Bar Bodega

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Bar Bodega: História de uma cobertura criminosa - José Paulo Lanyi Dirão: Eles eram pobres e o Dr. Joaquim é um homem rico. No caso do médico a história é contada invertida: a ação de um homem rico e inescrupoloso contra pessoas necessitadas e indefesas. Diante de todas as mentiras que foram ditas sobre este caso: Parem! Falta de escrúpulos tem limite! Ainda bem que o Dr. Joaquim Ribeiro Filho pôde contar com assistência jurídica frente ao linchamento midiático que, novamente, se reproduz com afinco e determinação. Infelizmente, muito tarde, os rapazes presos no caso Bar Bodega puderam contar com o bom senso e a coragem de um promotor de justiça e de um juiz. Detalhe: o caso é de 1996, o livro foi lançado em 2007 e a resenha é de 2008. BAR BODEGA História de uma cobertura criminosa Por José Paulo Lanyi em 25/3/2008 Bar Bodega – Um crime de imprensa, de Carlos Dorneles, 264 pp., Editora Globo, São Paulo, 2007; R$ 26,00 O jornalista Carlos Dorneles, repórter da TV Globo, escreveu uma obra que considero essencial para a compreensão de como se dá a relação entre veículos, profissionais de mídia e policiais, sob o clamor da sociedade. Bar Bodega – Um Crime de Imprensa (2007, Editora Globo) contém um relato potente o bastante para nos envergonhar a todos. É desses testemunhos que afiançariam, de uma vez por todas, o fracasso da decência na condição humana, não contivesse, também, os germes da inteligência, do espírito de justiça e da bravura que, embora isolados, caracterizam na plenitude algumas poucas personagens da sua narração. Eis um apanhado do que o leitor encontrará no livro. O crime Madrugada de 10 de agosto de 1996. Moema, zona sul de São Paulo. Homens armados rendem os funcionários da choperia e

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Bar Bodega: História de uma cobertura criminosa - José Paulo LanyiDirão: Eles eram pobres e o Dr. Joaquim é um homem rico. No caso do médico a história é contada invertida: a ação de um homem rico e inescrupoloso contra pessoas necessitadas e indefesas. Diante de todas as mentiras que foram ditas sobre este caso: Parem! Falta de escrúpulos tem limite! Ainda bem que o Dr. Joaquim Ribeiro Filho pôde contar com assistência jurídica frente ao linchamento midiático que, novamente, se reproduz com afinco e determinação. Infelizmente, muito tarde, os rapazes presos no caso Bar Bodega puderam contar com o bom senso e a coragem de um promotor de justiça e de um juiz.Detalhe: o caso é de 1996, o livro foi lançado em 2007 e a resenha é de 2008.

BAR BODEGAHistória de uma cobertura criminosa

Por José Paulo Lanyi em 25/3/2008Bar Bodega – Um crime de imprensa, de Carlos Dorneles, 264 pp., Editora Globo, São Paulo, 2007; R$ 26,00

O jornalista Carlos Dorneles, repórter da TV Globo, escreveu uma obra que considero essencial para a compreensão de como se dá a relação entre veículos, profissionais de mídia e policiais, sob o clamor da sociedade. Bar Bodega – Um Crime de Imprensa (2007, Editora Globo) contém um relato potente o bastante para nos envergonhar a todos. É desses testemunhos que afiançariam, de uma vez por todas, o fracasso da decência na condição humana, não contivesse, também, os germes da inteligência, do espírito de justiça e da bravura que, embora isolados, caracterizam na plenitude algumas poucas personagens da sua narração. Eis um apanhado do que o leitor encontrará no livro.

O crime

Madrugada de 10 de agosto de 1996. Moema, zona sul de São Paulo. Homens armados rendem os funcionários da choperia e anunciam o assalto. Fogem do local minutos depois, deixando para trás o terror, muitas dúvidas e o rastilho de uma série de novos crimes que seriam cometidos em nome da paz e dos bons costumes – tudo sob o patrocínio de um Estado usurpador do direito e de uma mídia acumpliciada pela ofensa aos estatutos legais, como o imperativo do princípio do contraditório, e – mais importante, por inspirar e, em última análise, totalizar– pela indiferença à verdade irrefutável dos fatos.

