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    UNIVERSIDADE DE SO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIAPrograma de Ps-graduao em Antropologia Social

    ETNOARQUEOLOGIA DOS GRAFISMOSKAINGANG:um modelo para a compreenso das sociedades Proto-J meridionais

    SERGIO BAPTISTA DA SILVA

    Orientadora: Profa. Dra. Lux Boelitz Vidal

    Tese de doutorado apresentadaao PPGAS da FFLCH da USP

    So Paulo, junho de 2001.

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    A G R A D E C I M E N T O S

    Em primeiro lugar, agradeo a minha orientadora, Professora LuxBoelitz Vidal, cuja dedicao, amizade, seriedade e sabedoria foramimprescindveis para a concretizao desta tese.

    Agradeo o apoio financeiro concedido, sob forma de bolsa deestudos (PICDT), pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,atravs da Pr-Reitoria de Ps-Graduao, com recursos oriundos doconvnio UFRGS/Coordenadoria de Aperfeioamento do Pessoal deEnsino Superior.

    Muitas pessoas e instituies museolgicas e de pesquisa

    contriburam com sua acolhida, seus espaos, suas disponibilidades, seusensinamentos esuas amizades para a realizao deste trabalho. A todos, meusagradecimentos.

    Aos meus interlocutores Kaingang e Guarani, que tornaram possvelesta tese, dirijo minha gratido, especialmente a Karein, Arok, Katx,

    Ningrei, Ming if, Batista, Jorge Eufrsio, Kaxen mbage a Kara Ipu,Djer, Tat t,Turbio Kara, Krex, Juarez, Yvay, Par.

    Agradeo a minha famlia pelo apoio, pacincia e carinho.

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    Etnoarqueologia dos grafismos Kaingang: um modelo para a compreenso dassociedades Proto-J meridionais

    Palavras-chave: Grafismo indgena; Kaingang;Etnoarqueologia; Grupos Proto-J do sul; cultura material.

    RESUMO

    Este estudo realiza uma articulao entre o registro arqueolgico das ditastradies ceramistas planlticas do sul do Brasil (Taquara, Itarar e Casa de Pedra), asquais considero Proto-J meridionais, e os registros etnogrfico, etno-histrico e lingsticodas sociedades J meridionais (Kaingang e Xokleng), para tornar possvel uma maisprofunda e sofisticada compreenso destas populaes Proto-J do sul. O registroarqueolgico deixado por estes grupos foi analisado do ponto de vista de sua dimensosimblica, principalmente quando ele podia ser identificado como parte de um sistema derepresentaes visuais (grafismos). Assim, foi empreendida uma etnoarqueologia dosgrafismos Kaingang, articulando-se os registros arqueolgico, etnogrfico, etno-histrico e

    lingstico a partir de uma abordagem cognitiva, que privilegia e interpreta a produo designificados pelas populaes Proto-J meridionais, principalmente suas representaessobre a vida em sociedade, sobre os domnios da natureza, da sobrenatureza, e sobre amorte, tendo como base estudos etnolgicos a respeito da sociedade Kaingang.

    Ethnoarchaeology ofKainganggraphic representations: a model to understandsouthern Proto-J societies

    Key-words: South Brazil indian graphic representations;Kaingang; ethnoarchaeology; southern Proto-J groups;material culture

    ABSTRACT

    This study establishes a relation between archaeological record of the so calledlocal ceramic traditions of the south of Brazil (Taquara, Itarar and Casa de Pedra),which I consider as southern Proto-J, and ethnographical, ethnohistorical, and linguisticrecords of southern J societies (Kaingang and Xokleng) aiming at a deeper and moresophisticated understanding of those southern Proto-J populations. Archaeological recordleft by those groups were analysed from the standpoint of their symbolic dimension mainlywhen it could be identified as part of a system of visual representations (graphicrepresentations). Thus, an ethnoarchaeology of Kaingang graphic representations wasundertaken in which the archaeological, ethnographical, ethnohistorical and linguisticrecords were related by mean of a cognitive approach which favours and interprets theproduction of meanings by southern Proto-J populations, especially their representations

    about social life, about natural and supernatural domains, and about death, based onethnological studies of Kaingangsociety.

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    O B S E R V A E S

    Grafou-se com trema as vogais i, e, u e y do idioma Kaingang (e dasdemais lnguas indgenas que aparecem no texto), quando o correto seria faz-lo com til, oque o editor de textos usado no permitiu.

    Exceto quando indicado expressamente, as fotografias so do autor desta tese.

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    SUMRIO

    1. Introduo 6

    2. Articulao entre Arqueologia e Etnologia: as bases tericas 19

    3. O horizonte cultural Proto-J meridional 37

    3.1. As tradies locais ceramistas planlticas: continuidade hist-rico-cultural e vinculao aos J meridionais 37

    3.2. As tradies Taquara, Itarar e Casa de Pedra: suas fases,sua cultura material e outras indicaes sobre as relaes entreos registros arqueolgico e etnogrfico 59

    3.2.1. As fases da Tradio Taquara 59

    3.2.2. As fases das tradies Itarar e Casa de Pedra 79

    4. Sociedade Kaingang: concepes cosmolgicas 100

    4.1. Complementariedade: relaes entre opostos 103

    4.1.1. Cunhadio masculino: os iambr 103

    4.1.2. Os nomes do mato: o poder oriundo do domnio da floresta 117

    4.2. Representaes e prticas relativas sade, doena, cura e

    morte: o numb 1244.3. Mito e histria: consideraes sobre as origens da sociedadeKaingangatual 130

    4.4. Representaes sobre a morte e padres de sepultamento (Proto)J 141

    5. O sistema de representaes visuais (Proto)J meridional 163

    5.1. Grafismos Kaingang 167

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    5.1.1. Grafismos presentes nos materiais etnogrficos Kaingang 167

    5.1.2. Vein kongat: pintura corporal Kaingang 209

    5.2. Grafismos Proto(Guarani): algumas comparaes 223

    5.2.1.Ipar Mby: grafismos sagrados do cosmo 225

    5.2.2. Grafismos Proto-Guarani 233

    5.2.3. Ysy: a antiga pintura corporalMby 237

    5.2.4. Algumas reflexes e comparaes 238

    5.3. Grafismos Proto-J meridionais 240

    5.3.1. Grafismos rupestres no Brasil meridional: questes abertas 241

    5.3.2. Grafismos rupestres no Rio Grande do Sul 252

    5.3.3. Grafismos rupestres em Santa Catarina: suas relaes com

    o Rio Grande do Sul 278

    5.3.4. Grafismos rupestres no Paran: alguns exemplos 294

    5.3.5. Grafismos rupestres em So Paulo: trs exemplos 301

    6. Concluses: o modelo Kaingange o horizonte cultural Proto-J do sul 308

    Bibliografia 316

    Anexos 345

    Acervo KaingangMAE/USP 345

    AcervoXoklengMAE/USP 365

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    1. INTRODUO

    O principal objetivo desta tese foi o de realizar uma articulao entre oregistro arqueolgico das chamadas tradies1ceramistas planlticas do suldo Brasil Taquara, Itarar e Casa de Pedra (as quais considero Jmeridionais pr-coloniais2) e o registro etnogrfico, etno-histrico elingstico das sociedades J meridionais - Kaingange Xokleng-, para tornar

    possvel uma mais profunda e sofisticada compreenso destas populaes Jmeridionais pr-coloniais. O registro arqueolgico deixado por estes grupos

    populacionais foi analisado do ponto de vista de sua dimenso simblica,principalmente quando podia ser identificado como parte de um sistema derepresentaes visuais (grafismos).

    Neste sentido, pretendi realizar uma etnoarqueologia dos grafismosKaingang, articulando os registros arqueolgico e etnogrfico a partir de umaabordagem terica cognitiva (explicitada no Captulo 2), que privilegia einterpreta a produo de significaes pelas populaes J meridionais pr-coloniais, principalmente suas representaes sobre a vida em sociedade3,

    sobre os domnios da natureza, da sobrenatureza, e sobre a morte, tendo comobase estudos etnolgicos sobre a sociedade Kaingang4

    A seqncia natural desta tese, no futuro, ser o de testar o modeloetnoarqueolgico aqui sugerido, utilizando metodologias arqueolgicas

    prprias.

    De acordo com um quadro referencial j quase totalmente aceito pelaarqueologia brasileira, considero as denominadas tradies ceramistas do

    Planalto Sul-Brasileiro e reas adjacentes ou tradies locais planlticas outradies Taquara, Itarar e Casa de Pedra, estudadas pela arqueologia desdeum ponto de vista exclusivamente tecnolgico, como uma nica, ampla ehomognea tradio cultural J meridional pr-colonial, que, no decorrer deum longo processo histrico-cultural de aproximadamente dois mil anos,1

    Termo que ser analisado a seguir.2

    Adjetivo que ser discutido logo em seguida.3

    Videitem 5.3.4

    Descritos no Captulo 4.

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    segundo o registro arqueolgico5, desembocar nas histrica eetnograficamente conhecidas sociedades J meridionais Kaingange Xokleng.Este temporal e geograficamente abrangente horizonte cultural J meridionalpr-colonial ser discutido e avaliado no Captulo 3. Por hora, necessriodizer, no entanto, que diferenas e especificidades regionais estariam nele

    presentes, como indicam as diferenas existentes historicamente entre asmodernas populaes J do sul.

    Quanto ao registro lingstico, Urban (1992:87), apesar de reconhecerque a pesquisa sobre as lnguas indgenas do Brasil est muito aqum donecessrio para uma reconstruo, acredita que os dados disponveis e osestudos j feitos permitem alcanar um grau mediano e relativo de certeza com

    relao s lnguas J.

    Segundo este autor, o mtodo de reconstruo lingstica, desenvolvidona lingstica comparativa, permite determinar as relaes genticas ( Gentica,nesse sentido, no tem nada a ver com biologia ou genes. Refere-se a processos histricos nos quais, ao longodo tempo, uma lngua se diferencia em dialetos e, finalmente, em lnguas derivadas distintas. A partir destas

    ltimas, a lngua-me pode ser reconstruda.) entre as lnguas, ou seja, relaes derivadas deorigem histrica comum para duas ou mais lnguas faladas atualmente(Urban, 1992:87 e 102).

    Deste modo, possvel estabelecer a proximidade e a distncia entrelnguas de um mesmo grupo, podendo-se, inclusive, avaliar em termosrelativos quando as lnguas de uma famlia se separaram, diferenciando-seumas das outras. Com relao famlia J do Tronco lingstico Macro-J,sabe-se que as lnguas a ela pertencentes tm uma origem histrica comum.Entretanto, seu ramo mais meridional (lnguas Kaingang eXokleng) separou-se muito antes de ocorrer a diferenciao entre os outros membros da famlia(op. cit., pg. 88).

    O mtodo da glotocronologia, utilizado no passado para estimar emtermos absolutos a profundidade cronolgica desta separao, hoje no maisconsiderado preciso, mas pode ser substitudo pela comparao entre os grausde semelhana apresentados por lnguas indgenas como os que ocorrem entre

    5

    So as seguintes, respectivamente, as dataes radiocarbnicas mais antiga e mais recente para os materiaisarqueolgicos vinculados s tradies ceramistas locais planlticas: 14085 d.C. (SI 813) norte do RS esul de SC Fase Guatambu da Tradio Taquara e 179070 d.C. (SI 599) noroeste do RS FaseTaquaruu da Tradio Taquara. Estes 1650 anos somados aos 211 que separam a data de 1790 do ano 2001

    perfazem 1861 anos. Registrados arqueologicamente, so quase dois milnios de processo histrico-cultural.

