticos que regem a vida

sexual e afetiva das comunidades do Magrebe são efetivamente ge-

nuínos ou são, simplesmente, valores morais e culturais importadosda Arábia Saudita e do Oriente Médio.

Suzane Costa adentra no debate sobre formatos documentais da

imagem, articulando uma discussão sobre a performance de quem

escreve cartas, e, consequentemente, a questão da autoria em ilmes

montados na/pela “escrita de si”. O faz através de uma correspon-

dência, uma carta-artigo endereçada à diretora Sai Faye, realizadora

da carta-ilme Carta da minha aldeia, performatizando um encontro

íntimo com a etnodocumentarista nascida no Dakar, como a simularo próprio projeto ílmico de autoicção de Dai Faye.

É na tessitura da memória, da reminiscência e da evocação (con-

juração) verbal do passado que Lívia Natália de Souza indaga a cons-

trução daquilo que chama de “narrativa de dilaceramento” no ilme

Contos Cruéis da Guerra  da cineasta belgo-congolesa Ibea Atondi.

Ibea revisita a guerra civil que assolou e esvaziou a capital de Congo

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conhecimentos produzidos pela atividade de leitura/interpretação

dos ilmes. Nessa perspectiva, a noção de ilme africano passa a ser

entendida como objeto cultural, mas também como realidade dis-

cursiva e narrativa singular. Se os cinemas nacionais já são plurais de

um ponto de vista geográico e cultural, eles o são ainda mais pelas

diferentes maneiras como os próprios cineastas, com propostas esti-

lísticas e estéticas particulares, e, às vezes, autorais, problematizam

questões ligadas à subjetividade, às realidades comunitárias, nacio-

nais ou transnacionais. Abordar analiticamente os cinemas africa-

nos signiica, portanto, indagar as formas como cada ilme “pensa” e

“refrata” essas realidades, e como articula estrategicamente as ima-

gens, a música, os sons, as falas e as cores da sua narrativa iccionale documental.

Mahomed Bamba e Alessandra Meleiro

REFERÊNCIA

BOURDIEU, Pierre. Les conditions sociales de la circulationinternationale des idées. Actes de la recherche en sciences sociales n. 145, p. 3-8, 2002.

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Narrativaspós-guerra civil

Angolana eMoçambicana

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A EXPERIÊNCIA ANGOLANA DE GUERRA E PAZum olhar por meio da representação ílmica de

Luanda em Na Cidade Vazia (2004), de Maria JoãoGanga, e em O Herói (2004), de Zezé Gamboa1

Antônio Márcio da Silva

INTRODUÇÃO

Os angolanos viveram a maior parte dos anos 1961 a 2002 emguerra. Durante esse período, passaram por quatro guerras com pe-

ríodos intermitentes de relativa paz. Ao longo desses conlitos, mui-

tas áreas de Angola tornaram-se campos de luta pelo poder entre

dois principais partidos que lutavam pela independência – o Movi-

mento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional

para a Independência Total de Angola (UNITA). Este período de con-

lito afetou a vida de milhares de civis angolanos, os quais testemu-

nharam massacres, sofreram muita violência ísica e abuso sexual

(especialmente as mulheres). Muitos angolanos foram deslocados

de suas regiões e enfrentaram problemas adversos, tais como fome,

1 Este artigo foi originalmente publicado como Viewing the Angolan experience of war and peacethrough the ilmic representation of Luanda in Maria João Ganga’s Na Cidade Vazia (2004) andZezé Gamboa’s O Herói (2004) no volume 3, número 2 do Journal of African Cinemas, organiza-do por Alessandra Meleiro. Tradução do inglês feita por Maria Elsa de Azevedo Cabussú.

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poucos serviços de saúde e raras oportunidades de educação ou tra-

balho.

Em virtude das diiculdades socioeconômicas e políticas, as ati-

vidades artísticas e culturais também decaíram drasticamente. Por

exemplo, o cinema angolano sofreu em meio a essa agitação social,

demonstrado pelo baixo número de ilmes produzidos no período

de 1960 ao início dos anos 2000.2  Porém, desde o im dos longos

anos de guerra, em 2002, alguns ilmes angolanos têm focalizado a

experiência do país e do seu povo durante e após as guerras. Dois

ilmes de longa metragem produzidos no período pós-guerra civil –

Na cidade vazia, de Maria João Ganga, e O herói, de Zezé Gamboa –

enfatizam essa temática e por essa razão têm recebido aclamaçãointernacional. Trata-se de ilmes que fazem referência a períodos em

que o povo angolano, em particular os residentes na capital Luanda,

vivenciaram período de paz: 1991 em Na cidade vazia, e a partir de

2002 em O herói. Os ilmes enfocam as experiências das guerras dos

angolanos e as repercussões em suas vidas ao retratarem persona-

gens que representam o povo comum e mostram o que a população

passou durante o distúrbio, sem mostrar cenas das guerras em si.

Os dois ilmes retratam Luanda, porém os relatos dos personagensestabelecem conexões entre a capital Luanda e outras áreas do país

devastadas pelas guerras. Ao focar em uma cidade da África, as refe-

ridas produções cinematográicas espelham experiências represen-

tadas em outros cinemas nacionais africanos. Sob essa ótica, Pfaff

(2004, p. 89) argumenta que “A cidade africana [...] contém uma ri-

queza de experiências humanas capturadas por criadores cinema-

tográicos africanos comprometidos politicamente como um micro-

cosmo de forças históricas e sociais dinâmicas que afetam as suasnações como um todo”. Os cineastas, ao mesmo tempo em que mos-

tram as experiências dos personagens angolanos em Luanda, usam

o espaço urbano para capturar a dinâmica histórica e social do país,

2 É importante destacar que, diferentemente da produção de ilmes de Moçambique, que tinhauma infraestrutura desenvolvida, Angola não tinha uma produção de cinema nacional esta-belecida (apesar de ter se desenvolvido em termos de produções para televisão). Para maisinformações ver Andrade-Watkins (1995).

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e, em particular, retratar os problemas causados pelas guerras em

diferentes setores de Angola. Dentre os problemas, incluem-se os se-

tores de emprego, de saúde e de educação e, por extensão, na circula-

ção do povo no próprio país, na destruição de famílias e no aumento

da corrupção e do clientelismo.

Este capítulo, portanto, discute as formas nas quais as represen-

tações de Luanda em Na cidade vazia e em O herói funcionam como

um microcosmo usado pelos cineastas para se referirem e comenta-

rem as experiências das guerras dos angolanos e as consequências

destes conlitos para os cidadãos de todo o país. A discussão empre-

endida neste texto está organizada em três seções: a primeira oferece

uma retrospectiva histórica dos conlitos no país; a segunda discuteos ilmes para mostrar como os cineastas aludem aos problemas re-

lativos à guerra ao situar seus principais personagens no maior cen-

tro urbano de Angola, Luanda, durante períodos de relativa paz na

capital; inalmente, a última apresenta algumas considerações inais.

AS GUERRAS EM ANGOLA

Birmingham (2006) divide as décadas de guerra em Angola em

quatro fases distintas: a guerra colonial (1961-1974); a guerra inter-

nacional (1975-1991) e os períodos das duas guerras civis (1992-

1994 e 1998-2002), nas quais o MPLA e a UNITA combateram entre

si ferozmente.3

Na guerra colonial, os angolanos lutaram por sua independência

de Portugal, mas formaram diferentes partidos de libertação, den-

tre os quais três tiveram importante participação nos eventos pos-

teriores: MPLA, UNITA e a Frente de Libertação Nacional de Ango-

la (FLNA). Esta primeira fase de conlitos inalizou quando Angola

tornou-se independente de Portugal, em 1975. Todavia, os partidos

3 Esta clara divisão das guerras em Angola que Birmingham (2006) propõe é também evidente,embora indiretamente, em estudos sobre o assunto; por exemplo, Guimarães (1998), Hodges(2001), James III (1992) e Somerville (1986). Para tanto, a divisão sugerida por Birmingham éseguida com o propósito de contextualizar o conlito descrito neste capítulo.

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22 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

não lutavam somente por essa independência ao combater Portugal,

mas também pelo poder. (JAMES III, 1992) Entretanto, apesar de os

três partidos terem discutido a possibilidade de partilharem o poder,

o MPLA se impôs sobre os rivais e tomou para si o poder. Como re-

sultado desse conlito interno, uma nova guerra teve início em 1975.

Embora o MPLA tivesse erradicado a FLNA e derrotado a UNI-

TA, a vitória não durou muito, pois a UNITA contra-atacou. Birmin-

gham (2006) acertadamente chamou esse período de “guerra inter-

nacional” já que o MPLA e a UNITA estavam lutando entre si, desta

vez com apoio internacional. Esse apoio tornou Angola um campo

de batalha para adversários estrangeiros guerrearem entre si, fato

comum na época em países de “terceiro mundo”. Dentre os paísesestrangeiros, a extinta União das Repúblicas Socialistas Soviética

(URSS) e Cuba apoiavam o MPLA, enquanto os Estados Unidos e a

África do Sul apoiavam a UNITA. Nesse conlito, a UNITA empregou

táticas de guerrilha e ataques contra o MPLA. A África do Sul teve

uma importante função para a UNITA, visto ter apoiado guerrilhas

por toda Angola, o que causou problemas a muitos civis angolanos

e prejudicou consideravelmente a economia do país. As guerrilhas,

por exemplo, destruíram estradas e ferrovias, as quais eram essen-ciais para o transporte de bens de consumo por todo o país. Apesar

de em alguns momentos distintos os partidos tentarem chegar a um

acordo para terminar a guerra, as negociações não tiveram êxito.

Além destes quatro países, a República do Congo, a República Demo-

crática do Congo e a Zâmbia, vizinhos de Angola, também se envolve-

ram na “guerra internacional”.

Nas zonas rurais, a luta era travada pela UNITA, visto que seus

membros conheciam bem a região, especialmente lugares como Biée Hanov. Nessas áreas, muitos angolanos tiveram que fugir para ci-

dades ou países fronteiriços em virtude das atrocidades cometidas

pela UNITA e pelas tropas governamentais. Uma das localidades-

-chave para os refugiados era Luanda, que se tornou superpovoada

ao longo dos anos de guerra, porém sem infraestrutura para acomo-

dar todos os migrantes. Para agravar a situação, muitas das pessoas

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 23

que chegavam à capital quase não tinham pertences, já que haviam

perdido tudo ao fugirem da guerra em outras regiões de Angola. Para

essas pessoas, o destino inal em Luanda era, em sua maioria, as “fa-

velas” – também conhecidas como musseques.

Por volta de 1991 havia claros sinais de um possível im da guer-

ra internacional. Esses sinais advinham da revisão de uma lei cons-

titucional que deiniu o país como um “estado democrático baseado

no cumprimento da lei”, introduzindo-se um sistema multipartidá-

rio. (RPA, 1991 apud HODGES, 2001, p. 12) Esse movimento político

parecia oferecer aos angolanos o direito de escolher seus represen-

tantes no poder. Tal momento político, entre maio de 1991 e setem-

bro de 1992, de acordo com Birmingham (2006), foi um período emque os angolanos vivenciaram um otimismo espetacular e uma sen-

sação de liberdade jamais presenciados no país por acreditarem que

a guerra havia terminado. Por sua vez, o MPLA convocou uma eleição

geral em 1992, e a UNITA, com o apoio e inluência dos Estados Uni-

dos, estava convencida de que conseguiria uma vitória esmagadora

sobre o MPLA. Porém, os resultados não foram exatamente o espe-

rado pelo ganancioso por poder e líder da UNITA, Savimbi. O partido

teve um pior resultado do que esperava. A eleição não teve um ven-cedor no primeiro turno, mas também não houve segundo turno: a

UNITA retornou para a guerra depois dos resultados por acreditar

que a eleição fora fraudulenta.

Porém, diferentemente das guerras anteriores com lutas ocor-

ridas basicamente nas áreas rurais, desta vez as grandes cidades

abrigaram o conlito devido aos resultados da eleição. A UNITA des-

cobriu que a principal razão para sua derrota foi que os moradores

da cidade, que representavam um percentual considerável da po-pulação total de Angola até então, tinham apoiado o MPLA. Savimbi

descobriu inclusive que áreas urbanas com o povo Ovimbundu,4 ao

invés de o apoiarem, como esperava, tinham votado no MPLA, assim

como angolanos izeram em outras cidades. (BIRMINGHAM, 2006)

4 Ovimbundu era o maior grupo étnico angolano e o principal apoiador da UNITA.

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24 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

Diante da situação, Savimbi procurou vingar-se daqueles que

considerou culpados por sua derrota. Portanto, o terceiro período da

guerra, que duraria de 1992 a 1994, começou em Luanda, mas logo

se espalhou para cidades menores do interior, tais como Huambo,

Cuito e Malange. Savimbi puniu severamente tais cidades, especial-

mente diminuindo a provisão de alimento, fazendo as populações

passarem fome. (BIRMINGHAM, 2006) Nesta mesma direção argu-

mentativa, Simon (1998) observa que a maioria das capitais provin-

cianas, incluindo Huambo, Cuito e Malange, foi quase que inteira-

mente destruída durante este período de guerra. O governo sofreu

para controlar os ataques da UNITA, mas atingiu seu objetivo, ou seja,

parar a UNITA, por volta de 1994, quando os angolanos acreditaramque a guerra havia acabado. Esta esperança pela paz resultou das in-

tervenções da Organização das Nações Unidas (ONU), representada

pelo enviado de paz Alioune Beye, o qual conseguiu assegurar um

cessar-fogo em Lusaka, Zâmbia, em 1994. (BIRMIGHAM, 2006)

Entretanto, enquanto políticos usufruíam a paz em Luanda por

aproximadamente quatro anos e beneiciavam-se da corrupção ex-

cessiva recorrente durante esse período, os seguidores da UNITA das

áreas montanhosas preparavam-se para uma nova fase de guerra.(BIRMINGHAM, 2006) Como resultado, em 1998, após quase qua-

tro anos de paz, o país retornou ao seu pior e mais cruel período de

guerra. A UNITA utilizou sua tática mais efetiva, isto é, a guerrilha,

para desestabilizar a gestão do governo do país. Seus membros ata-

caram diferentes regiões de Angola e começaram “um jogo de gato

e rato” com o governo. Mais uma vez a UNITA fez muitas pessoas

passarem fome em cidades como Malange e Cuito “ao impedir que a

ajuda humanitária de alimentos fosse entregue via aérea por órgãosinternacionais”. (BIRMINGHAM, 2006, p. 154)

No interior, a UNITA sequestrava crianças e as fazia servir a seu

propósito militar, além de acusar qualquer dissidente de bruxaria

e os queimava como forma de punição. (BIRMINGHAM, 2006) Os

atos da UNITA se tornaram cada vez mais extremos e as pessoas

que reclamavam das diiculdades da vida no campo ou da falta de

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 25

gêneros de primeira necessidade (por exemplo: sabão, sal, comida

e roupas, entre outros itens) eram acusadas de traição ou bruxaria

e até executadas por causa disso. (BRINKMAN, 2000) Em adição a

isto, Richardson (2002) destaca que muitos refugiados, provindos

das áreas controladas pela UNITA e que se deslocavam em direção a

Zâmbia, relataram recorrentes ataques aéreos e terrestres por tro-

pas do governo (as Forças Armadas Angolanas – FAA), os quais inclu-

íam a “queima de vilarejos e safras, execuções sumárias, e estupro e

saques generalizados”. (RICHARDSON, 2002, p. 5)

Até o início desta última fase das guerras em Angola, a comunida-

de internacional tinha, por intermédio da ONU, gasto muito dinheiro

na tentativa de facilitar um acordo de paz no país em duas ocasiõesprévias. Neste período, por sua vez, os representantes decidiram não

interferir nos conlitos, já que concluíram que não poderiam efeti-

vamente contribuir na solução dos problemas internos de Angola, e

acreditavam que esse era papel a ser desempenhado pelos próprios

angolanos. (RICHARDSON, 2002) Por isso, o governo angolano teve

que gastar uma enorme quantidade de recursos inanceiros em de-

fesa; todavia, esse gasto implicou negligenciar outros setores. Por

exemplo, em 1999, de acordo com um relatório do Fundo MonetárioInternacional (FMI) de 2000, os gastos do governo em defesa e na or-

dem pública corresponderam a 41% do orçamento do país, enquan-

to gastos em setores sociais somaram apenas 9,4%; estes últimos

gastos incluíam “educação, com 4,8 por cento das reais despesas do

governo, e saúde, com meros 2,8 por cento”. (HODGES, 2001, p. 36)

Diferentemente dos períodos anteriores de guerra, desta vez os an-

golanos questionaram o conlito e as diiculdades a que foram sub-

metidos, visto a guerra já não lhes fazer mais sentido.Em virtude da insatisfação do povo angolano, vários setores da

sociedade começaram a questionar o autoritário MPLA, exigindo

um im para o conlito. Richardson (2002) argumenta que desde os

anos 1970 essa foi a primeira vez que ocorreram demonstrações an-

tigovernamentais em Angola. Como resultado, diferentes movimen-

tos de paz surgiram a partir de 1999. Um exemplo são as diferentes

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26 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

igrejas, as quais haviam sido ignoradas por mais de 15 anos sob o

governo Marxista-Leninista do MPLA, que iniciaram manifestações

em prol da paz e encorajaram civis a fazer o mesmo. Entretanto, de

acordo com Birmingham (2006), somente em meados de 2000 é que

as igrejas começaram a trabalhar com tais grupos na organização de

manifestações pela paz. Entretanto, embora Angola seja um país re-

pleto de riquezas naturais, tais como petróleo e diamantes, os civis

angolanos revelavam-se infelizes por passar por diiculdades que re-

sultavam na morte de sua população por subnutrição, por falta de

serviços de saúde adequados e de medicamentos, e por falta de itens

básicos à sobrevivência. O país manteve seu modelo colonial prévio

em que poucas pessoas eram privilegiadas. Os civis angolanos tenta-vam sobreviver num país que era economicamente inseguro, e isso

“levou à corrupção, violência e crime, o que afetou a vida de todos os

setores da sociedade”. (BIRMINGHAM, 2006, p. 149)

É nesse contexto de destruição deixado pelas décadas de guerras

que os filmes discutidos neste capítulo foram produzidos. Eles re-

tratam a situação sociopolítica do país durante dois períodos de paz

entre guerras e colocam sob foco a experiência dos angolanos nas

guerras e as consequências das mesmas para a população. Ao se en-gajarem com diferentes questões relacionadas às guerras, os direto-

res usam a capital Luanda como o lugar onde todas as sequelas das

guerras são claramente indicadas, quer seja pelos relatos dos per-

sonagens principais quer seja pela paisagem da cidade em si. Estes

dois diretores angolanos, como argumenta Pfaff (2004) em relação

a diretores africanos francófonos, usam a iconograia de uma cidade

grande, que é também uma criação colonial, “como a base do dis-

curso político para denunciar facetas neo-coloniais de suas naçõesindependentes”. (PFAFF, 2004, p. 89)

NA CIDADE VAZIA

O ilme Na cidade vazia, de Maria João Ganga, passa-se em Luan-

da por volta de 1991, período em que as guerras se concentravam

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 27

nas áreas rurais. Não obstante, o ilme aborda temas que mostram os

efeitos da guerra na capital. Ele se inicia com um grupo de crianças,

que inclui o protagonista N’dala (interpretado por João Roldan) – um

menino órfão de 11 anos da província de Bié, que foi levado de avião

para Luanda pelo exército e por freiras católicas para que pudesse

escapar da guerra –, que chega a Luanda, desembarcando da aero-

nave. N’dala, porém, foge do grupo enquanto os demais integrantes

descem do avião. Ao longo do ilme, uma personagem, sob o papel de

freira, tenta descobrir o seu paradeiro, visto acreditar que Luanda

“é uma selva”, e airma: “Ele veio do mato e nunca sobreviverá aqui”.

De fato, ela prova estar certa, pois N’dala realmente não sobrevive

na cidade, mas antes de seu trágico im, muita coisa lhe acontece nacapital.

Já nesta curta sequência inicial, o ilme explora vários problemas

que os angolanos encontraram durante e após a guerra: primeiro, o

enorme deslocamento de moradores rurais para a capital; segundo,

famílias destruídas e dilaceradas por causa da guerra, indicado pelo

fato de não haver, na aeronave, crianças acompanhadas por paren-

tes adultos. A sequência também mostra a ajuda humanitária para

os povos que sofrem por causa das guerras, representada pela frei-ra que acompanha as crianças. Além disso, o uso de um avião nessa

abertura é signiicativo, pois indica as limitações de acesso às regi-

ões do interior uma vez que estradas, ferrovias e pontes haviam sido

destruídas pelas guerrilhas da UNITA nos anos 1980; tal destruição,

portanto, contribuiu muito para o sofrimento das pessoas no campo,

especialmente pela fome, visto o abastecimento de alimentos se dar

por estas vias de transporte.

O contraste entre o campo e a cidade é constantemente reiteradoem todo o ilme e mencionado por N’dala, por sua não integração ao

modo de vida urbano. A desconexão de N’dala com o espaço urbano

é inicialmente sugerida na sequência em que ele tenta atravessar a

rua, arriscando-se ser atropelado e revelando sua não familiaridade

aos códigos urbanos. Essa desconexão com a vida urbana é também

evidente na sequência em que ele vai ao cinema. Todos os garotos

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28 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

estão apreciando o ilme, porém ele dorme durante a exibição e não

demonstra nenhum interesse. Entretanto, quando está no litoral ele

encontra um pescador e lhe diz que ele gosta mais da praia, porque

“é mais como lá no Bié”. Portanto, apesar dos conlitos terem devas-

tado sua terra natal, Bié continua sendo o lugar que lhe é familiar

e onde ele quer estar, fato que explica sua recusa em aprender os

códigos urbanos.

N’dala expressa constantemente seu desejo de voltar para o Bié,

local onde ele acredita pertencer. Ele vagueia pela cidade, dorme ao

relento e torna-se uma criança desabrigada. Embora isso não fos-

se um problema alarmante durante o período em que a história se

passa, tornou-se um sério problema nas grandes cidades, particu-larmente em Luanda, no inal da década de 1990 e no novo século,

quando o ilme foi efetivamente feito. Durante o período em que a

história se passa (1991) e quando o ilme foi lançado (2004), o nú-

mero de crianças vivendo nas ruas cresceu consideravelmente. Por

exemplo, de acordo com a UNICEF (The United Nations Children’s

Fund), havia por volta de 1.200 crianças angolanas vivendo perma-

nentemente nas ruas de Luanda em 1997, além de outras que passa-

vam horas nas ruas vendendo coisas ou mendigando. (UNICEF, 1999apud HODGES, 2001)

A experiência real de guerra de N’dala pelo relato de ter tido

sua casa incendiada e toda sua família morta parece ser uma rea-

lidade distante às crianças da cidade. Tal contraste é sugerido em

uma peça de teatro que alguns alunos ensaiam. Nesta peça, Zé (in-

terpretado por Domingos Fernandes Fonseca) um garoto que N’dala

encontraria e tornar-se-ia amigo ao longo do ilme, interpreta o prin-

cipal personagem na peça, Ngunga. As falas ensaiadas pelas crian-ças relacionam-se a crueldades das guerras encaradas por crianças

sequestradas. Não somente a UNITA recrutou crianças para comba-

ter, como já mencionado, mas também o exército do governo o fez,

roubando-lhes a sua juventude. Tais crianças tinham que agir como

adultos e heróis corajosos, independente da sua idade, o que pode

ser observado em um trecho da peça: “um homem nunca pode ter

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 29

medo, é sempre um combatente”. Embora a fala faça parte de uma

peça escolar, ela ecoa o discurso e o comportamento de jovens ga-

rotos angolanos, particularmente nas áreas rurais, em relação às

tropas. Independentemente do quão diícil essa participação forçada

nas guerras era para os garotos nas áreas rurais, as crianças urbanas

adotam um discurso mitológico, evidente na peça. Estas descrevem

os combatentes como heróis, mas ignoram a dureza a que foram sub-

metidos, expondo, portanto a ignorância da população urbana sobre

as experiências reais da guerra nas áreas rurais.

N’dala se recusa a abraçar essa experiência adulta de ser um

soldado que é imposta a outras crianças em diferentes regiões de

Angola e, portanto, rejeita a oportunidade de tornar-se um herói deguerra. Isto é sugerido pelo fato de N’dala guardar consigo um car-

rinho de lata feito por ele em Bié. Embora alguém queira comprar

o seu brinquedo, ele recusa a venda, apesar de sua necessidade de

dinheiro. Portanto, o apego ao brinquedo sugere metaforicamente

a recusa em abandonar a sua infância em prol da guerra. Ademais,

ele revela ter medo de soldados, os quais normalmente eram quem

pegavam crianças errantes e as fazia servir ao exército do governo.

Quando ele está dormindo num banco de madeira e vê um caminhãocom soldados, os close-ups da sua expressão facial revelam medo, po-

rém foge antes de ser visto.

A experiência de N’dala na capital Angolana como um todo é bas-

tante signiicativa e demonstra que apesar das populações rurais

estarem sofrendo por causa da guerra, na cidade, muitas pessoas

não parecem interessadas na guerra e preferem ignorá-la. As pes-

soas do meio urbano estão seguindo com suas vidas, divertindo-se

e fazendo festas apesar dos conlitos; por outro lado, as pessoas nasáreas rurais passam fome e são deslocadas de seus lugares, ou ainda

pior, são assassinadas. Por exemplo, a madrinha de seu amigo Zé,

com quem Zé vive, aparece num salão de beleza; a prima de Zé, Ro-

sita (interpretada por Júlia Botelho), é mostrada dançando num bar

e posteriormente no ilme ela dá uma festa para amigas prostitutas

e para alguns homens. Além disso, o primo de Zé, Joca (interpretado

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30 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

por Raul Rosário), é um golpista e traicante que se diverte em fes-

tas e tira vantagem do infortúnio de outras pessoas para continuar o

seu negócio desonesto. Uma das vítimas de Joca é o próprio N’dala, o

qual é recrutado para ajudar a ele e a outro homem a entrar na casa

de um policial para roubar.

A atitude dos moradores urbanos para com as pessoas do meio

rural, deslocadas por causa da guerra, como é o caso de N’dala, pode

ser ilustrada pela resposta de Rosita ao apelo de Zé para que ela

deixasse o menino viver em sua casa e, portanto, saísse das ruas,

respondendo-lhe com uma pergunta: “E fui eu quem fez a guerra?”

Além disso, sua pergunta também indica o quanto as pessoas estão

cansadas das guerras que destroem o país e a sua gente, sem trazerbeneício algum aos civis angolanos, especialmente àqueles que vi-

vem na cidade. Por exemplo, Birmingham (2006) argumenta que ao

longo dos anos de guerra os moradores das cidades foram poupados

dos conlitos em si, porém se depararam com duras consequências

“quando centenas de milhares de vítimas da guerra surgiram do

campo para buscar refúgio do trauma que havia engolfado todos os

povoados de Angola”. (BIRMINGHAM, 2006, p. 140)

Embora as pessoas deslocadas do campo para a cidade soframmuitos problemas, o ilme explora aqueles associados às diiculdades

das pessoas deslocadas e recém-chegadas na transição de mudança

do espaço rural para o urbano de Luanda e no fato de tornar-se mais

um cidadão urbano a viver diiculdades especíicas. Na medida em

que o ilme se desenvolve, podem-se perceber muitos N’dalas por

toda parte de Luanda, todos fazendo o que podem para sobreviver,

vendendo coisas em semáforos e cometendo pequenos e até grandes

furtos. Por exemplo, o motorista diz para a freira durante uma desuas buscas desesperadas por N’dala: “eles são tantos, irmã!” Como

a freira previu na chegada do menino a Luanda, N’dala não sobrevive

no espaço urbano e é eventualmente morto no inal do ilme, após

assaltar a casa do policial e atirar nele. Portanto, ele sobreviveu à

guerra, mas não conseguiu sobreviver à cidade. Apesar de ter esca-

pado da guerra e evitado transformar-se em um soldado da UNITA

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 31

ou do MPLA, N’dala acaba vítima de um vigarista urbano que recruta

e explora pessoas em condições semelhantes à dele.

O HERÓI

O herói, de Zezé Gamboa, também se passa em Luanda, mas no

período pós-guerra civil iniciado em 2002. Apesar de também focar

na vida de um menino, Manu (interpretado por Milton “Santo” Coe-

lho), o ilme concentra-se principalmente na vida dos adultos, com

destaque para Vitório (interpretado por Makena Diop), o herói epô-

nimo. No ilme de Gamboa, vê-se uma Luanda mais ocidentalizada,

com outros problemas além daqueles identiicados em Na cidade va- zia. No início do ilme, um grupo de garotos joga basquete, e isso cla-

ramente insinua a inluência ocidental em Angola, especialmente a

dos EUA. Além disso, mais adiante no ilme, Manu é atacado por uma

gangue de jovens criminosos, e os agressores exigem que lhes pague

50 dólares. Estes dois exemplos, basquete e dólares, estão claramen-

te relacionados aos EUA e sugerem que, de todos os adversários in-

ternacionais que lutaram em Angola durante a guerra internacional,

os EUA se tornaram o país com o qual os angolanos mais se identii-

caram. Ademais, esses dois símbolos americanos servem como uma

metáfora para o desejo que o MPLA teve, ao longo da guerra interna-

cional, de ter uma relação próxima com os EUA, apoiador da UNITA.

Porém, o MPLA continuou no poder e inalmente conseguiu estabe-

lecer a relação com a qual havia sonhado com os EUA em função dos

interesses econômicos entre esses dois países, particularmente pelo

petróleo.Vitório é um ex-combatente que lutou nas guerras por duas dé-

cadas, desde seus 15 anos quando foi raptado e recrutado à força

pelo exército angolano enquanto voltava para casa da escola. Em sua

última participação na guerra, Vitório perdeu uma perna ao pisar

em uma mina, o que é mostrado no ilme em um  lashback  – uma

das poucas imagens da guerra em si –, enquanto relata seu acidente.

Vitório é mostrado em um hospital pedindo por uma prótese que há

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32 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

muito esperava. O ilme revisita o hospital em inúmeras ocasiões e

mostra a situação dos hospitais na Angola pós-guerra: carência de

pessoal, infraestrutura pobre e escassez de medicamentos e camas.

De acordo com Hodges (2001, p. 79),

Durante os anos 90, serviços básicos de saúde virtualmen-te sofreram um colapso, devido à guerra e à falta de recursosinanceiros. Hospitais e postos de saúde foram destruídos ouabandonados, ou funcionavam com os serviços mínimos, geral-mente sem quaisquer medicamentos ou equipamentos.

Por essa razão, a representação do hospital em O herói, assim

como em outros ilmes africanos, sugere que os hospitais “não re-

presentam saúde, mas morte”. (PFAFF 2004, p. 96) As idas de Vitórioao hospital também indicam que se uma pessoa tem contatos, uma

posição social e/ou dinheiro, ela pode conseguir o que precisa. Por

exemplo, o médico se refere a Vitório como “apenas um soldado” en-

quanto diz a um colega médico, em francês,5 o que Vitório quer. Po-

rém, Vitório lembra ao médico de que ele não é um soldado, mas um

sargento, conseguindo, embora após algum sacriício, receber uma

prótese.

No entanto, seu status de herói de guerra não perdura muito, e

o ilme mostra como a sociedade angolana tratava alguém que dedi-

cou a maior parte da sua vida em lutas nas guerras do país. Vitório

se torna uma fonte de zombaria e indiferença para os angolanos, de

crianças a adultos. Ele se orgulha de sua luta pelo país, que é simbo-

lizada pela sua medalha de guerra de condecoração que carrega, mas

seu papel heróico na guerra não atrai nem simpatia, nem admiração

dos habitantes da cidade. Vitório se torna meramente uma represen-

tação dos muitos angolanos em situações semelhantes à dele. Muitos

perderam seus membros em minas, já que existiam muitas por todo

5 De acordo com Simon (1998), era comum para o governo trazer médicos estrangeiros para opaís, particularmente do Vietnã e da Coreia, numa tentativa de resolver a falta de pessoal local.Entretanto, esses médicos não falavam português.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 33

o país.6 Durante as duas últimas guerras que Vitório participou, pois

esteve em guerras por 15 anos, milhares de civis foram mortos. Por

exemplo, de acordo com Hodges (2001), a ONU estimou que entre

1992 e 1994 cerca de 300.000 angolanos morreram, ou “como resul-

tado direto das lutas, dos bombardeios em áreas civis e incidentes

com minas terrestres, ou indiretamente por causa da aguda subnu-

trição nas cidades sitiadas”. (HODGES , 2001, p. 15)

 No seu retorno para Luanda depois da guerra, Vitório encontrou

apoio apenas das pessoas que estavam encarando problemas simila-

res por causa da guerra, não da elite no poder. Estas incluem a pros-

tituta Judite (interpretada por Maria Ceiça), a qual perdeu seu ilho

e desesperadamente procura por ele; o menino Manu, cujo pai par-tiu para a guerra quando seu ilho ainda era pequeno, porém nunca

retornou; e a professora de Manu, Joana (interpretada por Patrícia

Bull), uma mulher portuguesa que, por meio de seus contatos com a

elite – ela tem um caso com o sobrinho do Ministro do Interior, Pe-

dro (interpretado por Raul Rosário) –, consegue alguma ajuda para

o herói.

Vitório vagueia por Luanda procurando um emprego. Apesar de

mostrar a carta de seu médico que o declara um homem normal, nãoconsegue convencer possíveis empregadores de que pode cumprir

tarefas que demandam força ísica e, por isso, recebe recusas seme-

lhantes: “és um herói, mas preciso de homens normais”. Por meio da

experiência de Vitório de Luanda pós-guerra e as das pessoas próxi-

mas a ele, o ilme focaliza problemas intrinsecamente conectados à

guerra, como os já mencionados: deslocamento, falta de serviços de

saúde decentes, péssimas condições sociais das mulheres angolanas,

falta de educação, além de uma nova elite pós-colonial que surgiu ese estabeleceu durante os anos de guerra.

A presença de Judite no ilme é extremamente signiicativa, ape-

sar do ilme não retratá-la diretamente na guerra em si, uma vez que

ilustra diferentes lutas que as mulheres atravessaram durante as

6 Os números são especulativos, visto que o acesso aos dados era de diícil tarefa para aquelesque queriam fornecer dados precisos.

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34 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

guerras e a situação destas na Angola pós-guerra. Seu papel sugere

que apesar das mulheres terem lutado e sofrido durante as guerras,

elas continuam sendo marginalizadas e exploradas por uma socie-

dade patriarcal machista no período pós-guerra. Durante a guerra,

as mulheres eram frequentemente menosprezadas e mesmo que es-

tivessem alistadas no exército, elas não eram vistas como essenciais

na guerra e recebiam pouco reconhecimento por sua luta nos conli-

tos. A maioria dessas mulheres era alistada no exército para prover

“toda variedade de serviços domésticos, de carga, e sexuais para os

garotos no mato”. (BIRMINGHAM, 2006, p. 169) Contrariamente, as

mulheres civis sofreram os mais horrendos crimes durante os anos

de guerra, especialmente sendo estupradas – uma “arma de guerra”(BRITTAIN, 2003, p. 45) usada por ambos MPLA e UNITA.7 

Além de violência sexual, as mulheres sofreram outros tipos de

violência. Por exemplo, Brinkman (2000) menciona que mulheres

grávidas “teriam o ventre aberto por corte e o feto seria jogado fora.”

Ademais, Brinkman destaca que em algumas ocasiões os maridos

eram forçados a negar suas esposas, dizendo: “Esta é uma boa coisa.

UNITA é um bom movimento!” (BRINKMAN, 2000, p. 13), enquan-

to assistiam aos soldados estuprarem suas mulheres. Em adição, asvítimas eram às vezes forçadas a desempenhar outros atos sexuais

considerados perversões, tais como ter relações sexuais com paren-

tes próximos na frente de todo o vilarejo. (BRINKMAN, 2000) Essa

violência sexual durante a guerra é conirmada no ilme pelos relatos

de Vitório relativos a casos semelhantes. Por exemplo, ele conta a

história de uma família faminta na qual o pai oferece aos combaten-

tes sua esposa e ilhas (a mais jovem com apenas 12 anos) em troca

de comida. Entretanto, ao inalizar o ato sexual, os agressores joga-ram apenas latas vazias para a família, enquanto zombavam de seus

membros. Vitório ainda parece devastado por tais atos, o que o faz

concluir que a guerra é “uma ilha da puta”.

7 Apesar de guerras terem tido um impacto profundo na vida das mulheres, não só em Angola,mas também em outros países, o assunto só foi trazido para a pauta internacional em décadasrecentes, especialmente em discussões da ONU. (BRITTAIN, 2003)

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 35

Na Angola pós-guerra a exploração e violência contra as mulhe-

res, em particular estupros, são excessivas. Mulheres são forçadas à

prostituição para sobreviver, porém, mesmo que tentem sair desta

vida, restam-lhes poucas opções. No ilme, a representação de Ju-

dite sugere que ela é explorada e quer escapar dessa vida para se

estabelecer com o homem “certo”, porém, apenas no inal do ilme

ela encontra alguém quando começa uma vida com Vitório. Toda-

via, enquanto trabalha como prostituta, sofre violência, como fora

ilustrado numa sequência após ter conhecido Vitório: ela apanha e é

estuprada por um cliente porque ele não gostou de seu desempenho

sexual. Judite suporta diferentes experiências penosas, mas o que ela

não consegue superar é a perda de seu ilho alguns anos atrás. Elacontinua a procurá-lo, porém o ilme termina sem que ela obtenha

sucesso.

Outra importante personagem feminina no ilme é a professora

Joana. Os relatos feitos e os relacionamentos tidos por ela no ilme

com as classes trabalhadoras e dominantes revelam outros proble-

mas pelos quais Angola está passando, especialmente em relação à

educação. A representação de Joana também funciona como uma

metáfora para a ajuda estrangeira que os angolanos têm necessita-do para sua sobrevivência durante e após a guerra na reconstrução

do país. Ela é portuguesa, mas não volta para Portugal com seu pai,

como muitos portugueses izeram desde a independência de Angola;

ela escolhe icar no país. Ela quer ajudar na reconstrução do país e é

retratada como uma pessoa boa que se interessa pelo bem estar dos

semelhantes. Por exemplo, ela cumpre um papel de quase-mãe para

Manu e tenta impedi-lo de ir adiante numa vida de pequenos crimes

nos quais ela sabe que ele já se envolveu.Joana também parece acreditar que a reconstrução e o progresso

do país só serão possíveis se o povo lutar e o governo cumprir sua

parte. Ela é uma pessoa que critica as políticas do governo, especial-

mente a falta de apoio à educação. Apesar de ter uma paixão pela edu-

cação, sua atitude sugere que sem o apoio do governo não há muito

que os professores possam fazer. Sua crítica em relação ao governo,

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36 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

por exemplo, é evidente numa sequência em que ela informa aos

alunos que os professores entrarão em greve. Esse é um momento

signiicante no ilme, pois toca nas mudanças feitas na lei pelo MPLA,

porque, anteriormente, era ilegal fazer greve; isto foi permitido pelo

governo apenas a partir de 1991. Hodges (2001) destaca que o sindi-

cato dos professores, Sindicato Nacional dos Professores (SINPROF),

tornou-se mais ativo entre todos os sindicatos que representavam

seus próprios setores, e envolveu-se na “organização de uma série

de greves para pressionar por salários mais altos, pelo pagamento

de salários atrasados e por melhorias na educação”. (HODGES, 2001,

p. 83) Todos estes problemas são criticados no ilme por meio da

personagem Joana.A situação da educação na última fase da guerra estava caótica,

assim como estavam outros setores públicos. Professores recebiam

baixos salários que diminuíram ainda mais depois que o país entrou

em guerra novamente em 1998. Durante este período, apenas 8% do

orçamento do Estado era destinado à educação, o que é um enorme

contraste se comparado aos seus gastos de 47% em guerra e segu-

rança. Hodges (2001) aponta que em outros países africanos havia

menos de um soldado por cada professor de escola primária, excetoem Moçambique, mas que em Angola este número era de 2,5. Ainda

de acordo com Hodges, as alocações altamente impróprias de ver-

bas resultaram em uma séria carência de professores qualiicados,

livros-textos e outros materiais pedagógicos. As escolas nas áreas

rurais foram destruídas ou abandonadas durante a guerra. Em con-

traste, o alto número de pessoas refugiadas nas cidades signiicou

que suas escolas icaram com número excessivo de estudantes sem

terem os recursos necessários. (HODGES, 2001)Entretanto, a elite angolana não tinha de lidar com problemas

educacionais. A maioria das famílias ricas era privilegiada ao rece-

ber bolsas de estudo do Estado para enviar seus ilhos para o exte-

rior, não apenas no nível escolar, mas também no nível universitá-

rio. (HODGES, 2001) Durante o período entre as duas guerras civis

(BIRMINGHAM, 2006), o orçamento geral para educação era muito

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 37

baixo, e ainda 18% deste, em 1996, era gasto em bolsas de estudo

no exterior, embora se comparado ao ano anterior esse percentual

representava apenas a metade. (MINFIN, 1995; 1996; UNICEF, 1999

apud HODGES, 2001) Isto é fortemente criticado no ilme por meio

da representação dos conhecidos ricos de Joana. Seu quase-namo-

rado Pedro era uma das crianças da elite que estivera estudando no

exterior, nos Estados Unidos, e retornou a Angola para ocupar uma

posição de poder no governo. Joana é quem se opõe e critica Pedro.

Para ela, é fácil para a elite não se importar com a situação da educa-

ção no país, já que eles não precisam dela porque estudam no exte-

rior com o dinheiro do governo.

Além do caos no serviço público, um fator complicador para osangolanos que viviam nas áreas urbanas – as quais Luanda repre-

senta no ilme – diz respeito ao número de deslocados por todo o

país. A esse respeito, Hodges (2001) relata que em maio de 1991

os números acusavam em torno de 800.000 pessoas internamente

deslocadas (PIDs) e 425.000 refugiados. Além disso, o autor aponta

que, de acordo com informações da ONU, em junho de 1999 havia

ainda 400.000 PIDs remanescentes daquelas desalojadas entre 1992

e 1994, “adicionadas às conirmadas 952.202 novas PIDs erradica-das desde o reinício da luta em 1998”. (HODGES, 2001, p. 22) Es-

sas pessoas contribuíram para o aumento da população em Luanda.

Observa-se que, já em 1995, a cidade tinha uma população estimada

em 2.2 milhões de pessoas, ao passo que sua real capacidade era de

menos de 1 milhão. (SIMON, 1998) Simon também nota que no ano

de 1998 a cidade somava aproximadamente entre 20% e 25% da

população de Angola.

Ao longo do ilme, muitos deslocados estão desesperadamenteprocurando por seus entes queridos perdidos durante os conlitos,

na maioria das vezes com a ajuda da mídia. Sequências mostrando i-

las de pessoas, inclusive crianças, procurando por seus parentes pela

televisão, ao vivo, repetem-se muitas vezes no ilme. Uma mistura de

vozes em off  combinam-se com imagens de pessoas procurando por

seus parentes perdidos, o que denota o alto número de deslocados

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38 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

na cidade e o caos que Luanda está vivenciando em função dessa mi-

gração. Além disso, o Ministro do Interior usa o rádio para advertir

as pessoas para que não venham para Luanda, já que a cidade já está

superpopulosa. De acordo com Hodges (2001), o grande número de

angolanos rurais que migraram para a zona urbana contribuiu para

“uma das maiores taxas de urbanização da África”. (HODGES, 2001,

p. 7) Consequentemente, isso mudou o peril do país, ou seja, de uma

sociedade predominantemente rural para “uma onde cerca da me-

tade da população vive nas cidades”. (HODGES, 2001, p. 21) Sendo

assim, a população rural migra para onde a nova elite pós-colonial

angolana está concentrada. O herói enfatiza repetidamente o grande

contraste da elite com o povo deslocado e com a classe trabalhadora,especialmente por meio de referências aos privilégios da elite, como

aos estudos de Pedro no exterior, aos bens materiais que possuem

(belos carros e casas, água encanada). Salienta-se que ter água enca-

nada era privilégio de muito poucos em Luanda.

A nova elite angolana era formada principalmente pela comu-

nidade crioula de Luanda, seus aliados e seus clientes. (CHABAL,

2007) Ela era representada pelo presidente que concentrava a maior

parte do poder, juntamente com seus aliados. Estes poucos membrosda elite dominante estavam em uma posição inanceira confortável,

fator criticado no ilme por meio do personagem Vitório. Portanto,

o “abismo entre o estrato mais rico, coletivamente apelidado por al-

guns angolanos de as “100 famílias”, e o resto da população é suicien-

temente real”. (HODGES, 2001, p. 37) Diferentemente de Na cidade

vazia, O herói mostra claramente diferenças entre as classes sociais

dentro da cidade, em meio a uma excessiva corrupção e exploração

que se tornaram comuns na Angola pós-guerra. Os poucos seletostêm acesso à educação, saúde e aos serviços públicos, enquanto a

maioria da população tem pouco ou nada para sobreviver. Isto é su-

gerido no ilme quando Vitório é encorajado por um homem em um

bar a não desistir, o qual diz ao “herói” que “tudo está a icar melhor”,

a quem Vitório responde criticamente “sim, mas para alguns”.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 39

Ao obter vantagem da situação em um país onde a maioria de

seus habitantes luta para sobreviver, estes membros da elite encon-

traram maneiras para enriquecer (HODGES, 2001) por meio da ren-

da gerada pela exploração do petróleo e de diamantes. A luta e as

condições de vida da população urbana são evidenciadas em uma

pesquisa feita em 1995, que mostrou que “61 por cento das famílias

estavam vivendo abaixo da linha de pobreza [...] e que 12 por cento

estavam vivendo em extrema pobreza”. (INE, 1996 apud HODGES,

2001, p. 29) A situação para os angolanos estava tão ruim que seu

país ocupava o 160º lugar em um ranking de 174 países, no índice

de desenvolvimento humano na edição de 2000 do Programa de De-

senvolvimento da ONU (UNPD), a qual fora baseada em informaçõesde 1998. (HODGES, 2001) Dessa maneira, ao mostrar as diiculdades

pelas quais a maioria dos angolanos estava passando para sobrevi-

ver, o ilme sugere que, apesar de ser um momento de reconstrução,

as pessoas no poder estavam apenas interessadas em cuidar de suas

próprias vidas e interesses e, acima de tudo, enriquecerem. Conse-

quentemente, a população parece ter começado a desistir lentamente

das mudanças que esperavam com a independência do país. Como a

avó de Manu, Flora (interpretada por Neuza Borges), diz após ouvir asnotícias no rádio: “Antes as pessoas se juntavam para resolver proble-

mas. Agora, ninguém quer saber de nada”. Portanto, a guerra não fazia

mais sentido e servia apenas “como um álibi para um mau gerencia-

mento econômico, permitindo ao regime lavar as mãos dos muitos

problemas que na realidade são de sua própria autoria” (HODGES,

2001, p. 54), o que é criticado substancialmente em O herói.

CONCLUSÃO

Como em outros ilmes africanos que retratam a cidade como

lugar de contestação de identidade e crítica a má administração po-

lítica e corrupção, os ilmes discutidos neste capítulo representam

Luanda como um lugar onde história e sociedade se entrelaçam. Ao

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40 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

retratarem  as experiências dos personagens na capital, os ilmes

mostram as diiculdades que a guerra trouxe para a vida dos ango-

lanos. A capital se torna um lugar de encontro de pessoas da área

rural e da cidade. Esta relação serve ou para cooperar e ajudar uns

aos outros a sobreviverem em períodos diíceis, como em Na cidade

vazia em que Zé representa a pessoa urbana e N’dala a pessoa rural

engolida pela cidade, ou para criar uma relação de exploração. Como

exemplo desta última (no mesmo ilme), Joca beneicia-se da situa-

ção. Por outro lado, O herói proporciona um retrato mais fragmen-

tado e detalhado dos setores social e público angolanos, que mostra

um escopo maior dos problemas sociais resultantes da guerra e tam-

bém da má administração do governo e da corrupção.Vitório representa aqueles que lutam pelo país e acreditam em

mudanças, mas se deparam com desapontamento, desilusão e des-

crença por causa das pessoas que estão no poder. O ilme mostra pro-

blemas relativos à provisão do sistema de saúde, educação e empre-

go no país – e a falta destes que os angolanos têm que suportar. Além

disso, O herói mostra uma população que perdeu seu rumo e recebe

pouca orientação ou ajuda daqueles responsáveis pelo bem-estar

dos angolanos. Ademais, muitas crianças não têm mais seus pais eestão condenadas a tentar sobreviver sozinhas na capital “selvagem”,

como a freira em Na cidade vazia  se refere a Luanda. Entretanto,

O herói dá um melhor fim para seu menino protagonista do que Na

cidade vazia. O ilme cria um novo modelo de família – Vitório, Judite

e Manu –, que oferece uma alternativa para compensar seus mem-

bros por suas perdas de seus entes queridos; mas, no outro ilme,

N’dala não recebe uma alternativa e acaba encontrando a morte na

capital.Para concluir, a mensagem de O herói é que Angola somente será

capaz de se reconstruir por meio de diferentes dinâmicas sociais e

pessoais que ajudarão seus cidadãos a superarem os traumas e as

perdas enfrentadas por mais de quatro décadas. A mensagem parece

clara: é tempo de enterrar o maldito passado e seguir em frente com

a vida em novas formas, isto é, através da solidariedade. Na cida-

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 41

de vazia, entretanto, não é tão positivo quanto O herói, e apesar do

ilme fazer referência às boas qualidades dos angolanos como uma

maneira de sobreviverem aos desaios que a maioria da população

enfrenta, é mais cético em relação a tais mudanças e possibilidades.

O que o ilme acaba dizendo é que a exploração dos mais fracos pelos

mais fortes tem sido perpetuada desde a era colonial, e continuará

assombrando os angolanos por muitos anos vindouros.

REFERÊNCIAS

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Ohio University Press, 2006.BRINKMAN, I. Ways of Death: Accounts of Terror from AngolanRefugees in Namibia. Africa: Journal of the International AfricanInstitute, v. 70, n. 1, p. 1-24, 2000.

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Hurst and Company, p. 1-18, 2007.GUIMARES, F. A. The Origins of the Angolan Civil War: ForeignIntervention and Domestic Political Conlict. Hampshire; London:Macmillan Press, 1998.

HODGES, T. Angola: From Afro-Stalinism to Petro-Diamond Capitalism.Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 2001.

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NA CIDADE vazia. Direção: Maria João Ganga. New York : Global FilmInitiative; Angola: First Run; Portugal: Icarus Films, 2004 (88 min.).1 DVD, color. Legendado em Inglês.

O HERÓI. Direção: Zezé Gamboa. Angola: David & Golias; Portugal: LesFilms d’Après-midi; França: Gamboa & Gamboa, 2004 (97 min.).1 DVD, color. Legendado em Inglês.

PFAFF, F. (Ed.). Focus on African Films. Bloomington: Indianapolis:Indiana University Press, 2004.

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ANDRADE-WATKINS, C. Portuguese African Cinema: Historical andContemporary Perspectives – 1969 to 1993. Research in AfricanLiteratures, v. 26, n. 3, African Cinema (Autumn), p. 134-150, 1995.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 43

RECONSTRUINDO O CORPO POLÍTICO DE ANGOLAprojeções globais e locais da identidade

e protesto em O Herói1 

Mark Sabine

INTRODUÇÃO

Na esteira do frágil otimismo gerado pelo Memorando de Paz de

Luena, em 4 de abril de 2002, o ano de 2004 pareceu para muitosobservadores ser um annus mirabilis para a produção cinematográ-

ica em Angola. As décadas de conlitos armados que devastaram o

país tinham também gradualmente acabado com a sua pequena, po-

rém distinta, tradição cinematográica, e fez de fato o ato de assistir

a ilmes algo inacessível à maior parte da população.2 O lançamento

1 Gostaria de agradecer aos seguintes colegas por suas inestimáveis ajudas e pelos conselhos na

preparação desse artigo: Fernando Arenas, Anthony Soares, Raquel Ribeiro, Bernard McGuirke Roger Bromley. Eu também gostaria de agradecer à generosidade da Universidade de Nottin-gham e do Conselho de Pesquisa de Artes e Humanidades da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte(AHRC), por possibilitarem o período de licença de pesquisa durante o qual os primeiros rascu-nhos desse artigo foram preparados. Este artigo foi originalmente publicado como Rebuildingthe Angolan body politic: global and local projections of identity and protest in O Herói, no vo-lume 3, número 2 do Journal of African Cinemas, organizado por Alessandra Meleiro. Traduçãodo inglês feita por Maria Elsa de Azevedo Cabussú.

2 Como Arenas resume, “o cinema angolano praticamente desapareceu nos anos 90 como umresultado da guerra civil e da falta de atenção do governo nacional”. (2010, p. 114) Ver tambémMoorman (2001, p. 116) e Abrantes (1987) sobre o impacto da produção de ilmes angolana naeclosão da guerra e restrições de orçamento.

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44 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

naquele ano de três ilmes feitos em casa – O comboio da Canhoca 

(Canhoca Train), dirigido por Orlando Fortunato, Na cidade vazia 

(Hollow City ), dirigido por Maria João Ganga, e O herói  (The Hero),

dirigido por Zezé Gamboa – levou a se falar de um renascimento do

cinema angolano, patrocinado por um reativado Instituto de Filme

e Multimídia nacional. Apesar de a aclamação internacional por es-

tes dois recentes ilmes em particular continuar, essa conversa de

alguma maneira agora parece ter sido prematura. A paz continuada e

uma espetacular explosão econômica expandiram as oportunidades

para a expressão cultural, até mesmo numa Angola ainda por alcan-

çar uma democracia livre e pluralista.3 No entanto, levará mais tem-

po para direcionar a carência de fundos para a produção de ilmes, eas lacunas na infraestrutura e na técnica da produção cinematográi-

ca local, pelo que cada uma das três atrações de 2004 levaram mais

de uma década para serem produzidas, precisando coniar em fun-

dos estrangeiros.4  Enquanto a gradual manifestação de uma viável

indústria de cinema local permanece uma possibilidade, os três il-

mes oferecem exemplos inspiradores de como cineastas angolanos

podem almejar identiicar as preocupações e desejos dos públicos

locais, mesmo quando se encontram forçados pelas circunstânciasdo país pós-conlito, sendo obrigados a atrair fundos e audiência de

centros de poder distantes, dentro de uma cada vez mais globalizada

indústria de ilmes e mídia. Em relação a este artigo, O herói, em par-

ticular, é notável pelos meios pelos quais ele equilibra o objetivo de

comentar as realidades políticas e sociais na Angola pós-conlito com

as necessidades de negociar restrições de liberdade de expressão em

casa, e de engajar uma audiência internacional que é muito alheia às

especiicidades culturais e históricas de Angola. Num primeiro olhar,O herói apresenta um conto simples e acolhedor da sobrevivência e

reabilitação pós-guerra, que estão ameaçadas por atitudes e práticas

antissociais, mas que são em última instância alcançadas através do

desprendimento e da solidariedade. Uma inspeção mais aproxima-

3 Sobre a explosão da Angola pós-guerra, ver Hodges (2007).

4 Ver Arenas (2010) e Spranger (2005).

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 45

da, no entanto, revela sua crítica poderosa não apenas da sociedade

angolana, mas também, e particularmente, da ordem política da na-

ção pós-conlito. No contexto globalizado a que a produção angolana

de ilmes contemporâneos deve se dirigir para ser inanceiramen-

te viável, o que é especialmente extraordinário é que a crítica de O

herói envolve a reairmação de uma cultura e ethos especiicamente

nacionais. O apelo do ilme pelo ressurgimento de uma “solidarieda-

de angolana” implica em um retorno para a agenda socialista da era

independente, o que a liderança do MPLA (Movimento Popular de

Libertação de Angola), no governo desde a independência, em 1975, 

abandonou há muito tempo.5 O ilme exprime essa mensagem atra-

vés de uma diegese e uma linguagem visual onde símbolos tradicio-nais dos valores “nacionais” de comunidade e diligência, e da aspira-

ção de criar uma nova e inalienada humanidade, estão integrados em

um retrato da vida do dia a dia numa Luanda pós-guerra. Como este

artigo irá explorar, o desenvolvimento simbólico dos personagens do

ilme e de seus principais temas resulta em uma atenuada, porém

claramente identiicável dualidade hermenêutica no ilme. A combi-

nação do ilme de narração focado no personagem com elementos

de uma estética do realismo social permite que ele ofereça um con-to otimista do triunfo de seu protagonista sobre a dureza do pós-

-conlito que o ilme documenta. Ao mesmo tempo, o ilme pode ser

lido como uma alegoria criptografada, apresentando uma tributação

mais pessimista da alienação e corrupção endêmicas, como doenças

perpetuadas pela lógica da economia neoliberal, e das promessas

quebradas das instituições governamentais e nacionais, que podem

ser remediadas apenas com o retorno de uma agenda de desenvol-

vimento de inclusão social. Essa estratégia de criptograia simbóli-ca, essencial para articular a mensagem de protesto do ilme diante

das circunstâncias de censura informal, possui um distinto pedigree 

nacionalista e revolucionário, tendo sido largamente empregada no

que são agora canônicos trabalhos literários e cinematográicos as-

sociados à luta pela independência angolana. A reutilização dessa

5 Ver Messiant (2007) e Hodges (2003).

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estratégia de O herói no seu exame das injustiças dos dias atuais su-

gere a relevância contínua de um conceito socialista de uma cultura

nacional popular, e de princípios políticos e estéticos associados ao

Tercer Cine (Terceiro Cinema), num estado africano no início do sé-

culo XXI se recuperando de décadas de violência e destruição.

CONSTRUINDO ANGOLA PARA UMA AUDIÊNCIA GLOBAL:O HOMEM COMUM ANGOLANO ENTRE O REALISMOSOCIAL E O DOCUDRAMA

Numa entrevista sobre O Herói, Zézé Gamboa ressaltou sua in-

tenção de “contribuir diretamente para a tarefa da reconstrução na-cional”, e da implantação do cinema como um “poderoso meio para o

desenvolvimento” numa região onde as taxas de analfabetismo con-

tinuam altas.6 (GAMBOA, 2010, 2004) Entretanto, antes de alcançar

uma audiência local, os cineastas angolanos devem assegurar tanto o

inanciamento como outras facilidades de produção fora do seu pró-

prio país como, por exemplo, a distribuição no circuito dos festivais

internacionais de cinema. Em 2004, um punhado de salas de cinema

sobreviveram em Angola projetando ilmes nos formatos 35mm eBetacam, mas foi somente após O Herói ter vencido o Prêmio do Júri

para o Cinema Internacional (divisão de dramas) no Sundance Film

Festival de 2005 (um dos mais de 25 prêmios que havia abocanha-

do até a data) que o lançamento de uma edição em DVD facilitou a

sua circulação em Angola.7 O ilme foi, portanto, concebido como ne-

cessariamente uma “estória universal” que reverberaria na “Europa

Central, América Latina, África e em todos os lugares aonde existe ou

existiu guerra [...] mostrando as crianças – os antigos instrumentos

de guerra – que é possível viver em paz” (GAMBOA 2010) Os apoios

técnico e inanceiro necessários foram assegurados em Portugal e,

6 Alfabetização básica em português entre adultos em Angola nos dias de hoje é estimada em 70%.

7 Como Moorman (2001, p. 119) coloca, “os cinemas delapidados de Luanda habitados pelosdesalojados pela guerra, um antigo cinema onde hoje o parlamento se reúne, e teatros transfor-mados em restaurantes de alta classe são símbolos irônicos do estado contemporâneo da naçãoem Angola.” Rua de Baixo (2010) nota o número de prêmios ganhos por O herói, mas não os lista.

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particularmente, na França, tendo Gamboa trabalhado em ambos os

países na maior parte dos anos 1980 e 1990, após renunciar ao seu

posto na corporação estatal da televisão angolana em 1980. (KEHR

(2005) A preocupação em, simultaneamente, envolver e informar

tanto os circuitos de festivais de cinema como as audiências locais

traduz-se em um foco nas especiicidades locais que são facilmen-

te apreendidas pelas audiências estrangeiras, e uma abordagem de

ilmagem e edição que recorrem tanto às convenções de realismo

social quanto àquelas da estética mais contemporânea e (suposta-

mente) mais rentável do documentário de drama.8 Essa abordagem

permite um equilíbrio entre uma história pessoal emocionalmente

envolvente e um hábil esboço de um corte transversal na sociedadeem Luanda, em direção à culminação do processo de desmilitariza-

ção em 2002-2003. O ilme ilustra claramente como a infraestrutu-

ra e ambiente dessa, outrora tão bonita, capital foram severamente

comprometidos devido a uma ampla explosão de população não ge-

renciada, quando milhões de angolanos fugiram do interior minado

e devastado pela guerra. A maioria não tinha outra opção além de

sobreviver nas favelas miseráveis ou musseques,  que agora domi-

navam uma cidade cuja população proliferou de cerca de 750.000habitantes, em 1975, para uma estimada em 4 milhões, em 2000.9 

(VIDAL, 2007; ARENAS, 2010) Através do programa pós-guerra de

desmobilização e “reintegração social”, eles se uniriam a centenas de

milhares de antigos combatentes militares do governo do MPLA e ao

exército rebelde da UNITA. A falta de abastecimento de água e ener-

gia, esgotos ou coletas de lixo, a inadequação das estradas, transpor-

tes públicos, e a falta de aplicação da lei, unida à escassez de opor-

8 Com exceções signiicativas que serão discutidas abaixo, a ilmagem e edição de O herói contri-buem para a caracterização que Dereck Paget oferece “da pratica moderna na (realista) icçãotelevisiva”, com o uso de “sets realistas ou locações de verdade, ‘key lighting’, som gravado paraa máxima limpidez da sequência narrativa, edição de continuidade [...] e música não diegéticamixada durante a pós-produção para inluenciar o clima”. (PAGET, 1998, p. 75)

9 A taxa precisa do crescimento populacional em Luanda é diícil de acertar, já que nenhum cen-so foi conduzido desde os anos 1970. Pitcher e Graham (2006, p. 177-178) dão números de300.000 nos anos 1950; 800.000 nos anos 1970; 3,5 milhões em 2004. A estimativa atual daONU é de 4 milhões.

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tunidades de educação e empregos remunerados e legítimos sofrida

pelos habitantes das musseques é abundantemente demonstrada

à medida que os protagonistas do filme são apresentados, e são

contrastados com o luxo desfrutado por um pequeno círculo ao

redor dos escalões superiores do governo do MPLA, e que vivem em

opulentos condomínios fechados a beira mar.10

Em nível de estrutura da trama, o ilme procura sua análise

abrangente do estado em que se encontra aquela nação, situando o

seu homônimo “herói” como um homem comum pós-conlito, cuja

jornada ao redor de Luanda o conduz a encontros com uma varieda-

de de tipos sociais. Vitório (Oumar Makéna Diop) – cujo nome indica

o uso de simbolismo e ironia no ilme para equilibrar um otimismosupericial com uma velada crítica política – é um sargento recém-

-dispensado que perdeu a perna em uma explosão de uma mina ter-

restre nos últimos meses da guerra civil. No início do ilme, Vitório

junta-se à minoria de angolanos de sorte, estimada em 62.500 pes-

soas, vítimas de minas terrestres, às quais foram fornecidas próteses

de membros de boa qualidade.11 Embora tenha se tornado mais uma

vez – nas palavras do médico que lhe fornece a prótese – um “homem

válido”, Vitório permanece desempregado, desabrigado e totalmenteexcluído, como muitos outros, do espetacular boom econômico do

país pós-guerra.12 Faltando-lhe amigos ou familiares para apoiá-lo e

dormindo ao relento nas ruas da cidade, um dia ao acordar veriica

10  Em 2006, quase 40% das populações urbanas em Angola tinham falta de acesso ao sistema deágua encanada e mais de 20% tinham falta de acesso ao sistema sanitário. (UNICEF, 2010) Ataxa de mortalidade abaixo de cinco anos era de 220 a cada mil nascimentos em 2008, caindodos 260 na alta da guerra em 1990. A expectativa de vida nacionalmente era de 47 anos em2008, subindo de 42 em 1990. Pitcher e Graham estimam o “núcleo” da elite rica, fundada nosimpostos de petróleo do estado de uma maneira que garante o poder da MPLA como uma formade “autocracia de pacto”, em cerca de 3.000 indivíduos, apesar de haver também “camadas ecamadas de beneiciários” de uma relação clientelista com o topo da hierarquia governamental.(UNICEF, 2006, p. 177)

11  Na crise sobre as minas em Angola, e a provisão de atendimento de saúde para os sobreviventesde minas detonadas, ver o relatório Landmine and Cluster Munition Monitor  (2010) (monitor deminas e grupo de munição).

12  A maioria das fontes concorda que, em 2002, cerca de 65% da população angolana viveu abaixodo nível de pobreza reconhecido pela ONU de U$ 1.25 por dia. As recentes alegações do gover-no, de que a pobreza tenha diminuído para 38%, foram endossadas por observadores da ONUAnon (2010), mas são questionadas por muitos outros partidos.

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que sua prótese foi roubada. Em sua luta subsequente para recupe-

rá-la, Vitório cruza o caminho de quatro personagens cujas inter-

venções o ajudarão a alcançar uma nova vida civil que até agora lhe

tinha sido negada. O primeiro deles é Maria Bárbara (Maria Ceiça),

uma mãe separada da sua família por um ataque da UNITA, traba-

lhando agora sob o falso nome de Judite em um bordel de Luanda

e à procura do seu ilho desaparecido. O segundo é Manu (Milton

Coelho), um adolescente órfão, esperto, porém problemático, cuja

introdução para o espectador na sequência de créditos de abertura

estabelece sua história como o foco narrativo secundário do ilme.

Crescendo em meio à miséria das musseques e ansiando por notí-

cias do seu pai desaparecido, Manu cai inexoravelmente numa vidade crimes, apesar dos esforços da sua avó, Flora (Neusa Borges), e

da sua professora Joana (Patrícia Bull), a ilha de prósperos ativistas

do MPLA, que agora está desiludida e se esforçando para manter a

fé nos seus ideais sociais. Vitório encontra Joana por acaso quando

ele retorna ao hospital da cidade buscando assistência, após o roubo

da sua perna, e é ela, ao invés dos funcionários do hospital, que se

desvia do seu próprio caminho para ajudá-lo. Explorando as cone-

xões políticas do seu rico namorado  playboy  Pedro (Raúl Rosário),Joana consegue que Vitório faça um programa de rádio em conjunto

com um ministro do governo (Orlando Sérgio), apelando para a so-

lidariedade angolana e para a devolução da prótese. O que nenhum

desses personagens suspeita é que a perna roubada está agora nas

mãos de Manu, que a trocou por um rádio roubado em um dos famo-

sos ferros-velho, que são centrais na grande economia do mercado

paralelo de Luanda, e a está usando na tentativa de contatar o seu

pai por meios de rituais de magia improvisados.13 Quando, logo apóso programa, a avó de Manu descobre a perna, ela encaminha Manu

para a estação de rádio onde, para sua vergonha, ele reconhece Vitó-

rio como o homem que recentemente o salvou de um ataque brutal

por uma gangue de rua local. Apesar disso, tudo é perdoado; Vitório

e Judite/Maria Bárbara – que, no ínterim, apaixonaram-se e resolve-

13  Na troca de commodities roubados em Luanda, ver Pitcher e Graham (2006).

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ram começar uma nova vida juntos – tornaram-se grandes amigos

de Manu e Flora, e Vitório, através do patrocínio do Ministro, ainda

consegue um emprego como motorista do governo.

