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    BARBOSA LIMA SOBRINHO

    Quarto ocupante da Cadeira 6, eleito em 28 de abril de 1937, na sucessão de Goulart de

    Andrade e recebido em 31 de janeiro de 1938 pelo Acadêmico Múcio Leão. Recebeu osAcadêmicos Antônio Carneiro Leão e José Honório Rodrigues.Cadeira:

    6

    Posição:

    4

    Antecedido por:

    Goulart de Andrade

    Sucedido por:

    Raymundo FaoroData de nascimento:

    22 de janeiro de 1897

    Naturalidade:

    Recife - PEBrasil

    Data de eleição:

    29 de abril de 1937

    Data de posse:

    31 de janeiro de 1938

    Acadêmico que o recebeu:

    Múcio Leão

    Data de falecimento:

    16 de julho de 2000

    BIOGRAFIA 

    Quarto ocupante da Cadeira 6, eleito em 28 de abril de 1937, na sucessão de Goulart deAndrade e recebido em 31 de janeiro de 1938 pelo Acadêmico Múcio Leão. Recebeu os

    Acadêmicos Antônio Carneiro Leão e José Honório Rodrigues.

    Barbosa Lima Sobrinho (Alexandre José B. L. S.), advogado, jornalista, ensaísta,historiador, professor e político, nasceu em Recife, PE, em 22 de janeiro de 1897 e faleceuno Rio de Janeiro, aos 103 anos de idade, no dia 16 de julho de 2000.

    Filho de Francisco Cintra Lima e de d. Joana de Jesus Cintra Barbosa Lima, estudou o

    curso primário na Capital Federal, concluindo-o em Recife. Na mesma cidade, iniciou osecundário no Colégio Salesiano, terminando-o no Instituto Ginasial Pernambucano. Em

    http://www.academia.org.br/academicos/goulart-de-andradehttp://www.academia.org.br/academicos/raymundo-faorohttp://www.academia.org.br/academicos/mucio-leaohttp://www.academia.org.br/academicos/raymundo-faorohttp://www.academia.org.br/academicos/mucio-leaohttp://www.academia.org.br/academicos/goulart-de-andrade

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    1913, matriculou-se na Faculdade de Direito do Recife, onde colou grau de bacharel emCiências Jurídicas e Sociais em 1917. Foi adjunto de promotor do Recife, em 1917, eadvogado no período imediato ao de sua formatura. Colaborou na imprensa

    pernambucana, no Diário de Pernambuco, no Jornal Pequeno e, principalmente, no Jornaldo Recife, onde escreveu a crônica dos domingos, de outubro de 1919 a abril de 1921.

    Colaborou ainda na Revista Americana, Revista de Direito, Jornal do Commercio, do Riode Janeiro, no Correio do Povo, de Porto Alegre, e na Gazeta, de São Paulo.

    Mudando-se para o Rio de Janeiro, dedicou-se ao jornalismo. Trabalhou no Jornal doBrasil a partir de abril de 1921, a princípio como noticiarista, mais tarde como redatorpolítico e, a partir de 1924, como redator principal. Escreveu, até a data de sua morte, em julho de 2000, um artigo semanal, nesse jornal. Na Associação Brasileira de Imprensa,exerceu a presidência nos períodos de 1926 a 1929; a presidência do ConselhoAdministrativo de 1974 a 1977; e novamente a presidência em 1978-80 e nos períodossubseqüentes, até o de 1990-92. Foi proclamado Jornalista Emérito pelo Sindicato dacategoria de São Paulo.

    Eleito deputado federal por Pernambuco para o triênio 1935-37, foi escolhido líder de suabancada, membro da Comissão de Finanças e relator do Orçamento do Interior e Justiça.

    Foi presidente do Instituto do Açúcar e do Álcool, de 1938 a 1945, quando tomou posse dacadeira de deputado federal por Pernambuco, na Assembléia Constituinte de 1946. NaCâmara dos Deputados, em 1946, foi membro da Comissão de Finanças e designadorelator do orçamento do Ministério da Guerra. Renunciou à cadeira de deputado em 1948,para assumir, a 14 de fevereiro do mesmo ano, o cargo de governador do Estado dePernambuco, exercendo o mandato até 31 de janeiro de 1951.

    Foi procurador da Prefeitura do Distrito Federal e professor do ensino superior nos cursosde Ciências Sociais e Econômicas. Regeu a cadeira de Política Financeira e, mais tarde, a

    de História Econômica, na Faculdade de Ciências Econômicas Amaro Cavalcanti, doEstado da Guanabara. Deputado federal por Pernambuco para a legislatura 1959-1963,

    integrou, nessa Casa do Congresso, a Comissão de Justiça.

    Foi sócio benemérito do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto dosAdvogados do Rio de Janeiro; benemérito da Associação Brasileira de Imprensa e sóciocorrespondente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano e doInstituto de Advogados de São Paulo; sócio efetivo da Sociedade de Geografia; sóciohonorário do Instituto Histórico de Goiana (PE); presidente de honra do XIV CongressoNacional de Estudantes; professor honorário da Faculdade de Filosofia da Universidade doRecife; presidente do Pen Clube do Brasil em 1954; membro correspondente da Academia

    das Ciências de Lisboa; membro do Instituto de Direito Público e da Fundação GetúlioVargas.

    Recebeu a Medalha Quadragésimo Aniversário da Pontifícia Universidade Católica do Riode Janeiro (1981); o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal dePernambuco e o Prêmio Imprensa e Liberdade, conferido pelo Centro Alceu Amoroso Lima

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    para a Liberdade (1984); o Prêmio Governo do Estado do Rio de Janeiro e o título deCidadão Benemérito da Cidade do Rio de Janeiro (1987); o Prêmio Juca Pato, conferidopela União Brasileira de Escritores; o Prêmio San Tiago Dantas (1989); e a Medalha

    Tiradentes (1992), conferida pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro.

    Na Academia Brasileira de Letras, foi secretário-geral em 1952; e presidente em 1953 e1954; diretor da Revista da Academia em 1955-56, diretor da Biblioteca de 1957 a 1978 etesoureiro de 1978 a 1993.

    BIBLIOGRAFIA 

    Língua e Literatura; Árvore do bem e do mal (1926);O vendedor de discursos (1935); A questão ortogr!ica e os com"romissos do #rasil (1953);

     A l$ngua "ortuguesa e a unidade do #rasil (195%);Os "recursores do conto no #rasil (196&)'

    Direito, Ensaio, História, Jornalismo e Política;O "roblema da im"rensa (1923);ernambuco e o io *ão +rancisco (1929); A #a,ia e o rio *ão +rancisco (1931); A a-ão da im"rensa na rimeira .onstituinte (193/);O centenrio da c,egada de 0assau e o sentido das comemora-es "ernambucanas (1936); A verdade sobre a evolu-ão de Outubro (19/6);nteresses e "roblemas do sertão "ernambucano (193);O devassamento do iau$ (19/6); A evolu-ão raieira (19/9); A .omarca do io *ão +rancisco (195&); Artur 4aceguai (1955);.a"istrano de Abreu (s'd');*istemas eleitorais e "artidos "ol$ticos' studos constitucionais (1956); A autodetermina-ão e a nãointerven-ão (1963);7esde quando somos nacionalistas (1963); Ale8andre 4os #arbosa :ima (1963);resen-a de Alberto orres (196%);Oliveira :ima< obras (191);4a"ão o ca"ital se !a= em casa (193);ernambuco da nde"end>ncia ? .on!edera-ão do quador (199); Antologia do .orreio #ra=iliense (199);studos nacionalistas (19%1); Assuntos "ernambucanos (19%6)'

    DISCURSO DE POSSE

    No esplendor das horas culminantes, a memória ilumina, entre os fragmentos do passado,cenas, ou impressões, a que atribui o prestígio de uma significação oportuna. É assim que,de velhas passagens da adolescência, ressurge, para o prazer de minha recordação, oepisódio daqueles nadadores que, nas praias de Olinda, enfrentavam e venciam o assaltodas ondas inquietas. No balouço das vagas, tornava-se o movimento sensação voluptuosa,como se o vai-e-vem das águas aumentasse a elasticidade, ou a força dos músculos. E

    era deslumbrador o espetáculo, que a distância ia lentamente compondo. Apagava-se a

    orla branca das praias, e já parecia que os coqueiros assentavam no mar os seus troncosesguios, ou que saíam das ondas as fraldas das colinas, que as igrejas enfeitavam com as

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    suas torres seculares, tão brancas junto ao verde-escuro da copa das mangueiras. Aohemiciclo da praia inicial somavam-se as enseadas circunvizinhas e os coqueirais, que seemendavam até o extremo limite da visão, tecendo e destecendo, ao sabor das brisas, a

    renda das suas palmas enlaçadas.

    O encanto do panorama, a alegria do movimento, a carícia das águas tépidas arrastavam onadador. E a distância se tornara excessiva; a temeridade da aventura assustava osespectadores, enfileirados na praia. Apercebia-se, afinal, o imprudente dos perigos a que

    se expusera. Contemplando o caminho longo, que precisava de novo percorrer, de simesmo indagava, angustiado, se para tanto chegariam as suas forças.

    Tenho aqui renovada, num plano tão diverso, a sensação desses tempos de adolescência.O prazer de vossa eleição, o encanto desta hora esplêndida não conseguem destruir as

    dúvidas do temerário. Chegarão para tanto as suas forças?

    Essa interrogação modera, de algum modo, a manifestação dos agradecimentos que vosdevo, e justamente pelo que de vossa parte encontro de excessivamente generoso, nadesproporção entre o que me concedeis e o que eu, em verdade, vos posso oferecer.

    Fostes ainda mais longe, conferindo o encargo da saudação acadêmica a um companheirode toda a minha vida, sem receio ao que lhe pudesse inspirar, ao generoso coraçãofraterno, amizade tão longa e tão íntima. Gestos assim não são feitos para a retribuição deagradecimentos triviais, mas para serem sentidos. Não se perderá a vossa intenção,

    senhores acadêmicos.

    As Academias e os cenáculos

    Não escasseiam, entre os candidatos à vossa eleição, os que, à míngua de triunfos,tomam partido sob o estandarte de vossos adversários. Convenho, porém, em que nemtodos os que se apartam de vós obedecem a esses motivos subalternos. Pode conservar-se distante o batalhador corajoso, decidido a correr a sorte do dilema que Aristótelesestabelecera: o homem isolado ou é um Deus ou um bruto. Os Alcestes das letras,receosos de capitulações, ou de influência estranha, talvez prefiram a glória das batalhas

    inflexíveis, desde que não há sociedade que se não alimente de concessões e de

    transigências. Para esses temperamentos, não há prazer que exceda a alegria das lutassolitárias. Cheios da sabedoria do Eclesiastes, compreendem a inanidade de todas asvitórias. As festas da vaidade já não prendem os olhos desencantados, que se deixaram

    arrastar à contemplação das profundas da vida. Como é superficial ou insignificante ocontentamento que vem pelos caminhos do orgulho!

