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na Paula de Barcellos
Professora djunta de Direito Constitucional da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERI);
Doutora em Direito Público pela UERI
PONDERAÇÃO,
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Carlos Alberto Menezes Direito
Caio Tácito
Luiz Emygdio F. da Rosa Jr.
Celso de Albuquerque Mello
in rnemoriam)
Ricardo Pereira Lira
Ricardo Lobo Torres
Vicente de Paulo Barretto
Revisão Tipográfica:
M° de Fátima Cavalcanti
Capa:
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Editoração Eletrônica:
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2 tiragem - janeiro de 2007
JO. _
0102
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Barcellos, Ana Paula de
8426p
onderação, racionalidade e atividade jurisdicional / Ana Paula de
Barcellos. — Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
356p. ; 21 cm
Inclui bibliografia
ISBN 85-7147-511-3
1. Direito constitucional — Brasil. I. Título.
CDD 343.8104
Proibida a reprodução Lei 9.610/98)
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
AGRADECIMENTOS
Poder agradecer, já se disse, é uma benção divina.
Mas é
preciso retificar. Na verdade não se trata
propriamente de
poder
agradecer. Sempre há o que agradecer.
Na maior parte
das vezes a questão é ter olhos de ver o que se tem recebido
e humildade para reconhecer que, sozinhos, somos pouco
mais que nada. No caso específico deste trabalho, o mais cego
e soberbo dos homens não teria como deixar de ser grato.
Há tanto a agradecer e a tantas pessoas que este registro
mais do que um costume editorial, tornou-se pessoalmente
tão importante quanto o próprio trabalho que o segue. Não
fui capaz de inventar novas línguas ou imaginar formas origi-
nais de demonstrar minha gratidão e tocar as pessoas. Mais
uma vez, só me restam as palavras de sempre. Seja como for,
estou certa de que Deus ouvirá minhas orações em favor de
cada um dos envolvidos.
Este
livro corresponde, com pequenas adaptações, à tese
denominada "A técnica da ponderação: metodologia e parâ-
metros jurídicos", apresentada em conclusão do Doutorado
em Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade
do
Estado
do
Rio de Janeiro. Participaram
da banca exami-
nadora, para honra do trabalho e meu orgulho pessoal, além
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do Professor Luís Roberto Barroso, orientador do estudo, os
professores José Afonso da Silva, Clèmerson Merlin Clève,
Ricardo Lobo Torres e Paulo Braga Galvão. Sou grata de
forma muito particular a cada um deles por suas críticas,
observações e sugestões sobre a tese. A rigor, a expectativa
de ter tais professores na banca examinadora me impulsionou
a realizar o melhor trabalho que fui capaz de produzir, e
apenas por isso já sou especialmente grata.
O orientador deste trabalho foi o Professor Luis Roberto
Barroso. Há pessoas que entram na vida de outras e mudam
suas existências de forma maravilhosa e definitiva. Na minha
vida, uma dessas pessoas é, sem dúvida, o Professor Luís
Roberto Barroso. Há onze anos compartilhamos amizade,
companheirismo fraternal, projetos acadêmicos e profissio-
nais. Eu gostaria de veicular minha gratidão de uma forma
precisa, que correspondesse ao que penso e sinto, mas essa
forma não existe na Terra. Só me resta dizer obrigada; mas
me consola saber que serei perfeitamente compreendida.
Este trabalho não teria sido possível sem a ajuda incan-
sável e preciosa em cada aspecto de Danielle Lins. Seu
talento, sua inteligência e seu carinho foram imprescindíveis.
Renata Ramos, lá de Cambridge, fez uma revisão completa e
profunda do texto, além de ter sido uma interlocutora valiosa.
Também reviram o texto, e me livraram de muitos proble-
mas, Eduardo Mendonça, Luís Eduardo Barbosa Moreira e o
insuperável Nelson Diz. Ajudaram muitíssimo na revisão
formal e padronização, em momentos diversos, os Felipes
Fonte e Barcellos e Juba Rodrigues. Carmen Tiburcio foi e é
um ser humano sob a forma de injeção de ânimo para quem
está ao seu redor.
Todas as pessoas que acabo de listar estão ou estiveram
vinculadas a minha segunda família: o escritório Luis Roberto
Barroso Associados. Na verdade, se alguém não ajudou
diretamente neste trabalho foi porque não pôde. Esse é o
caso dos brilhantes advogados Karin Basílio Khalili, Viviane
Perez e Rafael Barroso Fontelles, que estavam muito ocupa-
dos trabalhando, justamente para que eu pudesse me dedicar
ao doutorado. Seu carinho em todo o tempo, porém, é o que
vale a pena e sou muito grata a eles.
Flávio Galdino, companheiro de jornadas acadêmicas,
participou de inúmeras discussões sobre diferentes pontos da
tese, reviu o texto e esteve sempre presente. Sou grata ainda
a meus alunos da Faculdade de Direito da UERJ. Muitas
vezes eles foram cobaias involuntárias das idéias desenvolvi-
das neste trabalho e o produto obtido nos grupos de pesquisa
foi útil em muitos pontos da tese que agora se transforma
em livro. Leandro Barifouse, além de cobaia, prestou impor-
tante ajuda na revisão dos originais.