Reduzido a esses elementos de trama e a um inal puro de felizes

para sempre, o ilme de Gamboa pode parecer culpado perante a acu-

sação lançada contra várias obras compromissadas com a pobreza

urbana e marginalização, que alcançaram sucesso comercial de bi-

lheteria em todo o mundo. Cidade de Deus (City of God ) (MEIRELLES;

LUND, 2002) e Quem quer ser um milionário?  (Slumdog Millionaire) 

(BOYLE; TANDAN, 2008) são, mais a mais, casos proeminentes de

representações de exclusão social intratável, que douram a amarga

pílula sociológica através de uma resolução de trama que satisfaz odesejo da plateia por uma mensagem inspiradora (geralmente indi-

vidual) do triunfo sobre a desvantagem. Em O Herói, a excepcional

boa sorte de Vitório e os beneícios que desta se espalham para os

personagens à sua volta, dependem em grande parte dos encontros

coincidentes que solicitam a intervenção de um deus-ex-machina,

vindo na igura de um poderoso benfeitor, e também do altruísmo

de duas mulheres, Joana e Judite/Maria Bárbara, a quem Vitório, ini-

cialmente, pouco mais oferece do que sua cara bonita e sua históriade vida comovedora. A evocação, através dessas duas personagens e

de suas funções no enredo, dos mais poderosos arquétipos cristãos

da virtude feminina – respectivamente, a mãe universal (Maria) e a

prostituta redimida (Madalena) – é, entretanto, uma das muitas de-

cisões presentes no roteiro e na escalação do elenco que possibilita

envolver um público substancial em Portugal e, particularmente, no

Brasil. O mais importante disso é a participação, nos papéis princi-

pais, das estrelas das telenovelas brasileiras, Ceiça e Borges. Enquan-to Gamboa referenciasse as diiculdades de montar um elenco total-

mente local em uma nação com somente quatro ou cinco companhias

de teatro ativas (KEHR, 2005), as brasileiras não pareciam escolhas

acertadas para a realização de um documentário de estética realista.

Ceiça, em particular, luta para modificar o seu sotaque brasileiro

e, além disso, mantém uma atuação exageradamente expressiva e

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emotiva, própria de telenovelas, de forma que, ocasionalmente, se

choca com o discreto desempenho de Makéna Diop e dos atores an-

golanos. Ao mesmo tempo, porém, a contribuição de ambas as mu-

lheres aumentou enormemente a visibilidade e apelo do ilme num

Brasil que recentemente havia renovado o orgulho pelas suas raízes

africanas e, particularmente, pelos seus laços culturais com Angola.

Além disso, a caracterização de Joana e as referências à contribuição

heroica do seu pai português na luta pela autodeterminação de An-

gola agradam as audiências em Portugal, destacando os legados mais

benignos de uma relação de 500 anos de colonização. A implicação

de uma herança cultural unindo Luanda a uma mais vasta comunida-

de lusófona é, entretanto, articulada pelo foco em práticas recreati-vas partilhadas, particularmente na cultura das espreguiçadeiras de

praia e restaurantes de frutos do mar aproveitados pelos abastados

e, entre os pobres, a indulgência em café e doces, para mulheres e

crianças, e beber cerveja ao ar livre para os homens.

Quando se deixa de lado os artiícios para agradar o público, pre-

sentes na trama central de O Herói, e os sinais sedutores de familia-

ridade cultural que ela oferece, o que ica, no entanto, são imagens

e alegorias de narrativa que funcionam segundo uma lógica dual derepresentação. Quer diretamente, quer através da construção de um

quadro alegórico, estas imagens transmitem uma avaliação sombria

e muito mais politicamente carregada de mal-estar da nação e suas

perspectivas de recuperação pós-guerra. Quando essa lógica dual é

identiicada, O Herói parece menos preocupado em educar seu pú-

blico global do que em garantir, por meio de um razoável grau de

sucesso às bilheteiras e festivais internacionais, a sua projeção para

a população angolana que Gamboa se referiu como sendo seu “pú-blico alvo”. Gamboa (2005) apresenta a condição abjeta de Luanda

num formato que, por um lado, é internacionalmente reconhecido

como possuidor de (alguma) credibilidade documental, mas que,

por outro, não é limitado por objetivos estritamente documentais.

Embutido dentro desse formato, entretanto, encontra-se um código

simbólico a nível local especíico que (combinado, num momento

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chave, com as descontinuidades da atuação de Maria Ceiça) deses-

tabiliza a mensagem supericialmente otimista do ilme. Esse código

também serve para sugerir a negligência da nação às mãos de uma

cleptocracia arraigada no MPLA e a inadequação da ética individua-

lista ou clientelista em que se baseia o atual modelo de reconstrução

e desenvolvimento do país.

O balanço de estratégias usadas para documentar a sistemática

disfunção econômica e social da Luanda pós-conlito, através de um

drama exemplar de um heroico homem comum, é claramente deli-

neado na sequência de créditos de abertura do ilme. A imagem de

abertura é um plano aéreo que varre as musseques de Luanda, e mos-

tra como elas estão encostadas aos empreendimentos de luxo queabrigam a elite do MPLA. Isso é cortado para uma rápida sequên-

cia de planos seguindo a ação de um jogo de basquete da gangue de

Manu em uma quadra ao ar livre improvisada. Juntas, essas imagens

exempliicam como o ilme muda de um uso esporádico de longos

planos no estilo social-realista e música ambiente (sugerindo uma

perspectiva panorâmica e localizando os protagonistas claramente

dentro de um contexto socioeconômico), para uma preponderância

de close-ups mais frequentes e planos de rastreamento em primei-ra pessoa (técnica de ilmagem de  point of view, ou POV), frequen-

temente acompanhados por música extradiegética (extradiegetic

music), provocando a empatia do espectador com uma perspectiva

individual do personagem. Essas duas abordagens de representação

são nitidamente combinadas na conclusão da sequência dos crédi-

tos, onde Manu abandona o jogo (o qual, como sendo o mais popu-

lar esporte de Angola, torna-se um símbolo potente da aspiração de

um garoto que quer escapar da pobreza) e é enquadrado no planopanorâmico que fecha a sequência, capturando uma vista panorâ-

mica a distância do centro da cidade, da beira-mar e das luxuosas

casas na ilha de Luanda. Nas cenas subsequentes que apresentam

os principais personagens e eventos, cada sequência é cortada por

um curto plano estabelecido para close-up  e planos em primeira

pessoa (POV) que mantêm um alinhamento com experiências indi-

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viduais, enquanto resumem os problemas do país. A primeira dessas

sequências apresenta a chegada de Vitório ao hospital superlotado

e com poucos recursos, onde nada funciona de forma transparente

ou programada, onde os médicos quebram os seus compromissos e

onde Vitório reivindica que ele está esperando a prótese prometida

há dois meses, enquanto outros pacientes furam a ila. Uma volta a

Manu, então, ilustra o seu deslize em direção à criminalidade, quan-

do ele e sua gangue aprimoram as suas habilidades em furtos, des-

montando uma bicicleta acorrentada na rua e fugindo com as suas

partes mais vendáveis. Flora é apresentada em seguida, esgotada do

trabalho e do levar água para casa vinda de hidrantes distantes pe-

las perigosas musseques, e incomodada com a pouca motivação deManu com os seus estudos. A inclinação de Manu para escolher a

vida do crime mais que a educação (como ele airma, quer se estude,

quer não, “vai dar tudo no mesmo”) é redobrada quando Joana e seus

outros professores fazem greve em protesto contra grandes atrasos

nos salários e nos orçamentos escolares. A inacessibilidade de servi-

ços básicos, como educação e assistência médica, é posteriormente

demonstrada quando cortes de energia impedem Vitório de ler sob

as luzes dos postes e quando não existem ônibus ou mesmo táxispara levá-lo ao hospital. Nessa situação, Vitório é um dos 120.000

combatentes recém-liberados que (pela estimativa do governo) irá

encarar o desemprego. Esse fenômeno é inicialmente apresentado

como sendo parte do drama pessoal de Vitório (quando o chefe de

um canteiro de obras ica bastante alito com a situação de Vitório e

decide mandá-lo embora com algum dinheiro, uma vez que ele não

deseja dar um trabalho de construção para um amputado). Em se-

guida, porém, o desemprego é “documentado” em contexto mais am-plo em um plano longo no qual Vitório caminha em direção a uma

grande tabuleta fora do canteiro de obras que informa que “Não há

vagas”, ao mesmo tempo em que um reluzente jipe passa por ele em

(relativa) velocidade.

O retorno periódico para uma perspectiva panorâmica que esses

artiícios exempliicam permite que a elaboração da psicologia dos

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personagens seja lida como contribuição para uma representação,

em um microcosmo, do estado pós-conlito do país. O desenvolvi-

mento das linhas do enredo centradas em Vitório ou em Manu ex-

plora os danos acarretados para o psicológico individual e coletivo

por décadas de conlito. No caso de Vitório, a diícil e dolorosa tarefa

de aceitar uma identidade forjada por experiências de violências, de

destruição e de privações, que frequentemente carecem de encerra-

mento, é sugerida num plano dele confrontando o seu relexo no es-

pelho numa academia do hospital, quando ele aprende a andar com

sua nova perna. Se Vitório tem idade suiciente para compreender

a destruição do seu país como um processo histórico, uma geração

mais jovem simplesmente aceita a ilegalidade, o roubo e a fraude aoseu redor. Embora Manu seja repreendido por Joana e Flora por rou-

bar, ele enxerga isso como a sua melhor perspectiva de carreira e

como meio de inanciar a busca do seu pai desaparecido, e o ilme

delineia o progresso dele de roubos de componentes de bicicleta a

itens de luxo, como aparelhos de som de carros. Vitório, entretanto,

personiica o fracasso dos adultos em dar um bom exemplo. Logo

após obter a sua prótese, ele vende as suas muletas no mercado pa-

ralelo, ao invés de retorná-las ao hospital, e usa o dinheiro ganhonão só pra comprar necessidades básicas, mas também para adqui-

rir consolações, como roupas da moda, cerveja e sexo. Além disso,

Vitório somente assegura sua prótese em primeiro lugar subscre-

vendo as práticas sociais notoriamente hierárquicas e clientelistas

de Angola, reivindicando aos médicos, com êxito, prioridade como

um oicial do exército e herói de guerra condecorado, e assim pas-

sando por cima de tropas de civis e militares feridos. Embora o uso

da hierarquia possa ser justiicável a im de responsabilizar as au-toridades mais poderosas a prestar contas, Vitório posteriormente

ostenta uma verdadeira arrogância quando usa o seu status de herói

de guerra como justiicativa para furar a longa ila daqueles que es-

peravam junto a uma bomba d’água. Mais sinistra que a aceitação ao

furto, desonestidade e demonstração de superioridade, entretanto, é

a falta de sensibilidade para com a violência. Enquanto a brutalida-

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de casual é inevitável nos becos das musseques e no prostíbulo onde

Judite/Maria Bárbara trabalha, Manu e os seus amigos demonstram

uma fascinação pelas armas e pela guerra que denuncia a identiica-

ção deles com a agressão e violência destrutiva como a mais efetiva

solução para os seus desabonos. Somente após Manu ter sido ataca-

do e roubado, faz-se um plano dele, observando-se num espelho no

banheiro, que sugere a sua capacidade de reletir sobre a sua iden-

tidade e situação, e sobre as limitadas alternativas à violência e ao

crime que estão disponíveis para ele.

Enquanto funcionando inequivocamente de forma a ilustrar as

doenças da sociedade angolana pós-conlito, essas cenas exempla-

res constituem uma receita muito menos nítida para a recuperaçãonacional. De um lado, o ilme indica como cada um tem sofrido por

causa da guerra, conirmando que a violência e o trauma daniicam

a psicologia coletiva e geram situações em que todas as partes (sem

excluir os oiciais do MPLA, como Vitório testemunha) comportam-

-se de maneira repreensível. Com isso ele oferece uma lição de re-

conciliação amigável através da contrição e do perdão, sem partilhar

culpa ou aventurar-se a julgar um assunto tão controverso como a

assimilação, dentro do governo angolano, do serviço civil e militar,de elementos do movimento da UNITA.14 Por outro lado, tal detalhe

é construído em torno de um pequeno grupo de alegorias que, eu ar-

gumento, quando lidas simbolicamente, acionam a mais controversa

mensagem de que a responsabilidade de assegurar a recuperação de

Angola pós-conlito situa-se menos no Homem Comum alienado e

de mãos atadas, lutando apenas para manter-se vivo, do que na elite

do MPLA, a qual, através do seu abraço da economia neoliberal e sua

implicação na fraude desenfreada, nepotismo e intimidação, traiu osprincípios socialistas da época da independência e renegou as suas

promessas de reassentamento dos refugiados, de reabilitação dos

combatentes e de remoção das minas terrestres.15

14  Ver Méssiant (2007) e Vidal (2007a).

15  As eleições parlamentares prometidas pelo presidente dos Santos em 2002 inalmente acon-teceram em setembro de 2008, com os candidatos da MPLA vencendo uma maioria impres -

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RECONSTRUINDO A CULTURA NACIONAL PARAUMA AGENDA LOCAL: O “HOMEM NOVO”, TRABALHOE PROGRESSO NA ALEGORIA PÓSCONFLITO

Como tem sido descrito, embora o objetivo de Gamboa de docu-mentar o estado de guerra da nação e educar a audiência popular

lembre os objetivos sociais realistas do cinema, O Herói faz somente

uso ocasional das técnicas de ilmagem, de edição e montagem de

som associados àquele movimento. Ao mesmo tempo, entretanto,

pode-se identiicar no ilme outra herança da estética social realista,

uma que é essencial para a representação da nação pós-conlito, e

que é, além disso, associada às airmações iniciais da independência

de Angola. Essa herança é o uso de criptograias simbólicas de ale-gorias familiares, importantes dentro da diegese, com o intuito de

elaborar a documentação da vida cotidiana proposta pelo ilme, ao

construir alegorias superimpostas e ideologicamente consistentes

das relações socioeconômicas e políticas. Tal alegoria criptografada

era comumente usada na literatura e cinema oposicionista de Portu-

gal e nas suas colônias sob o Estado Novo a partir da década de 1940,

servindo para articular polêmicas que não poderiam, sobre severas

condições de censura, serem apresentadas transparentemente nas

representações da vida nacional. Uma estética “neorrealista” da ic-

ção, e o lexível e abrangente léxico de criptograia elaborado por

novelistas como Alves Redol, Carlos de Oliveira e, em Angola, Castro

Soromenho, tornaram-se fortemente associados às lutas marxistas

pela independência e pela coesão das novas identidades nacionais

em toda África governada por Portugal.16 É interessante especular se

a escolha, n’O herói, dessa estratégia retórica foi determinada pura-mente pelas alarmantes intimações, nos primeiros anos do novo mi-

lênio, de intolerância às criticas públicas abertas entre os membros

sionante Wheeler e Pélissier (2009, p. 375) e Human Rights Watch (2009). Após muitos anosde adiamento de eleições presidenciais, no início de 2010 o parlamento angolano revisou aconstituição nacional, estabelecendo o líder do partido com o maior número de cadeiras parla-mentares como presidente.

16 Sobre criptograia simbólica em escritos “neorrealistas” e oposicionistas em Portugal e suascolônias, ver Ferreira (1992), Cardoso Pires (1972) e Sabine (2010).

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da elite do MPLA, ou foi, como parece eminentemente plausível, feita

expressamente a im de reabilitar componentes da cultura socialista

da era pré e pós-independência, e usá-los como um veículo de reair-

mação dos valores nacionais supostamente traídos, por sua vez, pelo

neoliberalismo.17

O começo para uma resposta a essa questão deriva do estudo da

escolha das alegorias básicas a partir das quais a alegoria do O Herói 

é construída. Enquanto algumas dessas alegorias ativar as imagens

e metáforas do discurso da nação em todo o mundo – por exemplo,

casas e famílias e a (re)construção de ambas –, outras dizem respei-

to mais especiicamente à retórica de airmação nacional da Angola

socialista. Destes últimos, os mais distintos e proeminentes são o“herói” Vitório e o seu corpo destruído e reconstruído. A carga me-

tafórica dessas alegorias é a base para alegorias das vicissitudes de

dois projetos nacionais do período socialista interligados, a saber,

uma acelerada industrialização de acordo com os princípios socia-

listas, e a criação, através da educação, da reforma econômica e da

socialização revolucionária, de uma nova humanidade. O conceito do

“Homem Novo” comunista origina-se como uma ideia brevemente

esboçada nos ensaios iniciais de Marx, mas adquire essência ideo-lógica só nos escritos bolchevistas nos anos de 1920.18 O seu desen-

volvimento na teoria política e na propaganda pós-independência

do MPLA foi inspirado signiicativamente pelo programa traçado no

ensaio de 1965 de Che Guevara, Socialismo e o homem em Cuba, e

pelo programa cubano de educação e mobilização social desenha-

do para produzir uma subjetividade proletária inalienada; isto é, um

trabalhador leal à sociedade coletiva e comprometido com os valo-

res socialistas e emancipatórios da revolução.19 Os teóricos do MPLA

17  Sobre matanças supostamente politicamente motivadas de jornalistas e ativistas de ONGs emLuanda, ver Birmigham (2002, p. 183) e Human Rights Watch (2004b).

18 Ver Marx (1961) e Scruton (1982). Meus sinceros agradecimentos vão para Robert Chilcote porme chamar atenção sobre essas fontes.

19  Ver Guevara (1969), Araújo (2005), Rius (1976), e UNAP (1979). Meus sinceros agradecimen-tos vão para Tony Kapcia, Christabelle Peters, Kelly de Oliveira Araujo, Betty Rodriguez – Feoe Delinda Collier por sua generosidade em me aconselharem no que diz respeito a este debateangolano-cubano, e por me fornecerem muitos desses textos.

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58 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

sintetizaram este modelo com teorias (incluindo aquelas de Amílcar

Cabral e Frantz Fannon) que endereçavam os desaios particulares à

luta revolucionária na África pós-colonial, focando a necessidade de

“descolonizar” as mentes africanas e efetivar a coesão entre as na-

ções etnicamente diversas, ao mesmo tempo recuperando tradições

nativas, expurgadas de elementos “regressivos” ou “não cientíicos”,

para culturas nacionais revolucionárias20 Embora o projeto político

da criação do Homem Novo tenha quase desaparecido, o conceito

manteve uma proeminência no discurso político e patriótico de An-

gola, sendo ainda uma referência chave no hino nacional, “Angola,

avante!”, que airma que

Honramos o passado e a nossa história,

Construindo no trabalho o homem novo.

Vitório, em O herói, nascido cerca de cinco anos antes da inde-

pendência e compelido a juntar-se ao exército do MPLA aos 15 anos,

cresceu não para encarnar o “homem novo” sonhado por seus pais,

mas sim como um sujeito mental e isicamente traumatizado pela

guerra. Nesse contexto, ecos irônicos do sonho de uma nova hu-

manidade, próprio da era da independência, estão presentes, por

exemplo, na airmação do médico que diz que Vitório está prestes

a “começar uma nova vida”, reforçando a manipulação simbólica do

corpo de Vitório como metáfora múltipla para um homem comum

disfuncional, ou como sujeito nacional, ferido e diminuído pela guer-

ra, como também para um projeto nacional, pelo progresso e pela

indústria, pervertido e paralisado, ou ainda para uma nação dani-

icada e fragmentada necessitando de um modelo de reconstruçãoque integre e harmonize todas as partes constituintes.

O signiicado do corpo de Vitório e da sua reconstrução como

elementos centrais e de união nas alegorias de interseção da nação

é estabelecido na sequência em que Vitório, recém-adaptado à sua

20  Ver Araújo (2005). Estou em dívida com Antonio Tomas por seu resumo, postado na H-Net Lu-sophone Studies Discussion List em 22 de outubro de 2010, sobre a inluência de Cabral como“o líder africano que levou essa ideia adiante, através da dialéctica das zonas de libertação”.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 59

prótese, se junta a dezenas de companheiros feridos de guerra que

estão reabilitando os seus corpos feridos ou mutilados na academia

do hospital. Cenas de pacientes puxando e empurrando ritmicamen-

te as alavancas e roldanas de aparelhes de remo e de equipamen-

tos de musculação, e de isioterapeutas manipulando membros com

persistência, são acompanhadas por uma trilha sonora de correntes

zumbindo, motores zunindo e ruídos e cliques metálicos. O que é evo-

cado não é simplesmente a recuperação ísica, mas também o pro-

cesso, fundamental para a construção do homem novo, de harmoni-

zação do humano com uma revolucionária, mecanizada e totalmente

inclusiva ordem econômica. A reconstrução e reabilitação ísica de

Vitório são dessa forma desenvolvidas como uma sinédoque de umprojeto de desenvolvimento nacional recomeçado. Ao mesmo tempo,

a ideia de que a falta da “reintegração social” do pós-conlito amea-

ça o futuro da nação é sugerida por uma variação no uso frequente

da alegoria da amputação como uma metonímia de castração (um

tópico não surpreendente, dada a organização da diegese em torno

de dois personagens masculinos e o relexo de valores e ansiedades

patriarcais, por exemplo, na construção dos personagens femininos

do ilme e nas representações da vida familiar). O ilme modiica ametonímia convencional, focando na perda da prótese mais do que

na perna original de Vitório, como uma castração simbólica, e as-

sim, evitando uma analogia simplista entre deiciência e castração.21 

A castração simbólica de Vitório pela perda da sua prótese torna-se

aparente através da sua relação com Manu. Os dois se encontram

quando Vitório intervém para salvar Manu da gangue que ameaça

matá-lo, golpeando com sua muleta a faca do líder da gangue, tiran-

do-a de suas mãos, e jurando que vai matar qualquer um dos jovensque ferir “meu ilho”. A resposta exultante de Manu – “sempre sabia

que tu irias voltar, pai” – e o seu posterior abatimento quando Vitó-

rio confessa que ele havia mentido para fazer sua ameaça parecer

21  Deveria ser notado que a reiteração de Vitório do pronunciamento de seu médico de que ele éum “homem válido” e seu lamento – “a minha prótese foi a minha liberdade” – enfatiza a natu-reza de sua invalidez mais como um fato circunstancial do que essencial.

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60 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

mais convincente, cria um sentimento de  pathos.  Isto, por sua vez,

prepara o terreno para a resolução do enredo, no qual o destino dos

personagens em formar uma família feliz é sinalizado quando Ma-

ria Bárbara, encontrando Manu pela primeira vez, declara que “esse

menino podia ser meu ilho”. Entretanto, a criação de uma família

de “protéticos”, feita por e para enlutados e despossuídos, não pode

ser iniciada quando Manu e Vitório se encontram pela primeira vez:

Vitório deve partir imediatamente para o hospital, onde ele espera

ser equipado com uma nova prótese. Somente após as intervenções

do ministro e de Dona Flora para impelir Manu a retornar a prótese

original, Vitório pode reentrar na sua vida, acompanhado por Ma-

ria Bárbara, e assumir um papel paterno. Por meio dessa metáforafálica, O Herói sugere a necessidade da sociedade angolana de reco-

nhecer relações e responsabilidades que são tanto paternas como

fraternas. Primeiro o estado ao qual Vitório serviu toda a sua vida

adulta – e sob cujo comando foi mutilado – deveria tardiamente as-

sumir suas responsabilidades (como quando Vitório conta ao doutor

que amputou sua perna que “você tem que ser responsável pelo que

fez”). Desde então, Vitório pode fornecer o necessitado suplemento

aos esforços feitos por Flora e Joana para ensinarem ao adolescenteManu a arcar com suas responsabilidades.

O contraste entre as responsabilidades universais de honestida-

de e solidariedade, e a prática que se tornara habitual na vida pública

de Angola, é certamente destacada pelo terceiro e mais crucial trata-

mento metafórico da alegoria do corpo desmembrado e reconstruí-

do. O desenvolvimento do enredo especiicamente em torno do rou-

bo de um membro artiicial fornece uma ilustração exata e precisa do

vasto comércio de mercadorias roubadas que mantém a economianão oicial de Luanda em movimento, e do enorme custo humano

desse comércio. Ao mesmo tempo, o roubo da perna pode ser inter-

pretado como uma indicação do quanto o projeto de reconstrução é

confundido não apenas pelos pequenos roubos nas musseques, mas

muito mais pela escala astronômica de furto em direção ao ápice da

pirâmide social. O roubo de um membro oferece uma clara metáfora

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 61

do desvio de (de acordo com as contas do FMI) cerca de 1/4 da com-

panhia estatal de óleo, Songangol, durante os últimos anos da década

de 1990 até meados dos anos 2000.22 Assim como para Vitório a sua

prótese era a “independência” dele, o complemento que faz dele um

“homem válido” capaz de se responsabilizar por uma criança órfã,

assim como a nação angolana não pode libertar-se da dependência

de ajuda externa e do patrocínio cínico das potências mundiais e do

capital globalizado, enquanto é rotineiramente roubada de tão vital

porção da sua riqueza. 

A crítica política de O Herói mostra-se mais incisiva quando se

considera a interação entre esses tratamentos metafóricos do corpo

e aquelas imagens de casas, máquinas e mão de obra. Representa-ções da reconstrução e reparação de casas e veículos que atestam

a exclusão de Vitório de emprego remunerado lembram também,

ironicamente, o status da classe operária, outrora, como um sítio de

orgulho e unidade nacional, e sua centralidade na visão socialista da

Bildung nacional , evidente na escolha de um motor de engrenagem

como motivo central da bandeira de Angola. O desemprego do “Ho-

mem Comum” – apesar da sua força ísica e treinamento mecânico

– conota o abandono da indústria pelo Estado como uma das vir-tudes nacionais, e da ideia da liberação através da industrialização

democrática. Como é indicado em uma cena onde Vitório é recusado

para o trabalho num canteiro de obras, a privatização da moradia

e o uso da terra para o desenvolvimento residencial excluem o ex-

-combatente de uma, supostamente, reconstrução nacional que, de

fato, beneicia somente a elite rica em petróleo e investidores e es-

peculadores estrangeiros.23 A exploração, no ilme, das alegorias de

portões e entradas denunciam como as novas realidades de habita-

22  Vidal (2007b, p. 229, nota 9) nota o cálculo do FMI da receita do Estado equivalentes a 23%do GDP nacional, não sendo contabilizados no período de 1997-2001. Sobre alegações de cor-rupção e apropriações indevidas para com o serviço civil, ver também Hodges (2007), HumanRights Watch (2004a) e Global Witness (2004).

23 Enquanto o ilme fornece o exemplo da propriedade portuguesa desenvolvedora, na realida-de os investidores mais signiicativos têm sido companhias chinesas que geralmente mandamseus próprios trabalhadores peritos para formarem a equipe das operações angolanas ao invésde maximizarem oportunidades de trabalho para locais.

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62 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

ção, desenvolvimento imobiliário e acesso às comodidades do Esta-

do excluem a maior parte da nação da “recuperação” pós-conlito.

Uma ilmagem em close-up do ponto de vista do portão da rica vila de

Dona Palmira sendo fechado para Manu, que acaba de entregar sua

encomenda de bolos, evoca poderosamente a privatização elitista do

espaço urbano, que em 2004 já havia gerado a evacuação forçada de

milhares de habitações nas musseques, sem compensação ou realoja-

mento dos residentes, para que o governo vendesse títulos de terra

para o desenvolvimento de moradias de luxo.24 Entretanto as “casas”

das instituições e serviços do governo, como o hospital, o prédio do

Ministério onde Pedro trabalha e a estação de rádio (de cujo portão

Vitório deve esperar seu benfeitor, o Ministro, do lado de fora), sãoacessíveis somente para aqueles com transporte privado e/ou pode-

rosos contatos. Considerando que a assistência de tais instituições

para cidadãos comuns é, na melhor das hipóteses, o mínimo neces-

sário e é geralmente afetada pelas práticas corruptas e promessas

quebradas daqueles em posição de autoridade, é nas casas humildes

de Flora, Joana e Judite/Maria Bárbara que Vitório e Manu são su-

pridos de proteção, nutrição, amor e reintegração familiar (e desse

modo, por sinédoque, reintegração nacional). A ênfase nas casas depessoas comuns como sendo o verdadeiro lugar da reconstrução e

reconciliação nacional é mais gráica na cena perto do inal do ilme,

onde Vitório, Maria Bárbara, Manu e Flora estão reunidos para o al-

moço como uma família pós-conlito e pós-nuclear. De mãos dadas

com Maria Bárbara (que agora tinha enterrado a sua identiicação

dos tempos de guerra como Judite, a justa cortesã do Antigo Testa-

mento, e reassumido o nome da santa que protege contra explosões

e mortes súbitas), Vitório pode subir os degraus em direção à portaaberta da casa de Flora sem a ajuda de uma bengala. Reconstrução, a

nível popular, ocorre num lugar onde os cidadãos pensam como uma

comunidade (patriarcal, socialista), coniando, investindo e apoian-

do ativamente um ao outro.

24 Em  despejos e demolições forçadas em musseques de Luanda, ver Amnesty International(2007), e Human Rights Watch/ SOS Habitat  (2007).

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 63

A alegoria cujo tratamento simbólico mais politiza o ilme, entre-

tanto, é aquela do veículo de transporte. Em ambos os níveis, docu-

mentário e alegórico, as representações dos veículos e das relações

dos personagens com os mesmos poderosamente comunica a ideia

da Angola pós-conlito como uma nação em duas vertentes. Conside-

rando que, de acordo com a ideologia e simbolismo da era da inde-

pendência, a nação-estado é uma máquina cujas partes precisam ser

atendidas e necessitam trabalhar em harmonia para que o todo pos-

sa avançar, na realidade, o progresso para a maior parte da nação é

paralisado enquanto a elite controladora do Estado acelera à frente.

Enquanto Vitório implora por trabalhos mecânicos aos serralheiros

reparando destroços de veículos, seu caminho ao redor de Luandaé cortado por carros do governo dirigidos por choferes e jipes luxu-

osos. Mais tarde, após o roubo da sua prótese, a provisão de trans-

porte público é tão exígua que ele só pode chegar ao hospital graças

a um chofer do Ministério que faz um bico como motorista de táxi

candongueiro.25 Os diversos planos do ilme que mostram destroços

queimados de ônibus, trens e aviões de combate assumem maior

pungência quando vagões arruinados e enferrujados formam um

pano de fundo para as cenas em que Manu é perseguido e violenta-mente assaltado, enquanto caminha pelas musseques para entregar

bolos para Joana. Juntas, essas cenas sugerem como a comunidade

nacional é igualmente ameaçada pela falta de acesso a veículos pú-

blicos (que são mostrados como sendo indispensáveis para as pes-

soas e empresas), e pelo progresso da elite privilegiada isolada em

veículos que são transformados em objetos de desejo implicitamen-

te patológicos e agentes da divisão social. Como Pitcher e Graham

argumentam, a provisão de carros do alto comando do MPLA para osprincipais burocratas de médio escalão é uma regra tática de clien-

telismo, “desenhada para evitar a adoção de soluções públicas de

problemas coletivos, comprando oponentes potenciais um por um”.

(PITCHER; GRAHAM, 2006, p. 183)

25  Sobre transporte público e táxi em Luanda, ver Pitcher e Graham (2006).

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64 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

A exclusão social que procede da privatização clientelista do

transporte é mais poderosamente ilustrada em duas cenas que,

juntas, oferecem uma imagem dialética de como “carros [luxuosos]

estão matando Luanda”, (PITCHER; GRAHAM, 2006, p. 173) aquela

em que Pedro derruba uma criança de rua com o seu jipe, enquanto

discute com Joana; e a cena na qual o carro do Ministro é bloqueado

ao sair da estação de rádio, não pelos clamorosos jornalistas que se

juntaram para questioná-lo, mas por uma multidão silenciosa de ví-

timas de minas terrestres, usando muletas e cadeiras de rodas, enca-

rando-o. Se a relutância de Pedro em levar o garoto ferido ao hospital

exempliica a aversão de um burocrata do MPLA em executar as suas

responsabilidades sociais como um cidadão comum, a resposta doMinistro à multidão sugere a sua ainda menor preocupação com re-

lação à sua responsabilidade ao público. Relutantemente, após uma

pausa para reiterar suas promessas de ajuda aos feridos de guerra e

desalojados, o Ministro volta ao seu carro e asperamente diz ao seu

motorista “Anda devagar. Não quero matar ninguém.” Essas repre-

sentações de carros como perigos mortais são literais tanto quan-

to metaforicamente adequadas na descrição de uma cidade onde

“o risco de morte para pedestres devido à má direção e excesso develocidade [...] tornou-se tão grande que mais pedestres do que ocu-

pantes de veículos morrem em acidentes de trânsito”. (ANON, 2005,

apud PITCHER; GRAHAM 2006, p. 182) Entretanto, uma sequência

posterior, em particular, convida para uma leitura simbólica – uma

que aguça as conotações políticas do ilme – demasiado óbvia para

ignorar. Conforme a câmera corta para um plano dentro do carro do

Ministro, o burburinho dos jornalistas do lado de fora é silenciado

quando as janelas automáticas do carro se fecham: enquanto os pri-vilégios dos burocratas do Estado e a privatização do espaço rende-

ram vozes críticas inaudíveis e sem efeito, veículos de alta tecnologia,

longe de carregarem os novos homens (e mulheres) da nação adian-

te, cortaram um caminho para a elite através de uma humanidade

daniicada pela guerra, não reabilitada e silenciosamente sofredora.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 65

DESCONSTRUINDO FINAIS FELIZES: CINEMA COMO UMAPRÓTESE CULTURAL NA ANGOLA PÓSCONFLITO

Retornando, após essa exploração do uso da alegoria criptografa-

da em O herói, às questões de abertura desse artigo sobre a possibili-dade de um cinema em Angola que seja tanto comercialmente viável

como engajada a assuntos políticos e culturais, parece adequado re-

tomar a insistência de Paul Willeman (1989, p. 3) sobre uma estética

lexível ou híbrida para o Terceiro Cinema, como um “historicamen-

te analítico ainda que culturalmente especíico modo de discurso

cinemático”. Assim sendo, segundo Willeman (1989, p. 7) o cinema

popular engajado politicamente deve reconhecer “a variabilidade

histórica das necessárias estratégias estéticas a serem adotadas”, deacordo com as oportunidades e restrições das suas circunstâncias de

produção e recepção. (WILLEMAN, 1989, p. 3) Gamboa, em O herói,

reconhece isso, e para que sua crítica da Angola pós-conlito alcan-

ce seu “público-alvo” popular, local, seus mais duros e inlamados

elementos devem ser disfarçados, tanto para uma audiência global

não receptiva a polêmicas e afro-pessimismo, como para uma po-

tencialmente repressora elite governamental africana. Seu sucesso

está em disfarçar esses elementos por meios de símbolos e estra-

tégias estéticas especiicamente nacionais, sinalizando, portanto,

para a sua audiência local sua posição privilegiada como receptores

do ilme e como árbitros de seus sentidos. Além disso, ao mesmo

tempo em que Gamboa oferece ao seu público-alvo percepções pri-

vilegiadas das realidades políticas e culturais fora de si mesmas, ele

usa com sucesso “estratégias cinemáticas feitas para explorar aquilo

que regimes de signiicação dominantes foram incapazes de lidar”,(WILLEMAN, 1989, p. 7) em uma maneira que também alerta sua

plateia internacional para a lacuna entre as realidades angolanas e

suas representações, através do que poderíamos categorizar como

um “cinema agradável com consciência social”. Isso ocorre quando o

meio termo que o ilme desenvolve entre o documentário e a narrati-

va focada num personagem se desfaz espetacularmente numa sequ-

ência ilmada no set  de um verdadeiro programa de TV local, Ponto

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66 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

de Reencontro (sendo o título do programa uma brincadeira com o

termo em português “ponto de encontro”). Uma das mais imagina-

tivas iniciativas do governo para acelerar a reabilitação pós-conlito,

Ponto de Reencontro levou milhares de angolanos a espalhar apelos

por notícias de familiares e amigos perdidos, sendo ilmado sema-

nalmente em um local na Praça da Independência, em Luanda, onde

o púbico podia também acessar registros, documentando o status e o

último paradeiro dos desalojados e desaparecidos.26 Com a permis-

são de seus produtores, Gamboa gravou cenas do programa em pro-

dução, incorporando-o em seu ilme como um pano de fundo para a

busca de Maria Bárbara por seu ilho. Na edição de som de uma sequ-

ência inicial retratando pessoas desalojadas na vida real, formandoilas para receber e para apelar por informação, Gamboa sobrepõe

as vozes dos participantes do programa gravando suas mensagens

e aplica um efeito de eco cumulativo que constrói um fantástico e

estranho som grave de rebuliço, denotando efetivamente a incom-

preensível escala da tragédia humana a qual Ponto de Reencontro se

refere. A sequência seguinte reside na inevitável falha do cinema de

representar verdadeiramente a realidade daquela tragédia, através

de uma sequência de tomadas aparentemente em tempo real dosparticipantes do programa (vida real) formando ila para apresen-

tarem seus apelos à câmera, que é concluído com um apelo (ictício,

atuado) feito por Maria Bárbara. Ao longo dessa sequência, Maria

Ceiça é visualmente anômala, sendo consideravelmente mais alta e

com a pele mais pálida que qualquer outra mulher angolana ao seu

lado. O que quebra completamente o efeito de realidade da cena, en-

tretanto, é seu sotaque brasileiro e sua hiperbólica entrega ísica e

emotiva, o que conclui em trejeitos de miséria e soluços de destrui-ção. A disjunção entre o que o espectador sabe ser uma performance

paga de um ator de telenovela, e a enunciação e conduta reserva-

das daqueles identiicados como os colaboradores da vida real de

Ponto de Reencontro, obrigam o espectador a reconhecer o abismo 

entre a experiência diária de um trauma real e do luto e a ocasional

26 Para uma reportagem sobre Ponto de Reencontro e seu impacto, ver TV Brasil (2010).

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 67

experiência da representação disso, em um drama histórico ou em

documentário, como melodrama ou tragédia, para um consumo es-

sencialmente voyerístico.

Paradoxalmente, talvez até inevitavelmente, o sucesso de O herói 

como uma contribuição para um cinema popular angolano politi-

camente engajado deriva da visibilidade de suas falhas e ambigui-

dades representacionais, e de seus compromissos com pautas po-

líticas e culturais mais poderosas. Depois que isso foi advertido nas

sequências previamente discutidas, ica mais fácil identiicar como,

na sequência inal do ilme, as estruturas alegóricas estabelecidas

antes desestabilizam a mensagem otimista aparentemente implícita

na conclusão da trama. Manu faz uma visita ao seu pai adotivo emseu novo emprego como motorista de um ministro, e Vitório o leva

para dar uma volta ao longo da orla de Luanda no carro do ministro.

Uma leitura alegórica da cena sugeriria que ambos estão inalmente

dentro da camada social que funciona e progride, apesar de ques-

tões permanecerem. As histórias de sucesso que os levaram até lá

permanecem exceções à regra, o carro não é deles, e de fato pegá-

-lo emprestado (e o combustível em seu tanque) é racionalmente

um ato de roubo contra a nação. Serão as relações quase familiaresdos protagonistas consolidadas? Será que Manu e Vitório realmente

aprenderam suas respectivas lições sobre “solidariedade angolana”,

ou eles foram enjaulados no hegemônico sistema de patronagem?

Para onde está indo o carro como projeto nacional e será que ele vai

buscar mais algum passageiro? E, inalmente, poderíamos adicionar,

que inluência pode ter a disseminação de produtos culturais com

intenção didática entre os cidadãos angolanos, em termos de curar

as doenças desta nação pós-conlito?Uma possível resposta para essa última questão emerge se se

admitir uma interpretação metafórica mais obscura do corpo re-

construído de Vitório, uma que redobra as problemáticas implica-

ções da leitura alegórica da sequência inal. Comparar a relação de

Vitório e sua perna artiicial àquela existente entre a nação angolana

e o cinema contemporâneo pode parecer menos rebuscado se acei-

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68 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

tarmos o conceito da “cultura nacional [popular] como uma próte-

se mediadora que enaltece um auto-retorno das pessoas através da

auto-encarnação e reconhecimento no mundo externo”, que Pheng

Cheah (2003, p. 358) identiica como “central para a maioria das te-

orias da literatura Africana”, mas que foi mais efetivamente elabora-

da pelo novelista e teórico cultural queniano Ngũgĩ wa Thiong’o.27 A

caracterização de Ngũgĩ de cultura como prótese é situada dentro

do que Cheah considera sua concepção organicista do desenvolvi-

mento da nação pós-colonial “de acordo com seus processos bioló-

gicos internos e suas interações com arredores externos”. (CHEAH,

2003, p. 354) Próteses – como corpos estrangeiros impingindo sobre

o corpo orgânico da nação – são instrumentais em tal interação, epodem“suplementar uma deiciência e promover um apoio essencial

se [...] encaixada e utilizada corretamente” (CHEAH, 2003),. A próte-

se ruim, no entanto, não passa a fazer parte do corpo orgânico, mas

“age como um conduíte [...] (que) abre o corpo para forças externas e

ainda faz com que sejam dependentes delas”. (CHEAH, 2003, p. 354)

A força dominante global do capital inanceiro, Cheah resume,

“reproduz relações neocoloniais em espaços pós-coloniais por meio

de um número de próteses ligados ao organismo popular-nacional”.(CHEAH, 2003, p. 354) Para Ngũgĩ, a mais mortal dessas próteses é o

estado clientelista, que no caso de Angola poderia ser caracterizado

como herdeiro da elite crioulo mercantil do primeiro colonialismo

um Estado que governa para manter a abjeção econômica e inércia

política da população, enquanto sifonando para fora a riqueza mine-

ral do país ou como aponta Cheah (2003, p 355), reduzindo a nação

para “economizar partes para a maquina capitalista global”. Nessa si-

tuação, Ngugi arguiu que o estado e outras próteses neocolonialistaspodem ser “dissolvidas” pela disseminação da cultura como o que

Cheah denomina “uma prótese mais salutar” (CHEAH, 2003, p. 352)

do corpo nacional vivo que “pressiona contra o estado a im de ins-

pirar e transigurar o presente degradado” (CHEAH, 2003, p. 12). De

27  Aqui Cheah se refere principalmente a argumentos apresentados em Ngũgĩ wa Thiong’o (1993)e (1998).

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fato, “a cultura nacional popular é o exemplo paradigmático de uma

boa prótese por duas mutuamente reforçadas razões: é originada na

população, mas ainda mais importante, através da incorporação í-

sica coletiva, ela tem um papel crucial na contínua autoformação da

nação”. (CHEAH, 2003, p. 356)

A revisão de Cheah sobre a teoria de cultura como prótese de

Ngugi conclui usando a exploração da espectralidade  de Derrida, e

o conceito de hauntology 28, ao interrogar se a “cultura possui a cau-

salidade orgânica auto-recorrente que a torna a sustentadora da li-

berdade”. (CHEAH, 2003, p. 352) Entretanto, a nossa proposta de ler

a relação de Vitório com sua prótese em O herói como uma alusão ao

conceito de cultura como uma prótese redentora aponta para um pro-blema mais simples, porém igualmente fundamental. Assim como a

potencialmente redentora perna protética de Vitório é fornecida por

doadores estrangeiros sob os auspícios do estado “neocolonial”, em

Angola hoje a projeção cinemática de uma visão originada “do povo”

depende da negociação com instituições patrocinadoras ou inteira-

mente alinhadas com um projeto de neocolonização. Naturalmente,

tal dependência pode acabar por alienar esta visão das suas origens

populares. No futuro, a proliferação de tecnologias de ilmagem e edi-ção digitais de baixo-orçamento podem fornecer oportunidades para

uma cultura de tela popular-nacional (as quais são improváveis de

surgirem no atual revival  de produções de ilme e TV de propriedade

do Estado em Angola). Enquanto, provavelmente, nenhuma futura re-

volução angolana será televisionada, é bem provável que as câmeras

de celular e o YouTube vão se tornar indispensáveis, senão coniáveis,

ferramentas de mobilização e educação em campanhas populares

por justiça (como mostrado em desenvolvimentos recentes em Mo-çambique, Quênia e onde mais for sugerido).29 Neste meio tempo, en-

28 Trata-se de uma ideia desenvolvida por Jacques Derrida em seu trabalho Espectros de Marx ,onde o termo é uma combinação da palavra “haunt ” e o suixo “ology ”. Lida com “o estado para-doxal do espectro, que não é nem ser nem não-ser”.

29  Eu me reiro aqui a relatórios do uso de telefones celulares e câmeras de telefones, ambos paraorganizarem os protestos contra altas planejadas nos preços de produtos alimentícios em Mo-çambique m 2010, e para reunir evidências de violência e outros crimes cometidos na agitaçãoem seguida da disputada revelação das eleições presidenciais do Quênia em 2008.

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quanto na alegoria política de O herói Vitório pode terminar usando

sua prótese para pressionar o pedal do acelerador da máquina pos-

suída pelo Estado, o espectador não consegue ter certeza se a perna

veio para representar uma parte integral do corpo orgânico da nação,

ou se, contrariamente, ela é o agente simbólico da incorporação de

Vitório no corpo clientelista e cleptocrático do Estado, o que propõe a

hegemonia do capitalismo global.30 Fica ainda por saber se um ethos 

nacional recuperado – representado por um “homem novo”, lagelado

de guerra, pela valorização da indústria sobre o capital, e pelo concei-

to da “solidariedade angolana” – que vai inspirar o Estado, ou se, por

outro lado, o Estado vai se iniltrar no corpo nacional e corromper

sua agência. Assim como a população angolana, com estoicismo e in-genuidade, remodelou o ambiente pesado e devastado legado por dé-

cadas de guerra em utilidades viáveis,commodities e habitat ; também

a retórica e simbólica artilharia de um projeto de libertação popular

de uma era de independência, estragada pelas hostilidades da Guerra

Fria e por uma reestruturação econômica excludente, pode ser reci-

clada na produção de artefatos culturais que falam para as realidades

pós-conlito. Entretanto, enquanto as ferramentas de tal produção

cultural forem restritas àquelas inanciadas por, ou compartilhadascom, forças não solidárias ou neocolonialistas, tais artefatos não po-

derão ter garantia de transmitir uma visão de liberação, ou qualquer

ethos de uma pressuposta redenção popular-nacional.

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RETRATOS DE MOÇAMBIQUE PÓSGUERRA CIVIL a ilmograia de Licínio Azevedo1

Fernando Arenas

Moçambique desempenhou um papel pioneiro na história do ci-

nema africano pós-colonial através da criação, à época da indepen-

dência, de uma infraestrutura de cinema nacional desvinculada do

circuito cinematográico comercial global e ao serviço da nação mar-xista que emergiu após o colonialismo português. Em 1975 o primei-

ro ato cultural por parte do partido governante Frente de Libertação

de Moçambique (FRELIMO) foi a criação do Instituto de Cinema de

Moçambique. O governo convidou Rui Guerra, um dos mestres do

Cinema Novo brasileiro (nascido em Moçambique), para ser seu di-

retor. De acordo com Camilo de Sousa (2003 apud CARDOSO, 2003),

o cinema foi utilizado como instrumento vital para os propósitos de

educação e propaganda ideológica no processo de construção simbó-lica da nova nação independente. O Instituto tornou-se um laborató-

rio que aproximou os talentos e visões de inúmeros cineastas, rotei-

ristas, editores, produtores e técnicos moçambicanos e estrangeiros.

Tornou-se a arena de treinamento para cineastas emergentes como

1 Este artigo é em parte baseado num capítulo do meu livro, Lusophone Africa: Beyond Indepen-dence (2011) e foi traduzido por Cristiano Mazzei (a quem muito agradeço), em colaboraçãocomigo.

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Licínio Azevedo, João Ribeiro e Sol de Carvalho, entre outros. Simulta-

neamente, atraiu uma onda de solidariedade internacional, inclusive

os diretores vanguardistas franceses Jean Rouch e Jean-Luc Godard.

Os projetos encabeçados por Rouch e Godard, respectivamente,

ilustram as limitações tecnológicas da produção cinemática dentro

do contexto de extrema pobreza e tensões resultantes de um relacio-

namento que era percebido pelos moçambicanos como neocolonial,

apesar das melhores intenções ideológicas por parte dos cineastas

franceses. Além disso, Godard entrou em conlito com o dogmatis-

mo ideológico da FRELIMO, pois estava mais interessado em propor-

cionar aos camponeses moçambicanos meios técnicos e a liberdade

criativa para produzirem imagens para um novo tipo de televisão dopovo para o povo, sem seguir a linha do partido. Rouch e Godard fo-

ram ambos convidados pelo governo moçambicano, sob orientação

de Rui Guerra e do Instituto. Rouch encabeçou o acordo de coope-

ração patrocinado pelo governo francês envolvendo um importante

projeto, Super 8, o qual incluiu a construção de um laboratório to-

talmente equipado com a tecnologia necessária para produzir ilmes

juntamente com instrutores franceses, e cujo objetivo era treinar os

moçambicanos no uso de tal tecnologia. Desentendimentos funda-mentais surgiram entre Guerra e o Instituto sobre concepções e abor-

dagens divergentes no que dizia respeito à produção, em especial, a

praticabilidade e viabilidade em termos de custo a longo prazo de tal

laboratório no contexto moçambicano. Watkins (1995) destaca que

no início os moçambicanos estavam mais interessados no formato 35

mm do que o 8 mm proposto por Rouch. Sentiram que Rouch estava

de fato “tentando institucionalizar um nível de subdesenvolvimento

técnico”.2 (WATKINS, 1995, p. 10, tradução do autor) Entretanto, Rou-ch simplesmente não achava que o formato de 35 mm fosse prático

ou eiciente em termos de custo. Em última instância, nenhuma das

fórmulas se tornou viável em termos de custo no longo prazo para

Moçambique. No caso de Godard (juntamente com sua produtora So-

nimages), houve um desentendimento ideológico fundamental com a

2 “trying to institutionalize a level of technical underdevelopment”.

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FRELIMO, conforme documentado pelo ilme de Margarida Cardoso

(2003), Kuxa Kanema, e Manthia Diawara (1992).3

Além desses projetos de colaboração, o Instituto tornou-se o cen-

tro de produção de cinejornais, documentários e alguns longas-me-

tragens.4 Seu projeto mais conhecido, Kuxa Kanema (O nascimento

do cinema),5  é considerado por críticos e historiadores do cinema

africano a tentativa mais bem sucedida na criação de um cinema

africano que atendia aos interesses do povo africano; neste caso, o

propósito de construir uma nação sob os auspícios do partido gover-

nante e antigo exército de libertação FRELIMO e sua visão de uma

república socialista. De acordo com a cineasta portuguesa Margarida

Cardoso em seu extraordinário documentário, Kuxa Kanema: o nas-cimento do cinema, o projeto envolvia cinejornais semanais de dez

minutos que seriam exibidos em todo o país nos cinemas ou através

de vans doadas pela antiga União Soviética em áreas rurais remotas.

Entre 1981 e 1991 Kuxa Kanema produziu 359 edições semanais e

3 O desentendimento entre Guerra, Rouch e Godard em Moçambique foi amplamente documen-tado por Diawara (1992).

4 Rui Guerra dirigiu um dos primeiros longas-metragens em Moçambique, Mueda: memória emassacre (1979), documentando a representação anual do massacre de 1960 do povo makon-de pelas forças coloniais portuguesas no norte de Moçambique. Vide Ukadike (240–241) parauma análise deste ilme. Houve quatro longas importantes lançados ao inal da década de 1980,inclusive a coprodução polêmica com a Iugoslávia intitulada O tempo dos leopardos (1987), queenfoca os anos inais da guerra de libertação no norte de Moçambique. Conforme relatado porLicínio Azevedo e Luís Carlos Patraquim (corroteiristas) no documentário de Margarida Cardo-so, Kuxa Kanema, a polêmica teve a ver com a arrogância e eurocentrismo por parte dos iugos-lavos que entregaram a eles um roteiro que ignorava as especiicidades históricas e culturaisda guerra de libertação moçambicana e que estavam mais interessados em produzir um ilmede ação que se passava num lugar exótico, sob uma lógica maniqueísta lançando negros contrabrancos. O vento sopra do norte (1987) de José Cardoso também ressalta a guerra de libertação

no norte de Moçambique e foi a primeira produção exclusivamente moçambicana. O documen-tário moçambicano-brasileiro Fronteiras de sangue (1987), de Mário Borgneth, adverte sobrea campanha de desestabilização realizada pela África do Sul da era do Apartheid contra seusvizinhos (inclusive Moçambique). A colheita do diabo (1991), codirigida por Licínio Azevedo eBrigitte Bagnol mistura fato e icção para retratar um vilarejo assolado pela seca no meio daguerra civil. Para mais detalhes sobre estes e outros ilmes desse período ver Watkins (1995)e Marcus Power (2004).

5 De acordo com Lopes, Sitoe e Nhamuende (2000), Kuxa Kanema é um neologismo criado pelopoeta, roteirista e produtor Luís Carlos Patraquim, que signiica “o nascimento ou a aurora docinema”, cunhado a partir das línguas nacionais changana e makua faladas no sul e norte deMoçambique, respectivamente, num gesto que evidencia o princípio abrangente de unidadenacional após independência.

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119 documentários de curta duração Watkins (1995), além de vários

longas. Em 1991, infelizmente, os equipamentos de cinema, a sala

de edição, de som e os laboratórios de processamento pertencentes

ao Instituto de Cinema de Moçambique foram praticamente destru-

ídos por um incêndio, o que levou ao seu colapso. Mesmo antes do

incêndio, o Instituto já vinha sofrendo consideravelmente com pro-

blemas inanceiros, de logística, infraestrutura e criatividade devido

à devastadora guerra civil. A ruína do Instituto de Cinema Moçambi-

cano ocorreu sob o pano de fundo da guerra, assim como da morte

prematura de seu fundador e carismático líder, Samora Machel, num

suspeito acidente de avião sobre a África do Sul em 1986, selando

deinitivamente o im do sonho utópico de uma sociedade igualitáriaonde o cinema desempenharia um papel importante.

O conlito armado em Moçambique durou até 1992 com a assi-

natura do Acordo de Paz de Roma entre a FRELIMO e a Resistên-

cia Nacional Moçambicana (RENAMO). Houve aproximadamente

um milhão de pessoas e cerca de um milhão e meio de refugiados

espalhados pelo Zimbábue, Zâmbia e Malaui. Esta guerra foi impul-

sionada pela geopolítica neo/pós-colonial do Apartheid e da Guerra

Fria na África austral, envolvendo o serviço de inteligência rodesia-no, ex-agentes da Política Internacional de Defesa do Estado (PIDE)

portuguesa e expatriados portugueses que fugiram de Moçambique,

ex-guerrilheiros da FRELIMO e a África do Sul. A RENAMO surgiu

no início como movimento anticomunista apoiado por ditas forças.

O principal objetivo era desestabilizar o governo da FRELIMO, sa-

botar a infraestrutura nacional (sobretudo os corredores estratégi-

cos de transporte ferroviário e rodoviário) e enfraquecer o apoio da

FRELIMO ao ANC (sigla em inglês do Congresso Nacional Africanoque lutava contra o regime do Apartheid). Após o im da guerra civil

a RENAMO tem-se consolidado como partido legítimo de oposição a

nível nacional.

Desde o inal de sua guerra civil em 1992, Moçambique tem tido

um luxo limitado, embora contínuo, de documentários socialmente

engajados, além de curtas de icção feitos principalmente para televi-

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são. Tais produções foram dirigidas principalmente por Licínio Aze-

vedo, Orlando Mesquita, João Ribeiro e Sol de Carvalho; todos con-

tribuíram ativamente de múltiplas formas aos “anos dourados” dos

primórdios do cinema moçambicano, com destaque para o projeto

Kuxa Kanema. O cineasta mais prolíico desde o início da década de

1990 tem sido o brasileiro Licínio Azevedo, que vive em Moçambi-

que há mais de 30 anos. Azevedo dirigiu, entre outros títulos, A árvo-

re dos antepassados (1995); A guerra da água (1995); Rosa Castigo

(2002); Desobediência, (2002); Night Stop (Parada noturna, 2002);

O acampamento de desminagem (2004 ); O grande bazar (2006), o

primeiro curta-metragem moçambicano a ser lançado em DVD; Hós-

 pedes da noite (2007) ;

 

além de uma série de curtas feitos para te-levisão sob o título de Histórias comunitárias (2000), que Azevedo

dirigiu e escreveu juntamente com Orlando Mesquita. Tal série inclui

seis documentários de curta-metragem ou ilmes do tipo docudrama

que se passam principalmente em áreas rurais de Moçambique (em

sua maioria, nas províncias de Nampula e Cabo Delgado), enfocan-

do dimensões humanas concretas no que diz respeito a questões de

desenvolvimento confrontadas pela população local. Histórias comu-

nitárias destaca os esforços por parte das comunidades rurais embusca de autonomia econômica e sustentabilidade a longo prazo, em

harmonia com suas próprias culturas e meio ambiente, inclusive a

autogestão coletiva de suas terras e recursos naturais, fornecimen-

to de água e eletricidade, além de melhores condições de moradia e

acesso à saúde e educação.

Licínio Azevedo dirigiu a maioria dos curtas-metragens de ic-

ção e documentários com um alto nível de produtividade desde a

década de 1990 até hoje. Outros diretores moçambicanos de desta-que incluem o supracitado Orlando Mesquita, que é sócio de Licínio

Azevedo na empresa Ébano Multimedia, e que esteve envolvido em

mais de 30 ilmes como editor, diretor e produtor, documentando a

evolução da sociedade moçambicana desde 1984. Em 1999, ganhou

o prêmio Kuxa Kanema de melhor vídeo como codiretor e editor, jun-

tamente com Azevedo, de Histórias comunitárias. João Ribeiro esteve

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80 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

envolvido no projeto Kuxa Kanema como supervisor de produção.

O seu projeto tem sido adaptar obras literárias do escritor moçambi-

cano Mia Couto. Seus curtas e longas incluem, respectivamente, Fo-

 gata (1992), O olhar das estrelas (1997), Tatana (2005), e O último

voo do lamingo (2009). O olhar das estrelas é baseado numa ideia de

Mia Couto, que também colaborou no roteiro com o diretor Ribeiro.

O ilme é uma delicada e divertida farsa que aborda políticas de gê-

nero na sociedade contemporânea moçambicana através do retrato

do machismo patriarcal como uma máscara para a ansiedade mascu-

lina em relação às mulheres.

Sol de Carvalho, antigo editor do cinejornal Kuxa Kanema, dirigiu

O jardim do outro homem (2006) ,6 

o qual fez parte do Global LensFilm Series de 2007.7 Esse é o primeiro longa-metragem moçambi-

cano a surgir desde os “anos dourados do cinema” e o mais caro até

hoje (aproximadamente um milhão de dólares americanos). O ilme

apresenta um engajamento social com dimensões educacionais que

explora, através da vida de Soia, personagem principal representa-

da admiravelmente por Gigliola Zacara, os desaios devastadores vi-

vidos por mulheres pobres em sua luta para realizarem seus sonhos

proissionais, airmando-se enquanto indivíduos, ao mesmo tempoem que contribuem para a melhoria das vidas de suas famílias e Mo-

çambique como um todo. Na verdade, todos os cineastas moçambi-

canos mencionados até agora, apesar das mudanças ideológicas e

políticas desde o inal da década de 1980, continuaram a desenvol-

ver um legado do compromisso social que tem sido a quintessência

do cinema desde os primórdios da independência de Moçambique.8 

6 Em 2007, o ilme O jardim do outro homem foi vencedor de vários prêmios, inclusive o me-lhor longa africano no Festival de Cinema Panafricano de Cannes, melhor longa digital no Vuesd’Afrique (Montreal) e melhor produção e melhor ator no CINEPORT Brasil.

7 A série 2009 Global Lens exibiu com destaque a adaptação para o cinema da obra-prima literá-ria de Mia Couto Terra sonâmbula, dirigida pela portuguesa Teresa Prata.

8 Desde 2006, a distribuidora de cinema Ébano Multimedia e a Associação Moçambicana de Cine-astas (AMOCINE) têm organizado um ambicioso festival de documentários internacionais emMaputo (Dockanema) com ilmes de Moçambique, a África em geral e outros países do mundo.Esse festival desempenha um papel fundamental na exibição de ilmes moçambicanos para omundo e ilmes internacionais para o público moçambicano.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 81

Licínio Azevedo nasceu no Rio Grande do Sul, mas vive em Mo-

çambique desde sua independência. Trabalhou no Instituto Nacio-

nal de Cinema durante os primeiros anos dos ilmes moçambicanos,

colaborando com Jean Rouch e Jean-Luc Godard. Azevedo também

trabalhou para a televisão de Moçambique e hoje é um cineasta in-

dependente e presidente da produtora de ilmes e multimídia Ébano

Multimedia, com sede em Maputo. Azevedo tem realizado um núme-

ro considerável de documentários e longas-metragens abordando

uma grande variedade de questões importantes para o entendimen-

to da experiência pós-colonial e pós-guerra de Moçambique, do re-

torno emocional dos refugiados de guerra à sua terra natal ( A árvore

dos antepassados); à ameaça mortal das minas terrestres espalhadaspelo interior de Moçambique (O acam pamento da desminagem); às

perdas humanas e ambientais causadas por 15 anos de guerra civil

( A guerra da água); às trágicas consequências da epidemia da AIDS

(Night Stop). Vários de seus ilmes foram exibidos em festivais in-

ternacionais e ganharam prêmios. Porém, a obra de Licínio Azevedo

ainda não recebeu a atenção crítica que merece, apesar de ser o cine-

asta mais importante de Moçambique.

O conjunto da obra de Azevedo oferece um mosaico da vida con-temporânea em Moçambique através das experiências de pessoas

comuns vivendo, até certo ponto, sob circunstâncias extraordiná-

rias. O ethos humanístico de Azevedo é a força motora por trás de

sua prática cinematográica onde retrata a sociedade moçambicana

através de uma multiplicidade de vozes. Seus documentários, que

constituem a maior parte de sua produção cinematográica, repre-

sentam a realidade social moçambicana e seguem uma abordagem

ética que permite ao “outro” (neste caso, pobres moçambicanos daszonas rurais em sua maioria) falar com um mínimo de interferência

do diretor, onde os diálogos parecem não terem sido ensaiados e as

cenas não terem sido redigidas. A práxis cinematográica de Azeve-

do revela uma grande ainidade com o “modo observacional” (obser-

vational mode) dos documentários descrito por Bill Nichols em seu

clássico Representing Reality (1991), que enfatiza a não intervenção

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82 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

do cineasta. Fiel à sua experiência colaborativa com Jean Rouch, os

documentários de Azevedo seguem algumas das convenções do ci-

nema vérité  (que constitui uma excelente ilustração do modo obser-

vacional), assim como a distância não intrusiva entre a câmera e os

sujeitos; a natureza da performance aparentemente pouco ensaiada

ou dramatizada por parte dos atores; o foco em pessoas comuns; o

uso de câmera portátil; locais autênticos; sons naturais e pouca pós-

-produção. A edição envolve cenas curtas ocasionais que são interca-

ladas pelo io narrativo que retrata o cotidiano, a paisagem, animais,

instrumentos musicais tocados por pessoas locais, ou rituais de dan-

ça, que acrescentam textura ao mesmo tempo em que enriquecem

e complementam a estória através da inclusão de elementos rela-cionados a práticas culturais e habitat , constitutivos das vidas dos

sujeitos retratados. O estilo de direção de Licínio Azevedo conta, em

grande parte, com uma “presença ausente” conforme teorizado por

Nichols (1991), proporcionando sons e imagens, mas com uma pre-

sença de direção que permanece despercebida e não reconhecida.

Os documentários de Azevedo são, em grande parte, estruturados

ao redor de um “princípio axiográico” (NICHOLS, 1991, p. 77-95)

onde uma ética de representação é conhecida e vivenciada atravésda relação espacial entre a câmera e os sujeitos, reletida na proximi-

dade ísica conforme deduzida pelo uso de closes de grande ângulo,

assim como uma aceitação tácita, mútua, entre o cineasta e os sujei-

tos, a qual prevalece em todos os seus ilmes. Pode-se argumentar

que o papel de Azevedo em seus documentários é simultaneamente

o de outsider/insider , portanto descentralizando, até certo grau, sua

perspectiva de um brasileiro branco de classe média em relação aos

sujeitos retratados – moçambicanos negros e pobres, na sua maioriacamponeses.

 A árvore dos antepassados (1994) foi produzido à medida que a

guerra civil chegava ao im. Documenta o retorno de Alexandre Fer-

rão e aproximadamente 15 integrantes de sua família do Malaui à

província fronteiriça de Tete, ao noroeste de Moçambique. É a his-

tória de seu retorno à terra ancestral e sua reconciliação com o pas-

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 83

sado doloroso. A família Ferrão precisa viajar com seus pertences

(inclusive animais de estimação) por muitos quilômetros a pé e às

vezes pegando carona entre ruínas, sujeira, fezes, veículos queima-

dos, tanques abandonados, e a ameaça de minas terrestres e cobras.

Alexandre Ferrão narra em off  à medida que decorre a ação do ilme.

Ele é o líder designado do grupo que escreve um diário, no qual in-

clui um registro dos nascimentos e mortes em sua família. Ele parece

ser o único integrante da família alfabetizado, portanto ica encar-

regado de ler as cartas que trazem as notícias sobre as mortes dos

familiares distantes. Em seu diário, Ferrão também inclui passagens

bíblicas pertinentes e meditações sobre o seu destino existencial, os

quais são lidos em voz alta. O ilme documenta o cotidiano da famí-lia através da árdua viagem, inclusive refeições, crianças brincando,

banhos de rio, acordar de manhã, assim como momentos de tédio,

fadiga e acessos de fome. A família compartilha histórias de guerra e

expressa suas esperanças e medos a respeito dos entes queridos que

desejam ver, além do futuro de sua própria subsistência. A odisseia

da família Ferrão é acompanhada pela doce e delicada, e às vezes ani-

mada, trilha sonora com músicas moçambicanas, com destaque para

violões, baixo e instrumentos de percussão. A trilha desempenha umpapel diegético no ilme, transmitindo uma sensação de movimen-

to para a frente, na medida em que a família embarca na viagem de

volta para a casa, além de um sentimento de esperança com relação

ao futuro para a família Ferrão, assim como para Moçambique. Há

também uma cena com música ao vivo na metade do ilme com um

pequeno conjunto de músicos tocando instrumentos artesanais de

corda e percussão. As letras expressam a gratidão para com Joaquim

Chissano e Afonso Dhlakama (líderes dos antigos partidos beligeran-tes FRELIMO e RENAMO, respectivamente) por terem “libertado” o

povo de Moçambique, nesse caso, dos horrores da guerra. O fato de

que essa canção agradece ambos os líderes é sem dúvida um sinal

otimista de reconciliação entre o povo moçambicano.

A família Ferrão inalmente chega ao seu destino com esperan-

ça e alegria. Todos os sobreviventes jovens da família os recebem

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84 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

com festa. A comemoração altamente emocional traz sorrisos e lá-

grimas aos seus rostos à medida que os parentes redescobrem uns

aos outros após dez anos de separação. Em seguida, os refugiados

que retornaram visitam os anciãos que estão de luto pela perda de

um integrante da família. Lá, no momento mais doloroso do retorno

da família Ferrão, a tia Maria (uma das que retornaram) é informa-

da sobre seus parentes falecidos, inclusive sua mãe e avó. Todavia, a

vida deve continuar e, portanto, seguem em frente para construírem

novas casas e começarem a preparar a terra (machambas no portu-

guês de Moçambique) a im de plantarem sementes em tempo para

a estação das chuvas que está por vir. A cena inal introduz o ritual

simbólico da bênção da árvore com uma mistura de água e farinhapara honrar o espírito dos ancestrais. A tia Maria é encarregada do

ritual criado para preservar espiritualmente o elo entre os vivos e os

mortos. A árvore em muitas sociedades africanas tradicionais (assim

como ameríndias) representa de forma metonímica o espírito dos

mortos, evidenciando uma relação simbiótica entre seres humanos

e a natureza, o material e o espiritual. De forma semelhante, no il-

me de Azevedo existe um motivo recorrente da “porta”, que ilustra

a importância simbólica dos elos materiais no contexto das vidasvastamente interrompidas dos refugiados de guerra. Entre seus ob-

jetos mais preciosos, a família Ferrão carrega uma porta de madeira

vermelha que pertenceu à sua casa temporária no Malaui de volta a

sua terra ancestral em Moçambique. A porta é perdida ao longo do

caminho causando consternação aos integrantes da família, sobretu-

do junto da jovem igura patriarcal, Alexandre. A porta é o fragmento

remanescente mais importante de suas vidas como refugiados, pois

não apenas proporciona um sentido de continuidade em suas vidasinterrompidas, mas também sugere um anseio por uma vida nova

num lar estável, sem completamente apagar os dez anos que pas-

saram como refugiados. Enquanto a árvore proporciona o elo espi-

ritual entre vida e pós-vida, a porta oferece o elo material entre a

vida como refugiados e uma vida no pós-guerra como camponeses

sedentários que ensaiam os primeiros passos. Felizmente, os Ferrão

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 85

conseguem recuperar a porta no mercado local da cidade onde tinha

desaparecido repentinamente por engano. Através d’ A  Árvore dos

antepassados, Licínio Azevedo faz uma notável contribuição durante

um período de transição crítico para a nação moçambicana à medida

que dava seus primeiros passos em direção à paz, política multipar-

tidária e reconstrução.