    Pouco a pouco, a vida se encarrega de atrair os díscolos e de reduzir os rebeldes. Não háoutra fórmula para a existência que a da renúncia ao heroísmo, ao heroísmo de que fala

    Carlyle, misto de ideal e de capacidade de sacrifício. Dissimulamos com o título favorávelde “experiência” o que não passa de uma domesticação, a destruição de qualidades

    magníficas, para que todos vivam dentro de normas comuns, perdidas as arestas,sopitados os ímpetos, aniquiladas as revoltas.

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    É bem de ver, entretanto, que o dilema de Aristóteles falha nos seus próprios fundamentos.Ninguém escolhe entre as academias e a solidão, mas entre umas e outras academias.Postos de lado os raros e agressivos Alcestes, não existe, nas letras, o Robinson Crusoé,

    que trabalhe para o seu exclusivo divertimento. A norma é o grupo, a associação. Quandonão prevalecem as academias, os cenáculos, os institutos, vinga a redação de revistas, a

    banca dos cafés ou a porta das livrarias. Na França existe ainda o salão literário,participando dos prélios com a energia e a coesão das unidades de combate. Prefere o

    Brasil os lugares públicos, que favorecem a elevação da voz, a veemência dasobjurgatórias, a comodidade do vestuário.

    Os inimigos das academias enquadram-se e doutrinam nesses outros grêmios irregulares.Não se trata, pois, de insociabilidade, mas talvez de intolerância. A Academia de Letras,

    por exemplo, é um largo estuário, a confluência dos rios de muitas vertentes literárias. Nasassociações de mesas de café, ou de porta de livraria, a disciplina se torna mais severa,na preponderância de critérios classificadores intransigentes. Quem não aceitar a doutrinavencedora entre os chefes, quem se não encher de veneração pelos diretores da escola,pode considerar-se excluído e sem demora rebaixado a outras categorias zoológicas. Sóexiste lugar para o astro e para os seus deslumbrados satélites.

    Por isso observava o Sr. Fernand Divoire que um café literário se firmava no prestígio deum homem notável, ou em evidência. Moréas reinava no café Vachette; Catulle Mendès e,mais tarde, Ernest La Jeunesse haviam ocupado o Napolitain; Paul Fort era a atração daCloserie des Lilas; em torno de François Coppée se reuniam os freqüentadores do caféVersailles.

    Assim por toda a parte; assim também no Brasil. Coelho Neto recordava, emFogo Fátuo,que os “grupos literários mantinham firmes as suas posições: os naturalistas, no Cailtau;os românticos, no Castelões; os parnasianos, no Pascoal. No Deroche, já em decadência,às moscas, o falanstério dos simbolistas”.

    Ainda constituem as academias de letras o modelo mais amplo e mais variado deassociações literárias. Aqui podem caber todas as escolas; aqui se fazem representar osdiferentes setores da atividade intelectual. E é por isso que lendo, há pouco, os volumesem que se acham reunidos os discursos acadêmicos tive a impressão de que estava

    acompanhando, nas suas figuras dominantes, a própria história da vida mental do Brasil,no entrechoque das escolas poéticas, no trabalho dos romancistas, na atividade dosautores de contos, no esforço dos comediógrafos, na Crítica, nas ciências jurídicas, nas

    manifestações tribunícias, na Publicística, no Jornalismo. Sim, também no Jornalismo, pormais que isso escandalize os que procuram outros títulos nos que se apresentaram aos

    vossos sufrágios vindos dessa profissão, que muitos dos patronos desta Companhiailustraram com os seus nomes imortais, como Hipólito da Costa, Lêdo, Evaristo da Veiga,João Francisco Lisboa, Joaquim Serra. E que perseverais nessa atitude no-lo provamtantos outros, que foram antes de tudo, ou quase exclusivamente, homens da Imprensa,como José do Patrocínio, Alcindo Guanabara, Medeiros e Albuquerque, Constâncio Alves,

    Félix Pacheco, Vítor Viana. Não fosse o Jornalismo, por si mesmo, manifestação literária, eainda se poderia ver, nessas eleições, o reconhecimento dos gloriosos serviços prestados

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    às letras e à inteligência brasileira pelos que se esterilizam, ou se sacrificam, nessetrabalho de Sísifo que é a Imprensa diária, trabalho anônimo, exaustivo e efêmero, cheiodos males que João Ribeiro apontava nas profissões paralelas da atividade literária.

    Não se poderia atribuir a uma academia, formada ao acaso de pleitos disputados, o

    merecimento da infalibilidade e da justiça absoluta. Basta, entretanto, que o acerto sejauma intenção ou a linha geral por que se pautou a composição do quadro acadêmico.

    Parecer-me-ia desprimoroso apresentar a minha pessoa, ou a de meus amigos, parafundamento de alguma dessas teses. Mas perdoai que vos confesse que neste momentonão saberia calar o nome do General Barbosa Lima, o tribuno, cujos discursos, naexaltação cívica, na eloqüência profética, na profundidade do conceito, se assinalaram aomeu coração como aquelas sarças de fogo de que se valia a palavra divina para os seus

    conselhos mais solenes. Estimei-o sempre com sentimento filial, embora separados peladiversidade de temperamento e de formação, assim como pela transformação do ambiente

    em que tivemos de viver e de lutar. Não sei o que nele mais admirava, se as lições de suacultura excepcional, lúcida e profunda, se a doçura do acolhimento, que era surpresa

    encantadora na aparência hirsuta, que lhe vinha das atitudes severas, do jeito empertigadodo corpo, das barbas apostólicas. Por mais austeras, todavia, que fossem as atitudes, oolhar e a palavra sabiam contar o que havia de infinita ternura naquele coração de afetivo.O nome que tenho é o dele, nome que meu pai adotou para mim, numa renúncia feita deintenções afetuosas. Minha mãe, irmã de Barbosa Lima, o adorava também, sendo, talvezentre todos os irmãos, o que mais possuíra aquelas virtudes ascéticas e resignadas, quederivam de uma perfeita humildade cristã, virtudes que haviam sido o apanágio da vida

    estóica e desambiciosa do parlamentar republicano.

    Refiro esses nomes e recordo essas pessoas sob a opressão de uma saudade semremédio. Nem há nada mais melancólico do que saber que não mais estarão presentes,nas horas favoráveis, as afeições tutelares da infância e da mocidade. Para uma situaçãosemelhante, Carlyle tivera aquela frase trágica: “De que nos vale a vida, assim limitada

    pela morte?”

    O filósofo deSartor Resartus não achou resposta. Mas a vida sabe aumentar as afeiçõesque vai criando em torno de nós, concentrando nelas também a amizade pelos que já

    partiram. O amor pelos filhos, permitindo conhecer o que devíamos ter custado aos nossospais, vale como uma nova e mais perfeita floração de sentimento filial.

    A existência nos despoja, pouco a pouco, de nossos maiores e mais puros tesouros. Nãopassamos de muito a metade da vida e já temos a impressão de que vamos caminhandodentro de um cemitério, em que numerosos túmulos se nos tornaram familiares.

    Mas vamos seguindo, talvez trôpegos, talvez apertado o coração... Lá, adiante da linhados túmulos, e dos ciprestes funéreos, há amizades novas que nos esperam, há vidasnovas que precisam de nós e que nos atraem, sorrindo no fundo de pupilas radiosas.

    Duas gerações e dois poetas

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    José Maria Goulart de Andrade aportara ao Rio de Janeiro em 1897. Era pouco mais queum adolescente, no alvoroço dos dezesseis anos. Vinha de Alagoas, dessa mesmaAlagoas de onde saíra, onze anos antes, e também com destino ao Rio, outro poeta –

    Sebastião Cícero de Guimarães Passos, que andava então pelo verdor dos dezenoveanos.

    Não nos iludamos com a aproximação ou com a semelhança das duas ocorrências. Entreos dois alagoanos só haveria de comum o itinerário da viagem e a tendência poética. A

    própria cidade que os recebia transformara-se profundamente nesses dois lustros quehaviam assistido à Abolição da Escravatura, à Proclamação da República e à Revolta da

    Esquadra.

    Tivera a Abolição a prodigiosa virtude de reunir e congregar todas as inteligências

    brasileiras, nesse incomparável qüinqüênio de 1884 a 1889. Ao calor do apostolado,fundiam-se arestas de incompatibilidade de temperamento ou divergências de escolas

    literárias. Em nenhuma outra fase de nossa História se esqueceram tanto de si mesmas aspersonalidades, para servir aos interesses da campanha comum. Mesmo sem unidade de

    chefia, o movimento se entrosava de pessoa a pessoa, de cidade a cidade, de província aprovíncia, numa coordenação perfeita e harmoniosa, que vinha menos dos planos que dosincronismo espontâneo dos sentimentos. Despreocupado, imprevidente, ingênuo mesmo,Guimarães Passos encontrou o meio literário carioca accessível às manifestações deconfraternização e de amparo recíproco. Era a época dos “mosqueteiros literários”, queJoão do Rio nos descrevera numa frase: “A sua vida econômica baseava-se nesseprincípio, que os economistas repeliriam: nunca ter dinheiro e ser sempre generosíssimo.”

    A união, que se formara na campanha abolicionista, não resistira à República e muitomenos ainda às guerras subseqüentes. Dividiram-se os “mosqueteiros literários” entre ospartidos e os exércitos. Alguns se viram obrigados ao exílio; outros empunharam o bastãodo reacionarismo. Não havia mais uma família única de homens de letras, mas uma sériede grupos e de facções separadas pelas questiúnculas de partido, pelas

    incompatibilidades pessoais ou pelas doutrinas literárias.

    Ainda sentiria Goulart de Andrade o ressaibo daquelas paixões partidárias. Coestaduano eadmirador de Floriano Peixoto, entrando para a Escola Naval depois da Revolta de 1893,

    parece que não encontrou ambiente muito favorável. Desligou-se por isso do curso,matriculando-se na Escola Politécnica. E foi quando começou a viver em contacto com osgrupos literários, fazendo parte de um dos derradeiros cenáculos dos cafés cariocas – o

    cenáculo da Confeitaria Colombo, no alvorecer deste século.

    Veteranos e estreantes conviviam lado a lado, confundidos na mesma despreocupada

    alegria. Entre os veteranos, os irmãos Azevedo, Artur e Aluísio, Coelho Neto, Olavo Bilac,Emílio de Menezes, Guimarães Passos. Os novos apresentavam uma plêiade, em que já

    se destacavam Goulart de Andrade, Martins Fontes, Aníbal Teófilo, Leal de Sousa,Humberto de Campos, Luís Edmundo, Alcides Maia, Tomás Lopes, Bastos Tigre, Heitor

    Lima, Oscar Lopes.

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    Mantêm, no século que principia e que já não os compreende, a tradição boêmia dasgerações de que se aproximavam. São homens da Rua do Ouvidor passeando pelasnovas calçadas da Avenida Central.