Passarei o resto de meus dias ocupada em agradecer a
meu marido, Daniel; não será suficiente,
M28
será um prazer.
Ele, como ontem, e a cada dia mais, é a alegria da minha vida.
Mais uma vez, sem ele, eu sequer seria eu mesma e nada
disso teria importância ou valor algum. Obrigada, meu que-
rido. Jonatas e Felipe são meus filhos de eleição e agradeço
pelo carinho constante. Meus pais, José e Alice, e minha tia,
Marcelina, são incansáveis sustentáculos: obrigada mais uma
vez.
Reservo minhas melhores palavras para expressar minha
gratidão a Deus, acima de tudo e de todos. Sinto-me como
Abraão: em tudo tenho sido muito abençoada. A verdade é
que toda boa dádiva vem de Deus e é preciso ser grata. Ao
Todo-Poderoso, portanto, pai de nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo, por seu amor e por sua bondade permanentes,
agradeço com tudo o que sou e possuo.
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Prefácio
DIREITO RACIONALIDADE
E PAIXÃO
I. A autora
Há professores que mudam a vida dos seus alunos. Pelo
talento pelo amor ao ensino ou por um gesto amistoso
servem de inspiração exemplo ou símbolo para os jovens
estudiosos. Tive alguns mestres assim ao longo da vida e
os guardo na mente e no coração. Nos meus melhores
sonhos vivo a esperança de ser um desses.
É menos comum na vida acadêmica um aluno mudar
a vida de seu professor. Foi o meu caso na longa interação
acadêmica que mantenho com Ana Paula de Barcellos. Aliás
percebi que isto poderia acontecer desde o primeiro mo-
mento quando ela venceu o concurso para se tornar minha
monitora pouco mais de dez anos atrás. A velocidade e
profundidade com que dava retorno às pesquisas que eu lhe
passava impuseram a mim mesmo desde o começo do nosso
convívio um novo ritmo e um outro patamar.
De lá para cá Ana Paula e eu desenvolvemos uma
intensa relação profissional e acadêmica na qual ela tem
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sido não apenas uma interlocutora brilhante, construtiva e
dedicada, mas também co-autora de diversos trabalhos que
produzimos juntos. Em livro recente que escrevi, prestei
sobre ela o depoimento que me pareceu justo:
(...) E Ana Paula de Barcellos, que há dez anos ingres-
sou na vida acadêmica pelas minhas mãos, tendo sido
minha monitora e minha orientanda de mestrado e de
doutorado, até tornar-se professora da UERJ por con-
curso público. O leitor imaginará que tenha sido pro-
veitosa para a jovem estudiosa a convivência com seu
professor. Mas deve saber que a recíproca é mais
intensamente verdadeira: de longa data beneficio-me
eu de seu talento privilegiado, de sua inteligência
emocional e de sua dedicação plena a todos os projetos
com os quais se compromete .
Um primeiro marco dessa relação foi sua dissertação
de mestrado, intitulada A eficácia jurídica dos princípios
constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa huma-
na.
Um trabalho precioso, que se tornou leitura obrigatória
no tema. Já agora vem à luz sua tese de doutorado, uma
obra-prima acerca do novo papel de juízes e tribunais na
interpretação do direito:
Ponderação racionalidade e ati-
vidade jurisdicional. Trata-se, provavelmente, do mais
bem-sucedido esforço já realizado na dogmática jurídica
brasileira de desenvolver parâmetros de juridicidade e
racionalidade na contenção da discricionariedade judicial'.
Luis Roberto Barroso,
Temas de direito constitucional t. 111 2005
Registros.
2 Sem surpresa, seu trabalho foi aprovado com nota máxima, em
banca da qual participaram, além de mim, como orientador, os eminen-
tes professores José Afonso da Silva, Clêmerson Merlin Ceve, Ricardo
Lobo Torres e Paulo Braga Galvão.
Em homenagem à autora e ao leitor, animo-me a
algumas reflexões acerca do atual estágio do debate cons-
titucional no Brasil, que serviu de cenário e de inspiração
para o desenvolvimento da tese que ora apresento.
II. Neoconstitucionalismo, interpretação constitucional e
judicialização das relações sociais no Brasil
A dogmática jurídica brasileira sofreu, nos últimos
anos, o impacto de um conjunto novo e denso de idéias,
identificadas sob o rótulo genérico de
pós-positivismo
ou
principialismo. Trata-se de um esforço de superação do
legalismo estrito, característico do positivismo normativis-
ta, sem recorrer às categorias metafísicas do jusnaturalis-
mo. Nele se incluem a atribuição de normatividade aos
princípios e a definição de suas relações com valores e
regras; a reabilitação da argumentação jurídica; a formação
de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvi-
mento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada
sobre a idéia de dignidade da pessoa humana. Nesse
ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito
e a Ética.