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    lnguas cujo material histrico comprova sua diferenciao lingstica, como ocaso indo-europeu. Tais mtodos permitem, com certa segurana, ir at umadata aproximada de 4.000 anos a.C. (op. cit., pg. 88/9).

    Alm das cronologias, os mtodos lingsticos permitem estabeleceralgumas informaes quanto distribuio espacial das lnguas, isto ,fornecem hipteses quanto localizao das lnguas no passado remoto e smigraes que levaram sua atual distribuio. A distribuio das lnguas Jatuais sugere uma origem, h uns 2 ou 3 mil anos, entre os rios So Franciscoe Tocantins. Segundo estes estudos lingsticos, relatados por Urban, a famliaJ representa um ramo relativamente recente do chamado Tronco Macro-J,tendo se separado deste ltimo h uns 3 mil anos ou mais, de acordo com as

    semelhanas internas entre as lnguas J atuais (Urban, 1992:89/90).

    Sempre de acordo com este autor, os J meridionais (Kaingang eXokleng) teriam sido os primeiros a se separarem do resto dos grupos J. Eles

    ...teriam iniciado sua migrao em direo ao sul nesse momento, h uns 3 milanos, mas no se tem idia de quando teriam chegado regio que atualmente ocupamno sul do Brasil. Tampouco se sabe por que migraram, embora um estudo do relevogeogrfico mostre que se dirigiram a uma regio de planalto semelhante ao seu hbitat

    originrio (Urban, 1992:90)

    6

    .

    A segunda separao deu-se entre os J centrais e setentrionais, osltimos dirigindo-se para a bacia amaznica e expandindo-se tambm paraoeste. Isto teria ocorrido entre 1 e 2 mil anos atrs, como sugerem as taxas decognatos entre os ramos central e setentrional. Durante os ltimos mil anos,ocorreu a diferenciao interna dos grupos central e setentrional. Nos ltimos500 anos, teriam acontecido as diferenciaes internas entre os dialetosTimbiraorientais (Canela, Krinkati, Pukoby, Kranj, Gavioe Krah) e entreos dialetos Kayap (Kubenkranken, Kubenkraoti, Mekraoti, Kokraimoro,Gorotire, Xikrin e Txukahame) Urban, 1992:90.

    A reconstruo lingstica sugere que as populaes J aproximam-semais do tipo clssico de comunidade isolada, isto , o contato lingsticocostuma se restringir aos membros do grupo local, e quando os grupos se6

    Como foi dito anteriormente, no registro arqueolgico, a datao radiocarbnica mais antiga para o horizonteJ meridional pr-colonial de menos de 2 mil anos, no norte do RS e sul de SC, regies praticamentefinais da rota migratria rumo ao sul, segundo a lingstica. No entanto, esta data no constrange o modelolingstico, apenas mostra a pouca quantidade de estudos arqueolgicos para a regio de SC, PR e SP, e,

    principalmente, evidencia a falta de dataes absolutas para este horizonte arqueolgico.

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    dividem, aparentemente no retomam mais tarde um contato de tipo constanteque possa produzir emprstimos (op. cit., pg. 94).

    Quanto reconstruo das trajetrias e cronologias especficas dos Jmeridionais, Wiesemann (1978:199-200), estudando as lnguas Kaingang e

    Xokleng, diferenciou cinco dialetos para a primeira7. Estes dialetos, que sediferenciam em vrias partes de sua estrutura, principalmente na fonolgica,esto circunscritos a regies restritas: 1) dialeto de So Paulo, entre os riosTiet e Paranapanema; 2) dialeto do Paran, entre os rios Paranapanema eIguau; 3) dialeto Central, entre os rios Iguau e Uruguai; 4) dialeto Sudoeste,ao sul do Rio Uruguai e a oeste do Rio Passo Fundo; e 5) dialeto Sudeste, aosul do Rio Uruguai e a leste do Rio Passo Fundo.

    Em suas concluses, Wiesemann (1978:215) enfatiza que a lnguaXoklengtem menos em comum com o Kaingangdo que os dialetos entre si,adiantando que os falantes da segunda no compreendem os da primeira. Paraa lingista, estes fatos indicam, claramente, que estas duas lnguas sesepararam h muito tempo.

    Por outro lado, levando em conta as semelhanas e diferenas entre oscinco dialetos da lngua Kaingang, Wiesemann (1978:215) conclui que o

    grupo falante do dialeto de So Paulo separou-se dos outros algum tempodepois da separao entre Kaingange Xokleng. Segundo a autora, os falantesda lngua Xokleng e do dialeto Kaingang de So Paulo no tinham maiscontato com os grupos falantes dos demais dialetos Kaingang pelo menosdesde 1626, data em que supostamente foi introduzida a palavra Top (Deus

    emprstimo do Guarani: Tup) pelo primeiro contato estabelecido pelo Pe.A. Ruiz de Montoya com os Gualachos, aldeados na Reduccin de laConcepcin de los Gualachos. Esta palavra totalmente desconhecida nodialeto de So Paulo e na lnguaXokleng(Wiesemann, 1978:211-12, 215).

    Apesar da inexistncia de reconstrues lingsticas especficas para osdialetos Kaingang, a estimativa da autora equivale aproximadamente deUrban (1992:90) para a formao dos dialetos Timbiraorientais e Kayap, que

    7

    Apesar de alguns pesquisadores criticarem a simplificao contida no modelo dos 5 dialetos proposto porWiesemann, uma vez que no d conta da complexidade das relaes lingsticas inter-grupos e, ainda, entregrupos Kaingang e Xokleng , conforme DAngelis (1999:11) apud Veiga (2000:35), e mesmo admitindo-seum nmero maior de dialetos no passado, a sntese cronolgica e que embasa a diferenciao dos grupos

    satisfatria, devendo ser sofisticada com novos dados e novas abordagens, no futuro.

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    de 500 anos. A diferenciao entre as lnguas Kaingang e Xokleng teriaacontecido, portanto, bem antes desta marca.

    Considerando os dados lingsticos (diferenas e semelhanas entre oidiomaXoklenge os dialetos da lngua Kaingang), a autora elaborou a seguintehiptese para a origem, migraes e separaes dos J meridionais

    propriamente ditos no decorrer de seu longo processo histrico-cultural, umavez que, pelos estudos lingsticos referidos por Urban (1992), o ramomeridional teria iniciado sua migrao rumo ao sul h uns trs mil anos:

    Depois de se separarem dos outros grupos J, os ndios Kaingang comearama sua migrao para o sul. O primeiro grupo a se separar foram os Xoklng que

    emigraram at Santa Catarina e no tinham mais contato amigvel com os outrosgrupos. Uma segunda separao aconteceu entre o grupo de SP e os outros Kaingang os ltimos continuaram sua migrao para o sul. Passado o rio Paranapanema nohavia mais contato. Ento se separaram em vrias hordas; as que passaram o rioIguau no tinham mais contato com os do norte deste rio. Um grupo passou vriosrios em direo sudeste e no tinha mais contato com os outros (guardou a diferena dif. ). Os grupos C e SO mantiveram contato espordico depois da separao. Ocontato com os grupos do dialeto SE veio mais tarde, quando C e SO j tinhamneutralizado a diferena dif. . O contato entre C, SE e SO foi bastante grande, noentanto, para ter bastante inovaes em comum. O grupo PR comeou vrias

    inovaes em que os outros no participaram, guardando outras diferenas que osoutros perderam, mostrando que o contato foi muito parco (Wiesemann, 1978:216).

    Do ponto de vista metodolgico desta tese, estas semelhanas entre osgrupos falantes dos diversos dialetos Kaingang permitiram trabalhar com acultura material de quase todos os grupos, encarando-a como oriunda de umnico processo histrico de fundo cultural comum. As diferenas eespecificidades seriam regionais e no-estruturais. Estudos posteriores, maisdetalhados, devero explorar estas possveis diferenas que, como na lngua,

    podero existir na sua cultura material8

    .

    De uma certa forma, as razes destas diferenas poderiam estarrelacionadas parcialmente com o tipo das certamente complexas interaeshavidas entre as populaes pr-existentes no que hoje corresponde ao sul doBrasil com os grupos J meridionais migrantes, como ser discutido nosCaptulos 3 e 4.

    8

    Isto o que parece ocorrer entre os sistemas de representao visual Kaingang eXokleng, que somente

    parcialmente parecem se corresponder. Veja o Captulo 5, adiante.

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    Do ponto de vista conceitual, em substituio aos termos tradio esubtradio, tradicionalmente usados pela arqueologia brasileira, os quaisconsidero vagos e imprecisos, uma vez que so ordenadores essencialmentetecnolgicos, no levando em conta os aspectos simblicos da cultura material

    por eles agregada9, proponho o termo Proto-J meridional10para denominarestes grupos populacionais anteriores e antecedentes das sociedades Xokleng eKaingang histricas, sem nenhuma associao perturbadora com o conceitolingstico de protolngua (lngua-me).

    Este conceito est relacionado com o momento de consolidao dalingstica no sculo XIX. A moderna lingstica reconheceu a mudana

    contnua da lngua, contrariamente concepo esttica de gramtica, quedominou nos sculos anteriores. Desta forma, a descoberta de que muitaslnguas da Europa e vrias da sia tm origem comum e provm de umalngua muitssimo anterior o indo-europeu alterou o conceito de lngua,que passou a ser concebida enquanto mudana lingstica, isto , enquanto

    processo dinmico, gradual e coerente. Neste ambiente cientfico, protolnguasurge como conceito explicativo para esta origem comum de vrias lnguas quesofreram esta evoluo lingstica (sem a idia de avano para melhor, ou

    progresso), ao longo de seus processos diacrnicos. Esta origem comum a

    protolngua pressupe uma longa evoluo anterior, no tendo uma unidadergida, e j possuindo uma distribuio dialetal que prenuncia as divergncias

    9Por esta razo, geralmente no refletem a diversidade cultural dos grupos tnicos indgenas que podem ser

    correlacionados etnograficamente a uma tradio ou fase. Outras vezes, por terem sido criados atravs deestudos exploratrios metodologicamente insuficientes, as fases nem ao menos correspondem a cronologiasdentro das tradies. Estas ltimas, ainda, por vezes, por terem na sua origem vcios de uso exacerbado dediferenciao por critrios inexpressivos culturalmente (como, por exemplo, ausncia ou presena de certo tipode antiplstico mineral na cermica), dividem o homogneo, como parece ser o caso das tradies locais

    planlticas. Para Schmitz e Becker, Fases denominam conjuntos de materiais com caractersticas semelhantes(cermica, artefatos de pedra ou osso, gravaes ou pinturas em rochas) e que mantm as caractersticas,isoladas como diagnsticas, dentro de um espao e tempo reduzidos; mal comparando, abrangeriam o espao eo tempo de uma tribo indgena. Tradies so conjuntos maiores de materiais com caractersticas semelhantes,reunindo em geral diversas fases e que mantm as caractersticas, isoladas como diagnsticas, dentro de umtempo (e espao) mais amplos; mal comparando, abrangeriam o espao e o tempo de uma nao indgena(Schmitz & Becker, 1991:256-7). Quando for necessrio us-los, grafarei estes termos entre aspas.10

    Optei por grafar Proto-J (com hfen), com o objetivo de ficar visvel, e escrita com maiscula inicial, apalavra J , apesar de a regra gramatical, neste caso, desaconselhar o uso de hfen. Segui a grafia da expressoMacro-J, de uso tradicional e reconhecido, que pelas regras gramaticais deveria tambm ser escrita sem hfen.O emprego do prefixo proto entre parntesis, antecedendo a expresso J meridional , pretende abranger o que relativo tanto aos J meridionais de hoje como aos primeiros J do sul do atual Brasil. Nesta situao particular

    (Proto)J omit i o h fen, j que a pa lavra J , por causa do parntesis, pde ser grafada com inicial

    maiscula.