 A guerra da água (1996), lançado quatro anos depois do acordo

de paz de Roma entre os partidos beligerantes de Moçambique, des-

taca o pós-guerra civil de um ângulo diferente, enfocando uma grave

crise de água no interior rural da província de Inhambane (na região

central de Moçambique) causada por uma combinação infeliz entre

o colapso da infraestrutura, resultante da guerra, e uma prolonga-da seca. Durante o conlito armado de Moçambique, muitas batalhas

ocorreram em torno do controle de poços de água, daniicados ou

destruídos pela contenda. Por vezes, uma das facções em guerra até

mesmo destruía seus próprios poços para que o inimigo não puses-

se suas mãos neles. Portanto, o equilíbrio simbiótico frágil entre na-

tureza, vidas humanas e tecnologia é alterado, desencadeando um

ciclo de sofrimento. Como resultado desse cenário especíico, as mu-

lheres, as principais provedoras dos lares africanos rurais, devemviajar longas distâncias em busca de água (com frequência levando

seus ilhos) e enfrentarem longas ilas sem garantia de conseguir a

preciosa mercadoria. Surgem tensões com atos de egoísmo e cruel-

dade de uns contra os outros, embora temperados, às vezes, por atos

de generosidade e altruísmo. A guerra da água (1996) evidencia de

forma viva a divisão de gênero dentro desse contexto cultural onde

as mulheres carregam um fardo muito mais pesado para garantirem

a sobrevivência de toda a família (criar os ilhos, buscar água, traba-lhar no campo, comprar comida – se a opção existir – e cozinhar),

enquanto os homens caçam (embora os animais estejam morrendo

como resultado da seca), icam ociosos ou embebedam-se. Uma das

histórias mais tocantes em Guerra da água envolve uma viúva idosa

que perdeu toda a família na guerra, além de sua casa e poço d’água.

Ela não tem ninguém para tomar conta dela (nem mesmo vizinhos);

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86 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

é fraca demais para caminhar quilômetros, icar em ila e carregar

um balde de água na cabeça. A viúva torna-se uma igura emblemá-

tica das terríveis consequências da guerra, que afetam o povo rural

de Moçambique no período que se segue. Portanto, Azevedo permite

que ela conte sua própria estória em off  para de tal forma chamar a

atenção para o drama coletivo retratado por esse ilme, enfatizando

o próprio sofrimento pessoal da viúva.

Night Stop (2002) é uma espécie de docudrama que faz parte de

uma série de vídeos africanos intitulada Steps for the Future (Passos

para o futuro), com enfoque na AIDS na África austral. Falado em

ndebele, shona, nhungwe, português e inglês, esse ilme oferece um

olhar etnográico sobre as vidas das trabalhadoras de sexo ao longodo Corredor da Beira no centro de Moçambique, que existem dentro

de uma subcultura de dependência sexual-econômica onde a AIDS

alastra-se de forma implacável (em 2002, 30% da população desse

chamado “corredor da morte” tinha AIDS, de acordo com a descrição

do ilme).9 As imagens na sequência de abertura em preto e branco

evidenciam os restos materiais da devastação da guerra civil ao lon-

go da estrada. Em seguida, vemos cores emergirem numa tomada da

cidade na província de Manica aos sons do muezim convidando os i-éis a orarem. As cenas que se seguem envolvem imagens de mulheres

acordando de manhã enquanto preparam-se para o dia, intercaladas

por imagens de motoristas de caminhão chegando à parada notur-

na quase ao pôr do sol. A próxima cena apresenta uma prostituta e

seu cliente discutindo, e a mulher sendo esbofeteada. Essas cenas de

abertura contrastantes não apenas situam a história de Night Stop

em proximidade histórica à própria guerra civil, mas também suge-

rem uma certa continuidade de um estado de crise entre a guerra e asubsequente “guerra” contra a pandemia da AIDS, além da dinâmica

desigual e tensa entre os gêneros.

9 De acordo com o website do Centers for Disease Control and Prevention (Centro de Controle ePrevenção de Doenças), 12,5% da população adulta de Moçambique, entre 15 e 49 anos de ida-de, encontrava-se infectada com o vírus do HIV em 2010 (com base no UNAIDS EpidemiologicFact Sheet [Dados Epidemiológicos do Programa das Nações Unidas sobre a AIDS]). A Organiza-ção da Nações Unidas estima que Moçambique tinha uma população de 23.391.000 habitantesem 2010.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 87

O ilme passa-se à noite em volta do motel Montes Namuli, locali-

zado não muito longe da intersecção das estradas entre o Malaui e o

Zimbábue (um elo de transporte importante dentro dessa sub-região

da África austral). A ação em Night Stop é permeada por uma trilha

sonora sensual de jazz  e envolve principalmente cenas de interação

alegre entre as prostitutas de nome Suja, Rosa, Claudina, Lili, Olinda,

a viajante etc.; entre as prostitutas e seus clientes (principalmente em

volta e dentro de seus caminhões); e entre os próprios clientes (nunca

sabemos seus nomes, embora haja um conhecido como o malauiano

possuidor de um enorme pênis que pode machucar). As trabalhado-

ras do sexo mais velhas são sobreviventes da “guerra da AIDS” e com-

partilham conselhos com as mais jovens sobre a importância de usarpreservativos enquanto distribuem alguns a elas. Há uma mulher que

cede a um cliente que lhe oferece mais dinheiro se ele não usar ca-

misinha; há outra que não recebe o pagamento de seu cliente; e ou-

tra que é enganada por promessas de que viajará pela África austral

com seu cliente. De longe, as trabalhadoras do sexo mais jovens são

as menos espertas e as mais vulneráveis às exigências dos caminho-

neiros. Durante todo o ilme as prostitutas são retratadas como seres

tridimensionais, enquanto que os clientes são muito menos desen-volvidos enquanto personagens e pouco se sabe sobre suas vidas. Os

caminhoneiros (muitos deles presumidamente casados com ilhos)

são retratados como tipos sociais ganhando a vida viajando longas

distâncias por muitos dias, cujo trabalho é crucial para a sobrevivên-

cia econômica de seus respectivos países. A natureza de seu traba-

lho envolve uma solidão constante, portanto, compreensivelmente,

emerge uma relação simbiótica entre eles e as prostitutas (acredita-

-se amplamente que o ecossistema social entre os caminhoneiros etrabalhadoras de sexo africanas constitui um dos epicentros para a

disseminação inicial da AIDS na África subsaariana).

Em Night Stop não há narração em off ou explicações textuais,

e os personagens nunca falam para a câmera. Todas as informa-

ções sobre suas vidas são transmitidas através de suas conversas

e gracejos. A câmera parece não ser intrusiva enquanto os sujeitos

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mostram-se de uma forma natural. Os espectadores sensibilizam-se

com a precariedade das vidas das mulheres graças ao uso de closes e

closes de plano médio de Azevedo, que conseguem trazer à tona a be-

leza e humanidade das jovens à medida que sorriem e riem, trocam

conidências, abraçam-se, e, por vezes, choram. Contudo, brigas tam-

bém acontecem entre as prostitutas, assim como entre os clientes e

as prostitutas, mas estas são intercaladas por momentos de ternura

entre eles, assim como momentos de orientação envolvendo lições

de vida transmitidas pelas trabalhadoras mais velhas às mais jovens.

Algumas das mulheres confessam terem sido forçadas ao mundo da

prostituição; e todas são as principais provedoras de suas famílias.

Algumas têm ou tiveram ilhos; algumas icam grávidas na prois-são e algumas estão buscando o amor. No entanto, todas devem lidar

com a constante ameaça da AIDS, e, na verdade, muitas prostitutas e

clientes morreram da doença. Enquanto a cena inal evidencia a na-

tureza exuberante das jovens mulheres vivendo no limite, cabe aos

espectadores ponderarem sobre o caráter tênue de suas existências

e da nova tragédia que assalta Moçambique não muito depois da ca-

tastróica guerra civil, cujas consequências ainda são sentidas nas

décadas de 2000 e 2010.De fato, o documentário de 2004, O acampamento de desminagem,

conforme seu título indica, acompanha uma equipe de trabalhadores

cuja tarefa é detectar e eliminar minas terrestres espalhadas pelo in-

terior rural de Moçambique como resultado da guerra civil. As minas

terrestres constituem um dos efeitos secundários mais duradouros

de guerras, com terríveis consequências para as populações rurais

em países que passaram por grandes conlitos nos últimos anos do

século XX, inclusive Angola, Moçambique, Camboja e Colômbia. O il-me mostra as complexidades do procedimento de desminagem: uma

vez que uma mina terrestre (ou um conjunto delas) é detectada por

cães farejadores, os trabalhadores limpam a área e preparam-se para

fazê-la explodir. Por vezes, os trabalhadores utilizam equipamentos

controlados remotamente a im de realizar as operações mais dií-

ceis do processo. Ao mesmo tempo, O acampamento de desminagem

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 89

ressalta a dinâmica humana no campo entre os trabalhadores e a

população local, assim como entre os próprios trabalhadores. Como

em Night Stop, não há narração em off ; a câmera simplesmente mos-

tra e portanto permite que as imagens e diálogos entre os sujeitos

falem por si mesmos (quase todo o ilme é falado em português). O

ilme retrata o cotidiano dos trabalhadores, tomando banho, urinan-

do, ligando para entes queridos, criando laços emocionais, brigando,

compartilhando refeições, assim como histórias trágicas de compa-

nheiros de trabalho e integrantes familiares morrendo por causa das

minas terrestres que explodiram. Além disso, Azevedo demonstra

sensibilidade enquanto revela a complexidade social do trabalho dos

“desminadores” e suas vidas pessoais, ao mesmo tempo em que con-vivem temporariamente com as comunidades de camponeses onde

foram enviados. Apesar das interações sociais parecerem harmonio-

sas, estas não acontecem de forma automática ou luídas.

O argumento em O acampamento de desminagem  é que embo-

ra a guerra civil moçambicana tenha terminado graças ao acordo de

paz assinado entre a FRELIMO e RENAMO em 1992 (que no ilme

são caracterizados como “irmãos em guerra”), a guerra, de muitas

maneiras, continua na forma de milhares de minas terrestres espa-lhadas pelo território nacional, matando e mutilando civis inocentes.

Consequentemente, o processo de desminagem envolve batalhas di-

árias que, às vezes, podem terminar tragicamente para os trabalha-

dores. A desminagem em si é uma tarefa descomunal e às vezes qua-

se impossível; mesmo assim, é uma das medidas do pós-guerra mais

cruciais na retomada da terra e para proporcionar aos camponeses

a vida digna e segura que necessitam e merecem. Minas terrestres

constituem uma das ameaças mais duradouras e evasivas às popula-ções civis, que persiste décadas após o im de uma guerra.

Apesar da memória da guerra ainda estar presente em Moçam-

bique ao inal da década de 2000, ela não mais suscita a sensação

de urgência do período anterior. O país continua focado na recons-

trução e expansão da sua infraestrutura de base, mas a ênfase está

centrada hoje na redução da pobreza e no aumento da produtividade

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90 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

econômica. Moçambique possui uma das economias de mais rápido

crescimento na África e tornou-se atraente a investimentos estran-

geiros, especialmente nos setores mineral, industrial e turístico. O

curta-metragem de icção de Azevedo, O grande bazar ( 2006) surge

a partir desse cenário novo e aparentemente otimista. O primeiro il-

me a ser lançado em DVD em Moçambique, O grande bazar combina

técnicas cinemáticas e convenções narrativas que seguem protocolos

e a práxis tanto de ilmes de icção, assim como de documentários,

ao mesmo tempo em que muda seu foco para o espaço urbano, mais

especiicamente, a cidade de Maputo. O ilme privilegia a experiência

dos pobres como objeto de representação e oferece uma profusão de

detalhes sobre a vida cotidiana no mercado africano. A prática ílmi-ca de Azevedo ressalta questões sociais ao mesmo tempo em que é

inluenciada por uma “sensibilidade etnográica”, através da qual o

diretor reforça as perspectivas oferecidas pelos sujeitos represen-

tados com atenção ao habitat  social dos mesmos sujeitos. Portanto,

as narrativas são recheadas com cenas e tomadas da vida cotidiana

que retratam as práticas culturais, ou que transmitem conhecimento

local, portanto, proporcionando um rico panorama cultural para me-

lhor entendermos as questões sociais discutidas. Em O grande bazar,Azevedo continua a favorecer as vidas daqueles mal tocados pelo

propalado crescimento econômico de Moçambique, retratando as

populações pobres urbanas, que, de modo semelhante à maioria dos

africanos, enfrentam diiculdades, mas que também exibem uma in-

ventividade, versatilidade e dignidade necessárias para subsistirem.

Aqui o mercado africano é o palco central para uma história de ami-

zade entre Paíto e Xano. O mercado, principal local de um enorme

setor informal dentro da maioria das economias africanas, é um mo-saico vasto e colorido de pessoas pobres que representam a maioria

da população. Os mercados ao ar livre típicos da África são locais de

“bricolagem e invenção criativa”  (bricolage and creative invention)

(FERGUSON, 2006), onde cada objeto que se possa imaginar é re-

vendido, reciclado ou reutilizado. Todos os tipos de transformações

estão à venda, conforme exibidos nesse ilme, por exemplo: pares de

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 91

sapatos desiguais, guarda-chuvas “com poucos furos”, dentes de alho

avulsos, ou conteúdos de uma garrafa de óleo de cozinha distribuído

em inúmeros saquinhos de plástico.

Os dois amigos adolescentes, Paíto e Xano, vêm de diferentes ca-

madas sociais. Paíto é pobre e vende salgadinhos fritos para sua mãe.

Um dia, acaba a farinha e Paíto sai para comprar mais, mas a loja

também não tem mais farinha. Como resultado, decide comprar um

maço de cigarros no mercado negro a im de vender os cigarros avul-

sos, mas assim que começa a gritar para atrair clientes, seu precioso

maço é roubado por trapaceiros de pequenos golpes. Essa sequên-

cia de acontecimentos faz com que Paíto vá ao mercado em busca

de ideias para recuperar o escasso dinheiro de sua mãe, o qual eradestinado à farinha. Xano é um mulato de pele clara que vem de uma

família de classe média. Sua mãe é dona de um salão de beleza e está

tendo um caso com um homem que bate em Xano. Como resultado,

Xano rouba dinheiro de sua mãe e seu namorado, preferindo viver

longe de casa no mercado. Xano representa o papel do garoto de rua

durão, enquanto que Paíto possui uma inocência meiga, porém com

uma esperteza comercial. Juntos, planejam esquemas para ganhar

dinheiro, até mesmo roubando, ao mesmo tempo em que devem lu-tar contra uma gangue de jovens bandidos que reivindicam o merca-

do como seu território.

Figura 1 - Paíto (Edmundo Mondlane) e Xano (Chano Orlando) brincam à medida que setornam amigos em um dos agitados mercados ao ar livre de Maputo.

Fonte: O grande bazar, 2006. (©Ébano Multimedia)

Ao longo do caminho, nessa fábula infantil picaresca Paíto e Xano

encontram iguras excêntricas, que são sobreviventes de aconteci-

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92 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

mentos históricos mundiais e moçambicanos recentes. Magerman,

dono de um negócio chamado “Buraco na unha”, é um fotógrafo re-

tratista cuja técnica curiosa é utilizar um buraco em sua longa unha

do dedão como visor. Ele é um personagem exótico que costumava

viver na antiga Alemanha Oriental durante o comunismo e que diz

adeus a seus clientes entoando “Tschüss” em alemão. Kadapé é um

sapateiro que conserta e vende sapatos em combinações altamente

criativas. O lenhador vive no mercado e passa a noite ao ar livre jun-

to com outros “empresários” do mercado (todos sem abrigo) com

um machado que possui com os nomes de sua mulher e ilha grava-

dos, as quais perdeu na guerra. Esses homens também são vítimas

da guerra; um deles é um refugiado que nunca retornou a sua terranatal e o outro perdeu toda sua família. Agora se encontram crian-

do novos laços sociais, batalhando por uma subsistência com outras

iguras pobres e marginalizadas que icaram sem lar. Tanto Paíto

quanto Xano recebem conselhos e encontram segurança na compa-

nhia desses homens, ao mesmo tempo em que aprendem lições de

vida durante suas escapadas pelo mercado.

Em O grande bazar  o motivo da visão através do “buraco na unha”

é signiicativo e Azevedo literaliza-o à medida que a câmera faz umclose numa profusão de pequenos detalhes relacionados à dinâmica

do setor da economia informal personiicado pelo mercado. Através

do meio cinematográico e com um olho de documentarista, Azeve-

do é capaz de transmitir um sentido microeconômico, assim como

sociológico do mercado africano, enquanto proporciona um retrato

humanista, poético e sensível sobre o povo de Maputo, rico em cores

e texturas. O grande bazar , dirigido a um público maior, emana de

forma mais pronunciada um ar de inocência e alegria em contrastecom os documentários de Azevedo. A atmosfera descrita aqui é pon-

tuada por uma trilha sonora (a base de harmônica) alegre e suave,

acompanhada de uma percussão delicada e um baixo elétrico, com-

posta e representada por Chico António, que aparece no ilme, tendo

colaborado com Licínio Azevedo na maioria de suas produções.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 93

Hóspedes da noite (2007) desenrola-se no Grande Hotel, na cida-

de da Beira (costa central de Moçambique), um antigo hotel de luxo

à beira-mar com 350 quartos e uma piscina olímpica, e lá hoje vivem

3.500 pessoas. O hotel, com arquitetura em estilo art déco, foi inau-

gurado em 1953 e é hoje a imagem esquelética de tal passado: faltam

paredes, janelas, eletricidade, água encanada, elevador e corrimão

nas escadas. Muitos de seus atuais moradores (homens e mulheres,

em sua maioria jovens ou de meia-idade, além de muitas crianças)

são sobreviventes da guerra civil. Todos são pobres, enfrentando di-

iculdades para sobreviverem em tempos de paz com criatividade e

perseverança, em meio a uma nação pós-colonial que os abandonou

por completo. Esse curto documentário visualmente poético ofereceum mosaico da vida no Grande Hotel, onde os moradores são ilma-

dos à medida que desenvolvem suas atividades diárias em condições

deploráveis e perigosas, ao mesmo tempo em que são retratados

com dignidade e beleza. Hóspedes da noite também destaca a visita

de dois ex-empregados do hotel (Sr. Caíto e Sr. Pires). À medida que

exploram a estrutura fantasmagórica do hotel pululando de vida, os

ex-funcionários relembram sua época opulenta durante o período

colonial. Suas memórias dos anos dourados, quando senhoras ele-gantes bebiam whiskey  no fabuloso bar/discoteca do hotel, contras-

tam nitidamente com as imagens dos atuais moradores, “hóspedes

da noite,” esquecidos pela história, cujas vidas desaiam os indicado-

res tão divulgados do forte crescimento econômico de Moçambique.

Figura 2 - Rachida, Soia, e Francisca grávida, compartilhando suas históriasno ex-Grande Hotel

Fonte: Hóspedes da noite, 2007. (©Ébano Multimedia)

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94 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

A narrativa ílmica é estruturada em torno de várias cenas en-

volvendo diálogos entre os dois visitantes, três jovens mães (Rachi-

da, Soia e Francisca), dois irmãos jovens e órfãos, e dois homens de

meia idade (Eusébio, um segurança noturno, e Eunísio, um vendedor

ambulante). De forma semelhante a Night Stop (discutido anterior-

mente), estas cenas proporcionam uma textura humana à medida

que os sujeitos compartilham histórias de tragédia e sobrevivência

durante e após a guerra civil, assim como antes e depois de chegarem

ao Grande Hotel. Suas conversas variam entre tentativas por parte

dos garotos órfãos de lembrarem de sua falecida mãe; os horrores

da fuga de vilarejos em chamas durante a guerra, conforme descritos

pelas mulheres quando jovens, ou seus complexos relacionamentoscom homens quando adultas; e histórias compartilhadas entre o se-

gurança e o vendedor ambulante sobre crianças e bêbados caindo

dos andares mais altos do hotel para a morte. Todas essas iguras,

especialmente as mulheres, são representadas através de closes que

acentuam seu charme inocente e capacidade de superar diiculda-

des. Tais cenas são intercaladas por sequências de tomadas de plano

geral e médio retratando variados aspectos da vida nesse microcos-

mo dos pobres de Moçambique, por exemplo: crianças assistindo aum ilme de ação de Hong Kong numa tela esverdeada de TV, um

grupo barulhento de crianças que pulam de alegria com a ideia de

fazerem suas necessidades na praia, mães alimentando seus ilhos,

cultos religiosos muçulmanos e pentecostais, baldes de dejetos hu-

manos sendo jogados das sacadas, um professor de geograia (com

o nome improvável, porém simbólico, de Professor Camões) traba-

lhando em seu computador enquanto candidata-se a um cargo uni-

versitário, momentos de afeto entre mães e ilhos, jovens praticandogolpes de caratê, mulheres e homens cozinhando, mulheres fazendo

penteados nos cabelos umas das outras, adultos trocando gracejos

divertidos e sugestivamente sexuais, pessoas buscando água na pis-

cina, tomadas de pessoas com membros amputados como resultado

da guerra, e imagens de ratos correndo pelas paredes.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 95

Ocasionalmente, o ponto de vista adotado é o dos ex-funcioná-

rios do hotel, mas a perspectiva que predomina é a do diretor, o qual

emprega um olhar de empatia um pouco voyeurístico sem evocar

pena nos espectadores face aos sujeitos representados, mas exigin-

do um reconhecimento de sua humanidade. Tal estratégia de repre-

sentação é acentuada pelo amplo uso de closes dos sujeitos falantes

(evidenciado anteriormente) e a estética chiaroscuro onde a intensa

luz dos espaços exteriores contrasta de forma marcante com a escu-

ridão dos interiores, criando um efeito tableaux  onde tem lugar uma

certa estetização da pobreza que lembra o diretor português Pedro

Costa e seus ilmes com enfoque nas margens sociais de Lisboa – por

exemplo O quarto de Vanda (2004) ou Juventude em marcha (2006).A estetização da pobreza no caso de Azevedo é, contudo, amenizada

por inúmeras referências escatológicas, verbais ou visuais, feitas du-

rante todo o ilme. Portanto, ao invés de simplesmente “embelezar”

a sua representação dos pobres, Azevedo opta por tornar palpável

tanto a beleza como a feiura, de forma explícita ou implícita, no qua-

dro das forças biopolíticas, infraestruturais, históricas e econômicas

em funcionamento para moldar a “vida nua” (conforme postulado

pelo ilósofo Giorgio Agamben)10 

que os espectadores testemunhamno Grande Hotel. Da mesma forma, em Hóspedes da noite não há nar-

ração em off  (semelhante à maioria dos documentários de Azevedo)

e o ilme apenas fornece informações básicas na forma de letreiros

sobre os sujeitos falantes quando aparecem pela primeira vez. Todas

as informações adicionais sobre suas vidas, a história do hotel, as-

sim como suas condições de moradia, são apresentadas através de

conversas quase sem nenhuma roteirização entre os sujeitos (como

em O acampamento de desminagem e Night Stop), ao mesmo tempoem que proporcionam um amplo panorama sobre a vida urbana de

Moçambique (semelhante ao curta de icção O grande bazar).

Em última análise, Azevedo apresenta o Grande Hotel como uma

metáfora viva da espacialização do tempo; neste caso, as múltiplas

10  Agamben (1998, p. 119-135) postula a noção de “vida nua” como análoga ao corpo, assim comoà vida biológica e suas necessidades – todos eles fatores decisivos na esfera política.

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96 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

temporalidades e processos históricos convergindo num único local

(os anos inais do colonialismo, a guerra civil pós-independência, o

relativamente estável, embora incerto, presente neoliberal) e seus

efeitos nos segmentos mais vulneráveis e marginalizados da popula-

ção moçambicana. Embora denunciando de forma implícita a injusti-

ça social reservada aos sujeitos representados, o ilme não os retrata

necessariamente como vítimas sem esperança.

Azevedo permanece iel ao imperativo ético de representar o

povo de Moçambique e proporcionar agenciamento histórico aos po-

bres das zonas rurais, evidenciado por esse capítulo extraordinário

na história do cinema africano que ocorreu em Moçambique durante

os primeiros anos de independência. Acontecimentos cataclísmicoslevaram à destruição da utopia de uma sociedade igualitária, sob a

liderança de um governo de partido único nacionalista e marxista-

-leninista, causando uma ruptura no paradigma socioeconômico e

político hegemônico, enquanto que o cinema se adaptou aos tempos

em mudança. Licínio Azevedo tem dedicado a sua arte cinemática

a documentar as consequências do fracasso violento da utopia; em

especial, o preço cobrado dos sobreviventes que estão atualmente

inventando um futuro incerto no meio da pandemia que se alastrouno país, e que, desde então, tem cuidado de suas feridas de guerra e

encontra-se, em grande parte, reconciliado.

REFERÊNCIAS

A ÁRVORE dos antepassados. Direção: Licínio Azevedo. Moçambique:Ébano Multimedia; BBC; TVE; One World Group, 1995. (49 min.).

A COLHEITA do diabo. Direção: Licínio Azevedo e Brigitte Bagnol.Moçambique: Instituto Nacional de Cinema; Bélgica: Centre d’ActionCulturel de Montbelliar; França: RBT; CIP; FR3; Pygma; Dinamarca:Nordisk Film, 1988. (54 min.).

A GUERRA da água. Direção: Licínio Azevedo, Moçambique:Ébano Multimedia,1995. (73 min.).

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 97

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Minneapolis: University of Minnesota Press, 2011.

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DIAWARA, Manthia.  African Cinema, Bloomington & Indianapolis:Indiana University Press, 1992.

FERGUSON, James. Global Shadows: Africa in the Neoliberal WorldOrder. Durham: Duke University Press, 2006.

FOGATA. Direção: João Ribeiro. Moçambique: Kanema; Cuba: INC;França: EICTV, 1992. (18 min.).

FRONTEIRAS de sangue. Direção: Mário Borgneth. Brasil:Austra Cinema e Comunicação; Moçambique: Kanema Produçãoe Comunicação, 1987. (90 min.).

HISTÓRIAS comunitárias. Direção: Licínio Azevedo e OrlandoMesquita. Moçambique: Ébano Multimedia, 2000. (192 min).

HÓSPEDES da noite. Direção: Licínio Azevedo. Moçambique:

Ébano Multimedia, 2007. (53 min.).

JUVENTUDE em marcha. Direção: Pedro Costa Portugal: Contracostaproduções; França: L’Étranger; Unlimited; Suíça: Ventura Film; RTP;RTSI; Arte France, 2006. (155 min.).

KUXA Kanema: The Birth of. Cinema Direção: Margarida Cardoso,Portugal: Filmes do Tejo. 2003, (52 min.).

MANNING, Carrie L. The Politics of Peace in Mozambique: Post-ConlictDemocratization, 1992-2000. London: Praegar, 2002.

MUEDA: memória e massacre. Direção: Rui Guerra. Moçambique:PRODUTORA, 1979. (100 min.).

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Nichols, Bill. Representing Reality: Issues and Concepts in Documentary,Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1991.

NIGHT Stop. Direção: Licínio Azevedo. Moçambique: ÉbanoMultimedia, 2002. (52 min.).

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98 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

NO QUARTO de Vanda. Direção: Pedro Costa. Portugal: Atalanta Filmes,2001. (171 min.).

O CAMPO de desminagem. Direção: Licínio Azevedo. Moçambique:Ébano Multimedia, 2004. (60 min.).

O GRANDE bazar. Direção: Licínio Azevedo, Moçambique: ÉbanoMultimedia, 2006. (56 min.).

O JARDIM do outro homem. Direção: Sol de Carvalho. . Moçambique:Promarte, 2006. (80 min.).

O OLHAR das estrelas. Direção: José Cardoso. Moçambique: ÉbanoMultimedia, 1997. (26 min.).

O TEMPO dos leopardos. Direção: Velimirovic Zdravko. Moçambique:Instituto Nacional de Cinema, 1987. (95 min.).

O ÚLTIMO voo do lamingo. Direção: José Cardoso. Mozambique;Portugal; Italy: Carlo d’Ursi Produzioni; Fado Filmes; NeonProductions; Potenza Producciones; Slate One Produções, 2009.(86 min.).

O VENTO sopra do norte. Direção: José Cardoso. Moçambique:Instituto Nacional de Cinema, 1987. (100 min.).

POWER, Marcus. Post-colonial Cinema and the Reconiguration ofMoçambicanidade. Lusotopie, v. 11, n. 1, p. 261-278, 2004.

ROSA Castigo Direção: Licínio Azevedo. Moçambique: ÉbanoMultimedia. 2002. (90 min.).

TATANA. Direção: José Cardoso. Portugal; Moçambique: Fado Filmes,2005. (14 min.).

TERRA SONÂMBULA. Direção: Teresa Prata. Portugal: Filmes deFundo; Moçambique: Ébano Filmes, 2007. (97 min.).

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A onipresençada música africana em

“filmes de autor” africanos

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 101

A CAMINHO DE UM AMADURECIMENTO NAUTILIZAÇÃO DA MÚSICA NO CINEMA AFRICANO 

Sembene, Sissako e Sené Absa1

Beatriz Leal Riesco

A imagem emigrou para o território do som; a música passoupara o território da imagem.

 Artavatz Péléchian, cineasta armênio

INTRODUÇÃO

A linguagem audiovisual é, em suas mais pobres manifestações,

um diálogo de duas vozes entre imagem e som. No entanto, este diá-

logo pode ser tão frutífero que o resultado do trabalho em conjuntocria melodias polifônicas ou de contrapontos reveladoras. Para tan-

to, um ilme que se considere bom usará de maneira consciente e, ao

mesmo tempo, criativa os instrumentos à sua disposição para ofere-

cer espaços de encontro e de troca. Apesar desta realidade consta-

tável da linguagem cinematográica, ainda hoje em dia a análise, em

1 Este artigo foi traduzido do espanhol por Ana Camila de Souza Esteves.

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102 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

toda a sua complexidade, do uso do som no cinema é um aspecto

habitualmente menosprezado, e inclusive esquecido, diante da oni-

presente ditadura da imagem. Se a esta qualidade genérica própria

do meio unimos a grande importância que a música e a dança têm

na África por si só, concluiremos que um estudo do musical neste

cinema é uma tarefa pendente.

A música, entendida como manifestação cultural de um deter-

minado grupo social, é um lugar privilegiado de estudo das repre-

sentações identitárias e ideológicas, assim como seu uso artístico

subversivo e dialogador é capaz de nos mostrar com clareza deci-

sões formais ligadas às dinâmicas de poder e dominação. Este papel

revelador tem, portanto, uma interessante função positiva: a de pro-por possibilidades de encontro necessárias, já que, como diz Abder-

rahmane Sissako (informação verbal, tradução da autora):2 “Entre o

ocidente e a África não há intercâmbio, no sentido de duas coisas que

se encontram” Talvez na música e na sua recepção se abra um espaço

onde esse intercâmbio se produza. Não em vão, tal viagem de ida e

volta entre ocidente e África, se não foi especialmente frutífero em

outros âmbitos, certamente foi no musical já desde o século passado

quando, no ocidente, graças ao encontro com as melodias e ritmosdos escravos africanos na América, houve uma revolução na forma e

no conteúdo da música daquele momento, surgindo o jazz  e o blues.

Desde então, e claramente no nosso mundo atual globalizado, os in-

luxos da produção africana se observam em muitas das produções

(mais ou menos) populares que inundam o mercado da música.

A airmação do papel crucial que atualmente tem a música afri-

cana como lugar de intercâmbio parece ver-se conirmada no uso

consciente e experimentador que determinados cineastas africanosfazem dela. Também na literatura o valor identitário e de pertinência

tão claro que a música e a dança têm para um africano foi identii-

cado em inúmeras ocasiões. Essas manifestações culturais acompa-

2 Apresentação de Abderrahmane Sissako no 55th Robert Flaherty Film, na Universidade deColgate, entre 26 e 29 de junho de 2009. Anotações e tradução da autora. Original: “BetweenAfrican and the West there is no exchange, in the sense of a meeting of two things”.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 103

nham, no continente africano, seus habitantes, tanto na sua vida pri-

vada quanto no espaço social, e têm um signiicado completamente

diferente do que lhe dão no ocidente. Por tudo isso é preciso, antes

de adentrarmos na música no cinema africano, fazer uma série de

considerações. Em primeiro lugar, temos que ressaltar a peculiarida-

de do próprio conceito de musical na África:

nas línguas africanas não existe uma palavra sequer que tra-duza nosso termo ‘música’; as palavras que utilizam designamtanto dança quanto música; não existe tampouco um termopara distinguir a música do ruído. (PAVIS, 1996. p. 148)

Por causa disso, as imensas possibilidades de análise que se

abrem para a compreensão do seu uso no cinema têm sua contra-parte na diiculdade da delimitação entre o propriamente musical e

o resto que entra em jogo (a dança, o movimento, o texto recitado).

Uma segunda consideração é pertinente: a música africana é

caracterizada pelo movimento: “Para muitos africanos, incorporar

determinadas séries de movimentos é um critério importante para

compreender a música. Diferente do ocidente, a concepção e a recep-

ção da música não são puramente auditivas, mas também rítmicas”.

(PAVIS, 1996, p. 151-152) Rítmicas, diríamos ainda “profundamente

emocionais” e criativas e transmissoras de uma determinada iden-

tidade. Tal consciência aparece habitualmente em diversas obras de

arte, especialmente nas de numerosos escritores africanos que, gra-

ças à palavra, a tornam visível. São reveladores alguns trechos do

primeiro romance autobiográico da escritora senegalesa exilada em

Estrasburgo, Fatou Diome, que nos explica como passos de dança no

corredor do seu apartamento são o “único luxo” que se pode permi-tir na sua vida de emigrante cheia de restrições.3 Também encon-

3 “A primeira coisa que iz na habitação de proteção oicial foi renunciar simplesmente a todo osupérluo ocidental. Minhas distrações se reduziam ao número de passos de dança que execu-tava no meu corredor, depois de longas horas diante da tela. O telefone era o cordão umbilicalque me unia ao resto do mundo. Mesmo trancado você continua com a sua marcha existencial.”(DIOME, 2004, p. 223)

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104 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

tramos exemplos similares nas obras da escritora pioneira e ativista

Mariama Bâ, à qual a autora anterior presta constante homenagem.4

Portanto, as ferramentas conceituais das quais dispomos estão

culturalmente determinadas por uma tradição musical ocidental de

séculos, e acabam sendo insuicientes para o nosso caso. Dito isso, é

necessário fazer umas últimas pontuações, já que, devido à análise

concreta de determinados ilmes, encontramos algumas diiculdades

a mais. Sem contar a óbvia complicação de ter acesso, na Espanha, a

esse tipo de música e obras ílmicas, existem outros problemas. À

barreira pontual que supõe entender as letras (em línguas autócto-

nes) de certas canções com valor determinante no ilme em que se

inserem, se unem aspectos ligados à consciência que o diretor temde estar imerso numa rica cultura onde a música, a dança e a tradi-

ção oral variam, e o fato de que só dele depende o ato de empregá-las

com um sentido comum ou subversivo. A compreensão dessas op-

ções é, em muitas ocasiões, complicada para o espectador ocidental

que precisa de uma bagagem cultural similar. Que o diretor tenha

valorizado ou não o papel do receptor (ocidental ou autóctone) pen-

sando na possível distribuição e exibição que se fará do seu ilme, são

também aspectos essenciais na análise que me proponho para situarconvenientemente o objeto artístico em questão.

De novo as palavras de Fatou Diome (2004) servem para eviden-

ciar o problema da compreensão e interpretação por parte do espec-

tador ocidental (ou qualquer pessoa não familiarizada com ela) de

uma determinada dança africana:

[...] e os coqueiros que balançam suas folhas numa despreocu-pada dança pagã cuja origem se perdeu. É por acaso uma dessasdanças funerárias que antigamente consagravam o encontrodos mortos com os antepassados? Ou a dança incessante quecelebra o casamento depois da colheita ao terminar o inverno?Ou talvez uma dessas danças que provocam as tempestades e

4 É interessante ressaltar que Diome (2004) está fazendo um trabalho sobre o diretor senega-lês Ousmane Sembene e seu conceito de viagem, autor que analisarei em páginas posteriores,criando a possibilidade de encontrar relações entre ambos, oportunidades de relexão e, porque não, também vazios signiicativos.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 105

cujo ritmo, segundo dizem, os coqueiros imitam o movimentode negação das mulheres oferecidas em matrimônio a homensque não amam? Ou a dança mais misteriosa, o tango do deva-neio, no qual cada um dança do seu jeito, no ritmo da sua respi-

ração. (DIOME, 2004, p. 223)

Como eu dizia acima, a dança e a música acompanham todas as

celebrações do povo africano, sejam elas públicas ou privadas, e com

uma diversidade tão numerosa quanto os povos que formam a ge-

ograia humana do vasto continente. Mariama Bâ, ao falar sobre os

problemas que, no Senegal, uma garota negra e da Costa do Marim

tem para ser aceita, sendo que os dois países pertenceram ao mesmo

colonizador francês, diz: “Mas a África é diferente, está dividida. Um

mesmo país muda várias vezes de rosto e de mentalidade, de norte a

sul e de leste a oeste.” (BÂ, 2003. p. 69)

Encontrar recorrências no uso da música e da dança no conjunto

do cinema africano está para além da minha análise. Por isso, des-

se rico e complexo continente só estudarei determinados ilmes da

zona francófona da África ocidental, concretamente (pela quantida-

de de produção e por seu valor artístico inquestionável) o pioneiro

Ousmane Sembene e os cineastas contemporâneos AbdehrramaneSissako e Moussa Sené Absa.

No momento de estudar o uso que se faz da música nesse cinema,

tentarei também, na medida do possível, tratar das apreciações ge-

rais e particulares previamente feitas sobre o musical africano.

O PAPEL DO GRIOT NA TRADIÇÃO ORAL AFRICANA:

SEU USO E REPRESENTAÇÃO NO CINEMAAgora é necessário concentrarmo-nos na igura do griô, tanto

pela sua relevância no momento de analisar o cinema africano como

um todo desde o início (década de 1960, quando se considera que

nasce um cinema feito por e para africanos) como por sua pertinên-

cia ao adentrarmo-nos no estudo detalhado dos ilmes que fazem

parte do corpus de análise. De acordo com o pesquisador de teoria

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106 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

e história do cinema africano Manthia Diawara (1996), existe uma

relação evidente entre o cinema e a tradição oral africana. Além das

coincidências nos modos de narrar na tradição oral popular e no

cinema africano (das quais não me ocuparei aqui), Diawara (1996)

fala sobre como este cinema incorporou conscientemente desde o

início elementos da cultura popular e, fundamentalmente, a igura

do griô.5  Este homem (ou mulher, no caso  griotte) é um contador

de histórias, um bardo ou um cantor-orador. Historicamente ligado

a uma família ou a uma pessoa das castas mais importantes (guer-

reiros, os nobres e similares), sua obrigação consistia em recordar o

passado, honrar o presente e, em menor medida, ainda que também

importante, imaginar o futuro, sempre dentro do contexto de honrara família ou a pessoa à qual estava ligado. Era, como se pode ver, um

genealogista e, ao mesmo tempo, um historiador da comunidade à

qual pertencia. Por isso o valor da sua tarefa para a coesão e esta-

bilidade social e cultural era fundamental. (MURPHY, 2007, p. 7-11)

Nele, a relação entre palavra, música e expressão corporal é constan-

te, como veremos.

As diferentes formas de entender essa igura e as mudanças

que foi sofrendo se observam ao longo da produção cinematográi-ca africana. Em primeiro lugar, existe uma visão romântica da casta

dos griôs entendidos como historiadores, educadores e guardiões da

consciência das pessoas, em cujo caso estaríamos diante de uma bela

imagem do passado recuperada com valor estético. Em segundo lu-

gar, encontramos a revalorização da igura mítica, criticada para que

se possa questionar o sistema de castas. Segundo a tradição, o griô

era originariamente um guerreiro que (cansado de matar) decidiu se

converter em cantor, contador de histórias e músico. Como atualmen-te são considerados uma casta inferior, há uma tentativa de reabilitá-

-los, e, deste modo, tem relação direta com o necessário progresso

libertador da África. A terceira opção, muito mais crítica e questio-

5 Na Espanha, a consciência da importância desta igura se faz ver no único festival que existeintegralmente no país sobre o cinema africano – o Festival de Cine Africano de Tarifa –, no qualse entregam prêmios denominados griô.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 107

nadora, é a que encontramos na obra de diretores como Ousmane

Sembene, Abderrahmane Sissako e Moussa Sené Absa. Neste caso,

o cineasta se identiica com o griô como “a voz e o ouvido do povo”,

como, já em 1978, tinha exposto Ousmane Sembene. A similaridade

fácil de estabelecer entre as técnicas narrativas dessa igura tradicio-

nal e as empregadas por esses cineastas é um aspecto habitualmente

assinalado: através da câmera – tal como o faz o griô ao narrar sob o

seu ponto de vista – o diretor interpreta a realidade e nos oferece sua

visão, mas esta não é individual (como no ocidente), e sim daquelas

que se esquecem dos momentos subjetivos característicos de nos-

sas individualistas latitudes a serviço de uma narração coletiva. No

entanto, esta última airmação (construtor teórico útil e quase per-feito em sua construção), que foi defendida por muitos estudiosos,

é questionável, como tratarei de explicar. Relacionados ao papel do

griô como “mestres do discurso”, existem também outros elementos

da narração oral como o uso dos refrões, das frases feitas e de máxi-

mas populares depositárias de uma grande carga expressiva ligada à

tradição. Todos eles se incluem habitualmente nesses ilmes.

No entanto, no que concerne à tradição oral, DiawaraS (1996),

que tanto inluiu no modo de narrar no cinema e no uso de igurase recursos derivados dela, há vários problemas, como apontam, de

maneira contundente, os autores de Postcolonial African cinema.

Ten directors, David Murphy e Patrick Williams (2007): em primei-

ro lugar, o griô não é uma figura universal do continente africano,

mas uma figura que existe fundamentalmente na parte ocidental.

É por essa razão que optamos por estudar casos de Senegal e Mau-

ritânia/Mali (países limítrofes de Senegal e pertencentes à mesma

área geocultural). Além disso, há diferentes ideias (às vezes opostas)do que seja tradição oral e como se materializa nas estruturas nar-

rativas, variando enormemente de uma zona a outra do continente

africano. Ao querer, portanto, considerar o diretor de cinema como

o novo griô, surgem inúmeros problemas, muitos deles ligados ao

habitual reducionismo teórico que aceita, sem questionar, determi-

nados conceitos por sua grande operacionalidade (este é um deles).

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108 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

Tampouco podemos esquecer a característica de trabalho coletivo

e industrial do cinema, onde a técnica é fundamental e não se re-

duz a poucas mãos, ainda que, se algo caracteriza os diretores men-

cionados, é reunir em suas personas múltiplas facetas criativas: são

ao mesmo tempo músicos, diretores, escritores, atores, cantores...

Este aspecto, unido ao fato de que em todos eles a decisão última

é individual, corresponderia finalmente os cineastas africanos e os

griôs. Enim, uma igura bela, poética e por isso tão querida por crí-

ticos e teóricos, mas na realidade, e como em tantas outras ocasiões,

um conceito que é preciso limar à luz das variáveis circunstâncias e

dos cambiantes meios de expressão. Talvez fosse possível falar de

um  griauteur , híbrido que juntasse as características derivadas doautor na linha teórica ocidental, mas atualizando-o com as caracte-

rísticas do griô tradicional, marcando as continuidades e profundas

rupturas existentes, tal como acontece entre o cinema e a tradição

cultural prévia africana.

Apesar disso, não há dúvida de que o papel que teve e tem essa

igura tão intimamente relacionada e imersa no musical no cinema

africano foi notável; daí a necessidade de se aproximar dela, ainda

que supericialmente, antes de começar a análise concreta das obrasde Sembene, Sissako e Sené Absa.

 A música no cinema africano: aproximando-nos

do objeto de análise

Ao longo de quatro décadas alguns diretores africanos entende-

ram a necessidade de utilizar a música para a consecução de deter-

minados objetivos estratégicos: em um primeiro momento tratava-sede construir a recentemente criada nação própria e coniaram este

trabalho a diretores pioneiros como Ousmane Sembene, de uma ma-

neira crítica. Por sua vez, viram a necessidade de recuperar a memó-

ria histórica intencionalmente sepultada pelos colonizadores, tarefa

fundamental para oferecer alternativas ao colonialismo opressor e

ao seu continuador, o neocolonialismo. E, fundamental também, en-

tenderam a importância de criar uma teoria africana para as práticas

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 109

culturais e sociais próprias. Neste ambiente, o cinema teve um papel

central. O fato de a nova arte ser ilha do século XX, marcado pelo

domínio ocidental, e que, por esta razão, teve, até o momento, uma

natureza etnocêntrica que não considerava a especíica “estética ne-

gra”, (MURPHY; WILLIAMS, 2007, p. 17) unido à força da sua lin-

guagem audiovisual, leva os autores africanos a considerá-lo o meio

privilegiado de luta frente às injustiças de sua realidade.6 Quando co-

meçaram a trabalhar, estes primeiros cineastas africanos eram cons-

cientes do problema que enfrentavam e do poder que, através não só

das imagens, mas também e em especial do som, o cinema tinha na

construção de uma identidade para o povo africano em oposição aos

constructos paternalistas e reacionários ocidentais. A música, lin-guagem poderosíssima e manifestação artística, industrial e cultural,

é capaz de nos ajudar a entender problemas como o da identiicação

e da natureza da arte popular e sua importância na vida africana,

bem como seu possível uso subversivo pode servir para combater

estereótipos amplamente aceitos. A partir da música, conhecer a re-

alidade africana há tanto tempo silenciada se apresenta como uma

tarefa fundamental porque reveladora.

Um panorama da música africana

Antes de entrar em detalhe sobre os usos particulares que Ous-

mane Sembene, Abderrahmane Sissako e Moussa Sené Absa fazem

da música em alguns dos seus ilmes, gostaria de realizar um breve

panorama sobre a trilha sonora ao longo dos anos – que vai do nas-

cimento do cinema africano como tal (nos anos 1960, após os movi-

mentos independentistas africanos) até os nossos dias. A progressãoque observamos pode-se resumir em uma tomada de consciência

6 Esta capacidade do cinema frente às outras artes de chegar a grandes públicos nos processosdos novos estados pós-coloniais se dá também em outras latitudes. Vale citar a insistência comrespeito ao conhecido diretor de Bangladesh Ritwik Ghatak (2000): diante de outros meiosartísticos, a única diferença que torna o cinema mais interessante é que “Ele pode alcançarmilhões de pessoas de uma vez, o que nenhum outro meio é capaz de fazer.”. (GHATAK, 2000,p. 1) Declarou também, em muitas ocasiões, que se aparecesse outro meio com o qual pudessealcançar maior número de pessoas, trocaria o cinema por ele.

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110 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

das possibilidades críticas, estilísticas e subversivas da música, e em

uma progressiva maturidade independentizadora frente aos usos

da mesma, provenientes de cinemas comerciais como Hollywood,

Bollywood ou os exitosos musicais egípcios. O espectador africano

teve acesso a esses produtos na maior parte do tempo. Veremos que

a tendência está mudando drasticamente para Nollywood nos últi-

mos anos, no entanto as peculiaridades de sua produção não permi-

tem prever este cinema nigeriano como aquele que tirará o uso da

trilha, a um nível generalizado, de sua tendência mais conservadora.

Esquecendo-nos do emprego ocidental em suas produções de

melodias que servem para identiicar o africano e que, desde o início

do cinema sonoro, vêm se repetindo incessantemente, nos centrare-mos no cinema africano em si (feito por e para africanos). Em suas

duas primeiras décadas de existência (anos 1960 e 1970) observa-

mos como continuam empregando (similares às produções coloniais

imediatamente anteriores e copiando Hollywood por ainda não ter

alcançado uma autonomia artística neste âmbito) idiomas sinfôni-

cos e populares ocidentais que, no entanto, começam a ser substi-

tuídos por música tradicional africana do âmbito rural e por estilos

musicais urbanos. Desde os primeiros ilmes africanos Borom Sarret(1962) de Osumane Sembene encontramos essas tendências reno-

vadoras, além de airmadores de uma identidade própria. Nesta li-

nha se encontram, entre outros e de modo experimental, os conheci-

dos autores Ousmane Sembene, Djibril Diop Mambety e Med Hondo.

A partir da década seguinte (anos 1980), enquanto alguns ilmes

continuam empregando idiomas sinfônicos e populares na trilha so-

nora, isto se dá em menor medida que o uso das músicas de estirpe

tradicional, que são empregadas com dois objetivos fundamentais:transmitir uma autoconsciência do valor artístico do sonoro e estabe-

lecer um elemento diferenciador frente ao ocidente por parte de um

continente que quer criar um contraponto à produção majoritária e

gerar espaços/tempos de relexão Octubre (1992), de Abderrahma-

ne Sissako. Seguindo essas duas linhas não incompatíveis, mas com-

plementares, observamos como vão se incorporando aos idiomas

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 111

musicais modernos (sinfônicos ou sintetizados), motivos africanos

(hibridização muito frutífera), e o crescente uso de idiomas africa-

nos do pop urbano. Os idiomas tradicionais não são esquecidos por

completo e continuam sendo usados ocasionalmente, mas são muito

menos habituais que os urbanos. As referências à tradição africana

se misturam e encontramos estilos musicais urbanos que variam de

uma região pra outra, mesclando-se com estilos musicais ocidentais

(inclusive hinos e cantigas coloniais revisadas). Fundamental na li-

nha de renovação e criação autônoma, encontramos famosos com-

positores como Francis Bebey, Abdullah Ibrahim, Manu Dibango, Ray

Lema, Salif Keïta, Ali Farka Touré, Wasis Diop, Papa Wemba ou Zegué

Bamba, que realizam trilhas sonoras em que a soisticação de esti-los (desde o popular ao jazz , passando pela adaptação de música or-

questral contemporânea do ocidente) funciona como elemento po-

ético criador de efeitos inesperados. Nos referimos às colaborações

de Francis Bebey em Yam Daabo e Yaaba; Abdullah Ibrahim em Tilaï ;

Manu Dibango em Countdown at Kusine, Ceddo, L’Herbe sauvage, Le

 prix de la liberté , Le Silence de la forêt, Nha Fala e Na cidade vazia;

Ray Lema em Afrique je te plumerai e Moi et mon blanc; Salif Keïta em

Yeelen e La vie sur terre; Ali farka Touré em Abouna, Wasis Diop emTouki Bouki, Hyènes, Samba Traoré , Le Prix du pardon, Silmandé , De-

lwende, Daratt  e Un homme qui crie, Papa Wemba em La vie est belle,

e Zegué Bamba em Bamako.

Nessa linha de priorização do urbano se encontra a realidade de

Nollywood (KAYE, 2007) no seu uso constante de sintetizadores e re-

ciclagem de músicas populares como o reggae, R&B, hip hop/rap... A

enorme indústria que representa Nollywood, surgida graças às ino-

vações tecnológicas e com uma produção de 1000 ilmes e mais de100 milhões de dólares anuais, poderia ser o espaço ideal para uma

renovação (também) musical. A realidade é outra: o gasto médio por

ilme é ínimo, com base em uma rodagem e montagem meteóricas,

em que a trilha sonora ica geralmente nas mãos de uma única pes-

soa que, servindo-se de sintetizadores em um estúdio quase artesa-

nal, se ocupa de toda a música. O resultado segue a linha tradicional

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112 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

ocidental de criar estados de ânimo, ainda que – especialmente se

o uso da música é diegético – sejam incluídos ritmos tradicionais.

Outra característica que chama a atenção é que, conscientes da im-

portância de ter um tema musical memorável como identiicador do

ilme como um todo, este é composto e repetido ao longo do ilme.

Trata-se, enim, de músicas simples criadas em sua maior parte com

sintetizadores e com idiomas musicais como o high life, reggae, R&B 

e hip hop/rap, e cuja importância está em aparecer como símbolo de

certo modo de vida na África contemporânea. A resposta à pergunta

de por que músicos reconhecidos não trabalham nestas produções

é simples: não há orçamento suiciente, sendo o gasto musical mí-

nimo. Em oposição à tendência de cinema-arte que surgiu nos anos1960, e da qual os autores que analisarei são claros expoentes ou

continuadores, Nollywood se institui como uma realidade autônoma

e exempliicadora da África atual.

Uma última observação: a música realizada por cineastas afri-

canos emigrados tem sido um campo de experimentação notório,

mas que excede a abordagem deste artigo. Não posso, no entanto,

deixar de apontar a importância crescente da música dos cineastas

africanos emigrados na Europa da segunda geração, um campo fru-tífero em contínua expansão. A revalorização de ritmos e melodias

do continente de origem, de músicos que são autênticos heróis para

seus fãs, e a mudança de apreciação das músicas étnicas “que dei-

xam de ser um resíduo nostálgico para se converter numa forma de

auto-reconhecimento” (MONTERDE, 2008, p. 188) é uma tendência

comum no cinema de raiz africana nos últimos anos e que mais uma

vez nos chama atenção para a relevância da música neste continente.

Voltando ao nosso objeto de estudo, a conclusão a que chega-mos é que atualmente, no trabalho de determinados autores, existe

uma maturidade no uso das diversas tradições musicais e de suas

possibilidades na trilha sonora – sem nenhuma limitação. No caso

de Abdehrramane Sissako, que estudarei em detalhe, o emprego da

música forma parte essencial do que para ele signiica fazer cinema.

Afastando-me do cinema mais comercial, do ligado a interesses pro-

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 113

pagandísticos ou submetidos à censura do governo, e de tentativas

menos bem sucedidas, me centrei em obras críticas e de grande va-

lor artístico, tanto no seu conteúdo quanto nos seus aspectos for-

mais. Estudando determinados fragmentos dos ilmes de Sembene,

Sissako e Sené Absa, comprovaremos como existe uma consciência

na escolha de um determinado motivo musical, e assim explicarei a

importância da trilha sonora e mostrarei as enormes possibilidades

que foram se abrindo para ela. Pretendo, deste modo, demonstrar

como a maturidade no uso da música alcançou níveis elevados no

cinema africano contemporâneo, e como já não é possível simpliicar

a tendências gerais o emprego que certos autores fazem dela.

PERCORRENDO DESDE O CLASSICISMOATÉ A EXPERIMENTAÇÃO: OUSMANE SEMBENESENEGAL, 1923 JULHO, 2007

Considerado por muitos o “pai do cinema africano”, começou

sua carreira no início dos anos 1960, e em sua obra está uma série

de primeiros marcos históricos na cinematograia: o primeiro ilme

subsaariano na África Borom Sarret  (1962), o primeiro ilme sobreuma subsaariana imerso no contexto europeu (La Noire de..., 1966),

e o primeiro ilme em idioma africano Mandabi (1968). Mas seu ver-

dadeiro pioneirismo se deve ao fato de seus ilmes das décadas de

1960 e 1970 serem, ao mesmo tempo, radicais politicamente e esti-

listicamente inovadores.

Inicialmente escritor e ativista político, migrou para o cinema ao

considerar que era um meio mais apropriado para alcançar seu povo,

num continente com uma enorme taxa de analfabetismo. Nesta linha

tentou criar um estilo cinematográico que reletisse as multiformes

realidades múltiplas, permanecendo sempre acessível e mantendo

um signiicado apropriado para o público autóctone. Em seus ilmes

passou do uso do realismo social para a sátira, do intimismo domés-

tico para o uso de técnicas brechtianas, levando sempre em conta a

tradição oral na qual estava inserido.

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114 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

Este autodidata de formação, falecido recentemente, conseguiu

durante toda a sua vida se manter iel às suas origens, manifestando

desde então, tanto em sua vida como em sua obra cinematográica e

literária, uma forte resistência à autoridade e uma contínua crítica a

qualquer forma de injustiça.

Sua produção pode ser dividida em três períodos: o primeiro

de 1962 a 1970, caracterizada por seguir o estilo do neorrealismo

italiano, estudando suas possibilidades e limitações; o segundo de

1971 a 1976, que foi considerado o mais criativo da sua carreira. São

estes os ilmes que criticam múltiplas situações, tanto da história

passada como do presente africano. E, após uma etapa de inativida-

de no cinema, o terceiro dura de 1988 até sua morte, com ilmes quese não são experimentais, tampouco deixam de ser obras construí-

das com inteligência e maestria, servindo-se de narrativas clássicas.

Entre elas está Moolaadé  (2004), sobre a resistência de uma mulher

no povoado de Burkina Faso à separação de umas garotas que lhe

pedem “asilo” e proteção (“mooladé ”). Esta que seria a sua última

obra devia formar parte de uma trilogia sobre o “heroísmo da vida

comum”, onde as mulheres seriam as protagonistas absolutas, mas,

devido à morte do diretor, o projeto não foi concluído.O uso que Sembene faz da música parece clássico em muitas oca-

siões, mas estamos sempre diante de um uso plenamente consciente

de suas possibilidades. Encontramo-nos diante de um tema muito

interessante: o do uso subversivo que se pode fazer de determina-

dos personagens e elementos clássicos. Se nos seus ilmes não falta

a continuidade entre a imagem e a trilha sonora (como farão outros

como Med Hondo e Djibril Diop Mambety de uma forma muito ex-

perimental) soube se servir da trilha de formas muito interessantes.Desde suas primeiras produções usou diferentes estilos musicais

com técnicas de contraponto para enfatizar oposições temáticas.

Este é o caso de determinados fragmentos que estudarei em dois

ilmes da sua segunda etapa, a mais clássica  Xala (1974) e a consi-

derada sua obra mais experimental do momento, Ceddo (1976). No

primeiro caso, uma narrativa sobre os males trazidos pela Indepen-

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 115

dência através da corrupção e da oligarquia local, e cujo tema princi-

pal são as terríveis contradições entre a modernidade e as tradições

no Senegal. O papel dado à música é o de um protagonista a mais.

Desde o primeiro momento a música pontua airmativamente os fa-

tos que se apresentam a nós visualmente: a tomada de poder dos se-

negaleses frente aos colonos se faz ao ritmo de canções tradicionais

que, servindo-se de vozes e tambores, animam o povo a dançar na

celebração da liberdade. No entanto, logo se produzirá a assimila-

ção dos poderosos ao dinheiro europeu, e é na cena da festa quando

essa paulatina transição se faz mais lagrante. Quando começam a

chegar os convidados do casamento, a música interpretada pela Star

Band of Dakar7

 é uma melodia contemporânea senegalesa de grandepoder evocativo e lúdico. A tendência mudará quando aparecem o

presidente e outras importantes personalidades políticas. É quando

o grupo musical começa a tocar uma peça ocidental que dará início

a uma tênue luta com a melodia senegalesa, que acaba se opondo

ao tom ocidental. No entanto, a melodia estrangeira trata de seguir

soando como fundo terrivelmente premonitório dos males que acon-

teceriam, numa trilha sonora descendente. Durante o resto do ilme,

uma melodia tradicional instrumental vai aparecendo fragmentadaem algumas ocasiões até que, já com voz, nos apresenta a poderosís-

sima cena inal. Neste caso, as ressonâncias emocionais duríssimas

e comoventes são claras. É óbvio que estamos diante de um canto

do povo que clama por justiça por estar submetido à corrupção de

oportunistas (personiicados na maldição e posterior caída social e

familiar do protagonista ao longo do ilme). A música aqui serve para

nos preparar (se é que é possível) para a terrível cena que encerra

o ilme e que, por sua sinceridade, dor e dureza, tanto visual comomoral, pede ao espectador que se mostre crítico, não se conforme e

por ventura decida reclamar seus direitos com orgulho.

Com relação à Ceddo (1976), a maioria das suas sequências estão

acompanhadas pelo afro- jazz  de Manu Dibango, enquanto as cenas

dos escravos têm música gospel do The Godspells. É deste modo que

7 Note-se o traço fortemente ocidentalizado do nome do grupo musical em cena.

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116 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

Sembene amplia tanto a localização histórica quanto geográica da

história que evoca, por um lado, a realidade da época colonial como,

por outro, a situação do povo negro na diáspora. Conecta o passado

ao presente e a música resulta fundamental nesta exploração a-his-

tórica. Num determinado momento, o violão de Dibango se junta ao

 xalam (espécie de alaúde africano) do griô, unindo culturas, tradi-

ções e realidades que o espectador conecta, ampliando sua compre-

ensão da história narrada.

Concretamente, na primeira cena de Ceddo, esta música afro- jazz  

nos remete a um passado e um presente que, em contraponto com as

imagens, se carrega de sentido, conseguindo um maior alcance co-

municativo (que outros diretores mais jovens desenvolverão, comoveremos). Essa música que bebe da tradição diretamente ligada à

imagem de uma jovem de torso nu poderia ser parte de um ilme

etnográico da linha da escola europeia na África antes da indepen-

dência, que ligava ritmo com negritude em uma simpliicação racista

consciente. Nada mais afastado da realidade, conforme veremos na

medida em que o ilme vai avançando: os códigos de leitura esta-

belecidos se quebram, a crítica aos diversos poderes que aparecem

(cristianismo, islamismo) são duras e a única maneira de enfrentá--los está em uma mulher, uma princesa que, diante do olhar surpreso

dos homens que não esperam nada do seu gênero, veem como ela é

a única que poderá resolver o conlito lançando-se contra a injustiça.

É graças a esta utilização da música de maneira crítica e expressiva

que se chega muito mais além do que as meras (e muito bem sucedi-

das) imagens permitem por si mesmas.

O USO CONSCIENTE DO SILÊNCIO, DA MÚSICAE DA PALAVRA: ABDERRAHMANE SISSAKOMAURITANIA, 1961

Formado na famosa escola de cinematograia VGIK de Moscou,

Sissako é um caso único no panorama mundial e arquetípico do cine-

asta exilado. Diícil de classiicar, representa um contraponto muito

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 117

interessante ao que foi visto até agora. Seu uso artístico e profun-

damente estético da música se faz presente desde seus primeiros

curtas na Rússia, como Octubre (1992), em que nos oferece um re-

lato poético e duro da separação de uma jovem russa grávida do seu

amante africano que, em muito pouco tempo, tem de voltar ao seu

país natal. Já neste trabalho inicial se serve da música para pontuar a

separação entre os dois mundos dos protagonistas (que nem o amor

é capaz de manter unidos) graças às obras clássicas ocidentais que

ele toca ao piano no apartamento da sua namorada. Essas interpre-

tações musicais não servem senão para torná-lo visível e fazer com

que os vizinhos mandem a polícia atrás dele. O jovem africano toca

com emoção e muita destreza as obras clássicas do ocidente, o quenão é suiciente para ser considerado como tal, ideia que reaparece

com maior clareza em outra cena através das imagens do ilme Le

Maure de Venise (1991), do realizador, bailarino e coreografo geor-

giano Vahtang Tchaboukiani, em uma tela de televisão. Neste caso, a

namorada russa e uma amiga observam uma cena onde o estereóti-

po da tradição do baile africano como exótico demonstra a reducio-

nista visão ocidental.

Apesar da forte carga de lirismo das notas do piano que dotama ação de uma forte carga de emotividade, a cena mais comovente é

a do encontro do jovem com uma compatriota no metrô, momento

no qual os dois jovens desconhecidos são incapazes de não se deixar

levar pelo som de uns tambores. É então que a verdadeira e natural

comunhão, ainda que efêmera e fugaz, tem sucesso. Se com a sua

namorada o diálogo havia sido impossível, apesar de ter uma base

cultural comum (a ocidental) que o piano demonstrava, com a jovem

africana bastou o ritmo e o movimento de uns tambores para con-seguir o entendimento através da dança. As barreiras se difundiram

em uma formação e cultura comum que, por sua vez, continuam se

mantendo irmes e estáticas com o ocidente.

Sissako, já no formato de longa-metragem, realizará anos depois

duas obras de icção nas quais presta homenagem a seu pai (de Mali)

e a sua mãe (mauritana) valendo-se da música de uma maneira lí-

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des como a africana que, no entanto, não podem fazer nada a não

ser seguir o que acontece para além das suas fronteiras. A música

clássica ocidental se carrega de sentido e de tristeza porque, de todo

modo, continua sendo capaz de nos emocionar e de nos fazer reletir

sobre a terrível realidade que os habitantes de Sokolo estão sofren-

do. O papel que o cinema deve ter no seu continente de origem é um

tema fundamental para Sissako, e os instrumentos cinematográicos

à sua disposição se encarregam, a todo o momento, de corroborá-lo.

O ilme seguinte do diretor é dedicado a sua mãe: Heremakono 

(2002). Só me deterei em uma cena desse belíssimo e complicado il-

me, feito de milhares de relatos tecidos como uma charmosa colcha

de retalhos. A cena à qual me reiro é aquela onde uma mulher idosa(mentora, talvez mãe ou avó) ensina uma menina a tocar a kora (um

instrumento do ocidente africano que tem forma de harpa), esperan-

do que ela aprenda algo de música tradicional, repetindo as estrofes

que vai cantando. A aprendiz de  griotte  utiliza o falsete (para nós

algo proibido, mas admitida em boa parte da África do norte) (PA-

VIS, 1996. p. 148), confunde-se, tropeça e, apesar dos muitos erros,

transmite uma profundidade na recitação e entonação que nos co-

move e faz reletir em cada sílaba. Não é necessária a tradução, comoexplicará o autor à raiz de um uso similar deste elemento no seu úl-

timo ilme. A cena, além disso, funciona em paralelo (inversamente)

com a aprendizagem que outros dois protagonistas fazem da língua

do lugar. Neste caso, trata-se de um jovem que chegou à Mauritânia

(o país materno) de Mali (notem-se os elementos autobiográicos)

para tentar emigrar para a Europa. Esse “estar de passagem” se faz

evidente na falta de interesse e necessidade de se virar com os recur-

sos necessários para se comunicar na língua autóctone. O jovem já éum completo estrangeiro (um estranho) antes de chegar ao seu des-

tino europeu. Desse modo, a realidade dos que icam em relação aos

que buscarão a solução para suas complicadas existências indo ao

“paraíso prometido” se estrutura ao opor a sobrevivência da música

tradicional (a jovem  griotte) à falta de interesse do emigrante em

outros dos aspectos-chave na deinição de uma identidade: a pró-

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pria língua. A sensibilidade e enorme carga expressiva nas histórias

que se intercalam em um ilme que, na verdade, são muitos, faz com

que o público prenda a respiração diante da constante surpresa dos

lentos e pausados acontecimentos que se produzem diante de si. As

ocasiões nas quais a música faz presença têm um valor lírico elevado

e relexivo capaz de irradiar sentido em sua contenção premeditada,

pois não estamos senão diante de estrofes musicais de um ilme que

é, na verdade, um belíssimo poema.