Fenômeno contemporâneo, que entre nós iniciou seu
curso após a Carta de 1988, foi a passagem da Constituição
para o centro do sistema jurídico. À supremacia até então
meramente formal da Lei Maior agregou-se uma valia
material e axiológica, potencializada pela abertura do sis-
tema jurídico e pela normatividade de seus princípios'.
3
V. Pietro Perlingieri,
Perfis do direito civil
1997, p. 6: O Código
Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador
do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilisticos
quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira
cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional . Vejam-se, também,
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Compreendida como ordem objetiva de valores
e como
sistema aberto de princípios e regras', a Constituição
transforma-se no filtro através do qual se deve ler todo o
direito infraconstitucional. Este importante desenvolvi-
mento metodológico tem sido designado como
constitucio-
Maria Celina B. M. Tepedino, A caminho de um direito civil constitu-
cional, RDC 65:21, 1993 e Gustavo Tepedino, O Código Civil, os
chamados microssistemas e a Constituição: premissas para urna refor-
ma legislativa. In: Gustavo Tepedino (org.),
Problemas de direito civil-
constitucional,
2001.
4
Na Alemanha, a idéia da Constituição como ordem objetiva de
valores, que condiciona a leitura e interpretação de todos os ramos do
direito, foi fixada no julgamento do célebre caso
Liith,
pelo Tribunal
Constitucional Federal alemão, que assentou: Los derechos funda-
mentales son ante todo derechos de defensa del ciudadano en contra
dei Estado; sin embargo, en las disposiciones de derechos fundamenta-
les de la Ley Fundamental se incorpora también un orden de valores
objetivo, que como decisión constitucional fundamental es válida para
todas las esferas dei derecho (Jürgen Schwabe,
Cincuenta anos de
jurisprudência dei Tribunal Constitucional Federal alemán,
2003, Sen-
tencia 7, 198). No caso concreto, o tribunal considerou que a conduta
de um cidadão convocando ao boicote de determinado filme; dirigido
por cineasta de passado ligado ao nazismo, não violava os bons costu-
mes, por estar protegida pela liberdade de expressão.
5
A idéia de
abertura
abriga dois conceitos:
incompletude —
a Cons-
tituição não tem a pretensão de disciplinar todos os temas e os que
disciplina somente o faz instituindo os grandes princípios — e certa
indetenninação de sentido,
que permite a integração de suas normas
pela atuação do legislador e do intérprete. V. Luís Roberto Barroso,
Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional bra-
sileiro. In:
A nova interpretação constitucional,
2003. Sobre a distinção
entre princípios e regras, v.
infra
e, especialmente, Ronald Dworkin,
Taking rights seriously,
1997, e Robert Alexy,
Teoria de los derechos
fundamentales,
1997. Para a idéia de
abertura
do sistema jurídico, v.
Claus-Wilhelm Canaris,
Pensamento sistemático e conceito de sistema
na ciência do direito,
1996. Para um tratamento sistemático destas
questões, v. também J. J. Gomes Canotilho,
Direito constitucional e
teoria da Constituição,
2000, p. 1.121 es.
nalização do direitos, uma verdadeira mudança de para-
digma que deu novo sentido e alcance a ramos tradicionais
e autônomos do Direito, como o civil, administrativo,
penal, processual etc.
Ainda nesse ambiente, desenvolveu-se um conjunto de
idéias que foi identificado — inclusive por mim e pela
autora — como
a nova interpretação constitucional , mar-
cada pela mudança de dois paradigmas: o do papel da
norma jurídica e o do papel do intérprete na realização do
direito'. Foi no âmbito dessas novas formulações teóricas
Sobre o tema, v. Riccardo Guastini, La constitucionalización dei
ordenamiento jurídico: el caso italiano. In: Miguel Carbonell (org.),
Neoconstitucionalismo(s), 2003; e Luís Roberto Barroso, O novo direi-
to constitucional e a constitucionalização do direito. In: Temas de
direito constitucional, t. III, 2005.
7
uís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, O começo da histó-
ria. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no
direito brasileiro. In: Luís Roberto Barroso,
A nova interpretação cons-
titucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas,
2003.
8 interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se sobre duas gran-
des premissas: a primeira, quanto ao
papel da norma,
que seria o de
oferecer, no seu relato abstrato, a solução para os problemas jurídicos;
a segunda, quanto ao papel do
juiz, que seria o de identificar a norma
aplicável ao problema que lhe cabe resolver, revelando a solução nela
contida. Sua função seria uma
função
de conhecimento técnico, de
formulação de juízos de fato. Com o tempo, as premissas ideológicas
sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram
de ser integralmente satisfatórias, quer quanto ao papel da norma, quer
quanto ao papel do intérprete. De fato, quanto ao papel da norma,
a
solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato
abstrato da norma. Muitas vezes só é possível produzir a resposta
constitucionalmente adequada à luz doproblema, dos fatos relevantes,
analisados topicamente; quanto ao
papel do juiz,
já não será apenas um
papel de conhecimento técnico, voltado para revelar o sentido contido
na norma. O juiz torna-se co-participante do processo de criação do
Direito, ao lado do legislador, fazendo valorações próprias, atribuindo
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que foram desenvolvidas ou sistematizadas categorias es-
pecíficas, que incluem o emprego da técnica legislativa das
cláusulas abertas, a normatividade dos princípios, o reco-
nhecimento da existência de colisões de normas constitu-
cionais, a necessidade do emprego da técnica da pondera-
ção de valores e a teoria da argumentação como funda-
mento de legitimação das decisões judiciais. O papel chave
da ponderação dentro desse novo modelo de racionalidade
jurídica foi a motivação do estudo ora apresentado.