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    posteriores, isto , as duas ou mais lnguas que dela se originam (Camara Jr.,1977:35-37; 290-93).

    Quando usar, portanto, o termo proposto - Proto-J meridional -, noestarei me referindo lngua que originou as duas lnguas J meridionaisconhecidas, ou seja, no estarei me referindo protolngua J meridional.Estarei, sim, enfocando grupos populacionais com tradio tecnolgica ecultural comum, mais ou menos homognea, falantes de uma protolngua Jmeridional, que atravs de processos de mudana lingstica deu origem a duaslnguas: oXoklenge o Kaingang11.

    Estes grupos pr-coloniais osProto-J meridionais no falavam,

    pois, o (idioma) Proto-J, mas, sim, uma lngua J o (idioma) Proto-Jmeridional, que deu origem tanto a lnguaXokleng como a lngua Kaingang.

    O prefixo proto sempre ser empregado no sentido de primeiro12, esempre em relao a populaes e no a lnguas. Deste modo, quando escreverProto-J meridionais, estarei sempre me referindo a grupos populacionaislocais com tradio tecnolgica e cultural comum, e no a protolnguas oulnguas. No entanto, admito que estas populaes, seguramente as histricas eatuais, falam lnguas da famlia lingstica J e tm, mesmo as pr-coloniais,

    caractersticas sociais e culturais prprias das sociedades J, o que sertrabalhado no Captulo 4 e desenvolvido no Captulo 5.

    Com o mesmo sentido, quando quiser enfatizar as diferenas ainda nototalmente reconhecidas na anlise e interpretao do registro arqueolgico13,empregarei os termos Proto-Xokleng e Proto-Kaingang, referindo-me ssociedades indgenas Xokleng e Kaingang, j plenamente constitudas ediferentes entre si a partir de um momento dado (qual?) do perodo temporal

    11

    A cultura, necessariamente, no acompanha as mudanas lingsticas. Veja nota 13, abaixo.12Protopref. Significa primeiro: protomrtir. Conf. Enciclopdia e Dicionrio ilustrado Koogan/Houaiss,

    1993:684.13 Ainda no est totalmente esclarecida a possibilidade de diferenciao, pela Arqueologia, das sociedadesProto-Kaingange Proto-Xokleng. A cermica das tradies planlticas, conforme F. Silva (s/d), no seevidencia como um bom indicador das diferenas entre Kaingange Xokleng, pois a reconstituio etno-histrica que a autora realizou de seus processos de produo mostrou muitas semelhanas. Onde estaria oindicador arqueolgico da diferena manifesta etnograficamente? Talvez parcialmente nos grafismos, pois apesarde muitas representaes visuais Xoklengserem identificadas e nomeadas pelos Kaingangdo Rio Grande doSul como se Kaingangfossem,vrias delas no so reconhecidas, sendo consideradas estranhas. Talvez estarianos diferentes padres de sepultamento. Veja captulos 4 e 5, adiante.

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    anterior ao contato de seus membros com as populaes de origem europia14.Assim, temporalmente, as expresses Proto-J meridional, Proto-Xokleng eProto-Kaingangpodem estar apontando para datas relativamente recentes, deaproximadamente dois sculos atrs, como o sculo XIX15, por exemplo, ou

    para datas mais recuadas, desde o sculo II d.C.

    A vantagem em usar o termo Proto-J meridional (ou Proto-Kaingang,ou Proto-Xokleng), ao invs de grupos ligados s tradies ceramistas

    planlticas Taquara, Itarar e Casa de Pedra, ou, mesmo, J meridional pr-histrico ou pr-colonial, reside no fato de no romper o processo histrico-cultural contnuo que desembocou nas sociedades Kaingange Xokleng, o queimplicitamente acontece se for usado o prefixo pr (pr-histrico, pr-

    colonial, pr-contato), denotando-se, assim, uma ruptura de um processo quecultural e historicamente foi contnuo. Alm disso, indica-se expressamente avinculao destes grupos s sociedades J meridionais (Kaingang e Xokleng),aproximando os estudos arqueolgicos do campo antropolgico.

    Seguindo este mesmo raciocnio, quando quiser me reportar aos Guaranido perodo pr-colonial, emprego a expresso Proto-Guarani, ao invs degrupos ligados Tradio Tupiguarani ou Subtradio Guarani da TradioPolicroma Amaznica, como costuma-se fazer na literatura arqueolgica.

    Os grandes lapsos temporal (materiais arqueolgicos pelo menos desde osculo II d.C. at o sculo XIX, sendo complementados por materiaisetnogrficos at o final do sculo XX) e geogrfico (RS, SC, PR e SP) queesta tese enfoca pressupem uma dinmica intensa do processo histrico-cultural dos grupos indgenas nele envolvidos, remetendo necessidade de umcontrole diacrnico e geogrfico das informaes, que dever ser possibilitado

    pelas dataes radiocarbnicas existentes para as ditas tradies locaisplanlticas e pelas referncias e comparaes possibilitadas a partir da

    construo de uma etno-histria e do levantamento de uma etnografia para associedades J dos quatro estados sulinos.

    Para atingir o objetivo principal desta tese - a articulao dos dadosarqueolgicos com as informaes histricas e etnogrficas Kaingang e

    14

    Como arqueologicamente ainda no possvel separar o que Proto-Xokleng do que Proto-Kaingang,estas populaes sero denominadas, a maioria das vezes, como Proto-J meridionais, englobando-as.15

    Conforme a datao radiocarbnica da Fase Taquaruu da Tradio arqueolgica Taquara, que alcana os

    anos oitocentos. Veja Captulo 3.

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    Xokleng - e, conseqentemente, para a formulao de um modeloetnoarqueolgico para a compreenso dos Proto-J do sul do Brasil(Tradies Taquara, Itarar e Casa de Pedra), foi necessrio satisfazer algunsobjetivos especficos:

    1. realizar, na falta de um corpus grfico J meridional, umlevantamento de algumas colees etnogrficas Kaingang,depositadas em vrias instituies museolgicas, de pesquisa e/ouensino16, para proceder, juntamente com interlocutores Kaingang, aum estudo analtico-interpretativo dos materiais e de seus grafismos(armas, tecidos, tranados, etc.), encarando-os como pertencentes aum sistema de representaes visuais. Veja os subitens 5.1.1 e 5.1.2;

    2. fazer, em conjunto com interlocutores Kaingang, uma construo

    interpretativa dos materiais e estruturas arqueolgicos referentes aosvrios stios Proto-J do sul j trabalhados, especialmente aqueles que

    possuem grafismos, o que permitiu encar-los teoricamente comounidades significantes de um sistema de representao visual. Taisunidades significantes so, basicamente, os grafismos oriundos dastcnicas de decorao da cermica arqueolgica e da arte parietal dealguns painis rupestres do sul do Brasil. Como no existe,

    infelizmente, um corpus dos grafismos cermicos ou dos grafismosrupestres, o que facilitaria a tarefa de qualquer pesquisador, foinecessrio, igualmente, criar tal corpus grfico Proto-J do sul,atravs da consulta bibliografia arqueolgica (muitas vezes a partir,apenas, de descries), de fotos e desenhos de autoria de vrios

    pesquisadores e do levantamento em instituies museolgicas e/ouensino e pesquisa17. Os resultados deste trabalho encontram-se noCaptulo 3 e 5, especialmente no item 5.3.;

    3. construir e revisar uma etno-histria Kaingang que auxilie naelucidao e desvelamento da dimenso simblica contida na suacultura material, principalmente enquanto sistema de representaesvisuais e secundariamente enquanto produto de significaes;

    16Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Museu Jlio de Castilhos-RS, Museu Antropolgico do Rio

    Grande do Sul, Laboratrio de Arqueologia e Etnologia da UFRGS.

    17

    Ncleo de Ensino e Pesquisa Arqueolgica do Dep. de Histria da UFRGS, Museu de Arqueologia do Rio

    Grande do Sul, Laboratrio de Arqueologia e Etnologia do Departamento de Antropologia da UFRGS.

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    4. levantar e revisar etnografias Kaingang, especificamente sobreorganizao social, sobre cultura material (do ponto de vista daantropologia da arte, isto , elucidando os aspectos simblicos nelacontidos) e sobre mito-cosmologia (na tentativa de explicitar asrelaes entre cosmologia, organizao social, expresses estticas eregistro arqueolgico18). Apesar das diferenas, originadas de minha

    prpria pesquisa de campo, reconheo os aportes fundamentais dostrabalhos de Veiga (1994, 2000) e Urban (1978, 1992, 1996) a estatese, e sua importncia para a etnoarqueologia nela realizada;

    5. sintetizar, a partir da bibliografia etnolgica, algumas caractersticasgerais de algumas sociedades falantes de lnguas da Famlia

    lingstica J, a fim de compar-las com as sociedades J meridionaise, por via da analogia etnogrfica, aos Proto-J do Sul;

    6. fazer um estudo dos grafismos (Proto)Guarani (deste modo, tanto os

    atuais como os pr-coloniais, segundo minha conveno de grafiaestabelecida na nota 10), objetivando comparar e melhorcompreender o sistema de representaes (Proto)J meridional (tantoos sistemas Kaingang e Xokleng, histricos e atuais, como o pr-colonial, sempre de acordo com esta conveno de grafia) e tendo

    em vista que minhas pesquisas e a literatura etnolgica disponvel,principalmente os trabalhos de Veiga (1994 e 2000), sugeremalgumas semelhanas entre os Kaingang e os Tupi-Guarani, o queser trabalhado no Captulo 4. Esta pesquisa de campo, suametodologia e seus resultados esto detalhadamente discutidos noCaptulo 5, item 5.2.

    A partir, portanto, do estabelecimento de um modelo etnoarqueolgicoJ meridional, que abrange sua arte, sua estruturao social e sua mito-

    cosmologia, pretendi colaborar para o avano terico e metodolgico dasanlises arqueolgicas que envolvem populaes Proto-J do sul,especificamente no que diz respeito s relaes entre cultura material/arte eestrutura social/cosmologia, enfatizando terica e metodologicamente umaao interpretativa, cognitiva e simblica sobre o passado.