    Cultivam as frases e atitudes irreverentes, que pudessem apresentar um pouco de

    escândalo, ou de bizarria. O mais expansivo de todos eles, Martins Fontes, falaria desseshábitos e dessa época numa linguagem de encantamento:

    Excentricidades no trajar; polainas, capas espanholas, chapéus

    desabados, gravatas de cores vívidas, monóculos insolentes,impertinências, arrogâncias, espalhafatos... Oh! astoilettes, por exemplo,do Calixto, do admirável caricaturista Calixto Cordeiro! Adorável!Adorável! Fantástico! Fantástico! Calixto usava sapatos bicudíssimos,

    com fivelas de prata onde iniciais se entrelaçavam, fraques agudos, emrabo de tico-tico, coletes altos, colarinhos ainda mais altos, gravatas dequatro voltas, à Diogo Antônio Feijó, e caveirinhas, caveirinhas de ouro,de prata, de coral, de marfim, por todo o corpo pendentes de cadeias

    subindo pelas frocaduras das fitas...

    Não faltariam exemplos dessa preocupação de extravagância; os chapeirões de Emílio de

    Menezes, as polainas alarmantes de Guimarães Passos, a cabeleira de maestro do Sr.Bastos Tigre, os coletes de veludo do Sr. Oscar Lopes, que fazia trêstoilettes por dia...

    Coisas do tempo, e que passaram com o tempo a que pertenciam. Creio que o Sr. CalixtoCordeiro já reduziu, pelo menos, as caveirinhas do protocolo; desconfio que o Sr. Oscar

    Lopes já não usa os mesmos coletes de veludo. E até o Sr. Bastos Tigre, decerto acontragosto, teve que renunciar, também, à cabeleira de maestro.

    Manifestações que nunca impediram o trabalho esforçado e brilhante dessa geração deque o mesmo Martins Fontes nos falaria, naquele soneto de Nós, as Abelhas:

    Vivemos a cumprir nosso fadário,Como as abelhas – fabricando a cera,

    Como as abelhas – produzindo o mel.

    Parnasianismo e Simbolismo

    Do ponto de vista da Poesia, não teve Goulart de Andrade a mesma facilidade que o autor

    dosVersos de um Simples encontrara.

    Guimarães Passos chegara ao Rio no apogeu do Parnasianismo. Por mais distantes que

    se encontrassem os temperamentos, a todos servia de modelo a escola de Leconte deLisle. O que ainda proporcionava alguma liberdade era a imprecisão das fronteiras da nova

    doutrina, nesse particular semelhante a todas as outras. Não existe conformismo naLiteratura, pois que todos querem ser renovadores e revolucionários, e, como nem sempre

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    é fácil alcançar a substância das coisas, a transformação se restringe à mudança dosrótulos. Muito barulho sempre, em torno das pequenas modificações de fachada.Emprega-se, no comércio das letras, a indicação – “original” – como se poderia dizer – “o

    mais barateiro”. Pode-se mesmo considerar genial o enfatuado, ou arrogantetransplantador de métodos, ou de escolas alienígenas, nem se exige muito mais que o

    ataque aos velhos e o emprego escandaloso da fita de papel, com as letras vermelhas:Novidade! Novidade!

    O Parnasianismo, na França, surgiu como oposição ao Romantismo. Entretanto, sedeixarmos de lado a aparência para examinarmos a substância do movimento literário,

    havemos de ver que de Hugo a Théophile Gautier e deste a Théodore de Banville há umacontinuidade, como a que se observa entre os dois últimos poetas e os melhores cultores

    do Parnasianismo, Leconte de Lisle, por exemplo. Torna-se quase imperceptível atransição, como também na marcha para o Simbolismo, se atendermos aos sinais deparentesco que vinculam ao Parnasianismo a obra de Baudelaire e Verlaine.

    Nota-se, no Brasil, fenômeno semelhante. Dos condoreiros aos mais puros representantes

    do Parnasianismo, há um grupo de poetas que preparam a transição e anunciam oadvento da nova escola. Tinha razão Ronald de Carvalho, classificando como precursoresdo Parnasianismo a Luiz Guimarães e Machado de Assis. Não parece exato, entretanto, noponto de vista cronológico, datar de 1880 a vitória da escola, por ter sido nesse ano queArtur de Oliveira, recém-vindo da Europa, doutrinava os seus companheiros, ensinando-lhes os dogmas doParnasse Contemporain, cujo primeiro volume, aliás, datava de 1866.Antes de 1880, mesmo sem contar os precursores, haviam sido publicados os primeiros

    livros de Teófilo Dias. AsMiniaturas, de Gonçalves Crespo, eram de 1870.

    É possível que a palavra de Artur de Oliveira tenha valido para definir e propagar ospreceitos da escola, mesmo porque o decênio de 1880-1890 é o do incontrastável domíniodo Parnasianismo. Os autores menos ortodoxos – B. Lopes, por exemplo – ainda nãoconseguiam repercussão apreciável. E é naquele período que se revelam os grandes

    mestres do Parnasianismo, com os primeiros livros de Raimundo Correia, asCançõesRomânticas, de Alberto de Oliveira, asPoesias, de Olavo Bilac, asContemporâneas, de

    Augusto de Lima.

    De todos, o que havia de ter influência mais vigorosa era Olavo Bilac, devido ao calortropical de sua poesia e também ao temperamento, ajudado pelo celibato, que lhepermitiu, sem inconvenientes domésticos, continuar a viver nos grupos literários da época,

    participando dos cenáculos dos cafés e confeitarias da cidade.

    É a Bilac que José Maria Goulart de Andrade encontra, no começo de sua atividade

    poética, depois de haver abandonado os cursos da Escola Naval. A influência parnasianavinha encontrando restrições, reflexos naturais do movimento de idéias no Velho Mundo. O

    que se notava de rebeldia em Baudelaire e Verlaine firmara-se melhor sob a magia dossímbolos. Já é grande a lista dos rebelados: Mallarmé, Rimbaud, Laforgue, Gustave Kahn,

    Moréas, Régnier, Samain, Guérin, Verhaeren. O decênio 1890-1900 foi simbolista naFrança, mas a sua repercussão não teve, no Brasil, o êxito que se patenteia naquele país.

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    OsCromos e os Helenos, de B. Lopes, datavam de 1881, mas não haviam provocadonenhum movimento de renovação poética. Estava destinada a Cruz e Sousa essa missãorevolucionária, com osBroquéis, publicados em 1893. No hebdomadárioRosa-

    Cruz reuniam-se os defensores do Simbolismo: Félix Pacheco, Carlos Dias Fernandes,Saturnino de Meireles, Nestor Vítor, Pereira da Silva, Castro Menezes, Alphonsus de

    Guimaraens, Silveira Neto, Mário Pederneiras. Portugal irradiava a influência depersonalidades poderosas: Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Eugênio de Castro.

    Nem o Parnasianismo, nem o Simbolismo haviam sido movimentos confinados ao mundopoético. Alimentavam-se de raízes profundas, acompanhando a marcha das idéias, ou das

    tendências filosóficas do século. O apogeu do Parnasianismo coincide com a fase de maisvigorosa influência do Positivismo. Corresponde ao domínio do cientismo, subestimando a

    metafísica, substituindo o estudo dos fatos às especulações do pensamento, disciplinandocom a razão e a observação objetiva os arroubos sentimentais e as fantasias dosubjetivismo. Não foi sem motivo que surgiu nessa época, revelando pretensõesalarmantes, a poesia científica, a preocupação de temas históricos, a investigação dasorigens humanas, a irreverência com a religião, combatida pelo ateísmo e pelascampanhas anticlericais. Assim, quanto ao pensamento, ou quanto às origens domovimento parnasiano: na execução, foi sobretudo uma reação contra a métrica frouxa dealguns românticos (Lamartine e Musset, principalmente) e um anseio de libertação, diantede temas, ou de uma arte poética, que já se haviam esgotado e esterilizado.

    Surge o Simbolismo com o enfraquecimento da influência positivista. Era uma “revanche”do incognoscível spenceriano, com as novas contribuições do inconsciente, ou do

    subconsciente. A metafísica retorna à matéria poética, e o mistério procura realizar amissão que a clareza e a objetividade parnasiana lhe haviam sonegado. O materialismocede terreno ao espiritualismo renascente.

    Não que os parnasianos desaparecessem de todo, para que prevalecessem os poetas dossímbolos. Seria antes o fenômeno de confusão de escolas, proliferando os títulos e os

    agrupamentos, os “ismos” variados dos períodos tormentosos, o Naturalismo de Saint-George de Bouhélier, o Humanismo de Gregh, o Unanimismo de Jules Romain, sem falar

    nas tendências mais extremadas, o Super-realismo, o Cubismo, o Dadaísmo. Cruzam-se,misturam-se as idéias opostas, mantendo-se lado a lado os vários partidos e as diversas

    correntes literárias. Mesmo depois de transposto o marco do novo século, nãodesapareceu de todo a influência parnasiana, sobretudo no Brasil, onde os poetas dessaescola foram mais populares que os cultores de símbolos.

    Posto, assim, em face de uma encruzilhada, sentindo o ascendente de Bilac, o prestígio de

    sua poesia fulgurante, contrabalançada pela sedução das idéias, ou tendências maismodernas, como se decidiria o poeta Goulart de Andrade? Que rumo preferiria o ex-aspirante da Escola Naval?

    Precariedade das classificações literárias

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    Estou convosco, Sr. Adelmar Tavares, em que, em poesia, não há de como nos lotearmosem românticos e parnasianos, simbolistas, decadentes, pessimistas, modernos efuturistas. Cada um é a sua alma, e todos são poetas. Sucede apenas, na escassez de

    recursos da linguagem humana, que é pelas reações em face das escolas e tendênciasliterárias que melhor podemos conhecer as características da personalidade do poeta.

    Nem as escolas reduzem os seus adeptos a um padrão de absoluta uniformidade... Valemapenas como indicação de uma tendência, que não exclui, nem pode excluir as

    manifestações pessoais.

    Por isso mesmo, a dificuldade está antes de tudo em precisar o que sejam as

    características de uma corrente literária. Sobram os manifestos, multiplicam-se osprogramas, e cada vez se torna mais difícil reconhecer os elementos diferenciais de uma

    escola, que cada escritor define, ou realiza, de seu ponto de vista próprio. Outro obstáculoestá em que os movimentos dessa natureza se acentuam no aspecto negativo, comoforças de reação mais do que de construção. Pregam ou desejam o extermínio das normasdos processos anteriores. Por isso, o que melhor as define não é o que fazem, mas o queevitam. O Parnasianismo reagia contra a facilidade de ritmos e o exagero de subjetivismode alguns poetas românticos. Nada o revela melhor que a preocupação de conservar-se àdistância da forma descuidada e do lirismo fácil e transbordante. Mas, se daí quisermosinferir que o Parnasianismo chega ao objetivismo absoluto, não seria exata a conclusão,senão em face da escola, ao menos diante dos poetas que a ela pertencem. Aimpassibilidade figurou mais nos manifestos que nas poesias parnasianas. Anatole France

     já dizia que o grande doutrinador da escola, Xavier de Ricard, sustentava com ardor que aArte deve ser de gelo, “e nós não nos apercebíamos que esse mestre da impassibilidade

    não escrevia um único verso que não fosse a expressão violenta de suas paixões políticas,sociais ou religiosas”. Paul Verlaine pretendera obedecer ao dogma da serenidade, quando

    perguntava se era ou não de mármore a Vênus de Milo. E o crítico daVieLittéraire respondia: “Sem dúvida é de mármore, mas pobre criança enferma, sacudida porestremecimentos dolorosos, não conhecerás nunca da vida e do mundo senão asperturbações de tua carne e de teu sangue.”