Por fim, todos estes elementos novos — pós-positivis-
mo, constitucionalização do direito, nova interpretação
constitucional —, aliados a circunstâncias peculiares da
redemocratização no Brasil, levaram a um novo fenômeno:
a
judicialização da vida
a ampliação da interferência do
Judiciário nas relações sociais em geral'. Isto tem sido
verdade não apenas em relação às grandes questões insti-
tucionais —
e.g.
a constitucionalidade das Reformas da
Previdência e do Judiciário — ou afetas a direitos funda-
mentais —
e.g.
legitimidade da interrupção da gestação
de fetos inviáveis —, como também no que toca a temas
mais diretamente ligados à rotina da vida social, como o
valor da mensalidade dos planos de saúde ou a majoração
das tarifas telefônicas.
Pois bem: a abertura dos textos normativos, o exercício
de discricionariedade pelo intérprete e a expansão do papel
de juízes e tribunais criaram novas demandas de elaboração
sentido a cláusulas abertas e realizando escolhas. V. Luis Roberto Bar-
roso,
Temas de direito constitucional t.
III, 2005, p. 515-16.
9
obre este tema, v. Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Resende de
Carvalho, Manuel Palácios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, A
judicialização da política e das relações sociais no Brasil
1999; Mark
Tushnet,
Taking the constitution away from the cozias
1999; Robert
Bork
Coercing virtue
2003; e Ran Hirschl,
Towards juristocracy
2004.
teórica. De fato, em nome da objetividade mínima do
direito e da previsibilidade das condutas, impõe-se o de-
senvolvimento de parâmetros técnicos que permitam a
controlabilidade das decisões, preservando o Estado de-
mocrático de direito de uma degeneração indesejável: a do
voluntarismo judicial. Com
pioneirismo e criatividade, este
livro enfrenta o desafio trazido pela nova realidade da
interpretação jurídica.
III. Algumas idéias centrais do trabalho
Na
primeira parte
de seu estudo, Ana Paula enuncia o
propósito de sua tese: proceder a uma ordenação metodo-
lógica da ponderação jurídica, conceituada como a técnica
de solução de conflitos normativos que envolvem valores
ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas
hermenêuticas tradicionais. Na seqüência, escreve páginas
primorosas sobre a racionalidade e a justificação das deci-
sões judiciais, analisa as críticas e formulações alternativas
à ponderação e expõe o tratamento da matéria nos direitos
norte-americano e alemão. Como pressuposto desses no-
vos desenvolvimentos, identifica a expansão do espaço
interpretativo e a ascensão política e institucional do Poder
Judiciário. Em suas palavras:
Nesse contexto, parte da sociedade (no Brasil e em
outros países), descrente do processo político normal,
alimenta a expectativa de que o Judiciário seja afinal
um espaço onde possam desenvolver-se de maneira
mais lisa a discussão e a definição de políticas públicas.
Esse movimento político acaba encontrando algum
respaldo em disposições normativas bastante vagas,
especialmente no nível constitucional, como visto aci-
ma. A despeito do impacto que essa forma de visualizar
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o
Judiciário possa ter sobre o regime democrático, a
percepção desse fenômeno ajuda a entender o ambien-
te no qual a técnica da ponderação tem se desenvolvido
e aplicado .
Na
segund p ne
do trabalho, a autora expõe um
roteiro lógico e didático da ponderação, a ser percorrido
em três etapas, analiticamente desenvolvidas. Na primeira
etapa, cabe ao intérprete proceder à identificação dos
enunciados normativos em tensão. Na segunda etapa, cabe-
lhe a identificação dos fatos relevantes e a apreciação da
repercussão da incidência dos enunciados normativos so-
bre os fatos selecionados. Por fim, chega-se à terceira
etapa, que é a fase decisória da ponderação. É bem de ver,
corno adverte o texto, que a técnica da ponderação em si
não oferece respostas para as questões de natureza material
que se colocam neste momento, mas a observância de
determinados cuidados metodológicos ajudam na formu-
lação da solução mais adequada. É como explica Ana Paula:
Neste momento, o aplicador precisará de parâmetros
propriamente jurídicos para orientar suas escolhas que,
no entanto, não são fornecidos pela técnica da ponde-
ração em si. De toda sorte, antes mesmo desses parâ-
metros, três diretrizes devem ser consideradas pelo
intérprete: (i) qualquer decisão deve poder ser gene-
ralizada para casos equiparáveis (pretensão de univer-
salidade), assim como a argumentação empreendida
deve utilizar uma racionalidade comum a todos; (ii)
sempre que possível o intérprete deve produzir a con-
cordância prática dos enunciados em disputa; e (iii) a
decisão a ser produzida deve respeitar o núcleo dos
direitos, ainda que um núcleo apenas consistente, e não
duro .