O duplo assassinato, do dentista José Renato Tahan, de 26 anos, e da estudante de odontologia Adriana Ciola, de 23, a par do constrangimento físico e psicológico sofrido pelas demais vítimas que estavam no lugar, forneceria uma senha para o vale-tudo policial e uma contra-senha para a insensatez desenfreada da mídia. Passes-livres escritos em caracteres dourados, dadas algumas peculiaridades: o crime fora praticado em um bairro nobre, contra pessoas de classe média, em um ambiente freqüentado pela elite paulistana. Havia outro ingrediente: a choperia pertencia a três atores famosos: Luiz

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Gustavo e os irmãos Tato e Cássio Gabus Mendes.

Mídia algemada ao Estado

A sociedade precisava responder. Não a dos confins da periferia, mas aquela que, esquecida de tudo o mais – como a violência rotineiramente cometida contra aqueles que não lhe dizem respeito –, não poderia agora aceitar nem silenciar sobre o que, em outros extratos sociais, pode até não ser admissível, mas é, na melhor das hipóteses, indigno da sua atenção.

O Estado e a mídia algemaram-se e, sôfregos, puseram-se a caçar os autores, quaisquer que fossem eles e ainda que não o fossem, em vez de investigar (em sua estrita acepção) a autoria do crime. Dias depois, nove suspeitos foram presos e anunciados pela polícia como os responsáveis pelos delitos.Manchetes vulcânicas, comentários vazios e enviesados, histeria dos detentores da verdade policialesca: vários jornalistas cumpriram à risca a parte que lhes coube no que, com o tempo, soube-se ser a perpetração de uma das maiores injustiças (conhecidas) da história do Brasil. [mais uma]

Um raro cumpridor do dever

Deveriam ter seguido o exemplo de um promotor de justiça corajoso e – absurdamente raro – cumpridor dos seus deveres. Eduardo Araújo da Silva examinou, cuidadosamente, os depoimentos dos acusados, que diziam ter confessado sob tortura cometida por policiais civis. Pôs-se, então, a investigar, em paralelo com policiais do Serviço Reservado da PM. [ELES FORAM OUVIDOS PELO PROMOTOR!]Concluiu, então, pela veracidade das denúncias: agentes do Estado medieval haviam, de fato, imposto toda sorte de sevícias a cidadãos inocentes que, intimidados pela dor e pelo abandono, acabariam por inventar uma participação no episódio. O promotor se baseara, entre vários outros elementos, no trabalho técnico do perito criminal Francisco La Regina, responsável pela reconstituição e cuja análise demonstrava que as peças (como os próprios acusados presos) simplesmente não se encaixavam nos fatos.

A mídia omitiu-se e, longe de apurar as queixas, preferiu fazer coro com a fraseologia policial, afiançando a tese discutível de que todo bandido sempre diz que é inocente e que só falou porque apanhou. Ao invés de pressionar pela apuração das denúncias de tortura, maus jornalistas fizeram um cerco de proteção ao delegado responsável pelo inquérito, João Lopes Filho, e atearam fogo à indignação de uma classe média que à justiça preferiu a vingança, fosse contra quem fosse.

"Ação desvairada da mídia"

Tal simplificação não encontraria eco no Poder Judiciário. Com base no relatório do promotor, que pedia a libertação dos presos por falta de provas, o juiz Francisco Galvão Bruno mandaria soltar sete dos nove acusados (dos dois que permaneceram presos, o menor Cléverson Almeida de Sá estava sendo

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processado por um outro assalto e Marcelo Nunes Fernandes tinha pena por roubo a cumprir): Benedito Dias de Sousa, Jailson Ribeiro dos Anjos, Luciano Francisco Jorge, Marcelo da Silva, Natal Francisco Bento dos Santos, Valmir da Silva e Valmir Vieira Martins recuperaram, enfim, a liberdade. Não é difícil, contudo, imaginar o tamanho e a natureza do impacto pessoal, familiar e social da injustiça na vida de cada um deles, dali em diante.

Em março de 1997, o juiz José Ernesto de Mattos Lourenço condenaria quatro dos seis novos réus. Na sentença, lê-se este trecho, sobre o tratamento dispensado pela mídia aos nove acusados anteriores:

"Seria a imprensa também a provocadora da ação desvairada que vitimou jovens inocentes que injustamente foram presos, sem qualquer interferência, é verdade, quanto aos sofrimentos experimentados? A resposta é sim. Arvorou-se uma parte da imprensa em defensora da sociedade e exerceu uma pressão insuportável e incompatível com o bom senso. De há muito tempo a imprensa afastou-se da função de noticiar o fato e assumiu ares de julgadora, na ânsia desesperada de noticiar escândalos e explorar a miséria humana, sem se dar conta dos seus limites. Passaram a acusar, julgar e penalizar com execração pública. A lição ainda não serviu. Diariamente continuam explorando as notícias na corrida louca da audiência que, na verdade, tem por finalidade o lucro, o dinheiro dos patrocinadores que não têm qualquer escrúpulo em mostrar seus produtos, à custa da degradação..."