    Convém acentuar que a impassibilidade parnasiana não queria dizer indiferença, nemseria possível imaginar uma poesia insensível. O que Leconte de Lisle recomendava era aserenidade de forma, o equilíbrio, a harmonia, o que não obstava que a sua obra refletisse

    os impulsos de uma grande paixão, embora intelectual. Olavo Bilac interpretaria opensamento parnasiano, dizendo naquela famosa “Profissão de Fé”, que de tão pertoacompanha o poeta deÉmaux et Camées:

     Assim procedo. Minha penaSegue esta norma,Por te servir, Deusa Serena,Serena Forma!

    Definiu, precisamente, o Sr. Martino esse culto pelo estilo, quando nos disse, num trecho

    que também se poderia aplicar ao Parnasianismo no Brasil: “Mas que a forma deva serimpassível, escultural e muito pura nas suas linhas é ponto em que todos os parnasianos,

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    mesmo depois de 1870, estão e continuam de acordo. O horror à ‘incoerência da idéia’ e à‘incorreção do verbo’, com todas as suas conseqüências, que são consideráveis,permaneceram até o fim como o sentimento forte e comum a todos os poetas que se

    alegram com o batismo de parnasianos.”

    Nesse culto à forma, nesse cuidado de estilo, nesse amor aos efeitos do colorido e dasonoridade, o Parnasianismo corresponde aos sentimentos de um grande grupo depoetas, que possuem mais vigorosamente o sentido do som, da cor, do perfume e do

    contorno. São os cultores da poesia plástica, em que o verso recorda o relevo damodelagem, pela precisão maravilhosa das metáforas. Mesmo depois de Leconte de Lisle,

    não esquecem e não desamparam Banville, e Théophile Gautier, como não esquecem osritmos amplos e sonoros de mestre Hugo. Para eles, a escola vem das Orientales,

    continua pelosÉmaux et Camées, não perde de vista asOdes Funambulesques e inspiraos poemas de Baudelaire. Eis aí, nessa sucessão, a prova da precariedade das escolas,pela revelação do parentesco entre esses poetas, que saem de correntes diversas, maisromânticos os primeiros, e o último exibindo os motivos novos com que se alimentariam oSatanismo e o Simbolismo. Apesar da diversidade dos rótulos, aproximava-os uma razãomais forte, que era o temperamento semelhante, a preponderância da imagem na arte detodos eles. Essa a razão por que Baudelaire dedica o seu livro a Théophile Gautier, ou omotivo por que seria Banville o sistematizador da metrificação parnasiana, com oPetitTraité de Poésie Française. Todos eles, como o autor deÉmaux et Camées, poderiam

    exclamar que eram pessoas para as quais existia o mundo exterior.

    Os imaginativos

    Goulart de Andrade se incorporaria a esse grupo de poetas do mundo visível, amigos docolorido forte e dos ritmos marcados. Servem-lhe de musas os sentidos. É um imaginativo,acumulando comparações e compondo poesias num encadeado de metáforas. Poderiadizer, como D’Annunzio, que a tudo preferiria a felicidade de celebrar as festas dos “sons,das cores e das formas”, para através delas realizar a unidade da Arte, reunindo namesma composição a poesia, a música, a pintura, a escultura. Não faltam, por isso, nospoemas de Goulart de Andrade as descrições vivas, de um colorido e de um relevo queimpressionam. Na poesia “A minha lavandeira” deixa-nos a impressão do quadro que

    descreve. E tantos outros poderiam ser destacados! Seria o caso, por exemplo, da

    descrição do mar morto, da evocação das cidades malditas, da vigorosa narrativa dopoema “A procelária” ou dos fortes abandonados. As onomatopéias freqüentementeauxiliam os efeitos dessa palheta variada e rica de tons:

    Balas, bombas, rojões, bombardas, ribombando,Nos broncos barrocais, de montanha em montanha,

     Atestado brutal de peleja tamanha!Estridor de canhões e retinir de espadas,Grita surda e feroz, agudas clarinadas.

    Fiel ao culto da forma, como é comum nos visuais, exclamará, no ofertório de seu famoso“Canto Real do Poeta”:

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    Poeta, que tanto estiolas teu valorNo embate rijo e desesperadorPela forma imortal que te amargura,Se à Perfeição não chegas, lutador,Estaca... e rola sobre a terra escura!

    Bilac não fora menos irredutível: ou a perfeição ou a morte:

    Vive! que eu viverei servindoTeu culto e, obscuro,Tuas custódias esculpindo,No ouro mais puro.

    Celebrarei o teu ofícioNo altar; porém,

    Se inda é pequeno o sacrifício,Morra eu também.

    Assim compunham esses poetas a sua mística, espécie de sucedâneo da religião quedesprezavam, ou combatiam. Estamos diante de uma nova crença, o culto da Arte pela

    Arte. Não admira que a métrica seja o evangelho da seita que surge e que as regras deversificação avultem com o prestígio de dogmas. Equiparam-se os deslizes de forma aos

    crimes infamantes, para não dizer aos sacrilégios, desde que estamos no domínio da fé,ou da superstição. Banville definira exatamente a nova doutrina, afirmando que “aimaginação da rima é, entre todas as qualidades, a que constitui o poeta”. E acrescentava:“Isso é uma lei absoluta, como as leis físicas; enquanto o poeta expressa verdadeiramenteo seu pensamento, ele rima bem; desde que seu pensamento se embaraça, torna-sefraca, arrastada e vulgar, e isso é fácil de compreender, pois que, para ele, pensamento erima são a mesma coisa.”

    Goulart de Andrade nunca dispensava o buril. No romance Assunção e na peça a que deuesse mesmo título há referências, de feição evidentemente autobiográfica, a um certopoeta, que é denominado “domador de rimas”, “esmaltista de estrofe”, preocupado “com aidéia da Forma na mais surpreendente pintura, na plástica mais sedutora dentro da maisacabada expressão orquestral”. Martins Fontes assim o definia na “Sextina a Goulart deAndrade”:

    Grande Goulart de Andrade! O que eleva um cantarÉ esse exímio poder de distribuir as cores,De, na justa medida, e no raro rimar,Chegar à Perfeição que atingiste, Goulart!Fazendo, em teu sofrer, que as mais íntimas doresDe surdina iriais, se transformem em flores!Flores, pois, provençais ao teu alto cantar!Poeta, as dores que tens se transmudam em cores,E és remestre, Goulart, no primor de rimar!

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    Para se conhecer até onde chegava a preocupação da forma em Goulart de Andrade,basta ler, como subtítulo de um de seus poemas, aquela advertência aos leitoresdesatentos: (“Obrigada a consoante de apoio.”).

    O virtuosismo leva a procurar obstáculos pelo prazer de vencê-los. Já não se contenta o

    alpinista com os aclives comuns e os precipícios que todos encontram, e sonha com ospíncaros desconhecidos, e procura os grotões que os desastres afamaram. Talvez por issodesestimem os poetas plásticos, ou não considerem bastante, o domínio das formas

    correntes, as cantigas, o madrigal, a elegia, a égloga, a pastoral, o epitalâmio, a canção, aode, o soneto. Desse material envelhecido e triturado nos cenáculos do Classicismo

    admitem o soneto e, quando muito, a ode. E recordam gêneros de uso raro, trazidos deséculos remotos. É assim que nosso Goulart de Andrade se dedica às baladas, ao canto

    real, ao rondel, ao vilancete, ao rondó.

    O medievalismo de Goulart de Andrade

    O cultivo de formas poéticas, que remontam à Idade Média, pode parecer resultante desimpatia mais profunda pelos sentimentos que inspiravam a poesia dos trovadores. A

    explicação exata é a que nos proporciona um dos amigos mais fiéis de nosso poeta – oescritor Povina Cavalcanti. Refere-se o brilhante crítico alagoano a um dos gêneros

    preferidos de Goulart de Andrade – a balada. E observa: “A balada é a poesia lavorada, aobra de filigrana e evocação, de rendilhado e fidalguia, mimo hierático, de um ourives

    apaixonado pela arte das minúcias. Quem a compõe tem, necessariamente, qualidadesrequintadas. É um gênero de púrpura.”

    Debalde procuraríamos, entre a poesia de Goulart de Andrade e os modelos medievais,essa afinidade de sentimentos que traz, espontaneamente, a renovação dos gêneros

    literários. Na poesia cortês dos trovadores, caracteriza-se a paixão amorosa pelomisticismo que a domina. É um anseio veemente, que se contenta com o desejar e seconsidera tanto maior quanto mais accessível à renúncia. Não raros são os poetas quelouvam os que muito sofreram no amor, nem há nada mais sublime do que padecer pelaadoração de uma dama preferida. Mais jogo de rimas, de canções e de espírito do que jogo de corpos, dirá um historiador, acentuando que a paixão da carne só por exceçãoaparece na poesia provençal. Não cabe também nesse quadro o ciúme, com as suas

    tempestades, os seus coriscos e os seus arrebatamentos. É que as menoresdemonstrações da mulher amada são recebidas como favores supremos, ou dádivasdivinas, e pareceria impertinência tanto o duvidar, como o exigir.

    As damas podem dispor de seus sentimentos, livres de qualquer dever, mesmo os quepossam resultar da solenidade dos mandamentos. Já observava o Sr. Aubry que a

    literatura da Idade Média não obedecia a nenhuma preocupação de ordem moral. Pois nãoera motivo de debate sisudo o saber se o amor podia, ou não, sobreviver ao casamento?

    Perguntava-se o que valia mais, se ver a amada censurada sem razão, ou culpada semreceber críticas. Em certo poema da época, exclamava a jovem desposada, no período

    que se presume ainda sob o enlevo das primeiras expansões: “Maldito o marido que duremais de um mês!”

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    Decerto não se encontra, na poesia de Goulart de Andrade, aquela atitude de menestreldiscreto, sentado aos pés de loura castelã, a entoar, ao som da rota, ou da viola, versosmansos, límpidos e distantes como preces. A paixão que o inspira não pensa no sacrifício,

    nem admite a renúncia. Tudo nele é desejo ardente, irresistível, agressivo. Se daí não sepode chegar a uma aproximação com a arte medieval, há outros aspectos que talvez nos

    mostrem a explicação que se procura. Uma das melhores autoridades modernas nessesassuntos, continuador dos Fauriel, dos Gaston Paris, dos Jeanroy, o Sr. Anglade, ensina

    que, convencidos, muito antes dos modernos, de queseul le vers éternel demeure, ospoetas medievais cultivaram a forma com empenho quase religioso. Na escolha daspalavras apropriadas, ou na procura de rimas e no entrelaçamento delas, na criação deestrofes, nesse conjunto de cuidados obscuros, minuciosos e obstinados, eles sãomodelos incomparáveis. Poesia requintada, feita para o prazer da nobreza feudal, procuraa sua melhor recomendação nas dificuldades e subtilezas do virtuosismo, da técnicaapurada, que deseja atribuir a cada poeta uma forma característica e exclusiva, a que sófaltava a patente do privilégio. Com o número e variedade de rimas e de versos compõemas estrofes, a que denominamcoblas e das quais asLeys d’Amors enumeravam setentacategorias diversas, cada uma delas com o seu nome especial. Carolina Michaelis

    mostrava que “conferidas com as galaico-portuguesas, cuja pobreza de idéias e deadornos é tão saliente, as dos trovadores provençais são deslumbrantes de brilho poético,

    complicadas, ricas, artísticas na forma, visto que inventar novidades era a regra”. Não éoutro o parecer de um mestre como o Sr. Ramon Menendez Pidal.