Na
terceir e últim p rte
da tese, Ana Paula de Barcellos
desenvolve um conjunto de parâmetros preferenciais que
deverão orientar a atividade do intérprete. São eles presun-
ções de caráter relativo destinadas a reduzir a subjetividade
e ampliar a controlabilidade das decisões. Tais parâmetros
poderão ser gerais — aplicáveis a qualquer espécie de litígios
— ou particulares, que se ocupam de colisões entre dispo-
sições específicas. Ao cuidar dos parâmetros gerais, assim
sintetizou a autora a sistematização que propôs:
Ao longo do processo ponderativo o intérprete pode
lançar mão de dois parâmetros gerais: (i) os enunciados
com estrutura de regra (dentre os quais os núcleos dos
princípios que possam ser descritos dessa forma) têm
preferência sobre aqueles com estrutura de princípios;
e (ii) as normas que promovem diretamente os direitos
fundamentais dos indivíduos e a dignidade humana têm
preferência sobre aqueles que apenas indiretamente
contribuem para esse resultado.
(...) Embora o parâmetro geral seja o da preferência
das regras sobre os princípios, há duas situações nas
quais as regras estarão envolvidas com a ponderação de
certa forma: (i) quando a incidência de uma regra
produz tamanha injustiça que a torna incompatível com
as opções materiais da Constituição; e (ii) quando há
uma colisão insuperável
de regras .
De minha parte, poderia prosseguir indefinidamente,
colhendo os incontáveis achados do texto. Mas seria uma
pretensão e uma inconveniência pautar a leitura do livro
de acordo com meus próprios olhos. Por isso mesmo, deixo
o
caminho livre para que o leitof possa fazer as suas
escolhas e desfrutar, sem intermediários,' desse trabalho
memorável.
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IV. Conclusão
O trabalho da professora Ana Paula de Barcellos é
motivo de orgulho e realização para o Programa de Pós-
graduação em Direito Público da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Nele se concentra o melhor do nosso
ideal: boa teoria constitucional simplicidade e clareza na
forma e capacidade de promover uma interlocução cons-
trutiva entre a academia e o mundo real entre teóricos e
operadores do direito. Na juventude de seus trinta anos
Ana é uma jurista de primeira grandeza que realiza com
maestria este desiderato.
Apenas uma última advertência. Não leia este livro
incidentalmente como um fato casual da rotina dos estu-
dos jurídicos. Há risco de se desperdiçar uma grande
oportunidade. O trabalho que se segue é um marco na
compreensão das complexidades do direito em nosso tem-
po e na busca de legitimidade racionalidade e controlabi-
lidade para a interpretação judicial. Por isso mesmo é
preciso percorrer as suas páginas com os sentidos em alerta
e o coração aberto pronto para uma grande paixão. Há
risco de a vida não voltar a ser a mesma.
Rio de Janeiro 22 de junho de 2005.
Luís Roberto arroso
Professor titular de direito constitucional da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
PARTE I
I.
LOCALIZANDO O TEMA DA PONDERAÇÃO
3
1.1. Ponderação interpretação e antinomias
23
1.2. Direito racionalidade e justificação: algumas notas
9
II.
EXAMINANDO AS CRÍTICAS À PONDERAÇÃO
9
III.
HÁ ALTERNATIVAS À PONDERAÇÃO? OS
LIMITES IMANENTES O CONCEPTUALISMO E A
HIERARQUIZAÇÃO
7
ALEMÃ
SOBRE AS EXPERIÊNCIAS NORTE AMERICANA E
IV.
ENFRENTANDO A PONDERAÇÃO: NOTAS
77
PARTE II
V.
A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO: UMA PROPOSTA
EM TRÊS ETAPAS
1
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V.1. Primeira etapa: identificação dos enunciados
normativos em tensão
92
a
Interesses e enunciados normativos
96
b
Normas e enunciados normativos
103
c
Situações individuais e enunciados normativos
112
V.2. Segunda etapa: identificação dos fatos relevantes 115
a Fatos relevantes
116
13 Repercussões dos fatos sobre os enunciados
normativos.
120
V.3. Terceira etapa: decisão
123
a
Pretensão de universalidade
125
b
Busca da concordância prática
133
c
Construção do núcleo essencial dos direitos
fundamentais
139
VI.
PONDERAÇÃO PREVENTIVA OU ABSTRATA E
REAL OU CONCRETA
146
PARTE III
VII.