    18

    Algumas passagens e/ou descries desta tese, especialmente nos mitos, podem parecer ou um pouco longasou no serem totalmente relacionadas com seu tema. Entretanto, como a sua leitura dirige-se essencialmente aarquelogos, convenci-me que deveriam constar, pois podem dar subsdios a futuros trabalhos de

    etnoarqueologia.

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    Metodologia: discurso e memria Kaingang

    O trabalho de campo realizado permitiu levantar discursos e a memriade alguns interlocutores kaingang a respeito de sua cultura material,

    principalmente sobre o significado dos grafismos presentes em seus tranados,em seus tecidos, em suas armas, em sua pintura corporal, em sua cermica eem painis rupestres do sul do Brasil.

    A pesquisa baseou-se notadamente em entrevistas abertas, realizadastanto em aldeias como em museus de Porto Alegre e de So Paulo.

    Nas primeiras, a tcnica utilizada foi a de apreender o discurso doskaingang sobre sua cultura material, a partir de sua produo artesanal feita nolocal da pesquisa ou atravs da apresentao de fotografias e desenhos deobjetos Kaingang, e raramente Xokleng, e de grafismos neles constantes. Taisdocumentos visuais provm das atividades de levantamento realizadasanteriormente em acervos museolgicos (especialmente no Museu Jlio deCastilhos, no Museu Antropolgico do Rio Grande do Sul e no Laboratrio deArqueologia e Etnologia do Departamento de Antropologia da UFRGS, todos

    em Porto Alegre, e no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, em SoPaulo19). As fotografias e desenhos de grafismos usados para investigar a

    pintura corporal e facial so oriundos ou de trabalhos feitos em vrias ocasiese cidades do Rio Grande do Sul em que os Kaingang apresentaram suas danasguerreiras ou de um jornal local de Porto Alegre.

    Em inmeras oportunidades, tambm foi possvel trabalhar com meusinterlocutores Kaingang em museus de Porto Alegre e de So Paulo, paraverem e comentarem sobre objetos Kaingang de todos os tipos, a grande

    maioria deles datando dos fins do sculo XIX e incios do sculo XX, o queproporcionou um grande entusiasmo nestes interlocutores, estimulando umfluxo de informaes ainda no esgotado (e que provavelmente no esteja todocontido nesta tese).

    Estes trabalhos, incluindo igualmente a pesquisa bibliogrfica realizada,propiciaram o levantamento e sistematizao de um corpus grfico Jmeridional.19

    Este ltimo levantamento consta dos Anexos.

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    Aps o levantamento da etnografia referente aos grafismos e culturamaterial J meridional, especialmente Kaingang, foram mostrados materiais efotos de objetos e de painis rupestres a interlocutores Kaingang quedemonstraram maiores conhecimentos sobre a cultura material, em geral, e arespeito do sistema de representaes visuais Kaingang, em particular. Istoaconteceu aps comparar tais materiais pr-histricos ao corpus grfico J doSul e consider-los Proto-J meridionais. Tal tcnica mostrou-se muito

    produtiva, possibilitando a identificao do nome e do significado de muitosgrafismos Proto-J do sul presentes em alguns painis rupestres e na cermicaarqueolgica das ditas tradies locais planlticas, alm de propiciar oconhecimento das tcnicas de produo de alguns artefatos (krmo-de-pilo

    ltica -, nga ta kukr panela de barro e pentkytigela de barro) no maisproduzidos h muitas dcadas. Alm disso, na Terra Indgena de Nonoai, trsinterlocutores Kainganginformaram a localizao de trs stios arqueolgicosde Tradio Taquara, tendo auxiliado no survey. As antigas aldeias e seusmateriais arqueolgicos foram analisados e interpretados pelos Kaingang. A

    pesquisa de campo demonstrou que os Kaingangtm critrios uniformes paradesignar os grafismos pr-histricos, inclusive separando o que (Proto)Guarani.

    O levantamento e sistematizao de um corpusgrfico Proto-J do sulincluiu, tambm, pesquisa museolgica (grafismos da cermica) e bibliogrfica(grafismos rupestres e da cermica). No que diz respeito primeira, o trabalhorealizou-se, principalmente, no Ncleo de Pesquisas Arqueolgicas doDepartamento de Histria da UFRGS e em acervo do Museu de Arqueologiado Rio Grande do Sul.

    As informaes sobre a cultura material das denominadas tradieslocais planlticas e o corpus grfico Proto-J meridional levantado foram

    introduzidas no dilogo com interlocutores Kaingang. Alguns deles tmmemria das vasilhas cermicas feitas por pessoas da gerao anterior. Seusdiscursos sobre os grafismos presentes na cermica arqueolgica e nos painisrupestres constam desta tese.

    Quanto a alguns grafismos rupestres, no fundamentei sua incluso nocorpus grfico Proto-J do sul apenas a partir da identificao, nomeao einterpretao por parte dos Kaingang, o que poderia indicar uma apropriaocultural por parte destes. Para atingir uma compreenso dos grafismosgravados e pintados do sul do Brasil baseei-me, principalmente, na

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    comparao formal entre estes e os grafismos presentes em materiaisetnogrficos (reconhecidamente Kaingang ou Xokleng), ou desenhados no

    prprio corpo dos danarinos Kaingang, todos estes tambm identificados,denominados e interpretados pelos Kaingangatuais.

    Em Porto Alegre, com intensidade quase que diria durante mais de umano, os trabalhos de campo antropolgico foram realizados na Aldeia daAgronomia e com outros indivduos originrios, como no caso da Agronomia,da Terra Indgena de Nonoai, no Planalto do Rio Grande do Sul, que porvrios motivos encontravam-se (ou encontram-se) na regio metropolitana dePorto Alegre (exlio por conflitos polticos; viagens de comrcio de tranados;viagens de visitas a parentes ou para reivindicaes a rgos governamentais

    ou ongs; sada definitiva da T.I. de Nonoai e instalao de grupos deparentela nas periferias de Porto Alegre, a procura de melhores condies devida, com motivao conjugada, ou no, a problemas polticos na rea deorigem).

    Em So Paulo, entrei em contato com um pequeno grupo de Kaingangpaulistas vindos do posto Indgena de Icatu, Municpio de Brana, em visita aoMuseu de Arqueologia e Etnologia da USP20, onde tive oportunidade de colherinformaes sobre cultura material e grafismos, o que enriqueceu meus dados e

    confirmou minhas interpretaes.

    Em Porto Alegre, tambm trabalhei com grupos kaingang daComunidade Indgena de Inhacor, do Municpio de So Valrio do Sul RS,e da rea Indgena da Guarita, Setor Misso, do Municpio de Redentora RS.

    A pesquisa de campo, com idas e permanncias nas aldeias do PlanaltoSul-rio-grandense, foi reduzida, e aconteceu com interlocutores de trs aldeias

    da Terra Indgena de Nonoai (Posto, Pinhalzinho e Bananeira). Durante estaspesquisas de campo, mantive, tambm, contato com famlias Kaingang noMunicpio catarinense de guas de Xapec.

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    Este contato aconteceu graas ao convite das Profas. Ana Vera e Aracy Lopes da Silva.

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    2. ARTICULAO ENTRE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA: ASBASES TERICAS

    ...una disciplina se caracteriza por la clase de preguntas que plantea yla clase de respuestas que est dispuesta a aceptar Maybury-Lewis,1975:276.

    Inicialmente, gostaria de propor uma definio simples do objeto e dosprocessos epistemolgicos relacionados com a etnoarqueologia. Como

    qualquer outra tentativa de definio, certamente, no contentar a todos.Trata-se de uma proposio para motivar, a seguir, uma discusso sobre asbases tericas da articulao entre arqueologia pr-histrica e etnologiaindgena. Assim:

    A compreenso de artefatos, estruturas e quaisquer outros vestgios desociedades do passado, atravs da utilizao de dados histricos e etnogrficos,dentro de um contexto histrico e cultural local muito bem definido, testadosos modelos etnoarqueolgicos da surgidos por intermdio de metodologias

    arqueolgicas prprias, constitui-se no objeto da etnoarqueologia. Na criaodestes modelos etnoarqueolgicos para a compreenso do passado, ainterlocuo com membros de sociedades indgenas e a analogia etnogrficaso ferramentas metodolgicas potentes.

    Primeiramente, importante enfatizar que as aproximaesepistemolgicas entre uma arqueologia voltada para os estudos de vertentesincrnica e com nfase no cotidiano, atravs das anlises espaciais e da

    possibilidade de estudos simblicos da cultura material, e a etnologia soevidentes, especialmente no Brasil, como se ver adiante. No entanto, esta no a posio da arqueologia processual brasileira, que no tem por hbito

    perceber a importncia do trabalho etnolgico sobre mito-cosmologia,etnoesttica, organizao social e poltica de sociedades indgenas atuais para acompreenso do objeto arqueolgico, principalmente porque este tipo detrabalho no enfatiza particularmente a cultura material destas etnias. Emoutras palavras, a inter-relao entre materialidade, de um lado, e sociedade ecultura, de outro, no costuma ser explorada pelos estudos arqueolgicos.

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    Entretanto, o mnage trois jocosamente citado por Leach1 (aconvivncia entre arqueologia, etnologia e antropologia biolgica) umaimposio para a consecuo de uma arqueologia menos descritiva, menos

    empirista e menos historicista. Sua articulao com a etnologia (o que j foiempreendido com relao antropologia biolgica), apesar do inevitveldesconforto inicial, precisa ser empreendida.

    Ao contrrio do que geralmente se pensa no mbito da arqueologiabrasileira, as aparentes relaes perigosas, poludas e de certa maneiraincestuosas2podem tornar-se relaes frteis e altamente produtivas.

    Apesar desta posio, que extensiva arqueologia processual como um

    todo, fora e dentro de nosso pas, as discusses tericas e metodolgicas sobrea utilizao de dados histricos e etnogrficos para o entendimento, porexemplo, de sistemas arqueolgicos de representao visual (principalmente osgrafismos rupestres e cermicos) e da esfera do sagrado, entre outros,avanaram consideravelmente nos ltimos anos.

    Layton (1987:211-12), ao considerar o que ele denomina de paralelosetnogrficos para interpretar a arte parietal do Alto Paleoltico, levanta a

    principal dificuldade de seu uso:

    human cultures are not simply diverse; they have an inherente tendency togenerate variation in behaviour and to diversity. To this extent they are unpredictable.

    Alm disso, a comparao sem levar em conta os contextos culturais(potencialmente diversos) dos itens envolvidos leva a paralelos etnogrficosno-fidedignos, pois dependem unicamente da semelhana entre formasisoladas (op. cit., p.211).

    Em resumo, o autor no acredita verdadeiramente nos paralelos

    etnogrficos, pelo menos neste que compara a cultura do Alto Paleoltico daEuropa Ocidental com as culturas modernas dos caadores-coletores San dafrica Meridional.

    Na sua concluso, Layton (op. cit., p.232) considera que a etnografiaSan penosamente sugere que a cultura do Alto Paleoltico percebeu analogiasentre o comportamento social humano e animal. Dizer mais seria temerrio,

    1Apud Laplantine, 1987, p. 18.2

    Relaes incestuosas porque todas estas trs reas (arqueologia, etnologia e antropologia biolgica) pertencemao mesmo campo do saber, o antropolgico.