    A finura e variedade de ornamentos correspondem à subtileza das idéias e daspreocupações da época. Era a linguagem própria para os primores da galantaria ou para

    as argúcias de uma casuística amorosa feita de filigranas. Destoaria das estâncias triviaisa quintessência do amor devoção.

    É de supor que o virtuosismo tenha sido a força criadora do medievalismo dos poetasmodernos, que também são requintados e amam as subtilezas de linguagem e de

    sentimento. Não há mesmo indicação, no caso de Goulart de Andrade, de que ele se hajainspirado nas fontes antigas. O divulgador, ou renovador, desses gêneros medievais foiThéodore de Banville, que aliás se deteve em Clément Marot e, quando muito, chegou atéFrançois Villon, que se limitara a aceitar a métrica de seus antecessores.

    Banville não somente compôs baladas, rondós, lais e virolais, cantos reais, rondéis,vilancetes, como determinou as normas que deviam regular a execução de todos essesgêneros. Ateve-se Goulart de Andrade, na restauração de antigos modelos, às regras deBanville, exceto quanto ao vilancete, em que mantém a forma clássica portuguesa, aliásencantadora. Mesmo na exceção, Goulart de Andrade revela a influência da versificaçãofrancesa, distinguindo, não sabemos com que razão, o vilancete do vilancico, para sobeste nome último realizar ovillanellede Banville. É aquela poesia deNévoas e Flamas:

     Amor que viva no riso Já t’o disse e, agora, friso.

    Não dará fruto, nem flor...

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    Exaltava Banville o atrativo desses gêneros, com a referência aos obstáculos que lhesestorvavam a execução. A respeito da balada dissera: “De todos os poemas franceses, é oque oferece dificuldades mais temíveis, por causa do grande número de rimas iguais,

    concorrendo para expressar os aspectos diversos de um pensamento, ou de umsentimento único, que precisa ser ao mesmo tempo imaginado e visto.” E que dizer então

    do canto real, com as cinco estrofes de que se compõe? Cresce o risco da monotonia, peladifusão de uma idéia que se dilui na igualdade das rimas, girando em torno de um refrão

    inalterável. Opinava Lemaitre que esses quadros bizarros eram de tal maneira difíceis depreencher, que ao rimador se permitia pôr tudo dentro deles, fosse o que fosse.

    Senhor dos segredos da versificação, Alberto de Oliveira declarava que a balada era umgênero de “dificílima execução”, acrescentando, ou explicando: “Se a quiserem ajustar

    fielmente ao modelo, tratá-la como feitura artística, evadir-lhe as rimas triviais e matizá-ladas peregrinas, ou raras, não será isso empresa para qualquer, e só por milagre, umdesses milagres do talento, deixará de ser sacrificado o surto espontâneo da inspiração.”

    Pode-se daí depreender o que significa a vitória de Goulart de Andrade, num gênero de

    tantos embaraços. Príncipe das Baladas – proclamaram-no poetas e companheiros.Martins Fontes, que desde o primeiro livro também se revelara perito nessa ressurreiçãode modelos medievais, exclamava, na “Sextina a Goulart de Andrade”:

    Glória, Goulart de Andrade! Incomparáveis flores A Balada, o Pantum, o RondeI, o Cantar,Tu, só tu, no Brasil, multiplicando as coresCom que doiras o verso e distilas as cores,Refloriste e, de então, te tornaste, Goulart,Mestre da gaia ciência e do raro rimar!

    Se houvesse de eleger a melhor balada do poeta, recordaria aquela em que Alberto de

    Oliveira encontrava “doce ritmo de embalo de rede de pena”. Já foi lida nesta Casa e hápouco repetida por outro poeta de vossa Companhia, o Sr. Pereira da Silva. Mas não sei

    também resistir ao prazer de uma nova leitura desses versos harmoniosos, e tão naturais,que nos fazem esquecer as advertências e duvidar de que sejam tão grandes osobstáculos, que o Príncipe das Baladas venceu brilhantemente:

    Pela rosácea do vitral, desfeitoEm cores, entra o pálido luar!Dorme! Entre as névoas de teu alvo leitoVejo-te o seio brandamente arfar...Dorme! Lá fora dorme o velho mar.Na muda noite, a abóbada infinita

     Apenas vela, e, trêmula, palpita.Dorme! Nos campos adormece a florE a ave no ramo, que o Favônio agita,

    Como tu, adormece, meu amor.Em vão procuro ouvir, em vão espreito

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    Se nesse inocentíssimo sonharO meu nome se escapa de teu peito,E a minha imagem tentas abraçar...

     Ah! Se estiveras tu no meu lugar!Dorme! Das rimas a caudal bendita

    Desta boca febril se precipitaNum som dulcíssimo e acalentador...

     A alma, que eu trouxe antigamente aflita,Como tu, adormece, meu amor.

    Dorme! Nem sabes como contrafeitoVejo-te os lábios sem os não beijar...Com que desejo, mas com que respeitoContemplo a tua carnação sem par!Dorme! Como tu, dorme o nenufar

    Da fria linfa na prateada fita...Só de meu coração a surda gritaSe escuta no silêncio esmagador!

     A lembrança das horas de desdita,Como tu, adormece, meu amor.

    Ofertório

    Rainha deste ser, dorme, e acreditaQue aos brancos pés te deixo a alma precita,

    Misto de ciúmes, de êxtasis, de ardor... Ai, dorme... a voz que estes cantares dita...Como tu... adormece... meu amor...

    Gostaria de lembrar também aquela balada da costureira:

    Tenho o cabelo já nevadoE as faces num mortal palor,E ainda espero o retardado...Quando virás, ó meu amor?

    Ou a balada a uma Princesa Longínqua:

    Vossa alta fama assinaladaPor tanto claro lidador,Veio até minha água furtadaDe cavalheiro e rimadorIrei por vós, seja onde for,

     A rima rutilando acesa, A proclamar-vos, com ardor,

    Dona da Graça e da Beleza.

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    Os cantos reais são também de mestre, embora não tenham, e talvez não possam ter, amesma espontaneidade dessas baladas. Mas no vilancete o poeta reconquista anaturalidade e, às vezes, nos lembra a fluência e o sabor das redondilhas camonianas.

    Não há como deixar de ler esse delicioso vilancete, que aqui também já foi dito por umpoeta, o Sr. Múcio Leão. Afigura-se-nos que constitui uma das melhores expansões do

    lirismo de Goulart de Andrade:

    É tão cheiroso o teu véu...Que, ao vê-lo, a gente presume,Não ser véu, e sim perfume.

    Voltas

    Teu véu, desejada minha,De tão leve e transparente,Menos se vê, que se sente,Ou melhor, mais se adivinha.Nele tanto olor se aninhaE é de névoa tão escassa,Que através dele se passa...

    Foi-se esgarçando, esgarçando,Tornou-se aéreo, tornou-seFluido de essência tão doceQue nem sei já como eu ando!Doido sou que estou pensando(Tanto aroma em si resume)Que tens um véu de perfume...

    E ao sorver o delicadoCheiro teu indefinível,Creio teu véu invisívelEm mim ficou enrolado:Eis porque penso, anjo amado,Que, em sentindo o olor do céu,

    Vivo dentro do teu véu...

    A preocupação das escolas

    Não se pense, porém, que esse admirável culto de gêneros antigos fosse indiferente aoseu tempo, ou aos ritmos que em torno dele vibraram, na expansão de uma fase agitada etumultuária. Posto na encruzilhada das escolas, embora as tendências pessoais o levempara o Parnasianismo, procura resistir Goulart de Andrade à disciplina e à uniformidade.

    A “Jornada de um Poeta”, pórtico da primeira série de suasPoesias, começa por umpoema de sabor parnasiano; mas a segunda composição se destina aos simbolistas; a

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    terceira foi dedicada aos líricos, apresentando-se com uma feição romântica. “Lunar”, umade suas raras poesias de metro variável, não seria provavelmente estranha à influência deCruz e Sousa:

    Ó decerto, esta poeira argêntea, que sacodes

    É a sementeira da melancolia...O teu véu branco é feito de jasmins,Ou cravos, que, em essência,Se diluissem pelo ar numa deliqüescênciaVenenosa. Ou talvez seja formadaDe uma revoadaDe extintos sons de bandolinsQue se partiram para o claro espaço...Olha, temo o teu lúgubre regaço:Que atração infernal exerces sobre mim,

    Lua de âmbar, ou de marfim?

    Há uma série de motivos traindo a leitura dosBroquéis. Fala Goulart de Andrade de umalua funérea de histéricos desmaios; admite que ela se tenha formado de uma “revoada deextintos sons de bandolins”; insiste na tristeza e na impressão de frialdade da lua, ondeficaram encarceradas em “gélidas crateras” as almas dos poetas. Há expressões quepoderíamos encontrar no Poeta Negro, como este verso: “Alva Flor de polares primaveras”ou ainda o paralelo com o marfim: “Lua de âmbar, ou de marfim”. Fala muito Cruz e Sousa

    nos “bandolins do luar”. No soneto “Música Misteriosa” há esta quadra:

    Tenda de Estrelas níveas, refulgentes,Que abris a doce luz de lampadários,

     As harmonias dos EstradiváriosErram da lua nos clarões dormentes.

    Em outro soneto – “Monja” – escrevera o poeta:

    Então, ó Monja branca dos espaços,Parece que abres para mim os braços,Fria, de joelhos, trêmula, rezando...

    A própria idéia central da poesia “Lunar” corresponde à sensibilidade de Cruz e Sousa,que vê no mundo sideral o refúgio dos mistérios e mágoas terrenas:

    Quem sabe, pelos tempos esquecidos,Se as estrelas não são os ais perdidosDas primitivas legiões humanas.

    O que é espontâneo volta sem prevenir. O Simbolismo deixa em Goulart de Andradereminiscências vagas, diria mais precisamente – procuradas. Verlaine mandava enforcar aeloqüência e substituía a cor pela nuança. Goulart de Andrade não teria forças para fugir

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    da eloqüência ou do colorido. A sua família literária é outra, e a sensibilidade ardente eimpetuosa não lhe deixa ocasião para aventuras de filho pródigo...

    O amoroso

    Não se terá conhecido muito a respeito dos poetas, enquanto não se procurar saber o queeles pensam, ou o que eles dizem do amor. Paul Souriau escrevera: “Tirai o amor, e queficará da Arte? O valor poético do amor é incomparável.” Não havia sido menos explícitoLalo: “Quanto às obras de arte, já se repetiu em todos os tons, desde Platão, que elas sãoobra do amor, e que toda a Arte é um hino universal ao poder de Eros...” Medeiros eAlbuquerque chegara a proclamar que só havia um belo verdadeiro – era a belezafeminina. Não sabemos se o conceito resultava de convicção estética, ou se apenas visavao desejo de inspirar a mais amável de todas as gratidões.