Seu último trabalho – Bamako  (2006) – é uma obra de diícil

classiicação por sua aproximação entre o documental e o iccional,

tendência, por outro lado, marcada em toda a sua produção. O ilme

nos coloca diante de um julgamento do FMI e do Banco Mundial pelopovo africano no pátio do seu pai em Bamako, rodeado e atravessado

por múltiplas histórias da vida cotidiana do lugar. A consciência que

o diretor tem da palavra, da música e do silêncio se desprende das

suas próprias palavras, mas, sobretudo da sua realização. Ele mesmo

comenta que,

O silêncio é uma parte da palavra. Os discursos são pontuadospor pausas e silêncios e faz com que o que é dito seja mais aces-

sível. O silêncio no cinema tem uma função dramática: na rela-ção entre o que se diz em um ilme e o seu público. O sentidodo silêncio no ilme é convidar o outro a imaginar algo mais,mas também deixar o ilme digerir o que está acontecendo ali. (informação verbal)8

Não nos passa despercebida a concepção musical que Sissako

(informação verbal)9  tem da linguagem cinematográica: uma lin-

guagem feita de pausas e onde o ritmo é o seu sopro de vida. As ce-

nas musicais aparecem de novo para pontuar o ilme, e seguindo emparte a airmação do diretor da necessidade de encontrar silêncios e

pausas em um ilme muito carregado de palavras.

8 Apresentação de Abderrahmane Sissako no 55th Robert Flaherty Film, na Universidade de Col-gate, entre 26 e 29 de junho de 2009. Anotações e tradução da autora.

9 Apresentação de Abderrahmane Sissako no 55th Robert Flaherty Film, na Universidade de Col-gate, entre 26 e 29 de junho de 2009. Anotações e tradução da autora.

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Se a música aparece em momentos especíicos, são estes que se

encarregam de organizar o ilme. A garota protagonista toca em um

bar à noite a mesma música contemporânea e cheia de sentimen-

to no início e no inal do ilme. Em sua primeira aparição ainda não

conhecemos a história (da jovem e do julgamento diante da situa-

ção africana frente ao domínio das multinacionais e outros poderes

mundiais), só escutamos e vemos uma bela melodia perfeitamente

interpretada por uma adorável jovem. Nossa reação diante da mes-

ma música, ao se aproximar o inal do ilme, muda, e às lágrimas da

intérprete se unem as nossas: sabemos e vivemos a horrível situação

que a manutenção da dívida externa por parte do FMI e do Banco

Mundial causa na África, e nos aproximamos ao duríssimo deses-pero dos seus habitantes. Do mesmo modo, a aparição de um per-

sonagem que desde o princípio “quer falar”, mas só o consegue no

inal, é fundamental e marca outro momento crucial do ilme. Ainda

que pudesse parecer que estamos diante de uma espécie de griô, na

verdade estamos diante de um famoso músico e cantor do ociden-

te africano: Zegué Bamba. Quando, depois de haver tentado em vão

desde o início do julgamento, lhe deixam inalmente testemunhar,

deixa a todos os presentes sem palavras, assim como àqueles queescutam por ampliicadores situados no exterior. A decisão de não

dublar essa parte é totalmente acertada: não é necessário entender

o que diz esse senhor para entender seu desespero; estamos diante

da voz da verdade, do povo e da luta contra a injustiça que se fez pre-

sente através da música tradicional em um mundo que dá as costas

ao povo africano. Evitando razões práticas na hora de decidir mon-

tar três minutos dos vinte segundos que Bamba cantou, estaremos

de acordo com as palavras do próprio autor de que se trata de “umcanto do coração”. Graças à música, à forte personalidade do músico

e aos demais instrumentos ílmicos dos quais se serve, Sissako (in-

formação verbal)10 denuncia da maneira mais direta e dura possível

os “males endêmicos” que a África sofre à raiz do colonialismo feroz

10  Apresentação de Abderrahmane Sissako no 55th Robert Flaherty Film, na Universidade de Col-gate, entre 26 e 29 de junho de 2009. Anotações e tradução da autora.

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122 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

suplantado pela neocolonização do mundo globalizado. Em Bamako,

sem fazer interlúdios musicais tão prolongados quanto em ilmes

anteriores, a força da palavra e da melodia que as breves aparições

de personagens transmitem está carregada de valor comunicativo e

emotivo, sem esquecer nunca a sua pertinência a uma determinada

tradição. Isto não signiica que, necessariamente, todo o tradicional

passe por cima do moderno, pelo contrário: em certas ocasiões, de-

terminadas formas rituais de expressão musical e de dança são as

mais indicadas para criticar conteúdos obsoletos que se perpetua-

ram ao longo dos anos e para os quais têm-se que lutar e enfrentar.

E, em outras ocasiões, servem ao espírito tradicional da vida africana

antes da colonização e da globalização que impediu e impede queesses povos prosperem (leia-se dívida externa, exploração abusiva

dos seus cidadãos, engano no uso de determinadas sementes exter-

minadoras e geneticamente tratadas para acabar sistematicamente

com as colheitas autóctones e ecologicamente sustentáveis etc.). O

objetivo último deste ilme reside em outorgar a palavra ao silen-

ciado continente africano, somente viabilizado pelos mass media de

uma maneira parcial e paternalista, mas carente de voz real. A ri-

queza de manifestações artísticas e culturais e o profundo processode mudança no qual a África está imersa conseguem transmitir-se

através do uso consciente do dispositivo cinematográico em todos

os ilmes deste autor.

USAR A MÚSICA SEM SE ESQUECER DA CRÍTICA: MOUSSASENÉ ABSA SENEGAL, 1958

Neste caso, também nos encontramos com um diretor considera-

do da terceira geração ou da geração pós-independência: formados

fora do continente africano e que viveram em um país independente

com problemas e realidades diferentes aos dos pioneiros, como Sem-

bene e Mambety. Se alguma coisa caracteriza o cineasta senegalês

Moussa Sené Absa é trabalhar diretamente com a música como um

dos instrumentos mais importantes dos quais dispõe. Poderíamos

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 123

chamá-lo de artista “completo” à maneira renascentista, pois pinta,

escreve, dirige e é músico. Desde sua estreia em 1988, não parou

de fazer ilmes usando qualquer formato à sua disposição: desde o

clássico 35mm até o vídeo, passando pelo 16mm – servindo-se deles

para ilmar curtas, documentários e longas de icção. O uso que faz

da música desde os seus primeiros ilmes é, tal como veremos, parte

fundamental da sua poética cinematográica.

Em seu primeiro longa-metragem, de 1993, Ça twiste à Popon-

 guine (um povoado convertido em bairro periférico de Dakar, à beira

do mar), utiliza de maneira magistral o vídeo para traçar um “olhar

nostálgico da música estrangeira (pop francês e R&B americano)

e das rivalidades adolescentes dos anos 1960 em um povoado sene-galês de pescadores.” (ARMES, 2006, p. 136-137) O tema é, portanto,

a própria música, neste caso a ocidental como metáfora da fascina-

ção que a Europa (através da França e das suas estrelas, fundamen-

talmente) produzia na juventude senegalesa de então, e à qual ele

pertencia.

Em suas obras seguintes se torna mais relexivo, e tanto em Ta-

bleau Ferraille (1997) como em Ainsi meurent les anges (2001) – em

vídeo de novo e com duração de 60 minutos – estamos diante deexercícios poéticos e fortemente expressivos onde analisa a sua pró-

pria vida, o poder do cinema e das mudanças e realidades do Se-

negal das últimas décadas. Ainda que a voz do próprio diretor seja

muitas vezes o elemento mais importante da trilha sonora, a mú-

sica algumas vezes também tem forte carga emocional, como é o

caso das canções de pescadores que – dirigidos pelo próprio autor

no seu primeiro longa em 35mm Tableau Ferraille – nos adverte dos

perigos que ocorrem de acordo com o tempo em que o ilme vai sedesenrolando. Estes excursus explicativos de grande beleza poética

são um dos grandes achados de Sené Absa, algo que se repetirá em

seu segundo longa Madame Brouette (2002), ilme no qual a música

volta a ter um papel fundamental sobre o que não deixará de inves-

tigar na sua mais recente obra, Teranga Blues (2005). No primeiro

ilme estamos quase que diante de um musical onde as intervenções

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124 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

do grupo de griôs pontuam a ação (de modo similar aos pescado-

res da sua obra anterior), enquanto que a música  pop  africana no

bar onde muitas das ações se desenvolvem, e canções populares em

outras cenas servem de complemento a uma riquíssima trilha sono-

ra. Torna-se necessário deter-se no momento que antecede o clímax

do ilme: a loucura esmagadora da celebração de um carnaval em

que mulheres e homens trocam de papéis em uma transgressora e

libertadora festa de travestidos. A música é o que nos guia de um

lugar a outro, que nos acompanha e nos mostra onde está a ação que

desencadeará o drama. Pois nesta história de amor com inal trágico

(ainda que o inal aconteça no início, já que o ilme não é senão um

grande lashback  articulado em torno do terrível assassinato passio-nal anunciado), a ação é tudo menos linear e se interrompe por vezes

com a investigação policial e o riquíssimo aporte dos cantos dos gri-

ôs e griottes. Um belo exercício musical baseado na rítmica, no papel

da música tradicional, e que não deixa de mostrar a realidade atual

de uma música mestiça com inluências diversas e com sua própria

razão de ser em cada momento.

Quanto ao segundo longa-metragem em questão, Teranga Blues,

volta a dar à música um papel principal. Não somente usará nova-mente o griô, que explica e pontua, mas também um grupo de mulhe-

res com signiicado análogo ao visto em suas obras anteriores – reu-

nidas ao redor da mãe do protagonista, tratam de interceder por ele

para que seu destino não seja trágico. No entanto, o próprio protago-

nista pertence a uma casta de músicos, e sua verdadeira vocação não

é outra senão cantar. Quando deportado da França para o seu país,

vê-se obrigado a se converter em gangster  para manter sua família,

e acabará morrendo por culpa da rede de mentiras, corrupção e vio-lência em que se vê imerso. A música tradicional como metáfora de

uma vida tranquila, artística e honesta, frente à riqueza fácil de uma

existência cheia de complicações e delinquência parece ser a men-

sagem inal de Sené Absa. Ligada a ela encontra-se a importância de

manter certas tradições das quais a música é expoente, ainda que

tentando, dentro do possível, não se desligar totalmente da tradição

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 125

de uma realidade contemporânea cheia de desaios e possibilidades.

O caminho não é fácil nem rápido, mas gratiicante e profundamente

respeitoso com os demais e consigo mesmo.

Vemos, portanto, como Sené Absa é consciente dos múltiplos

usos que a música oferece e do valor fundamental que tem na vida

do seu país, tanto em sua vinculação com a tradição, quanto nas suas

possibilidades inatas para fazer frente a uma vida corrupta e vazia

no que há de mais humano. Além disso, como diretor que é, investiga

em sua práxis ílmica as possibilidades expressivas e comunicativas

da música neste meio, alcançando uma simbiose quase perfeita en-

tre forma e conteúdo neste aspecto. É provável que os realizadores

que surgiram depois dele continuem se aprofundando neste campo,do qual não parece haver esgotado nenhuma das suas opções, mas

estar abrindo continuamente novas vias de experimentação.

CONCLUSÃO

À guisa de conclusão e tendo em mente a sequência inicial anali-

sada do ilme em homenagem ao pai de Sissako (ao meu ver um dos

fragmentos mais belos e carregados de sentido do cinema africano

até o momento), quero lembrar as diferentes possibilidades do uso

da música no cinema africano. Como vimos, a música, desde as ori-

gens do cinema africano, formou parte de um discurso (auto)cons-

ciente da realidade africana e dos seus problemas. Seu uso nunca foi

gratuito e vai muito além dos usos tradicionais do cinema ocidental

menos experimental de pontuação dramática; como evocação de um

espaço, de criação de uma relação emocional especial com o especta-

dor, contrapondo a imagem quase sempre dominadora; como acom-

panhante da velocidade sem im das ações que se sucedem sem nos

dar tempo para pensar. Na música do cinema africano enfatiza-se

seu uso cultural, poético e artístico em relação à tradição oral, como

vimos; recorre-se a iguras como o griô para conectar-se a uma tra-

dição milenar e identitária; é empregada como crítica à contradição

simplista que se costuma estabelecer entre tradição e modernidade

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126 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

com a intenção de fazer jus a uma pretensa, purista e perigosa (em

sua busca por uma “essência pura”) “volta às fontes originais”; inter-

cala-se à narração como parte integrante dela e como o recurso que

pontua momentos essenciais da narrativa; evocam-se espaços onde

a temporalidade se dilui e se amplia, acomodando múltiplas inter-

pretações e oferecendo um espaço de relexão; demonstra-se como

o urbano vai ganhando espaço em todos os aspectos da vida africana

com seu forte contato com um ocidente que é capaz de domesticar e

atualizar através da música etc.

Com estas palavras e com os exemplos analisados, acredito ter

demonstrado a riqueza da música africana em determinados ilmes

e autores, e a utilidade de sua análise para entender o que represen-ta no “quase” desconhecido continente africano. Através do seu uso

no cinema adentramos no seu componente artístico, mas não menos

na vida cotidiana dos seus povos, fugindo de reducionismos e luga-

res comuns limitadores tão queridos por certos críticos ocidentais.

Para concluir, é suiciente pensar outra vez no magistral diálogo en-

tre música, silêncio e palavra em La vie sur terre e “nossas” palavras

sobrarão...

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 127

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128 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 129

O FILME NHA FALAmusical guineense de múltiplos trânsitos

Jusciele Conceição Almeida de OliveiraMaria de Fátima Maia Ribeiro

INTRODUÇÃO

Nestes poucos 50 anos, o cinema novo africano nasce com o in-

tuito de mostrar a visão dos temas culturais, políticos e sociais atuaisdos vários países africanos envolvidos, em contraposição aos temas

estereotipados, acerca do continente africano, não raro apresenta-

do como tribal, aidético e miserável, (re)produzidos por cineastas

outros pelo mundo afora. Trata-se de uma mudança com múltiplos

desdobramentos. Para Ferid Boughedir (2007, p. 37), os cinemas

africanos reletem mudanças culturais e sociais que vêm ocorrendo

nas nações africanas como consequência de reviravoltas políticas e

econômicas, que aligem constantemente o continente. Isso quer di-

zer que os cinemas africanos (no plural, para marcar a diversidade

cultural implicada) mostram em suas produções os temas, proble-

mas, questões e relexões de momentos recentes de vários países do

continente, como também a mudança de postura dos investidores,

inclusive estrangeiros, que passaram a investir em cinema produzi-

do por africanos.

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130 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

Cinemas africanos, neste trabalho, consiste em expressão que

designa produção cinematográica dirigida precipuamente por afri-

canos e comprometida com temáticas africanas, podendo ou não en-

volver dispositivos de produção exclusivamente africanos. Com isso,

chamam à atenção o roteiro e o argumento, estreitamente ligados a

igura do diretor, em cena, de diferentes formas articulando-se com

o suporte inanceiro da produção, que, contemporaneamente, cada

vez mais desloca pessoas isoladas, em favor de empresas transna-

cionais e da coparticipação internacional. A questão central desses

cinemas é o que Ngugi Wa Thiong’o (2007) chama de “descolonizar

a mente”, a partir das imagens do mundo africano levadas ao espec-

tador por quem produz os ilmes, evitando as imagens e remissõesdistorcidas.

[...] o psicológico, o aspecto do olhar, das imagens, é o mais im-portante. Quando não se pode ver claramente, quando a me-mória do que foi e do que poderia ter sido foi completamentedistorcida, então não sabemos o que fazer para nos libertarmosem todos os outros aspectos [...] Se nós vivemos em uma situa -ção em que a imagem do mundo é ela própria colonizada, entãoica diícil percebermos a nós mesmos a não ser que lutemos

para descolonizar essa imagem. (THIONG’O, 2007, p. 30)

Concebendo reverter a colonização mental por meio de luta,

Thiong’o (2007) coloca em causa descolonização e libertação cultu-

rais, em termos das possibilidades de percepção de si e da repre-

sentação associada à memória e a historicidade. Thiong’o (2007)

examina as possibilidades dos temas de ilmes africanos e discute

a importância da tecnologia, assim como o cuidado que o cineasta

deve ter para não acabar reproduzindo a ideia de uma África de pes-soas de idade e de feitiçarias ou mística, estereótipos outros que in-

sistem em aderir ao nome e aos territórios:

A escravidão, colonialismo, neocolonialismo, racismo e ditadu-ras são partes inseparáveis da realidade africana e não pode-mos nunca ser seduzidos pelos nossos inanciadores a agirmoscomo se a única realidade na África fosse a de nossos anciãos

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 131

sentados sob um baobá exsudando sabedoria, ou elementos so-brenaturais da vida africana. (THIONG’O, 2007, p. 30)

O aparato tecnológico do cinema, estreitamente ligado a aportes

econômicos e inanceiros modernos, atrela-se, portanto, a questõespolíticas e demandas sociais, históricas e culturais das sociedades em

questão continuamente desaiadas por relações de poder. Thiong’o

(2007) acentua as diferenças marcantes do universo cultural afri-

cano em termos de lógica e de imaginário, que ganham contornos

identitários, em face do trabalho, em relação direta com o espaço,

as sociedades, os países, os povos e sujeitos envolvidos. A tecnolo-

gia conectada a modernidade, hoje, encontra no cinema auxiliar po-

deroso, que traz consigo mecanismos de articulação e interlocuçãoculturais entre lugares globais, estrangeiros e locais, embaralhando

categorias, que não mais podem ser tratadas em separado, a exem-

plo de africanidades e ocidentalidades, ou instâncias do público e do

privado, contextualizando-as:

O uso da tecnologia, neste caso da câmera, pode tornar maispoderosa a autoridade ou a comunidade, a vida privada ou avida pública. O cineasta africano não pode se dar ao luxo deusar a tecnologia para escapar ao domínio do pessoal, isoladode sua interação com o público. As experiências pessoais de-vem também ser vistas no contexto histórico em que se desen-volvem. (THIONG’O, 2007, p. 29)

Já Mahomed Bamba (2007) trabalhará o aporte tecnológico do

cinema africano contemporâneo sob o ponto de vista de trânsitos

culturais em bases eminentemente empresariais. Segundo ele, foi a

partir dos anos 1970 que os cinemas africanos francófonos torna-

ram-se de vez ilhos da cooperação cultural que a França vem man-

tendo com as suas ex-colônias. Longe de ser esse um fato inconteste,

muitas vozes denunciam os efeitos perversos da política de ajuda

francesa nas cinematograias africanas. (BAMBA, 2007, p. 79) Esse

patrocínio europeu propicia, mais uma vez, dependência, agora cul-

tural, que inluencia a escolha dos temas dos ilmes africanos e os

dispositivos para a sua circulação e visibilidade. No caso, estão em

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132 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

ação as discussões sobre a colonialidade e os seus efeitos sobre o

presente, ainda pontuados por resquícios, vestígios ou rastros, sob

as formas do neocolonialismo, neoimperialismo ou pós-colonialida-

de das relações de força presente.

Outra questão diretamente relacionada ao cinema africano con-

siste na precariedade de distribuição dos ilmes, não só no continen-

te africano, como nos demais, onde quase sempre acontece que os

poucos ou únicos locais de exibição são os festivais, reforçando os

problemas, dentre os quais a dependência europeia, que transparece

desde os aparatos de produção:

O grande entrave do cinema africano é a falta de distribuição

suiciente na África. A existência atual desse cinema é muitodependente da Europa, tanto de apoio inanceiro como da dis-tribuição em festivais e exibição em televisão. Essa dependên-cia da Europa (e da França, em particular, para os ilmes faladosem francês) vem resultando, de forma consciente ou não, emcineastas que modelam os seus ilmes de acordo com as ex-pectativas dos festivais de cinema franceses e europeus, assimcomo para o seu público. (BOUGHEDIR, 2007, p. 53)

Do “apoio inanceiro” nas etapas de produção aos sistemas es-

tabelecidos para a circulação chama atenção o poder atribuído a

dispositivos europeus, a ponto de regular a própria produção cine-

matográica adequando-a às expectativas de mercado e de recepção.

Segundo o mesmo Boughedir (2007), o ano de 1987 foi muito impor-

tante para a história do cinema africano, pois pela primeira vez um

ilme da África negra foi inalmente aceito na competição oicial do

Festival de Cannes. O ilme foi Yeelen (The light), do cineasta malinês

Souleymane Cissé, cujo ilme anterior Fiyé (The Wind) já havia sidoapresentado na mostra Un certain regard   (Ucrânia). (BOUGHEDIR,

2007, p. 52)

Todavia, para Mahomed Bamba (2007, p. 86), maior do que a dis-

tribuição, o grande entrave dos festivais de ilmes africanos é o crité-

rio de diversidade, que não parece ser aplicado, pois da forma como

os ilmes são apresentados advém a equivocada impressão – para

não dizer a sugestão talvez calculada – de que os cineastas africanos

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 133

participam de um mesmo movimento cinematográico oriundo de

um mesmo e uno país, compartilham das mesmas preocupações po-

líticas, temáticas e estéticas.

No centro desse entrave, aparece o mercado, que tenta – e nor-

malmente consegue – rotular o cinema africano, “[...] de modo que

sua ideologia esteja em conformidade com a das agências de viagem,

que nos levam longe, em uma viagem escapista e sem culpa”. (BOU-

GHEDIR, 2007, p. 55) Essas agências de viagem, que veiculam propa-

gandas, com imagens da África, exótica, pitoresca, tribal, primitiva,

com os seus passeios-safáris ao ar livre, buscam atenuar a culpa do

branco com o que izeram de África e dos povos africanos.

Segundo Bamba (2007), o problema da circulação dos ilmesafricanos é amenizado através dos festivais, que perseguem os desa-

ios de “contornar o insolúvel problema de distribuição e circulação

dos ilmes africanos e promovê-los junto às populações ocidentais”

(BAMBA, 2007, p. 83), como o  African Film Festival   (EUA),  African

Diaspora Film Festival  (EUA), o Afrika Fimfestival  (Bélgica) e o Festi-

val de Cannes (França).

Mesmo assim, os ilmes icam restritos a um público intelectual

e acadêmico europeu ou americano, o que pode acarretar também alimitação dos temas, para evitar o estranhamento dos espectadores,

que já criaram suas expectativas e estereótipos da África e dos afri-

canos. Tal fato exclui também os espectadores africanos, pois estes

não assistem a ilmes produzidos por africanos, porque as poucas

salas de cinema existentes no continente exibem principalmente il-

mes norte-americanos.

Para Manthia Diawara (2007), alguns ilmes africanos tratam do

que ele denominou “afro-pessimismo”, pois retratam temas comocrianças desassistidas na África, a disseminação da AIDS, a desvalo-

rização da moeda corrente da CFA, a mutilação genital feminina e ou-

tras formas de opressão à mulher na África, a corrupção e a alienação

dos africanos nas suas próprias tradições, o racismo e os danos ao

meio-ambiente; (DIAWARA, 2007, p. 67) temas recorrentes no ima-

ginário dos espectadores ocidentais e ocidentalizados. Dos cânones

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134 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

e paradigmas ocidentais em voga, emerge com força a ideia de uma

Europa com a sua hegemonia atualizada a atravessar o Atlântico e in-

corporar os discursos culturais e históricos norte-americanos – aqui

conjuntamente tratados sob o termo “europeu”.

Neste sentido, a crítica europeia constrói suas ideias, ideais e es-

tereótipos sobre os temas e a estética dos ilmes africanos, que con-

tinuam retratando a “[...] Leitura ideológica da crítica eurocêntrica

[que] ora cria novos preconceitos, ora não dá mais conta das novi-

dades dos cinemas africanos”. (BAMBA, 2007, p. 84) Ainda segun-

do Bamba, a crítica ocidental reduz 54 países a um único, “África”,

sem se preocupar com as particularidades e diversidades estéticas

de cada país e de cada etnia: “A leitura da crítica ocidental é redu-cionista e generalizadora. O cinema africano é visto como um todo,

independente das idiossincrasias que podem ser encontradas nos

trabalhos dos cineastas africanos em termos de estilo, gênero e te-

mática”. (BAMBA, 2007, p. 85)

Essa visão crítica reducionista do cinema africano está mundial-

mente, em contexto outro, sendo disseminada e difundida, com apoio

na mídia europeia, através da televisão, internet e rádio, a exemplo

da divulgação da Copa do Mundo de Futebol de 2010, que aconteceuna África do Sul, um país africano, mas foi tratada nas chamadas, pro-

pagandas e reportagens como simplesmente “Copa da África”, não a

Copa de um dos seus países, em franco contraponto com as vinhetas

anteriores à volta das Olimpíadas de Pequim (China) ou de Atenas

(Grécia), alheias à continentalização esquemática empreendida.

O CINEMA GUINEENSE

Segundo Filomena Embaló (2010), foi preciso a Guiné-Bissau

existir como Estado independente para que a Sétima Arte passasse a

integrar o patrimônio cultural nacional. Com efeito, foi já na segun-

da metade da década de 1970 que surgiram as primeiras produções

cinematográicas nacionais pelas câmaras dos realizadores guineen-

ses Sana Na N’Hada e Flora Gomes. As obras pioneiras foram os cur-

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 135

tas-metragens O regresso de Cabral (1976) e Anos no oça luta (1976),

duas correalizações desses dois cineastas. O longa-metragem surgiu

mais tarde, em 1987, com a belíssima e muito premiada obra de Flo-

ra Gomes Mortu Nega.

Apesar de um cenário caótico de apoio ao cinema nacional, este

desenvolveu-se, na Guiné-Bissau graças à persistência e vontade pró-

pria de Flora Gomes e de Sana Na N’Hada, que num verdadeiro “per-

curso de combatente”1 conseguiram reunir meios e condições para

se airmarem proissionalmente, tanto em âmbito interno quanto

internacional, promovendo assim uma cinematograia nacional que

reúne 15 realizações de que muito nos podemos orgulhar. (EMBALÓ,

2010) Devemos notar que, não havendo atores proissionais de cine-ma, os diretores e produtores tiveram que recorrer a amadores, que,

no entanto, souberam estar à altura do desaio que se lhes lançava. A

premiação de Bia Gomes, por Mortu Nega em dois festivais (Menção

Especial para a Melhor Atriz no Festival de Ouagadougou, em 1989,

e o Prêmio de Melhor Atriz no Festival Internacional de Cartago, em

1989) e de Maysa Marta, com Udju azul di Yonta (1991), também de

Flora Gomes, Prêmio da Melhor Atriz no Festival de Ouagadougou

(Burkina Fasso), em 1992, são bem a prova do reconhecimento daatuação destas duas atrizes nacionais, assim como da obra de Gomes

e da receptividade do cinema guineense.

O CINEASTA FLORA GOMES

O cineasta Flora Gomes nasceu em Cadique, na Guiné-Bissau e

estudou Cinema em Cuba, no Instituto Cubano de Artes e IndústriaCinematográica, e no Senegal, sob orientação de um dos mestres do

cinema africano, Paulino Soumarou-Vieyra. Trabalhou como repór-

ter para o Ministério da Informação por três anos (1974-1977), o

que deve ter inluenciado em sua produção cinematográica, princi-

1 Termo utilizado pela escritora Filomena Embaló, que está relacionado com a luta de libertaçãoguineense.

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136 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

palmente, com relação ao fator histórico e à Guerra de Independên-

cia da Guiné-Bissau, presentes no ilme Mortu Nega.

Flora Gomes, após iniciar sua carreira ao lado de Sana Na N’Hada

correalizando com este dois curtas-metragens de 1976, realizou ain-

da os médias-metragens A reconstrução (1977), com Sérgio Pina, e

N’Trudu (1979). Em 1987, Flora Gomes lança-se com sucesso na rea-

lização de longas-metragens. Com Mortu Nega, o primeiro longa-me-

tragem do cinema bissau-guineense, o realizador iniciou-se na cena

internacional com a premiação desse ilme em três festivais naquele

mesmo ano: duas Menções Especiais no prestigiado Festival Inter-

nacional de Veneza, Menção Especial para a Melhor Atriz no Festival

de Ouagadougou e o Prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cartago,para a atriz estreante que brilhantemente desempenha o papel da

protagonista no ilme.

Os olhos azuis de Yonta, o seu segundo longa-metragem, realizado

em 1991, é o primeiro ilme de um realizador bissau-guineense a

participar na seleção oicial do Festival de Cannes em 1992, na seção

Un Certain Regard . Nesse mesmo ano, o ilme é premiado em seis

outros festivais, além do prêmio de melhor atriz, já referido acima.

Em 1994 e 1995 Flora Gomes realizou dois curtas-metragens,respectivamente, A Máscara e A identiicação de um país. O seu ter-

ceiro longa-metragem, Po de sangui, é realizado em 1996 e também

participou da competição oicial do Festival de Cannes desse mesmo

ano, bem como do Festival de Cartago, onde recebeu o Tanit  de Prata.

O último longa-metragem de Flora Gomes levado ao público é o

ilme Nha fala (2002), a primeira comédia musical do cinema africa-

no, realizado em 2002. Convidado a participar no Mercado do Filme

do Festival de Cannes, o ilme recebeu a Bolsa Francófona de Pro-moção Internacional, que recompensa as obras de realizadores do

Sul. Tal como os ilmes precedentes do realizador, Nha Fala (2002)

foi premiado em vários outros festivais em que participou. O ilme,

classiicado como comédia musical, ocorre da junção desses dois

gêneros cinematográicos. O musical é um gênero ílmico no qual a

narrativa se apoia sobre uma sequência de músicas coreografadas,

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 137

utilizando música, canções e coreograia como forma de narrativa,

predominante ou exclusivamente, acrescido do gênero comédia, que

dá o tom do humor nas cenas.

Em 2007, Flora Gomes e a jornalista-realizadora portuguesa

Diana Andringa correalizaram As duas faces da guerra, um ilme do-

cumentário sobre a guerra colonial na Guiné-Bissau e que foi apre-

sentado na 2ª Mostra do Documentário Português, realizada de 15 a

24 de Fevereiro de 2008, em Lisboa. As futuras realizações de Flora

Gomes são o drama República das crianças, que gravou em Moçam-

bique e tem previsão de lançamento para 2012, e uma icção sobre

Amilcar Cabral.

Com a sua obra cinematográica, Flora Gomes tornou-se o reali-zador de referência da cinematograia guineense, conquistando a es-

tima e o reconhecimento internacionais, por isso, em 1996, foi con-

decorado com o grau de Chevalier des Arts et des Lettres da França,

em 1994, com a Medalha de Mérito da Cultura da Tunísia. Em 1994

foi Membro do Júri do Festival de Cartago, e em 2000 integrou a mos-

tra 6 Cineastas Africanos organizada pelo Ministério dos Negócios

Estrangeiros francês, no quadro do Festival de Cannes. Nesse mesmo

ano, participou da Conferência sobre a Globalização, Regionalização,Cultura e Identidade nos Pequenos Países, organizada pela Universi-

dade de Tufts (EUA).

NHA FALA 2002: PRIMEIRA COMÉDIA MUSICAL AFRICANA

O ilme, cujo título o cineasta Flora Gomes diz signiicar “ao mes-

mo tempo, ‘minha voz’, ‘meu destino’, ‘minha vida’ e ‘meu caminho”(RIBEIRO, 2010), recebeu múltiplos apoios e inanciamentos. É uma

coprodução entre Fado Filmes  (Portugal), Les ilms de mai (França)

e Samsa ilm (Luxemburgo), apoiado pela Comissão Europeia (Fun-

do Europeu de Desenvolvimento), Fundo Eurimages do Conselho da

Europa, MC/ICAM – Instituto do Cinema Audiovisual e Multimédia,

Fonds National de Soutien – À la production audiovisuelle du Lu-

xembourg, Ministère Français de La Culture et de La Communica-

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138 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

tion – CNC, Ministère des Affaires Étrangères, Founds Francophone de

Production Audiovisuelle du Sud  ( Agence Intergouvernementale de la

Francophonie e Cirtef ), Ministère des Affaires Étrangères  (ADCSud),

Founds D’action et de soutien pour l’intègration et la Lutte contre les

discriminations (F.A.S.I.L.D.), Giöteborg Film Festival Filmfund , Minis-

tério dos Negócios Estrangeiros – Instituto Camões. Como copro-

dução de Radio Televisão Portuguesa (RTP), Mutante Filmes e de-

senvolvida com apoio do Programa Media da União Europeia, tem

direção de Flora Gomes, guineense, música de Manu Dibango, cama-

ronês, e imagem de Edgar Moura, brasileiro. Indiscutíveis trânsitos

com inevitáveis trocas.

Nha fala (2002) conta parte da história da protagonista Vita, umajovem guineense que ganha bolsa de estudos na França e está pres-

tes a partir. A jovem carrega uma maldição familiar que proíbe que as

mulheres de sua família cantem, de modo que, caso seja descumpri-

da, morrerão. Curiosamente, Vita toma conhecimento da interdição

no momento da partida, e sua mãe lhe exigirá o juramento de não

ferir a tradição. Todavia, numa espécie de cumprimento de desaio

subliminar a esta tradição, em Paris, Vita conhece Pierre, um jovem

e talentoso músico por quem se apaixona. A primeira noite de amora faz cantar. Deixando-se convencer por Pierre e seus amigos, grava

um disco, que se torna um sucesso de vendas imediato na Europa.

Mas, temendo que a mãe descubra que quebrou a promessa, Vita de-

cide voltar a casa… para morrer! Com a ajuda de Pierre, atual namo-

rado francês, e Yano, antigo namorado que deixara em Bissau, Vita

encena a sua própria morte e renascimento, para mostrar à família e

amigos que tudo é possível, se tiverem a coragem de ousar.

A análise do ilme será realizada por bloco de cenas, com ênfasena igura de Cabral, que passeia por todo o ilme, como também nos

diversos trânsitos ísicos e culturais, que caracterizam relações entre

tradição e modernidade, com enfoque nos ritos funerários presentes

no ilme.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 139

AMÍLCAR CABRAL: O HERÓI DA GUINÉBISSAU

O ilme Nha Fala (2002) é dedicado a Amílcar Cabral: “Pensando

em Amílcar Cabral, pai da independência da Guiné-Bissau e ilhas de

Cabo Verde, assassinado em 1973”2 sendo que por isso esse pai nãopresenciou a independência do seu país. Amílcar Cabral estará pre-

sente no ilme, não só na dedicatória, mas no desenrolar da história

e no pensamento de muitos personagens, através de uma estátua,3 

que será carregada por duas personagens identiicadas como Lou-

co, e por um Trabalhador, quase sem falas, que foram encarregados,

juntamente com Vita, de encontrar um lugar para colocá-la e acom-

panham a protagonista pela cidade momento antes de sua partida.

A primeira vez que a estátua de Cabral aparece no ilme é quando

Yano informa a Vita que está procurando um lugar para colocar a

estátua de Cabral na cidade, e Vita airma que não é Cabral: “Parece

um merceeiro ou especulador”. Mas aquele busto é de Cabral! – re-

presenta ou retrata, de fato, o herói da Guiné-Bissau. Por que será

que Vita nega ser Cabral? Será que é por não aceitar que Yano, um

especulador, já consumido pelo capitalismo, tenha a iniciativa de ho-

menagear o herói da independência da Guiné-Bissau e das Ilhas deCabo Verde? Ou será ainda que Flora Gomes quer demonstrar o des-

conhecimento de Yano e de Vita, dois jovens guineenses, da história

do seu país e dos heróis nacionais? Ressalta-se que Yano não acei-

ta a resposta ou provocação de Vita de que o monumento não seja

Cabral. Desde o início, a comédia abre-se à crítica social e política

da contemporaneidade, em face da história recente da nação e apre-

senta ao espectador metáfora do atual lugar de Cabral no universo

guineense.Na entrevista concedida a Dorothy Morrisey (2010), Flora Go-

mes, quando questionado sobre a imagem recorrente de dois ho-

mens ao longo do ilme, que transportam a estátua: “Será esta uma

2 Dedicatória exibida na abertura do ilme Nha Fala.

3 Como informação adicional, cabe informar que a estátua de Cabral só foi inaugurada, na Guiné--Bissau, em 25 de maio de 2009, através de uma doação dos “Irmãos Cubanos”, que assim sãochamados, por causa do apoio dado na luta pela independência.

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140 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

estátua de Amílcar Cabral?”, responde airmativamente ser aquela

uma estátua de Amílcar Cabral e oferece a sua chave de leitura:

Amílcar Cabral foi um homem extraordinário, um visionário,

que fez muito pelo seu país. Mas você não o vê porque as pes -soas não seguem o que ele disse. Aqueles jovens, que estão aoredor da estátua – estão procurando um lugar para colocá-lo,mas ninguém quer, porque ela incomoda. Cabral ainda está es-perando para ver essas coisas, pelas quais ele deu a sua vida.Ele deveria ter o seu lugar. Eu não vou parar de fazer ilmesaté que eu tenha feito um ilme sobre ele.4 (MORRISEY, 2010,tradução das autoras)

A igura de Cabral na Guiné-Bissau está presente em quase todas

as áreas – Educação, Política, Cultura, Sociologia –, pois, além de lutarpela independência, era um pensador, intelectual, poeta, sociólogo,

político e guerrilheiro, e até ator de cinema, considerado por muitos

um exemplo para aqueles que passaram pela experiência de viver

sob o jugo colonial. De igura pública passou a herói e tornou-se um

mito, com as ambiguidades, ambivalências e controvérsias à volta.

A estátua de Cabral agora segue no ilme carregada por duas i-

guras do povo, assinalados por signos da repetição, da persistência

e da permanência. O Louco aparece, em segundo lugar, e se junta ao

Trabalhador responsável pela estátua de Cabral. Nesse momento,

apresenta-se um chavão, que vai aparecer cinco vezes durante o il-

me, na voz do Trabalhador: “Hoje, o céu está limpo”, a que o Louco

responde com uma interpretação desviada desse enunciado, que se

altera no decorrer da ação: “Ele disse que é uma merda e que nada

funciona”. A primeira interpretação faz alusão ao problema de onde

colocar a estátua de Cabral, ou seja, ninguém decide; aliás, todos re-cusam recebê-la ou instalá-la em determinado lugar, nada se resolve,

a burocracia se instala, as coisas não funcionam e a estátua continua

sem um lugar deinido para ser situada.

4 “Amilcar Cabral was an extraordinary man, a visionary, who did much for his country. But youdon’t see it because the people didn’t follow what he said. Those young people who are goingaround with the statue – they are looking for a place to put it, but nobody wants it because itbothers them. Cabral is still waiting to see those things for which he gave his life. He should havehis place. I will not stop making ilms until I have made a ilm about him.”

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 141

A segunda intervenção do Louco e do Trabalhador acontece

quando o Trabalhador diz: “ Hoje o céu está limpo”, e o louco respon-

de: “Ele diz que o inferno está cheio”. Vita continua sendo seguida,

até que a multidão começa a correr. A impressão que se tem, por ser

uma passeata, é como se a polícia tivesse chegado. Essa intervenção

do Louco gera muitos questionamentos: que inferno é esse? Será na

Terra ou fora dela? Será que Cabral fala através do Louco?

Na terceira intervenção do Louco e do Trabalhador, o Trabalha-

dor diz: “Hoje o céu está limpo!” e o Louco responde: “Ele diz que o

céu e a terra um dia vão se encontrar”. Vita acena mais uma vez para

a mãe. O enterro segue por um caminho silencioso e Vita segue o seu

caminho para outro lado. Essa intervenção está relacionada com oenterro ou com a partida de Vita? O Louco estará prevendo o retorno

de Vita para a Guiné-Bissau?

As personagens do Louco e do Trabalhador procuram, portanto,

incansavelmente onde colocar a estátua de Cabral. Várias pessoas

dão-lhes palpites. Isso é interessante, porque o desejo de instalação

da estátua signiica tanto aceitação quanto rejeição, que vão perse-

gui-la no decorrer do ilme. A alternância e a indeinição desdobram-

-se em ritmo de performance gestualística, pontuadas por adiamen-to e transferências da decisão.

As transformações corporais que o Louco faz podem ser lidas

como mecanismos de identiicação com as iguras nacionais res-

peitadas e prestigiadas, que estão ligadas às guerras e a pessoas de

idade avançada na África. Como também o Louco é um indivíduo res-

peitado na Guiné-Bissau – pois “muitos foram castigados pela PIDE.5 

Saíram da sala de torturas assim e continuaram desnorteados cami-

nhando por aí” (AZEVEDO; RODRIGUES, 1977, p. 39) –, poder-se-iapensar, na dimensão de humor própria à comédia, na tentativa de

caracterizar mais uma igura nacional, de algum modo, ligada à guer-

ra de independência.

O prestígio do Louco é tão marcado no ilme Nha Fala (2002),

que, quando se realiza a eleição para diretor do coral, os candidatos

5 Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Português).

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142 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

se apresentam cantando e destacam seus argumentos, enfatizando

suas competências para governar, e o Louco se apresenta como o 14º

candidato, airmando “ Eu sou o mais doido”. Esta fala vai gerar um

diálogo entre Vita e o Padre sobre quem pode ou não governar, e

também acaba corroborando a sua importância actancial no ilme.

Na conclusão, o Padre diz: “Numa confusão destas é normal que os

doidos assumam o poder”, enquanto Vita responde: “Pelo menos é o

mais sincero e é o mais lúcido”, outra chave de leitura para o ilme.

O humor da comédia ganha foros de ironia.

Quando Vita retorna para a Guiné-Bissau, como cantora de su-

cesso, para cumprir seu ritual de libertação da tradição através dos

elementos da mesma tradição, a estátua de Cabral ainda continuasem um local. No porto, Vita enxerga o Louco com a estátua e o mos-

tra a Pierre. O Louco, desta vez, se aproxima e grita o chavão “Hoje

o céu está limpo”. Nesse momento, ele diz que “a África é sempre

África, mas não é um continente negro”. Essa passagem mostra a di-

versidade africana. Vita informa ao Louco, numa expressão mista de

imperativo e esperança, que ambos precisam concluir ainal a tarefa

iniciada anos antes: “Havemos de arranjar um sítio para a estátua”.

Ao inal do ilme, depois do funeral simbólico de Vita, o Loucopassa a estátua de Cabral para um transeunte, que a coloca no chão,

em um local na rua e ela ica maior – talvez pelo contato com a terra

guineense. Cabral torna-se o grande homem da Guiné-Bissau, oni-

presente e autônomo, quando na cena inal encontra-se o local para

a estátua de Amílcar Cabral, e ela vai para esse local sozinha, como a

voar, para cima de uma coluna de pedra, tipo pelouro – um símbolo

administrativo de cidades –, tendo ao fundo um lindo pôr do sol. Nes-

se momento, o Trabalhador grita pela última vez: “Hoje o céu estálimpo!”, e o Louco responde: “Ele disse: o im é o princípio!”. Os dois

dançam e uma pessoa anda de bicicleta para trás, representando a

frase enunciada. A intervenção do louco, nesse momento inal, tem

um tom bíblico, fazendo relação de que a morte não é o im, mas o

início de uma nova vida. Trânsitos, circularidade e trocas constantes

em face de parâmetros dissociativos e excludentes.

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TRÂNSITOS FÍSICOS E CULTURAISENTRE ÁFRICA E EUROPA

Os ilmes, por si só, já são objetos completamente em trânsito,

pois o movimento da câmera percorre as várias cenas e nos leva paraonde desejam o cineasta, diretor, o roteirista e, por vezes, o produtor.

No ilme Nha fala (2002) os trânsitos ísicos e culturais ressaltados

são as viagens da protagonista entre Guiné-Bissau – França – Guiné-

-Bissau (África-Europa), como também dos guineenses, vida-morte-

-vida (rituais funerários), religião tradicional e religião católica, tra-

dição e modernidade.

Vita passa grande parte do ilme se deslocando, seja porque

caminha na rua procurando um local para a estátua de Cabral, ouporque foge de Yano, das pessoas na rua, ou ainda porque viaja. A

protagonista vive na Guiné-Bissau na primeira parte do ilme, até

que ganha uma bolsa de estudos e vai morar na França, retornando

a Bissau no entrecho inal.

Os trânsitos dos guineenses para fora do país icam explícitos

quando Vita está retornando para sua casa e é assediada pelas pes-

soas que querem mandar presentes, “lembranças” e cartas para seus

parentes (namorados, maridos, ilhos) espalhados pelo mundo, Por-

tugal, Bordéus, Londres, Paris, América, China, entre outros, que não

voltaram. A diáspora guineense contemporânea ica bem caracteri-

zada nesse ilme de Flora Gomes.

Aos 42 minutos e 31 segundos de ilme, muda-se a cena para Pa-

ris, muda-se o idioma, muda-se o ritmo das músicas. Imagens de Pa-

ris são exibidas, inclusive da Torre Eiffel. Anteriormente, exibiam-se

também imagens das belezas naturais de Cabo Verde identiicadascomo Guiné-Bissau através da palavra “Bissau” na coluna-pelouro

inicial.6 O ritmo das músicas oscilava entre lento e rápido, numa mis-

tura de cancioneiro popular (início do ilme, velório do papagaio)

com pop (despedida de Vita); antes, o idioma falado era o crioulo de

6 O ilme foi gravado em Cabo Verde, porque na época de sua gravação a Guiné-Bissau ainda seencontrava em processo de inal de guerra.

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base lexical portuguesa, que será confrontado com o francês e suas

variantes migrantes.

Essa segunda fase do ilme, depois das imagens de Paris, inicia-

-se com uma música, cantada em francês, na qual todos chamam por

Vita. O local parece com um sobrado, onde mora sozinha, cercada

por amigos, enquanto na Guiné-Bissau morava numa casa com sua

família. A música descreve Vita: “Séria, amorosa, só pensa nos estu-

dos; não sai para dançar; disposta a ajudar as pessoas”. Segue-se a

história de quando Vita conheceu o seu namorado, quando o amor,

a paixão à primeira vista aconteceu, o primeiro beijo, o noivado,

o encontro, a primeira noite. Essa cena termina com Vita aparecen-

do e todos lhe oferecem lores. Cabe destacar que, depois que Vitaaparece, nota-se que as suas roupas não são mais estampadas como

o vestido usado em Bissau, apesar de as cores ainda serem quentes.

O cabelo está trançado, índice talvez do jogo de transformações e

permanências culturais entre os dois momentos.

Em constante trânsito, Vita vive em Paris o seu namoro com Pier-

re. As imagens, mais uma vez, mudam e voltam-se para a Guné-Bis-

sau, onde Vita chega com Pierre de navio. As imagens das paisagens

cabo-verdianas “guineenses” voltam à tona. O idioma volta a ser ocrioulo guineense, mas Pierre continua falando francês: nesse mo-

mento o idioma não é uma barreira, como na cena de imigrantes em

Paris; o país e o idioma não são barreiras, as pessoas se comunicam

sem problemas.

A protagonista volta para seu país para realizar seu funeral e li-

bertar-se da maldição da tradição, paradoxalmente fazendo cumprir

a tradição em moldes locais e ancestrais. Vita retorna para a Guiné-

-Bissau por ainda estar preocupada que sua mãe escute o CD gra-vado por ela, visto que: “É a única que pode reconhecer minha voz.

Vai morrer de desgosto. Para me salvar e salvar minha mãe... Tenho

de morrer. E para morrer bem, tenho de preparar meu enterro”. Ela

mesma complementa: “ Agora percebi que para renascer há que acei-

tar a morte”. Restabelecendo o círculo vida-morte-vida para satisfa-

zer o desejo da tradição descumprida, ela tem que morrer, mas mor-

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Entretanto, quando a tradição oscila com a modernidade na reli-

gião, um conlito se insinua sem maiores proporções. No enterro do

Senhor Sonho, esboça-se uma relexão acerca dos rituais fúnebres

em voga que envolvem as relações entre a religião tradicional gui-

neense e a religião católica, em termos de compatibilização de um

suposto embate:

Vita: O padre não chegou ainda?Uma mulher: Então, matem o porco!Senhor: Não pode ser o porco sacriicado quando o caixão saida casa.Mulher: Temos que impedir o padre de vir.Uma Senhora: O defunto era um bom católico e conhecia a bí -

blia de cor.Mulher: Então, para que o porco?Senhor: Ele também era um bom animista.

Esse início de conlito não impede que nenhum ritual deixe de

ser realizado, pois o padre já conhece os rituais da religião tradicio-

nal guineense e os respeita, assim como os guineenses reconhecem

também os rituais católicos. O trânsito entre as religiões traduz-se

pela convivência entre as duas prevalecentes como natural. Nesse

conlito não há vencedores, pois os rituais tradicionais e católicos

acontecem sem causar prejuízo a nenhum dos dois lados, somando-

-se os rituais.

TRADIÇÃO E MODERNIDADE EM RITUAISFUNERÁRIOS GUINEENSES

Os elementos da tradição e da modernidade coexistem no ilmeem quase toda a exibição deste, mas se destacam as crianças que

crescem em contato com a tradição (o enterro do papagaio) e a mo-

dernidade (a inluência norte-americana), somada à emigração de

guineenses, assim como a bolsa de estudos de Vita, ao lado da mal-

dição de cantar e a produção do CD, os rituais funerários ísicos do

Senhor Sonho e simbólicos de Vita.

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Vita carrega uma maldição dada como tradicional, que proíbe

as mulheres de sua família materna de cantar. Isso não ica claro no

início do ilme, mas depois da promessa de não cantar, exigida pela

mãe, antes de viajar para França. A mãe de Vita, em sua despedida,

reitera o fato:

Mãe: Não esqueças de nada. Sabes do que falo. Quero que mejures mais uma vez.Vita: Juro mamã. Mas gostava que me explicasses porquê.Mãe: Eu também não sei. Penso que nunca ninguém soube. Écomo uma maldição desde há muitas gerações. Nuncas poderácantar. Cantar é proibido a qualquer mulher desta família. Sejaqual for o pretexto. Senão podes morrer.

Vita: Nha fala (minha fala)

A expressão título do ilme funciona como palavra formal empe-

nhada no momento limite da despedida. No entanto, “a palavra” de

Vita acaba por se reverter posteriormente em outra “voz”, em outro

“destino”, em outra “vida”, outro “caminho” (GOMES, 2002 apud RI-

BEIRO, 2010), sem necessariamente ser desmentida, mas distendida

em outras dimensões. Na Europa, Vita, em celebração na primeira

noite com Pierre, canta pela primeira vez na vida, sussurrando umamelodia. Pierre acidentalmente a escuta e ica encantado com a sua

voz, em uma cena construída com aura de sortilégio e revelação. Ela,

ao vê-lo, arrepende-se de ter cantado e conversa sobre a maldição

da família. Esse diálogo mostra o choque cultural entre Pierre e Vita,

pois Pierre questiona se ela acredita ou não nesses valores. Vita res-

ponde vagamente: “Acredite ou não... fui a primeira a ignorar a proi-

bição. Faltei à minha palavra. É mais grave para ela [a mãe] que para

mim”. A lógica guineense demarcará territórios em diferença a partirdaí. Pierre ignora o que Vita diz e, enquanto músico, declara que ela

“tem uma voz extraordinária”, como a que estava procurando. Vita

responde, citando a sua falecida avó e uma imagem de cisne é releti-

da nela: “ A minha avó dizia que somos como os cisnes. O nosso canto

anuncia a nossa morte. Não é a morte que me assusta. Tenho medo

de deixar aqueles que amo”.

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Após a constatação da beleza da voz, eles vão para o estúdio. Nes-

sa primeira audição às 4 horas da madrugada, Vita demonstra o seu

conhecimento de música, apesar da proibição, o que surpreende o

grupo ali reunido. Vita altera a letra e ao cantar impressiona o parcei-

ro de Pierre, que dá início ao circuito proissional na área. Enquanto

Vita canta, passam-se as cenas do processo de produção do CD, em

mais um lagrante elemento da modernidade, com as gravações e os

músicos a suscitar felicidade e temor conjuntamente. Desde o título

francês La Peur , a música que Vita grava fala do medo de ultrapassar

obstáculos, de como qualquer coisa, inclusive as pedras e os rios são

mutáveis. Relacionando-se com a vida de Vita, a música representa a

consciência da quebra da tradição e a insegurança resultante de suaatitude. Não deixa de ser irônico que a “Nha fala” de Vita signiique

inicialmente silêncio, e que, no entanto, o faltar com a palavra e de-

cidir-se seguir cantando proissionalmente impliquem em uma nova

vida para Vita, em que o castigo associado à transgressão e à morte

será exorcizado por um ritual de morte simbólica.

Ao retornar para a Guiné-Bissau, Vita reúne a família, os amigos

e Pierre na casa de sua mãe, e trava um diálogo dramático com a mãe

ao contar que gravou o disco: “Mãe, canto com minha fala”. A mãe deVita responde “ Ser impossível”. Diante da resposta, Vita mostra o CD

e o coloca para a mãe escutar. Vita canta e a mãe desmaia, para acor-

dar dizendo: “A minha ilha vai morrer”, enquanto todos respondem

em coro: “Não, não”. Por sua vez, Vita informa que voltou para orga-

nizar o próprio funeral, ao passo que sua mãe passa a agir como se

ela estivesse realmente morta: “Vê bem que a minha ilha está mor-

ta”, por mais que Vita lhe diga expressamente que não.

Vita, apesar de ser essa mulher moderna, estudada, emancipada,é muito ligada à tradição familiar guineense, de modo que volta para

o seu país natal para satisfazer seus ancestrais com essa sua morte

simbólica, em lagrante contraponto a componentes euromundistas

da razão ocidental prevalecente hoje, com os quais a protagonista

parece manter ao longo da vida.

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RITUAIS FUNERÁRIOS EM NHA FALA

Dos três rituais funerários: o do papagaio, realizado pelas crian-

ças, o do Senhor Sonho, um idoso vizinho, e o enterro simbólico de

Vita, que unem tradição e modernidade, organizados com o ito desatisfazer a tradição, o de Vita é o único que lida com a transgressão,

o castigo e a remissão. Vita dá as coordenadas do seu próprio plano,

para amenizar os estragos da sua quebra de tradição: “Mamã, vais

anunciar na rádio, na TV e nos jornais: primeiro, que eu sou cantora.

Segundo, que vim morrer no meu país. E terceiro, que convido a to-

dos a vir ao meu velório amanhã”.

Agindo como se Vita estivesse morta, a mãe trata-a como um

“fantasma”, a quem se dirige e conversa naturalmente: “Ela amava-

-me tanto que enviou seu fantasma para que o meu desgosto não

seja tão grande”. Diferentemente, Pierre reclama, acreditando que:

“Isto vai ser mais diícil do que eu imaginei”, enquanto Yano conclui

naturalizando a situação, com um sumário “É o clima”. A sucessão

de comentários de personagens exempliicam a diversidade cultural

sentida pelo francês, sobretudo como “troça”, efetivamente presente.

Simultaneamente, as marcas de modernidade entrelaçam-se aos sig-nos mais tradicionais.

Vita vai para a marcenaria chamada “Destino” e, como nova-rica,

negociando caixões, escolhe um em formato de borboleta para o seu

funeral. Este caixão representa a transformação e o renascimento de

Vita, pois a borboleta dorme lagarta e acorda borboleta. Assinalam-

-se as metamorfoses da vida e a liberdade de voar, através do seu

funeral. Vita acaba comprando todo o estoque de caixões da marce-

naria, cujo dono informa que, pelo valor do cheque, a fábrica é dela.Ele olha para o cheque e se assusta com a assinatura: “Se a defunta

está viva então os vivos estão mortos”, fazendo uma relação com os

vivos e os mortos, que coexistem paciicamente.

Na casa de Vita, está quase tudo pronto para o início do fune-

ral. As pessoas já formam ila para ver a morta. Vita dá as últimas

instruções e pede que o Dr. Amarillo “Não deixe avançar ninguém”.

Vita também orienta Larna, a pessoa que irá substituí-la no caixão

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para que esta “Tente não se mexer”. Todos os preparativos são con-

duzidos diretamente pela protagonista, que dialoga e transita pelos

presentes com naturalidade, sem qualquer demonstração de estra-

nhamento. Na enorme ila formada para ver a defunta, os visitantes

são recebidos pela própria defunta. O primeiro é o homi grandi, que

diz: “Vita era uma grande artista e eu um dos seus grandes amigos”, a

que Vita responde, como a evitar desmenti-lo, mudando de assunto:

“Garanto que haverá comida para todos”. Tais comentários expõem

os frágeis limites entre fatos, iccionalização e discurso, com diversos

mecanismos atenuantes, evitando embates. Outro senhor causa cer-

to constrangimento ao perguntar “ De que morreu ela?”, mas Dr. Ama-

rillo responde sabiamente: “De desgosto. Ataca em qualquer idade eé fulminante”. Outro senhor diz: “Nós é que devíamos estar no lugar

dela” e uma senhora constata: “Quando os jovens partem antes dos

velhos... o caso vai mal parado”.

Tradição e modernidade continuam juntas na festa organizada

na praça. Os músicos franceses chegam de avião e vão de carro para

a rua da casa de Vita, onde as pessoas os seguem. É de ressaltar que

todos são recebidos em clima de festa, seguindo a tradição, antes

mesmo da festa pop organizada em praça pública.Uma curiosa cena tragicômica acontece no funeral, revelando as

singularidades culturais. Larna, a pessoa que está no lugar de Vita no

caixão, precisa ir ao banheiro e o irmão de Vita deita no lugar, para

substituí-la. Um homem se aproxima e constata: “Como a morte nos

altera... Agora, parece um rapaz”. Já a mãe de Vita vê o ilho no caixão

“O meu ilho! Também morreu!” e desmaia; quando acorda, pergunta

a Pierre “Eu também morri?”. Pierre a instiga com o mote da próxi-

ma canção, executada na cena: “Não está morta! Faça um pequenoesforço. Atreva-se senhora! Atreva-se”. Vita complementa: “O Pierre

tem razão Mamã. Tens de morrer comigo para poder renascer. Canta

mamã, canta!”. A mãe melancolicamente airma: “Nunca conseguirei” 

e Vita canta uma música que é um incentivo para a mãe cantar. A mãe

por im aceita, se entrega à música, “atreve-se” e também quebra a

tradição, conforme traduz a canção, na sua função de coro: “Quando

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não tens paz na vida/ Quando os pássaros vão e vêm/ Quando os

rios nos levam/ Os ilhos para longe/ Que há de uma pessoa fazer?/

Atreve-te”.

O caixão de borboleta rosa de Vita sai da casa com ela dentro,

com todos dançando e cantando, inclusive a sua mãe, que entoa ver-

sos de rebeldia: “Quando receias rasgar o livro/ Ao virar a página/

Atreva-te/ Quando hesitas antes de agir/ Atreve-te/ Quando queres

fazer amor/ pela segunda vez/ Atreve-te”. Vita dança dentro do cai-

xão, como se estivesse voando. O caixão, ao invés de seguir para um

cemitério ou outro lugar para ser enterrado, é levado para o palco

da praça, onde com sua mãe a protagonista também dança e canta:

“Quando as estrelas param para te ouvir cantar/ Que havemos defazer, mamã? Atreve-te (todos respondem)” – diz a música entoada.

A mãe de Vita canta: “ Que havemos de fazer/ para ser ao mesmo

tempo/ iguais e diferentes?/ Atreve-te”. E Vita repete: “Que havemos

de fazer/ para ser ao mesmo tempo/ iguais e diferentes?/ Atreve-te”.

Com sequencia da festa musical aproxima-se o “Fim” de um ilme

voltado para relações da vida com a voz, a fala, a música, a linguagem.

Em Nha Fala (2002), a articulação de diferenças, a negociação,

a conciliação e a compatibilização entre tradições e modernidadestêm como protagonistas mulheres guineenses envolvidas em re-

lações de gênero e em inscrições identitárias de nacionalidade e

continentalidade – África e Europa, lado a lado – que transcendem

fronteiras geopolíticas e culturais, no sentido de assegurar lugares e

papéis diferidos em tempos de globalização e em contextos de pós-

-colonialidade.

Não há como negar que os componentes culturais – o tradicional

africano guineense e o ocidental europeu – atualmente fazem partedo guineense, do seu imaginário e da sua vida diária. A lembrança

das raízes desse processo, a qual os guineenses enfrentaram e con-

tinuam enfrentando, embora com feições diferentes, para além da

globalização, pode ser conigurada como um desaio de lidar com

heranças coloniais junto a comunidades tradicionais, que se preten-

dam integradas a contemporaneidade, contando, para tanto, com

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manifestações culturais de fôlego e de massa, como o cinema e as

novas tecnologias de fazer sonhar, lembrar e construir nações, con-

tinentes, mundo. Sempre em trânsitos, sempre envolvendo trocas de

lado a lado.

REFERÊNCIAS

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NHA Fala. Direção: Flora Gome. Produção: Luís Galvão Teles; JaniThiltges; Serge Zeitoun. Roteiro: Flora Gomes. Portugal: Fado Filmes;

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 153

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Fronteiras,margens, alteridade e

experiências diaspóricas

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A COSMOPOÉTICA DA FRAGILIDADE Abderrahmane Sissako,

a sensibilidade cosmopolita e a imaginação do comum

Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro

INTRODUÇÃO

A partir das experiências do exílio e do trânsito entre diferentes

paisagens culturais, entrelaçando as paisagens da memória e os pa-noramas da história recente da globalização, uma das questões que o

cinema de Abderrahmane Sissako articula é a questão do cosmopoli-

tismo. Se sua biograia constitui um recurso importante para enten-

dermos suas concepções dessa questão e oferece possíveis chaves de

leitura para suas obras, suas escolhas temáticas e suas buscas estéti-

cas coniguram uma abordagem poética do que chamo de cosmopo-

líticas da globalização.

Qualquer interrogação do cosmopolitismo passa hoje por uma

compreensão da nação, como conceito e forma político-cultural, tal

como se reconigura em meio aos luxos da globalização. Entre as

projeções do mundo como sistema ou como totalidade e as formas

de pertencimento que marcam as identidades múltiplas de qualquer

ser humano, o que se insinua é a problemática do comum. Como o

cinema de Abderrahmane Sissako articula a questão do cosmopoli-

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tismo? Quais são as possibilidades e os limites da noção de cinema

nacional para sua compreensão? Ou seria preciso, para dar conta

do que está em jogo em seus ilmes, movimentar a noção de cinema

transnacional? Entre o nacional e o transnacional, em que sentidos

se projeta – em seus motivos e temas, em suas características esté-

ticas, em sua abordagem poética das cosmopolíticas da globalização

– uma concepção ou, mais justamente, uma imaginação do comum

no cinema de Sissako?

Embora frequentemente associado a ideias de desapego em re-

lação às paixões do pertencimento, o cosmopolitismo efetivamente

existente é, como escreve Bruce Robbins (1998, p. 3, tradução nossa),

“uma realidade de (re)apego, apego múltiplo, ou apego a distância”.1

 Em vez de descrever o pertencimento sem apego a uma comunida-

de da humanidade que permanece abstrata em seu universalismo, o

conceito de cosmopolitismo descreve, desde que pluralizado, formas

de pertencimento múltiplo nas quais o comum se dá como um efeito

transitório e tradutório, no qual é possível adivinhar os “fundamen-

tos contingentes” (BUTLER, 1998) de um mundo por vir. É na dire-

ção de uma pluralização radical da experiência cosmopolítica que se

encaminha o cinema de Abderrahmane Sissako.

AS INVENÇÕES DA HUMANIDADE

Prolongando e se entrelaçando a uma genealogia que se estende

retrospectivamente da lanterna mágica à pintura, entre outras for-

mas culturais, o cinema produz desde o início imagens do mundo,

que repercutem nos sentidos da “humanidade”. Da chegada do tremà estação que os irmãos Lumière registram com seu cinematógrafo

às exóticas paisagens geográicas e humanas que, nas feiras e expo-

sições internacionais e nos itinerários de aventura e exploração dos

viajantes, desilam para o olhar ocidental, as imagens do cinema es-

tão relacionadas desde seus primeiros tempos a uma transformação

1 “a reality of (re)attachment, multiple attachment, or attachment at a distance”.

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dos horizontes imaginativos (CRAPANZANO, 2004) e da consciência

planetária (PRATT, 1999) da humanidade. O cinema de Sissako per-

tence à história das invenções da humanidade – mas se trata de um

pertencimento incompleto, parcial, tenso – e para compreender suas

características é importante rastrear, mesmo que provisoriamente,

suas heranças, com base em uma visão panorâmica da história do

cinema.

Quando as aventuras do olhar cinematográico se iniciam, no i-

nal do século XIX, sua inscrição na geopolítica do sistema mundial

colonial-moderno (MIGNOLO, 2003) marca seus itinerários e suas

formas de representação do mundo. Entre seus primeiros usos, o ci-

nematógrafo coleciona vistas de incontáveis partes do mundo, regis-trando iguras do exótico – que pode ser deinido muito literalmente

como o que transborda o enquadramento do olhar – sob a forma de

atrações. (COSTA, 2005; GAUDREAULT, 2008) A sensibilidade que

orienta a estética do cinema de atrações (GUNNING, 1990, 2003) está

associada a uma ética do olhar na qual o cotidiano metropolitano

e a alteridade colonial se entrelaçam na delimitação dos contornos

de um imaginário cosmopolita sobre a humanidade. Ampliicando a

condição de mobilidade do olhar que, sob o signo do deslocamento,funda o olho variável (AUMONT, 2004) na modernidade, o primeiro

cinema se revela inquieto em sua curiosidade, embora atrelado a um

lugar de enunciação marcadamente ocidental em seu eurocentris-

mo. (SHOHAT; STAM, 2006; CORONIL, 1996) A herança inquieta do

olho variável atravessa a história do cinema, com sua sede de paisa-

gens do mundo, e vai encontrar, na obra de Sissako, uma paragem

que desloca os termos do jogo, cuja história envolve, no entanto, ou-

tros momentos e movimentos.O desenvolvimento do cinema narrativo suplementa as primei-

ras imagens do mundo e das diferenças culturais que atravessam

a humanidade, marcadas pelo regime da cinematograia-atração

(GAUDREAULT, 2008), com uma possibilidade – codiicada e, por-

tanto, relativamente controlável dentro de um processo de institu-

cionalização da prática cinematográica – de fechamento simbólico

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160 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

e ideológico por meio de formas dramáticas herdadas do teatro bur-

guês e da literatura oitocentista. A emergência do cinema narrativo,

em particular no contexto do paradigma clássico hollywoodiano, se

dá como a transição da predominância do regime estético da atração

ao regime estético da distração. (RIBEIRO, 2008; BENJAMIN, 1985)

Nessa transição, a ética inquieta do olhar que marcava o regime da

atração se deixa domesticar por uma ética da satisfação moral. A

construção de um imaginário cosmopolita se insere num projeto de

cinema cuja estética realista e naturalista – baseada em gêneros tra-

dicionais como o melodrama e a aventura (XAVIER, 2005) e sobre a

contenção da mobilidade do olhar por meio de regras de montagem

em continuidade (AUMONT, 2004; BORDWELL, STAIGER; THOMP-SON, 1985; BORDWELL, 1985, 2006) – transforma a narrativa em

“ato socialmente simbólico” (JAMESON, 1992) de resolução de con-

litos de caráter moral. Se o catálogo dos Lumière ou os fragmentos

de exotismo no cinema de atrações podem sugerir uma inquietude

diante da diferença cultural – que se neutraliza apenas na medida

em que se converte em diversidade para o olhar ocidental privilegia-

do – um ilme como Intolerância (1916), de D. W. Grifith, promove

uma forma de invenção da humanidade que, uniicada no espaço eno tempo pelos parâmetros do melodrama, encerra um humanismo

individualista da superioridade moral.

É contra os delírios individualistas e os sonhos de superioridade

moral do cinema clássico hollywoodiano que as propostas soviéticas

– associadas à efervescência artística de certos modernismos, em es-

pecial do construtivismo, e marcadas pelo contexto revolucionário

em seus momentos inaugurais mais promissores – procuram proje-

tar suas potências, seus sonhos, seus fantasmas. Nos intervalos e noschoques entre as imagens, Dziga Vertov e Sergei Eisenstein, entre ou-

tros, inscrevem os traços de um humanismo coletivista, confrontan-

do a matriz melodramática e as convenções do realismo naturalista

de Hollywood com as várias formas de realismo crítico que corres-

pondem aos seus anseios revolucionários. Em vez de dissimular suas

próprias condições de produção e de procurar um efeito de trans-

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 161

parência na representação do mundo, o cinema soviético interroga

sua própria construção, seja tomando o próprio cinema como tema –

como faz Vertov em O homem com a câmera (1929), que se apresenta

como o diário de um cinegraista – seja perturbando a continuidade

e a transparência da narrativa com enxertos de caráter conceitual,

como acontece em mais de um ilme de Eisenstein e, de forma teóri-

ca, em suas relexões sobre a “montagem intelectual” ou “montagem

conceitual”.