ALGUMASNOTASSOBRE OSPARÂMETROS
159
Parâmetros preferenciais
159
VII.2. Parâmetros gerais e particulares
163
VIII.
PARÂMETRO GERAL 1: REGRAS TÊM
PREFERÊNCIA SOBRE PRINCÍPIOS
165
VIII.1. Fundamentação
166
a
Revendo as distinções relevantes entre
princípios, sua estrutura e diferentes categorias, e
regras
b
Revendo as diferentes funções de princípios e
regras
VIII.2 É possível ponderar regras?
DIRETAMENTE DIREITOS FUNDAMENTAIS DO S
INDIVÍDUOSTÊM PREFERÊNCIA SOBRE NORMAS
IX PARÂMETRO GERAL 2: NORMAS QUE REALIZAM
RELACIONADAS APENAS INDIRETAMENTE COM
DIREITOS
235
IX.1.
O momento e o objeto do parâmetro
236
IX.2
Fundamentação: o direito interno e o
internacional e o procedimentalismo
245
X. PARÂMETROSESPECÍFICOS: ELEMENTOSPARA
SUA CONSTRUÇÃO OU UM ROTEIRO PARA A
PONDERAÇÃO PREVENTIVA OU ABSTRATA
275
CONCLUSÕES
295
Referências bibliográficas
311
166
185
201
a
Modalidades de conflitos envolvendo regras
201
b
Solucionando os conflitos envolvendo regras:
eqüidade, imprevisão e invalidade de uma
incidência específica da regra
220
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Introdução
O verbo ponderar
e o substantivo ponderação
não são
expressões privativas do chamado mundo jurídico . O Di-
cionário Houaiss descreve ponderar como a ação de
atri-
buir pesos a diversas grandezas para calcular a média pon-
derada; examinar com atenção e minúcia; avaliar, apreciar
(p. as vantagens e as desvantagens); levar em consideração;
ter atenção sobre; sopesar
Neste sentido, toda decisão
humana minimamente racional envolve algum tipo de pon-
deração. O indivíduo avalia as vantagens e desvantagens de
casar ou permanecer solteiro, de adquirir uma casa ou um
apartamento, e, em função das conclusões a que chega,
toma suas decisões.
Na esfera pública, e em particular quando se cuida do
exercício do poder político, dá-se fenômeno similar. O ra-
ciocínio ponderativo, compreendido nesse sentido amplo,
será o principal instrumento lógico de trabalho do Legisla-
tivo. Cabe aos parlamentos, acima de tudo, avaliar vanta-
gens e desvantagens,
prós e contras ,
e decidir qual é a
icionário Houaiss da Língua Portuguesa,
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melhor disciplina aplicável às diferentes matérias que lhes
cabe regular. O Executivo, embora vinculado às escolhas
do legislador na maior parte do tempo, também fará uso da
ponderação nos seus espaços de competência própria e no
âmbito de sua atuação discricionária. E o Judiciário ocupa-
se exatamente de ponderar, compreendida a ponderação
no sentido descrito acima, as provas produzidas (para defi-
nir quais fatos ocorreram) e as razões apresentadas pelas
partes (para decidir a disposição aplicável ao caso e suas
conseqüências)
. Não é dessa espécie de ponderação, toda-
via, que se pretende tratar neste estudo, e sim de fenôme-
no muito mais especifico.
Se a ponderação no sentido genérico referido acima é
própria de toda decisão judicial — e, a rigor, de todo dis-
curso racional —, nos últimos anos, a jurisprudência brasi-
leira tem incorporado à sua prática uma forma de pondera-
ção muito particular, que merece exame exclusivo. Na rea-
lidade, a seguinte situação tornou-se freqüente: o intérpre-
te, afirmando estar diante de um conflito entre enunciados
normativos válidos', considera necessário
ponderá los.
O
resultado dessa operação, em geral, é que um dos enuncia-
omo se sabe, além dos argumentos das partes, o juiz pondera
(considerando a expressão no sentido referido no texto até aqui),
consciente ou inconscientemente, muitos outros elementos, dentre os
quais, a sua própria pré-compreensão do tema e o impacto que a decisão
produzirá sobre a sociedade. Sobre o tema, v. LARENZ, Karl.
Metodologia da ciência do direito,
1969, p. 393 e ss.; CAMARGO,
Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação,
2001; e
TORRE, Maximo La.
Theories of Legal Argumentation and Concepts of
Law. An Approximation,
Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, pp. 377 a 402.
3
este estudo, as expressões
norma
ou
comando normativo,
de um
lado, e, de outro,
enunciado
ou
dispositivo normativo
identificam
fenômenos diversos, como será exposto em tópico próprio adiante. Até
que se trate do assunto, porém, os termos não serão empregados com
extremo rigor técnico a fim de facilitar a comunicação.
2
dos identificados inicialmente é aplicado e os demais são
afastados ou que a incidência de um é restringida em pro-
veito dos outros. Já não se trata aqui, é bom notar, de ava-
liar, ponderar
argumentos, razões ou o acervo probatório
produzido; mas sim de avaliar,
ponderar
enunciados nor-
mativos válidos e em vigor, muitas vezes de estatura cons-
titucional. Vejam-se alguns exemplos.