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    uma vez que o paralelo compara culturas separadas longamente pelo tempo epelo espao.

    Entretanto, ao contrrio da analogia anterior, que compara a arte deduas culturas bastante separadas no tempo e no espao, Layton (1985), aoestudar o contexto cultural da arte parietal de caadores-coletores, considera-acomo textos engendrados por um sistema cultural e defende uma interpretaosemiolgica da arte e do mito. Seguindo Ricoeur (1979), afirma que a criaoda arte parietal e a narrao de mitos devem ser tratadas como performancesou textos, atravs dos quais a estrutura da cultura dos executores pode serreconstruda e compreendida. Desta forma, enfatiza a relao do contextocultural de pinturas rupestres com os mitos de caadores-coletores da Austrlia

    (Alawa do Gulf Country no Northern Territory) e da frica do Sul(grupos San).

    Com relao aos primeiros, o autor (op. cit., p. 437) observa que cadacl possui uma limitadssima srie de pinturas corporais. Estes desenhos soformas geomtricas simples e discretas. Os Alawa tambm pintam seusmotivos clnicos em abrigos-sob-rocha para mostrar a posse do stio,

    particularmente quando o desenho representa o heri totmico que criou ostio. Os membros do cl detm a exclusividade do uso do desenho, sendo

    permitido usar o motivo de outro cl apenas em ocasies muito especiais(aliana entre dois cls; quando da sucesso). Na sua concepo, a arteaborgena expressaria a identidade totmica (op. cit., p. 448), cujo temadominante seriam emblemas de cls totmicos (op. cit., p. 450).

    O autor alerta para a multivalncia dos motivos geomtricos, que tm acapacidade de representar um conjunto de associaes em um simples motivo.Um arco, por exemplo, motivo exclusivo do cl A pode simultaneamenterepresentar o heri canguru e o stio criado pelo heri. Este mesmo motivo, na

    pintura corporal, identifica quem o usa como membro do cl A (Layton,

    1985:437-8).

    A interpretao semiolgica da arte parietal pr-histrica Alawa,portanto, possvel graas possibilidade concreta da analogia etnogrfica viapesquisa etnogrfica.

    Entretanto, adverte:

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    Rock art may allow it to outlive the artists culture and eventually becomeincorporated into a new, perhaps radically different, culture that succeeds the first;so that there is no necessary connexion between the meanings now attributed to it

    and its significance to the original artists (Layton, 1985: 441).

    Pode-se dizer que, em relao aos Alawa, sua tradio artstica enfatizaas relaes socias, o que no acontece com a arte parietal dos grupos San, sul-africanos, estudados por Lewis-Williams (1980, 1982, 1987 e 1995), que terianatureza xamanstica (1987:165-6) e sublinharia aspectos cosmolgicos,mediando as relaes com o domnio do sobrenatural.

    O autor citado usa dados etnogrficos e etno-histricos dos grupos San

    para interpretar a arte rupestre deixada por grupos anteriores, que viveram nomesmo local, e que seriam os antecedentes dos grupos San. Lewis-Williamsrelaciona as imagens parietais com vises provocadas pelo estado alterado deconscincia, experimentado pelos xams em transe alucinatrio.

    Lewis-Williams (1987) considera que o estabelecimento da relao entrearte e xamanismo para os San (Bushman) apenas o incio de um longo

    projeto de pesquisa que ajudar a reconstruir a ideologia da Idade da PedraTardia sul-africana.

    Neste sentido, autores brasileiros (como Faria, 1997, por exemplo) vmtrabalhando no sentido de identificar em grafismos de sociedades indgenas doBrasil, principalmente os geomtricos, uma origem xamanstica a partir detranses induzidos por substncias alucingenas. De qualquer forma, restariacompreender o contexto simblico destes grafismos.

    Na Venezuela, Christie-Shults (1992) constatou que os Piaroa enterram seus mortos em abrigos-sob-rocha, cujas paredes, em 95% de suaextenso so decoradas com pinturas monocromas em vermelho e, em alguns

    casos, policromas. A autora prope-se a verificar se se pode estabelecerrelao entre os Piaroa e a arte rupestre, apesar de no haver pesquisaarqueolgica na rea, nem datao segura para as pinturas, nem relatos sobreos Piaroaatuais pintarem os abrigos (op. cit.,p.40). Apenas um informanteda autora afirmou que os Piaroa no pararam de pintar as paredes dos abrigos(idem, p. 44). Conforme Christie-Shults, a maioria dos stios cemitrios sodecorados com pinturas lineares geomtricas e simtricas em vermelho. Omesmo ocorre com a pintura corporal, por meio de carimbos, das atuaismulheres Piaroa,e com os desenhos masculinos usados pelos homens em suas

    cestas, cujas semelhanas formais com a dos abrigos grande.

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    Mesmo sem comprovao arqueolgica da continuidade histrico-cultural entre os artistas dos abrigos e os atuais Piaroa, interessante

    compreender como se deu esta incorporao, em tese, da arte parietal erefletir sobre os, tambm em tese, rearranjos simblicos a partir daquelessignificantes pr-histricos.

    No Brasil, Shaan (1997) estudou A linguagem iconogrfica dacermica Marajoara, propondo o estabelecimento de unidades mnimassignificantes (op. cit., p. 177), uma vez que no se props a identificarunidades mnimas de significado, j que no tinha acesso aos significadosdos signos marajoaras. Mesmo assim, na impossibilidade de fazer analogias

    etnogrficas ou de usar dados histricos, a autora conseguiu avanar emrelao aos tradicionais estudos descritivos de cermica arqueolgica, tendocomprovado que a arte marajoara tem os requisitos bsicos para serconsiderada uma linguagem visual icnica, a exemplo de Nancy Munn (1973)com os Walbiri.

    Por sua vez, Hirata (1994-95:387-88), ao estudar a religio de origemgrega que se desenvolve em uma rea colonial do Mediterrneo Ocidental: aSiclia, discute pontos tericos e metodolgicos importantes para a

    arqueologia pr-histrica brasileira quando da interpretao de artefatos eestruturas pertencentes a sociedades desaparecidas. Seguindo Laffineur(1988), ela discute o confronto, no plano epistemolgico, dos valoresrespectivos das fontes textuais e materiais para o conhecimento decomportamentos de sociedades desaparecidas. Referindo-se a textos

    produzidos por membros destas prprias sociedades antigas, diz que o sensocomum entre historiadores do Mundo Antigo estabelece uma relaosimplista de complementariedade entre as duas categorias, reconhecendo uma

    primazia intrnseca s fontes escritas, especialmente no que tange aos aspectossubjetivos de uma cultura. No entanto, a autora rebela-se contra esta

    posio, que no d a devida importncia carga ideolgica que subjaznestes documentos escritos e que pode ser relacionada a determinados gruposde interesse no interior dessa mesma sociedade. Esta observao possuigrande valor para o caso do uso de informaes escritas pela arqueologia pr-histrica brasileira, se traarmos um paralelo entre fontes textuais nativas edocumentos textuais deixados por religiosos, militares, administradores,

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    poca do contato das sociedades indgenas com a sociedade ocidental ecolonizadora3.

    Quanto ao poder informativo dos materiais arqueolgicos, a autora(op.cit., pg. 389), em conformidade com as reflexes de Renfrew ecolaboradores (1985), estabelece duas perspectivas opostas e nocivas para a

    produo do conhecimento arqueolgico: 1. a cptica, que desconsidera avalidade de testemunhos materiais para a elucidao de questes ditassubjetivas: os documentos materiais seriam menos confiveis parainterpretar o sagrado, em primeiro lugar, e as instituies scio-polticas,sendo vlidos para o estudo das tcnicas de produo e dos nveis econmicoe de subsistncia; e 2. a otimista, que acredita exageradamente no poder

    informativo dos dados arqueolgicos e desliza para interpretaes baseadasem comparativismos apressados que postulam analogias entre dadosarqueolgicos de espao geogrfico e tempo histrico x com fontes escritas

    pertencentes a um espao e tempo y.

    Diante destas consideraes, pode-se chegar concluso de que ostatus do dado arqueolgico (que ir embasar as teorias interpretativas)depende da sua identificao objetiva, isto , depende do grau de controlesobre a validade do processo de caracterizao dos implementos (op.cit.p.

    389). Esta identificao passa necessariamente pela busca do contextohistrico-cultural da informao arqueolgica, que, alm do contextoarqueolgico propriamente dito, pode, no caso da pr-histria brasileira, ser

    buscado atravs da etno-histria ou da analogia etnogrfica.

    Obviamente, com relao etno-histria, devero ser tomados oscuidados para no se estabelecer uma relao simplista decomplementariedade entre informao e fonte escrita.

    No que diz respeito analogia etnogrfica, mesmo que se esteja

    trabalhando com informaes oriundas de sociedade indgena que ,comprovadamente, continuidade histrico-cultural do registro arqueolgico,deve-se levar em considerao a possibilidade da ocorrncia de rearranjossimblicos em resposta a uma situao histrica especfica (op.cit., p.390). o caso citado pela autora (op. cit., p. 389-90), de vestgios arqueolgicosidnticos do ponto de vista formal [serem] considerados de anloga funo,mesmo se encontrados em reas geograficamente distantes.

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    Com relao a esta tese, algumas fontes etno-histricas foram consultadas e analisadas nos captulosseguintes.

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    Neste sentido, o uso de fontes etno-histricas para reconstruir aspectoscognitivos do passado tem sido criticado por alguns autores que argumentamque esta abordagem metodolgica simplesmente projeta o passado recente em

    direo pr-histria, uma vez que no se poderia saber se o passado pr-histrico era igual ao passado recente (Whitley, 1998:31-32). Entretanto,Huffmann (1986:85 e 1996 apud Whitley, 1998), um arquelogo cognitivo,apresenta duas respostas-chave a estas crticas: 1a.) mudana de qualquer tipo um problema emprico em arqueologia; se ocorreram mudanas entre os

    passados recente e pr-histrico, elas devem ser reconhecidasarqueologicamente; 2a.) a combinao de pesquisas etno-histricas earqueolgicas pode permitir-nos reescrever ou aperfeioar a etno-histria e aetnologia.

    A partir destas premissas iniciais, os pargrafos seguintes remetem discusso sobre as possibilidades terico-metodolgicas da reconstruo deaspectos cognitivos do passado pr-histrico, que , em ltima anlise, oobjetivo central desta tese.

    Arqueologia ps-processual: a abordagem cognitiva, a mente humana eo estatuto das fontes etno-histricas e da analogia etnogrfica

    Podemos descobrir um passado real, ou simplesmente criamos o passadono presente? E podemos reconstruir os pensamentos e emoes dos povos pr-histricos, ou estamos limitados a estudar sua dieta, economia e tecnologia?Whitley (ed.), 1998: contra-capa4.

    Desde 1980, estas e perguntas semelhantes esto presentes no debateterico da arqueologia anglo-americana:

    Que papel desempenharam a arte e o simbolismo nas atividades dassociedades pr-histricas? A arqueologia uma cincia que pode reconstruir uma

    viso objetiva do passado ou, pelo contrrio, apenas um reflexo do presente, usadopara satisfazer nossas prprias (e freqentemente no-reconhecidas) necessidadesideolgicas? Whitley, 1998:1.