Se o individualismo clássico e o coletivismo soviético procuram

(re)inventar a humanidade por meio do espelho cinematográico,

propondo formas distintas e até mesmo contraditórias de realismo,

é a quebra e a fragmentação do espelho que interessa, de um modogeral, às vanguardas dos anos 1920 e 1930. Seja buscando o surre-

al e o inconsciente, seja investigando poeticamente a percepção e a

sensibilidade, as vanguardas interrogam o realismo em busca de sua

superação. Emerge uma forma de humanismo rarefeita, embora con-

tundente: em vez de reairmar o homem como uma essência atem-

poral que é preciso resguardar ou resgatar em meio às intempéries

da história e do progresso (como tende a fazer o cinema clássico),

ou de refazer o homem como um projeto em aberto que é precisopreencher com o sopro revolucionário (como tende a fazer o cine-

ma soviético), as vanguardas fragmentam o homem em desejos, em

percepções, em formas. O que está em jogo nas vanguardas é um

anti-humanismo que desfaz o homem na música ritmada das máqui-

nas, interrogando os aparelhos e os dispositivos que transformam a

experiência humana na modernidade (sem necessariamente buscar

uma essência perdida ou promover um projeto em construção).

No contexto dos chamados cinemas modernos, que emergemapós a Segunda Guerra Mundial, as diferentes propostas estéticas,

éticas e políticas para a prática cinematográica estão relacionadas a

uma busca por alternativas ao paradigma narrativo clássico e, con-

juntamente, por outras visões do mundo, seja a partir da herança das

vanguardas e do cinema soviético, seja a partir de um desejo de ino-

vação que, reconhecendo o clássico com uma atitude cinéila, guarda

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162 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

uma intenção autoral por constituir uma assinatura inconfundível

e procura inscrever no cinema a herança ambivalente da arte mo-

derna. Sem pretender diferenciar os vários movimentos e momentos

que, do neorrealismo à nouvelle vague, marcam os cinemas moder-

nos, é importante notar que constituem uma das formas de constru-

ção de cinemas nacionais em oposição a Hollywood. (HENNEBELLE,

1978) Nesse sentido, trata-se de um cinema em que, a cada vez, o

povo, um povo, algum povo pode se fazer visível – e audível, sobretu-

do a partir do advento do som direto – para si mesmo, recuperando

ou reconigurando a consciência nacional e, através dela, a consciên-

cia de sua humanidade.

Os cinemas do chamado Terceiro Mundo, envolvidos de algumaforma com projetos estéticos e políticos frequentemente naciona-

listas e, em todo caso, marcadamente nacionais, operam tanto uma

reescrita da história colonial quanto um descentramento de pers-

pectiva na visão do mundo contemporâneo, em relação aos cinemas

euro-ocidentais. O exemplo de Der leone have sept cabeças (1969),

de Glauber Rocha, se destaca como um complexo jogo polifônico

(GATTI, 1997) que ultrapassa relexivamente a esfera circunscrita

do nacional e interroga, com um experimentalismo carnavalesco quetransforma os fundamentos do cinema político, as relações entre eu-

ropeus, africanos e americanos, nas suas múltiplas identidades étni-

cas e culturais. Se a nação constitui um horizonte de sentido crucial

para as “estéticas de resistência” (SHOHAT; STAM, 2006) que mar-

cam os cinemas dos países do Terceiro Mundo, sua situação se revela

ambivalente, abrindo-se para o jogo duplo dos “cosmopolitismos pe-

riféricos” (PRYSTHON, 2002), em que elementos interiores à nação

(o local e o regional capturados no espaço do nacional) se inscrevemem formas e programas exteriores a sua moldura (as outras nações

e o inter/transnacional como espaçamento e luxo), numa dialética

que perturba a separação entre dentro e fora.

Na paragem em que o cinema de Abderrahmane Sissako abriga

o olho variável, é o entrelaçamento de diferentes estéticas cinema-

tográicas que compõe o pano de fundo para suas cosmopoéticas.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 163

Longe do individualismo heroico da superioridade moral que mar-

ca o cinema hollywoodiano e do coletivismo exasperado do projeto

revolucionário que põe em movimento o cinema soviético, Sissako

escolhe a herança das formas modernas2 de inscrever as pessoas co-

muns nos ilmes e desloca poeticamente os termos do cinema políti-

co das estéticas de resistência por meio de um passeio pelas frágeis

experiências cosmopolíticas que se desenrolam, cotidianamente, em

paisagens transculturais. (LOPES, 2007)

A VIDA POSSÍVEL

Se a importância do cinema para a construção e reconstruçãoda consciência nacional tem sido reconhecida e enfatizada, em di-

ferentes contextos, desde o início do século XX, sua importância

internacional e sua participação na construção e reconstrução da

consciência planetária da humanidade permanecem imprecisas. Os

estudos do cinema em nível internacional tendem a tomar a forma

de estudos comparados de cinematograias nacionais ou de direto-

res de diferentes contextos, assim como de análises econômicas e

políticas relativas à constituição de mercados nacionais sob (e em

contraposição a) inluências estrangeiras e à elaboração de políticas

públicas de cooperação com base em vínculos regionais, linguísticos

e culturais diversos. A compreensão do lugar que o cinema ocupa na

consciência planetária da humanidade passa pelo reconhecimento

de que, desde seus primeiros tempos, uma série de espaçamentos

transnacionais, em que suas projeções se deslocam como projéteis,

2 Perguntado sobre cineastas de referência, Sissako (2003) menciona alguns nomes signiicati-vos dessa herança moderna, sugerindo um mapa provisório de inluências: Antonioni, Visconti,Fassbinder, Bergman, Cassavettes. Numa outra ocasião, Sissako (2003a) nota sua distância emrelação à narrativa clássica e a relaciona a sua concepção pessoal do que é um ilme: “Eu nãotento fazer uma narração clássica ou fácil pois eu não creio que seja preciso convencer: umilme é chamar alguém a ir em direção a mim, chamar a partilhar.”(tradução do autor) Textooriginal: “Je n’essaye pas de faire une narration classique ou facile car je ne crois pas qu’il failleconvaincre : un ilm, c’est appeler quelqu’un à aller vers moi, appeler à partager.”

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164 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

constitui de forma irredutível os espaços nacionais em que o cinema

tendeu, predominantemente, a permanecer contido como projeto.3

Uma perspectiva mundial de estudo do cinema envolve neces-

sariamente a compreensão das estéticas cinematográicas como li-

nhas de força no contexto de uma política da representação e de uma

disputa pelo que Edward Said (1995) chama de “poder de narrar”.

Como um dos elementos de uma época em que a reprodutibilidade

técnica torna crucial o valor de exposição (BENJAMIN, 1985), o cine-

ma pertence a um campo de disputa em torno das possibilidades de

exposição de imagens e narrativas.

Se os estudos comparativos de cinematograias nacionais e os

estudos de economia e política em torno de mercados e formas go-vernamentais são cruciais para entender os elementos históricos e

sociais que delimitam os caminhos do cinema no mundo, apenas um

estudo textual e transtextual dos cinemas mundiais contemporâne-

os pode elucidar as formas pelas quais, aquém e além das nações,

por meio de imagens e narrativas as mais diversas, projetam-se os

contornos de uma consciência planetária da humanidade. É nas ima-

gens e com as imagens que se desenham os fantasmas do comum

e os contornos de uma comunidade da humanidade, deinida nasintensidades da esfera da sensibilidade mais do que nas abstrações

da esfera político-jurídica das nações e do aparato internacional dos

direitos humanos. Os imaginários cosmopolitas que o cinema arti-

cula projetam formas sensíveis de deinição do humano. É a revela-

ção das potências cinematográicas de invenção da humanidade e de

imaginação do comum que está em jogo na leitura que proponho do

cinema de Abderrahmane Sissako, que constitui, nesse sentido, um

exemplo de cinema transnacional, tanto por suas bases estruturais(recurso a diferentes fontes de inanciamento, trabalho com técni-

cos, proissionais e atores de diferentes nacionalidades etc.) quanto

pelo conteúdo de suas narrativas e pelas formas de sua narração.

3 Para uma discussão das relações entre as dimensões do cinema como projeção, como projetoe como projétil, ver minha análise do ilme Lágrimas do Sol  (2003), em que interrogo a proble-mática da representação cinematográica da guerra e o investimento simbólico do nome de“África” no cinema hollywoodiano contemporâneo. (RIBEIRO, 2008)

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 165

A seguir, esboço algumas análises e interpretações de seus ilmes,

em sua ordem cronológica de aparição, buscando descrever seus

principais motivos temáticos e características estéticas.4

Nascido em Kiffa, na Mauritânia, em 13 de outubro de 1961, Sis-

sako passou sua infância no Mali.5 Entre o país de sua mãe e o país

de seu pai, Sissako tem uma de suas primeiras experiências transcul-

turais. Vivendo em Nouakchott com sua mãe depois de ir muito pe-

queno para o Mali com seu pai, Sissako perde suas coordenadas. Não

sabe mais falar o idioma Bambara e não tem por perto nenhum de

seus amigos de infância. É em Nouakchott que Sissako frequenta um

centro cultural russo e, no início dos anos 1980, depois de se dedicar

ao pingue-pongue e de conhecer a literatura russa por intermédiodo diretor do centro, recebe uma bolsa para estudar a língua russa

por um ano em Moscou. Em 1982, Sissako se candidata ao Instituto

Estatal de Cinematograia da União Soviética (VGIK), onde estuda a

partir de 1983.

A GUERRA: LE JEU  1988/1991, 22’

O primeiro ilme dirigido por Sissako consiste na obra que ele

apresenta no inal de seus estudos, em 1988. Filmado no Turcomenis-

tão – por se tratar de “[...] uma locação similar à paisagem do meu país

e pessoas próximas do meu povo para contar a história que eu queria

contar.” (SISSAKO, 2003, tradução nossa)6 – a partir do roteiro apre-

sentado por Sissako ao VGIK, Le jeu não foi bem avaliado no Instituto,

embora tenha sido suiciente para sua aprovação. Estimulado por um

4 O site Africultures.com atribui a Sissako a realização de três ilmes que não foi possível abordarnesse texto, uma vez que não foram assistidos. Trata-se do longa-metragem Molom, conte deMongolie (1994) e dos curtas Le chameau et les bâtons lottants (1995) e Le passant   (1995).O Internet Movie Database não tem registro desses ilmes e não encontrei maiores informaçõesa seu respeito nas pesquisas que pude realizar.

5 As informações sobre a biograia de Sissako que apresento foram encontradas primordial-mente em entrevistas e depoimentos do diretor que se encontram em Sissako. (2003, 2003a,2003b)

6 “[...] a location similar to the landscape of my country and people close to my people to tell thestory I wanted to tell”

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166 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

amigo de Burkina Faso e por sua esposa, Sissako manda o ilme para

o Festival Pan-Africano de Cinema de Ouagadougou (FESPACO), mas

ele não entra na programação. Mesmo assim, Sissako vai ao festival e,

certa noite, Le jeu é projetado por um amigo tunisiano numa reunião

privada. A partir daí, o ilme termina no Festival de Cannes, além de

ganhar o prêmio de melhor curta-metragem da Giornate del Cinema

Africano de Perúgia, na Itália, também em 1991.

Em Le jeu, cujo título poderia ser traduzido como A brincadeira

ou, mais literalmente, O jogo, Sissako constrói uma narrativa que ele

mesmo descreve como “vaga”, sem “arco dramático clássico”. (SIS-

SAKO, 2003) Por meio de um uso frequente da montagem paralela

ou alternada, Le jeu traça um paralelo entre uma guerra e um jogo,uma brincadeira, que permanecem sem nomes, como projeções de-

liberadamente abertas para os investimentos alegóricos dos espec-

tadores. Enquanto um homem se despede de sua mulher e de seu

ilho Ahmed, um grupo de crianças com armas de brinquedo marcha

até a casa para chamar o amigo para o jogo. No paralelo traçado pelo

ilme, Ahmed é preso por soldados inimigos na encenação do jogo e

deixado para trás pelos amigos, até que sua mãe o encontra e o leva

de volta para casa, enquanto seu pai é capturado por soldados inimi-gos na operação da guerra e acaba sendo executado. Antes da morte

do pai, Ahmed sonha com o reencontro. Nos planos inais do ilme,

uma frase de Paul Valéry (tradução nossa) – “A guerra é um massacre

de pessoas que não se conhecem, em beneício de pessoas que se co-

nhecem mas não se massacram.”7 – explicita a crítica da guerra que

está inscrita no ilme como um drama familiar em aberto.

Embora apresente um uso da trilha sonora – falas, música e ruí-

dos – mais próximo das formas clássicas, em que falas e ruídos natu-ralistas são eventualmente acompanhados por música extradiegéti-

ca voltada para efeitos dramáticos, Le jeu inclui planos que parecem

7 “La guerre est un massacre de gens qui ne se connaissent pas, au proit de gens qui se connais-sent mais ne se massacrent pas.”

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 167

insinuar a forma poética8 que Sissako tem de abordar problemas éti-

cos e políticos. Quando, por exemplo, na montagem paralela, acom-

panhamos os passos do pai de Ahmed pelo deserto, vemos com fre-

quência os efeitos de seus passos na areia, perturbando a superície

sem issuras das dunas com rachaduras efêmeras, mas marcantes

como fraturas, abrindo rugas na face da terra. Além de traços emer-

gentes de uma estética que se projeta em outros sentidos em seus il-

mes posteriores, a cosmopoética singular de Abderrahmane Sissako

começa a se revelar, em Le jeu, sob a forma de uma articulação es-

trutural e estilística entre, de um lado, uma vontade de alegoria que

insinua uma interpretação forte do todo e, de outro lado, retratos do

cotidiano que, como poeira nos olhos (perturbando a visão alegóri-ca), abrem espaço para a imaginação do comum que permanece, em

sua fragilidade, irredutível ao todo. Se a vontade de alegoria tende a

insinuar um quadro geral feito dos fragmentos do cotidiano, como a

imagem inal de um quebra-cabeças, a imaginação do comum abriga

no cinema de Sissako os abismos e as lacunas que fazem do mundo

um mosaico sem conjunção, feito de peças incomensuráveis.

O AMOR: OCTOBRE  1993, 37’ E SABRIYA 1997, 26’

Em Octobre, Sissako se aproxima das incomensurabilidades do

amor, retratando o relacionamento entre Idrissa e Ira. Ele está pres-

tes a deixar Moscou e ela está grávida. Em seu último encontro, a

música do piano tocado por Idrissa e o silêncio de Ira sobre a gravi-

dez (que ela pensa, indecisa, em interromper) aparecem como indí-

cios de uma impossibilidade. Em meio à narrativa – que inscreve asduas personagens numa Moscou fria, coberta pela neve que Idrissa

a certa altura leva, com as mãos, até o rosto – o que se revela são as

8 Na entrevista de Sissako (2003) a Appiah, o cineasta diz: “Eu acredito que se se quer denunciaralguma coisa, é preferível não bater nas pessoas com isso, não espancá-los. Alcança-se as pes-soas através da forma narrativa que é poética ou criando uma atmosfera.” (tradução do autor)Texto original: “I believe that if one wants to denounce something it is preferable not to hitpeople with it, not to beat them up. One reaches people through a narrative form that is poeticor by creating an atmosphere.”

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168 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

inconstâncias da experiência do exílio, as raízes rarefeitas e as teias

de possibilidade que se tecem e se destecem, através das fronteiras.

Na produção televisiva  Africa Dreaming  (1997), encontramos

um episódio dirigido por Sissako, intitulado Sabriya, que se passa no

sul da Tunísia e aborda outra vez as possibilidades do amor através

das fronteiras. No bar que possuem, Youssef e Saïd jogam xadrez em

meio às conversas dos frequentadores (todos homens) sobre mu-

lheres imaginárias, para as quais dedicam seus pensamentos e se

aventuram em poesias, ao som do rádio e regadas a vinho de palma.

Quando a mestiça Sarah chega à terra de sua mãe, Youssef e Saïd se

interessam por ela. A amizade se perde diante do amor pela mesma

mulher, numa trama conhecida das narrativas televisivas ao redor domundo, sobretudo devido a sua intensidade melodramática. Sissako

desloca os elementos do melodrama, evitando o peso óbvio do con-

lito dramático e buscando a leveza incerta da vida em movimento.

Sarah representa a diferença – cultural e de gênero – que desloca

os quadros de referência da sociabilidade masculina tradicional do

Magreb. Quando Youssef sonha em ir com Sarah para Gênova, ela o

lembra das diiculdades, dos documentos e papéis necessários. No

inal indecidível do ilme, vemos Saïd se sentando ao lado de umamulher no trem, sem que seja possível dizer com certeza que se trata

de Sarah.

O RETORNO: ROSTOVLUANDA 1997, 60’

Em Rostov-Luanda, é um movimento de retorno e de abertura

que constitui o documentário, que narra a volta de Sissako à Áfricae, em meio à procura pelo amigo Afonso Bari Banga, angolano que

conheceu na União Soviética em 1980, a abertura de um caminho

de renovação em meio às desilusões em relação às independências

políticas nacionais. Rostov-Luanda  tem como base a narração em

primeira pessoa de Sissako e como impulso a desilusão diante das

promessas da independência de Angola (em 1975), que uma guerra

de quase duas décadas parece ter aniquilado.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 169

Bari Banga, que lutou na guerra de independência de Angola,

aprendeu russo junto com Sissako em aulas com Natalia Luvovna,

que é quem envia a Sissako a fotograia em que o amigo pode ser

reconhecido ao lado dele e dos outros alunos. Na procura por Bari

Banga, a herança da guerra se revela nas paisagens de casas e pré-

dios destruídos, assim como nos depoimentos que se entrelaçam

para compor um panorama de Angola. O motorista que leva Sissako

pelo interior do país, Eurico, fala dos lugares que atravessam, das

batalhas cuja memória abrigam e da destruição que ostentam, como

se enumerasse “les noms des amis disparus”.9 Entrelaçam-se os de-

poimentos de portugueses que permaneceram em Angola, de cabo-

-verdianos que adotaram o país e de angolanos que nunca o deixa-ram, mesmo se passaram por temporadas na União Soviética ou em

outras partes do mundo.

Depois de atravessar diferentes regiões do país, Sissako retorna

a Luanda:

Uma esperança tinha se tornado familiar a mim. Essa esperan-ça que nós compartilhamos então os dois, como muitos outrosde nossa geração. As lembranças de Bari Banga se borram. Não

que eu o esqueça. Os traços de seu rosto desenham agora umanova igura, em direção à qual a busca me conduz. Assim sedesenha o retrato de um amigo. (tradução nossa)10

Por im, Sissako descobre que Bari Banga está na Alemanha. Ao

encontrá-lo, descobre que em breve retornará para Angola. Na pala-

vra “retorno”, que Bari Banga pronuncia na língua que aprenderam

juntos em nome de uma ilusão (a nação independente, o comunismo,

a África unida?), o itinerário da busca pelo amigo encontra seu desfe-

cho e o ilme projeta, contra o pano de fundo do pessimismo causado

9 Isto é, “os nomes dos amigos desaparecidos”, numa tradução literal que aponta para algumasquestões cruciais que assombram Rostov-Luanda: a desaparição da vida e dos traços, a igura dosdesaparecidos como os viventes cujos traços se perderam, se silenciaram na paisagem muda domundo, a impossibilidade do testemunho da desaparição e em nome dos desaparecidos.

10  “Une espérance m’avait devenu familière. Cette espérance que nous partageons alors tous deux,comme beaucoup d’autres de notre génération. Les souvenirs de Bari Banga se trouble. Nonque je l’oublie. Les traits de son visage dessinent maintenant une nouvelle igure, vers laquellela recherche me conduit. Ainsi se dessine le portrait de l’ami.”

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pela desilusão (enunciado de modo contundente por uma mulher

que fala no início e no inal do ilme), a potência da vida possível.

A INCOMUNICABILIDADE: LA VIE SUR TERRE  1998, 61’E HEREMAKONO 2002, 95’

A autobiograia parece constituir um dos motores do cinema

de Abderrahmane Sissako. Em sua trajetória pessoal, encontramos

elementos que podem fornecer algumas chaves de leitura para per-

sonagens, situações dramáticas e características formais de seu ci-

nema. No entanto, trata-se de fazer da autobiograia uma abertura

para o outro. Em uma conversa por ocasião de uma aula que Sissakoministra no Côté Doc, a parte da programação do FESPACO dedicada

aos documentários, o cineasta airma:  “ O cinema é para mim pro-

fundamente autobiográico, mesmo se se adapta um romance. Quan-

do se chega a se assemelhar ao outro, não se existe mais.” (SISSAKO,

2003a, tradução nossa)11  Paradoxalmente, a autobiograia aparece

como uma forma de apagamento de si na abertura para o outro.

O que interessa é o movimento de busca: “Cinema para mim não é

um espetáculo, mas uma busca. Eu procuro pelo que tenho em mim.Algo escondido que é descoberto com meus personagens. Seja uma

qualidade ou um defeito, vou encontrá-lo em mim, vou encontrar eu

mesmo.” (SISSAKO, 2003, tradução nossa)12 Na abertura para o ou-

tro que constitui o segredo da autobiograia, revela-se a deinição de

cinema de Sissako (2003a, tradução nossa): “A verdadeira deinição

do cinema é um convite à liberdade do outro.”13

Por ocasião da passagem do milênio, o canal Arte da televisão

francesa realiza, em parceria com outras instituições e redes, o pro-

jeto  2000 vu par...: dez realizadores de países diferentes compõem

11  “Le cinéma est pour moi profondément autobiographique, même si on adapte un roman. Quandon arrive à ressembler à l’autre, on n’existe plus.”

12  “Cinema for me is not a show, but a quest. I look for what I have in me. Something hidden thatgets uncovered with my characters. Whether it is a quality or a defect, I will ind it in me, I willind myself.”

13 “La vraie déinition du cinéma, c’est une invitation à la liberté de l’autre.”

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um mosaico internacional, embora necessariamente parcial e in-

completo, de narrativas sobre o ano 2000 e os signiicados da pas-

sagem para um novo milênio. Representando o Mali e a África com

La vie sur terre, Sissako ilma seu retorno a Sokolo, onde passou a

infância com seu pai, com a intenção de fazer um ilme sobre ele.

A autobiograia como abertura para o outro aparece como uma lição

do pai – “Se você quer falar de mim, é preciso falar dos outros. Se

você quer me alcançar.”14 (SISSAKO, 2003a, tradução nossa) – e Sis-

sako entra em cena para interpretar a si mesmo em meio aos outros.

Em primeiro lugar, vemos Sissako naquele que talvez seja um dos ce-

nários paradigmáticos da Europa desenvolvida: um supermercado,

com prateleiras repletas de produtos e assombrado pelo kitsch maisbanal de objetos de decoração. Em seguida, entre os galhos labirínti-

cos de uma árvore, começamos a ver Sokolo.

O olhar de Sissako é ao mesmo tempo estrangeiro e familiar. O

olho variável, marcado por um deslocamento transcultural, revela

elementos de um cotidiano em que se insinua uma alegoria da co-

municação. Do rádio que ressoa com notícias da virada do milênio ao

redor do mundo e com a música e as vozes de Sokolo até o telefone

que se encontra na agência de correio e funciona de forma intermi-tente, passando pelas cartas que ainal circulam sempre sob o risco

de extravio, o desejo de comunicação é o ponto de fuga onde conver-

gem os vários elementos de La vie sur terre. Nas palavras de Sissako

(1998, tradução nossa): “A intenção de comunicar é mais importante

que a comunicação ela mesma. Quando a gente decidiu falar ao Ou-

tro, o gesto de amor foi feito.”15 É no desejo de comunicação, sobre o

pano de fundo ainda impreciso do tema da incomunicabilidade, que

Sissako encontra um universal possível da vida sobre a terra. A certaaltura do ilme, o operador do telefone diz: “A comunicação é uma

14  “Si tu veux parler de moi, il faut parler des autres. Si tu veux m’atteindre.”

15  “L’intention de communiquer est plus importante que la communication elle-même. Quand ona décidé de parler à l’Autre, le geste d’amour est fait.”

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questão de acaso. Várias vezes funciona, várias vezes não funciona.”

(SISSAKO, 2003, tradução nossa)16

Feito sem roteiro – novamente, o acaso: “Minha concepção do ci-

nema é que ele é o acaso.” (SISSAKO, 2003, tradução nossa)17 – La

vie sur terre tem uma importante âncora intertextual em duas obras

de Aimé Césaire que têm trechos citados no decorrer do ilme, pela

voz em off  de Sissako: Cahier d’un retour au pays natal  (1939) e Dis-

cours sur le colonialisme (1955). Há um efeito disjuntivo na articula-

ção entre a serenidade dos planos de Sokolo como imagens do tem-

po e as palavras de Césaire que ressoam por vezes intempestivas,

como a memória do mundo, da violência e da dor que o constituem.

“A vida não é um espetáculo.”18

, diz Sissako em La vie sur terre, comas palavras de Césaire, e é em torno da busca de novas formas de

apresentação da vida, na África e no mundo, que seu cinema pro-

jeta seus fantasmas “Eu tento não fazer um espetáculo. A África foi

tão frequentemente ilmada de maneira espetacular. A dor do Outro

não pode ser um espetáculo.” (SISSAKO, 1998, tradução nossa)19 Na

disjunção entre os planos e as palavras de Césaire, La vie sur terre 

parece se converter em um “ilme manifesto” (BARLET, 1998) em

defesa de uma “ilosoia de vida” voltada para a partilha: “A ajuda é apartilha. Eu posso ajudar porque alguém, ontem, me ajudou. É uma

cadeia de partilha.” (SISSAKO, 1998, tradução nossa)20

A questão da comunicação atravessa La vie sur terre sob a forma

de múltiplas metáforas – as cartas, o rádio, o correio, o telefone – que

permanecem habitadas pelo acaso – “une question de chance”, diz o

operador do telefone do correio. No entrelaçamento das metáforas,

o desejo de comunicação projeta uma ética da partilha em meio à

incomunicabilidade. Em Heremakono, é o tema da incomunicabili-

16 “La communication, c’est une question de chance. Souvent ça marche, souvent ça ne marche pas.”

17  “Ma conception du cinéma est que c’est le hasard”

18 “La vie n’est pas un spectacle”

19  “J’essaye de ne pas faire un spectacle. L’Afrique a si souvent été ilmée de façon spectaculaire. Ladouleur de l’Autre ne peut être un spectacle.”

20  “L’aide, c’est le partage. Je peux aider car quelqu’un, hier, m’a aidé. C’est une chaîne de partage.”

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dade que se inscreve desde o início, em torno do tropo da fronteira.

A incomunicabilidade atravessa diferentes ios narrativos que, como

se fossem parábolas incompletas, menores, projetam uma ética do

encontro em tempos de globalização. É na incomunicabilidade que,

talvez, podem ser encontrados alguns dos rastros do comum.

As primeiras sequências de Heremakono cifram o tema da inco-

municabilidade. Um homem enterra um aparelho de rádio a três pés

de distância de um arbusto no deserto, mas mais tarde não consegue

encontrar o lugar novamente e pede ajuda ao eletricista Maata e ao

garoto Khatra. Enquanto Maata diz a ele que o rádio não está perdi-

do, apenas enterrado, Khatra olha os arbustos levados pelo vento,

lutuando desenraizados, rarefazendo seu pertencimento à terra. Éessa condição de desenraizamento e de pertencimento rarefeito que

o ilme vai interrogar. A iguração do deserto como fronteira assume

um papel central nas narrativas que se entrelaçam no espaço liminar

de uma pequena cidade entre o Sahel e o oceano Atlântico.

Abdallah chega a Nouadhibou, uma cidade de pescadores na cos-

ta da Mauritânia, e são crianças que, como numa brincadeira, abrem

o portão da fronteira para a passagem do carro cheio de passageiros.

Um pouco como fez Sissako,21 ele retorna à casa de sua mãe depoisde uma longa ausência, antes de partir para a Europa. Sua condição

de incomunicabilidade se deve ao fato de sequer saber falar o idio-

ma Hassanya. Abdallah observa a vida da pequena cidade através de

uma claraboia próxima do chão do quarto em que está: vê o movi-

mento dos passos, o tempo das idas e vindas entretecendo na paisa-

gem o milagre de inindos caminhos. (RIBEIRO, 2009) O que está em

jogo na claraboia é o que Sissako (2003b, tradução nossa) chama de

trabalho de olhar, notando que os pés são “essa parte do corpo que

21  Mais uma vez, a dimensão autobiográica do cinema de Sissako é notável. Em uma entrevistadada a Olivier Barlet sobre Heremakono, falando sobre essa dimensão de seu trabalho, Sissako(2003b) airma: “Eu tento me reencontrar através do cinema: eu sou um pouco todos os meuspersonagens que se colocam questões, que não sabem, que vagueiam, mas com uma convicçãoprofunda: a certeza de estar bem no fundo de si mesmo.”. (tradução do autor) Texto original“J’essaye de me retrouver à travers le cinéma: je suis un peu tous mes personnages qui se po -sent des questions, qui ne savent pas, qui déambulent, mais avec une conviction profonde: lacertitude d’être bien au fond de soi-même.”

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nos leva, os cruzamentos que não se fazem. A claraboia é o fato de

ver o encontro que não pôde acontecer, a posição do espectador.”22 

É também pela claraboia que Khatra ensina a Abdallah algumas pa-

lavras, entre risadas, brincalhão.

Com efeito, o ensino e o aprendizado em meio à condição comum

de incomunicabilidade – devido a fronteiras linguísticas, culturais,

geopolíticas etc. – são temas centrais no filme. Uma garota aprende

a cantar, na bela participação da griô Nèma Mint Choueikh ensinan-

do Mamma Mint Lekbeid. Khatra aprende o oício de eletricista com

Maata, acompanhando-o no cotidiano, inclusive na tentativa de levar

a luz elétrica para o quarto em que está Abdallah. Entre o canto e

as lâmpadas, Heremakono desenrola o tecido esgarçado de uma ale-goria da globalização, composta pelos luxos da mídia transnacional

(uma televisão em que Abdallah assiste a um programa de um canal

francês), das mercadorias (Tchu é um vendedor de relógios, brinque-

dos e quinquilharias da Ásia) e das pessoas (assim como Abdallah, a

migração é ou foi uma opção para outros personagens, como Nana,

que migrou no passado por amor, e Mickaël, que parte para uma via-

gem fatal em busca de sonhos imprecisos).

As lâmpadas e a luz elétrica coniguram uma constelação de me-táforas em Heremakono: a luz da vida, a luz da modernidade, a luz

do (auto)conhecimento... Não se trata de ixar seu sentido, mas de

notar sua deriva: a luz remete à Europa – Sissako (2003b, tradução

do autor) diz: “É uma maneira de dizer que as cidades evoluem em

uma imitação sistemática da Europa. A luz deve estar lá, depois a

televisão e o vídeo... É disso que temos necessidade?”23 – e ao mesmo

tempo a um anseio humanista por universalidade – Sissako (2003b,

tradução do autor) continua: “Mas a metáfora tem também um outrosentido: Maata quer levar a luz às pessoas. Ele tem essa generosi-

22  “ [...] cette partie du corps qui nous amène, les croisements qui ne se font pas. La lucarne est lefait de voir la rencontre qui n’a pu avoir lieu, la position du spectateur.”

23 “C’est une façon de dire que les villes évoluent en une imitation systématique de l’Europe. Lalumière doit être là, puis la télé et la vidéo… Est-ce ce dont nous avons besoin ?”

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dade de querer dar, de partilhar: é a dignidade de uma sociedade,

o humanismo ainda existente.”24

O aprendizado de Khatra é o aprendizado da deriva da luz, até o

limite de seu possível esgotamento – a morte, tema sobre o qual con-

versa com frequência com Maata. Quando Maata morre, Khatra che-

ga a tentar se livrar de uma lâmpada atirando-a no mar. Mais tarde,

o garoto atira com seu estilingue numa lâmpada acesa de um poste,

devolvendo à noite sua escuridão. Na montagem de Sissako25, quan-

do a pedra se choca com a lâmpada e a escuridão inunda o quadro,

ouvimos o som avassalador do que se assemelha a uma explosão,

mas se revela no instante seguinte como o barulho do trem que che-

ga a Nouadhibou. Atravessando toda a história do cinema (desde achegada do trem à estação La Ciotat registrada pelo cinematógrafo

dos irmãos Lumière), o peso simbólico da igura do trem suplementa

o jogo metafórico das lâmpadas e da luz com a força de seu movi-

mento.

O trem está associado à emergência do olho variável na moder-

nidade (AUMONT, 2004), abrigando a mobilidade de pontos de vista

que marca a experiência cinematográica, ao ponto de torná-la com-

parável à visão das paisagens pela janela de um trem em movimen-to. Em Heremakono, é fora do trem que o olho variável se desloca,

desenraizando seu passeio e proliferando seus giros com os pés no

chão, os passos e a vida que caminha sobre a terra. O trem atravessa

o deserto, operando o milagre do caminho (RIBEIRO, 2009), assim

como os passos que Abdallah observava da claraboia e as pegadas

efêmeras que, partindo para a Europa, ele deixa na areia interminá-

vel do deserto. A mãe de Abdallah colhe os grãos dos últimos passos

24  “Mais la métaphore a aussi un autre sens: Maata veut apporter la lumière aux gens. Il a cettegénérosité de vouloir donner, de partager : c’est la dignité d’une société, l’humanisme encoreexistant.”

25  No cuidado de Sissako com a estética de seus ilmes, que são em geral de uma leveza e de umadelicadeza singulares, a montagem ocupa um lugar central: “A montagem é para mim funda -mental, para tentar encontrar uma forma de justeza, de harmonia, que não faça da lentidãoum estilo.”. (SISSAKO, 2003b, tradução do autor) Texto original “Le montage est pour moi fon -damental, pour essayer de trouver une forme de justesse, d’harmonie, qui ne fasse pas de lalenteur un style.”

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descalços de seu ilho, na porta da casa. Por im, Khatra – que recolhe

a lâmpada que tentara atirar ao mar como se guardasse os passos de

Maata – atravessa, ele também, a paisagem.

Os atores de Heremakono são em sua maioria não proissionais

e é o próprio Sissako (2003b) que nota a importância de trabalhar

com técnicos africanos. A estética é marcada por um trabalho cui-

dadoso de enquadramento, por uma forma luminosa de fotograia

e por um uso autoconsciente da montagem de imagem e de som.

O cuidado estético de Sissako singulariza seu pertencimento à ge-

ração de cineastas africanos que alcança sua maturidade longe das

promessas das independências políticas formais e se dedica a pensar

a África, em sua multiplicidade, a partir do desencanto pós-colonial(MBEMBE, 2000), em busca de novos encantos, novas promessas, de

uma vida possível sobre a terra. Heremakono desenrola os ios nar-

rativos de uma alegoria que resta por tecer, compondo a cosmopoé-

tica singular de Abderrahmane Sissako. O tema do desenraizamento

encontra sua imagem na igura do deserto e nos planos dos arbustos

levados pelo vento: os pertencimentos se tornam frágeis e se abre,

na incomunicabilidade, um tempo e um espaço para a imaginação

do comum a partir do pertensimento (RIBEIRO, 2008), uma formatensa (mesmo que silenciosa como o “s” no lugar do “c”) e por isso

inquieta de pertencimento que se abre ao outro.

O MUNDO: BAMAKO 2006, 118’, O SONHO DE TIYA 2008, 11’ E N’DIMAGOU   A DIGNIDADE  2008, 4’

No cinema de Sissako, a busca pela vida possível passa por dar

uma outra imagem da África. Em vez de reiterar o horror que, entre

outras características, marca o que chamo de regime ocidentalista

de escritura da África, no contexto da economia política do nome de

África (RIBEIRO, 2008), Sissako airma e reairma a humanidade e a

dignidade. Dar uma outra imagem da África é declaradamente um de

seus objetivos. O que torna possível a dádiva da imagem é justamen-

te a sensibilidade cosmopolita que alimenta a imaginação do comum

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no cinema de Sissako. Em vez do cosmopolitismo forte de projetos

globais diversos – do capitalismo e do socialismo até as instituições

contemporâneas de cooperação internacional – o cinema de Sissako

projeta um cosmopolitismo frágil e plural, atravessado pelas marcas

do cotidiano e do local.

Em Bamako, o cosmopolitismo frágil da cosmopoética de Sissako

encontra o cosmopolitismo forte dos aparatos discursivos interna-

cionais. A urgência das cosmopolíticas se entrelaça com a potência

da cosmopoética cinematográica de Sissako. Renovando o chama-

do cinema político com o frescor de um ilme dialógico,26  Bamako 

desdobra uma pluralidade de ios narrativos: um julgamento em que

a sociedade civil africana processa as instituições inanceiras inter-nacionais, em especial o Fundo Monetário Internacional e o Banco

Mundial; o casal formado por Melé e Chaka, cuja ilha está doente e

cuja relação passa por uma crise profunda; uma investigação poli-

cial em torno do sumiço ou do roubo de uma arma; os afazeres e os

acontecimentos do cotidiano da cidade – mulheres tingindo tecidos,

crianças brincando e chorando, a celebração de um casamento etc.

Na tecelagem de Bamako, tudo se passa como se a África fosse repre-

sentada em referência a uma variedade de gêneros cinematográicosconsagrados por Hollywood: os ilmes de tribunal, os dramas român-

26 Em uma entrevista, Sissako airma uma concepção dialógica e interrogativa de cinema – “Detoute façon, un ilm n’est pas une vérité, c’est un dialogue, une recherche, un questionnement.”/ “De toda maneira, um ilme não é uma verdade, é um diálogo, uma pesquisa, um questio -namento.” – e ao mesmo tempo fala sobre o processo de construção de Bamako – “Dans unpremier temps, j’ai cherché des avocats professionnels, comme un casting. J’ai trouvé les deuxavocats français puis trois avocats africains (sénégalais, malien et burkinabé) puis j’ai choisiun vrai président de tribunal à Bamako. Un mois avant le tournage, je suis parti à la recherche

de témoins avec mon équipe, notamment auprès d’associations [...]. J’ai aussi invité ces gens àassister au procès. Beaucoup de choses ont été dites et les avocats ont été nourris de tout çaaussi. Vers la in du ilm, ils ont plaidé en écrivant leur plaidoirie eux-mêmes (de même pour lesquestions). J’avais mis en place un dispositif qui permettait cela avec trois caméras, plus une quise déplaçait.” / “Num primeiro tempo, eu procurei advogados proissionais, como um casting.Eu encontrei os dois advogados franceses, depois três advogados africanos (senegalês, malianoe burquinabê), depois eu escolhi um verdadeiro presidente de tribunal em Bamako. Um mêsantes da ilmagem, eu parti em busca de testemunhas com a minha equipe, notavelmente juntoa associações [...]. Eu também convidei essas pessoas a assistir ao processo. Muitas coisas fo-ram ditas e os advogados foram informados de tudo isso também. Perto do im do ilme, elesizeram sua argumentação escrevendo seus pleitos eles mesmos (assim como as questões). Eutinha posto em marcha um dispositivo que permitia isso com três câmeras, mais uma que sedeslocava.” (tradução nossa)

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ticos, as investigações policiais etc. Entrelaçando essas diversas me-

mórias de gênero, encontramos o dispositivo elaborado por Sissako

(três câmeras ixas e uma em movimento), animado por sopros de

vida do cotidiano.

No julgamento, a parte civil é representada por uma equipe en-

cabeçada pela senegalesa Aïssata Tall Sall e pelo francês William

Bourdon, enquanto a defesa ica por conta da equipe do burquinabê

Mamadou Savadogo, do maliano Mamadou Kamouté e do francês Ro-

land Rappaport. São advogados e advogadas proissionais que inter-

pretam a si mesmos como outros, assumindo posições na tecelagem

da icção do processo. Observando a composição das partes, alguém

poderia dizer que Sissako evita os riscos da racialização. No entanto,é notável que a questão da raça ressoe no questionamento, por parte

de uma mulher que assiste o julgamento, da participação de africa-

nos na equipe de defesa: “Olhe pra você e olhe para ele! Você nunca

será como eles! E você os defende?”.27 (tradução do autor) A irrupção

do questionamento sobre a raça – e sobre o olhar que pesa sobre o

corpo e a pele – perturba a formalidade sem corpo do processo. O

olho variável do dispositivo elaborado por Sissako nos desloca dos

termos do processo – o cosmopolitismo forte das instituições inter-nacionais e globais – em direção à tessitura sensível do cotidiano – o

cosmopolitismo frágil da cosmopoética de Sissako.

Os depoimentos reúnem, entre outros, a argumentação da escri-

tora Aminata Traoré – que diz, por exemplo, que a África é vítima de

suas riquezas, e não da pobreza – e o relato de Madou Keita sobre

uma experiência trágica da migração através do deserto; a discus-

são do professor Georges Keita em torno das economias nacionais

dos Estados africanos e de seu papel nos problemas que os paísesdo continente enfrentam e o silêncio contundente de Samba Diakité,

que recebe a palavra para ser ouvido pela corte mas, depois de di-

zer seu nome e outras informações, permanece calado sobre todo o

resto; as denúncias de Assa Badiallo Souko sobre as políticas de pri-

vatização em meio ao neocolonialismo das multinacionais e o ines-

27  “Regarde-toi et regarde-le! Jamais tu ne sera comme eux! Et tu les defends?”

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perado canto de Zegué Bamba, interrompendo as atividades entre o

pleito inal da defesa e aquele da parte civil, numa língua estrangeira

para a maioria dos presentes, assim como para o espectador, a quem

Sissako não oferece qualquer legenda.

Estamos desde o início no cerne de uma interrogação da pala-

vra, de suas potências e impotências. Um camponês, Zegué Bamba,

se dirige à corte sem que lhe tenha sido dada a palavra. A dádiva e o

dom da palavra: eis a questão que abre Bamako e se dissemina entre

suas imagens. Em toda dádiva, em todo dom, encerra-se o segredo de

uma relação social de poder e de dominação.28 Ao começar a narrar

o julgamento – que se passa no quintal da casa do pai de Sissako em

Bamako – pela interdição da palavra a Zegué Bamba, Sissako pare-ce apontar para uma dimensão alegórica em que a igura de Zegué

Bamba vem representar as vozes da África na arena internacional.

Contudo, toda alegoria que se pode projetar em Bamako permane-

ce diferida, assim como no restante da obra de Sissako: enquanto a

economia da palavra se tece em torno do processo – distribuindo sua

dádiva e regrando a circulação de sua potência – a vida se movimen-

ta no quintal e na cidade, com seu barulho e seu silêncio, com seu

ruído que perturba a transparência comunicativa da palavra e fazirromper na imagem os imponderáveis da vida real. A alegoria não

se completa, seus fragmentos permanecem irremediavelmente inco-

mensuráveis. O quadro da alegoria não cessa de se deixar transbor-

dar pela vida, criando uma zona de indeterminação em que o ilme

abriga sopros da vida sob a forma de icção.

Talvez a noite da exibição televisiva do faroeste Death in Timbuktu 

seja o momento de Bamako em que mais se exacerba a potência da

zona de indeterminação entre vida e icção. Reunidos diante da te-levisão, crianças, homens e mulheres assistem a um pequeno ilme

em que atuam o próprio Sissako, o diretor palestino Elia Suleiman, o

28  Entre o Ensaio sobre a dádiva de Marcel Mauss (2003) e o livro O enigma do dom, de MauriceGodelier (2001), passando por outros pensadores da Antropologia, da Filosoia e das huma-nidades em geral, uma das questões cruciais para a compreensão das dinâmicas sociais quecircunscrevem o dom e a dádiva consiste no segredo dessa articulação que os constitui, entrevínculo social e reconhecimento do outro, de um lado, e disputa agônica e vontade de poder.

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ator estadunidense Danny Glover, o diretor congolês Zeka Laplaine

e o diretor francês Jean-Henri Roger. Segundo Sissako (2008, tradu-

ção nossa), Death in Timbuktu, “foi uma maneira de mostrar que os

cowboys não são todos brancos e que o Ocidente não é o único res-

ponsável dos males da África. Nós temos, nós também, nossa parte

de responsabilidade.”29 No entanto, para além das intenções autorais

do diretor, o curta dentro do ilme cifra de forma condensada e con-

tundente o que está em jogo em Bamako. A importância do faroeste

na história do cinema em geral é notável, assim como, em particular,

na formação de Sissako, que assistiu inúmeros spaghetti western de

Sergio Leone e outros diretores. Se a memória de gênero do faroeste,

inscrita ironicamente em Death in Timbuktu, aponta para a questãoda fronteira entre civilização e barbárie ou, em termos mais amplos,

entre um eu e um outro, a narrativa do curta dentro do ilme insi-

nua uma interrogação da condição pós-colonial na África. (MBEM-

BE, 2000) A violência gratuita dos cowboys, que assassinam um dos

dois professores de um povoado (pois dois é demais, como dizem),

remete à situação recorrente de privatização do poder por iguras

de autoridade que, em geral, se beneiciam de sua atuação política

nacionalista na luta pela independência e se convertem em ditadoresque orientam seus governos para seus ganhos pessoais.

É sobre o pano de fundo da condição pós-colonial na África que

talvez possa se tornar legível o sonho de Samba Diakité, contado a

Fodé e a Jean-Paul do outro lado do muro do quintal, depois de cor-

tado o som do alto-falante que transmite o julgamento:

Eu tenho toda noite um sonho que me perturba. [...] Eu estouna escuridão... a luz... Em todo caso, não estou em casa. Nes-se sonho, estou sentado e, diante de mim, há um grande saco.Ele está cheio de cabeças de chefes de Estado. Cada vez que eumergulho minha mão lá dentro, é a mesma cabeça que eu pego.E quando eu a coloco de volta, meu sonho acaba e eu acordo.

29  “c’était une manière de montrer que les cowboys ne sont pas tous blancs et que l’Occidentn’est pas seul responsable des maux de l’Afrique. Nous avons, nous aussi, notre part de respon-sabilité.”

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[...] Eu não sei se é um negro ou um branco. Em todo caso, é amesma cabeça. (tradução nossa) 30

Quando Samba Diakité narra seu sonho, a experiência do so-

nho permanece irredutível em sua singularidade e incomunicávelcomo se seu idioma restasse intraduzível. Se, como escreve Walter

Benjamin (1985, p. 190), o cinema introduz “uma brecha na verda-

de de Heráclito segundo a qual o mundo dos homens acordados é

comum, o dos que dormem é privado”, projetando sonhos coletivos,

o que está em jogo nas formas cinematográicas de representação

do mundo, de mediação da experiência e de apresentação da vida é

justamente o comum em sua incomunicabilidade.

É precisamente da interrogação da incomunicabilidade do comumque resulta parte do interesse da obra de Sissako, assim como de sua

capacidade de abordar os temas do cosmopolitismo forte da agen-

da internacional (migrações, direitos humanos etc.) através de uma

cosmopoética em que a fragilidade do cotidiano delimita as formas

sensíveis de um cosmopolitismo pluralizado. Em seus dois ilmes de

curta metragem mais recentes, O sonho de Tiya e N’Dimagou – A dig-

nidade, os valores e os objetivos das declarações e das convenções

internacionais de direitos humanos são questionados em seu alcance

e em seus sentidos a partir de deslocamentos de perspectiva.

O sonho de Tiya faz parte do longa-metragem 8 (2008), uma pro-

dução independente da sociedade francesa LDM Films em parceria

com organizações não governamentais. (BARLET, 2010) Oito direto-

res realizam oito curtas sobre o combate à pobreza e temáticas rela-

cionadas da agenda internacional. Lembrando a assinatura dos Ob-

jetivos do Milênio pela Organização das Nações Unidas, em setembrode 2000 na cidade de Nova Iorque, O sonho de Tiya aborda a meta

de redução da pobreza e da fome pela metade até o ano de 2015.

Em casa, Tiya Teffera trabalha com costura para ajudar seu pai, par-

30 “[...] Je suis dans l’obscurité... la lumière... En tout cas, je ne suis pas chez moi. Dans ce rêve, jesuis assis, et devant moi il y a un grand sac. Il est rempli de têtes de chefs d’État. Chaque foisque j’y plonge la main, c’est la même tête que j’attrape. Et quand je la remets en place, mon rêves’arrete et je me réveille. [...] Je ne sais pas si c’est un Noir ou un Blanc. En tout cas, c’est la mêmetête”.

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182 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

tindo em seguida para a escola, onde chega atrasada para uma aula

sobre os Objetivos do Milênio. Enquanto se desenrolam os lances de

um jogo de rúgbi fora da sala de aula, os estudantes falam sobre o

assunto da aula. Perguntada sobre o primeiro Objetivo do Milênio,

Tiya responde com a voz baixa, porque, como diz ao professor, não

acredita nisso: para erradicar a pobreza e a fome, é preciso distribuir

riqueza e, portanto, compartilhar, mas segundo Tiya ninguém quer

compartilhar.

Em N’Dimagou – A dignidade – que faz parte da coletânea de cur-

tas Stories on Human Rights (2008), encomendada pelo Escritório

do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos – a

questão “O que é dignidade?” entretece uma pluralidade de visões docotidiano, sobretudo de atividades de trabalho, destinando o cine-

ma ao retrato, assim como, a certa altura, ao autorretrato. Nenhuma

resposta chega a ser enunciada em palavras. Em vários momentos,

a pergunta que se faz fora de campo é repetida pela pessoa retratada.

As imagens disseminam a interrogação, sem que uma verdade sobre

a dignidade possa ser revelada ao inal. O que se revela são os rostos

das pessoas, em cujos retratos cinematográicos se pode adivinhar

o esboço de uma resposta que permanece, contudo, irredutível aoconceito e à palavra, impermeável ao discurso.

As questões cosmopolíticas contemporâneas – as migrações

transnacionais, o combate à pobreza como meta milenar global, a

dignidade humana como horizonte de sentido – encontram no cine-

ma de Sissako um espelho que, entretanto, as desloca, na medida em

que as enquadra a partir da imaginação do comum. Elas são extra-

ídas do marco dos aparatos discursivos internacionais e da esfera

jurídico-política dos direitos humanos e inscritas na tessitura coti-diana de tempos imponderáveis, de retratos de pessoas comuns, de

espaços abertos para outros caminhos. No cinema transnacional de

Abderrahmane Sissako, o olho variável e seus movimentos inquietos

revelam o mundo: ao mesmo tempo descortinam e ocultam suas su-

perícies, retiram e retecem os véus que recobrem suas faces. Em vez

de revelar a vida existente, expondo-a em seu horror ou sonhando-a

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 183

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FILMES DE REGRESSO o cinema africano e o desaio das fronteiras

Amaranta Cesar

INTRODUÇÃO

Para um conjunto signiicativo de ilmes assinados por realizado-

res africanos, que vivem ou viveram a experiência da imigração, o re-

torno ao “país de origem” é a ocasião para representar ou performarum processo de (re)posicionamento identitário. Pretendemos abor-

dar alguns desses ilmes para analisar a maneira como a encenação

dessas trajetórias de um país a outro pode dar lugar tanto a novas

operações de subjetivação, quanto a um cinema singular, que se cria

nos interstícios das identidades. É nesse contexto que se situa o inte-

resse pelo que chamamos aqui de ilmes de regresso, em especial  A

vida sobre a terra (La vie sur terre, 2000), de Abderrahmane Sissako,

e Povoado número um (Bled Number One, 2006), de Rabah Ameur-

-Zaïmeche. Ao encenar o retorno ao país natal do cineasta migran-

te, esses dois ilmes operam atravessamentos de fronteiras diversos

para além dos limites geográicos.

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190 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

E NÃO HAVIA MAIS NEVE : REGRESSO E ORIGENS

Em 1939, o poeta martinicano Aimé Césaire escreve Cahier d’un

retour au pays natal , obra seminal, que pode ser entendida como fun-

dadora desse tipo particular de narrativa de viagem: as narrativas deregresso do imigrante a sua terra natal. Os poemas antológicos de

Césaire, que descrevem a sua volta à Martinica em um estilo reco-

nhecido como surrealista avant la lèttre, inauguram seu pensamento

sobre a restauração identitária dos negros, anunciando o conceito de

Negritude, que ele forjaria anos depois em parceria com o também

poeta Leopold Sédar Senghor, e que marcaria as lutas políticas pela

airmação da identidade cultural das comunidades africanas e da di-

áspora negra em todo o mundo.

Para os primeiros ilmes africanos, que aparecem tardiamente a

partir de década de 1960, com a libertação colonial, a volta “às ori-

gens”, na sua dupla acepção, ocupa um lugar importante, assim como

a necessidade de reconstrução e airmação identitária e a negação da

alteridade colonial. Nesse cenário, surge em 1965 Et la neige n’était

 plus, ilme do senegalês Ababacar Samb-Makharam, que inaugura no

cinema africano este tipo de narrativa de regresso fundada por Cé-saire, na qual a trajetória do imigrante de volta ao país natal opera

um (re)posicionamento identitário.

Et la neige n’ était  plus (Não havia mais neve) é um curta-metra-

gem centrado nos questionamentos e angústias de um jovem se-

negalês, Coulibaly, que volta a Dakar depois de anos de estudos na

França e experimenta um brutal estranhamento nesse retorno, até

se reecontrar com suas raízes africanas. Gravado em locações, em

preto e branco, o ilme, praticamente sem diálogos, é conduzido poruma narração em voz over, que se dirige ao personagem na segunda

pessoa, mas que, ainda assim, parece ser a voz da sua consciência:

uma consciência que julga, interroga, pressiona, e aponta para a ci-

são do sujeito. Essa voz se anuncia logo nos primeiros momentos do

ilme, quando vemos Coulibaly descer do avião ao encontro de um

parente, vestido de trajes tradicionais brancos, que contrastam com

seu terno preto. É ela que nos informa da situação narrativa que se

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 191

apresenta e do desconcerto interno do personagem que é, de fato,

o que anima o ilme:

Voltar a seu país de nascimento depois de anos de ausência,

o que você está sentindo? Está inquieto. Por que essa inquieta-ção? Você está reencontrando sua família e seu país. Tudo quevocê idealizou durante seu exílio voluntário. O que você se tor-nou? Você se transformou?

As interrogações acompanham e conduzem as situações de re-

encontro com o país natal que são construídas não à serviço de uma

narrativa que precisa ser tramada, mas do discurso sobre as nego-

ciações com as diferenças culturais que são encenadas pelo perso-

nagem. Assim, o ilme se divide em três atos. No primeiro momento,acompanhamos o confronto de Coulibaly com a família e seu estra-

nhamento com a tradição. No jantar com os membros da família que

comem juntos, com as mãos, a mesma comida disposta em uma ba-

cia, enquanto a mise-en-scène privilegia seu ollhar distanciado e in-

comodado, ouvimos as lições sobre o valor da tradição dadas pela

narração:

Sua prima lhe deu a colher: será que ela temia que suas mãosjá não pudessem comer com eles? Esta colher não seria o rele-xo da sua mudança? É preciso achar outros principios, outrasformas de existência? Acalme-se playboy. E olhe sua avó, seusprimos e sua tia, eles não se preocupam com colher, é a tradi-ção deles, eles sabem que o progresso não está no conteúdo deuma colher. Eles sabem quem eles são. Você talvez tenha invejadeles. E você diz “eles” como se não izesse parte. Você não con-funde progresso com abandono da tradição? Você não está nomeio daqueles que não falam mais a sua língua, mas também

não sabem a língua do outro?

No que poderíamos chamar de segundo ato, Colibaly, ainda per-

dido na transição, erra pela cidade e encontra uma juventude “assi-

milada”: ao som de jazz , homens de terno e mulheres maquiadas e

de peruca bebem na beira da praia, falam de comunismo e dançam

na boate. Também aí ele não se encontra: “Eles não vivem artiicial-

mente? Eles são mesmo o que ingem ser?”. É, inalmente, quando se

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192 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

confronta com os corpos de duas mulheres negras que a angústia se

dissipa. Uma lhe faz companhia na praia, retira a peruca para entrar

no mar, folheia uma revista de moda francesa, e parece imitar uma

mulher branca sentada ao lado:

“Quem é ela? O que você acha nela? África ou Europa? Nem uma,

nem outra.” Eis que aparece a segunda mulher, uma vendedora, ves-

tida de túnica branca, que, com uma bandeja nas mãos e atraves-

sando lentamente a areia da praia, incarna a epifania que conduz

ao terceiro ato: o reencontro, anunciado pela voz over : “A avó não

queria que você fosse à escola dos brancos, ela achava que você

seria comido pela Europa como muitos outros. Ela tinha razão, é

a partir daqui que você vai reencontrar o equilíbrio e o sentido desua vida”. A paixão súbita pela “verdadeira”  femme noire, para citar

Senghor, aponta justamente para essa reconexão com a identidade

original que apazigua as agústias da reterritorialização. Na última

cena, quando a narração é substituída por um diálogo dublado, Coli-

baly e a vendedora caminham e conversam entre árvores. “Como é

a neve?” ,  ela pergunta. “É branca e cai do céu”, responde ele. “Por

que não tem neve negra?”, ela continua. “Porque não. Mas se você

quiser muito eu invento para você”, ele conclui. Corpo e consciênciaaté então cindidos inalmente se reencontram para airmar algo que

pode ser perfeitamente traduzido pela noção de Negritude, tal como

ela foi deinida por Aimé Césaire: Negritude é

a consciência de ser negro, simples reconhecimento de um fatoque implica a aceitação, apropriação de seu destino de negro,de sua história, de sua cultura; ela é airmação de uma identi-dade, de uma solidariedade, de uma idelidade a um conjunto

de valores negros. (MUNANGA, 20110)

Assim, este primeiro ilme de regresso africano nos apresenta

a um sujeito, inicialmente, “entre-lugares” (BHABHA, 2007), que

enfrenta o desconcerto da desterritorialização/reterritorialização,

mas que, inalmente, se resolve na simpliicação da oposição célebre

concebida por Frantz Fanon: entre a máscara branca e a pele negra,

a pele original, que termina sendo redescoberta. No lugar de ensejar

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 193

um processo de articulação de diferenças culturais, que explicitaria a

identidade como um processo sempre inacabado, a trajetória do imi-

grante, neste ilme, termina por se fechar numa prática de recons-

tituição de uma identidade originária, estável, ixa, excluindo-se de

uma dinâmica complexa que constituiria a distinção entre alteridade

e diferença, essencial para o sujeito pós-colonial. A incapacidade

de dar conta da complexidade dessa dinâmica é que mobilizou as

críticas ao conceito de Negritude feitas por escritores das antilhas

de gerações posteriores, à exemplo de Édouard Glissant, através de

noções como “poética da relação” e “poética da diversidade”. (GLIS-

SANT, 1996)

Como nos alerta Homi Bhabha, é para além das narrativas desubjetividades originárias e iniciais que se encontra, na experiência

da imigração, o que é teoricamente inovador e politicamente crucial:

é pela sua capacidade de oferecer o terreno para a elaboração de

novos processos de subjetivação e de “postos inovadores de colabo-

ração e contestação, no ato de deinir a própria idéia de sociedade”

que a experiência do “entre lugares” pode render frutos. (BHABHA,

2006, p. 19-20) É nesse sentido que nos interessaremos, daqui para

frente, pelos ilmes Bled number one (2006) e La vie sur terre (2000).Supomos que neles a experiência da desterritorialização e reterri-

torialização cinde o sujeito, e ao mesmo tempo libera o seu olhar,

para que surjam novas operações de subjetivação, que se criam nos

interstícios das identidades.

POVOADO NÚMERO UM: REGRESSO

E REPOSICIONAMENTO

Povoado número um (Bled number one) é o segundo ilme de Ra-

bat Ameur-Zaïmeche, cineasta nascido na Argélia, que imigrou aos

dois anos para a França, onde vive até hoje. Povoado número um é a

sequência de Wesh wesh, o que foi? (Wesh wesh, qu’est-ce qui se passe,

2002 ), o primeiro longa do diretor, um ilme de urgência, produzido

com recursos próprios, encenado por familiares, vizinhos e amigos

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e ilmado na própria casa da família na Cité des Bosquet , periferia de

Paris, onde o diretor passou grande parte de sua vida. Wesh wesh…

tem como projeto a reapropriação da imagem do subúrbio pelo uso

dos instrumentos similares aos da grande mídia. A câmera digital

broadcast  ilma jovens suburbanos enredados em tramas de violên-

cia e tráico de drogas, mas aqui são os policiais que aparecem com

o rosto borrado numa inversão do gesto comum ao telejornalismo –

que supõe proteger – mas criminaliza. Kamel, interpretado pelo pró-

prio realizador, é o personagem principal do ilme, que nos mostra

sua diiculdade de reinserção após sair da prisão e voltar para seu

bairro. Através da perspectiva de Kamel, vemos ainda outros jovens

com diiculdades de encontrar seu lugar na cidade e na comunidade.Pesa sobre Kamel a iminência de ser expulso de volta à Argélia, o que

termina por acontecer por conta da reincidência, sempre duvidosa,

no crime. É esse o ponto de partida (ou de retorno) de Bled Number

One, que se inicia, ao som da mesma música que ouvimos no ilnal de

Wesh, Wesh..., com um longo traveling de chegada ao povoado, feito

de dentro de um carro, que logo vemos se tratar do táxi onde está

Kamel. O táxi avança pela rua cheia de gente que acompanha com

curiosidade a chegada do personagem a Louloudj, o seu “bled ”, naKabylia, região do nordeste da Argélia.

Bled   é uma palavra bastante conhecida entre os imigrantes ar-

gelinos. Proveniente do árabe bilad , que signiica terra ou país, ela é

usada carinhosamente para se referir ao povoado natal e, no título

do ilme, parece remeter a esse espaço original no qual o persona-

gem é lançado. Mas se bled  é uma remissão ao árabe, à origem, ao an-

coramento à terra original, o number one que o complementa aponta

para a distância, para aquilo que irremediavelmente é estrangeiromesmo quando se refere ao familiar, distante mesmo na terra natal.

Essa contradição ou ambiguidade que está no seu título tem impli-

cações em todas as esferas do ilme: na narrativa, na mise-en-scène,

no jogo de atores, no posicionamento do realizador-ator, no imbrica-

mento entre icção e realidade. Se no âmbito da narrativa a questão

central é o retorno ao povoado natal de dois personagens desenrai-

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zados, Kamel e Louise, sua prima que foge do marido violento, e a

maneira como eles vão, novamente, sendo apartados da terra e da

comunidade original, essa posição intermediária (estão dentro e ao

mesmo tempo fora), é potencializada pela escolhas estéticas do cine-

asta e, sobretudo, pelo posicionamento que ele assume.

A questão do retorno é mais do que um mote narrativo, até por-

que há uma recusa explícita em conectar uma trama que se anuncia –

mas nunca se revela completamente – deixando sempre no ar a per-

gunta que dá título ao ilme precedente: o que se passa? É impossível

discernir até mesmo o motivo que traz Kamel ao bled . Desse modo,

o regresso do imigrante e sua tentativa de reterritorialização coinci-

de muito mais com um dispositivo, em boa medida documental, queconsiste em enxertar personagens ictícios, interpretados por atores

proissionais, em um espaço real habitado por não atores – a famí-

lia do cineasta e a população do vilarejo. O dispositivo é especular

ao movimento de reinserção feito pelo personagem principal, e pelo

próprio cineasta: o ilho do país que volta e se reimplanta na terra

que deixou. Essa operação faz, então, do regresso do imigrante um

disposito que permite que a ilmagem aconteça não para ilustrar o

roteiro, mas em colocá-lo, para citar Comolli, “sob o risco do real”,(COMOLLI, 2008) ao mesmo tempo em que o real é também posto

à prova pela icção. A câmera e os personagens ictícios podem se

iniltrar no meio de um acontecimento que não tem necessariamen-

te lugar para eles, como a morte de um boi num ritual tradicional,

ou podem também provocá-los, articulando encenações, por vezes,

explicitamente falsas, como a incursão em um bar de um bando de

fundamentalistas mulçumanos, que parece uma paródia de western.

O dispositivo ilmico é potencializado ainda pelas modulaçõesde ponto de vista que derivam do descentramento que vai tomando

conta do ilme, que é dividido em dois tempos: a chegada e o acolhi-

mento, momento em que a tradição é uma grande festa comunitária;

a rutpura, provocada pela crise com os valores tradicionais, espe-

cialmente, a violência contra a mulher. Os primeiros momentos são

ilmados do interior. Desde que chega, Kamel participa ativamente

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das situações e a câmera tenta encontrar junto com ele o seu lugar

dentro dos acontecimentos. Na encenação da Zarda isso se dá de ma-

neira explícita. A Zarda, o ritual tradicional em que se mata um boi e

divide-se a carne entre as famílias da comunidade, seguido de uma

festa que acontece em espaços que separam os homens das mulhe-

res, é provocada pelo ilme, mas acontece na sua organização habi-

tual forçando uma ilmagem ao vivo, sem retakes, em que a câmera

deve encontrar seu lugar dentro do acontecimento, assim como Ra-

bah, que potencializa sua dupla posição: é o ator, interpretando um

personagem, mas é, ao mesmo tempo, ele mesmo, o sobrinho, pri-

mo, amigo, que participa do ritual. Mas já nesse momento é possível

notar os traços de um distanciamento que fazem da sua posição atodo tempo ambígua. Enquanto o primo discute com outros homens

a respeito de umas cervejas, ele se interessa por uma formiga. En-

quanto os homens se agrupam para comer, ele ignora as prescrições

da tradição e mistura-se com as mulheres aparecendo, com seu boné

laranja, como o elemento estranho imiscuido no meio de panos colo-

ridos que cobrem os corpos e cabeças.

A distância vai se agravando pouco a pouco e é consumada quan-

do ele rompe com a família e com a comunidade, depois de testemu-nhar a surra que Louise, sua prima, rejeitada pelo marido e também

de retorno ao bled , leva do irmão (os dois primos são os únicos per-

sonagens interpretados por atores proissionais). Quando a ruptu-

ra é consumada, Kamel é condenado a observar de longe. Até que o

ilme se descentra completamente para acompanhar o processo de

exclusão de Louise, que culmina com sua reclusão em um hospital

psiquiátrico para mulheres – todas, sintomaticamente, violentadas

pelos maridos. Através dessa alternância de posicionamentos espa-ciais e da modulação de perspectiva que daí decorre vemos o olhar

nômade se airmar e o território tonar-se paisagem. Isto porque o

ponto de vista transmuta-se constantemente com a incapacidade

de reterritorialização do personagem, fazendo a atmosfera tam-

bém transformar-se – aquilo que parecia familiar torna-se estranho.

Opacidade e transparência alternam-se, assim, com as oscilações de

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ponto de vista, com implicações ainda para a iliação documental do

ilme. Como bem observa Antoine Thirion (2008, p.11) essa modu-

lação de perspectiva distancia-se completamente “[...] de uma certa

concepção do documentário que busca sem parar o ponto de vista

justo”, ou, poderíamos dizer, a justeza do ponto de vista que garanti-

ria legitimidade da representação.

Povoado número um está mais interessado nas relações que trans-

iguram os agentes do que nas ações que os deinem, e, assim, o ilme

privilegia os posicionamentos no lugar das identiicações, para con-

vocar os termos de Stuart Hall. De maneira radicalmente distinta do

que é possível observar em E não havia mais neve, Povoado número 

um termina apontando para uma nova errância (o ilme acaba com opersonagem negociando um passaporte com um passador para atra-

vessar a fronteira com a Tunísia), airmando a impossibilidade de

realizar uma sutura com a terra natal e demonstrando, assim, que a

identiicação é um posicionamento, que, como tal, deve ser conside-

rado como um processo, sempre aberto, precário, colocado à prova

a todo momento. Nesses termos, como airma Hall, a identiicação,

uma vez assegurada, não anulará a diferença. (HALL, 2003, p. 106)

Para Stuart Hall, as identidades são pontos de apego temporá-rio às “posições-de-sujeito” que as práticas discursivas constróem.

Elas são o resultado de uma bem-sucedida articulação ou ixação do

sujeito ao luxo de discurso. É preciso notar aqui que a identidade,

nesse sentido, é pensada não como uma via de sentido único, mas

como uma articulação: trata-se de uma adesão a uma interpelação

dos discursos (a produção de posições-de-sujeito) mas também de

um investimento do sujeito para ocupar essa posição determinada.