A obra de Dorneles é bem escrita, o texto é informal, preciso e elegante. A narrativa é conduzida pelos desencontros da vida de Cléverson, o menor infrator acusado de outros crimes e ponto de partida para a teia sinistra que se formaria com a detenção de outros rapazes que seriam dados como "culpados" pela polícia.

Há uma ressalva, porém, à fórmula da narração. Ainda que amparado pelas decisões da Justiça, pela coincidência e pela consistência dos depoimentos daqueles que foram considerados injustiçados, Dorneles perigosamente abraça os relatos em sua literalidade, contando os fatos (como se deram as torturas, por exemplo) em minúcias, como se o próprio autor houvesse testemunhado tudo, in loco. Trata-se de um risco desnecessário. Sempre haverá a possibilidade de uma incorreção factual, motivada por diversos fatores, como os exageros, as omissões da lembrança, as "travas" e, o que não é de duvidar em tal atmosfera, distorções que busquem aprofundar o abismo já existente entre a vítima e o verdugo, por impulsos de compensação psicológica.

Afora esse parêntese, que pode indicar a necessidade de uma maior dose de prudência ao leitor, Bar Bodega – Um Crime de Imprensa é uma obra fundamental, um lembrete e um alerta para todos os agentes da cobertura policial: os acusados, as vítimas, os familiares, os policiais, os advogados de defesa, os promotores, os juízes, os jornalistas, todos devem tê-la como referência. E, claro, os donos dos veículos, também.

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Outros trechos

"A imprensa continuava publicando informações contraditórias, dia após dia. Depois da reconstituição, voltou a afirmar que o assassino do dentista era Valmir da Silva, e não mais Marcelo Nunes Ferreira, o `Marcelo Negão´. Ninguém parecia se importar nem com o fato de que o tão procurado Marcelo Negão, líder do caso Bodega, quando foi encontrado, era branco. E, obviamente, negava ter o apelido de Negão. Se a polícia dizia que era ele, assim era;"

"Uma exceção foi o jornalista Luis Nassif. Em artigos na Folha de S.Paulo ou em comentários na Rede Bandeirantes, ele criticou duramente a cobertura jornalística do caso. Ficou falando sozinho;"

[Depois da detenção dos novos acusados]

"A notícia da prisão emudeceu muita gente, além da imprensa. O secretário de Segurança, José Afonso da Silva, não quis fazer comentários. O delegado João Lopes Filho não foi achado. No dia seguinte, disse que reconhecia que os presos de agora eram os verdadeiros assaltantes do Bodega. Mas negou as torturas mais uma vez. `Não sei o que levou aqueles homens a confessar com tanta riqueza de detalhes.´ A líder do movimento `Reage São Paulo´, Albertina Dias Café e Alves, não quis responder perguntas, fez apenas uma rápida declaração: `Ainda estamos cautelosos porque da primeira vez também existiram confissões´. O pai de Adriana, Carlos Ciola, esteve na delegacia para ver os acusados. Na saída, um comentário rápido: `Não sei o que dizer, apenas quero ver os verdadeiros culpados na cadeia´. O caso Bodega desapareceria rapidamente das manchetes. A prisão dos verdadeiros culpados era um atestado revelador demais do tipo de comportamento que a imprensa adota em situações como essa, quando os acusados são pobres, sem assistência jurídica, sem nenhuma possibilidade de defesa."