    Estas reflexes tericas que por um lado questionam o estatutocientfico da arqueologia e por outro o seu alcance - s seriam possveis aps oesgotamento terico da nova arqueologia ou arqueologia processual, quefloresceu nos anos 60 e 70. Ela refletiu um esforo para tornar a arqueologia

    4Traduo do autor.

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    tradicional (que era fundamentalmente descritiva e interessada em definircultura-histria) uma antropologia cientfica (Whitley, op. cit., pg.3).

    Entretanto, a arqueologia processual ou nova arqueologia adotou ummodelo de cincia o positivismo e uma abordagem antropolgica oestrutural-funcionalismo e sua viso normativa de cultura exatamentequando eles estavam em vias de ser substitudos nas cincias sociais e,

    particularmente, na antropologia. Igualmente, o behaviorismo, posiointelectual aliada ao positivismo, foi adotado pela arqueologia processual.Segundo esta posio, o comportamento humano causado por eventos ecausas externas. O mais importante vnculo com o behaviorismo a

    perspectiva ecolgica-adaptacionista, que fundamental para a arqueologiaprocessual:

    Desta perspectiva, a explicao dos eventos do passado humano buscadaem fatores externos e eventos tais como mudanas ambientais. Isto torna a mente humana e acognio imensamente irrelevante (op. cit.,pg. 5).

    Desde este ponto de vista, as arqueologias cognitiva e ps-processual,surgidas nos anos 80, representam um esforo de atualizao terica nadireo de reconhecer a mente e a cognio humanas como fatores-chave nacriao do registro arqueolgico, com a rejeio do estrutural-funcionalismo edo behaviorismo. Alm disso, a recusa do postulado central do positivismo dado e teoria so independentes uma das noes chave para asarqueologias cognitiva e ps-processual (op. cit., pgs. 3, 5 e 10).

    Para elas, o objetivo da cincia , pois, no necessariamente descobrir averdade (um passado objetivo), mas tentar chegar cada vez mais perto dela,atravs de um procedimento denominado inference to the best hypothesis:usando a evidncia emprica para selecionar a melhor entre uma srie de

    hipteses concorrentes. Isto representa um esforo para utilizar um mtodo decincia mais sofisticado do que o positivismo e no uma rejeio cinciacomo prope o relativismo extremo, para o qual tudo subjetivo, inclusivesendo dado e teoria completamente equivalentes (op. cit.,pg. 10-11).

    Das abordagens ps-positivistas, poderamos situar a arqueologiacognitiva numa posio moderada (embora fato e teoria estejam inter-relacionados, pode-se manter uma distino entre eles), enquanto aarqueologia ps-processual, por outro lado, estaria numa posio de

    relativismo extremo. Na verdade, muitos ps-processualistas advogam este

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    tipo de relativismo segundo o qual o conhecimento do passado socialmente

    construdo e inteiramente subjetivo (op. cit.,pg. 12).

    Cultura, numa formulao cognitiva, conforme Whitley (1998:17-18) :um sistema compartilhado de smbolos, valores, significados e crenas. Porisso, conforme Flannery & Marcus (1998:36-37; 46), a arqueologia cognitivano o estudo de aspectos econmicos, de dieta e de padres deassentamentos, como querem muitos profissionais da arqueologia desubsistncia/assentamento. Igualmente, ela no o estudo de epifenmenos:

    A arqueologia cognitiva o estudo de todos os aspectos de uma antigacultura que so o produto da mente humana: a percepo, descrio e classificao douniverso (cosmologia); a natureza do sobrenatural (religio); os princpios,filosofias, ticas e valores pelos quais as sociedades humanas so governadas(ideologia); as maneiras como aspectos do mundo, do sobrenatural ou valoreshumanos so transferidos para a arte (iconografia); e todas as outras formas docomportamento intelectual e simblico que sobreviveu no registro arqueolgico5.

    Os autores enfatizam que abordagens cognitivas podem ser usadas comsucesso apenas quando as condies para tal so apropriadas, isto , quando as

    informaes/documentos de apoio (etno-histricos, etnoarqueolgicos) sosuficientemente ricos (op. cit.) e advertem que

    O maior desafio que se apresenta para a arqueologia cognitiva o deancorar-se to firmemente nos registros etnogrfico, histrico, etno-histrico earqueolgico como o so os demais aspectos tradicionais (subsistncia,assentamento) da arqueologia (op. cit., pg. 47).

    Desta forma, do ponto de vista da metodologia, para a reconstruo deaspectos cognitivos do passado, as fontes etno-histricas precisam serconsultadas e os levantamentos etnogrficos precisam ser empreendidos.

    Desde este ponto de vista, proponho que o estudo que realizei sobrecultura material e grafismos Kaingang, concentrado principalmente nocaptulo 5 desta tese, sirva como incentivo para a compreenso simblica dealguns objetos da cultura material e dos grafismos Proto-J meridionais,contribuindo para o entendimento de aspectos cognitivos importantes do

    passado pr-histrico destas populaes.

    5Traduo do autor.

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    Como se viu, a rejeio de um modelo de cincia positiva-behaviorista ede uma abordagem estrutural-funcionalista permitiu arqueologia cognitivauma aproximao epistemolgica s fontes etno-histricas e etnogrficas e

    tornou concreta a possibilidade analtico-interpretativa de todos os aspectosde uma antiga cultura que so o produto da mente humana6 (cosmologia,religio, ideologia, iconografia, etc.). Esta aproximao epistemolgica e esta

    possibilidade terico-metodolgica conectam os estudos de arqueologiacognitiva com as abordagens atuais sobre arte indgena, as quais noconsideram as manifestaes estticas como esfera residual ou independente docontexto no qual aparecem.

    Desta forma, os atuais estudos sobre arte indgena tm aportado

    evidncias importantes para a anlise das idias subjacentes a campos edomnios sociais, religiosos e cognitivos (Vidal, 1992:13). Ainda de acordocom a autora, manifestaes simblicas centrais para a compreenso da vidaem sociedade, como concepo da pessoa humana, sua caracterizao social ematerial, expresso da ordem csmica, so comunicadas por este sistemaaltamente estruturado, que so as manifestaes estticas de uma sociedadeindgena. Em outras palavras, a arte materializa um modo de experincia quese manifesta visualmente, principalmente na decorao do corpo e no sistemade objetos, permitindo que os membros de uma sociedade vejam-se ao olhar

    seus grafismos e objetos (Van Velthem, 1994:86).Neste sentido, estou considerando etnoarte ou arte indgena7como um

    sistema de signos compartilhados pelo grupo e que possibilita a comunicao(Vidal & Lopes da Silva, 1992). Estas manifestaes visuais so expressoesttica de identidades tnicas e culturais.

    O termo etnoarte refere tanto uma tradio plstica especfica comopressupe uma contextualizao scio-cultural da arte ao considerar osverdadeiros propsitos de seus produtores (Silver, 1979:268, apud Van

    Velthem, 1994:86).

    Assim, estou encarando manifestaes estticas enquanto ummecanismo cognitivo que reflete a viso e o sentido conferido pelos membrosde uma sociedade especfica (Van Velthem, 1994:84, baseada em Geertz,1986). Lado a lado, articulando a abordagem terica da arqueologia cognitiva

    6Flannery & Marcus, 1998:46.7

    Uso, indistintamente, os termos etnoarte ou arte indgena em substituio a expresses insatisfatrias epreconceituosas como arte primitiva, arte tribal, arte nativa etc.

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    com os pressupostos da antropologia esttica de insero da arte no seucontexto cultural, analisei a etnoarte (Proto)Kaingang (e muito parcial eincipientemente a (Proto)Guarani8) enquanto meio de informao sobre estas

    sociedades, repelindo uma abordagem tcnica e formal, ligada tanto arqueologia processual como a uma antropologia ligada ao colecionismo dosculo XIX.

    Alm disso, considerando que as manifestaes artsticas condensamsignificados culturais fundamentais para cada sociedade (Vidal, 1992), estatese, particularmente nos captulos 4, 5 e 6, defende a hiptese de que, aexemplo das concluses relativas etnoarte das sociedades Kaingang e Mby-Guarani, as populaes Proto-J meridionais e Proto-Guarani enfatizavam

    significados culturais diferentes atravs de sua arte. As primeiras sublinham,mas no com exclusividade, conceitos e representaes vinculados sociedade(relaes entre pessoas e entre grupos sociais, como as metades Kaingang, porexemplo) e as segundas principalmente fazem referncia ao mundo no-social(os domnios da natureza e da sobrenatureza, e conceitos cosmolgicos maisgerais)9.

    Para o meu estudo especfico, que pressupe uma continuidade concretaentre o registro arqueolgico e as sociedades Kaingang e Xokleng, estou

    interessado no contedo simblico que estas manifestaes estticasexpressam, uma vez que a arte significa e no apenas representa10.

    Desta forma, tive por objetivo inserir os objetos e grafismos Kaingangatuais no seu contexto cultural, analisando-os a partir desta contextualizao.

    Num segundo momento, empreendi uma tentativa de compreenso dossignificados culturais dos grafismos presentes na cermica e na arte parietaldos Proto-J do sul. A mesma abordagem foi perseguida em relao contextualizao de alguns itens do sistema de objetos Proto-J meridional ede prticas rituais que deixam vestgios arqueolgicos, principalmente as de

    sepultamento.

    8Para fins comparativos, e de modo bastante incip iente, seguindo esta abordagem terico-metodolgica,estudei, no subitem 5.2, adiante, os grafismos atuais Mby-Guarani, contextualizando e interpretandotentativamente as representaes grficas Proto-Guaranipresentes na cermica arqueolgica dita de TradioTupiguarani.9Estes assuntos vo ser trabalhados mais detalhadamente nos captulos 4 (sobre as concepes cosmolgicasda sociedade Kaingang) e 5, quando estiverem sendo enfocadas especificamente ou a etnoarte Kaingangou a

    etnoarteMby-Guarani.10Conforme Lvi-Strauss.

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    Meu quadro referencial terico, portanto, parte do princpio doestabelecimento de um modelo da cultura material e dos grafismos Kaingang(sua viso de mundo e sua forma de sensibilidade) para o empreendimento da

    analogia etnogrfica, ou seja, para interpretar e lanar luz sobre o sistema derepresentaes visuais presente na cermica e na arte parietal dos antecedentesdesta sociedade.

    Meu objetivo foi o de desvendar novas possibilidades deentendimento11 da cultura material das chamadas tradies ceramistaslocais do Planalto Sul-brasileiro, enfocando aspectos cognitivos deste

    passado.

    A analogia etnogrfica possvel, pelo menos do ponto de vista dacontinuidade existente entre o registro arqueolgico destas ditas tradiesceramistas locais (Taquara, Casa de Pedra e Itarar) com os falantes delnguas da famlia J (Kaingang e Xokleng). Tal continuidade acha-secomprovada por epistemologias alternativas pronapiana12, em estudos queincorporaram informaes lingsticas, etnogrficas e da antropologia

    biolgica, os quais j foram comentados na Introduo e sero sumarizados noprximo captulo.