(HALL, 2003, p. 106) No que diz respeito a Povoado número um, po-demos observar que regresso ao país natal não permite uma adesão

a uma posição-de-sujeito, uma ixação, ao contrário, a trajetória do

imigrante implica numa recusa a responder positivamente a uma in-

terpelação, produzindo uma subjetividade nova. É por isso que a tra-

jetória de Kamel nos permite pensar como as identidades são pontos

instáveis de identiicação. O ilme nos apresenta uma rasura, onde

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deveria haver uma sutura, e é justamente nesse movimento de des-

preendimento que está o lugar da subjetividade. Desse modo, o ilme

pode ser entendido como a condição de cisura com uma posição-de-

-sujeito, e, portanto, como uma operação de subjetivação. (HALL,

2003, p. 106-112)

É preciso observar que, se Povoado número um é capaz de pro-

duzir uma subjetividade nova, isto se dá não porque ele encena

uma ruptura simplesmente com a identidade original, mas, sobre-

tudo, porque Rabah Ameur-Zaïmeche não abre mão de explorar as

consequências da sua própria posição intermediária – entre a icção

e a realidade, entre a família e os atores, entre a atuação e a direção.

Estar presente na imagem, como ator e personagem, e ao mesmotempo, como cineasta, diz respeito a um engajamento com impor-

tantes implicações estéticas, éticas e políticas. Em primeiro lugar,

estar em cena com familiares, amigos e parentes é uma forma de

engajamento em uma comunidade, que explicita o caráter político

dessa história íntima, e o valor coletivo do gesto individual: o que

nos permitira pensar no ilme como um exemplar de um certo “ci-

nema menor”, numa aplicação do conceito de Deleuze e Gautarri de

“literatura menor”.1 (DELEUZE; GUATTARI, 1975)Em segundo lugar, estar presente com a família na cena, fazê-la

se desdobrar na sua comunidade natal, na casa onde nasceu, pro-

duz uma experiência e não apenas uma representação. Cada imagem

ocupada pelo corpo – familiar e estranho – de Rabah Ameur-Zaïme-

che aponta para o fato de que a trajetória do imigrante de volta para

casa aqui não é prévia ao ilme, ela se produz junto com a imagem,

é performada por ela. Ao mesmo tempo, para existir, a imagem, e o

ilme, dependem de um deslocamento efetivo, experimentado pelocineasta cujo corpo em cena produz uma implicação entre o mundo

e o ilme, a vida e a imagem.

1 O conceito de “literatura menor”, desenvolvido por Deleuze e Gattari, diz respeito à literaturaproduzida por uma minoria dentro de uma língua maior. São três suas características princi-pais, segundo o autor: 1) a língua é afetada por um forte coeiciente de desterritorialização;2) seu espaço exíguo faz com que toda questão individual seja conectada a política – tudo nela épolítico; 3) o campo político contaminou todo enunciado, tudo que o escritor diz sozinho ganha,assim, um valor coletivo. (DELEUZE, GUATTARI, 1975, p. 29-31)

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E, inalmente, manter aberta essa experiência do “entre-lugares”,

tomando o distanciamento do observador, sem, no entanto, abrir

mão de emaranhar-se afetivamente tanto no mundo como na ima-

gem, é airmar a potência de um posto de saber, e de contestação,

que há na posição do exilado, tal como ela se expressa nas palavras

de George Didi-Huberman (2009, p. 12):

Para saber é preciso tomar posição. Gesto que não é nada sim -ples. Tomar posição é se situar duas vezes, pelo menos, nosdois lados pelo menos que comporta toda posição porque todaposição é, fatalmente, relativa. […] Para saber é preciso tomarposição, o que supõe movimentar-se e assumir constantemen-te a responsabilidade de um tal movimento. Este movimento

que é aproximação, tanto quanto distanciamento: aproximaçãocom reserva, distanciamento com desejo. Ele supõe um conta-to, mas ele o supõe quebrado, perdido, impossível até o im.Esta é, ainal de contas, a posição do exílio.

A VIDA SOBRE A TERRA: REGRESSOE AUTORREPRESENTAÇÃO

Nascido na Mauritânea, criado no Mali e atualmente residentena França, Abderrahmane Sissako é, como Rabah Ameur-Zaïmeche,

um cineasta que vive o exílio e cujo cinema está intimamente ligado

a esta posição. Mas se para Ameur-Zaïmeche o cinema constitui um

dispositivo através do qual ele experimenta e performa delocamen-

tos, para Sissako isso se dá de maneira ainda mais imbricada, uma

vez que os movimentos que o colocaram na condição de imigran-

te foram motivados pelo próprio cinema. Foi para estudar no VGIK,

instituto cinematográico estatal russo, que aos 22 anos ele deixouo Mali para ir a Moscou. E se o cinema foi o pretexto para que Ab -

derrahmane viesse a circular pelo mundo e se tornasse um nômade,

seus ilmes invariavelmente incorporam seus deslocamentos, e mais

que isso provocam, motivam e viabilizam novos trânsitos. No seu

primeiro curta de formatura, Outubro,  vemos justamente o drama

da partida de um estudante africano em Moscou. No ilme seguinte,

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200 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

Rostov-Luanda, um documentário de busca, Sissako desloca-se entre

Rússia e Angola seguindo as pistas de um colega do curso de cinema

desaparecido na guerra civil. E, inalmente, em A vida sobre a terra,

seu primeiro longa-metragem, a pretexto de fazer um ilme (sob a

encomenda do canal franco-alemão Arte) sobre a passagem para o

ano 2000 da perspectiva africana, Sissako parte à Sokolo, uma pe-

quena aldeia no Mali, onde vive seu pai.

 A vida sobre a terra é, pois, um ilme de regresso. E ele não é ape-

nas um ilme sobre o regresso, porque retornar e estar lá são sui-

cientes para que “haja ilme”, como diria Comolli (2008). A vida sobre

a terra se constrói, plano após plano, sobre a crença no deslocamen-

to como produtor de imagens e falas, crença essencial para o cinemade Abderrahmane Sissako. O retorno ao país natal é, desse modo, um

dispositivo, que conta com o deslocamento efetivo do cineasta, com

sua presença e de seus familiares em cena, e que promove o imbrica-

mento entre vida e cinema, como se anuncia logo no início do ilme,

pela voz over do próprio cineasta, que lê uma carta endereçada a seu

pai, enquanto vemos o velho homem lendo o papel entre as mãos,

sentado numa cama, sob um cortinado, num quarto de paredes de

terra:

Querido pai, você icará surpreso, talvez até preocupado, ao re-ceber uma carta minha. Eu me apresso logo em dizer que tudovai bem e eu espero que você também esteja bem. Contraria-mente à mensagem que eu te envei por Jiddou, uma mudan-ça importante faz com que eu esteja brevemente com você emSokolo. O desejo de ilmar Sokolo. O desejo também de partir,como dizia Aimé Césaire. Especialmente porque daqui a pouconós estaremos no ano 2000 e que nada mudará para melhor.

Você sabe disso melhor do que eu. [...] Eu tentarei então ilmaresse desejo. Estar com você, estar em Sokolo. Longe do que euvivo, da velocidade louca. Longe “dessa Europa”, como disse opoeta [...].

O dispositivo ilmico consiste, então, em partir, regressar e ver

a passagem do ano 2000, que, no entanto, revela-se como uma “não

data”. Nada na rotina do vilarejo acusa a virada do milênio: nenhum

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 201

ritual, nenhum sinal de transformação, nada de novo para a África,

e nenhuma ilusão nesse sentido. Não por acaso, apenas uma cartela

com a inscrição de uma frase de Aimé Césaire sinaliza, de maneira

simbólica, a passagem do ano 2000: “Com a orelha colada no solo, eu

escutei o amanhã passar”. O procedimento ilmico consiste, asssim,

em assumir também a restrição como força motriz: sem roteiro, sem

grandes eventos, o ilme se constrói pouco a pouco na forma de uma

extrema atenção ao cotidiano do lugar, que signiica desenvolver um

olhar particular para essa terra, num gesto de aproximação e redes-

coberta – gesto de “colar-se ao solo”.

Sissako reividica, assim, um olhar atento e “de dentro”. Ele atra-

vessa o ilme, riscando o chão de terra com sua bicicleta, e, com ela,vai costurando quadros animados de Sokolo: o vai e vem de gente,

carroças e bichos, a praça central onde as poucas coisas acontecem

lentamente: os homens que tomam o chá e ouvem radio, o costu-

reiro, o fotógrafo lambe-lambe, o camelô, o cabeleleiro, a rádio e o

posto telefônico. Num ciclo constante pontuado pela sua bicicleta e

pela bicicleta de Nana, a outra estrangeira de passagem pelo vilare-

jo, alternam-se sequências em que pouco ou muito pouco acontece:

os homens que tomam chá vão deslocando de pouquinho em pou-quinho suas cadeiras em busca de sombra, camponeses tentam uma

comunicação telefônica com o exterior, muitas vezes sem sucesso,

os locutores conduzem o programa na rádio, o costureiro costura,

e assim sucessivamente.

Mas, se num sentido reivindica-se a proximidade, em outro sen-

tido as coisas parecem misteriosas, indescifráveis por esse olhar que

se demora demasiadamente atento às minúcias e insigniicâncias do

cotidiano, inscrevendo-as numa duração que torna estranho o fa-miliar. O resultado disso é tanto uma opacidade – Sissako recusa o

posto de tradutor da África, não há tradução possível –, quanto um

gesto de distanciamento, que termina por enfatizar o próprio olhar:

a terra, assim, torna-se paisagem, como observamos em Povoado

número um.

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202 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

No entanto, em A vida sobre a terra, a posição intermediária, que

articula distanciamento e proximidade, ganha uma dimensão parti-

cular. O ilme deveria ser uma icção que estava sendo escrita em

Paris, mas, segundo Abderrahmane Sissako, a escrita parecia-lhe

como uma demissão da implicação do ilme na vida: na sua vida e

na vida do lugar. (BARLET, 1998)  O regresso enquanto dispositivo

é, então, uma airmação de um engajamento: do ilme na sua vida,

do ilme na vida do lugar, mas, sobretudo, da sua vida na vida deste

lugar. Como em Povoado número um, retornar ao país natal e fazer

deste retorno uma experiência é um gesto que tem consequências

estéticas, éticas e políticas: trata-se de produzir uma experiência e

não apenas uma representação, na qual a imagem ostenta sua for-ça performativa; trata-se ainda da produção de um enunciado que

atribui valor coletivo à trajetória individual. Porém, ao contrário do

que se percebe em Povoado número um, o ilme-regresso de Sissako

constitui uma maneira não apenas de testar o precário elo de perten-

cimento a uma comunidade, mas de reairmá-lo, e isso se demonstra

na maneira como o realizador aparece em cena, vestido com batas

coloridas e estampadas, totalmente inserido no cotidiano local, e,

sobretudo, pela apropriação dos textos de Aimé Césaire, recitadospelo próprio Adbderrahmane em voz over, à exemplo do trecho que

se segue: “Partir... eu chegarei liso e jovem neste país meu e eu direi

a este país cujo lodo entra na composição da minha carne: ‘Eu vaguei

por muito tempo e eu volto para o horror abandonado de suas feri-

das”. Há aqui uma airmação de pertencimento e identidade que se

renova e torna-se possível através do regresso. O ilme se constrói

sobre o reconhecimento de que regressar é um gesto político. “O que

eu aprendo aqui vale o que eu esqueço de nós?”. A pergunta, anuncia-da logo no início do ilme, explicita que o olhar é contaminado pelo

esquecimento e pelo aprendizado novo, mas, ao mesmo tempo, a

resposta construída pelo dispositivo ílmico reairma uma comun-

hão com esse espaço original. Regressar é também (re)posicionar-se

num espaço que era e será sempre seu, para airmar um lugar de fala.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 203

O desaio parece ser, então, manter o posto de saber que o exílio

e o nomadismo permitem sem abrir mão, no entanto, da defesa de

uma certa iliação com a identidade original. Vislumbramos aqui

uma posição ambivalente próxima àquela observada por Dudley An-

drew (2003, p. 18), para quem “o cinema africano uniria os impulsos

duais da liberdade e da identidade, representados respectivamente

pelo amplo Sahel e pelo baobá enraizado”. Mas a imagem do baobá

que vemos nos primeiros minutos de A vida sobre a terra nos apon-

ta para além desse dualismo. No lugar da imagem antológica das

grandes raízes que se estendem pelo chão, onde homens sentam-se

para conversar e contar histórias, Sissako nos dá a imagem do tronco

seco, nu, desse grande baobá cujas extremidades formam um ema-ranhado de galhos que se projetam para o céu. Há aqui um signii-

cativo movimento de inversão que se anuncia. O que Sissako parece

propor não é um retorno às raízes, ou à identidade original: trata-se

de airmar uma transformação do lugar de enunciação. As histórias e

palavras ancoradas nesse solo vão se emaranhando em uma grande

trama e projetam-se para fora do quadro. É nesse sentido que ele

airma sua posição intermediária. Sissako parece querer deixar claro

que ele fala da África, a partir da perspectiva africana, para o mundo.Ele reairma, assim, aquilo que Deleuze dizia da condição do cineasta

do terceiro mundo: seu ilme tem valor de um ato de fala de toda uma

comunidade. (DELEUZE, 1985, p. 289) O deslocamento que o ilme

produz é, desse modo, uma forma de airmação de uma subjetividade

que se constitui no trânsito e, ao mesmo tempo, na relação de iliação

com a comunidade original. Através da operação dessa subjetividade

que se constrói na articulação de diferenças culturais, ele recoloca o

continente na trama da história global, negando a imagem de reservade exotismo, de depositário de uma temporalidade desconectada do

resto do mundo. Nesse sentido, é emblemático o título do ilme: não

se trata da vida na África, mas da vida sobre a terra.

O ilme nos mostra, desse modo, como o espaço de Sokolo é atra-

vessado pelas vozes, discursos, imaginários e recursos provenientes

da Europa e do mundo – é isso que nos diz, por exemplo, a presença

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204 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

constante do som da rádio francesa no vilarejo, sinalizando a passa-

gem do novo ano e colocando a festa na Torre Eiffel no meio da praça

de Sokolo. A África, longe de estar isolada numa temporalidade pró-

pria e pura é resultado da maneira como a Europa penetrou nesse

território e espalhou seus habitantes pela terra; é resultado enim

da modernidade ocidental e das diásporas provocadas por ela. Mas

mais do que demonstrar como a Europa projetou-se sobre a África,

produzindo uma justaposição de temporalidades e atravessamentos

de forças heterogêneas nesse espaço, o ilme aponta para um dese-

jo de comunicação e para a necessidade de fundação de um lugar

próprio e novo de enunciação. Como diz um personagem: “A comu-

nicação é uma questão de sorte: às vezes acontece, às vezes, não.” Astantas tentativas de comunicação fracassadas que atravessam o il-

me nos mostram a diiculdade e as falhas no sistema de comunicação

africano, em pleno ano 2000, mas nos dizem também da necessidade

de ter um lugar de fala. A vida sobre a terra parece ser, assim, um ges-

to de crença na potência e na necessidade de falar de um lugar pró-

prio para o mundo, o que pode ser entendido como uma reairmação

da potência política da autorrepresentação. Algo que se conirmaria

de modo contudente depois, em Bamako, o grande ilme político deAbderrahmane Sissako.

Em Bamako, ilme em que se encena o julgamento do Banco Mun-

dial e do FMI tornados réus pela população civil do Mali, é possí-

vel observar justamente como o “direito a narrar-se” é um meio de

garantir a força política de um grupo nacional ou comunitário num

mundo globalizado. (BHABHA, 2007, p. 241) A demanda por autor-

representação deve ser entendida como uma resposta aos limites da

representação, não apenas simbólica, mas, sobretudo, política, ouseja, no sentido que ela assume nos regimes democráticos represen-

tativos contemporâneos. É nessa perspectiva que a autorrepresen-

tação parece continuar sendo essencial para os cinemas africanos e

diaspóricos.

Mas é preciso considerar também que a ideia de autorrepre-

sentação corre o risco de ser lançada no âmbito dos estudos das re-

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 205

presentações das identidades. E reconhecemos os limites e proble-

máticas da noção de “representação da identidade”, como tem sido

apontado por muitos autores, em sentidos diversos. Para icar em

poucos exemplos, podemos citar as ponderações de Robert Stam e

Ella Shohat (2006) no que diz respeito à análise do estereótipo e ao

que eles chamam de “fardo da representação”, os estudos de Andréa

França (2010) sobre a noção de fronteira e suas implicações na cons-

tatação da “precariedade dos processos de representação da identi-

dade”, e mesmo as argumentações de André Brasil (2011) sobre a

força da dimensão performativa das imagens contemporâneas em

detrimento de sua dimensão representacional.

CONCLUSÃO

Situando-se nos limiares da icção e do documentário, da identi-

dade cultural coletiva e da produção de subjetividade, da represen-

tação e da performance, da intimidade e da política, A vida sobre a

terra e Povoado número um transcendem a noção de “representação

da identidade”, sem entretanto abdicar de uma iliação política, que

está ligada à necessidade de autorrepresentação, entendida aqui em

seu sentido amplo. Tanto o ilme de Rabat Ameur-Zaïmeche, quanto o

ilme de Abderrahmane Sissako nos permitem vislumbrar a potência

política da autorrepresentação para além das identidades, na medi-

da em que eles nos mostram como a produção do eu como objeto do

mundo pode interromper, impedir ou perturbar a tranquila inserção

dos indivíduos nas posições-de-sujeito construídas pelos discursos

– as identidades ixas e originárias. Nos dois ilmes, o regresso coin-

cide com um processo de performatividade, e pode ser entendido

como uma prática de autoconstituição subjetiva, apontando para o

fato de que a força da autorrepresentação tem a ver com a produção

não daquilo que nós somos, mas daquilo que nós nos tornamos.

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206 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

REFERÊNCIAS

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 209

ESQUIVAS representações das margens no cinema beur

Catarina Amorim de Oliveira Andrade

Identiicamos-nos com o outro exatamente no ponto em queele é inimitável, no ponto em que se esquiva da semelhança.

Slavoj Žižek 

Desde a década de 1980, a produção cinematográica francesa

tem sido marcada por cada vez mais numerosas produções que se

conveniou chamar de cinéma beur   ou cinéma de banlieue. Filmes

como Laisse béton (Roger Le Péron, 1983), Thé à la menthe (Abde-

lkrim Bahloul, 1984), Le thé au haren d’archimède  (Medhi Charef,

1985), Baton Rouge (Rachid Bouchareb, 1985), voltaram seus olha-

res para a periferia que habita a França, retratando histórias particu-

lares, e ao mesmo tempo universais, das populações marginalizadas,

compostas sobretudo por imigrantes de origem africana.

O exílio forçado, a família, a tradição, a vida em conjuntos ha-bitacionais e as várias formas de delinquência, sobre o planode fundo da longa história do colonialismo francês, são as te-

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máticas que ligam muitos desses ilmes.1 (BLOOM, 2003, p. 47,tradução da autora)

Esses ilmes promoveram a consolidação do movimento beur  e

formaram uma espécie de terreno fértil onde muitos outros pude-ram lorescer. Um dos cineastas que merecem destaque nesse âm-

bito é Abdellatif Kechiche, cujo primeiro longa La faute à Voltaire 

(2000) já alcançou o grande público e ganhou, além de outros, dois

prêmios no Festival de Veneza. Suas outras produções, L’esquive (A

Esquiva, 2003) e La graine et le mulet  (O Segredo do Grão, 2007) não

foram menos notáveis e concederam a Kechiche um lugar privilegia-

do dentro do cinema francês contemporâneo.

Neste artigo, portanto, pretendo me dedicar a um estudo maisdetalhado de A esquiva, ilme vencedor de quatro César em 2005 e

que obteve indiscutivelmente mais sucesso do que muitos outros do

mesmo gênero.  A Esquiva narra a história de um grupo de adoles-

centes de diferentes origens étnicas, vivendo na periferia parisiense.

Sendo todos alunos de uma mesma escola, alguns deles se preparam

para apresentar no inal do ano letivo uma peça de teatro de Mari-

vaux, Le jeu de l’amour et du hasard ,2 para os pais, os professores e

os outros colegas.

Apesar de acompanhar algumas das características dos ilmes de

banlieue, como as tensões que se estabelecem na periferia em rela-

ção a um centro dominante, o ilme revela-se consistente por enfocar

as oposições dessas tensões no universo da linguagem. É na justa-

posição da linguagem do século XVIII do texto de Marivaux a uma

linguagem contemporânea, cheia de argot 3 e verlan,4  característica

da banlieue, onde está a maestria de Kechiche. Com isso, os persona-

1 “Thematizations of imposed exile, family, tradition, life in the housing projects, and various for-ms of delinquency overlaid with the lingering history of French colonial involvement link anumber of these ilms”

2 O jogo do amor e do acaso.

3 Gíria.

4 Uma espécie de jogo fonético de inversão de sílabas (por exemplo, femme – mulher –, em verlan seria meuf ), muito executado pelos magrebinos e seus descendentes residentes na França.

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gens retratados no ilme, assim como aqueles que o ilme sugere re-

tratar (os da obra de Marivaux), demonstram que ocupam um lugar

legítimo dentro da sociedade e cultura francesas.

A câmera ilma, em uma pequena sequência de primeiros planos,

um grupo de amigos que discutem uma vingança contra outros me-

ninos que se apoderaram dos pertences de um deles. Os jovens en-

raivecidos planejam, entre outras coisas, “quebrar a cara dos ilhos

da puta”. Aproxima-se deles Krimo (Osman Elkharraz), um garoto jo-

vem, de aparência calma e melancólica. Os outros perguntam se Kri-

mo vai acompanhá-los. Sem mudar de isionomia ao longo de toda

a cena, ele responde que vai buscar seu nunchaku. Krimo corre na

frente da câmera e aparece o título do ilme: L’esquive. Está marcadaa primeira esquiva de Krimo. Dali ele segue para a casa da namorada,

Magali (Aurélie Ganito), que, aborrecida por ele não ter se comuni-

cado com ela nos últimos dias, termina o imaturo relacionamento.

Pouco tempo depois, Krimo se encontra com Lydia (Sara Fores-

tier) que experimenta seu vestido, um traje do século XVIII, que uti-

lizará para a apresentação da peça de teatro. Depois de barganhar o

preço do vestido e de pedir dez euros emprestados a Krimo, os dois

saem pelas ruas do bairro. Exibindo-se com seu vestido de Lisette5 ecom ar de muita alegria, Lydia pergunta diversas vezes aos amigos se

eles gostam do vestido, se ela está bonita etc., enquanto caminha em

direção ao local do ensaio.

Num terreno localizado entre ediícios de um conjunto habitacio-

nal, do tipo HLM (Habitation à Louer Modéré ),6 Frida (Sabrina Oua-

zani) e Rachid (Rachid Hami) esperam Lydia. Depois de uma disputa

calorosa e recheada de muitos insultos entre Lydia e Frida, esta úl-

tima irritada por causa do atraso da amiga e da presença de Krimo,os três começam a ensaiar. No momento em que começam a repetir

5 Personagem que Lydia representará na peça Le jeu de l’amour et du hasard .

6 O sistema de habitação HLM, de baixo custo, foi criado no pós-guerra, na década de 1950, emfunção da crise habitacional na França. Dessa forma, o governo subsidiou e promoveu a cons-trução massiva de residências, sobretudo na região metropolitana parisiense. Atualmente umagrande parte dessas residências é habitada por uma população de imigrantes e/ou seus des -cendentes, notadamente de origem argelina.

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212 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

as palavras de seus personagens, os jovens do subúrbio deixam de

articular um francês pleno de gírias e verlan e passam a utilizar um

francês literário, gramaticalmente impecável, de um autor estimado

pela Académie Française, e que não apenas se preocupou com a lin-

guagem em suas obras, mas, de certa maneira, também foi responsá-

vel por novas utilizações do francês padrão.7

A passagem de um registro linguístico a outro é evidente e in-

tencional. Ela é feita com muita naturalidade, sobretudo por Frida e

Lydia, que se empenham em “entrar na pele” (como elas costumam

falar) dos personagens. E, além disso, essas passagens tendem a de-

monstrar, a partir da facilidade com que esses jovens têm de “tran-

sitar” nesses dois diferentes “lugares” linguísticos, que AbdellatifKechiche não escolheu o texto de Marivaux por acaso. Segundo o

professor Vinay Swamy (2007, p. 59), da University of Washington,

a justaposição dos diferentes registros da língua francesa serve tam-

bém para desconstruir o estereótipo de uma periferia necessaria-

mente violenta.

Isso não quer dizer que não haja violência, pois ela está sempre

presente nos olhares, nos insultos, no tom de voz e em diversas ati-

tudes dos personagens, contudo, o que se pode constatar ao longodo ilme é que Kechiche buscou retratar uma violência (entre outros

sentimentos, como o amor, por exemplo) própria do jovem de uma

maneira quase universal e não necessariamente do “jovem margi-

nalizado”. O  jeu de l’amour   se inicia quando Krimo começa a ver o

ensaio e sente-se atraído por Lydia.

Filmada quase sempre em close up, Lydia encarna bem seu per-

sonagem. Ela usa um leque, faz trejeitos, alterna o tom de voz. Ela

seduz o espectador pela paixão e seriedade com que representa Li-sette e, sobretudo, ela seduz Krimo, embora não seja sua intenção.

Le jeu de l’amour et du hasard  funciona, assim, como uma espécie de

7 Existe até mesmo o verbo marivauder  e o substantivo marivaudage que quer dizer a linguagemreinada e preciosa, utilizada para exprimir a paixão e o amor, cujo modelo é o teatro de Mari-vaux.

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mediador entre a icção da obra teatral e a realidade do que se passa

a esses jovens.

Le jeu de l’amour et du hasard  é uma comédia dividida em três

atos e foi representada pela primeira vez em 1730. Na peça, Silvia,

uma jovem condessa, deve casar-se com um marido escolhido por

seu pai. Contudo, ela refuta a ideia de casar-se com alguém que não

conhece e, assim, propõe ao pai trocar de vestimentas com sua cria-

da, Lisette, para poder avaliar o futuro marido sem se comprometer.

A mesma ideia, entretanto, se passa a Dorante, o pretendente a ma-

rido, que chega à casa de Silvia travestido de criado, enquanto seu

criado, Arlequin, está vestido com as vestes do seu senhor.

Ao inal, apaixonam-se Silvia e Dorante, Lisette e Arlequin, con-irmando a convicção de Marivaux de que os ricos se apaixonarão

sempre pelos ricos e os pobres pelos pobres, mesmo que estejam

travestidos. Ao escolher essa peça, Kechiche chama a atenção para

essa dura realidade. Le jeu du hasard ? Não há acaso. Pois, apesar dos

disfarces, ricos e pobres estão impossibilitados de escapar de suas

condições e, portanto, estão fadados a permanecer em seus “lugares

de pertencimento”.

Em um dos ensaios na sala de aula, Lydia discute com a professorasobre a forma de representar de Frida. Para ela, Frida fala num tom

muito arrogante para uma servente, porque mesmo sendo, na verda-

de, a condessa travestida de criada, ela deveria agir como servente.

Nessa ocasião, a professora aproveita para reforçar diante de toda a

turma o princípio de Marivaux nesta peça: “que somos completamen-

te prisioneiros de nossa condição social”. E ela acrescenta que mes-

mo nos vestindo diferentemente, mesmo buscando falar da mesma

forma etc., “não nos livramos de uma certa linguagem, ou assunto deconversa, de uma maneira de se expressar e comportar que indicam

de onde viemos”. Segundo Swamy (2007, p. 62, tradução da autora),

Ao apresentar esta explicação, Kechiche cria um elaborado apa-rato retórico que nos permite, de um lado, a comparação, emdiversos níveis, das estruturas tanto do ilme quanto da peça,

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e do outro, o debate contemporâneo a respeito do lugar da pe-riferia no imaginário da nação francesa.8

De fato, essa parece ser uma das maiores intenções do ilme. Ke-

chiche procura atentar para o perigo desse discurso eurocêntrico,que ixa as pessoas dentro de uma estrutura social engessada. Ra-

chid, Frida e Lydia tentam reproduzir o bom francês de Marivaux,

mas eles utilizam essa linguagem reinada e gramaticalmente corre-

ta somente nas falas que o autor deu a seus personagens Arlequin,

Silvia e Lisette, respectivamente. Em outras palavras, eles não cons-

troem suas próprias falas utilizando a linguagem de Marivaux. Ao

falarem, fora do texto da peça, eles revelam de onde vêm, declaram

quem são. Em síntese, esse discurso de Marivaux é, sem dúvida, odiscurso colonial: “[...] uma forma de discurso crucial para a ligação

de uma série de diferenças e discriminações que embasam as práti-

cas discursivas e políticas da hierarquização racial e cultural.” (BHA-

BHA, 2007, p. 107)

Além disso, não podemos deixar de atentar para o fato de que

esses jovens de uma escola do subúrbio têm nas mãos uma obra que

tanto pode representar o reforço da estrutura de poder que os do-

mina como também pode propor uma análise crítica de uma opres-

são que pode ser transposta. Apesar de não vermos confrontos entre

“centro/periferia”, como em O Ódio (na cena da galeria de arte, por

exemplo), o “centro” está onipresente, representado não isicamen-

te, mas através da peça Le jeu de l’amour et du hasard . Nesse caso,

não é a periferia que “invade” o centro – como é bastante comum até

mesmo se pensarmos de uma forma mais ampla nos movimentos de

imigração – mas o centro que adentra a periferia e estabelece suadominação através da cultura, do idioma, da linguagem.

Entretanto, como bem veriicou Swamy (2007, p. 61, tradução da

autora),

8 “In staging this explanation, Kechiche sets up an elaborate rhetorical device that allows us tocompare at several levels the structures of both the ilm and the play on the hand and the con-temporary social debate on the place of the banlieue in the imaginary of the French nation onthe other”

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Os jovens protagonistas de Kechiche são capazes de enfrentar odesaio em seus próprios termos no território familiar. Em con-traste com o trio de La Haine, que é retratado como incapaz decompreender os costumes de seus vizinhos “intramuros”, em

“L’Esquive”, não apenas Lydia e seus amigos utilizam-se de umidioma de outro século, como eles sentem-se bastante à von-tade ao retratar a cultura burguesa francesa do século XVIII.9

Segundo Robert Stam (2003, p. 30), “O oprimido conhece melhor

a mente do opressor do que o opressor conhece a do oprimido”.10 

E é com esses “jogos de linguagem”, essa alternância de registros

linguísticos, que o ilme deixa bastante evidente essas palavras de

Stam. Paralelamente, percebemos e concluímos que, além da mente

do opressor, o oprimido conhece também a sua língua, sua cultura,sua maneira de agir etc. Essa constatação é muito importante para

se chegar a uma questão interessante do ilme: Kechiche, por inter-

médio da obra de Marivaux, tenta mostrar que imaginário o “centro”

tem da “periferia”, ao tempo em que retrata uma periferia, de certa

forma, autônoma em relação ao centro opressor.

Mas, apesar de o diretor buscar retratar certa realidade das pe-

riferias francesas através da icção, A esquiva conta uma história de

amor: a súbita paixão de Krimo por Lydia, que se desenvolve para-

lelamente à corte de Arlequin à Lisette em Le jeu de l’amour et du

hasard . E para declarar seu amor à Lydia, Krimo deseja o papel de

Arlequin. Assim, ele procura Rachid e propõe que lhe dê o papel do

valete em troca de um par de tênis, uma lata de conserva, entre ou-

tras coisas.

Enquanto Lydia, Frida e Rachid mostram muito desembaraço ao

representar seus personagens, Krimo não apresenta nenhuma de-senvoltura. Enquanto Arlequin é alegre, cheio de vida, apaixonado,

9 “Kechiche’s Young protagonists are able to meet the challenge on their own terms on familiarterritory. In contrast to the trio of La Haine who are portrayed as unable to comprehend themores of their intramuros counterparts, in L’Esquive, not only do we see Lydia and her friendsable to function in an idiom from another century, but they are able to achieve a high degree ofcomfort in portraying eighteenth-century French bourgeois culture.”

10  “the oppressed know the mind of the oppressors better than the oppressors know the mind ofthe oppressed.”

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Krimo conserva um ar triste e melancólico estampado em seu ros-

to, sendo, assim, praticamente, o inverso de seu personagem. Deste

modo, Krimo pede ajuda a Lydia para memorizar suas cenas e eles

decidem que ensaiarão juntos. Os dois chegam ao terreno e começam

a repetir as falas do texto, mas Krimo demonstra logo sua diiculdade

em representar. Ele passa de gestos desajeitados e sem palavras a

palavras desajeitadas e sem gestos, sem entonação, sem ritmo.

Krimo mostra sua incapacidade de seduzir Lydia via teatro. En-

quanto Lydia é sempre ilmada em primeiro plano, Krimo é ilmado

quase sempre em plano aberto. Ao lado de Lydia, que com beleza e

desenvoltura repete as falas de Lisette, Krimo perde cada vez mais

espaço na cena e não conquista, assim, nem mesmo a admiração dasua amiga de infância. O fracasso de sua estratégia e a espontaneida-

de inalcançável em transitar nos dois espaços linguísticos heterogê-

neos se traduzem na cara amarrada e nos olhares vazios de Krimo.

Na única cena em que ele ensaia com Lydia, a transferência da

realidade (o amor de Krimo por Lydia) à icção (o amor de Arlequin

por Lisette) é evidenciada quando por três vezes consecutivas Kri-

mo erra a fala do personagem e passa do registro formal da obra

para o registro informal. Os dois estão sentados lado a lado e ao fazera corte à Lisette, Arlequim deveria dizer: “[…]votre bouche avec la

mienne” , mas Krimo diz “[...] ma bouche avec la tienne”,11 reforçando

o fato do personagem funcionar apenas como uma maneira de con-

quistar Lydia. Em outras palavras, Krimo diz, dentro do seu registro

linguístico, o que Arlequin diria a Lisette, mas na verdade, ao usar

esse registro, ele está falando diretamente à Lydia que, por estar

representando Lisette, entende o legítimo galanteio como um erro

de representação. Então, de maneira desajeitada, ele tenta beijá-la;Lydia se esquiva e os dois caem no chão. Num ímpeto de coragem,

Krimo diz que quer namorá-la e mais uma vez Lydia se esquiva ao

dizer que vai pensar.

11  “Vossa boca na minha” e “Minha boca na sua” (tradução da autora). O uso do pronome “vossa” épróprio da linguagem formal, enquanto o pronome “sua”, da linguagem informal.

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A esquiva de Lydia faz com que um dos melhores amigos de Kri-

mo, Fathi, vá tomar satisfações e exigir da garota e das suas amigas

uma resposta. Deste modo, ele pega um carro emprestado e leva

Krimo ao encontro de Lydia, que o espera numa rua quase deserta,

acompanhada de Nanou e Frida, que teve o celular coniscado por

Fathi, a im de garantir que elas iriam ao “encontro”. Krimo e Frida

discutem dentro do carro, enquanto os três esperam ansiosos pelo

resultado. Neste momento, passa uma viatura da polícia local que

para para interpelá-los.

Percebe-se, assim, que Kechiche faz questão de incluir uma cena

de confronto entre polícia e marginalizados, presente neste e em

quase todos os ilmes beur  ou de banlieue. Expondo o conlito entreos mantenedores da “boa ordem” social e os periféricos, o diretor

revela, não pela primeira vez, nem muito diferente das outras pro-

duções do gênero, a hostilidade e a violência policial, ao mesmo tem-

po em que ressalta as díspares condições de uma polícia poderosa e

opressora contra os adolescentes da periferia parisiense de Franc-

-Moisine, que, aliás, poderia ser qualquer outra periferia do mundo.

Segundo Swamy (2007, p. 63, tradução da autora),

Numa entrevista com Michaël Mélinard, Kechiche insistiuque a cena policial é precisamente a representação de umasituação vivida quotidianamente na própria comunidadeque serviu de cenário ao ilme.12 

A longa sequência da intervenção policial – aproximadamente

cinco minutos – é marcada pela brutalidade e discriminação. Os poli-

ciais, dois homens e uma mulher, revistam, gritam, insultam, agridem

os jovens com uma energia e um ódio que não se sabe exatamentequais são as causas, tratando-os como perigosos bandidos enquanto

representam (eu diria, teatralmente) a vigorosa polícia norte-ame-

ricana em suas abordagens. A cena constrói uma forte tensão que

parece vir do nada. Entretanto, vale salientar, que a atitude dos poli-

12  “Kechiche insited in an interview with Michaël Mélinard that the police scene is very much arepresentation of a situation that occurs several times a day in the very neighborhood in whichthe ilm was shot”

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ciais em muito se assemelha à de Fathi, quando este exige que Lydia

entre no carro para falar com Krimo e ainda quando, anteriormente,

segurara Frida pela garganta exigindo dela uma resposta e tomando

seu celular como garantia.

Todavia, esse cenário de violência é atenuado e quase destinado

ao esquecimento com o corte súbito para o palco do teatro da esco-

la, onde algumas crianças se apresentam. Vestidas de pássaros de

diversas cores, elas levantam e abaixam os braços como se quises-

sem voar. Uma música suave acalanta a plateia – pais, professores,

amigos – admirada, orgulhosa, emocionada. Os “pássaros”, no palco,

“voam” em círculo, declamam pequenos poemas, falam de esperan-

ça, sonho, fraternidade e conquista. Nos rostos atentos do silenciosopúblico, lágrimas e risos revelam uma franca alegria. Uma das crian-

ças termina a apresentação com a pertinente lição: “Fizemos uma

longa viagem para chegarmos a nós mesmos”13 seguindo, portanto, o

mesmo princípio do discurso de Marivaux em seu Le jeu de l’amour

et du hasard .

As cortinas se fecham para, depois, abrirem-se num cenário de

época: século XVIII. Nas coxias, Frida e Lydia se abraçam, desejam

sorte uma a outra e entram no palco. A professora acompanha a atu-ação dos jovens atores com o livro nas mãos. A cena é cortada para

Krimo, cabisbaixo, caminhando sozinho pelas ruas da comunidade.

Ele se aproxima das portas do aniteatro e assiste de longe aos seus

colegas no palco. Krimo não entra, tampouco ica até o inal, que é

marcado por muitos risos, gritos, aplausos. Após a bem sucedida

apresentação todos se reúnem no salão do aniteatro, ouvimos uma

música em árabe, no campo extradiegético, e pais, alunos e professo-

res confraternizam.Lydia sai da escola e vai à casa de Krimo. Ela grita por seu nome.

Ele escuta, mas não responde. Está marcada a última esquiva de Kri-

mo. A música árabe é retomada. Krimo, às escondidas, olha Lydia

pela janela do seu quarto, onde se veem também algumas pinturas

feitas pelo pai que está na prisão. Através da câmera quase imóvel

13 “Nous avons fait un long voyage pour parvenir à nous meme”

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vemos a saída de Lydia da cena, carros estacionados em frente ao

ediício, um velho passeando com o cachorro.

Assim sendo, da primeira à última cena, Kechiche desejou mos-

trar em seu ilme não uma periferia estigmatizada, mas uma perife-

ria retratada em um de seus dias banais. Longe dos clichês muitas

vezes presentes nos ilmes do gênero, o diretor construiu, através

de uma história envolvendo o ambiente da escola (sendo esta uma

instituição social e cultural), um retrato do adolescente atual, que

sonha, mas também hesita, e que se apaixona, mas se decepciona

igualmente; um tema que está para além das fronteiras sociais, cul-

turais e transpõe até mesmo os limites nacionais.

Filmado com uma câmera digital para se adequar ao orçamento– um quinto da avaliação inicial em 12 anos de busca por produto-

res – (SWAMY, 2007, p. 64),  A Esquiva chama atenção para os pre-

conceitos da sociedade francesa, tendo como suporte uma peça de

teatro escrita antes da metade do século XVIII, levando o espectador

a reletir sobre o fato de que, entre o ontem e o hoje, pouco mudou

na relação dominante/dominado. E, ao representar alguns jovens

da periferia articulando em dois campos linguísticos (e por que não

dizer também sociais), não apenas distintos como verdadeiramenteopostos, Kechiche demonstra acreditar que é na coabitação que es-

sas duas esferas se tornam legítimas e possíveis e que as complexas

interações entre centro/periferia podem ser mais bem compreendi-

das para que possam ser superadas.

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220 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

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Realismo social,cinefilia e experimentação

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 223

UTOPIA, DISTOPIA E REALISMO NO CINEMA DEFLORA GOMES

Denise Costa

Eu sou dos que acreditam que a Guiné está quase a mudarFlora Gomes, 2005 

INTRODUÇÃO

O cinema de Flora Gomes inicia seu caminho com ilmes docu-

mentários que retratam a história de seu país, Guiné-Bissau. Em sua

ilmograia, encontramos os curtas O Regresso de Cabral  (1976), se-

guido dos ilmes A Reconstrução (1977) e Anos no Oça Luta (1978).

Os dois últimos foram feitos com a coprodução de Sérgio Pina. Tendo

estudado, em 1972, no Instituto Cubano de Artes e Cinematograia

sob a orientação de Thiago Alvarez e, mais tarde, participado do Jor-nal de Atualidades Cinematográicas Senegalesas junto ao realizador

Paulin Vieyra, Flora só pode regressar ao seu país após a indepen-

dência, em 1975. Sua formação inicial veio, assim, inspirada pela

inluência do estilo documentário e orientada pela vontade de tra-

balhar com o cinema para a construção de outras imagens de África

e sua cultura. Em entrevista à revista Macau, declara que a cultura à

qual se refere estaria “atrás dos dramas que o continente tem vivido”.

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(GOMES, 2011, p. 1) Dessa forma, sua motivação para realizar ilmes

buscaria revelar o que está além desse drama. Ainda na mesma en-

trevista, airma que seus ilmes visam “mostrar essa África positiva,

que existe, e que tem muitas coisas a oferecer ao mundo”. (GOMES,

2011, p. 1)

Em um ilme mais recente, Nha Fala (2002), o projeto de Flora

Gomes segue o mesmo caminho. A esse respeito airma:

É simples. O ilme foi feito baseado em que, ao contrário do queas pessoas pensam que a África é um continente só de guer-ras, violência, doenças e misérias, esta África é positiva. É umaÁfrica onde sonhamos, cantamos e dançamos como vocês. EstaÁfrica existe, só que não é vista pelos olhos das pessoas menosatentas.

Além dessa opção estilística, o cineasta quer pensar com o seu

país. Quer seja pelo uso do crioulo como língua corrente em seus

ilmes, quer pelos cenários em que os realiza, quer pela presença de

atores “não proissionais” e guineenses, essa opção dá forma a sua

produção ílmica. O som ruidoso das ruas da Guiné são também re-

cursos que nos conectam às ruas de Bissau. O cinema de Flora Gomes

foge, em sua estética, às normas impostas ao cinema espetáculo e àssuas narrativas e imagens midiáticas. A opção por planos de longa

duração, por exemplo, mesmo que interrompidos por cenas que se

intercalam, permite-nos vivenciar o ilme sem sermos continuamen-

te assediados por um narrador que tudo sabe e tudo controla.

Vemos, assim, um io que perpassa sua obra: o exercício de cons-

trução de imagens que pensam seu país a partir de referências dis-

tintas daquelas que vinham sendo produzidas até então. Não custa

salientar que o mesmo desassossego que guia seu trabalho, colo-

cando seu país em perspectiva, insere todo o continente africano na

mesma preocupação. E é ainda o mesmo io condutor que nos co-

necta ao tema abordado no presente ensaio: a Utopia/Distopia como

poética no cinema de Flora Gomes. Utopia encontrada nos inais in-

conclusos de dois de seus ilmes – Mortu Nega (1987) e Olhos Azuis

de Yonta (1992) – e no pano de fundo de seus roteiros. Talvez ela

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 225

possa ser encontrada inclusive na maneira como o cineasta constrói

seu cinema e naquilo que o move a fazê-lo.

Não é preciso repetir – ou talvez seja – que o tema da Utopia

vem, desde há muito, sofrendo distorções e esvaziamento. Seja atra-

vés da desqualiicação de seu sentido pelo pensamento liberal; seja

pela necessidade das formulações marxistas que selaram o termo

“socialistas utópicos” a im de se airmarem por oposição a ela; seja

pelo momento histórico em que estamos vivendo, quando a “Era das

Revoluções” já mostra seu im. (ARANTES, 2001, p. 213) Ou mesmo

pelo viés da ciência positivista, que deslocou o sentido da palavra

Utopia dando a ela a ideia de ausência de método, traços de inco-

mensurabilidade e imaginação. Neste caso, imaginação leva tambémum sentido pejorativo, idealista, irreal.

Penso que deva-se conceber a história não como uma linha evo-

lutiva, onde vencedores e perdedores ocupam sempre espaços dis-

tintos de maneira coerente. Mas que, ao contrário, sempre houve

quem levasse pensamentos dissonantes adiante sem, entretanto, ter

sua voz elucidada. Dessa forma, o sentido da Utopia nunca deixou de

persistir. Se atentarmos, veremos que está contido em uma série de

atividades históricas e não há anacronia em pensarmos em Utopiacontemporaneamente. Não obstante, esse tema tem sido cada vez

mais explorado pelos críticos literários mundo afora e tem sua vi-

vacidade renovada. Obviamente, a Utopia aqui evocada é aquela que

deveria nos servir como meta a ser alcançada, orientação de ação

para nosso espírito.

No entanto, se precisamos hoje de projetos que nos orientem

para o futuro, a cidade Utopus, ora desenhada por Thomas Morus,

não faz jus às necessidades e desaios contemporâneos que viven-ciamos. Ainda assim podemos traçar um paralelo em comum entre

o período em que cidades utópicas foram criadas e a realidade que

vive, hoje, o continente africano. Maria das Graças de Souza (2001)

nos lembra que as três cidades utópicas – Utopus de Morus (1516),

Cidade do Sol de Frei Tommaso de Campanella (1613) e Nova Atlân-

tida de Bacon (1627) – respondiam, de maneira distinta, a períodos

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de extrema pobreza e fome por que passavam as cidades europeias.

O cineasta Flora Gomes faz seu cinema movido pela busca de con-

tribuir com imagens sobre Guiné e sobre África em oposição à in-

sistência em mostrar um lugar das guerras, da fome e da miséria.

Proposta singela que, justamente por esse motivo, poderá provocar

repercussões impactantes. Ademais, o cineasta, outrora engajado

nos projetos de libertação de seu país, se vê desaiado a pensá-lo

impulsionado por outros projetos. Tendo o socialismo cedido lugar

à abertura econômica – tema que circunda tanto Mortu Nega quanto

Olhos Azuis de Yonta – Flora se pergunta a partir de seus ilmes: que

futuro será possível para Guiné?

FICÇÃO E REALIDADE NO CINEMA DE FLORA GOMES

Se Flora Gomes inicia seu trabalho com o cinema documen-

tário, creio, no entanto, que separar sua ilmograia entre cinema

documentário e cinema iccional não é a melhor maneira de pensá-

-lo. De fato há com Mortu Nega (1987), seu primeiro longa, e com

Olhos Azuis de Yonta  (1992) algo de novo em seu cinema. Mas não

uma ruptura. Em primeiro lugar, Mortu Nega tem sido caracterizado

como um ilme que mescla estilo documentário e icção. Este teria

“traços de icção” por ter sido realizado a partir de um roteiro que

reconta um momento importante da história da Guiné – a guerra de

libertação – e por ter sido encenado e construído. O mesmo ilme, no

entanto, conta com atores não proissionais e falantes do crioulo, e

retrata uma história real com a participação de corpos reais. Flora

Gomes usa ainda os conhecidos planos longos como predileção esti-

lística, recurso esse que permite ao espectador grande aproximação

com a imagem assistida. Nesse caso, creio ser pertinente não pensar-

mos na divisão entre cinema documentário e cinema iccional, pois

podemos observar nesses dois ilmes de Flora características de re-

alismo em suas opções estéticas. Além disso, o espectador de seu

ilme atua de forma engajada, visto que este lhe proporciona tempo

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para pensar e repensar com e sobre o ilme. Seus ilmes, assim, são

passíveis de várias interpretações.

No entanto, há de se advertir sobre o perigo que a multiplicidade

de olhares suscita. Pois creio haver ainda, em Flora, uma perspicá-

cia sutil que não é apreendida com facilidade. O cineasta recorre a

uma ironia que confunde os mais desavisados. A ironia deveria ser

elemento a se considerar em Olhos Azuis de Yonta para que possam

ser percebidos outros aspectos de seu cinema no lugar das análises

apressadas que esvaziam os símbolos por ele utilizados.

Assim, sugiro três apontamentos nesse ensaio: o cinema de Flora

Gomes pode ser visto como um contínuo de pensamento que pros-

segue em construção em cada um dos seus ilmes; o io que os unecontínuo é o io da Utopia, com pitadas de constatações distópicas e

recursos do estilo realista; descreverei esse estilo que está presente

em muitos de seus ilmes, a partir de Olhos Azuis de Yonta e Mor-

tu Nega. Assim, entenderei sua obra como parte de um pensamen-

to que vem sendo formulado pelo realizador a respeito de questões

históricas e políticas de seu país. Entendo que a predileção de Flora

Gomes por inais inconclusos nos permite imaginar que esses façam

parte de uma continuidade intertextual, ela mesma constitutiva deuma poética da Utopia/Distopia.

Olhos Azuis de Yonta inicia-se com um longo travelling que acom-

panha a entrada em Bissau: um convite a entrarmos naquele univer-

so. O ilme apresenta uma estética econômica, com falas simples en-

tre personagens que conversam em crioulo, mas conta também com

monólogos profundos e relexivos. Dedicado a seus ilhos e às crian-

ças de Guiné-Bissau, Olhos Azuis poderia ser uma história de amor.

É certo que Flora Gomes lança mão da narrativa de uma história deamor, guiando o ilme a uma trama que envolve Yonta (Maysa Marta),

Zé (Pedro Dias) e Vicente (Antonio Simão Mendes) em encontros e

desencontros: Zé ama secretamente Yonta, que ama Vicente, que está

comprometido com muitas atividades de trabalho e pensamentos

acerca de seu país e acaba por tornar sua relação com Yonta um pou-

co distanciada. No entanto, a opção narrativa tão comum a tantos ou-

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tros ilmes apresenta aqui um aspecto distinto. Nesse ilme, a história

de amor, que poderia ser banal, é ela mesma sátira a esse estilo e aos

temas percorridos nesse trabalho. Zé, ao escrever para Yonta uma

carta de amor, copia dos livros europeus onde os personagens pos-

suem olhos azuis. Sem se importar com ste fato Zé acha bonito o que

vê escrito nestes livros. Uma crítica ao eurocentrismo perpassa aqui-

lo que poderia ser interpretado apenas como uma história de amor.

Assim, a opção pela história de amor é uma crítica sutil que se

utiliza de um gênero ílmico frequentemente condenado à esterili-

dade. A poesia e a melancolia contidas na narrativa não combinam

com uma história banal de amor. O autor deixa elementos ambíguos

onde personagens possuem atuações tortuosas, sem a presença depersonalidades marcadamente deinidas. Além disso, a referência a

olhos azuis presente nas cartas a Yonta é um grande enigma. A pró-

pria personagem questiona-se várias vezes a respeito de onde es-

taria o azul de seus olhos: “Olhos azuis... Será o relexo das luzes da

discoteca? E se foi o Vicente? Tenho que descobrir quem escreveu a

carta”. Embora enigma, poderíamos também pensar os seus olhos

como signo da história da Guiné atual, da abertura política, da Guiné

da pós-independência... Tratar esse ilme apenas como um ilme deamor seria, portanto, incorrer em um erro simplista e supericial.

OLHOS AZUIS E A DISTOPIA

Se me permitem eleger, a cena que considero a mais bela em

Olhos Azuis de Yonta (1992) – mas também a que apresenta a disto-

pia de forma mais eloquente – é aquela em que somos apresentadosa Santa. Homens saem do carro, acompanhados pela câmera em seu

deslocamento até a casa de uma mulher que abre a porta:

Bom dia.Bom dia.Você é a Santa?Sou eu.Aqui o papel. Viemos para o despejo.

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Santa olha o papel e sons de chocalhos vão gradativamente se

ampliando. O efeito desse recurso é lançar aqueles que assistem ao

ilme a um estado emocional desconcertante. Interrompida breve-

mente por uma cena onde entra Yonta, voltamos a Santa através do

mesmo som de chocalhos. Dessa vez vemos móveis na rua e uma mu-

lher a protestar, Olhos Azuis de Yonta (1992):

– Camarada, me diga uma coisa. Camarada não tem família?Não tem mãe? É assim que nos põem na rua? Que crime come-temos?– Minha senhora, a mim me mandaram fazer isso. Faço aquimeu trabalho e nada mais. Tenho aqui um papel.– Não quero vê-lo. Não tem vergonha.

Temos a cena novamente interrompida e voltamos a ela, guiados

pelo mesmo som de chocalhos, para uma casa montada a céu aberto.

Santa limpa os móveis da casa com naturalidade e Belante (Bia Go-

mes), mãe de Yonta, está sentada na cama itando Santa, descrente

ao que assiste.

A cena brevemente descrita, intercalada por uma montagem pa-

ralela de cenas em que está presente Yonta, dramatiza de uma só

vez várias faces da distopia presente no ilme: as substituições devalores de solidariedade comuns no país em outros tempos pelos

valores capitalistas e individualistas; as injustiças e desigualdades

que a abertura econômica provoca nos países da pós-independência;

a conivência dos guineenses em relação a essas injustiças. Nesse sen-

tido, Flora Gomes parece enviar recados que pareceriam direciona-

dos aos guineenses, mas que têm toda possibilidade de alcançarem

pessoas de outros lugares do mundo. Esse mesmo tema apareceu an-

teriormente em seu ilme Mortu Nega (1987), que pode ser pensado

em três cadências – a guerra, a vida na aldeia e o tempo mítico. Nesse

ilme, o tempo da aldeia é narrado a partir dessas mesmas constata-

ções distópicas.

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CRIANÇAS: METÁFOTAS PARA PENSAR A UTOPIA

A presença das crianças mereceria um ensaio à parte. São elas

que iniciam o ilme, são elas que o terminam, a elas é dedicado. No

início as crianças carregam pneus onde estão escritos os anos im-portantes para Guiné desde a independência até o ano de 2000. O

pneu do ano 2000 é empurrado por Amilcarzinho (Mohamed Lami-

ne Seidis), irmão de Yonta, evocando imediatamente o futuro do país.

A presença das crianças também é fundamental na cena de Santa.

Na sequência, Santa vai até a cartomante e Amilcarzinho se organiza

com outros meninos para levar novamente os móveis até a casa da

qual foram despejados. Não são raras as vezes em que o futuro desse

personagem é interrogado. Há também uma cena onde ele, por não

saber onde está seu pneu, exclama: “Meu futuro se vê cada vez mais

incerto!”  É também ele que se engaja em um autotreinamento para

ser jogador de futebol na seleção de Portugal. Esse projeto, levado

muito a sério pelo garoto, ora é motivo de chacota dos pais, ora da

implicância de Yonta. Assim, são as crianças que evocam o futuro nos

ilmes de Flora e é nelas que o cineasta deposita as possibilidades de

Utopia.Outro aspecto narrativo recorrente tanto em Olhos Azuis (1992)

quanto em Mortu Nega (1987) é a presença do tempo. Passado, pre-

sente e futuro são sempre evocados. Em Mortu Nega, como mencio-

nado anteriormente, as três cadências de tempo nos informam algo:

o tempo da guerra é rápido e violento; o tempo da aldeia é lento e

descrente; o tempo inal é mítico e aberto. Em Olhos Azuis (1992) há,

por sua vez, a citada cena onde os meninos empurram pelas ruas as

datas históricas da Guiné, ligada a uma cena na escola onde se temaula sobre as mesmas datas. Há, ainda, a presença do relógio de cinto

da Yonta. O tempo, marcador da história, inspirador de ações para o

futuro, é carregado simbolicamente por essa poética da Utopia/Dis-

topia. Nela o futuro aparece ora referido com descrença, ora deposi-

tando toda esperança nas crianças. Da mesma maneira, a alusão ao

tempo histórico já estava presente em Mortu Nega (1987) e a escola

é novamente o espaço escolhido para essa relexão. Nesse ilme há

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uma cena em que o professor ensina Português para os alunos e per-

gunta o que seria a luta para eles. As respostas variam. Duas se des-

tacam. A primeira, vinda de uma jovem: “Para mim luta é pela comida

dos meus ilhos”,  ao que outro, um ex-combatente, responde: “Para

mim luta é estar combatendo contra os portugueses ao lado dos meus

companheiros.”. O professor conclui: “Para você a luta foi ontem, para

ela a luta é hoje. A luta continua”. ( MORTU..., 1987)

Ainda a respeito do tempo, Yonta recebe de Vicente um presen-

te curioso que passa, daí em diante, a compor o cenário do ilme. O

acessório rouba a cena e passa a chamar tanta atenção quanto Yonta,

se não mais: um “relógio de cinto”, conforme ela o descreve. O cinto

torna-se um acessório obrigatório e Yonta passa a usá-lo em todasas ocasiões, por cima dos seus vestidos. Também entre os persona-

gens o relógio rouba a cena: “Que horas são minha linda?”  pergunta-

-lhe um admirador enquanto ela anda pelas ruas de Bissau. “Hora de

você ter juízo” , responde-lhe Yonta. A presença do relógio de cinto é

inquietante, nos convida a pensar sobre ele: seria um indicador da

modernidade? Da moda? Em todo caso, trata-se de um objeto que

chama atenção tanto pelo absurdo de sua presença quanto pela in-

diferença de Yonta.Próximo ao im do ilme, Zé encontra Yonta e lhe pede as cartas

de volta, dizendo que elas não fazem mais sentido: “O teu relógio pa-

rou, Yonta.” Na cena seguinte, banhada por um brilho azul de outro

mundo, a alta sociedade de Bissau se reúne para uma absurda recep-

ção de casamento à beira de uma piscina. Amanhece, e os convida-

dos dormem nas espreguiçadeiras enquanto pescadores jogam suas

redes nessa piscina. Vicente está sentado abatido em um canto, e de

repente Yonta e as crianças de Bissau surgem e começam a dançarem volta da mesma.

Quiçá essa cena nos remeta ao início do ilme, onde essas mesmas

crianças correm pelas ruas de Bissau, cada uma rolando um pneu,

cada um numerado com um dos anos entre o ano da independência

e o ano 2000. Diícil não imaginarmos que o ilme nos direcione ao

futuro: futuro no qual os jovens terão seus próprios sonhos, sonhos

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esses que os permita fazer algo real na África, ou na Guiné. Ao reletir

sobre o ilme em uma entrevista (2005, p. 1), Flora Gomes airma

que haveria ali um personagem além dos já citados:

um personagem incomum, que gradativamente muda tudo, omovimento e a cor do ilme: é Bissau, a capital da Guiné-Bissau,onde eu sempre vivi... Ao longo de cinquenta anos, à medidaque eu envelhecia relutantemente, eu vi Bissau recuperandosua juventude dia após dia, eu ouvi a cidade mudar de língua,mudar de sonho, mudar de objetivo.

Assim, com um inal à primeira vista nonsense, Flora encerra

Olhos Azuis de Yonta (1992). Guiando-nos para um inal inconcluso,

aberto a possibilidades dançadas e brincadas pelos jovens da Guiné.

POÉTICA UTOPIA/DISTOPIA

Poderíamos, por im, enumerar resumidamente o que caracte-

rizaria a poética da Utopia/Distopia presente nesses dois ilmes de

Flora: a temática do tempo, a presença das crianças e dos jovens,

a história como base para pensar o passado e, sobretudo, o futuro.

Resta saber o que temos de realismo: a preferência ao uso de planos

sequência, o uso do som ruidoso que nos remete às ruas de Bissau, as

personagens que falam crioulo e correm pelas ruas da Guiné em um

cenário real. E ainda o realismo dos atores em ambiente familiar e fa-

miliarizado, a apresentação da Guiné em cenas onde mesmo a ence-

nação tem algo de improvisado e de pouco ensaiado, permitindo-nos

observar o caráter artesanal que dá ao ilme seu tom de realismo.

Se por um lado o cinema de Flora Gomes é marcado por umaconstrução utópica, tal como icou claro no caso de Olhos Azuis de

Yonta (1992) e Mortu Nega (1987), ele é sempre perpassado por pi-

tadas de distopias contemporaneamente construídas que revelam o

cinema nada ingênuo do cineasta. Apresentado em um movimento

dialético, onde não haveria utopia sem distopia, Flora recorre a re-

cursos estéticos que dão ao seu cinema certo tom de realismo. Além

disso, a justa combinação entre sutileza, poesia e ambiguidade satí-

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 233

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O REGRESSO de cabral. Direção: Flora Gomes. Documentário comcodireção de Sana N’hada, 1976.

OS OLHOS azuis de Yonta. Direção: Flora Gomes. Intérpretes: MaysaMarta; António Simão Mendes; Pedro Dias; Diana Vaz; MahamedSeidi; Bia Gomes. Guiné-Bissau: Vermedia. Coprodução Arco-Íris; Euro

Creation.1992. (96 min), color.PO DI sangui. Direção: Flora Gomes. Produtor: Jean-Pierre Gallepe.Intérpretes: Dulcineia Bidjanque; Dadu Cisse; Edna Évora; Bia Gomes;Adama Kouyate; Ramiro Naka. Guinée Bissau: Arco Iris; Tunisie:Cinéilm; Paris: Films Sans Frontières 70; boulevard de Sébastopol75003; Portugal: SP Films, 1996. (90 min).

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 235

MOUSTAPHA ALASSANE, UM BRICOLEUR NO CINEMA DO NÍGER

Cristina dos Santos Ferreira

INTRODUÇÃO

Moustapha Alassane nasceu em N’Dougou, no Níger, em 1942.

Suas primeiras iniciativas de criar imagens animadas foram aprecia-

das por poucos espectadores que assistiram a Le Piroguier  e La Pi-leuse de mil ,1 duas curtas experimentações com duração de dois mi-

nutos cada uma. O ano de 1962 marca o início de sua trajetória como

realizador de ilmes, quando produziu quatro curtas-metragens.

Além das duas animações acima citadas, o cineasta também esco-

lheu uma lenda tradicional do povo Djerma2 e a história de um casal

desse mesmo grupo étnico do Níger como temas para produzir dois

outros curtas em 16mm: La Bague du Roi Koda (24’) e Auoré  (30’).

Partindo da experimentação lúdica com a luz de um lampião a

querosene, quando jovem, Moustapha Alassane projetava imagens

em uma pequena tela translúcida, inspirado pelas projeções de som-

1 Ver <http://www.africine.org/?menu=iche&no=3565>

2 Djerma: grupo étnico do Niger

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236 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

bras chinesas.3 O realizador nigerino criou uma espécie de lanterna

mágica4 a partir de uma caixa de madeira, e começou a animar seus

desenhos.

O documentário de Maria Silvia Bazzoli e Christian Lelong, re-

alizado em 2009, nos apresenta este “cineasta do possível”. A caixa

mágica que Alassane usava para projetar imagens foi reconstruída

para o ilme. O realizador rememorou o período em que desenhava

seus personagens para projetá-los na tela do brinquedo ótico que o

aproximou do cinema e da prática poética da animação.

O ilme animado emerge do mesmo dispositivo que funda o cine-

ma, a partir do manuseio poético, porém crítico, da instrumentalida-

de do dispositivo ílmico. (GRAÇA, 2006) Compartilho das proposi-ções de Marina Estela Graça (2006) que nos provoca um novo olhar

sobre as práticas de criação do cinema de animação. A pesquisadora

constrói uma análise da poética do cinema de animação, “um estu-

do do ilme animado do ponto de vista da relação entre o autor e

as possibilidades do discurso”. (GRAÇA, 2006, p. 14) Segue por um

caminho distinto do escolhido por Alberto Barbosa Junior (2005) e

por outros pesquisadores dessa temática, que optaram por discutir

a técnica e estética do ilme animado.Trago aqui algumas relexões sobre as criações desse realizador

nigerino que introduzem a abordagem sobre o mesmo autor desen-

volvida no doutorado em Ciências Sociais na Universidade Federal

do Rio Grande de Norte (UFRN). Neste texto, optei por destacar dois

dos ilmes de Alassane, que identiico como marcantes em sua traje-

tória e fundadores de sua relação com a expressão cinematográica.

Em primeiro lugar, uma icção de média-metragem, na qual elabora

sua própria leitura do gênero western, e em seguida um ilme de ani-mação, em que o autor constrói uma sátira política. Os dois ilmes

3 Sombras chinesas: iguras desenhadas e recortadas que, a partir de uma fonte luminosa sãoprojetadas em uma tela translúcida, prática que surgiu na China, por volta de 5000 a.C. Tambémconhecido como teatro de sombras.

4 Lanterna Mágica: caixa iluminada internamente por uma fonte de luz que possibilita a visãode desenhos que passam por uma lâmina de vidro e são projetados em um fundo branco. Suainvenção é creditada ao alemão Athanasius Kircher, que a criou por volta da metade do séculoXVII.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 237

foram realizados em meados da década de 1960 do século passado.

A relexão que se segue, como já dito, é parte integrante de uma in-

vestigação sobre a relação com o cinema e com a criação de “imagens

em movimento” deste cineasta nigerino. O processo de elaboração

de obras cinematográicas, o espaço-tempo de realização dos ilmes

e o próprio “ato de fazer cinema” são de importância crucial, maior

até que o próprio produto que se cria. No estudo iniciado sobre a

obra de Alassane, busco algumas pistas para compreender outra

parte constituinte do processo espetacular cinematográico: a que

envolve a criação e projeção de imagens animadas.

O CINEMA NO NÍGER

Precedendo a relexão proposta sobre a trajetória de Mousta-

pha Alassane, considero importante situar a origem e o contexto da

produção cinematográica do Níger. Este país situa-se na região nor-

te e ocidental do continente africano, espaço geográico no qual se

formaram 12 Estados-nação no limiar da década de 1960, quando

iniciado o processo de independência de parte do extenso território

africano, que até esse período fora colonizado pela França. (ARMES,

2007) Os governantes que assumiram o poder nesse grupo de países

dentre os quais destaco o Níger adotaram um modelo centralizador

e autocrático, que não favoreceu o crescimento econômico e desen-

cadeou processos de insatisfação provocando a ocorrência de suces-

sivos golpes de Estado. Os cineastas e todos aqueles envolvidos com

a produção cultural nesses países precisaram encontrar formas de

operar, o que signiicava buscar condições para criarem seus ilmes.(ARMES, 2007)

Conforme divulgou o pesquisador Roy Armes (2007), o Níger

possui somente 12 salas de cinema e um total de 12 ilmes realiza-

dos. Um único longa-metragem foi produzido em 35mm e os demais

em formato 16mm. O grupo de principais realizadores do Níger é

formado por quatro cineastas autodidatas e que “representam o ci-

nema africano a partir de dentro” sem o distanciamento encontra-

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238 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

do na obra de intelectuais educados na Europa. (BOUGHEDIR, 1984

apud ARMES, 2007, p. 166) No contexto da pequena produção cine-

matográica do Níger, Moustapha Alassane se apresenta como prin-

cipal diretor e optou por construir sua trajetória da forma mais in-

dependente possível. Dentre os principais ilmes que realizou estão

os curtas de animação: La Mort de Gandji, Bon voyage, Sim, Samba

le grand  (1977) e Kokoa (2001). Seu primeiro curta-metragem ic-

cional foi produzido no ano de 1962,  Aouré , em fomato 16mm. Em

seguida fez La Bague du Roi Koda, Le Retour d’un Aventurier , além de

dois longas-metragens: Femme, villa, voiture, argent   e Toula, ou Le

Génie des Eaux.