O caso do bar Bodega

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22/01/2008 na edição 469

 [do release da editora]Livro-reportagem sobre um crime que mobilizou a opinião pública brasileira, Bar Bodega mostra como a violência e a barbaridade podem ser amplificadas pelo arbítrio das autoridades e pela ação negligente e sensacionalista da imprensa. A partir de um levantamento minucioso (entrevistas com os envolvidos nas investigações, exames de laudos processuais), o jornalista Carlos Dorneles reconstitui as circunstâncias do assassinato de dois jovens de classe média alta num bar de São Paulo, na madrugada do dia 10 de agosto de 1996, e do escândalo jurídico que o sucedeu.Naquela noite, um bando de homens armados entrou no bar Bodega, no bairro de Moema, iniciando um assalto que teria como desfecho os dois tiros a queima-roupa contra o dentista José Renato Tahan, de 26 anos (que entrara desavisadamente na choperia), e a morte da estudante de odontologia Adriana Ciola, de 23 anos (que estava no Bodega desde o início do assalto e foi alvejada de maneira gratuita no momento em que os assassinos fugiam).O fato de o crime ter ocorrido num bar freqüentado pela elite paulistana, de propriedade de atores conhecidos (Luis Gustavo e os irmãos Tato e Cássio Gabus Mendes), logo levou o caso para as primeiras páginas dos jornais. As manchetes falavam em pânico coletivo e epidemia de violência; os editoriais contestavam os defensores dos direitos humanos, descrevendo seus argumentos como catequese ideológica.Paralelamente, os familiares de Adriana Ciola lideraram a formação do movimento Reage São Paulo, com apoio da Fiesp, da Federação do Comércio e personalidades como Hebe Camargo, o rabino Henry Sobel e o presidente da Força Sindical, Luiz Antonio Medeiros, promovendo passeatas, manifestações no Ibirapuera e protestos em frente ao Palácio dos Bandeirantes.Nesse clima, com a polícia pressionada pela opinião pública, começam as primeiras prisões de suspeitos, imediatamente identificados como culpados por boa parte da imprensa: enquanto um jornal da capital anuncia "Presos assassinos do Bar Bodega", uma colunista de outro grande diário escreve que os assaltantes são animais que matam por esporte, sentenciando: "São veneno sem antídoto, nenhum presídio recuperaria répteis dessa natureza. A vontade de qualquer pessoa normal é enfiar o cano do revólver na boca dessa sub-raça e mandar ver".Papel da imprensaDentre os nove detidos estava Cléverson, menor infrator envolvido com drogas, acusado de assassinato e com passagem pela Febem. E é por meio da trajetória desse jovem delinqüente, atormentado e em busca de reconciliação com a vida familiar, que Carlos Dorneles consegue dar dramaticidade ao livro, sem prejuízo do rigor documental. Repórter da TV Globo desde 1983, o jornalista gaúcho acompanha nuances da biografia de Cléverson e mostra não apenas como a exclusão pode levar à criminalidade – mas como a condição de marginal pode levar à acusação por crimes não cometidos e à supressão dos direitos jurídicos mais elementares. Mostra, ainda, como o caso Bodega arrebatou as vidas de outros rapazes da periferia paulistana, jovens trabalhadores inocentes que, em meio a acus ações e ao terror policial, tornam-se também delatores, alimentando a violência em espiral.

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O clímax do episódio ocorre quando, alguns meses depois da detenção dos suspeitos e de sua execração pública, a verdade começa a vir à tona: sete dos nove presos são libertados por insuficiência de provas, constatando-se que confissões haviam sido obtidas sob tortura e com a conivência de uma população sedenta de vingança. Esta verdade, porém, seria reconhecida de maneira discreta pela imprensa, que omitiu seu próprio papel na legitimação do disparate jurídico.Quando finalmente são identificados e processados os autores dos assassinatos, verifica-se que "nas matérias telegráficas que a imprensa publicou, nenhum comentário sobre o fato de que os acusados anteriores eram negros ou mulatos, e não brancos como os verdadeiros assaltantes". Ou seja, se num primeiro momento a polícia respondera aos apelos das manchetes, a imprensa foi pautada pela polícia e pelo preconceito vigente na sociedade brasileira.Como observa Dorneles, essa mácula na história do nosso jornalismo foi imediatamente identificada pelo juiz que proferiu a sentença (reproduzida no livro), mas suas referências à imprensa jamais foram publicadas ou sequer citadas pelos veículos de comunicação. Da mesma maneira, os jornais não acompanharam o destino dos acusados após o caso do bar Bodega – e por isso não souberam que alguns deles se sentem mais indefesos diante da imprensa do que da polícia, ou que, após atingir a maioridade, Cléverson voltara para a casa do pai e havia conseguido emprego, mas foi assassinado uma semana antes de completar 20 anos. Um crime que nunca foi investigado pela polícia e nunca foi manchete de jornal – mas que Carlos Dorneles nos apresenta como o desfecho de um episódio imprescindível para se analisar o papel da imprensa.O autorCarlos Dorneles nasceu em Cachoeira do Sul (RS) em 1954. É repórter da TV Globo desde 1983, após trabalhar na Folha da Manhã, no Zero Hora e na RBS-TV, em Porto Alegre. Foi correspondente internacional em Londres (1988-1990) e Nova York (1991-1992). É autor de Deus é inocente – A imprensa, não, publicado pela Editora Globo e classificado em terceiro lugar na categoria Reportagem e Biografia do Prêmio Jabuti 2003.