O art. 5° da Constituição de 1988, inciso XII, prevê ser
inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo,
no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma
que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou
instrução processual penal
e, no inciso LVI, considera
inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilí-
citos .
Apesar de tais regras, e antes de editada a lei referida
no inciso XII
, o Superior Tribunal de Justiça, em algumas
decisões', autorizou a utilização de gravações de conversas
telefônicas obtidas ilicitamente como prova no âmbito de
processos criminais. O entendimento do STJ partia do
pressuposto de que as regras constitucionais dos incisos XII
e LVI não seriam absolutas, exigindo temperamentos, de-
vendo-se
ponderá-las
com valores maiores na construção
da sociedade , também expressos na Constituição.
Em 15.02.2000, o Superior Tribunal de Justiça decidiu
hipótese envolvendo uma desapropriação indireta já transi-
tada em julgado'. A Fazenda do Estado de São Paulo havia
sido vencida e acordara com os autores o parcelamento do
débito. Tempos depois, já pagas algumas parcelas, apurou-
4
lei exigida pelo texto constitucional veio a ser a Lei n°9.296/1996.
5 STJ, HC 3982/RJ, Rel. MM. Adhemar Maciel, DJU 26.02.1996
RSTJ 82/321) e HC 4138, Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU
27.05.1996.
6
TJ, REsp 240712/SP, Rel. Min. José Delgado, DJU 21.08.2000.
3
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se que a área supostamente apossada pelo Estado já perten-
cia a ele mesmo, não aos autores. Não dispondo mais da
possibilidade de propor ação rescisória por falta de prazo, a
Fazenda paulista ajuizou ação declaratória de nulidade de
ato jurídico cumulada com pedido de repetição de indé-
bito.
O debate acerca da concessão ou não de tutela anteci-
pada, a fim de se interromperem os pagamentos das parce-
las, chegou ao STJ, cuja 1' Turma, por maioria, concedeu a
antecipação pretendida. O principal argumento utilizado
pelos votos vencedores foi o de que a coisa julgada e seu
fundamento, a segurança jurídica, não se podem sobrepor
aos princípios da moralidade pública, da razoabilidade e da
proporcionalidade, sendo indispensável ponderar todos es-
ses elementos constitucionais
Ainda mais dois exemplos, agora da jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal. Empresário supostamente en-
volvido em crimes de contrabando foi convocado para de-
por perante Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara
dos Deputados e requereu ao STF ordem para que a sessão
da CPI na qual seu depoimento seria tomado não fosse
televisionada. O fundamento do pedido foi a necessidade
de proteção da imagem e da honra do empresário (CF, art.
5
, X). O Ministro Cezar Peluso, relator do Mandado de
Segurança, concedeu a liminar e proibiu o uso de câmeras
que possibilitassem a gravação de imagens do impetrante.
Após a ciência da decisão judicial, porém, a CPI remarcou
a sessão para outro horário e autorizou o uso de câmeras.
7
onfiram-se comentários sobre o caso por seu próprio relator, o
Ministro José Delgado, no artigo DELGADO, José. Efeitos da coisa
julgada e os princípios constitucionais .
In:
NASCIMENTO, Carlos
Valder do (coordenador).
Coisa julgada inconstitucional,
2002.
4
Submetida ao Plenário do STF, a decisão liminar não
foi referendada. A posição firmada pela maioria pode ser
resumida da seguinte forma: as sessões das CPIs são públi-
cas e deve prevalecer na hipótese o direito à informação
(CF, arts. 5
, IX e 220), sendo que qualquer afronta à hon-
ra ou à imagem pode ser reparada posteriormente, por
meio de indenização. Os Ministros Cezar Peluso, Gilmar
Mendes e Joaquim Barbosa ficaram vencidos por conside-
rarem, em primeiro lugar, que o direito à informação não
foi afetado, já que a imprensa não estava impedida de
acompanhar a sessão, ficando vedado apenas o televisiona-
mento. Em segundo lugar, e sobretudo tendo em conta o
descumprimento da liminar pela Comissão, a minoria en-
tendeu que a proteção da honra e da imagem do impetrante
só seria eficaz se fosse preventiva, não bastando para isso
posterior indenização'.
Em outra ocasião, o STF examinou o conflito entre a
liberdade de expressão (CF, art. 5
, IV e IX) e a vedação
constitucional à prática do racismo, considerado crime ina-
fiançável e imprescritível (CF, art. 5
, XLII). A hipótese
era a seguinte. Um editor havia publicado livros fazendo
apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias con-
tra a comunidade judaica e, processado criminalmente,
teve habeas corpus impetrado em seu favor perante o STF.