ENCONTROS COM OUTROS CINEASTAS

Atuando como mecânico em Niamey e, em seguida, trabalhando

no Institut Français de L’Afrique Noire (IFAN), no início da década de

1960, Moustapha encontrou o antropólogo e cineasta francês Jean

Rouch. Por meio desse contato, conheceu Claude Jutra, um canaden-

se que atuava no National Film Board of Canadá (NFBC), do qual se

aproximou e com o qual passou a trocar correspondências. Manifes-

to nas cartas enviadas para Jutra, o desejo de Moustapha de realizar

ilmes de animação o levou ao Canadá, onde conheceu e estagiou

com o animador de origem escocesa Norman McLaren, considerado

um mestre da experimentação no gênero do cinema de animação.

Conforme apresenta a pesquisadora Marina Estela Graça (2006),

McLaren icou conhecido mundialmente pelas inúmeras técnicas

de animar imagens que divulgou, e que, se não foram criadas porele, pelo menos foi responsável por sua difusão. O animador revelou

possibilidades expressivas por meio dessas técnicas que não haviam

sido exploradas por outros realizadores. Para essa estudiosa da obra

de McLaren, o maior legado deixado por ele foi uma poética, uma

atitude crítica e criativa no interior do próprio cinema. Desta forma,

contribuiu para deinir:

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 239

a identidade do cinema de todos  os ilmes, tal como hoje seapresenta, enquanto modo de expressão único no contextodas linguagens e das práticas artísticas contemporâneas [...].O gênio de Norman McLaren encontrar-se-ia tanto no caráter

de sua obra ílmica – no modo pelo qual a construiu com basenum trabalho meticuloso de exploração, análise e criação deelementos de expressão e de percepção, apetrechos e respecti-vas aplicações no nível do discurso – como na atitude de gestãoe de apropriação dos aspectos relacionados à sua produção.(GRAÇA, 2006, p. 37)

Nas criações animadas de Moustapha Alassane, o que vejo eco-

ar de mais signiicativo do encontro com Norman McLaren foi sua

opção pela simplicidade e pela articulação criativa a partir dos re-cursos de que dispunha e que estavam ao seu alcance. No entanto,

nunca abriu mão de incorporar novos recursos tecnológicos, como a

informática, no decorrer de sua carreira como realizador. Neste sen-

tido, Alassane assume o que chamo de um espírito bricoleur. Recor-

rendo ao que Levi-Strauss (1997) apresenta na obra O pensamento

selvagem, o bricoleur é aquele que trabalha com suas mãos, faz uso

de meio indiretos e, com isso, pode chegar a resultados imprevistos.

O bricoleur  demonstra habilidades para realizar inúmeras e diversi-icadas atividades, mas não subordina nenhuma dessas atividades à

aquisição de matérias-primas e de instrumentos, pois estes são con-

cebidos e buscados na medida do projeto que realiza. A escolha e a

conservação dos elementos dão-se em função do princípio de que

“isso sempre pode servir”. (LEVI-STRAUSS, 1997, p. 33)

A bricolagem de Moustapha Alassane se apresenta no leque de

gêneros cinematográicos que o autor percorre ao construir sua obra

ílmica. Experimentou a simples projeção de imagens em sua caixade madeira, permitiu-se criar animações a partir de traços simples

em tinta preta sobre o fundo branco, em seguida, produziu bonecos

articuláveis para realizar ilmes usando a técnica do stop-motion.5 Ao

mesmo tempo, seguiu pelas veredas das narrativas iccionais sobre

5 Stop-motion é uma técnica de animação na qual registra-se quadro a quadro o movimento demodelos articuláveis ou objetos, a medida em que as mãos do animador constroem a trajetóriadesse movimento.

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contos orais de seu país e passeou pelos vastos territórios de aven-

turas dos ilmes de cowboy .

De volta ao Níger, Moustapha realizou La Mort du Gandji6  em

1965 e, no ano seguinte, o ilme Bon Voyage Sim, duas películas in-

dependentes. A primeira delas tornou-se conhecida como a primei-

ra obra do cinema de animação produzida no continente africano.

Como personagens dos dois curtas de animação ele desenhou sapos

que representavam a população de um reino no primeiro ilme, e de

um país, no segundo. Moustapha (2000) já afirmou em entrevista

concedida ao crítico francês Olivier Basquet sua preferência e sim-

patia por esses répteis. O diretor nigerino declarou seu desejo de

mostrar nas telas um animal que, na região onde viveu, aparecia porum curto período do ano e logo desaparecia por causa do calor ex-

cessivo. Segundo ele, a elaboração do roteiro de um ilme de anima-

ção lhe possibilita um “espaço de liberdade que permite tratar cer-

tos assuntos sem abordá-los frontalmente, dizendo ao mesmo tempo

muito da realidade dos países africanos”. (MOUSTAPHA, 2009) Alas-

sane considera que animais, como sapos ou camaleões, são as perso-

nagens ideais para seus ilmes animados.

Em entrevista concedida a Dan Yakir (1978), o cineasta francêsJean Rouch apresentou Moustapha Alassane como o homem que se

responsabilizaria por fazer um novo cinema  no Níger, ressaltando

suas qualidades como autor. (YAKIR, 1978) Foi no mesmo espaço ge-

ográico em que realizou muitos de seus ilmes, o Níger, que Rouch e

Moustapha se encontraram. Alassane trabalhou no Institut Français

de l’Afrique Noir (IFAN) no período em que o instituto estava sob a

direção do antropólogo francês. (VIEYRA, 1975)

No início dos anos 1960, Rouch já havia realizado muitos filmesno Níger. Com formação em Engenharia, o francês chegou à África

Ocidental para exercer a função de construir pontes e estradas, no

início da década de 1940. No inal da mesma década, mudou o rumo

6 O ilme A Morte de Gandji não está disponível comercialmente, mas foi possível ver algumascenas do ilme no documentário Moustapha Alassane: o cineasta do possível  de Christian Lelonge Maria Silvia Bazzoli.

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lúdico e interpretar a breve participação de Moustapha Alassane no

ilme. Os jovens africanos que participaram desse ilme se identii-

cam na obra com seus verdadeiros nomes.

Em sua atuação no ilme de Jean Rouch, Alassane representa o

papel de um jovem nigerino que iniciava suas atividades proissio-

nais como funcionário da empresa Pouco a Pouco. Administrada por

Damouré Zika e por alguns de seus amigos, a empresa da icção atu-

ava no ramo de exportação de peixes e de carne bovina para a França

e outras partes do mundo, e importação de outros produtos como

tecidos e açúcar para o continente africano.

Em Petit à Petit , já nas primeiras cenas, Moustapha Alassane sur-

ge na tela e é o personagem coadjuvante que se aproxima do chefe,o protagonista Damouré Zika, anunciando a construção de um ar-

ranha-céu por outra sociedade empresarial em Niamey. Na trama,

os sócios de “Petit à Petit“ aceitam que Damouré vá à Paris para

conhecer e se inteirar sobre a construção de grandes edificações.

Após algum tempo, o protagonista Damouré retorna e constrói um

arranha-céu em sua cidade. No trecho inal do ilme os sócios da

empresa concluem que a construção do prédio acabou por acarre-

tar mais problemas do que proporcionar soluções para melhoria daqualidade de vida na localidade. Portanto, decidiram abandonar o

projeto e o negócio empresarial, recusando-se a adotar um modelo

de progresso tecnológico. Em uma das cenas inais do ilme, o prota-

gonista Damouré informa ao personagem Moustapha Alassane que

os sócios têm a intenção de abandonar a empresa de exportação e

importação e retomarem seus modos de vida anteriores. Pretendiam

voltar a viver em cabanas de palha, retomar as atividades que desen-

volviam antes de se tornarem empresários, como a pesca, o pasto-reio e a criação de animais. Nesse momento do ilme, o jovem Alassa-

ne, dialogando com o chefe Damouré, pronuncia a seguinte frase: “O

objetivo que buscamos não é o de sermos melhores que os europeus.

A utopia é a de manifestarmos nossa existência”. Após pronunciar

esta frase, o personagem de Moustapha é quem assume a empresa

que fora deixada pelos demais sócios.

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Ao reletir sobre a obra de Jean Rouch, Deleuze (2007) nos apre-

senta a noção de cinema-verdade. Como diz Deleuze (2007), na obra

de Rouch o personagem não é mais real ou ictício, da mesma forma

que não podemos vê-lo objetivamente ou subjetivamente:

a ruptura não está entre a icção e a realidade, mas num novomodo de narrativa que as afeta [...] Então o cinema pode se cha-mar cinema-verdade, tanto mais que terá destruído qualquermodelo de verdade para se tornar criador, produtor de verda-de: não será um cinema da verdade, mas a verdade do cinema.(DELEUZE, 2007, p. 182-183)

Retomando a frase pronunciada no inal de Petit à Petit   por

Moustapha Alassane, em sua “autorrepresentação” esse se posicio-na como o funcionário da empresa Pouco a Pouco que não pretende

abrir mão de atuar no mercado e assume a continuidade do negócio.

No ilme realizado por Jean Rouch com o grupo de jovens nigerinos,

os dizeres de Moustapha Alassane sugerem, a partir de um “momen-

to ílmico”, a apresentação de um jovem realizador africano que co-

meçava a produzir seus primeiros ilmes nesse mesmo período.

Segundo Deleuze (2007), a ruptura no novo modo de narrativa

que os afeta não está entre a icção e a realidade. Continua dizendoque a personagem não é mais real ou ictícia, “é uma personagem

que vence passagens e fronteiras porque inventa enquanto persona-

gem real, e torna-se tão mais real quanto melhor inventou”. (DELEU-

ZE, 2007, p. 184)

Em seguida, proponho a relexão sobre duas criações ílmicas de

Moustapha Alassane realizadas em 1966, embora de gêneros muito

distintos: uma releitura dos ilmes de faroeste e uma animação que

satiriza a situação política instaurada no Níger, no período de pós-

-independência.

O RETORNO DE UM AVENTUREIRO

Em Le Retour d’un Aventurier   (O Retorno de um Aventureiro),

Alassane recria localmente os ilmes de cowboy . O ilme icou conhe-

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 245

por semana, eram exibidos nas 220 salas de cinema existentes nesta

região norte ocidental da África.

O diretor se apropria da linguagem do gênero western para sa-

tirizá-la. Na produção do Retorno de um Aventureiro  toda a aldeia

escolhida como locação para as ilmagens foi envolvida na produção.

(VIEYRA, 1975) Em Les Cow-boys sont Noirs uma das cenas mostra

jovens reunidos para cantarem as músicas que compunham a trilha

sonora do ilme na cidade onde foi realizado. Em muitos momen-

tos, o documentário apresenta os bastidores do ilme realizado por

Moustapha, mostrando cenas do processo de ilmagem de O Retorno

de um Aventureiro.

O realizador não apenas se aventura pelos longos planos abertosdo western, mas propõe a criação coletiva com os que atuam no il-

me, discutindo sobre a experiência de produzir os ilmes do gênero,

como os que os africanos assistiam nas telas do cinema de suas cida-

des. A meu ver, a importância da obra está mais no desvelamento do

processo de produção do ilme junto com o grupo de atores e pesso-

as envolvidas. Portanto, a apropriação coletiva do espaço da aldeia

e o período de tempo em que envolveu o grupo de atores e técnicos

com as ilmagens se tornam mais importantes que o resultado que sevê no produto inal. Neste sentido, o documentário de Serge Henri-

-Moati funciona como um complemento fundamental nos momentos

em que Le Retour d’un Aventurier  for exibido para os mais diversos

públicos.

E, nessa releitura do western, Moustapha Alassane produz uma

bricolagem a partir da reconstrução local do próprio gênero ílmico.

O Retorno de um Aventureiro começa com uma cena de discus-

são entre alguns jovens em sua aldeia interrompida pela chegada deoutro jovem que traz uma cela de cavalo que comprara para mos-

trar aos amigos, avisando a todos que Jimi está para retornar de sua

viagem ao exterior. Na cena seguinte, dois jovens atacam um pastor

para roubar-lhe um carneiro. O ilme inicia mostrando o cotidiano

de uma aldeia africana na qual o grupo de jovens vive e se relaciona.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 247

co, um carteiro, um funcionário público e a moça que trabalha como

vendedora em uma galeria de lojas do Níger.

Cabe destacar a personagem feminina, a heroína do ilme de

Alassane não é como uma mocinha da maioria dos ilmes de faroeste

que aguarda ser salva pelo cowboy  destemido. Ela também faz parte

do grupo, como companheira do protagonista, e seu nome é “Rainha

Christina”. Como mostram os bastidores registrados por Moati, ela

se prepara para acompanhar os outros cowboys  africanos pela sa-

vana aprendendo a usar a arma quando necessário. Entretanto, em

alguns westerns americanos da década de 1930, os papéis femininos

se transformam, sendo criada a igura da cowgirl  em alguns ilmes,

como apresenta Vugman. (2006) Em alguns westerns musicais, a he-roína da trama torna-se parceira do cowboy  e abandona a imagem de

moça recatada e obediente.

No ilme realizado por Alassane e seus amigos nigerinos obser-

vamos uma leitura própria do gênero western quando analisamos o

enredo e o desenvolvimento da trama. Os africanos caracterizados

e assumindo a identidade de cowboys passam a agir como tal, re-

produzem o estereótipo dos homens rudes e violentos que, com seu

chapéu, cavalgam pelos campos abertos e áridos com suas armas nacintura. No entanto, ao se travestirem de cowboys, os jovens se tor-

nam cada vez mais violentos e começam a atacar as pessoas da co-

munidade, provocando brigas no bar da cidade e por todos os espa-

ços da aldeia que percorrem. Alguns dos cowboys personagens agem

e passam a ser vistos pela comunidade como bandidos que atacam a

população desarmada, quando essa cuida de suas criações nos cam-

pos. Eles cavalgam assustando animais como as girafas. Os chefes da

aldeia se assustam e convocam o feiticeiro para auxiliá-los a tomaruma atitude contra seus ilhos, que agora vestidos de cowboys torna-

ram-se uma ameaça para todos. Porém, alguns dos jovens do grupo,

principalmente aquele que trouxe as roupas da América para os ami-

gos, discorda da postura e do comportamento dos demais perceben-

do que a brincadeira assumiu uma dimensão inesperada. Depois de

brigarem entre si, um dos jovens acaba morto. O conselho da aldeia

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toma a decisão de aplicar uma lição nos jovens rebeldes simulando a

morte do pai de um deles. Este jovem sai para se vingar de outro dos

cowboys pelo pai que imagina estar morto e, por im, todos decidem

acabar com o jogo. A brincadeira para eles próprios atingiu o limite

e deveria ser interrompida respeitando a decisão do conselho comu-

nitário local. Com isso, todos da aldeia retomam sua vida cotidiana.

No fechamento da narrativa de Moustapha, é a decisão do con-

selho da aldeia que prevalece. Alassane constrói uma crítica ao mos-

trar-nos que o cotidiano vivido pelos cowboys das icções que o pú-

blico africano assistia nos cinemas locais não tem nenhuma relação

com o cotidiano desses jovens, mas, no entanto, puderam criar na

aldeia o espaço lúdico do cinema e dos ilmes de faroeste. A soluçãodo conlito apresentado no início do ilme – o roubo do carneiro pe-

los amigos para servir ao amigo que voltava de viagem – seria outra

se a brincadeira dos cowboys não a tivesse interpelado.

AS IMAGENS ANIMADAS DA VIAGEM DE SIM

Seguindo seu percurso, em 1966, o animador Moustapha realiza

o ilme Boa Viagem Sim, uma caricatura sobre a viagem de um chefe

de estado a um país vizinho. O ilme foi elaborado com traços simples

de tinta preta sobre fundo branco. O autor conjuga a simplicidade

de seus traços à sutileza da representação. Mostra-nos personagens

“sapos” representando diversos papéis sociais ao som de uma banda

marcial e detalhes dos espaços geográicos nos quais os personagens

circulam. O desenho animado apresenta uma montagem simples es-

truturada a partir da sequência linear de planos encadeados, comapenas cinco minutos de duração.

Há uma geração de animadores que se responsabilizam:

por quase todos os aspectos do processo ílmico: concepção,desenho, ilmagem e, até mesmo, a construção da truca. Essareclamação da autoridade criativa contrasta bruscamente como sistema de linha de produção impessoal da indústria de de-senhos animados dos estúdios e traz a animação de volta aoseu impulso experimental original conforme corporiicado nas

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vemos que a relação que construiu com os dispositivos técnicos teve

início no período em que experimentou a projeção de imagens na

tela da caixa de madeira apresentada no princípio desse texto. De-

pois de experimentar a animação em stop-motion, atualmente ele

trabalha com um programa simpliicado para criação de animações

em computador. Com seu “fazer animado”, como disse Graça (2006),

ele apanha o mundo, apanhando seu eu nos dispositivos que alteram

sua relação com seu contexto de vida.

Como possibilidade de leitura do curta de animação Bon Voya-

 ge, Sim pode-se reletir sobre as formas de sociabilidade. Considero

duas dimensões possíveis para análise. A primeira é a da construção

de uma sátira sobre a vida política do Níger e dos países vizinhos noprocesso de independência, a partir da situação que se apresentava

ao jovem animador Moustapha Alassane, e que ele expressa sob a

forma de imagens animadas. A segunda dimensão é de que forma

na representação ílmica desvelam-se os jogos sociais do cotidiano

local por meio das situações recortadas em alguns planos de sua ani-

mação.

A narrativa expressa pelos desenhos animados conta a história

de um chefe de Estado que é convidado a visitar outro país. O sapoSim se ausenta do país que governa e segue de avião para outro. É

saudado pela banda marcial ao sair de seu país e recebido com todas

as honras militares que cabem a um chefe de Estado no país em que

seu avião aterrissa. A visita do sapo Sim ao país vizinho é registrada

por uma câmera de cinema, por uma emissora de TV e por uma emis-

sora de rádio. O presidente Sim participa de uma reunião fechada

com representantes do governo para depois, já em um espaço públi-

co, assinar documentos sob aplausos dos presentes. O plano geral deum prédio anuncia a criação da “Universidade Sim” no im do ilme,

revelando-nos o motivo da visita que se encerra quando o sapo Pre-

sidente decola de volta a seu país de origem.

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Figura 1 - Cenas de Boa Viagem Sim, animação de Moustapha Alassane

Fonte: Bon Voyage Sim (2008).

O desenho animado Boa Viagem Sim  é uma leitura satírica de

momentos políticos de um país imaginário habitado e governado

por sapos. No contexto em que foi produzido, remete-nos a uma

leitura do modelo político instaurado em alguns países africanos no

período de pós-independência, expressada por meio da escrita em

imagens animadas de Moustapha Alassane. Para além da criação dos

desenhos e da construção do discurso ílmico (a escolha dos planos

e a montagem inal das cenas) é a criação do movimento pelo autor

que melhor expressa sua crítica social.

Ao realizarmos análises das produções cinematográicas temos

que atentar para as “mediações: a estrutura narrativa, as convenções

genéricas, o estilo cinematográico.” (STAM, 2003, p. 304) O privi-légio por um tipo de discurso em uma produção pode ser apresen-

tado sob a forma da escolha de um enquadramento, pela forma de

iluminação da cena e pela escolha da música. Neste caso, vejo que a

expressão pelos desenhos animados foi o discurso escolhido e o mais

apropriado segundo a declaração do próprio animador citada no iní-

cio desse texto.

Algumas cenas do ilme merecem destaque na representação

dos jogos sociais que enfatizam a sátira à situação política local. Otrecho que considero mais signiicativo do ilme para representar as

relações de poder estabelecidas é o momento em que os persona-

gens sapos soldados marcham sobre um cilindro em movimento. No

quadro seguinte, vemos que o cilindro está sendo girado por outro

sapo, enquanto um fotógrafo registra toda a cena com sua câmera

conforme observamos nas imagens abaixo:

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Figura 2 - Personagens de Boa Viagem Sim marchando sobre o cilindro

Fonte: Bon Voyage Sim (2008).

Moustapha lança mão de sua liberdade como criador e brinca

com o movimento na cena exposta ironizando a situação política. Em

estudos sobre a ironia, a pesquisadora Linda Hutcheon airma que

a mesma acontece como parte de um processo comunicativo. A iro-

nia não é um instrumento retórico estático, mas nasce nas relações

entre signiicados, entre pessoas e emissores e, às vezes, entre in-

tenções e interpretações. (HUTCHEON, 2000, p. 30) O animador cria

dentro da cena um espetáculo para a câmera fotográica colocando

seus personagens a marchar sobre o cilindro gigante acompanha-

do pelos olhares atentos dos personagens que representam a popu-

lação e os governantes desse país imaginário. Nas cenas seguintes,

outros planos explicitam o registro pelos meios de comunicação detoda a situação representada. Primeiro surge um personagem ope-

rando uma câmera de cinema, depois um fotógrafo, enquanto se vê a

cobertura sonora narrada por um locutor e uma reportagem de TV,

como vemos nos quadros abaixo destacados:

Figura 3 - Personagens da animação de Moustapha Alassane e os meios de comunicação

Fonte: Bon Voyage Sim (2008).

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O documentário realizado sobre o trabalho de Moustapha Alas-

sane, que tem como subtítulo o cineasta do possível , do qual já tratei

nesse texto, foi apresentado no Festival Panafricain du Cinéma et de

la Télévision de Ouagadougou (Fespaco) em 2010. Em uma das ce-

nas do ilme, o animador aparece trabalhando em casa, onde possui

um computador no qual está desenvolvendo o projeto de uma nova

animação. É nesse espaço que, atualmente, ele se dedica a ensinar

animação aos jovens da cidade de Tahoua, onde reside, há 550 km de

distância da capital Niamey.

Em várias declarações públicas, Alassane fala sobre o trabalho

que realizou no Instituto de Investigação e de Ciências Humanas de

Niamey, criado por Jean Rouch, e ressalta que um dos desejos do et -nógrafo francês era de que, naquele espaço, o cinema fosse reinven-

tado. Trabalhando em parceria com outros atores, pesquisadores e

cineastas africanos como Oumarou Ganda, Inoussa Ousseini, Djinga-

rey Maïga, Moustapha dirigiu o setor de Cinema da Universidade de

Niamey durante 15 anos.

São inúmeras as razões de ilmar dos cineastas africanos con-

temporâneos, como airmou Mahomed Bamba (2009, p. 188)

Todos os cineastas africanos têm em comum a escolha de faze-rem ilmes como uma forma de engajamento social, mas tam-bém como um compromisso do sujeito-cineasta com ele mes-mo e com a realidade circundante.

Desta forma, se juntam ao cinema do mundo, realizando como

autores suas obras ílmicas e dirigindo-se a diversos públicos.

Procurando traçar algumas relexões inais sobre a trajetória

aqui apresentada deste cineasta nigeriano, acredito que o caráterinovador do trabalho que realiza, e que coincide com o período de

criação e início de uma consolidação de experiências dos cinemas

africanos, se assim podemos falar, está na sua busca subjetiva da

liberdade de criação, de criar seu próprio cinema. Para ele, o que

parece mais importar é a possibilidade de criar e produzir em sua

própria comunidade, no interior de seu país e, de lá, de seu lugar de

origem, poder mostrar-se ao mundo como produtor de cinema e de

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animações, além de mestre de outros novos cineastas nigerinos que

ainda estão por iniciar suas carreiras. Nas palavras do próprio Mous-

tapha Alassane: “Um jovem pode ilmar com o seu telefone portátil

[...] e quando você ilma, quer exprimir sua maneira de ver. São essas

possibilidades de expressão que me izeram desejar fazer cinema.”.

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PILEUSE de mil (La). Direção: Moustapha Alassane. Níger: 1962,1 Filme (2 min), p&b., 16mm. Animação.

RETOUR d’un aventurier (Le). Direção: Moustapha Alassane.Produção: Argos Films Montagem: Philippe Luzuy, Som: MoussaHamidou. Intérpretes: Djingarey Maïga, Zalika Souley; IbrahimYacouba; Abdou Nani; Boubacar Souna. França: POM Films, 2009,1 DVD (81 min), color., 16mm. Ficção.

SAMBA le grand. Direção: Moustapha Alassane. Produção: Universitéde Niamey; IRSH. França: POM Films, 2009, 1 DVD (81 min), color.,35 mm. Animação.

TOULA ou le génie de eaux. Direção: Moustapha Alassane ; AnnaShöering. Produção: Tahoua Productions. Portugal: Mar Filmes, 2010,1 DVD (76 min), color., 35mm. Ficção.

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Imagens do corpoda mulher e figuras

do “eu” femininoem quatro filmes

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 261

CONSTRUÇÃO DE UMA NARRATIVA DEAPRENDIZAGEM E MISEENSCÈNE  DO CORPO

FEMININO EM HALFAOUINE E UN ÉTÉ À LAGOULETTE  DE FÉRID BOUGHEDIR

Mahomed Bamba

Não há situações sexuais, morais ou não, escandalosas ou ba-nais, normais ou patológicas, cuja expressão na tela seja proi-bida a priorio, com a condição, porém, de se recorrer às possi-bilidades de abstração da linguagem cinematográica, de modo

que a imagem jamais assuma valor documental.Bazin, 1983

INTRODUÇÃO

A história das cinematograias está intrinsecamente relacionada

ao destino dos povos e das comunidades culturais organizados seja

como estados seja como entidades nacionais ou transnacionais. Ela

é ligada também ao nome, às obras e às escolhas estéticas e estilísti-

cas de grandes cineastas, e, mais particularmente, ao modo autoral

como estes realizadores tratam alguns grandes temas da sociedade.

Férid Boughedir é uma igura incontornável na história dos cinemas

africanos. Como crítico, escreveu muitos ensaios que dão uma visão

panorâmica sobre a evolução temática e ideológica nos ilmes africa-

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262 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

nos. Seu compromisso com os cinemas africanos transcende as fron-

teiras da Tunísia (seu país natal) e os limites do cinema tunisiano.

É um cineasta panafricanista convicto: realizou dois documentários

que formam um díptico sobre as histórias dos cinemas da África ne-

gra francófona e da África do norte (Magrebe) e do Oriente médio:

Caméra d´Afrique (1983) e Caméra Arabe (1987).

No texto a seguir, procuramos analisar as estratégias de repre-

sentação icônico-narrativa da igura e do corpo da mulher em duas

obras do realizador tunisiano. São ilmes construídos como crônicas

sociais e narrativas de aprendizagem. Nos dois casos, o espectador

segue o destino de personagens que estão engajados numa espécie

de percurso iniciático semeado de peripécias. No decurso de suasexperiências de iniciação sexual espontânea, os protagonistas fazem

importantes descobrimentos sobre o mundo dos adultos, sobre o

corpo feminino e sobre a sexualidade. As mulheres são os pivôs das

histórias; sua nudez é avidamente cobiçada pelos homens que gravi-

tam em torno delas. É em torno do “desejo de ver” que é estruturada

toda a trama narrativa. Sendo assim, Férid Boughedir acaba cons-

truindo dois ilmes eróticos em que recorre àquilo que Bazin chama

de “possibilidades de abstração da linguagem cinematográica” e aosprincipais códigos e iguras que regem a representação do corpo da

mulher no cinema narrativo (centralidade do ponto de vista de um

personagem masculino; a multiplicação de planos subjetivos; olha-

res pelo buraco da fechadura; construção de “um espaço imaginário

que convoca a participação e a identiicação do espectador...”). Por

outro lado, encontram-se também, no universo diegético, muitos sig-

nos da cultura árabe-mediterrânea (tipos sociais, cenários, igurinos

etc.), e, no plano da representação visual, referências plásticas e for-mais que lembram os modos de iguração da mulher na iconograia

orientalista (tipo de iluminação, fotograia, cor, poses...).

Por sua fotograia caprichada, pela sensualidade das suas ima-

gens e pela exuberância de suas cenas de nu, Halfaouine  (1990) e

Un été à la Goulette (1996) rompem com a timidez que caracteriza

até hoje os cinemas africanos no que diz respeito à representação do

corpo feminino e à construção do erotismo. Portanto, partiremos da

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análise destes dois ilmes para repensar, de um lado, o orientalismo

revisitado e reinventado no cinema do Magrebe e, por outro lado,

para reletir sobre a tensão entre “o poder dizer tudo” e “o não poder

mostrar tudo” no contexto de uma cinematograia não ocidental.

O DESEJO DE VER E SABER EM HALFAOUINE 

Comecemos por Halfaouine  (1990), primeira obra de icção de

Férid Boughedir. Narra a história de Noura e seus dois comparsas

que vivem perambulando nas ruelas de um velho bairro na periferia

de Tunis, Halfaouine. Apesar de seus 13 anos, Noura continua acom-

panhando sua mãe no hammam, o banho público das mulheres. Osamigos de Noura zombam dele, achando-o muito criança para segui-

-los. Mas, como Noura ainda tem acesso ao hammam, ele vai se va-

ler deste “privilégio” como moeda de troca para ser aceito por seus

amigos. Ele passa a agir como um espião: como um cineasta ou um

romancista, ele precisa descrever para os seus amigos os detalhes

do corpo de algumas moças bonitas do bairro com as quais ele fre-

quenta o hammam. A partir dessa missão, a relação de Noura com

o hammam  muda por completo. Ir naquele “lugar de mulheres” se

torna uma necessidade imperiosa. Na representação social deste mi-

crocosmo, o corpo da mulher se torna o objeto da busca e a iguração

do espaço desempenha uma função primordial na trama narrativa.

Tudo passa a girar em torno do hammam.

Figura 1 – Noura perambulando no interior do Hamman

Fonte: HALFAOUINE, 1990. (©Scarabee Films)

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O início de Halfaouine (1990) merece um comentário. A primei-

ríssima imagem do ilme é fornecida pelo plano de uma poça d´água

correndo. Em seguida, vê-se uma mão triturando uma pasta preta

dentro de um pote no chão. Logo descobrimos que se trata de uma

espécie de shampoo com o qual uma mulher, provavelmente, a mãe,

vem esfregando os cabelos de um bebê sentado na sua frente. No

terceiro plano deste segmento de abertura do ilme, aparecem três

crianças agrupadas e sendo enxaguadas. O quarto plano enquadra,

desta vez, um pré-adolescente que olha ixamente em frente enquan-

to uma mulher vai esfregando suas costas com uma esponja: é Noura.

Quando os planos se abrem um pouco, podemos observar que esta-

mos num “banho público” onde circulam predominantemente mu-lheres seminuas ou com roupas inas que lhes colam na pele. Noura

as olha meio perplexo. Esta sequência é construída com uma série

de planos subjetivos, de planos contraplanos em que o espectador

vê, através do olhar ixo e intrigado de Noura, os detalhes do corpo

de uma senhora de grande corpulência (plano fechado sobre o peito

e a traseira). Assim que começa os créditos, um longo plano panorâ-

mico exibe a cidade de Tunis em todo seu esplendor mediterrâneo,

cenário em que predominam casas de cor branca. Esta panorâmicatermina no quintal de uma casa.

Figura 2 – Halfaouine, 1990 (©Scarabee Films)

Na lógica da narrativa de aprendizagem, podemos considerar

que estes 11 planos que antecedem os créditos têm como função

comunicar a inexperiência e a ingenuidade da personagem Noura

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 265

neste universo feminino. O corpo das mulheres que Noura vê no

hammam e nas ruas o fascina mais do que o excita. Paralelamente à

pulsão escópica de seus comparsas, o ilme desenvolve um percurso

narrativo em que a personagem Noura está constantemente em bus-

ca de respostas às suas inquietações diante do que o cerca. Noura

tem, portanto, todas as características da personagem de uma nar-

rativa de aprendizagem. Sua vontade de ver se confunde com uma

vontade pueril de saber mais sobre este estranho objeto do desejo

dos adultos. Mas este percurso que levará Noura ao conhecimento

do corpo feminino é balizado de obstáculos diversos. O primeiro des-

ses obstáculos é a igura do pai. A severa educação que impõe ao

seu ilho impede este de lhe fazer qualquer pergunta embaraçosasobre as mulheres. Além do mais, o amigo islamista barbudo do pai

de Noura passa o tempo vigiando seus comportamentos nas ruas e

o dedurando. O resto do tempo Noura anda pelas ruas atrás de seus

dois amigos. Sendo assim, Noura procura amigos nas suas andan-

ças pelas ruas. Quando está sozinho, sobe nos terraços das casas por

onde pode olhar para a cidade com uma certa distância.

Noura acaba encontrando na pessoa do sapateiro do bairro um

amigo, um cúmplice e um mestre que completa sua educação sexuallhe explicando “coisas” sobre o universo feminino. Salah é o persona-

gem atípico do bairro. Está terminando de escrever uma “nova peça

com heróis europeus” e que se intitulará “Risos na escuridão”. Noura

gosta de visitá-lo em seu ateliê, que parece mais um antro de luxúria

(costuma “atender” no fundo do ateliê suas conquistas amorosas) do

que uma sapataria. O ateliê é uma verdadeira caverna de Ali Babá.

Há fotos de mulheres peladas nas paredes. Noura gosta de fazer per-

guntas a Salah e gosta de ouvi-lo dando sábios conselhos. Salah étambém ativista político que, de vez em quando, está em encrencas

com os policiais. Adora beber; o álcool, diz Salah a Noura, é um meio

que o ajuda a compreender os personagens que ele está criando na

sua peça. Na falta de comunicação com o seu próprio pai, o sapateiro

se torna, portanto, o principal coadjuvante de Noura no seu processo

de conhecimento das mulheres, que continuam ainda um mistério

para ele.

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266 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

Noura é uma criança prestes a entrar na puberdade. Mesmo as-

sim, evolui num ambiente familiar repleto de mulheres (sua mãe,

sua tia, uma vizinha colocatária e a nova empregada doméstica da

sua mãe). Os outros adjuvantes desta narrativa estão, obviamente,

encarnados nas iguras dessas mulheres que o cercam. Primeiro a

mãe de Noura: ela o ajuda no seu aprendizado sem saber, pelo fato

de continuar a levar Noura no hammam, apesar das reticências das

funcionárias que acreditam que “o olhar de Noura mudou”. O livre

acesso de Noura neste lugar reservado às mulheres o põe em conta-

to direto com o seu “objeto” de investigação. Por outro lado, a mãe

de Noura narra para ele como canto de ninar a fábula de um ogro

que rapta as donzelas e as virgens rastreando-as pelo seu sangue.Esta fábula, além de dar dimensão simbólica à narrativa, amplia o

imaginário infantil de Noura. A fábula do ogro está intercalada na

montagem do ilme e volta como um leitmotiv  entre as cenas. O que

parece impressionar mais Noura nesta fábula é o objeto da busca do

ogro: o sangue da virgem. O ogro, neste caso, torna-se uma espécie

de contraexemplo e um contramodelo na própria busca de Noura.

A própria topograia de Halfaouine é também um coadjuvante para

Noura: os tetos e os terraços1 das casas são como um refúgio e um lu-gar onde Noura consegue olhar, com certa distância, para este mun-

do dos adultos. É em contra- plongée, por exemplo, que ele assiste à

cerimônia de circuncisão do seu irmão mais jovem.

 

Figura 3 – Noura ouve, no colo da sua mãe, o conto do ogro

Fonte: HALFAOUINE, 1990. (©Scarabee Films)

1  L´enfant des terrasses (“a criança dos terraços”) é o subtítulo em francês do ilme Halfaouine.

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Quando Noura é inalmente surpreendido olhando para as mu-

lheres, ele é expulso do hammam. Ele se recusa a acompanhar o seu

pai no hammam  dos homens. Ao contrário, ele investe sua pulsão

escópica e seu desejo de saber na jovem empregada doméstica que

sua mãe acabou de contratar. Leila se torna uma espécie de objeto

de investigação para Noura, que a “visita” todas as noites, às vezes

desabotoa sua blusa para melhor observar seus peitos. Depois de en-

ganar a Leila, Noura consegue simular com ela o que acontece num

hammam, isto é, como as mulheres se lavam mutuamente. Leila tira

as roupas até a cintura para que Noura possa esfregar seu corpo. Mas

esta experiência é interrompida com a chegada em casa da mãe de

Noura. A jovem empregada é mandada embora. Mas, antes de Leilapartir, como num conto de fada, Leila entrega sua nudez para Noura.

Figura 4 – Leila e Noura

Fonte: HALFAOUINE, 1990. (©Scarabee Films)

Com este presente, Noura chega ao im de sua iniciação. Sente-

-se amadurecido. Inclusive, desaia seu pai, desobedece a sua ordem

e o enfrenta de forma jocosa numa das últimas cenas do ilme. Se

fôssemos falar de uma mudança psicológica do personagem Noura,ao longo deste processo, ela é, como na maioria das narrativas de

aprendizagem, mais simbólica do que realista. Inclusive a cena em

que Leila convida Noura a “descobrir” seu corpo parece mais ima-

ginária que real. Noura permanece até o im no corpo de um pré-

-adolescente com suas fantasias. A principal mudança, porém, está

no olhar dele sobre as coisas. Já Noura, como havia notado a dona do

hammam, não é mais uma criança, pois seu “olhar mudou”. Ele en-

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tende um pouco mais sobre o corpo das mulheres também. O ilme

se conclui de forma expressiva, sobre a imagem do plano fechado do

rosto risonho de Noura (imagem de felicidade e de plenitude) olhan-

do para o vazio desde o terraço.

NARRATIVA DE INICIAÇÃO E CONTO DE AMORINTERCULTURAL EM UN ÉTÉ À LA GOULETTE 

Un été à la Goulette (1996), segundo longa metragem de icção de

Férid Boughedir, é construído como uma crônica de bairro. La Gou-

lette, uma cidade portuária da Tunísia, é apresentada, desde os crédi-

tos, como um lugar paradisíaco. O diretor tunisiano se interessa pelotema do desabrochar da sexualidade entre adolescentes e pela rela-

ção de amizade entre três famílias de culturas e religiões diferentes.

Apesar de suas diferenças culturais e religiosas, os habitantes de La

Goulette parecem formar uma comunidade harmoniosa e coesa. Pelo

menos, no início do ilme, muitas imagens tendem a expressar esta

indiferença dos moradores às suas clivagens culturais e religiosas. Os

primeiros planos que antecedem os créditos do ilme exibem a facha-

da de um cortiço e seu quintal com roupas penduradas no varal. Umcenário tipicamente mediterrâneo banhado por uma luz morna. Em

seguida vemos uma adolescente com uma roupa ina e pernas desnu-

das deitada numa cama. Um garoto está deitado ao seu lado no chão

no mesmo quarto. Ele acorda e sai, acompanhado de dois outros me-

ninos, na ponta dos pés da mesma casa. À primeira vista parece que

são da mesma família. Mas, logo, o espectador descobre que são ape-

nas amigos. Neste início do ilme, tudo está sendo mostrado e visto

pelo ponto de vista deste grupo de adolescentes. Eles invadem a casa

do personagem mais truculento do bairro; o espectador ica sabendo,

através da fala de um dos adolescentes, que El Hadj vive sozinho com

seus pássaros; ele “foi duas vezes a Meca”, está viúvo e, diz a lenda,

não quer se casar de novo por medo de ter uma mulher tão desobe-

diente quanto sua primeira esposa, que ele degolou.

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A transição para os créditos resulta numa pequena mudança de

ponto de vista; a letra da canção, em francês, nos créditos de abertu-

ra, funciona como uma voz off  de comentário: toma o próprio bair-

ro como objeto de seu discurso. É uma verdadeira ode ao bairro La

Goulette, que é apresentado como uma “cidadezinha” fora da Tunísia

e fora do tempo:

é uma cidadezinha pendurada no mar azur azul. Pobre ou rico,todo mundo vive feliz. Inclusive, na Tunísia, você não encon-trará um lugar parecido. É impossível parar de louvar as suasmaravilhas: árabes e judeus, judeus e cristãos no mesmo tren-zinho caminham juntos até o prazer, até a única praia que euadoro: La Goulette, La Goulette. [...] tu és o mais belo lugar do

planeta, La Goulette, La Goulette, paraíso nunca perdido, eujuro. Que comece a festa!.

O bairro La Goulette é louvado pelo bem-estar e pela boa convi-

vência harmoniosa entre as diversas famílias árabe, judia e cristã.

Como em Halfaouine (1990), o ilme Un été à Goulette (1996) começa

pela construção cuidadosa do espaço diegético. Os primeiros planos

e os créditos formam um segmento descritivo que permite a entrada

do espectador no ilme dando-lhe informações preliminares sobreo contexto da história cultural, histórico e geográico da história. As

imagens do dia a dia, da arquitetura e da rotina do bairro comple-

tam a canção como num videoclipe. Movimentos suaves de câme-

ra revelam ruelas, becos, pessoas transitando pelas ruas, mulheres

estendendo carpete na sacada das varandas, uma carroça passando

na rua. Panorâmicas mostram o bairro de costas para o mar (como

um cartão postal). A predominância da cor branca e de cal das casas

também forma um belo contraste com o azul mar mediterrâneo. Oscréditos trazem as seguintes menções escritas: “Port de La Goulet -

te – Tunisie – Afrique du Nord”. Indicação que reforça a ancoragem

geográica e histórica da narrativa. O espectador se sente entrando

num universo que é, ao mesmo tempo, mediterrâneo e islâmico (pela

presença nas imagens de mulheres vestidas de burca branca e de

véu). Por outro lado, o caráter plurirreligioso de La Goulette é signii-

cado pela sucessão das imagens de uma mesquita, de uma igreja e de

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uma sinagoga. Mas, apesar da presença desses lugares de culto das

três religiões reveladas na sua paisagem, La Goulette tem também

um lado hedonista. Os créditos terminam na imagem da praia, onde

se podem ver banhistas sentados na areia e comendo gulosamente

melancias e outras iguarias locais. A partir de lá, o espectador passa

a acompanhar o ilme como uma narrativa em que se imbricam as

histórias de amizade entre Youssef, Jojo, Giuseppe (os pais das mo-

ças), de um lado, e, por outro lado, entre Tina, Gigi e Miriem (TGM). O

ponto de vista da narrativa é conduzido alternadamente a partir das

ações e das falas destes personagens.

 

Figura 5 – As três amigas, Tina, Gigi e Miriem na praia de La GouletteFonte: Un été à la Goulette, 1996. (©Marsa Films)

Por ser construído como uma crônica de bairro, Un été à la

Goulette (1996) , além do tema da sexualidade entre adolescentes,

aborda questões sociais ligadas à identidade religiosa e ao convívio

intercomunitário. As imagens de Jojo e seus amigos pescando e dis-

cutindo nos bares, bem como as mulheres que compartilham seus

pratos, mostram um ar de coabitação pacíica entre as comunidades.

Estas imagens, inclusive, diluem e anulam as idiossincrasias de cada

grupo. A cena do casamento da ilha mais velha de Jojo é ilustrativa

deste clima de harmonia. Assim que a notícia da passagem da atriz

Claudia Cardinale (que faz uma ponte no ilme) pelo bairro se espa-

lha, os habitantes correm para aclamá-la debaixo da janela de seu

hotel. Ainal de contas, não poderia ser diferente: ela é uma ilha de

Tunis. Por outro lado, ela representa a cultura vinda da Europa. Ela

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 271

é também convidada ao casamento. Mas na hora de tocar a marcha

nupcial, o público prefere ouvir um canto local em árabe.

AFETIVIDADE EM CONTEXTO INTERCULTURAL

É no contexto deste bairro-cidadezinha que toma forma a narra-

tiva de iniciação sexual de Tina, Gigi e Miriem. A história destas três

amigas católica, judia e muçulmana pode se resumir à sua decisão

comum de perderem juntas a virgindade com rapazes de religiões

diferentes. Para isso, elas vão até uma igreja, acendem velas e fazem

um pacto em forma de juramento de se empenharem nesta decisão.

Na verdade, trata-se de uma autoiniciação ao amor que dispensaqualquer lição ou conselhos por parte dos pais. As conversações en-

tre as moças, mesmo sendo virgens, mostram que elas não são to-

talmente inexperientes. Enquanto as três amigas vão ajudando nos

preparativos de um casamento prestes a acontecer em La Goulette,

elas “jogam conversa” e Miriem faz uma relexão que é reveladora

da sua concepção cultural do amor: “Para nós muçulmanos, não há

dote, é o marido que oferece uma quantia de dinheiro. Para nós, é

o marido que compra a mulher e para você [católicos e judeus], é

a mulher que compra o marido. O amor é lindo!”. Mas, paradoxal-

mente, mesmo tendo sua visão do amor tingida pelo sentimento de

pertencimento cultural e religioso, elas não deixam de querer ter sua

primeira relação sexual de forma “original” e pessoal.

 

Figura 6 – Un été à la Goulette, 1996 (©Marsa Films)

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 273

durante alguns dias. Para levar a cabo seu projeto, elas precisam sair

do bairro e encontrar os seus namorados fora da comunidade e suas

regras morais, isto é, os jovens precisam se encontrar num espaço

neutro onde a promessa possa ser cumprida.

Nesta história de amor impossível, o elemento coadjuvante é re-

presentado pela união e a solidariedade entre as três moças. União

que permite enfrentar todos os tipos de adversidades e passar por

cima de qualquer barreira de ordem religiosa ou cultural. Na ausên-

cia de uma educação sexual e amorosa, elas passam a se prodigalizar

com conselhos mútuos. Juntas, elas compartilham segredos sobre

sua intimidade, e raramente o fazem com suas mães. É de forma cole-

tiva que elas aceitam o convite de ir ao baile e beijar seus respectivos“namorados” num mesmo quarto. E, no tempo em que elas permane-

cem privadas de “liberdade de sair”, elas continuam se comunicando

entre elas e com os rapazes. O ilme faz da realização da promes-

sa um inal feliz. Miriam e suas amigas conseguem burlar a atenção

de seus familiares e se encontrar num lugar fora da cidade. De uma

crônica de bairro passamos, assim, a um conto de iniciação em que

a questão da afetividade e da sexualidade num universo intercomu-

nitário e intercultural está no centro da representação da realidadesocial descrita. Ao mesmo tempo em que o ilme Un été à la Gou-

lette (1996) se deixa apreender como uma ode à interculturalidade,

aponta também para o caráter insuperável de algumas barreiras de

ordem moral e cultural impostas.

ORIENTALISMO REVISITADO

No meio dessas duas narrativas de aprendizagem e de iniciação,

assistimos também a um cuidadoso e signiicativo trabalho de mise-

-en-scène do corpo da mulher. A representação da nudez é não somen-

te “ousada”, bem como chama a atenção por seu lado “orientalista”.2 

Como sabemos, antes dos cineastas magrebinos, foram os pintores

2  Referimo-nos ao orientalismo pensando, sobretudo, na tendência da pintura ocidental que, en-tre os séculos XVIII e XIX, foi qualiicada com este termo.

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orientalistas os primeiros a pôr em imagens o corpo das mulheres

que se escondem atrás de seus véus e vestes nos países de tradição

árabe-muçulmana. Alguns desses artistas se valeram de sua imagi-

nação e de um pouco de fantasia para revelar a sensualidade femi-

nina “oriental”. De todos os orientalistas, Jean-Auguste Dominique

Ingres foi aquele cuja obra – Le Bain Turc (1862) e La Grande Odalis-

que (1814) – concentra todos os principais traços que caracterizam a

representação do nu feminino na pintura orientalista de ontem e de

hoje. Figuração do corpo feminino oriental nos tradicionais lugares

que são o hammam e o harém. De lá para cá, o hammam se tornou,

no imaginário coletivo, mais do que um banho público e um espaço

de socialização para as mulheres. No universo das representaçõesvisuais, o hammam  se tornou uma das iguras incontornáveis em

qualquer processo de representação orientalista da mulher. Mesmo

hoje (sabemos que foram as leituras de Ingres que lhe inspiraram o

assunto do nu feminino no Le bain Turc), continuamos imaginando

o hammam  tal como nos restituíram as imagens orientalistas, con-

irmando, assim, o papel preponderante que Edward Said atribuía a

todas as formas de orientalismo (nas artes ou na política). A fantasia,

a imaginação do artista, os mitos, o pitoresco e o exotismo acabaramse consagrando como os principais vetores da representação da rea-

lidade dos países que pertencem ao chamado “Oriente”, mas também

os ingredientes da iguração da mulher neste universo, chegando, as-

sim, a uma cristalização das iguras da mulher lasciva.

Essa iconograia orientalista, em que o corpo e sensualidade fe-

mininos têm uma presença destacada, foi alimentada também pela

própria literatura árabe. No início do século XVIII, a descoberta das

histórias “coloridas” narradas por Scheherazade em  Alf Laylah waLaylah ( As Mil e Uma Noites) vai profundamente marcar o imaginário

ocidental sedento de exotismo. No entanto, como reconhece Lynne

Thornton, embora os contos de Mil e uma noites fossem marcados por

uma forte espiritualidade, foram os temas da sexualidade, do amor, da

violência, de humor e da astúcia que retiveram as atenções no mundo

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 275

ocidental. Esses temas transmitiram a “imagem indelével de um mun-

do oriental poético, erótico e brutal”. (THORNTON, 1998, p. 4) 

A representação sensualista do corpo feminino se acompanha,

geralmente, de um retrato imaginativo e quase iccional dos espa-

ços socialmente reservados às mulheres nas culturas ditas orientais.

Dai a recorrência do hammam  e do harém na pintura orientalista.

Ao mesmo tempo em que estes “lugares de mulher” se tornaram mí-

ticos no imaginário ocidental, permanecem, paradoxalmente, mal

conhecidos pelo grande público. A percepção e a invenção do Orien-

te evoluíram para várias formas de orientalismo, inclusive nos pró-

prios países de árabe-muçulmanos e mediterrâneos. Isso conirma,

de um lado, o caráter estético e semiótico do orientalismo, enquantooperação de representação baseada numa série de modalidades dis-

cursivas e de signiicação particulares. Por outro lado, a existência de

um tipo de orientalismo “oriental”, mesmo moderado e politicamen-

te diferente, nos cinemas dos países do norte da África, conirma a

força de pregnância dos temas e do estilo orientalista no campo das

representações visuais e ílmicas e, consequentemente, seu caráter

insidiosamente ideológico. Se há de fato uma forma de orientalismo

remanescente a ser indagada ou estudada nas narrativas literárias,nos ilmes e temas de países como Tunísia, Marrocos, Argélia ou

mesmo o Egito, este exercício passa pela análise da atitude ambiva-

lente dos romancistas e cineastas e, particularmente, pelo exame dos

modos como representam o corpo da mulher.

Parte do que podemos chamar de “discurso sobre o corpo e a sen-

sualidade” no mundo oriental encontra-se também na literatura ma-

grebina contemporânea. O escritor marroquino Tahar Ben Jelloun,

por exemplo, explora contos e histórias em que a igura feminina e oerotismo são onipresentes. Suas narrativas sempre trazem uma mi-

nuciosa descrição dos ambientes orientais e frisa o poder de sedução

das protagonistas femininas. Em seu livro Le premier amour est tou-

jours le dernier (1995), o narrador, numa referência intertextual cla-

ra ao conto de Mil e uma Noites, coloca esta frase na boca de uma de

suas personagens femininas: “nous autres femmes, tout ce que nous

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276 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

voulons, nous arrivons à l´obtenir.”3 (JELLOUN, 1995, p. 40) Nesta co-

letânea de contos, página após página, Tahar Ben Jelloun transporta

o leitor nos meandros do amor e da sensualidade oriental.

O que dizer dos cineastas magrebinos? Os cinemas do norte da

África sempre tiveram e continuam tendo uma relação ambígua e,

às vezes, contraditória com o orientalismo enquanto forma de pen-

samento, de representação e de invenção do outro. Por um lado, há,

incontestavelmente, uma vontade de superar as imagens eurocên-

tricas e exóticas produzidas pelos artistas orientalistas e pelo cine-

ma colonial sobre as paisagens e as mulheres desta parte do mundo

denominada Oriente, incluindo ali o Magrebe. Para Denise Brahimi

(2009), por exemplo, esta recusa do orientalismo se traduziu, entreoutras coisas, pela ausência da representação da geograia. No lu-

gar de longos planos descritivos de paisagens pitorescas, de viagens

pelo deserto, muitos ilmes magrebinos preferem localizar suas tra-

mas narrativas em cenários e ambientes fechados, tais como palácios

suntuosos, alcovas, haréns, hammams etc. Mas, paradoxalmente, é o

estetismo no tratamento desses ambientes que conduziu, às vezes,

a formas de representação ílmica que carregavam alguns traços do

orientalismo. Sendo assim, os cinemas magrebinos, na verdade, nãorompem totalmente com o orientalismo; ao contrário, revisitam seus

temas e retomam parte da sua iconograia para, depois, desviá-las de

seu sentido ideológico “orientalista” tradicional.

Em alguns casos, esta preferência pelos espaços fechados serve

também de mediação e de pretexto no momento de representar o nu

feminino nos ilmes do Magrebe. Neste gesto de mostração mediada,

há uma vaga hesitação entre uma reconstituição realista e sugestiva.

Ou o ilme opta por um voyeurismo motivado pelo olhar indiscretode uma personagem diegética, ou recorre a planos e enquadramen-

tos furtivos sobre o objeto de desejo dos homens. É a partir desta

relação ainda ambígua dos cinemas do Magrebe com a velha icono-

graia orientalista sobre as mulheres que gostaria de questionar a

representação da igura feminina nos dois ilmes de Férid Boughedir.

3  “Nós, mulheres, acabamos tendo tudo que desejamos”.

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de dois bairros populares (pelo retrato de diversos personagens, do

convívio intercomunitário e do dia a dia de dois bairros da capital

Tunis), e como “contos orientais” (pela poesia e o realismo da nar-

ração e pela construção expressiva do espaço ílmico e pela dimen-

são moral das duas tramas). São dois ilmes ousados no sentido de

trazerem uma representação pouco tímida do corpo da mulher e em

que a sensualidade, o erotismo e a crítica social4 operam em diversos

planos de signiicação.

O estetismo da fotograia, da direção de arte e da mise-en-scène 

caprichada do corpo feminino, e da sensualidade e da sexualidade

que se desprendem de algumas cenas, bem como a iguração dos

olhares e do voyeurismo masculinos na narrativa, colocam, à pri-meira vista, os dois principais ilmes de Férid Boughedir, Halfaouine,

l´enfant des terrases e Un été à la Goulette no conjunto discursivo dos

ilmes orientalistas, inclusive na categoria dos ilmes eróticos. Mas

esta dimensão orientalista e a carga erótica de algumas imagens são,

muitas vezes, contrabalançadas pela comicidade e pelo papel ativo

desempenhado pelas mulheres nas duas narrativas de aprendiza-

gem e de iniciação.

A REPRESENTAÇÃO DO CORPO FEMININOPELA MEDIAÇÃO DO HAMMAM 

O hammam no ilme Halfaouine aparece como o elemento orien-

talista por excelência. As imagens do nu feminino se justiicam pela

representação deste lugar de mulher. Em outras palavras, a mostra-

ção do corpo, neste caso, obedece a uma lógica de motivação diegé-

tica, isto é, passa pela própria mise-en-scène da porção do espaço pú-

blico onde a nudez da mulher é socialmente aceita e tolerada. É um

4  Michel Serceau considera justamente Halfaouine como “o ilme mais penetrante e útil dos il-mes magrebinos”. Esta crítica elogiosa de Serceau não se refere só às qualidades estéticas eformais do primeiro ilme de icção de Férid, mas também à maneira metonímica como o di -retor tunisiano consegue falar da realidade sociopolítica da Tunísia e, indiretamente, de todosos outros países da África do Norte, a partir da representação das relações de convívio e degêneros num bairro periférico da capital Tunis.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 279

microcosmo no interior do bairro, funciona como um lugar de con-

fraternização entre as mulheres que o frequentam. Muitas imagens

de mulheres, no hammam, se impregnam de uma dimensão metafó-

rica e metonímica também. Naquele lugar, veem-se antes de tudo a

predominância dos signos da igura materna. A imagem da água que

corre, signo de vida, é completada e duplicada pelas imagens da re-

lação de uma mãe com o seu bebê (que ela vai lavando quase colado

ao seu corpo) e por outras cenas de mulheres-mães ajudando seus

ilhos a tomar banho. A recorrência do elemento aquático é signiica-

tiva: a água do banho e o líquido amniótico acabam se encontrando

numa mesma combinação semiótica aqui. Todas as faixas etárias e

todos os tipos de corpos estão copresentes neste “lugar de mulher”.A iguração do corpo da mulher no interior desse lugar é realizada,

formalmente, recorrendo a claras referências pictóricas orientalis-

tas. Um dos planos de abertura de Halfaouine mostra as mulheres

nuas e seminuas deitadas e relaxando no hammam. A referência às

odaliscas é mais do que patente.

 

Figura 7 – Halfaouine, 1990 (©Scarabee Films)

A única presença masculina neste lugar de mulheres quebra a

harmonia da composição. Mas, por outro lado, é este olhar masculino

que funciona como um elemento estruturante. Apesar de sua idade,

Noura é uma espécie de intruso no hammam. Junto com Noura o es-

pectador também é convidado a penetrar no interior na intimidade

das mulheres. Halfaouine leva o voyeurismo ao seu extremo. Em pla-

nos subjetivos, nós espectadores passamos também a ver através do

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280 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

olhar impressionado, deslumbrado e libidinoso do adolescente Nou-

ra. Na alternância do campo/contracampo na sequencia de abertura,

o ilme constrói o olhar subjetivo (o de Noura) por onde irá transitar

o desejo de ver do espectador. O espectador-voyeur  compartilha, ao

longo do ilme, da curiosidade de Noura. O olhar de Noura é o ponto

de vista na narrativa, através dele se suscita a identiicação espec-

tatorial. Sendo assim, a série de 11 planos iniciais que precedem os

créditos constroem o hammam, ao mesmo tempo em que preparam o

espectador a uma leitura diegetizante do ilme pelo reconhecimento

da função cultural do banho público e de seu pertencimento ao uni-

verso cultural oriental. Este aspecto oriental, ou orientalista, é ainda

reforçado pelos letreiros em árabe que vêm cobrir a tela na hora doscréditos. Por outro lado, a arquitetura, as características urbanísticas

e cromáticas e a luz acentuam o caráter mediterrâneo do contexto,

isto é, a cidade de Tunis. Oriental, orientalista ou mediterrâneo? Esta

ambiguidade cultural se mantém ao longo do ilme.

O controle social sobre o corpo da mulher e sobre a sexualidade,

de modo geral, acaba transformando os indivíduos masculinos em

sujeitos frustrados e em perpétuo estado de busca do nu feminino. O

ilme Halfaouine reproduz também na sua estrutura esta cisão entreos espaços masculino e feminino. A nenhum momento é mostrado o

hammam dos homens. O espaço dos homens parece ser a rua. Quan-

do não são mostrados discutindo nas ruas, são vistos polemizando

no barbeiro. Enquanto os homens ocupam os espaços públicos, as

mulheres apenas transitam por eles. Fora do hammam, as mulheres

são apenas avistadas andando pelas ruas cobertas de véu e de burcas

brancas. Os espaços privados lhes parecem dedicados (casas, quin-

tais das casas etc.).Mas o ilme de Férid mostra que esta contradição acaba tornando

os homens hipócritas na sua relação com o corpo feminino e com a

nudez, que a sociedade coíbe por todos os meios. O personagem de

Hadj Beji, em Un Été à la Goulette, incarna esta contradição e este

paradoxo. Por exemplo, quando ele surpreende Miriam tomando ba-

nho, num gesto rápido e assustado pelo que avistou, volta a fechar a

porta. Como por pudor. Porém, após alguns segundos, parado atrás

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 281

da porta, deixa a sua curiosidade falar alto: volta a abrir a porta e

entrega-se ao espetáculo deste “corpo feminino nu” que ele admira

voluptuosamente. No sistema das personagens em Halfaouine e Un

été à la Goulette, o pai de Noura e Hadj Beji resume, respectivamente,

a hipocrisia de toda uma sociedade tunisiana que paulatinamente

vai se deixando cativar pelo rigor do islã importado do Oriente. A

igura da mulher fascina os homens. Ao mesmo tempo em que eles

obrigam este corpo feminino a se cobrir com o véu e a burca, a nudez

da mulher se torna um objeto de cobiça. Hadj foi e voltou do Oriente;

recusa-se a tomar uma esposa por medo que ela o desobedeça. Por

outro lado, El Hadj ostenta seu lado oriental. Exige da mãe de Miriem

um comportamento condizente com os preceitos da religião muçul-mana. Ele encarna a igura do islamista e do islamismo que já está

tomando conta de La Goulette e de toda a Tunísia.

Aqui há uma referência clara dos dois ilmes de Férid Boughedir

àquilo que podemos chamar de orientalismo reinventado e fantasia-

do5 na maioria dos países do norte da África. É um orientalismo que

consiste na exaltação de valores morais e culturais importados da

Arábia Saudita e do Oriente Médio. Em seguida, esses valores são er-

guidos em preceitos morais e éticos, impostos ao conjunto das comu-nidades do Magrebe, e regem a vida sexual e afetiva. Este novo orien-

talismo manifesto e ideologicamente assumido no Magrebe acaba, às

vezes, desviando para uma forma de integrismo cultural, moral e re-

ligioso, ao mesmo tempo em que alguns cineastas (homens e mulhe-

res) o retratam nas suas icções, denunciando os seus efeitos nocivos

para as liberdades individuais e para os direitos das mulheres nos

países do norte da África. O próprio Férid Boughedir classiica seu

ilme na categoria dos ilmes magrebinos que “escolhem o humor,a alegria, o elogio da vida e da tolerância” (BOUGHEDIR, 2004,

5  Este orientalismo manifesto é, às vezes, reivindicado ideologicamente por alguns diretores noscinemas do Magrebe, como é o caso do cineasta tunisiano Nacer Khemir. A respeito da obra deKhemir, Sonia Lee fala de um “cinema assombrado” pelo desejo do próprio cineasta encontrar,pela imagem, o espírito da cultura árabe tal como ele se manifestou na Idade Média na Anda-lusia. Conferir o artigo de Sonia Lee (2004, p. 135-140) sobre os ilmes Les baliseurs du déserts (1986) e Le Collier perdu de la Colombe (1994).

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282 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

p.106)6 como meio para contrariar a subida do integrismo e o fana-

tismo islâmicos e da ideologia de censura e de exclusão.

Porém, esta vida de asceta de Hadj não passa de uma fachada.

Durante todo o ilme ele está obcecado pelo corpo jovem da Miriem.

Como Hadj, o pai severo do Noura, em Halfaouine, ostenta também

uma vida de bom muçulmano; mas na realidade não passa de um

mulherengo e colecionador de revistas pornográicas. A represen-

tação da sensualidade feminina tem como corolário uma prática de

voyeurismo generalizado nos dois ilmes. Noura e seus amigos, por

exemplo, tentam saciar parte da sua pulsão escópica através do nu

dos corpos das mulheres europeias. Além de descrever “as imagens”

que ele traz do hammam, Noura também rouba as revistas pornográ-icas de seu pai. Juntos com os seus comparsas na orla, eles olham,

tocam e apreciam gulosamente cada imagem de nu feminino. Um dos

amigos de Noura inclusive airma que, na França, além de ver “tudo”,

“podem se ver fotos eróticas coloridas”.

Figura 8 – O pai de Noura cortejando uma cliente em sua loja

Fonte: HALFAOUINE, 1990. (©Scarabee Films)

A vontade de ver e tocar o corpo nu das mulheres conduz Nourae seus amigos a uma espécie de fetichismo. Além de ir ao hammam,

Noura passa seu tempo também coletando luvas, resto de chiclete

6  A tolerância intercomunitária e o convívio interracial e interreligioso na Tunísia são uma tônicadominante e uma recorrência temática no cinema de Férid Boughedir (2004). O diretor prefereabordar estas questões no contexto histórico. Encontramos esta preocupação em dois outrosilmes do diretor tunisiano: Villa Jasmin (2007), um teleime adaptado do romance autobio-gráico do escritor e jornalista francês, Serge Moati, que nasceu e cresceu com a sua família naTunísia; e Le Pique Nique (1975), um curta-metragem.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 283

e roupa íntima feminina, a pedido de seus comparsas. Todos esses

objetos heteróclitos representam um prolongamento do corpo femi-

nino, portanto, passam a ser objeto de curiosidade e adoração. Por

exemplo, quando Noura rouba uma calcinha da sua vizinha e lhe en-

trega aos seus dois amigos, estes se zangam e se frustram com o fato

de terem que “cheirar” uma calcinha limpa e sem nenhum cheiro. A

obsessão de Hadj e dos dois comparsas de Noura pelo corpo e pela

nudez das mulheres simboliza toda a pulsão escópica dos homens

nas sociedades islâmicas. Porém, os jovens, diferentemente dos adul-

tos mais hipócritas, não dissimulam sua procura desesperada pelo

corpo da mulher. É preciso ver o nu a qualquer custo! Olhar pelas

fechaduras e pelas fendas se torna um exercício predileto dos jovens.Por exemplo, a ducha das três amigas (decididas e prestes a oferen-

dar sua virgindade a um estranho) no quintal de uma casa se torna

rapidamente objeto de um espetáculo em Un été à la Goulette. Um

grupo de jovens está amontoado atrás de uma porta cheia de fendas

por onde passa a luz do sol e por onde eles tentam desesperadamen-

te, num jogo de contorcionismo, espiar e saborear cada pedaço dos

corpos das jovens moças que param de brincar, se molhando com

uma mangueira, quando se sentem observadas. A água que corre debaixo da porta passa também a ser objeto de um fetichismo por par-

te dos jovens. Um deles se agacha e, num gesto que sugere a carícia,

passa delicadamente as duas mãos nesta água que carrega um pouco

deste corpo nu feminino tão cobiçado.

As imagens de voyeurismo dos homens em Halfaouine e um Été

à la Goulette têm um valor metafórico e metonímico. Simboliza toda

a ambiguidade do comportamento de uma sociedade com relação

àquilo que decreta como proibido e tabu em termos de representa-ção cinematográica, mas que paradoxalmente aguça a curiosidade

dos homens no mundo árabe-muçulmano: o corpo e a sensualidade

da mulher. A cena que pode ser considerada a mais erótica e a mais

simbólica do ilme Un été à la Goulette é a do último tête-à-tête en-

tre Miriem e El Hadj. Depois de trocar vários olhares com Miriem,

o todo-poderoso islamista do bairro decide pedir a mão da moça

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284 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

muçulmana. Mas o pai de Miriem, horrorizado por tal pedido, xin-

ga publicamente o velho islamista de todos os nomes. Numa atitu-

de vingativa, El Hadj ameaça despejar Youssef e sua família da casa

que ele lhes aluga. Miriem decide então interceder usando seu corpo

para aliciar o velho Hadj. Ela se veste do jeito como Hadj lhe pediu,

isto é, de burca branca e de véu, atravessa toda a cidade em direção à

casa de Hadj. Assim que ela entra, ela se põe na frente dele e começa

a desenrolar a sua burca. Quando a vê totalmente despida, Hadj se

ajoelha num gesto de entrega, como dominado e subjugado pelo es-

petáculo da nudez de Miriem. É como se Miriem oferecesse, naquele

momento, mais do que a sua nudez ao personagem. A mise-en-scène 

desta nudez de Miriem, além de congelar o luxo da ação do ilmeem “momentos de contemplação erótica”, eleva o voyeurismo ao seu

ponto máximo: faz do corpo da Miriem um objeto e uma oferenda

erótica para o personagem de Hadj, mas, paradoxalmente, faz o es-

pectador participar deste espetáculo de forma parcial. Como Miriem

está de costas para o espectador, este só consegue ver seu busto nu

e parte do seio graças a um jogo de espelho no quadro. Pudor ou re-

serva na representação? Se a morte de Hadj Beji, depois de ter visto

o espetáculo da nudez de Miriem, pode ser considerada metaforica-mente como o equivalente do gozo sexual,7 por outro lado, simbo-

liza o poder ilimitado e fatal do corpo da mulher numa sociedade

que busca controlá-lo e castrá-lo por todos os meios. Como observa

Laura Mulvey (1983), qualquer ilme narrativo é revelador do prazer

visual que proporcionam as imagens da mulher, bem como reproduz

também o paradoxo do falocentrismo que, em todas as suas mani-

festações, reside no fato de que ele depende da imagem da mulher

castrada para dar ordem e signiicado ao seu mundo. É parte desteparadoxo na relação dos homens com as imagens do corpo das mu-

lheres no mundo árabe-muçulmano que está no cerne da represen-

tação dos dois ilmes de Férid Boughedir.