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BAR BODEGA – Um crime de imprensa - comentários*

*Valter Pereira Gomes, Subtenente do Corpo de Bombeiros Militar de Pernambuco, Bacharel em Direito, Pós Graduando em Gestão e Políticas em Segurança Pública, Instrutor de Legislação Militar na Academia Integrada de Defesa Social de PE, Conciliador do Tribunal de Justiça de Pernambuco.Recife, fevereiro, 2009.

INTRODUÇÃO.

O objetivo desse artigo é analisar de que forma o crime do bar Bodega, ocorrido no dia 10 de agosto de 1996, no interior de uma choperia localizada em Moema, bairro nobre da cidade de São Paulo foi visto, apurado, noticiado e investigado pela sociedade, polícias civil e militar, imprensa e Ministério Público.

Focamos o estudo, além do livro “Bar Bodega – um crime de imprensa”1, também em depoimentos do próprio escritor, que também é jornalista, à Globo Livros, em 29 de janeiro de 20082.

O crime chocou o País, pela futilidade dos criminosos ao assassinarem duas pessoas inocentes durante o assalto ao Bar Bodega, bem como, pela maneira em que se deu a investigação do caso pela Polícia Judiciária – Polícia Civil do Estado de São Paulo, contrariando todas as garantias constitucionais prevista à pessoa humana, que no caso, 9(nove) jovens, entre eles alguns menores, os quais foram alvos de confissões brutais, “adquiridas” sob torturas, espancamentos, choques elétricos, e toda forma de agressão.

PROBLEMÁTICA.

A Constituição Republicana de 1988 conferiu à Polícia Civil, a apuração de infrações penais, conforme se vê no art. 144, § 4º. Também, a Carta Magna assegurou como um direito fundamental, previsto no art. 5º, III, a vedação de tortura, tratamento desumano ou degradante.

De certo, o processo legal somente poderá ser considerado regular se estiver sob estrita observância da lei; logo, caso haja alguma prova no inquérito ou mesmo nos autos processuais que tenham sido obtidas por meios ilegais, a exemplo da tortura dos indiciados -réus, estarão viciando o processo, já que no mesmo dispositivo citado acima, verifica-se o seguinte no inciso LVI: “ são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

A Carta Magna, em seu art. 129, prevê ainda que compete ao Ministério Público, entre outras, a promoção privativa da ação penal pública e o controle externo da atividade policial. Pois bem, o crime aqui, Latrocínio, é de natureza pública incondicionada, logo privativo do Parquet. Sendo assim, o Promotor de Justiça ao receber os autos do Inquérito Policial fará uma análise dos fatos,

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do(s) indiciado(s), da prova, do nexo causal, em síntese: da autoria e materialidade.

O caso relatado no livro-documentário serve tão somente para nossa reflexão, pois inúmeros casos idênticos ainda hoje acontecem sem que ganhem a notoriedade como se verifica no “Bar Bodega”. Diversos Cléverson Almeida de Sá3 são vistos nas periferias dos centros urbanos - jovens pobres, sem qualificação e excluídos, muitas vezes indiciados por crimes que nunca praticaram. São até obrigados a assinarem o termo de confissão, sob pena de serem torturados.

Um fator relevante que ficou bem esclarecido foi a influência da mídia, todos nós sabemos que a imprensa é um “poder” paralelo ao Estado. Os veículos de comunicação têm sido muitas vezes usados com desvio de sua finalidade ou para atender interesses de grupos econômicos.

Ficou evidente que no ano de 1996 a cobertura dada ao crime no bar bodega, de propriedade dos atores globais, Luiz Gustavo e os irmãos Tato e Cássio Gabus Mendes, teve repercussões nacionais. Além do mais, as vítimas fatais, Adriana Ciola, 23 anos, estudante de odontologia; e de José Renato Tahan, 26 anos, dentista, pertenciam a uma classe elitizada da sociedade paulista. Logo, a Polícia Judiciária – Polícia Civil do Estado de São Paulo “deveria” identificar o mais rápido possível os autores do crime.