    O entendimento da etnoarte Kaingang passa necessariamente pelacompreenso de sua forma de sensibilidade e de um entendimento maisprofundo e amplo de outros aspectos da cultura Kaingang (Geertz,1986:139)13. Da meu investimento em tentar fazer uma anlise da culturaKaingang alm das representaes grficas, puramente.

    A partir desta premissa terica e metodolgica, foi possvel criar umquadro referencial para a compreenso da etnoarte atual, ou histrica, paracomear a empreender um entendimento da etnoarte pr-histrica presente nacermica (esta com ligao inconteste com os Kaingang atuais) e na arte

    parietal de alguns stios arqueolgicos do sul do Brasil, cuja ligao com osKaingang(ou, mesmo, com os J do sul) bastante controversa, segundo oentendimento da maioria dos arquelogos brasileiros, como se ver maisadiante (item 5.3).

    11Como diz Hirata (op. cit., p. 390).12Brochado, 1984; Reis, 1997 a e 1997 b; Robrahn-Gonzlez, 1989, Robrahn-Gonzlez & De Blasis, 1998;

    Noelli, s/d.13Veja captulos 4 e 5.

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    Alm disso, a compreenso de uma sociedade do passado atravs dautilizao de informaes etnogrficas desta mesma sociedade, colhidas num

    passado muito recente e no presente, causa muito desconforto maioria dos

    profissionais, principalmente aos vinculados a uma arqueologia processualista.No campo antropolgico, esta mesma abordagem terica (o estrutural-funcionalismo), no Brasil dos anos 40, 50 e 60, promoveu uma srie deestudos sobre aculturao e frico intertnica, cujos efeitos ainda esto muito

    presentes na arqueologia processual.

    Os estudos de aculturao no Brasil14 tiveram, segundo Novaes(1993), as seguintes caractersticas:

    a. a mudana seria promovida pela introduo de elementos estranhos ssociedades indgenas analisadas e advinha, pura e simplesmente, do contatodestas sociedades com a populao rural; para entender estas mudanas,

    procedeu-se ao inventrio dos traos culturais dos grupos em contato;

    b. nfase na perspectiva sociolgica. Estes estudos tendiam a captar oprocesso social e as mudanas do ponto de vista das instituies da sociedademinoritria (epidemias, depopulao, impossibilidade de seguir padresmatrimoniais tradicionais, alteraes na diviso sexual do trabalho, etc.), em

    detrimento da perspectiva cultural;c. associao dos processos de mudana nestas sociedades decadncia

    iminente e descaracterizao e desintegrao cultural:

    d. concepo de cultura como um produto acabado, um estoque detraos, sem garantia de preservao como os traos genticos, que poderiamser irremediavelmente perdidos.

    Contrariamente ao catastrofismo inerente a este tipo de estudo, Novaes

    sublinha que:

    A mudana social no se d, entretanto, como pretendiam estes autores,como um processo que vai, mecanicamente, substituindo elementos da cultura original

    por outros da cultura dominante, de tal modo que a cultura original gradualmente seextinga ou fique completamente descaracterizada. Novaes, 1993:40.

    14Os mais importantes so os trabalhos de Wagley e Galvo (1949) sobre os tenetehara, Wagley (195l),

    comparando tenetehara e tapirap, e Schaden (1954) sobre os guarani. Este ltimo autor muito influenciou aarqueologia praticada no sul do Brasil.

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    Na verdade, exatamente nas situaes de contato intenso com oscontextos nacionais que acontece o exacerbamento de identidades indgenascontrastantes. Este encontro de sociedades diferentes resulta no processo de

    formao de culturas de contraste e no de desintegrao cultural dassociedades indgenas (Carneiro da Cunha, 1986).

    Novaes enfatiza que estes estudos de aculturao possuem uma visode mudana como uma desintegrao progressiva. Seguindo Geertz (1957),a autora pe mostra a dificuldade dos funcionalistas em lidar com processossociolgicos e culturais, e incorpora em sua anlise a proposta de Geertz paraque se distinga analiticamente os aspectos sociais e culturais da vida humana, oque

    ...evita a viso implcita da desintegrao cultural como uma realidadeinerente a todo o processo de contato entre duas sociedades em que uma minoritriaou dominada. (....) Esta perspectiva permite perceber a situao de contato no comoa destruio de modos tradicionais de vida, mas como um processo que leva construo de um novo estilo de vida, com novas estratgias e alternativas, onde acultura tem uma dimenso essencialmente dinmica e adaptativa. Novaes, 1993:42.

    Deste modo, uma excessiva nfase nos aspectos sociais (estrutura socialque a ao toma, a rede de relaes sociais) em detrimento total dos aspectos

    culturais (significados com os quais as pessoas interpretam sua experincia eguiam sua ao) no permitiu que estes estudos funcionalistas deaculturao percebessem a natureza peculiar da integrao na esfera dacultura e na esfera social (Novaes, 1993).

    A resistncia terica por parte da arqueologia processual quanto ao usode dados etno-histricos e etnogrficos tem a, nestes estudos funcionalistas deaculturao, sua origem, uma vez que os mesmos enfatizam umadesintegrao progressiva destas sociedades, que no poderiam, portanto, ser

    tomadas como modelo para a compreenso de seu passado.

    De igual modo, os estudos de frico intertnica (Cardoso de Oliveira,1968), a partir dos anos 60, apesar de aparentemente se oporem aos estudos deaculturao, estavam tambm preocupados em entender os mecanismos que

    possibilitariam a inevitvel integrao dos ndios na sociedade nacional,estudando as relaes entre sociedades indgenas e a sociedade nacional doponto de vista quase que exclusivamente sociolgico (Novaes, 1993).

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    Tais estudos de frico intertnica, tanto como os sobre aculturao,continuam at hoje a influenciar a arqueologia brasileira, que costuma

    problematizar, em alguns casos negar, o uso de fontes etno-histricas e

    etnogrficas no estudo arqueolgico, uma vez que estas sociedades indgenasj estariam desintegradas e descaracterizadas culturalmente.

    No entanto,

    no campo da cultura e nas relaes entre o poder e a cultura que associedades indgenas conseguem articular seus processos de resistncia sociedadeenvolvente (Novaes, 1993:46).

    Neste sentido, Vidal (1992) lembra que o contato intertnico intensopode resultar em estmulo ao desenvolvimento de manifestaes grficas porparte de sociedades indgenas, uma vez que estes povos necessitam mais doque nunca da afirmao de sua identidade cultural.

    Assim, no processo de contato entre sociedades, a cultura, enquantocapital simblico, permite resistir dominao e s imposies da sociedadedominante. A partir dela, os elementos impostos so continuamentereinterpretados. Ao colocar o foco de entendimento sobre a esfera cultural,

    pode-se entender que as diferenas entre a sociedade indgena e a sociedadeenvolvente no so suprimidas mas continuamente reformuladas (Novaes,1993:46).

    De qualquer forma, mudana, como j foi dito, um problemaemprico em arqueologia, e, The passage of time, however, merely makeschange possible: it does not cause change (Lewis-Williams, 1982:447).

    Fique claro, entretanto, que no se quer negar a variao e a dinmicaculturais quando se abordam os sistemas indgenas de representao visual.

    Enquanto expresso esttica grfica de identidades tnicas e culturais, estasmanifestaes visuais, como qualquer outro fenmeno cultural, so aquiencaradas como processo, no qual articulam-se estilo coletivo/repetio comcapacidade criadora individual/variao (Vidal & Lopes da Silva, 1992).

    Alis, o tema tradio e inovao tem longa histria na reflexoantropolgica, que busca a compreenso da relao entre passado e presente,

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    alm do entendimento dos mecanismos que possibilitam o exerccio dacriatividade, o que d lugar inovao e variao no plano da cultura.

    Lopes da Silva (1988), examinando as obras de Barth (1987), deYengoyan (1979; 1988) e de Sahlins (1985), sumariza alguns aspectos terico-metodolgicos desta reflexo, enquanto aponta o posicionamento destes trsautores, o que nos revela a complexidade do tema.

    Barth, por exemplo, constri sua explicao mais no nvel da interaosocial contextualizada (rituais de iniciao), preocupando-se em identificar osmecanismos capazes de explicar diferenas e especificidades culturais entre

    sociedades vizinhas e culturalmente prximas (comunidades Ok de NovaGuin). Ele prope uma antropologia comparativa do conhecimento, enquantoaponta os rituais de iniciao como o momento (evento) em que asconscincias humanas exercitam e expressam sua criatividade, possibilitando amudana atravs da consolidao de inovaes nas tradies de conhecimento.O autor prioriza as relaes indivduo e sociedade, conhecimento e ritual,etc., enfatizando a modificao do conhecimento vigente ao longo do tempoatravs da participao social nos rituais de iniciao. Apesar de nodesconsiderar as incorporaes de instituies de povos vizinhos (difuso),

    Barth demonstra que internamente a um grupo social a inovao se d atravsda relao entre especialista ritual e pblico (exibio pblica doconhecimento feita para e com a platia), e entre fantasias individuais e acervocultural subconsciente da coletividade, retomando, assim, a oposio clssicaentre indivduo e sociedade (Lopes da Silva, 1988).

    Na sua teoria da produo de subtradies, o autor introduz doisconceitos fundamentais sua anlise, o de tradio (veio conglomerado deidias e smbolos de diversas comunidades geneticamente relacionadas e que semantm em comunicao) e o de subtradio (as idias consideradas como

    verdadeiras pelos membros de uma comunidade local ou de um nico grupolingstico) (Barth, 1987:1, apudLopes da Silva, 1988:190). Ao comparar ascomunidades Ok da Nova Guin, Barth estabelece um continuum (assubtradies so transformaes umas das outras), priorizando a noo de

    processo na sua explicao (Lopes da Silva, 1988:191; 193).

    Desta forma, Barth procura a irrupo da desordem, da quebra com oinstitudo, da variao e das novas tradies, privilegiando as estruturas

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    performativas (segundo o conceito formulado por Sahlins15) como fatorbsico que movimenta os processos sociais que levam inovao e variaonas tradies culturais (Lopes da Silva, 1988:205: 197).

    J Yengoyan enfatiza a perspectiva das estruturas prescritivas, conformeo conceito formulado depois por Sahlins16, objetivando descobrir esferas dedeterminao e dominncia no tecido social (Lopes da Silva, 1988:205). Suaexplicao construda preferencialmente no nvel estrutural; sua teoria dascompresses (theory of constraints) salienta que h, em cada cultura, certasesferas pervasivas, dominantes, que se sobrepem s demais e do cultura asua especificidade e identidade. H uma relao dialtica entre compresso ecriatividade, sendo esta ltima responsvel pela inovao e variao (Lopes da

    Silva, 1988:193/94).

    Para Yengoyan, portanto, a relao entre estrutura e evento pensada

    como relao dialtica entre uma cosmologia moralizante e persistente (aestrutura) e os atributos comportamentais de uma sociedade (os eventos)(Yengoyan, 1979:328). Assim, a esfera da estrutura domina o comportamento, ouseja, os eventos so retrabalhados ou interpretados sob a tica da estrutura.Yengoyan procura, portanto, a reafirmao da ordem (Lopes da Silva, 1988:205).