    Goulart de Andrade não estaria longe desses modelos, ou exemplos. Eros ditou-lhenumerosas poesias, algumas delas cheias de um calor que poucos poetas alcançariam.Não se contenta com o louvar e o suspirar. Não se limita aos trenos suaves dosromânticos, não exalta castelãs inaccessíveis. Se uma vez cantou a princesa distante fê-lo

    por espírito literário, nem o interessavam senão as princesas muito próximas. Porque apoesia, para ele, ou resulta da expansão de amor, ou se converte num caminho florido

    para novos prazeres. Poemas seus parecem feitos de lavas, nem sabemos se oLivroProibido teria como símbolo Eros, ou o Vesúvio.

    Por isso mesmo, toda a vida se reduz, na compreensão de Goulart de Andrade, ao culto

    do amor, ao gozo dos sentidos. Talvez houvesse alguma coisa de diletantismo nessaatitude, o próprio poeta o insinuou, numa passagem de Assunção. Mas o certo é que, paraele, o interesse da vida se concentrava na paixão amorosa, fonte exclusiva de felicidade. O

    que não coubesse nessa moldura seria sofrimento e martírio, como a velhice, que o poetaverbera em alguns versos cheios de horror. É verdade que estamos diante de poesiasescritas no deslumbramento dos vinte anos e nada apavora tanto a mocidade como asombra da senectude, que naturalmente se altera e transforma, quando começam acansar os olhos inquietos que a espreitam.

    “Não, eu não choro quando um velho morre!” – exclama o poeta, imaginando que:

    Braços de neve, seios nacarados... Já lhe não fazem fogo na pupilaQue incitasse os desejos indomados.

    Nada pode valer a moral, diante desse fogo devastador:

    Cristo, morreste em vão pregado num madeiro, Almas não salvarás enquanto o olhar ardenteVir a pompa da carne, e se sentir o cheiro

    Da carne em flor, e a mão a carne pubescente

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    Tocar; e o ouvido o som sentir de um beijo, e a bocaDesvairada, encontrar a carne ardente e louca!

    Acompanham esses sentimentos toda a obra poética de Goulart de Andrade. Ditaram-lheos versos mais vibrantes dos volumes iniciais: inspiram-lhe os poemas deNévoas e

    Flamas; e mais tarde, no livro da melancolia, ainda se refletirão aqui e ali, como naqueleterceto:

    Em tua alma e teu corpo acha meu versoTodas as convulsões da natureza,E as harmonias todas do universo.

    No soneto “Meu Jardim”, de Ocaso, o poeta procura resumir as suas experiências

    sentimentais:

    Nossa alongada infância, à luz serenaDo luar da prece, em vago olor delida,Florescia o jardim da minha vida,

     Alvejante de lírio e de açucena.Depois, na adolescência, manhã plenaDe rubores e cantos, sem medida,

     Ao abrir da corola apetecida, A rosa do desejo o ar envenena...

    Depois... volúpia louca e amor conforto...Desentranhou-se, ao sol da mocidade,Em papoulas e cravos o meu horto...

    Enfim! velhice! Já com a sombra invadeO canteiro, onde jaz meu sonho morto,Floração de perpétua e de saudade!

    À sensibilidade do poeta apresenta-se a velhice como o jazigo de um sonho, que os outrosversos não esclarecem qual tenha sido. Só se pode inferir que seja aquele sonho ardenteda mocidade, a preocupação amorosa, que fez desabrochar a rosa do desejo e aspapoulas da volúpia. Nada indica que o tempo haja modificado a idéia, que de começo odominava, de que somente o amor o interessa.Senectus est morbus – diria ele ainda, na

    hora do ocaso. Passará o poeta ao longo da velhice sem se aperceber dos prazeres maisíntimos, ou da suavidade de um enternecimento melancólico. Não se apegará às

    paisagens e à vida, ou não mostrará nos seus versos essa amizade mais profunda dequem sente em todas a coisas a sombra e a tristeza de uma despedida próxima.

    Senectus est morbus! Mas nem mesmo a convicção dessa tortura lhe desperta queixas ouo clamor de um desespero sem remédio. A sátira não teve maior atrativo para a sua arte,

    nem lhe parece matéria poética a imprecação do sofredor. Goulart de Andrade foi sempre

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    um entusiasta. A sua alegria estava na satisfação de louvar. Coubera-lhe como destinocantar a beleza das coisas e fazer a exaltação das mulheres amadas.

    Por isso, a obra poética de Goulart de Andrade há de aparecer sempre como expansão de juventude, exuberante, cheia de ardor, de ímpeto e de entusiasmo, floração amorosa,

    nascida em louvor do sol que a alumiara.

    O teatro de Goulart de Andrade

    Já Alberto de Oliveira dissera, no discurso com que, nesta Companhia, recebera a Goulartde Andrade:

    O escritor em vós é primacial e essencialmente o poeta. Outras partes se

    louvam em vossa pena, desde a de autor de composições teatrais, às de

    cronista e romancista, as quais todas vos têm propiciado ocasião a vosrevelardes verdadeiro homem de letras. Aquela, porém, a de poeta, aqualidade apolínea por excelência, é o título mais belo, o vosso melhor

    pregão de escritor.

    Esse é um dos pontos em que os críticos se acham de acordo, mesmo porque, até nos

    gêneros em que incursionou, Goulart de Andrade manteve-se poeta. O seu teatro é quasetodo em versos. Das oito peças que figuram na sua bibliografia, apenas há duas em

    prosa: Assunção e Um Dia a Casa Cai... Não será fácil encontrar os limites que lhe

    separem as duas manifestações literárias. Na terceira série de suas poesias há poemasque poderiam figurar na parte de teatro: “O Fogão do Gaúcho”, por exemplo, ou “SãoFrancisco de Assis”.

    Desconfio que não sejam de grande efeito cênico as peças de Goulart de Andrade.Escreveu-as o poeta pensando talvez menos no palco que no torneado e graciosidade dasfrases. Surgem as suas figuras para intérpretes de palavras e de sentimentos, que o poetadeseja manifestar. Ele é quem fala por todas as suas criações, tanto nos sentimentos,como no vocabulário escolhido, sonoro e rico.

    Já foi notado, nesta Casa, que um dos temas prediletos desse teatro era o ciúme. Naprimeira série de peças de Goulart de Andrade não há, realmente, assunto mais influente.Ciúme do marido pela vida anterior da esposa, casada em segundas núpcias; ciúme dopai, que não deseja o casamento da filha; ciúme da senhora avisada, que procuradisciplinar, ou conduzir, as expansões amorosas do filho moço. Também as duas peçasfinais do repertório aproveitam largamente motivos semelhantes.Um Dia a Casa Cai relatao crime de um marido pacífico, funcionário público humilde e discreto, que a certeza doadultério da esposa converte num facinoroso estrangulador.

    As figuras femininas, que dominam as peças de Goulart de Andrade, ou são viúvas ou

    mulheres maduras. Para ele, e confessemos que também para a vida, a mulher fatal não éa jeune fille. À candura, ou à ingenuidade, ele antepõe a saborosa experiência. A

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    abnegada heroína deDepois da Morte, Alda, está casada pela segunda vez; as duasmulheres deRenúncia chamam-se Ester e Laura, a primeira com cinqüenta anos e asegunda com 36, e ambas viúvas. NaSonata ao Luar, Marta, personagem feminina de

    uma peça a dois, tem 35 anos. As mulheres em torno das quais se desenvolve o enredode Assunção já estão casadas, e a tentadora, a criatura irresistível, conta quinze anos de

    vida conjugal, enquanto a esposa esquecida não completou ainda o qüinqüênio dematrimônio, e nada pode fazer com ohandicap que a prejudica. Amália, a adúltera deUm

    Dia a Casa Cai, já transpôs os trinta anos. A única mocinha, que aparece no teatro deGoulart de Andrade, ou que nele se destaca, é Iolanda, cega de nascença e cujo interessedramático está exatamente nessa desgraçada circunstância.

    Para o poeta, o amor continua a ser, nas peças, o mesmo sentimento que os versos nos

    revelam: tormenta, delírio, exaltação. Voltam-lhe freqüentemente, nas descriçõesamorosas, os vocábulos que nos falam de alucinação, martírio, incêndio. Para ele, osbeijos são furiosos, os desejos febris, a paixão louca, histérica, brutal. O teatro escrito sobo domínio desses sentimentos não tem como aproveitar a jeune fille, numa época em queas condições sociais ainda as preservavam do turbilhão da luta pela vida. Nem ospersonagens de Goulart de Andrade revelam a paciência, o cálculo, o sibaritismominucioso e a perversidade profissional dos iniciadores.

    Duas peças se destacam, no conjunto da obra do poeta, pela maior riqueza de elementoscênicos, ou pelo movimento mais vivo da ação. Uma é Jesus; outra,Os Inconfidentes.

    A peça Jesus havia sido começada pelo irmão de Goulart de Andrade, Aristeu de Andrade,

    também poeta. José Maria encontrou escrito o primeiro ato e resolveu completar otrabalho, inspirado num sentimento que ele próprio nos descreveu:

    O teu querido poema inacabado Ao fim chegou em paz e salvamento:Releva, pois, um tal cometimentoDe uma saudade intérmina gerado.

    Que belo poeta é também esse Aristeu de Andrade! Maria Madalena, desejada de todos eesquecida de Jesus, fala, nestes versos de movimento fácil e de vibrante inspiração:

     A tristeza, porém, a minh’alma conturbaDesde o instante em que o vi à esfarrapada turba,Sereno como um Deus, em voz pausada e triste,Brandamente dizer: – “O eterno bem consisteNo reino de meu Pai... Se o desejais, amai-vos...”Pelos cabelos de ouro, o sol dava-lhe uns laivosDe uma auréola real! Seus olhos se embebiamEm êxtase nos céus, e seus lábios sorriam,Como devem sorrir, na glória, os do Senhor!

    Senti-me transformada e o meu febrento amor,Torpe como um chacal, tornou-se um cordeirinho,

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    Um anho virginal mais puro do que o linho,Que as donzelas de Sião desfiam em seus tearesPara vestir de branco as pedras dos altares.

    Sem uma nota, que indicasse o plano da peça, José Maria escreveu dois atos para

    completar o trabalho. Incluindo no enredo a Samaritana e nos deixando sentir, nos seusversos, a ressonância da peça de Rostand, Goulart de Andrade fez obra de arte e de

    amizade fraternal.

    ValemOs Inconfidentes, no domínio teatral, pela composição melhor e mais inspirada de

    seu autor. Pelo menos, há movimento, o conflito das paixões tem motivos novos e osversos surgem fáceis e belos. O assunto estaria, talvez, mais de acordo com a eloqüência

    do poeta, que mais à vontade se expandiria na exaltação patriótica e no vigor do civismo.Desenvolve-se a própria ação sob a influência de um romanesco que se eleva acima davulgaridade da vida e nos deixa entrever o céu límpido do sacrifício e do heroísmo.