Para tanto, não mediu esforços e tratou logo de “identificar” aquele que seria o “bode espiatório” da história, o autor dos disparos, o homicida cruel e bárbaro que a sociedade paulista clamava em conhecer.

Nisso, figurou como o principal autor do fato, Cléverson, um jovem da periferia paulista, órfão de mãe – que a viu ser morta pelo ex-companheiro, e que após isso começo a envolver-se em pequenos furtos, roubos e consumo de drogas.

Sob tortura Cléverson é obrigado a revelar um crime que não cometeu, fazer reconstituições que não se ajustavam, denunciar pessoas que mal conhecia, enfim, saciar o clamor social. E, em 15 dias após o evento criminoso, a polícia já apresentava àqueles que seriam os responsáveis pela morte das vítimas: cinco jovens negros e pobres, moradores da periferia da região da Grande São Paulo .

Mas, em meio a tantas injustiças, por parte de agentes, de Delegados, da própria imprensa, surge a figura do jovem Promotor, à época, Dr. Eduardo Araújo da Silva, que mudou todo o rumo da história. Já que as autoridades policiais davam o caso por encerrado e afirmavam piamente que os criminosos seriam Cléverson e seus 8(oito) comparsas.

De imediato o Promotor já questionou a quantidade de indiciados, 9(nove), quando na verdade as vítimas e funcionários do bar bodega diziam ter sido em torno de 5(cinco). Outro ponto crucial foi o não reconhecimento dos indiciados pelas vítimas. Além também das graves denúncias de parentes dos presos ao Promotor sobre torturas.

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Com muita cautela, o Promotor em seu Parecer resolveu não denunciar os indiciados, pelo contrário, opinou pelas suas liberdades, além de requisitar a apuração das infrações cometidas pelos policiais civis quanto a tortura praticada. Obviamente foi “linchado” pela imprensa, pela Polícia Civil e pela Sociedade Paulista.

Após novas diligências pela Polícia Civil e Serviço Reservado da Polícia Militar enfim conseguem prender os verdadeiros criminosos, ao todo 5(cinco): Sandro Márcio Olímpio, Silvanildo de Oliveira Silva, Francisco Ferreira de Souza, Sebatião Alves Vital, Zeli Salete Vasco.

Todavia, não houve referências ao trabalho imparcial e justo do Promotor, nem tampouco quanto ao biotipo dos novos indiciados, todos brancos, diferentes dos inocentados, que eram em sua maioria mulatos e pobres.

CONCLUSÃO.

A concepção que chegamos, e outra não poderia ser, é que a imprensa muitas vezes dita “as regras do jogo”. Coloca alguém no poder, como também destitui. “Incrimina” inocentes com rótulos que dificilmente serão apagados da vida privada do indiciado.

Recentemente, temos visto ampla divulgação de pessoas públicas algemadas, quase sempre, por excesso das autoridades policiais, em todas as esferas, tão somente para dar reconhecimento e notoriedade a algumas operações policiais. É fato. É real.

Milita-se em favor da Imprensa a liberdade de expressão e de atividade profissional, todavia esses princípios devem ser moderados e analisados previamente suas repercussões buscando evitar injustiças como àquelas feitas no ano de 1996 aos jovens da periferia paulista.

Precisa-se também de profissionais como o Promotor Eduardo Araújo para que ousem em não conformar-sem com o contido em peças inquisitórias, mas que cumpram fielmente suas funções primordiais: promover a justiça.