7  Aqui se realiza, mais uma vez, algo parecido com a “pequena morte”, isto é, morte ou sono pós--coito, descrita por A. Bazin no seu comentário sobre o que chamava de “pornograia ontológi-ca”, em que a morte se torna o equivalente do gozo sexual. (BAZIN, 2007, p. 252)

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286 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

é, pelo ponto de vista dos personagens. E elas são mostradas de costas,

de short e apenas com os peitos nus. Em outras palavras, o espectador

as vê com a mesma diiculdade que os personagens diegéticos. Outro

exemplo de não utilização de imagens em regime objetivo é a cena de

“entrega da virgindade”: a promessa de TGM, como vimos, o motor da

narrativa. Mas a mostração do momento da realização dessa promes-

sa é sonegada ao olhar do espectador que só vê as moças e os rapazes

se preparando para cometer o ato sem mais. Se aconteceu, ou não, isso

ica para a imaginação do espectador curioso e frustrado que só vê

moças se ajeitando e conversando sobre o ocorrido.

O voyeurismo exacerbado que completa a mise-en-scène do cor-

po da mulher no enredo dos dois ilmes de Férid convida a repensaro funcionamento universal da lógica e do princípio daquilo que Ba-

zin deine como “uma psicologia e uma estética da censura (ou au-

tocensura) erótica”. (MULVEY, 1983, p. 254) Nenhum tabu social ou

moral pode canalizar convenientemente a imaginação na construção

da imagem erótica no cinema. Ao contrário, diz Bazin, o código pu-

ritano é um catalizador na busca de soluções mais criativas na re-

presentação do erotismo nos ilmes. Parte dessas soluções está nos

próprios recursos narrativos. Os dois ilmes de Férid Boughedir, peloreinamento e pela criatividade do trabalho de representação icôni-

co-narrativa do corpo da mulher nas sociedades árabe-muçulmanas,

demonstram que os cinemas do Magrebe, como qualquer cinema,

pode dizer tudo e mostrar tudo valendo-se “das possibilidades de

abstração da linguagem cinematográica”. (MULVEY, 1983, p. 255)

CONCLUSÃO

O cinema revela e, ao mesmo tempo, “modela” as concepções do

corpo e da sexualidade que circulam numa determinada sociedade.

Em todas as culturas, os cineastas, como os demais artistas, fazem

parte das instâncias que proferem um discurso de autoridade sobre

a sexualidade. Sendo assim, eles e outros agentes sociais gozam da-

quilo que Foucault chama de “beneício do locutor”. O simples fato de

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 287

pôr em imagens o corpo feminino numa sociedade onde as mulheres

vivem cobertas equivale a um gesto de “transgressão deliberada”. Se

Halfaouine e Un été à Goulette podem ser vistos como dois ilmes

emblemáticos nas cinematograias do Magrebe, é por causa da dia-

lética e da tensão mantidas entre um modelo de iguração “icônico-

-narrativa” do corpo da mulher e um estilo de mise-en-scène parti-

cular que recorre consciente e estrategicamente às formas plásticas

orientalistas. Sendo assim, podemos airmar que Férid se serve da

tradição iconográica orientalista para melhor superá-la (no que diz

respeito à representação do corpo feminino pelo cinema). No lugar

da imaginação criadora na iguração das odaliscas dos orientalistas,

o ilme de Férid Boughedir oferece o nu feminino pela mediação dohammam e da intrusão de uma personagem cândida (Noura) neste

espaço fechado. Mas, diferentemente das representações orientalis-

tas, Halfaouine procura também restituir uma imagem contrastada

da mulher no mundo magrebino. Em Halfaouine e Un Été à la Goulet-

te, há, sem dúvida, imagem de uma mulher culturalmente marcada

e determinada pela tradição árabe-muçulmana. Mas, de uma cena

para outra, o espectador se depara também com as imagens de uma

mulher que é simultaneamente oriental, mediterrânea, ocidental e,em deinitivo, universal.

REFERÊNCIAS

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BOUGHEDIR, Férid. La victime et la matrone: les deux images de la

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BRAHIMI, Denise. 50 ans de cinéma maghrébin. Paris: Minerve, 2009.

CAMERA Arabe. Direção: Férid Boughedir. Channel Four/France 3;Institut du Monde Arabe, 1987. (60 min.), VHS, color., legenda: francês;inglês; árabe. Documentário.

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288 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

CAMERA d´Afrique: Dir. Férid Boughedir; Produtora: Férid Boughedir,Ministère de la Coopération, 1983. (95 min.),VHS, color., Legenda:francês; inglês. Documentário.

HALFAOUINE-l´enfant des terrasses. Direção: Férid Boughedir. France

Média; Les Films du Scarabée, 1990. 1 DVD (98 min.), VHS, color.,legendas: árabe; francês; inglês; espanhol. Filme de icção.

JELLOUN, Tahar Ben. Le premier amour est toujours le dernier. Paris:Éditions du Seuil, 1995.

KUMMER, Ida. Mères et Filles dans le cinéma maghrébin ou l´effet deserre. Cinéma du Maghreb. CinémAction, n. 111, p. 113-118, 2004.Organização de Michel Serceau.

LE BAIN Turc. Quadro de Dominique Ingres, 1862.

LA GRANDE Odalisque. Quadro de Dominique Ingres, 1814.

LEE, Sonia. À la recherche de l´Andalousie perdue. Cinéma duMaghreb. CinémAction, n. 111, p. 133-140, 2004. Organização deMichel Serceau.

MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail.(Org.). A Experiência do cinema, Rio de Janeiro: Graal, 1983.

NEMO, Philippe. O que é o Ocidente?  São Paulo: Martins, 2005.

SAID, Edward W. Orientalism: o Oriente como invenção do Ocidente.São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

THORNTON, Lynne. La femme dans la peinture orientaliste. Paris:ACR Edition, 1998.

UN ÉTÉ à La Goulette. Direção: Férid Boughedir. Cinares Production/Marsa Film, 1990. 1 DVD (100 min.), VHS, color., legendas: árabe;francês; inglês; espanhol. Filme de icção.

XAVIER, Ismail. (Org.) A Experiência do cinema. São Paulo: Ed. Graal,1983.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 289

CERZIDEIRA DE MEMÓRIAS narrativas do dilaceramento em 

Contos Cruéis de Guerra, de Ibea Atondi

Lívia Maria Natália de Souza

A CENA DA MEMÓRIA COMO INTERPRETAÇÃO DE SI

As mais antigas representações da memória evocam uma capa-

cidade que teria o corpo de guardar – em algum lugar sempre inson-dável – o acontecimento vivido e acessá-lo quando necessário. Por

isso a memória sempre foi alegorizada por objetos que remetiam à

noção de profundidade e obscuridade: arcas, baús, fundos de biblio-

tecas, caixas, dentre outros recônditos. (DRAAISMA, 2005) A estas

imagens foi sendo aderida, pouco a pouco, uma feição humanizada

a partir de alegorias isiológicas e, mesmo, afetivas. Como se vê em

De memoria et reminiscentia, para Aristóteles, a memória poderia se

localizar em algum intervalo entre a pneuma (a alma) e o coração.

Desta forma, a ideia da lembrança como tendo base afetiva se reforça

na imagem do recordar, palavra que, na sua etimologia, traz a ideia

de um retorno ao coração, ao cordis, re-cordis, portanto, seria um

passar, de novo, pelas malhas das afetividades. Esta dimensão sub-

jetiva da lembrança – na medida em que a afasta do gesto automáti-

co ou mecânico – adensa a fragilidade da garantia da supervivência

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290 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

dos guardados. Ela denuncia o artiício do afeto enquanto mediador

da emergência mnemônica e, desta forma, põe em suspenso a noção

do lembrar como mero gesto. A recordação passa a engendrar uma

complexa interpretação de si.1

A desconiança que surge desta tomada de consciência se traduz

na insegurança no livre e irrestrito acesso ao seu conteúdo – e, nes-

te contexto, a própria noção da memória como um “de dentro” está

em crise. A tradicional metáfora da memória como arquivo não deve

deixar escapar a instabilidade destes que, como quaisquer outro, os

“arquivos” da memória sofrem com a possibilidade de experimentar

o seu mal maior que é a sua própria destruição. (DERRIDA, 2001)

A desconiança em relação à capacidade da memória de a tudoreter e de permitir, em qualquer tempo, acesso irrestrito ao seu con-

teúdo, se reforça quando Freud investe em pensar sobre este me-

canismo em seus textos do Projeto para uma psicologia cientíica –

1895  e, mais tarde, no conhecido Notas sobre um bloco mágico:

A superície do Bloco Mágico está limpa de escrita e mais umavez capaz de receber impressões. No entanto, é fácil descobrirque o traço permanente do que foi escrito está retido sobre a

própria prancha de cera e, sob luz apropriada, é legível. Assim,o Bloco fornece não apenas uma superície receptiva, utilizávelrepetidas vezes como uma lousa, mas também traços perma-nentes do que foi escrito como um bloco comum de papel: elesoluciona o problema de combinar as duas funções dividindo-asentre duas partes ou sistemas componentes separados, mas in-terrelacionados. Essa é exatamente a maneira pela qual, segun-do a hipótese que acabo de mencionar, nosso aparelho mentaldesempenha sua função perceptual. (FREUD, 1969, p. 256)

A dinâmica isiológica permanece e se reforça na medida em queele irá se propor a analisar a questão a partir das noções de quanti-

dade e qualidade de energia nas sinapses neuronais. Mas, para além

da isiologia dura do Projeto, o que nos interessa em Freud é a com-

preensão que ele nos oferece de que ninguém pode ser capaz de lem-

1 Para uma discussão mais horizontalizada sobre a noção de representação e escrita de si, confe-rir Foucault (2004) e Birman (2000).

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 291

brar-se de tudo – uma vez que seria realmente uma inútil sobrecarga

de informações – e também que esquecer faz parte da economia da

memória. Algo que, ampliando o conceito, poderíamos chamar de

economia subjetiva. A capacidade de esquecer é tão vital quanto a

capacidade de lembrar. Em alguns casos, ela é determinante para a

continuidade da vida.

O gesto de recordar, de puxar pela memória, ou mesmo de sim-

plesmente narrar o que se tem de lembrança não é jamais apazi-

guado ou apaziguador. Nunca é apenas um gesto, é um jogo. Quan-

do compreendemos o estatuto da relatividade das coisas, abre-se a

noção de que os próprios conceitos de memória e lembrança estão

submissos a uma fronteira mais tênue, todas estas ações psíquicasse veem, na cena da psique, submetidas ao jogo da interpretação.

Lembrar sempre é um investimento interpretativo, desta forma, é

impossível repetir o acontecido, recuperar o élan da vivência. Toda

repetição é uma repetição na diferença (DERRIDA, 2001), posto que

se constrói a partir de um gesto de interpretação e, conseguintemen-

te, de deslocamento subjetivo do narrado.

A narração, o inconsútil ato de contar, jamais se encerra em si,

como um tecido pura superície. Toda narração é uma dobra, a tramasempre estará retorcida sobre si, qual Narciso, espelhando-se na sua

própria potência de vida e morte. E ainda mais, nenhuma narração é

apenas o tecido, ela é antes o cruzar dos ios, a linha que, inconstan-

te, se adensa e estreita entre as mãos, o eixo e a roda do tear.

Como todo tecido, o ilme da congolesa Ibea Atondi se ergue na

dobra. Ele se propõe a contar a história que as pessoas contam. Num

exercício inverso dos desarmadores de minas, o que se busca é unir

os estilhaços, criar, nas grandes lacunas do pano rebentado da me-mória, uma narrativa. Mas logo vemos que o empreendimento resva-

lará na impossibilidade. Contos cruéis de Guerra (2002) desnuda em

seu título a inviabilidade de simbolizar,2 não há metáforas.

2 Segundo Maria Rita Kelh (2009), a impossibilidade de simbolizar a experiência é algo que ca-racteriza, por exemplo, as neuroses.

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292 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

A SUBLIMAÇÃO E INTERPRETAÇÃO: A RETORNADAE OS SOBREVIVENTES

A impossibilidade de simbolização está ligada a uma noção – ain-

da que essencialista – de trauma. Enquanto inscrição do traço maisforte que inviabiliza a possibilidade de negociação, ou até mesmo de

substituição por um outro a ele equivalente, o trauma é intransitivo,

ele não negocia com o símbolo uma vez que simbolizar é ainda per-

laborar, repensar, interpretar. O gesto de simbolizar a dor causada

pela intensidade de uma vivência está ligada, por exemplo, à psique

do sujeito em depressão, ele alegoriza no mundo (ainda que seja este

um conjunto de desolamentos, e até mesmo pela sua negação em

submeter-se ao ritmo de vivência dos demais) o impacto da dor quesobre ele se abateu. No entanto, a estrutura que se instala naquele

momento, talvez até por conta da extrema proximidade entre a vi-

vência da guerra civil e a narração no ilme, é ainda a do impacto do

corpo subjetivo que se viu submetido a uma força maior e contrária.

Penso que há a inscrição de uma marca biográica no ilme, e esta

se faz não apenas na revelação do enlace amoroso com o miliciano

Mignon, mas, principalmente, e de maneira muito premente, no qua-

se privilégio dado à fala das mulheres. Estas que sofreram violências

inúmeras como o estupro, sevícias várias, o assassinato de seus ilhos

e maridos. A cena é ocupada por uma narrativa muito emergida de

um feminino ante a desordenação da lógica de seu mundo. Em sendo

o miliciano a igura coadunadora da pulsão destrutiva que atraves-

sou o país nos anos da guerra, uma leitura pautada nas dicotomias

poderia ver na ligação afetiva entre Ibea e Mignon uma grande con-

tradição. Mas este não é o operador de leitura aqui assumido. Inte-ressa a nossa relexão potencializar as ambivalências, mais que às

ambiguidades. Assim, podemos compreender estas formas tão dis-

tintas de afeto: uma mulher que ouve mulheres vitimadas e, ao mes-

mo tempo, que se relaciona amorosamente com o potencial algoz

destas como uma alegoria do que será toda a narrativa do ilme. Ele

se organiza a partir do não estabelecimento dicotômico de vítimas e

algozes. Conforme veremos, Atondi não reconhece no povo congolês

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 293

estas duas categorias e com isso não há um gesto de perdão geral e

irrestrito, na verdade o que se vê no documentário é a tentativa de

ler os fatos para além da malha do óbvio, encontrando as motivações

que alimentaram a destruição e a violência como sendo forças que se

corporiicam nos milicianos, mas que, antes disto, engendra-se nas

negociações efetuadas entre governantes em disputa pelo poder e

pelas riquezas do país.

O ilme reúne narrações dos sobreviventes da violenta guerra ci-

vil e do pós-guerra no Congo-Brazzaville e se sustenta entre duas

modalidades de relato: a visão de uma “retornada”, vez que Atondi

volta a sua terra natal após o im do conlito, e o “relato dos sobrevi-

ventes”. Ambas as perspectivas narrativas sustentam-se sobre duaslacunas: a primeira pela tentativa de representar o não vivenciado;

a segunda pela necessidade de elaborar a vivência em representação

discursiva.

A diretora volta ao seu país natal com o projeto de rodar um il-

me baseado em fatos reais, seguindo, em certa medida, a gramática

estético-discursiva de alguns ilmes norte-americanos. Seus planos

envolviam a interação de atores proissionais com semiproissionais

– amadores dispostos a, por algum pagamento, representar seu pró-prio papel, agora em personagens com nomes de ilmes B hollywoo-

dianos, como Kurts e Sneiper.

Um destes atores de ocasião foi o ex-miliciano Mignon contrata-

do para representar o cotidiano das milícias: quando se depara com

o texto, imediatamente questiona os nomes americanizados dos

personagens, pouco verossímeis para um país de colonização fran-

cesa. Sinaliza também uma grande diiculdade em compreender o

roteiro, que pasteuriza as ações e diálogos. A questão é que o rotei-ro enlatado de Atondi indava por converter Mignon num simulacro

dele mesmo e expõe a limitação da potência de leitura da diretora

ante a compreensão que Mignon tinha de sua vivência na milícia. Em

alguns momentos, esta fragilidade da visão da diretora culmina na

impossibilidade da encenação, muitas vezes, provocada pelo riso e

ironia dos próprios atores diante do texto.

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294 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

No entanto, a partir de dado momento da construção do docu-

mentário, que se mostra metacrítico na medida em que franqueia ao

espectador acesso a estas questões, compreendemos que o que po-

deria fazer desandar a narrativa converte-se numa força sua. A his-

tória se ergue, então, num espaço híbrido: entre a visão da retornada

e do sobrevivente.

O lugar de fala de Ibea Atondi enquanto nativa retornada em

nada a descredencia ou impede de oferecer à história que ela deseja-

va contar um valor – já passamos da época do império da autoridade

do relato. (BENJAMIN, 1936) A lacuna provocada pela impossibilida-

de de vivenciar a guerra provoca outra possibilidade de interpreta-

ção do acontecimento.Tomando como base de sua narrativa o desamparo diante do ex-

tremo da violência que um homem pode praticar contra outro ho-

mem, todo percurso da representação construída é pautada por este

ponto cego. A fonte do desamparo que invade a voz quase incrédula

da narradora do ilme advém do abalo que os fatos ali retratados pro-

movem na sua compreensão do estatuto da humanidade e de seus

limites. Não há como equacionar, na dimensão subjetiva de quem se

responsabiliza por contar a história, a amplitude da violência. O cho-que que rasga a narrativa deriva da noção de que a agressividade e a

capacidade de ofender o outro em sua humanidade não se encontra

nos detalhes, nos pequenos intervalos, em cenas incidentais e mini-

mizáveis de dor e morte: a devastação promovida pelos assassinatos,

estupros, torturas e as mais intensas formas de violação do limite

do outro tomam a cena tanto na paisagem assolada pela destruição

quanto na história fraturada que emerge dos sujeitos que precisam

ser ouvidos. É também o impacto da violência que promoverá umarasura fundamental em Contos Cruéis de Guerra: o assassinato de Jul-

les Mignon convoca a narrativa a assumir uma postura diferente e,

desta forma, o ilme abandonará seu cunho centrado no discurso ic-

cional e mergulhará na busca de inúmeras vozes que possam narrar

a guerra civil no Congo-Brazaville.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 295

O LIMITE DO ESTATUTO DE HUMANIDADE

A noção de direitos humanos, deveras conhecida, e instituída en-

quanto princípio básico de convivência entre iguais, deixa escapar

de sua ação o que fazer da humanidade quando o outro é pensadonão apenas como diferente, mas como indigno ou incapaz de geren-

ciar a sua dimensão humana.

A história, e inclusive é dela que nasce a necessidade de pensar

em direitos inalienáveis do ser humano, é capaz de nos apresentar

inúmeros momentos em que a humanidade – enquanto possibili-

dade de reconhecimento do outro como um sujeito de direitos – foi

arbitrariamente negada a classes de homens e mulheres, a exemplo

dos africanos escravizados, dos judeus e, mais contemporaneamen-

te, das mulheres, doentes mentais, velhos, negros e africanos. É nesta

questão, naquilo que se convencionou chamar de dignidade humana,

que estes sujeitos são atingidos. Nenhum deles parece, para uma de-

terminada parcela de indivíduos, sujeitos capazes de viver, no sen-

tido de gerenciar a sua vida, suas vontades e suas relações com o

mundo e demais sujeitos.

Ao franquear à Pascal Lissouba e Denis Sassou-Nguesso a liber-dade irrestrita de luta pelo governo, não apenas através do gesto

permissivo da cegueira voluntária à violência instalada no país, mas,

principalmente, pelo incremento inanceiro da disputa, os governos

dos Estados Unidos e da França subverteram a Declaração Universal

dos Direitos Humanos (1948). Não há aqui um gesto de esvaziamen-

to das responsabilidades dos líderes africanos diante da guerra, mas

esta responsabilização sobre as inúmeras mortes e sobre o trauma

que esfacelou o Congo-Brazzaville precisa ser, no mínimo, compar-tilhada.

As várias narrativas recolhidas no ilme de Atondi não buscam

unificar estes sofrimentos num discurso geral, desfeito de diferenças.

Pelo contrário, a busca é de bem dimensionar os sofrimentos e,

para tanto, respeitar a medida subjetiva de cada uma das histórias

contadas, que potencializa e pluraliza a visão do espectador sobre

o acontecido e, imediatamente, nos conduz à compreensão de que

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296 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

em uma guerra jamais haverá uma única história, mas travessias na

qual a marca de cada um é instaurada como sendo a inscrição de um

sujeito em sofrimento.

Assim, o tecido que se trama é amplo, irregular, tem matizes for-

tes de diferenças que se articulam nas falas das pessoas que narram

suas histórias de maneira absolutamente rizomática. A violência

dos confrontos não é sentida igualmente nem tem o mesmo impacto

para todos os sujeitos envolvidos. Diferentemente da metodologia

da construção da história oicial, a narrativa ílmica busca os interva-

los desta para se efetivar, desprezando a noção de verdade unívoca

e repensando a ideia de vilania – a história se pluraliza abarcando

uma série de narrativas comumente pensadas como desimportantesou menores.

Neste sentido, Atondi constrói seu ilme na lógica do rizoma;

esta renega a ordenação homogeneizadora e causalítica que, neces-

sariamente, exclui as outras versões potenciais do fato em favor de

uma versão privilegiada. Assim, no ilme, conigura-se uma lógica de

ordenação das falas a partir da emergência dos afetos, não de um

pretenso querer dizer desfeito de traços mais evidentes de subjeti-

vidade. A história contada por Atondi prima pelo caráter não essen-cialista ou originário, opondo-se à lógica arbórea em que se ordenam

os fatos em rotas lineares; o rizoma adota como sua norma de fun-

cionamento a deriva:

Uma das características mais importantes do rizoma talvez sejaa de ter sempre múltiplas entradas; a toca, neste sentido, é umrizoma animal, e comporta às vezes uma nítida distinção en-tre linha de fuga como corredor de deslocamento e os estratos

de reserva ou de habitação. Um mapa tem múltiplas entradascontrariamente ao decalque que volta sempre “ao mesmo”. Ummapa é uma questão de performance. (DELEUZE; GUATARRI,1995, p. 14)

As múltiplas vozes que ali se erguem não se equacionam hie-

rarquicamente, não buscam nem ao menos contar a mesma histó-

ria, uma vez que importa mais a travessia singular de cada sujeito

durante aquilo que podemos chamar de crise de humanidade que

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 297

se deu naquele contexto. Esta crise pode ser entendida a partir da

noção da ruptura, não do limite entre humano e animal, mas, de uma

maneira ainda mais desconcertante, um rompimento dos limites en-

tre o humano e o não humano. Ou, indo mais longe, um questiona-

mento da própria fronteira da humanidade. Ao mostrar o que “um

homem pode fazer a outro homem” Atondi conclama a relexão para

a dimensão hiperbólica da ofensa trocada entre pretensos iguais.

Ampliando o conceito, podemos pensar que são iguais: negros, afri-

canos, congoleses que se digladiam até a morte, que indam por se

comportar como autômatos, numa guerra que tem motivadores que

ultrapassam em muito a cena na qual jorra o sangue, indo para muito

além de onde possa ouvir-se qualquer grito ou pedido de socorro.A guerra se engendra, limpa de sangue e substância humana, em pa-

péis, assinaturas e reuniões entre países de primeiro mundo, sim-

plesmente, em outro continente.

GESTOS DE COLONIZAÇÃO PÓSMODERNA: A DORDO OUTRO ENQUANTO VIRTUALIDADE

No inal dos anos 1990 inicia-se o processo eleitoral no Congo--Brazaville. Na disputa estão Pascal Lissouba e Denis Sassou-Ngues-

so, e o clima não é ameno. No entanto, a tensão se reforça quando,

em 5 de julho de 1997, os milicianos de ambos os candidatos en-

tram em choque e inicia-se um conlito que, durante meses, instau-

rou um regime de violência desenfreada no país. Patrocinados pelos

governos norte-americano e francês mediados por suas respectivas

indústrias petrolíferas, Lissouba, “dono” da milícia dos Cocóias, e

Sassou-Nguesso, atual presidente do Congo-Brazzaville e chefe dos

“Cobras”, dividiram o país e áreas instransponíveis, impediram a li-

vre circulação da população e promoveram uma matança absurda

de civis.

Derrotado, Lissouba é expulso do país e Nguesso passa a con-

frontar-se com Bernard Kolelas, prefeito da capital, Brazzaville, e

dono da milícia dos “Ninja”. Saindo-se mais uma vez vencedor dos

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298 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

combates, Nguesso chega à presidência caminhando sobre os es-

combros de um Congo-Brazzaville desolado, deixando como marca

de sua caminhada um rastro funesto de 10.000 mortos e 800.000 de-

saparecidos, números que aumentaram para 25.000 mortos quando,

ao im do conlito, em lugar de pagar a seus milicianos, o presidente

ofereceu, como recompensa a estes, dois dias de livre pilhagem nos

bairros da capital.

Esta é a história que Contos cruéis de guerra precisa narrar, e ao

optar por trilhar um caminho híbrido o documentário cresce. A visão

de Ibea Atondi, jovem, mulher, cineasta e retornada, oferece ao ilme

um corte: ela é, de alguma forma, estrangeira. O fato de estar fora do

país durante os conlitos oferece a ela uma potência de leitura daque-le que não passou pela experiência traumática. Desloca-se, então, a

crença benjaminiana de que a derrocada da grande narrativa está

no desprestígio da experiência, no desinteresse pela vivência. Em

alguns momentos esta será a única via possível de narração, assim

como o esquecimento pode ser a mais importante estratégia de ma-

nutenção da vida. Ao mesmo tempo, sentimos no documentário que

não interessa a Atondi a “grande narrativa”; em lugar disso, ela busca

os estilhaços. Ela caminha pelas vilas ouvindo pessoas atingidas peloconlito. À narrativa que ali se erige interessa o miúdo, aquilo que se

perderia. Nesta medida, a tessitura do documentário é intensamente

polifônica, não apenas num sentido limitado de serem várias as pes-

soas que relatam as suas histórias, mas, principalmente, por termos

acesso a inúmeras interpretações de travessias pessoais, subjetivas e

da travessia coletiva, de como o país vivenciou o seu inferno.

Atondi opera, ao democratizar o lugar de fala (às vezes de manei-

ra até desconfortável, vez que os depoimentos são expostos a inter-rupções e intromissões dos ouvintes), aquilo que Walter Benjamin

chamou de leitura a contrapelo. (BENJAMIN, 1994) A imagem surge

da comparação da escovação da crina de um cavalo às avessas, re-

tirando os pelos de sua linearidade e homogeneidade e fazendo vir

à tona as sujeiras mínimas, a poeira, desrecalcando aquilo que foi

silenciado. Ao centrar a narrativa no plural, nas várias vozes, o ilme

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 299

coloca numa mesma cena narrativa, numa mesma camada de discur-

so, mas também de sofrimentos, aqueles que, num outro contexto,

poderíamos chamar de vítimas e seus algozes mais diretos. Assim, os

ex-milicianos relatam as suas memórias dolorosas em cortes de cena

que os conecta diretamente com a população vitimada. A beleza dis-

to está naquilo que podemos chamar de desierarquização da dor. Ao

não valorar diferentemente a vivência dos milicianos e dos demais

sujeitos, Atondi nos chama a atenção para a condição irrestrita de

vítimas a qual estavam todos submetidos.

A historiograia tradicional tende, conforme airma Michel Fou-

cault (1979), a estabelecer linhagens, relações de causalidade, ho-

mogeneidades, origens e linearidades, abandonam novidade e adissensão que o acontecimento pode produzir, silenciando a sua po-

tência discursiva, em favor dos grandes cortes e grandes períodos

históricos. Sua capacidade de coadunar, sob uma mesma rubrica uni-

icadora, fatos absolutamente díspares e descontinuados tem a força

de desmobilizar o acontecimento em sua capacidade de promover

o desequilíbrio e potencializar o abalo de lugares estabelecidos de

poder/saber. A força fundante de qualquer narrativa histórica oicial

é a poderosa construção da ilusão de uma origem como sendo umaprodução tão espontânea quanto necessária. Pensada como absolu-

tamente natural, esta origem insemina na malha histórica lugares de

poder que se encerram em si, numa lógica de fechamento e recha-

çamento da diferença. Ao inscreverem-se e marcarem-se os espaços

arquetípicos e limitadores de outras representações provocam, pela

própria rigidez de sua existência, o seu negativo.

A lacuna surge enquanto demanda de fala, ou seja, o ilme de

Atondi oferece a possibilidade de subverter o discurso oicial coma constatação de outra versão sobre a história. Em lugar de repre-

sentar-se no seu ilme, a fala da congolesa, agora estrangeira, ou a

visão dos mass media, dos políticos envolvidos ou dos antropólogos,

historiadores e estudiosos em geral, o que se destaca na cena dis-

cursiva do ilme é o lugar dado ao sofrimento individual, à fala do

sujeito, buscando oferecer, através de um microfone e uma câmera,

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300 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

a possibilidade de fazer-se ouvir em todo o mundo. E esta é a grande

riqueza do ilme.

NA DIMENSÃO DOS AFETOS: NENHUMA NARRATIVAÉ AUTÔNOMA

Mas Contos Cruéis de Guerra  toma este direcionamento apenas

após a violenta morte de Mignon. O miliciano é pego em emboscada

e torturado por quatro dias antes de ser assassinado. Uma relexão

de Atondi salta da narrativa com o peso de uma tomada de consciên-

cia ante os horrores da guerra conforme contada por Mignon quando

a cineasta constata: “E o que me espantava é que eu sabia que elefalava a verdade”. Poderíamos embasar toda a nossa interpretação

do texto ílmico a partir daí, cada um daqueles sujeitos conta a sua 

verdade. Podemos imaginar que, após a morte dele, o que resta à

diretora é recolher as outras verdades silenciadas e, neste investi-

mento, constrói-se o documentário.

Assim, Atondi faz, no retorno à sua terra natal, uma travessia,

buscando devassar a narrativa dos sobreviventes, a im de encon-

trar, ali, entre agredidos e agressores, os restos das subjetividades eda humanidade que foram soterradas pelos escombros da violência.

A beleza do ilme, posto que a obra de arte tem a perversão de retirar

a sua leveza da pesada realidade, talvez resida justamente nesta pe-

regrinação subjetiva de Ibea Atondi que, não por acaso, representa

uma travessia do povo de Congo-Brazzaville em busca da reconigu-

ração de sua identidade.

Freud nos ofereceu, como caminho para a cura das feridas inde-

léveis da alma, a palavra. Ao tornar audíveis as vozes destes sujei-

tos oprimidos pelo horror e pelo trauma, Atondi faz uma espécie de

clínica e presta socorro a pessoas que convivem com os fantasmas

da guerra. Eles caminham pelas casas de paredes arrombadas pe-

los tiros, residem nos corpos marcados pela violência, e estão diante

daquele que carrega o olhar de quem viveu entre os mortos e que

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 301

precisa, de alguma maneira, saber-se vivo, mesmo que pelo relato de

sua diícil sobrevivência.

A diretora do documentário ocupa o lugar de uma narradora des-

centrada (DERRIDA, 2002) que, pela pluralidade dos relatos, acaba

muito mais ocupando o lugar de cerzideira das falas, de mediadora

de melancolias.

O envolvimento amoroso com Jules Atondi Ikassis, o Mignon,

oferece a ela a possibilidade de não apenas ilmar um documentário

sobre a guerra, mas, também, de penetrar em ínima parte de um

universo que não era o seu: o dos milicianos.

A narrativa dos milicianos, certamente por conta da posição ocu-

pada por eles no conlito, é das mais diíceis de ser aceita e compre-endida pelo espectador. Agindo como teleguiados pelos seus líderes,

os milicianos tinham como constante companheira a droga que está

presente todo o tempo, não apenas nas suas ações durante os con-

frontos, mas também o momento mesmo da narração diante das câ-

meras. O entorpecente sempre aparecerá como mediador do gesto

de contar, seja ele o álcool, a maconha ou a heroína. O próprio Mig-

non era um miliciano toxicômano. Muitos destes indivíduos que par-

ticiparam das milícias se utilizavam e se viciaram em psicotrópicosa im de conviver com o trauma da morte e sofrimento que eles não

apenas promoviam, mas representavam. A consciência embotada,

esmaecida sob a força do entorpecente, evita que o sujeito pense na

sua própria humanidade e dilua a força destruidora dos seus gestos

nas drogas, que burlam a mente e oferecem às ações ares de ilmes

de TV.

A lógica das milícias solicita destes sujeitos um afastamento tal

que, ao entrar na milícia, muitos forjam uma identidade, um alteregoviolento no qual a crueldade e a capacidade de matar se adicionam

a um novo nome e ao entorpecente, a im de criar este outro sujeito,

personagem de si mesmo, que será ou um “cobra” ou um “ninja”.

Ao dedicar o ilme a Mignon Árabe, codinome utilizado para Jules

Atondi Ikassis, Ibea Atondi – que porta o sobrenome de Jules – busca

nos mostrar a humanidade que ainda restava sob a máscara do mi-

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302 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

liciano. Podemos acreditar que, neste investimento de revelar esta

humanidade, investimento este mediado, certamente, pelo enlace

amoroso que uniu o miliciano e a diretora do ilme, Atondi inda por

deixar escapar um grave problema de seu ilme. A saber, a excessiva

subjetividade, da qual não escapa nenhuma narrativa, e apesar de

dar, a esta em especíico, o valor de construir-se ouvindo as histórias

contadas por vários sobreviventes, ludibriou a sua mão no momento

de colocar na balança a fala dos pretensos algozes e de suas vítimas.

Mas outra interpretação, não apenas mais potente, mas a esco-

lhida para guiar a relexão aqui proposta, é que em Contos cruéis de

 guerra os algozes não estão presentes, apenas as vítimas.

Os verdadeiros algozes são os governos dos Estados Unidos daAmérica e da França, que alimentaram, com cifras milionárias, os

confrontos. Os algozes são também o FMI e a União Europeia, que

após o anúncio do presidente Nguesso da adesão do Congo-Brazza-

ville à iniciativa de transparência para as indústrias de exportação

com o objetivo de favorecer a “reestruturação da economia, promo-

ção da transparência e do bom governo”, retiraram todas as sanções

sobre o país.

O algoz foi Jacques Chirac, presidente da França, que, em 1997,recebe o presidente Sassou-Nguesso para parabenizá-lo pela bela

“eleição”. Quando inalmente descobrimos que, conforme o próprio

FMI, entre 1999 e 2002, desapareceram US$ 248 milhões da venda

de petróleo e outros US$ 150 milhões por motivos governamentais,

quando icamos sabendo que Denis Sassou-Nguesso é um dos ho-

mens mais ricos da África, enquanto 70% dos 3,5 milhões de con-

goleses de Brazzaville vivem abaixo da linha de pobreza, tendo uma

expectativa de vida de apenas 50 anos e o Congo-Brazzaville, o paísmais endividado do mundo, compreendemos perfeitamente quem

são os algozes.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 305

DE CARTA CAMPONESA 1975À CARTA A SAFI FAYE

Suzane Lima Costa

Prezada Sai,1

Como vai? Espero que esta carta a encontre gozando de boa saúde.

Depois de assistir ao ilme Carta da minha aldeia (1975),2

 venhoensaiando em mim a escrita desta carta para você.

1 Sai Faye nasceu em 1943, em Dakar, Senegal, numa família de camponeses. Seus pais viveramem Fad’jal, uma aldeia no sul de Dakar. Em 1966, Faye conheceu o cineasta francês Jean Rouchno Festival de Artes Negras de Dakar. Juntos trabalharam no ilme Petit à petit  (1971). Apesarde não apostar no modo como o cineasta fazia ilmes etnográicos, trabalhar com Rouch opor-tunizou Faye a pensar o cinema como um instrumento etnográico. Na década de 1970, Saicomeça a estudar Etnologia na Ecole Pratique des Hautes études, e, em 1979, torna-se PhD emEtnologia, pela Universidade de Paris. Em 1980, estudou produção de vídeo em Berlim, tendo

sido convidada a lecionar na Universidade Livre de Berlim. Suas produções ílmicas incluem ostítulos: La Passante (1972), Kaddu Beykat  (1975), Fad’jal  (1979), Goob na nu (1979), Man Sa Yay  (1980), Les âmes au soleil  (1981), Selbe: One Among Many  (1983), 3 ans 5 mois (1983), Racinesnoires (1985), Elsie Haas, femme peintre et cinéaste d’Hait i (1985), Tesito (1989) e Mossane (1996).

2 Primeiro longa-metragem dirigido por Sai Faye, cujo título original é Kaddu Beykat , escrito nalíngua wolof ou uólofe, que signiica a Voz do camponês, e que foi internacionalmente traduzidocomo Carta da minha aldeia, Notícias da minha aldeia ou Carta camponesa. Lançado em 1975,com apoio inanceiro do Ministério Francês da Cooperação, Kaddu Beykat   foi o primeiro ilmea ser feito por uma mulher africana com distribuição e reconhecimento internacional, apesardo lançamento ter sido proibido em Senegal. No ano seguinte, Faye ganhou o Prêmio FIPRESCI,da Federação Internacional de Críticos de Cinema, pela obra.

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306 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

Vários foram os começos do que ora torno palavra aqui. Das ten-

tativas de ensaios meus, de pronto, desejei falar sobre aldeias. Das

aldeias daí às aldeias de cá. Até pensei que esta carta poderia ser so-

mente uma conversa sobre aldeias: as aldeias narradas pelo perten-

cimento (que é o seu caso), as aldeias narradas pelos seus visitantes

transeuntes (que é o meu caso) ou mesmo falar das aldeias que só

existem em imaginários, para aqueles que não pertencem ou nunca

transitaram por elas. Porém, faz pouco, tenho percebido que jeitos

de dizer sobre aldeias, Sai, quase sempre acionam dois mecanismos

deveras complicados para o tom da conversa que pretendo estampar

aqui: a interpretação close3 sobre e a avaliação de.

Para além da escrita que ixa sentidos ou estabelece valores, que-ro muito falar contigo sobre a sua carta – sobre sua carta-ilme – por

uma vontade de saber, de cavar perguntas outras no caminho dos il-

mes-ensaios, das escritas de si, dos modos de fazer cartas, memórias,

bem como do modo como esses “nomes” do espaço da performance

de si e da autoicção alcançam a câmera-caneta.4 

No caminho desses nomes, penso em como sua carta ativa, na

esteira do “como vai você?” da escrita de tantas outras cartas, as he-

terotopias do encontro com o outro. Do encontro e, por vezes, daintimidade com o outro. Isso porque quando escrevemos uma carta

temos a plena noção da dupla função que esse tipo de texto agencia

pela condição singular que garante o seu fazer: a correspondência.

Se a carta é, como bem nos ensinou Foucault (2004), “ao mesmo

tempo um olhar que se lança sobre o destinatário e uma maneira

de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é dito sobre si mes-

mo”, a correspondência atua nas dobras do corpo de quem escreve e

3 Reiro-me ao close reading, usado pelos new critics para ler minuciosamente os elementos de“dentro” do texto, como única forma de valorar os aspectos críticos de uma obra. Em outraspalavras, a leitura close reading considera que o signiicado e a estrutura do texto coexistem emuma mesma unidade. O New Criticism coloca a importância do texto como uma “unidade em siprópria”, e, assim sendo, sua autossuiciência subtrai o lugar do leitor, os elementos extratextu-ais, a história, a cultura e, principalmente, a questão da autoria.

4 Em 1948, o artigo de Alexandre Astruc, intitulado O nascimento de uma vanguarda: a câmera--caneta, põe a imagem da “câmera-caneta” como um conceito operatório para defender e com-parar o trabalho do cineasta ao do escritor, colocando em evidência, mais uma vez, as relaçõesentre o cinema, o teatro e o fazer literário.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 307

de quem lê, não só porque remetente e destinatário são convocados

para um encontro, mas pela quase obrigação do diálogo para manu-

tenção dele.

Desde quando comecei a trabalhar como professora da Univer-

sidade Federal da Bahia, a escrita, a leitura e a análise crítica de car-

tas, tanto com os estudantes das disciplinas de leitura e produção de

texto que ministro, quanto com os professores indígenas nas escolas

indígenas das aldeias Xucuru-Kariri e Pankararé,5 são parte de um

projeto de pesquisa que me faz acreditar, cada vez mais, que as es-

crituras autobiográicas constroem formas de afetos e afecções num

sentido tão amplo, que garantem pelo ato de ler/escrever formas de

cuidado com o corpo. Garantir esse cuidado é tentar também tecerrespostas à pergunta de Espinosa (1992) “o que pode o corpo?” e,

consequentemente, entrar no debate sobre a produção de subjeti-

vidade em relação à escrita, para pensar como esses modos de fazer

textos performam a noção de sujeito ao longo da história.

Quiçá, por essa razão na esteira do meu “como vai você?”, haja

uma vontade de correspondência contigo muito mais no sentido das

brincadeiras que as crianças da sua aldeia faziam embaixo da árvo-

re da palavra: pela performance! Performatizar um encontro íntimocom a jovem, ilha de camponeses, que escreveu a carta, com a atriz/

modelo dos ilmes do Jean Rouch ou com a mulher etnodocumen-

tarista, que nasceu em Dakar, sem perder de vista o lugar ictício

da real possibilidade da nossa conversa, bem como os exercícios de

performance autoral postos em prática no seu (ao meu ver) projeto

ílmico de autoicção.

Daí o fato de desejar ler os modos como sua carta-ilme, Sai, de-

saia a própria ordem da agência que governa a forma desse tipo detexto. Isso porque nela não há palavra escrita no papel! Há a voz  over  

que diz sobre os modos de vida numa aldeia de Senegal, de como

mulheres, homens e crianças trabalham, brincam, amam, se compor-

tam, lidam com as questões políticas locais. Há uma escrita de carta

assumida pela narração em primeira e todas as outras vozes, todas

5 Localizadas no município de Glória, na região de Paulo Afonso, Bahia.

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308 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

as outras imagens e formas de escrições que entram na cena a cada

momento de suspensão da narrativa; uma carta escrita na narrativa

oral de Sai Faye e inalizada com sua assinatura; uma carta que nar-

ra como começa e como termina o dia dos camponeses de Fad’jal, na

luta para tentar viver com os problemas gerados pela monocultura

do amendoim; uma carta atravessada pela história de Ngor e Coum-

ba, que há dois anos tentavam se casar seguindo os costumes dos

mais velhos.

Como você bem pontuou, Sai, a escrita da carta é sua, porém as

outras plasticidades presentes nela (diante das quais você para de

escrever/narrar e algo de forma da carta, da lógica da correspondên-

cia, se redimensiona) são da sua aldeia, da sua família.Aqui, Sai, minha conversa contigo entra num campo ainda muito

caro aos formatos documentais da imagem por trazer à baila uma

discussão sobre a performance de quem escreve cartas, e, conse-

quentemente, a questão da autoria em ilmes montados na/pela “es-

crita de si”. O que também implica pensar no exercício da escrita da

carta como um modo de colocar o leitor/espectador como partícipe

direto desse mundo. Para além dos binarismos que colocam icção e

não icção em territórios distintos e distantes.Retorno então aos nomes próprios, dos quais falei no início desta

carta, e o faço a partir da noção de “carta-ilme”.6 

Não é de hoje que a noção de carta-ilme, seguida de expressões

como ilme-ensaio, cine-escrituras, dizem dos modos híbridos que

a “caneta” da câmera pode alcançar quando rascunha plasticidades

no papel/ tela. Em Barthes, li que essa forma de fazer imagem ganha

o nome de escrições: “gesto pelo qual a mão segura um instrumen-

to, apoia-o numa superície, por ela avança pesando ou acariciando,e traça formas regulares, recorrentes e ritmadas de escrituras”.

(BARTHES, 2004, p. 174-175) Entender o sentido do conceito colo-

cado em movimento por Barthes é ativar um jogo de palavras outras

não só para pensar quais as materialidades contemporâneas da es-

6 Naicy (2001), apresenta a noção de Film-Letters para discutir questões referentes às narrativasepistolares no cinema.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 309

crita que servem de suporte ao audiovisual, mas para fazer valer tais

materialidades como o próprio ato de produção de imagens.

Esse modo de fazer imagem, que usa a carta não como recurso,

mas como tônica da narrativa de um ilme, promove novas interro-

gações sobre os modos de narrar, bem como sobre o lugar de enun-

ciação do narrador em meio às porosas fronteiras entre palavra e

imagem, verbal e não verbal, formas do visível e do sensível. Sendo

assim, falar de escrição aqui é falar das práticas de escrituras movi-

das a partir dos gestos de escrita que a câmera ilmadora (ou qual-

quer outro objeto que “risque”) pode agenciar quando plantada na

superície do ombro dos cineastas.

No seu caso, Sai, o gesto montou a carta e, com ela, a vontade decorrespondência que potencializa as querelas sobre o que é o autor

num documentário produzido pela lógica da autoicção e da perfor-

mance. Por outro lado, nem sei se é o caso de dizer ou de questionar

se o seu ilme é ou não um documentário ou o que seria então o autor

diante de uma produção desse tipo de gênero ílmico. Digo que não

sei, porque, desde o começo do ilme (momento que você falou que

estava escrevendo uma carta) até o inal dele (momento no qual você 

assina, e, consequentemente, registra o texto como seu), li sua cartacomo uma performance para assistir ao ilme, e, do lugar que escolhi

para ler, a vontade de sacar a “origem” da criação está no artiício in

 progress, na exibição de quem produz a si pela multiplicidade dos

seus tantos lugares de falas – lugares em contínuos processos de

construção. Em outras palavras, quando digo da performance aqui,

não há mais como reativar o valor de verdade documental que algu-

mas teorias do cinema asseguram a esse tipo de produção.

Você 

assume a autoria pela performance e acaba mostrando,nessa ordem ambígua, o quanto importa a voz, o lugar e o corpo de

quem, desse tipo de produção, fala, uma vez que em Fad’jal quem

fala não o faz como representante de, mas como presença para. Dito

isso, penso se ainda é preciso reproduzir as imagens da aldeia como

“a verdade” prévia a você, aos seus familiares ou à situação socioe-

conômica em Senegal. Explico-me. Como autora, atriz e personagem

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da sua própria escrita cinematográica; como ilha de camponeses,

etnógrafa e professora, você se constrói junto a todos esses lugares

de fala, num tipo de exercício que performa a noção de sujeito à me-

dida que situa o lugar de falar sobre si para além da hermenêutica

de se projetar como o outro fora do discurso, fora do texto, fora da

imagem.

Não sei se você conhece o texto The artist as ethnographer , es-

crito por Hal Foster (2001). Nele, Foster discute como as produções

artísticas, da década de 1980 até o presente, se caracterizam por

falar em nome de um compromisso com uma “outridade” cultural.7 

Assim, Foster nos assegura sobre o paradigma do artista como et -

nógrafo, retomando do Walter Benjamin (1934) a ideia do “autorcomo produtor”,8 e demonstrando como, nessas produções, o artista

se compromete com o outro deinido em termos culturais e étnicos,

e não mais pelo discurso socioeconômico. Na base dos pressupostos

de Foster, o artista deve se pensar como outro para garantir sua al-

teridade em diferença. O diálogo com Benjamin se fortalece quando

Foster retoma a relação entre autoria artística e posicionamento po-

lítico para preservar a ideia de sujeito que se preserva na verdade da

história.Não penso que seja esse o paradigma que temos hoje. Justamente

pela reconiguração muito particular e recorrente presente em parte

desse fazer artístico. Isso porque o “outro” excluído fala por si e esse

outro que fala não é mais o outro puro do “primitivismo” estético do

modernismo. A sua carta, por exemplo, diferentemente do que suge-

re Foster, não faz retornar um outro excluído, mas sim a própria re-

formulação da categoria do “outro”. A ilha de camponeses também

é a etnógrafa que estudou na École des Hautes Études en SciencesSociales; a etnógrafa, aldeã, também estudou cinema e faz a câmera

7 No entanto, sabemos que a dimensão etnográica da arte já se coniguraria desde as vanguardasdo início dos anos de 1920, junto a elementos próprios de uma realidade discursiva excluída daracionalidade ocidental em nome do pensamento iluminista.

8 Walter Benjamin (1934) defendeu a necessidade de o artista produzir uma forma de arte quedesse conta do seu conteúdo social. Essa discussão reaparece em 1960 para fortalecer as di-cotomias entre o que se chama de arte-formal-burguesa versus  a noção de “arte conceitual--proletária”, em outras palavras: classes dominantes e dominadas.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 311

falar nessa polifonia. Na sua carta, a questão da autoicção e da per-

formance acrescenta à leitura de Foster um elemento particular para

pensar esse outro paradigma: o si e o compromisso com as ambigui-

dades que o si/mesmo/outro vem produzindo desde os movimentos

de libertação pós-1960.

Hoje, Sai, o desaio é creditar no caráter performático desse “si”,

seja pela coniguração de uma escritura de relatos de “outridades”,

seja pela crença na perlaboração da identidade de quem os produz. E

não se produz performance autoral sem também creditar o valor da

icção nas verdades que montam qualquer cena narrada. O Clifford

Geertz, antes mesmo das assertivas do Foster, já acenava para essa

questão sobre o caráter iccional das práticas etnográicas. Acreditoque você tenha lido sobre na obra A interpretação da cultura (1989).

Gosto quando Geertz (1989, p. 11) fala sobre isso deixando em sus-

penso a imagem do etnógrafo como escritor e dos seus “documentos”

como icções: “no sentido de que são ‘algo construído’, ‘algo modela-

do’ – o sentido original de ictio – não que sejam falsas, não factuais

ou apenas experimentos dos pensamentos”. Gosto, principalmente,

porque interroga os paradigmas modernos que fundamentam os

modos de pensar nas ciências humanas, e, ao mesmo tempo, ofereceuma possibilidade aos discursos que os fundamentam de dobrar-se

sobre si mesmos, de fazer o paradoxo da hermenêutica do outro na

tautologia do si (ou vice-versa) funcionar como práxis para o pensa-

mento.

Por outro lado, mesmo tendo a autoicção e a performance de

si como desaios para entender os modos de ler o lugar da “repre-

sentação do sujeito” nas escrituras contemporâneas, fala-se muito

sobre a decadência das narrativas coletivas em nome dos relatos dasexperiências pessoais, como se as produções, audiovisuais ou não,

tomassem os textos como produto de um “eu” autocentrado, que lê e

pensa o mundo fora dele, que se projeta como um narrador observa-

dor. Penso, justamente, o reverso disso: cada possibilidade de escrita

de si se faz nas ambivalências desse outro de dentro da etnograia, de

dentro do mundo narrado ou não. Penso também nas longas discus-

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312 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

sões, tanto na literatura como no cinema, sobre o papel do narrador,

e, de cara, me vem o clássico texto do Walter Benjamin (1994) sobre

a questão do narrador na obra de Nicolai Leskov, ou, mais precisa-

mente, como os tipos de narradores são pensados para ativar uma

discussão sobre experiência e vivência nas artes.

Dos modos de quem narra o texto escrito, segundo Benjamin,

poderia dizer que você , Sai, chega perto de todos, sem se deixar for-

matar por nenhum deles. Sua carta não convida às deinições categó-

ricas de quem fala, mas às questões sobre como o si mesmo de quem

narra leva o narrador a narrar. Sendo assim, em sua carta-ilme, você 

não se localiza no todo do narrador clássico, anônimo, que aconselha

os demais por ter mais experiência: “o homem que sabe dar conse-lhos”. (BENJAMIN, 1997, p. 200) Nem tão pouco, você narra como

quem se percebe isolada, sozinha e introspecta, como o narrador do

romance. Por outro lado, você também não se posiciona como o nar-

rador da informação, o observador ausente da cena narrada, o jorna-

lista da ação, que Silviano Santiago (1988) descreveu como sendo “o

narrador pós-moderno”, em texto homônimo. Para mim, a sua carta

fala justamente para além do narrador tradicional, moderno ou pós-

-moderno, por apresentar uma forma de dizer que, de certa forma,rasura essas categorias.

Sua voz entrando e saindo das cenas, começando e terminando

a narrativa do dia na aldeia, no “entre” do exercício da autobiograia

e da autoetnograia, faz valer tanto as práxis dos etnógrafos como

autores de estudos sobre seu próprio grupo, quanto às formas de

narrativas pessoais escritas por membros de grupos subalternos e/

ou minoritários. No texto O narrador (pós) etnográico, de Daiana

Klinger, há uma discussão ampla sobre isso, que pode desdobrar umpouco mais esse ponto da nossa conversa. Isso porque, para Klingler,

o narrador pós etnográico não coloca seu relato no lugar deum conhecimento sobre o outro, nem pretende falar em nomedele, mas narra a sua vivência subjetiva na relação com o outro.Daí a importância da primeira pessoa, a exposição artiício daescritura, que – contra qualquer transparência representacio-nal – torna “opaca” a escrita sobre o outro. Por isso é crucial a

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 313

convergência das duas perspectivas (autobiograia e etnogra-ia). (KLINGER, 2007, p. 102)

Ocupar esse lugar, Sai, o lugar de quem escreveu a Carta, no

seu ilme, esse lugar intersticial na narrativa, é pôr em movimento(e porque não dizer em conlito) o lugar da presença de um si sem-

pre em construção para o outro. Nesses espaços, a exposição de si se

dá na medida em que a autoridade da experiência do narrador tradi-

cional se retira e a noção de diferença (que supõe essa presença em

construção com) ganha força. O narrador pós-etnográico se coni-

guraria então na construção intersticial entre o relato de si e o relato

sobre o outro, entre a icção e o real, (KLINGER, 2007), construindo-

-se na própria narrativa, na “verdade” possível da performance de si,na icção que o autor cria de si próprio.

Vi/li sua  carta-ilme funcionar nessas dobradiças: do real e da

icção; do narrador, primeiro sem nome, e, no inal, com a assinatura

de quem dirigiu a cena; dos atores em cenas, ora como seus parentes,

ora como personagens de uma história paralela e cruzada ao tem-

po da narrativa da sua carta. Volto a dizer que o que me chamou a

atenção foi a performance, tanto pelo modo como você ensaiou com

a câmera os modos de ressigniicar o sujeito-autor do texto, o local

da sua enunciação, a encenação de situações autobiográicas, quanto

pela forma como sua caneta riscou o papel/tela na direção da fun-

ção “etopoiética”9 da escrita para transformar “verdade em ethos.”.

(FOUCAULT, 2004, p. 144)

Quiçá por isso aqui estou: escrevendo para você pela vontade

de correspondência, como exercício de tradução e resposta também

para mim, não só porque venho estudando as cartas que ora os pro-fessores indígenas trocam entre si para falarem sobre as questões

9 Expressão de Plutarco, retomada por Foucault no texto A escrita de si (1983), para ler os modoscomo a escrita de si ativava um dos dispositivos dos cuidados de si e do outro na Grécia Antiga,através das escritas de hypomnemata e de cartas. Foucault apresentou os hypomnemata comoespécies de arquivos pessoais, nos quais os indivíduos registravam coisas que liam e ouviam eonde assentavam a sua conduta, numa época em que se desenvolvia uma ética muito orientadapelo cuidado de si. No mesmo texto, o autor destacou a correspondência como exercício derecentramento, que opera um tipo de autoria de si mesmo como forma de autoreconstrução ede encontro do outro.

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314 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

da educação nas aldeias daqui, mas, sobretudo, porque resolvi criar

zonas de inlexão para minha própria escrita, para ler esses novos

paradigmas, perlaborando também as minhas formas de escrições.

Assim sendo, agradeço a carta enviada e espero ter a oportunida-

de de encontros deste em outros ilmes seus.

Saudações,

S.C.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In:______ Estética da criaçãoverbal . São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BARTHES, Roland. Inéditos, Vol. 1 – Teoria. Tradução Ivoni Benedetti.São Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleção Roland Barthes)

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de NikolaiLeskov. In:______ Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política. 7.ed. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. (v. 1).

BUTLER, Judith. Bodies that matter : on the discursive limits of “sex”.

New York; London: Routledge, 1993.DERRIDA, Jacques. Margens da ilosoia. Tradução Joaquim TorresCosta e Antônio M. Magalhães. Campinas; São Paulo: Papirus, 1991.

FOSTER, Hall. O artista como etnógrafo. Arte e Ensaios Rio de Janeiro,n. 12, 2006.

FOUCAULT, Michel. Escrita de si. In: MOTTA, Manoel B. da (Org.).  Ética,sexualidade, política. Tradução Elisa Monteiro e Inês Autran DouradoBarbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

ESPINOSA, Bento de. Ética. Tradução Joaquim de Carvalho, JoaquimFerreira Gomes e António Simões. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC,1989.

KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e avirada etnográica. Rio de janeiro: 7 Letras, 2007.

NAFICY, Hamid. An Accented Cinema: exilic and diasporic ilmmaking.Oxford: Princeton University Press, 2001

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 315

SANTIAGO, Silviano. O narrador pó-moderno. In: _____.Nas malhas daletra. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 317

SOBRE OS AUTORES E ORGANIZADORES

Alessandra Meleiro

Pós-doutorado junto à University of London (School of Oriental

and African Studies/ Media and Film Studies) e pesquisadora asso-

ciada do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), onde

coordena o Centro de Análise do Cinema e do Audiovisual. Membro

do Conselho Cientíico do Laboratório de Cultura, Informação e Pú-blico (Lacip), ECA/USP. Doutora em Cinema e Políticas Culturais pela

ECA/USP e mestre em Multimeios pelo Instituto de Artes/ UNICAMP.

Professora adjunta do Curso de Produção Cultural da Universidade

Federal Fluminense (UFF). Guest Editor   do  Journal of African Cine-

mas, Intellect Publishers (UK) e conferencista internacional. Autora

do livro O Novo Cinema Iraniano: uma opção pela intervenção social

(2006) e organizadora das coleções Cinema no mundo: indústria, po-

lítica e mercado, com cinco volumes (África, América Latina, Europa,Ásia e Estados Unidos), que contou com a colaboração de 35 autores

de 20 países, e A Indústria Cinematográica e Audiovisual Brasileira,

que conta com seis volumes Cinema e Políticas de Estado, Cinema e

Economia Política e Cinema e Mercado, dentre outros. Presidente do

Instituto Iniciativa Cultural.

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318 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

Amaranta Cesar

É professora adjunta do curso de Cinema e Audiovisual da Uni-

versidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Possui graduação

em Comunicação e mestrado em Comunicação e Culturas Contem-porâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutorado

em Cinema e Audiovisual pela Universidade de Paris 3, Sorbonne

Nouvelle, onde defendeu a tese  A fabulação e a iguração da alteri-

dade no cinema brasileiro contemporâneo: Cidade de Deus, do livro

ao ilme (ANO). Organizou e realizou a curadoria da Mostra 50 Anos

de Cinema da África Francófona, que integrou o calendário oicial do 

Ano da França no Brasil. É idealizadora, curadora e organizadora do

Cachoeiradoc - Festival de Documentários de Cachoeira (BA). Coorde-na o projeto de extensão Registros da história e da memória familiar

das comunidades negras tradicionais do Vale do Iguape, inanciado

pelo programa Proext/MEC, e o Grupo de Estudos e Práticas em Do-

cumentário do Centro de Artes, Humanidades e Letras da UFRB.

Antônio Márcio da Silva

Antônio Márcio da Silva é leitor brasileiro na Birkbeck Univer-

sity of London. Mestre pela University of Leeds, sua pesquisa focal-

izou Brazilian Women in Prison (WIP) Film: a Gendered Reading. É

doutorando na University of Bristol onde desenvolve pesquisa que

trata da representação da  femme fatale  no cinema brasileiro. Tem

como principais interesses de pesquisa as representações de cons-

truções de gênero, sexualidade e raça nos cinemas brasileiro e do

mundo falante de português, literatura e cultura popular, cinemasnacional/mundial e cultura popular, particularmente dos anos 1970.

Atualmente, desenvolve projetos de pesquisa que incluem um es-

tudo sobre o cinema produzido por mulheres no mundo falante de

português, e um estudo sobre os ilmes do diretor brasileiro Cláudio

Assis e do diretor português João Pedro Rodrigues.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 319

Beatriz Leal Riesco

Doutoranda na Universidad de Salamanca (Espanha). Organizou

inúmeras conferências sobre cinemas dinamarquês e tcheco con-

temporâneo e publicou artigos sobre o conceito de autoria e hibrida-ção de linguagens na obra de Mario Martone. Atualmente é pesqui-

sadora, crítica e programadora independente nos Estados Unidos,

onde escreve sobre música e cinema africano contemporâneo para

diversos blogs e revistas acadêmicas. Sua pesquisa está centrada no

cinema africano contemporâneo e nas relações entre música, dança

e cinema. Desde 2011 é parte do comitê de seleção do  African Film

Festival , de Nova York.

Catarina Amorim de Oliveira Andrade

Doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal de Per-

nambuco (UFPE). Mestrado em Comunicação e graduação em Co-

municação Social também pela UFPE. Entre 2003 e 2005 foi pesqui-

sadora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientíica

(PIBIC), sob a orientação da Profª Dra. Ângela Prysthon. Participou

de congressos como Intercom (2004), CONIC (2004 e 2005), Com-

pós (como monitora), Socine (2008, 2009, 2010, 2011) e da ASAECA

(Argentina, 2009 e 2010), e publicou artigo na Revista Ícone 2009.

Cristina dos Santos Ferreira

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGCS/UFRN),mestre em Educação e graduada em RTV pela Universidade Federal

de Minas Gerais (UFMG). Sócia fundadora da Associação Imagem Co-

munitária (AIC), ONG que promove a expressão e o acesso aos meios

de comunicação em Belo Horizonte/MG, desde 1997. Atuou na AIC

na área de capacitação e pesquisas sobre mídias comunitárias. De-

senvolveu trabalhos sobre educação e tradições afro-brasileiras de

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320 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

2005 a 2007, na região do alto vale Jequitinhonha/MG. Atualmente

realiza pesquisa sobre realizadores de cinema de animação em al-

guns países africanos, como o Níger e a República Democrática do

Congo.

Denise Costa

Atualmente é mestranda do programa de pós-graduação em An-

tropologia da Universidade de Brasília (PPGAS/UNB). Participa do

projeto Prodoc Relações de Alteridade e a Produção das Desigualda-

des: uma perspectiva sul-sul . Tem interesse em Antropologia africana,

com ênfase na região da Alta Costa da Guiné. É ainda pesquisadorado cinema africano, tendo participado da organização da mostra do

cinema africano no Forumdoc  (2009) (Festival do ilme documen-

tário e etnográico – Fórum de debates de Antropologia, cinema e

vídeo).

Fernando Arenas

Professor de Lusophone African, Brazilian, and Portuguese Stud-ies no Department of Spanish & Portuguese Studies da University of

Minnesota. Autor de Lusophone Africa: Beyond Independence (2011),

Utopias of Otherness: Nationhood and Subjectivity in Portugal and

Brazil  (2003), e coeditor, juntamente com Susan C. Quinlan de Luso-

sex: Gender and Sexuality in the Portuguese-Speaking World  (2002).

Todos os títulos foram publicados pela University of Minnesota Press.

Jusciele Conceição Almeida de Oliveira

Mestranda no Programa de Literatura e Cultura (PPGLitC), na li-

nha de pesquisa Documentos da Memória Cultural da Universidade

Federal da Bahia (UFBA), sob a orientação da Profa. Dra. Maria de

Fátima Maia Ribeiro, integrante do projeto de pesquisa: Discursos de

migrações, êxodos e retornos, trânsitos e trocas culturais em/entre pa-

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 321

íses de língua oicial portuguesa, em contextos de globalização e pós-

-colonialidade. Possui especialização em Metodologia do Ensino de

História e Cultura Afro-Brasileiras. Licenciada em Letras Vernáculas

(2006) pela Universidade Federal da Bahia. Possui experiência em

Literatura e Cinema Africano de Língua Portuguesa.

Lívia Maria Natália de Souza Santos

Doutora em Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura pela

Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professora adjunta do Se-

tor de Teoria da Literatura na mesma instituição. Tem desenvolvi-

do pesquisas comprometidas com o pensamento da desconstruçãonas quais discute temas relativos às diferenças, subjetividades e re-

presentações de si na pós-modernidade. Atualmente desenvolve o

projeto Derivas da subjetividade na escrita contemporânea e também

compõe o grupo de pesquisa Corpus Dissidente, no qual desenvolve

o projeto de pesquisa Corpus Dissidente: Poéticas Sulbalternas nas Es-

critas e Estéticas da Diferença, sobre as literaturas africana e negro

brasileira.

Mahomed Bamba

Doutor em Cinema, Estética do Audiovisual e Ciências da Comu-

nicação pela Universidade de São Paulo (ECA/USP). Atualmente é

professor doutor adjunto I na Faculdade de Comunicação (FACOM)

e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Con-

temporâneas da Universidade Federal da Bahia (PÓSCOM-FACOM/

UFBA). Publicou vários artigos sobre as teorias da recepção cine-matográica e capítulos de livros sobre os cinemas africanos (cam-

pos de pesquisa). É membro do Conselho Deliberativo da Sociedade

Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE). Participou

de festivais e mostras de cinema e vídeo como palestrante e jurado

(Mostra de cinema africano de Florianópolis e de Manaus-Amazônia;

Festival de 5 minutos da Bahia, dentre outros).

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322 | FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA

Marcelo Rodrigues Souza Ribeiro

Professor e pesquisador nas áreas de estudos cinematográicos,

Antropologia e cultura visual. Desenvolve o website  incinerrante.

com, em que publica textos sobre fotograia, cinema e arte. Atual-mente, cursa o doutorado em Arte e Cultura Visual na Universidade

Federal de Goiás (UFG), onde desenvolve pesquisa sobre as dimen-

sões políticas dos aparelhos fotográico e cinematográico. Graduou-

-se em Ciências Sociais na Universidade de Brasília (2005) e realizou

mestrado em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa

Catarina (2008), estudando em ambas as ocasiões as representações

da África no cinema ocidental, o que suscitou o interesse pelos cine-

mas africanos como uma busca por outras narrativas da África.

Maria de Fátima Maia Ribeiro

Professora Associada da Universidade Federal da Bahia (UFBA),

doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas, com a tese IV

Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros (Salvador,1959):

relações culturais, identidade, alteridade (1999). Docente e pesquisa-

dora de Literaturas Portuguesa, Africanas e Comparadas do Instituto

de Letras e dos Programas de Pós-Graduação em Letras e Linguística

(PPGLL), em Literatura e Cultura (PPGLitC) e em Estudos Étnicos e

Africanos (PÓS-AFRO) da UFBA. Tem publicado artigos e ensaios em

livros e periódicos do Brasil e do Exterior, assim como co-organizado

coletânea e eventos, com foco na presença de intelectuais portugue-

ses e africanos no Brasil e nos dispositivos de poder de discursos

(pós-)coloniais.

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FILMES DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA  | 323

Mark Sabine

Conferencista em Lusophone Studies na Universidade de Nottin-

gham, Reino Unido. Publicou inúmeros artigos sobre representações

cinemáticas da África lusófona, como também sobre a obra de Fer-nando Pessoa, José Saramago, Luis Bernardo Honwana, dentre ou-

tros autores. Coordenou volumes de ensaios sobre Pessoa e Sarama-

go, e atualmente prepara estudos sobre o utopismo em Saramago, e

sobre cinema de pós-conlito em Portugal e na África lusófona.

Suzane Lima Costa

Doutora em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)e professora adjunta da Universidade Federal da Bahia, Instituto de

Letras. Colabora no Programa de Pós-graduação em Letras e Lin-

guística da UFBA. Atualmente, é tutora do Programa de Educação

Tutorial (PET) /Comunidades Indígenas e coordena pesquisas na

interface das áreas de Língua e Literatura, focalizando os estudos

das escritas e escrituras (pós)etnográicas, das margens da literatu-

ra, das escritas etnobiográicas e das políticas linguísticas entre os

povos indígena da Bahia.

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Formato

Tipologia 

Papel

Impressão

Capa e Acabamento

Tiragem

17 x 24 cm

Cambria, Bree eBerlin Sans FB Demi

Alcalino 75 g/m2 (miolo)Cartão Supremo 300 g/m2 (capa)

Eduba

Cian Gráica

400

C