    Senhor de estilo preciso, musical, rico de vocabulário e obediente aos cânones da

    linguagem vernácula, Goulart de Andrade foi excelente prosador nos vários gêneros deque se valeu, a crítica, a erudição, o romance. O romance, embora não tenha sido umagrande vitória literária, oferece interessante documentação, indispensável ao estudo dopoeta.

    O tema central de Assunção caberia naquela frase conhecida: “A vida é a mulher que setem; a arte a mulher que se deseja.” O escritor Sílvio de Novais “reconhecia que a sua obratalvez arabescada de filigranas, obra de um artista pitoresco, cheia de caprichosos relevose de feição aristocrática; mas falha de significação moral; doirada pelo sibaritismo, masemanada de um sensualismo mórbido, em que a luxúria se mesclava com o sangue. Atéali, ele tinha sido o panegirista do Gozo e da Beleza”. Para fugir a essas tendências, opoeta anseia por um grande sofrimento. O dilema dannunziano lhe aparecia com a forçade uma intimação:O rinnovarsi o morire! A dor o purificaria, ou lhe sublimaria ossentimentos, proporcionando-lhe a intensidade, ou a comoção, que até então não pudera,ou não soubera, encontrar na sua vida de homem feliz. Onde obter o sofrimento? As forças

    malignas da existência costumam ser caprichosas e não atendem facilmente àsencomendas de uma freguesia ocasional. Havia, entretanto, um recurso mais próximo, ou

    mais fácil: a paixão amorosa. Confessemos aqui, à puridade, que pode haver desgraçasmais terríveis. Na escolha das aflições, quem ainda se manifesta não é o estóico, mas o

    sibarita, que entre as torturas e as calamidades prefere as que sejam imaginárias, dentrodaquela filosofia que Machado de Assis já ensinava: antes cair das nuvens que de umterceiro andar.

    O escritor Sílvio de Novais, entretanto, é casado, e com uma criatura boníssima, Clara, que

    o adora e que não tem, talvez, ambição maior que a de um humilde sacrifício. Alguns anosde vida conjugal haviam acabado com as inspirações ardentes. É doutrina estabelecidapelos artistas que a Arte precisa, para viver, ou triunfar, do estímulo de paixões

    tormentosas. Não sei se a tese é verdadeira, pois que a vemos pelo menos praticada porpessoas livres de intenções estéticas. Todavia, para os artistas que aceitam essa doutrina,

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    torna-se a esposa uma espécie de intrusa que evita ou embaraça o advento da novainspiradora. O escritor Sílvio de Novais nos dirá: “Se renunciasse a Marta, abdicariacertamente da glória, porque ela lhe trazia uma aura prodigiosa de energias; ao seu influxo

    é que ele penetrava no fundo misterioso das coisas. Se se refugiasse na família, perder-se-ia para a arte.”

    O poeta prefere, naturalmente, a glória, ainda mais uma glória assim, de curvas amáveis ede beijos embriagadores. Terá a decisão as suas dificuldades, pois que não há meio de

    deixar de sentir a generosidade da esposa sacrificada, que adoece para morrer. A amante,de seu lado, não é apenas a glória, mas uma coisa mais complexa e mais perigosa: é uma

    nietzschiana. Mulher culta, inteligentíssima, intrépida, máscula na segurança e na força deseus sentimentos, domina e empolga o seu poeta. Não lhe interessam as convenções

    sociais; despreza o julgamento público ou até mesmo deseja enfrentá-lo e combatê-lo. Deacordo com o voto de Nietzsche, estava a sua alma liberta de toda obediência, de todagenuflexão e de todo servilismo. E queria arrastar o poeta nesse turbilhão, usando osargumentos fulgurantes de todas as tentações, desde os tempos bíblicos.

    Há uma circunstância que envolve, enleia e desespera o escritor Sílvio de Novais: é aagonia daquela esposa triste, que não se lamenta. Quando a morte chega, também demanso, quase sem estertores, não deixa de trazer uma compensação tardia para aquelamulher jovem e terna, que soubera amar com perfeição. Por mais que o procure a amante,está livre da fascinação o escritor Sílvio de Novais, pois que já o detém a lembrançadaquela que partiu ou o remorso de uma crueldade involuntária.

    Timidez? Fraqueza? Assim o diria Marta; assim também falaria Zaratustra. Mas no fundoda alma humana há sentimentos de bondade, de ternura, que as doutrinas não varremcom a rigidez de seus raciocínios implacáveis.

    Esse é o tema de Assunção, o romance de Goulart de Andrade. Nem sempreapreciaremos o desenvolvimento da ação. Há um pouco de banalidade nas cenas vividasnuma cidade do interior de Minas; há episódios que nos chocam, pela maneira como seapresentam. Mas a essência do romance tem o merecimento de nos fazer pensar e valeainda como o testemunho de uma das fases mais importantes na história da inteligência deGoulart de Andrade. A tentação tanto se poderia denominar Marta, como Frederico

    Nietzsche, nem por outro motivo me detive na exposição do tema. Na Itália, o incêndiodannunziano elevava para o céu as suas enormes labaredas e o turbilhão das fagulhasfulgurantes. A impressão que essas tendências deixam no escritor brasileiro mostra-se

    superficial e transitória. Razão tinha Croce, quando dizia que o Nietzschianismo era menosfilosofia do que temperamento ou mais sentimento do que sistema. Goulart de Andrade

    retorna sem demora ao fundo de sua personalidade. Preso, pela piedade e pela ternura,ao mundo em que vive, não consegue alcançar as paragens infernais das paixões funestase do personalismo sem freio. É humana demais, para as façanhas temerárias doNietzschianismo.

    A Cadeira 6

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    Muito haveria que falar no erudito e no crítico. Muito haveria que dizer do patriota ou doorador. Vários de seus estudos, o ensaio sobre a balada, a conferência a respeito dainfluência de Camões na obra de Milton, os artigos naRevista da Academia, ou

    naIlustração Brasileira, mereceriam mais detida referência. Esse erudito tem o esmero deum analista. A disciplina das matemáticas não lhe permite as aventuras da improvisação.

    Os discursos reunidos sob o títuloPela Grei revelam-nos o sentimento vibrante do patriota.A sua pregação é enérgica, desinteressada e entusiástica. Nos pátios dos quartéis, no

    tombadilho dos navios, nas associações de classe, nos estádios esportivos, a palavra deGoulart de Andrade sempre vibrou eloqüente, idealista e colorida.

    De todos os seus livros em prosa, entretanto, o que se nos afigura mais profundo e maismeditado é o que fala das personalidades que honraram, nesta Academia, a Cadeira 6,

    aquela que ele próprio dignificou, mercê de seus livros e de sua vida de enamorado dasLetras.

    Nenhum prêmio o encantara tanto como a eleição para esta Companhia, que fora sempreo seu refulgente sonho de escritor. Vencendo, em pleito difícil, um adversário como o

    príncipe D. Luís de Orleans, Goulart de Andrade quis patentear à Academia a gratidão e odesvanecimento de quem sabia estimar o valor de vossos prêmios. Não achou idéiamelhor que a de conferências sucessivas a respeito dos que haviam passado pela mesmaCadeira que lhe destes.

    Que esplêndidas biografias foram assim reunidas, com o lavor de um artista incansável! Odesfile é, por certo, notável, desde Casimiro de Abreu, o patrono da Cadeira 6, o poeta por

    excelência da ternura brasileira. Não foi em vão que ele intitulou dePrimavera ao seu livrode versos. As suas poesias não sugerem corolas esplendentes, nem ramos fartos; deixamantes a impressão discreta de brotos e de botões, que acordam ao chamado dos raios desol.

    Teixeira de Melo, também poeta, não encontraria, na sua lira, os acordes meigos eingênuos que enfeitam a poesia de Casimiro de Abreu. Mas Sílvio Romero o exaltaria, eera tão grande o prestígio do crítico! Atravessando uma longa fase de vida, Teixeira deMelo se afirmaria também por meio de notáveis trabalhos de erudição.

    Veio então Jaceguai, o segundo ocupante da Cadeira 6. Guerreiro e escritor, homem deação e de inteligência, chega a parecer um monumento, na altura em que paira, ou norelevo de sua individualidade fascinante. Não é ele quem no combate de Humaitá,dirigindo o couraçadoBarroso, primeiro chega às correntes submersas que impediam apassagem do rio? As ordens do comando supremo, para que esperasse os companheirosda empresa, não o conseguem deter, como também não o fazem estacar as balas

    paraguaias, que em cheio alcançam a muralha do couraçado. Com o braço apoiado àportinhola de vante, Artur Silveira da Mota chefia a manobra, junto ao prático, navegando à

    luz das fogueiras imensas que, na margem do Chaco, alumiavam a façanha prodigiosa.

    Os feitos guerreiros de Jaceguai não são inferiores às páginas que ele compôs. Sente-seno seu estilo a bravura, a decisão, a lealdade do marinheiro. E as frases têm um ritmo

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    largo e simples de ação, e espelham o mesmo patriotismo daqueles destemidosvencedores de Humaitá.

    Últimos anos

    O último livro de Goulart de Andrade éOcaso, a terceira série de suas poesias editadasem 1934. Alguns anos antes já se havia interrompido o ritmo de sua criação. Os livrosestampados nesse período final reuniam trabalhos antigos.

    Tive a explicação desse silêncio quando visitei Goulart de Andrade. Eu o conhecera deperto na Câmara dos Deputados, que ele freqüentava como redator de debates e eu como jornalista profissional. Procurava-o muito, gostando de sua palestra animada, ou dasirreverências que externava sem amargura, exuberante e alegre.

    Perdi-o depois de vista. Fui encontrá-lo em casa, irreconhecível. Envelhecera vinte anos.Pálido, consumido, não era mais o Goulart de Andrade, mas um velhinho cansado, dentroda meticulosa disciplina de um horário de remédios e de uma dieta inflexível. Custei adissimular a minha surpresa, ou o meu espanto, diante de tão rápida e completadecadência.

    Aquele artista, amigo da vida mundana, orgulhoso de vitórias sociais, e que tanto sedesvanecia com a admiração que os seus versos arrancavam aos corações femininos,estava ali, metido num pijama comum, precocemente decrépito, inesperadamenteaniquilado. Onde mais o entusiasmo de suas palavras? A arrogância dos gestos naturais?

    A riqueza de modulações da voz bem timbrada, que tantos triunfos lhe conquistara na artede dizer versos, ou na leitura de sua prosa cadenciada e sonora? Onde o fulgor do olhar,ou a vivacidade da inteligência inquieta?

    Compreendi, todavia, que a vida não deixara de protegê-lo. Afastando-o do torvelinho, aque ele se habituara, deu-lhe, em compensação, a assistência das afeições dedicadas.Junto dele, havia sempre uma inexcedível amizade, que o protegia, que o confortava, queo disputava à moléstia e à consumição. Perdoai que a nomeie: era D. Fernandina Goulartde Andrade. Desvelada, maternal, foi uma animadora serena, talvez heróica, na firmeza

    dessa batalha dolorosa. E Goulart de Andrade conhecia as abnegações que o cercavam.