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Bar bodega e a imprensa

Seguinte: o texto que segue eu escrevi para ser publicado em um site que abre espaço para a opinião dos leitores, o Direto da redação, comandando por Eliakin Araujo, que já foi âncora de vários telejornais. Pois bem: até agora o texto não foi publicado, e esse blog está num silêncio incômodo para quem prometia ser um blogueiro mais ativo. Portanto, resolvi colocar o texto por aqui mesmo, e, caso o pessoal do Direto da redação publique este artigo, eu aviso por essas bandas.O livro “Bar bodega. Um crime de imprensa”, do repórter da TV Globo Carlos Dorneles, levanta uma série de questões sobre a imprensa, o sistema judiciário brasileiro e até mesmo sobre alguns episódios do noticiário recente. Primeiro, vale recordar o que foi o caso “Bar Bodega”.Em Agosto de 1996, dois jovens de classe média paulistana foram mortos num assalto no referido bar. O caso gerou imediata comoção popular e midiática. É bom lembrar que estavámos, como hoje, em plena campanha para prefeitura de São Paulo e o assunto segurança pública era o tema de então. Na época, o primeiro colocado das pesquisas, Celso Pitta, afilhado do hoje candidato Paulo Maluf-que dizia aos seus eleitores que se Pitta não fosse um bom prefeito nunca mais deveriamos votar nele-, usava um discurso alicerçado no medo da população e no ataque aos defensores dos direitos humanos.O crime no Bodega colocou mais lenha na fogueira. A imprensa passou a noticiar todo crime, até aqueles ocorridos no interior, que não costumavam ter destaque no noticiário. A família de uma das vítimas criou o movimento “Reage SP”, uma espécie de antecessor do “Cansei”. Logo, a polícia apresenta os acusados como reús confessos. A mídia aceita passivamente a versão oficial sem a preocupação de investigar, justificando o subtítulo do livro de Dorneles: “um crime de imprensa”. A confissão dos jovens, todos eles inocentes, foi conseguida através de tortura. Se não fosse a interferência de um corajoso promotor público, eles, provavelmente, estariam até hoje na prisão.A atuação da imprensa nesse caso é ainda mais vergonhosa quando lembramos que, dois anos antes, em 1994, a mídia também arruinou com a vida dos donos da Escola Base, acusando-os de abusar sexualmente de menores. O caso Bodega, ao meu ver, é ainda pior. Manchetes sensacionalistas e linchamento público deram o tom. A colunista da Folha, Bárbara Gancia, escreveu essa pérola de humanidade sobre os então acusados pelo crime no Bodega: “São veneno sem antídoto, nenhum presídio recuperaria répteis dessa natureza. A vontade de qualquer pessoa normal é enfiar um cano de revólver na boca dessa sub-raça e mandar ver” Quando o promotor soltou os inocentes, a mídia o linchou publicamente. Mas foi obrigada a engolir em seco quando os verdadeiros culpados pelo crime foram presos. Assim como no caso Escola Base, a vida dos jovens foi irremediavelmente prejudicada.Corta para 2008. Operação Satiagraha. Daniel Dantas e outros figurões são algemados e presos. Surgem os indignados com a atitude da polícia. Fala-se até de “espetacularização” e excessos cometidos pela PF. Como um milagre, o uso de algemas passou a incomodar, tanto que o Supremo baixou uma medida limitando o seu uso. É inevitável a comparação e a conclusão: a tortura infringida aos jovens, pobre e negros, ficou impune e, ao que eu saiba, não mereceu nenhum protesto do Supremo. A algema no banqueiro, por sua vez, é um grave delito. A balança da justiça está desregulada e sempre pesa para o lado mais fraco.Voltemos para o livro de Dorneles. Diferente do que alguns possam imaginar, a obra não deve ser leitura obrigatória apenas para jornalistas ou estudantes de comunicação. O público em geral também deveria lê-lo pois é uma importante lição sobre a aceitação, passiva, do noticiário da imprensa. Para formar o espírito crítico, é preciso conhecer como é produzida a notícia. “Bar bodega. Um crime de imprensa” é uma excelente oportunidade nesse sentido. E um alerta para que episódios como esse não aconteçam de novo.