    Seu modelo apoia-se sobre a sociedade que constrange as manifestaesindividuais: todo o processo social e artstico conduzido dentro de umquadro definido por constraints orgnicos e lgicos variveis (Yengoyan,1979:326, apud Lopes da Silva, 1988:202).

    Sahlins, por sua vez, v como possvel a variao cultural na medida emque seja atribudo sentido experincia, isto , graas capacidade de captar-se significativamente a experincia histrica (Lopes da Silva, 1988:194).Segundo Marcus (1988:71, apudLopes da Silva, 1988:205), na tese central de

    Sahlins as estruturas esto sempre sendo tanto reproduzidas quantotransformadas.

    Igualmente, a teoria da produo de subtradies de Barth incorpora aspreocupaes da teoria das compresses de Yengoyan uma vez em que aprimeira (Barth) tambm leva em conta as limitaes (constraints) impostas

    15Estruturas performativas: ...tendem a se assimilar s circunstncias contingentes, cf. Sahlins, 1985:XI eseguintes.16

    Estruturas prescritivas: ...asimilam as circunstncias a si mesmas; os acontecimentos so avaliados porsua semelhana ao sistema tal como constitudo, cf. Sahlins, 1985:XI e seguintes.

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    pela prxis e pelas convenes segundo as quais tal conhecimento aplicadode modo a fornecer um quadro preciso do uso conceitual que se faz demetforas e modelos pelo imaginrio (Barth, 1987:68-9, apud Lopes da

    Silva, 1988:206).

    Basicamente, uma mesma preocupao terica passa pelas reflexes deBarth, Yengoyan e Sahlins:

    Todos eles querem compreender como convivem e se articulam as limitaese as possibilidades da inovao cultural e do exerccio da criatividade na sociedadeou, ainda, como so produzidos e recriados os significados (Lopes da Silva,1988:194; 201).

    De qualquer forma, a relao entre passado e presente, estrutura eevento, mito e histria, tradio e inovao, tarefa complexa e desafianteque no mais se limita, como nos moldes funcionalistas, a pseudo-questescomo perda cultural, aculturao ou desintegrao cultural progressiva.

    Esta tese, portanto, pretende contribuir neste sentido, avanandoteoricamente em relao s abordagens processualistas/funcionalistas/empiristas em arqueologia.

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    3. O HORIZONTE CULTURAL PROTO-J MERIDIONAL

    ... estar na periferia no impede de se adquirir uma novaperspectiva. Como os etngrafos sabem desde o comeo destesculo, bastante comum aparecer uma nova sntese na periferia dadistribuio de idias mais velhas. Tom O. Miller Jr., 1978:33.

    3.1. As tradies locais ceramistas planlticas: continuidadehistrico-cultural e vinculao aos J meridionais

    Este captulo tem por objetivo refletir sobre a continuidade entre osregistros arqueolgico e etnogrfico no que se refere, respectivamente, s

    populaes pr-histricas, designadas arqueologicamente como portadoras deuma Tradio ceramista Taquara1, Itarar2ou Casa de Pedra3, e s sociedadesindgenas Kaingang e Xokleng, ligadas Famlia lingstica J do TroncoMacro-J.

    O estudo da continuidade entre o registro arqueolgico das trs ditastradies ceramistas locais do Planalto Sul-Brasileiro acima citadas (Taquara,Itarar e Casa de Pedra) e o registro etnogrfico das populaes J do sul doBrasil ainda no foi devidamente sistematizado, apesar das muitas refernciasimplcitas ou explcitas na bibliografia arqueolgica desde os anos 1960.

    Como exemplo das primeiras, veja-se Schmitz (1988:122 e 124):

    Apesar de haver uma srie de sugestes sobre como se ligavam as populaespr-coloniais com as etno-histricas, difcil encontrar indicadores fidedignos. (.....)Descendentes dessas populaes sobrevivem, hoje, em nmero bastante elevado, nasreservas da FUNAI e fazem parte integrante de nossa histria nacional.

    Como mostra das segundas referncias, mais explcitas, tem-se, comoexemplo, Becker (1988:136):

    1Geograficamente localizada nas matas com pinheiros e nos campos do planalto, nos territrios hoje conhecidoscomo Rio Grande do Sul e como sudoeste de Santa Catarina; nas encostas, nos terraos altos e morros dos valesdos rios, no territrio do hoje Rio Grande do Sul; junto s lagoas costeiras sul-rio-grandenses; e no litoral, entreos atuais municpios de Tramanda e Torres. As dataes radiocarbnicas para os stios arqueolgicos destaTradio percorrem um lapso temporal desde o sc. I at o sc. XIX, d.C.

    2 Localizada no planalto e litoral dos atuais estados de Santa Catarina, Paran e So Paulo.3 Localizada no planalto dos atuais estados de Santa Catarina e Paran.

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    Dados arqueolgicos recentes (...) nos levam a acreditar que estas populaes,

    hoje conhecidas como Kaingng, sejam os verdadeiros descendentes dos construtores dascasas subterrneas do Planalto do Rio Grande do Sul.

    Neste sentido, algumas evidncias desta continuidade costumam aparecerassistematicamente na bibliografia arqueolgica mais antiga que trata destas

    populaes ceramistas pr-histricas, sem, contudo, haver um trabalho analticoe interpretativo com maior aprofundamento no estudo das variveis que

    permitiriam corroborar a continuidade deste processo histrico-cultural.

    Trabalhos arqueolgicos mais recentes apontam (Noelli, s/d; F. Silva, s/d)e outros comprovam (Brochado, 1984; Reis, 1997 a e b) esta direo. Asimportantes reflexes e contribuies destes estudos foram aqui incorporadas.

    Desta forma, o principal objetivo deste captulo consiste em articular,sistematicamente, os dados arqueolgicos referentes cultura material/ expressoesttica e ordenao do espao das tradies ceramistas planlticas Proto-Jmeridionais, com os dados etno-histricos e etnolgicos dos J do sul, dispersosnuma bibliografia vasta e, algumas vezes, de difcil acesso4, com o fim derealizar, nos captulos posteriores, a articulao de todas estas informaes com aetnografia Kainganglevantada, de um modo particular, e com as sociedades J,

    de um modo geral, privilegiando o estudo e interpretao dos aspectossimblicos e cognitivos presentes nos artefatos e estruturas, tanto de origem pr-histrica como histrica.

    A literatura arqueolgica menciona trs tradies ceramistas locais comabrangncia no planalto e litoral de reas hoje correspondentes aos quatroestados do Brasil meridional: Taquara, no Rio Grande do Sul e sul de SantaCatarina; Itarar, no planalto e litoral de So Paulo, Paran e de Santa Catarina;e Casa de Pedra, no sul do Paran e planalto catarinense5.

    Os recipientes cermicos ligados a estas trs tradies locais planlticas

    so usualmente pensados como utilitrios e de pequeno tamanho, temperadoscom restos minerais e, geralmente, apresentam paredes pouco espessas (4 a 8mm,em mdia). Alm disto, existe uma semelhana quanto s formas (basicamente dedois gneros, um mais vertical e outro horizontal, com o corpo cnico, ovideou em meia-calota) e no que diz respeito decorao ou acabamento da

    4A obra de Noelli (org.), 1998, foi extremamente importante para a sistematizao destas informaes.5

    Estranhamente, alguns stios cermicos de tradio no-tupiguarani no atual Estado de So Paulo no soincludos entre as tradies planlticas. Muitos esto na parte central de So Paulo e foram estudados por MillerJr (1972), que as vinculou expressamente aos Kaingangpaulistas. Ver mais adiante.

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    superfcie (brunidura, ponteados, incisos, impresses de cestaria, de cordas, de

    carimbos e outros). As diferenas referem-se tcnica de produo, forma, aouso de antiplstico, ao tratamento de superfcie e cor da superfcie.

    Em sntese publicada por Schmitz (1988) tem-se uma viso de conjuntodestas trs tradies locais planlticas, registrando e analisando os materiaisreferentes aos stios e fases desta abrangente tradio, descrita do ponto devista estritamente tecnolgico.

    Outros autores, em trabalhos mais antigos, tambm discorreram a respeitodas semelhanas entre as tradies locais planlticas aqui comentadas, inclusive

    estendendo ainda mais sua abrangncia geogrfica.Segundo Becker e Schmitz (1970), os materiais cermicos Tipo

    Eldoradense de Menghin, provenientes de Misiones, Argentina, so semelhantesaos estudados por Chmyz (1967a, b; 1968a, b, c) nos estados do Paran e SantaCatarina e denominados de Tradio Itarar e Tradio Casa de Pedra.

    Chmyz (1968c) encontra semelhanas entre os materiais analisados noPlanalto Meridional (Vales dos rios Itarar e Paranapanema, entre So Paulo eParan) com os que ocorrem nas camadas superiores de sambaquis do litoral doParan e Santa Catarina, ou seja, especificamente nas baas de Antonina e

    Paranagu e na ilha de So Francisco (Sambaqui do Forte Marechal Luz,estudado por Alan Lyle Bryan, 1961 e 1977).

    O autor citado (Chmyz, 1968c) estabelece tambm comparaes esemelhanas entre os materiais planlticos e os de camadas superiores desambaquis com a cermica de dois stios litorneos catarinenses: a Base Area(Caiacanga-Mirim) e a Praia da Tapera (Silva, 1989).

    O caso de So Paulo um tanto paradoxal, pois apesar de Miller Jr. (1972)referir-se, desde esta data, a stios cermicos ligados s tradies Casa de Pedra

    e Itarar, vinculando-os, expressamente, aos Kaingang paulistas histricos,e apesar de Prous (1979) registrar a presena de casas subterrneas no territrioque corresponde ao atual Estado de So Paulo, a sntese de Schmitz (1988) sobreAs tradies ceramistas do Planalto Sul-brasileiro no faz referncia a estesstios ceramistas.

    Ao contrrio, a sntese de Brochado (1984) inclui estes stios paulistas, eser comentada mais adiante, quando for tratada a questo das origens destastradies planlticas.

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    Miller Jr. (1972), que, motivado pela semelhana entre a cermica

    arqueolgica no-tupiguarani de So Paulo e aquela dos ndios Kaingangpaulistas contemporneos, tambm estudou esta ltima, localizou na regiocentral do Estado de So Paulo, ao longo dos rios, principalmente do Aguape ouFeio, antigas aldeias histricas dos Kaingangcom cermica da tradio definidaarqueologicamente por Chmyz (1968 [c]), no Paran, como de Tradio Casade Pedra, afirmando, ainda, que Os stios pr-histricos nos municpios deParapu e Luclia apresentam misturas curiosas de cermica, incluindo astradies tupi-guarani, Casa de Pedra e Itarar (Chmyz, 1968 [c])6.

    Alm destes stios arqueolgicos, o autor cita vrios outros, sempreidentificando-os como de tradio Itarar ou Casa de Pedra, e ligando-os aosKaingangpaulistas. So eles: stio arqueolgico de Camaqu, perto da linha daestrada de ferro da Companhia Paulista (agora FEPASA), ao sul da estao deCamaqu; o stio arqueolgico de Icatu, Municpio de Brana; stiosarqueolgicos recentes na regio de Tup, onde os ndios [Kaingang] podiaminformar-nos quem morava no lugar e quando (Miller Jr., 1972).

    H. Baldus, em 194