    Sempre que falava na esposa, ou nas filhas, as lágrimas vinham contar, nos olhos já sembrilho, os segredos mansos de uma gratidão que as palavras não podiam descrever.

    Mesmo assim, batidos pela doença implacável, esses últimos anos da vida do poeta não

    foram tristes, nem amargurados. À floração da juventude, às rosas, às popoulas e aoscravos de que ele falara, como símbolos do desejo e das paixões impetuosas, sucederam

    as violetas discretas do enternecimento. A bondade, que era congênita, tradição defamílias brasileiras, apurava-se, sublimava-se na decadência, aproximando-o mais das

    amizades fiéis, conduzindo-o à religião, que lhe ensinava a confiar no destino providenciale misericordioso.

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    Já vos falei nas amizades que o apoiaram e o confortaram. Mas há um nome que tambémnão devo calar. É o símbolo da amizade perfeita. É Martins Fontes.

    Ele e Goulart de Andrade haviam sido companheiros no grupo de Bilac, sócios docenáculo da Confeitaria Colombo, e a afeição que os aproximou não foi inquietada pelo

    tempo. Voltando à sua cidade natal, Martins Fontes não esquecia os amigos que aquicontinuavam. Uma vez por outra, nas viagens à Guanabara, o poeta de Santos ia de casaem casa, na sua romagem afetiva, que Bilac anunciava numa linguagem pitoresca:

    – Martins Fontes invadirá o Rio a tal hora...

    Era mesmo uma invasão, que vinha com a força de um cataclismo, turbilhonante,irresistível. Um cataclismo benévolo, está visto, e se possível o conceito. Ainda há pouco,um de seus mais brilhantes panegiristas, o Sr. Heitor Lima, recordava esse episódioexpressivo: Martins Fontes passeia com os amigos pelos caminhos do Silvestre. Estaca,de súbito, dirigindo-se para o portão de uma casa cercada de jardins. Agita furiosamente acampainha e, como demorem a atendê-lo, vai entrando sem hesitação. Caminha para umcriado que se aproxima e lhe pede um regador d’água. Atendido, começa ele próprio a

    regar as roseiras ressequidas, abandonadas nos canteiros. Concluída a tarefa, despede-sedas roseiras, uma a uma, beijando-as reverentemente, diante do empregado atônito, por

    certo amedrontado.

    De outra feita, ajoelha-se Martins Fontes na Praia do Flamengo, para dizer orações à lua.

    Recita a prece de Salambô, com a solenidade de um sacerdote cartaginês. E assim era

    ele sempre, imprevisto, pitoresco, impetuoso. Até nos versos se revela o tumulto interior ea variedade de suas emoções, que ora lhe inspiram poemas suaves, de um lirismoinebriante, como nas Palavra Românticas, ora lhe arrancam frases desordenadas,

    vocábulos caprichosos, extravagâncias de uma imaginação que ele mesmo denominava“febricitante, tumultuária, ardentíssima”.

    E que maravilhosocauseur! Não somente a palavra lhe acudia fluente, precisa, variada,como o gesto e a expressão fisionômica sabiam acompanhar as suas narrativas

    movimentadas.

    Nos últimos tempos da vida de Goulart de Andrade, Martins Fontes não faltava àcomemoração da data natalícia do amigo. A 6 de abril era certo vê-lo descer à portadaquela casa acolhedora, vindo especialmente de Santos para a festa do abraço fraternal.

    Encontrei-o uma vez nessa visita de aniversário. Durante algumas horas, não fizemossenão ouvir tudo o que Martins Fontes quis dizer. Recitou versos, recordou episódios

    antigos, repetiu anedotas. Era uma torrente de palavras, de imagens, de idéias. Aindarecordo a história que ele narrava de uma guerra verbal entre um cocheiro de Paris e não

    sei mais que escritor brasileiro. Na iminência da derrota, o escritor tinha uma inspiração elembrando-se das figuras de ornato:

    – Silepse, anástrofe, hipérbaton, anacoluto...

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    A voz de Martins Fontes ia rolando as sílabas majestosas, num tom agressivo de queminsulta, e a fisionomia retratava uma cólera súbita e veemente.

    Goulart de Andrade, apoiados os cotovelos nos braços de sua cadeira de descanso, ria,deslumbrado. Parecia estar ouvindo o arcanjo, que lhe vinha recordar as delícias do

    Paraíso, de um Paraíso que a magia daquela palavra generosa conseguia fazer ressurgiraos olhos quase apagados daquele moribundo. Quanto aos outros, o que nosimpressionava era o contraste daquelas duas criaturas quase da mesma idade, uma

    arruinada pelas moléstias, a outra esplendente de saúde, de alegria, de vitalidade.

    Não se podia supor que a morte também os quisesse irmanar, levando-os quase aomesmo tempo. Entretanto, se eles caminham juntos, no mistério que os envolveu, comonão terá sido grande a consolação para os dois viajantes! E quem sabe, senhores

    acadêmicos, quem sabe se não foi dado às grandes afeições o privilégio de enfrentar e devencer a própria eternidade?

    DISCURSO DE RECEPÇÃO – MÚCIO LEÃO

    Discurso de recepção por Múcio Leão

    Alegria e melancolia

    Nesta noite de vossa consagração acadêmica, Sr. Barbosa Lima Sobrinho, não sei quemais haverá no espírito daquele que chega e no espírito daquele que vem dar-lhe as boas-vindas. Não sei que mais haverá – se alegria, se melancolia.

    Alegria haverá, e grande, pois esta é a noite gloriosa em que recebeis o galardão merecidopela obra que, através de quatro lustros, vindes realizando, no incansável labor de homemde letras e de jornalista.

    Melancolia haverá, e profunda; a melancolia de não vermos aqui, entre os presentes,algumas figuras benignas, que vos amaram, que vos compreenderam, que sentiram, umdia, o orgulho de vosso destino fulgurante.

    Que vos direi eu nesta noite? Que vos direi eu, que tenho tanta coisa a dizer a vossopropósito?

    Permiti, primeiramente, que, abandonando, por um instante, as pompas desta solenidade,a minha imaginação se transporte para bem longe, para o vosso e para o meuPernambuco. Ali, torno a encontrar, amáveis e graves, dois homens, cujo maior sonhoconsistiria em que pudessem ver chegados à festividade de hoje os filhos que, ao ladodeles, os seguem, procurando imitar-lhes os exemplos de uma pobreza austera, honesta elaboriosa. Ali torno a encontrar as imagens de duas mulheres suaves, afeitas igualmente

    ao sacrifício e à ternura. Ali torno a encontrá-las, cercadas de um bando álacre de

    crianças.

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    No meio desse bando de crianças, há dois meninos que aos meus olhos se destacam. São já amigos dos livros, são já especulativos ou melancólicos, e já vivem procurando, paraleituras e meditações, autores solenes ou graciosos.

    Um desses meninos, e sem dúvida o mais prudente, o mais sutil, o mais exato, sois vós.

    Tríplice esplendor

    A Cadeira que vindes ocupar fulgura sob um tríplice esplendor.

    O patrono é aquele rapaz desconsolado e meigo que, nos instantes de uma vida curta,

    soube sonhar um sonho deslumbrado e deixou versos impregnados de indizível tristeza eternura sem fim. O criador da Cadeira é o poeta comovido e dolente, o poeta que conhece

    as mágoas das esperanças fanadas e dos amores insatisfeitos. O segundo ocupante é oherói fulgentíssimo que pôde esculpir, nos campos de batalha, alguns dos bronzespreclaros de nossas epopéias; erudito, ele perdura, também, no valor dos livros queescreveu. O terceiro ocupante, aquele a quem sucedeis, é o gentil-homem de encantadoraestirpe mental, é o poeta, o romancista, o crítico atilado.

    Poesia. Heroísmo. Erudição.

    É esse o legado que vindes receber, Sr. Barbosa Lima Sobrinho. E sois digno de guardá-lo.

    Quanto à erudição, não será somente a Academia Brasileira quem a proclame, a louve e aadmire. Ela está aí, nítida, em ótimos livros, que abordam os mais diferentes gêneros. Por

    esse lado, o autor da Ilusão do Direito de Guerra e doProblema da Imprensa seráexcelente continuador de Teixeira de Melo, o estudioso dasEfemérides Nacionais, de

    Jaceguai, o cronista de nossa história naval, e de Goulart de Andrade, o críticodeSementeira e Colheita, o aproximador de Milton e Camões.

    Quanto ao heroísmo, nada posso dizer. Conheço-vos as virtudes civis e particulares, e seique conservais aquela rija fibra moral dos velhos pernambucanos, que souberam escrever,

    em nossa Pátria, as páginas galhardas da bravura. Não tivestes ainda ocasião de mostrar

    se possuís, como Jaceguai, uma têmpera de guerreiro. Tudo o que sei é que já andastesmilitarmente fardado, com uma bravia carabina ao ombro, nas marchas e contramarchasde um tiro-de-guerra do Recife. Desse belicoso tempo ficaram, indeléveis, alguns traçosem vosso coração. E no mais austero dos vossos livros é com orgulho maldisfarçado queaproveitais uma ocasião que se apresenta para desvendar aos nossos olhos os difíceissegredos da nomenclatura dos fuzis Mauser.

    Para completar-vos a integração na Cadeira de Casimiro de Abreu, restar-me-á falar dapoesia. E poeta vós o sois, meu ilustre confrade. Poesia é o encanto de vossa vida tãopura, tão alta e recatada, toda oferecida ao bem da Pátria e ao amor da família. Poesia é

    grande parte de vossa obra – esse gracioso livro da Árvore do Bem e do Mal, algumasdessas histórias sutis doVendedor de Discursos, a maliciosa tradução doDiário de Adão e

  • 8/19/2019 Barbosa Lima Sobrinho

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    Eva, que publicastes, um pouco clandestinamente, nos começos da atividade literária.Poesia é, principalmente, essa longa série de trabalhos que guardais nas gavetas, essessonetos e esses poemas que viestes escrevendo num diálogo íntimo com a vossa própria

    alma.

    Alvorecer de uma vocação literária

    As primeiras manifestações de vossa tendência literária, meu caro confrade, eu vouencontrá-las na infância. Era no Instituto Ginasial Pernambuco, o colégio da Rua daAurora, que, sob a direção de Cândido Duarte, acolhia uma centena de garotos inquietos.Vossa turma possuía, entre outros, dois meninos que mostravam possuir maiorespendores para a literatura. Um era Edmundo Jordão, belo espírito de homem de Letras,que hoje, todo entregue às cogitações de magistrado, redige eruditas sentenças no Juízo

    de Direito de Garanhuns. O outro éreis vós. Estudiosos, lidos, já, em Eça de Queirós, emZola e talvez em Machado de Assis, vós e Edmundo Jordão deliberastes fundar um jornal.

    Essa folha usava um título pomposo – A Verdade. O quanto era infantil aquele retalhinhode papel, escrito por dois colegiais, não será difícil imaginar. Mas, se eu cito o fato, é

    somente porque ele parece traduzir, já nesses dias, que poderíamos dizer longínquos, avossa irrecusável tendência para as atividades jornalísticas.

    Veio depois o período da Faculdade de Direito. No velho instituto encontrastes mestrescapazes de vos