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DIREITOS HUMANOS

Investigação leva aos verdadeiros culpados do crime do bar BodegaEm agosto de 1996, um crime estarreceu a cidade de São Paulo. O cenário foi o bar Bodega, em Moema, de propriedade dos atores da TV Globo Luiz Gustavo, Tato e Cássio Gabus Mendes. Foi ali, num ambiente de classe média alta, que os jovens José Renato Pousada e Adriana Ciola morreram por tiros desferidos à queima-roupa efetuados por assaltantes que invadiram o local. Um terceiro jovem, Milton Bertoline, também foi atingido, mas sobreviveu aos ferimentos.Após recolher dinheiro e cheques do caixa e pertences dos clientes do bar, os 4 ladrões fugiram. A cidade vivia um clima de total insegurança em plena época pré-eleitoral, que atingia também bairros da classe média paulistana. Uma semana após o crime no Bodega, um rapaz foi morto em um assalto em Pinheiros, também na zona sul da capital.O triste cenário de uma cidade acuada pela violência provocou reação de todos. Políticos interessados na eleição que se aproximava tiravam proveito dos fatos para bradar suas propostas antiviolência; a imprensa repercutia em detalhes a história de um crime com elementos de filme de cinema; e a população, revoltada, clamava por justiça.A tia da jovem assassinada criou um movimento antiviolência chamado de “Reage São Paulo”, que contou com a adesão de figuras públicas.Pressionada a dar uma satisfação urgente para a sociedade, a Polícia Civil, responsável pelas investigações, em quinze dias apresentou um suspeito, o então menor de idade Cleverson, pego roubando o carro de um vereador juntamente com seu comparsa, Natal.Um carcereiro achou que o rapaz era muito parecido com o retrato falado de um dos assaltantes do Bar Bodega. Cleverson teria confessado o crime “espontaneamente”, acusando Natal e mais três vizinhos de cúmplices. Os cinco rapazes foram presos e o caso passou, sem maiores explicações, do 53º DP para o 15º DP, onde assumiu as investigações o delegado João Lopes Filho.As vítimas e testemunhas não reconheceram com precisão os suspeitos, mas se sentiam pressionadas a fazê-lo. Diziam que os assaltantes eram brancos e mais velhos, enquanto os rapazes presos eram morenos ou pardos e mais jovens. O segurança do Bar Bodega, Vivaldo, reconheceu o suspeito Natal não como criminoso, mas como seu ex-vizinho na Baixada do Glicério, o que o levou a ser indiciado como cúmplice do crime.Vivaldo livrou-se da prisão por não ter sido reconhecido por ninguém. Nesse meio tempo, os presos foram apresentados à imprensa, como era praxe na época, algemados e com placas penduradas no corpo, expostos às perguntas dos repórteres e flashes dos fotógrafos.Mesmo com essas prisões, as investigações continuaram, pois era preciso apreender os bens subtraídos e a arma do crime. Em pouco tempo, mais 4 pessoas foram presas, totalizando, assim, 9 “culpados”.O segurança Vivaldo continuou revoltado, pois nenhum dos presos se assemelhava aos quatro assaltantes que estiveram no Bodega naquela noite fatídica. E para esclarecer a verdade do caso, resolveu pedir a um colega seu, policial do serviço reservado da PM - que investiga crimes envolvendo policiais - que investigasse o latrocínio.

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A investigação paralela levou o caso para um novo rumo. Descobriu-se que uma quadrilha que agia no centro de São Paulo era oriunda da Baixada do Glicério, de onde moradores locais chegaram a ligar para a Polícia Civil denunciando os verdadeiros envolvidos... Em vão.As informações da investigação extra-oficial foram levadas ao Ministério Público do Estado de São Paulo e chegaram às mãos de um Promotor de Justiça, que então se reuniu com os policiais do reservado e testemunhas do caso, em sua maioria funcionários do Bar Bodega, que temiam por suas vidas, já que os autores estavam em liberdade e poderiam matá-los como “queima de arquivo”. Também estavam revoltados com o tratamento policial dispensado ao segurança Vivaldo.Diante de tantas contradições, o promotor iniciou sua própria investigação, que incluiu encontros com o perito criminal do caso e outras testemunhas, colhendo novas informações sobre a quadrilha que atuava na região central de São Paulo. Enquanto isso, a Polícia Civil concluiu o inquérito e apresentou-o ao MP, que tinha naquele momento três alternativas: aceitar os resultados das investigações da Polícia Civil e oferecer a denúncia, arquivar o inquérito ou pedir que a investigação continuasse, com a soltura dos nove suspeitos – e esta, apesar de ser a mais espinhosa, face à enorme pressão da opinião pública, foi a opção escolhida por parecer a correta diante de todos os elementos que se apresentavam.A surpresa na decisão do promotor originou uma entrevista coletiva para tentar esclarecer a uma imprensa atônita os motivos que levaram o Ministério Público a pedir a soltura dos supostos culpados.As investigações oficiais do caso, a pedido do Ministério Público, passaram para o DHPP – Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa – da Polícia Civil, reconhecido como um órgão de extrema competência técnica, que foi atrás dos indícios das investigações do reservado da PM e do promotor. Em pouco tempo, os reais culpados foram presos e os bens subtraídos no assalto, recuperados.

Dos seis envolvidos, cinco foram condenados em 2007 e estão cumprindo pena. O outro fugiu.

O caso se destacou nacionalmente como símbolo de respeito aos Direitos Humanos e deu origem ao livro “Crime de Imprensa”, do jornalista Carlos Dorneles.