A Corte, por maioria, entendeu que a liberdade de expres-
são, a despeito de sua importância, não é absoluta, devendo
observar os limites impostos pela própria Constituição,
dentre os quais a condenação do racismo, sendo preponde-
rantes na hipótese os princípios da dignidade humana e da
igualdade jurídica de todas as pessoas. Com
esse funda-
mento, a Corte denegou o habeas corpus
8
TF, MS 24832 MC/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, DJU 26.03.2004.
9
TF, HC 82424/RS, Rel. MM. Maurício Corrêa, DJU 19.03.2004.
5
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Uma observação superficial já revela por que motivo a
ponderação
empregada nos exemplos acima é fenômeno
diverso da ponderação genérica identificada inicialmente.
Aqui, os elementos
ponderados
são dispositivos normativos
vigentes que, a rigor, em um Estado de direito, devem ser
aplicados uma vez que se verifique sua hipótese de incidên-
cia, mas que, no caso, parecem estar em colisão a ponto de
se excluírem reciprocamente. Ademais, a ponderação sub-
mete esses enunciados a um tipo de exame cujo objetivo é,
de certo modo, verificar a conveniência de sua aplicação ao
caso, a despeito de o juízo acerca de
prós e contras
já ter
sido feito pelo Legislador. Por fim, e os exemplos ilustram
esse ponto, a ponderação parece fornecer ao intérprete po-
deres extraordinários: ele é capaz de afastar a aplicação de
dispositivos válidos em benefício da aplicação de outros,
restringir o exercício de direitos fundamentais e até mes-
mo relativizar regras constitucionais.
Não se trata, portanto, de uma ponderação qualquer,
na qual vantagens e desvantagens são livremente avaliadas.
Em sentido diverso, trata-se de uma ponderação cuja maté-
ria-prima principal são disposições normativas válidas e em
vigor e isso a torna extremamente particular. Na verdade,
há aqui um ponto interessante. Embora o direito sempre
tenha cémvivido com a questão das antinomias, nunca se
falou tanto de colisões normativas e necessidade de ponde-
ração como nas últimas décadas'°. Alguns elementos socio-
10 A questão tem se tornado tão popular que corre o risco da
banalização, na medida em que autores e sobretudo decisões judiciais
empregam a ponderação sem qualquer conteúdo próprio ou cuidado
especifico. Nesse contexto, alguns autores começam a discutir a
necessidade de auto-contenção
self-restraint)
do Judiciário. V. MELLO,
Cláudio Ari.
Democracia constitucional e direitos fundamentais,
2004, p.
203 e ss..
lógicos, jurídicos e políticos ajudam a localizar historica-
mente e a compreender o fenômeno da expansão da técni-
ca da ponderação pelos meios jurídicosn.
Do ponto de vista sociológico, duas das características
mais marcantes das sociedades contemporâneas nos últi-
mos cinqüenta anos são o aprofundamento da complexida-
de das relações humanas em seus vários níveis e, em certa
medida como uma decorrência desse primeiro fato, a cres-
cente pluralidade existente dentro das sociedades
. As
relações familiares admitem hoje, tanto nos vínculos entre
os adultos, como entre pais e seus filhos'', variações im-
pensáveis décadas atrás, cada uma delas acompanhada de
defensores e detratores. No âmbito de grupos sociais mais
abrangentes, e mesmo da sociedade internacional, temas
complexos dividem as pessoas em diferentes grupos de
localização histórica dos fenômenos sociais é indispensável para sua
compreensão adequada. Sobre o tema, v. ORTEGA Y GASSET, José.
Que
é filosofia?,
1971, p. 11 e ss.; e SALDANHA, Nelson.
Filosofia do
direito, 1998, p. 2 e ss..
12
UNSTEIN, Cass.
Conflicting Values
in
Laia
Fordham Law Review
n° 62, 1994, pp. 1661 e 1662: The first claim is that we value thingS in
different ways; that is to say, we value things not only in terms of
intensity, but in qualitatively distinct ways. It is not simply the case that
some things are valued more; it is also the case that some things are valued
differently from others. That is my first claim, about different modes of
valuation. The second claim is that human goods are not commensurable.
This is to say that there is no available metric along which we can align the
various goods that are important to us. (...) It might be more accurate to
say that economists and environmentalists value the environment in
different ways, with economists thinking that the environment is for
hum an exploitation and use, and environmentalists sometimes
challenging that assumption.
13
São temas atuais, além da adoção, a inseminação artificial, a
manipulação genética, a doação de sêmen, a desvinculação entre
paternidade biológica e paternidade jurídica e sócio-afetiva, dentre
outros.
7
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opinião, como é o caso do conflito entre interesse público
e direitos individuais, da violência, do terrorismo, do tráfi-
co de drogas, dos direitos humanos, das intervenções inter-
nacionais etc.
Para o estudioso, ou para o cidadão que tenha a preten-
são de estar bem informado, parece realmente que não há
mais coisa alguma simples no mundo: já não é possível exa-
minar com seriedade os problemas contemporâneos sob
um único ponto de vista ou oferecer-lhes uma resposta sin-
gela e direta, já que, com freqüência, eles envolvem valores
e interesses diversificados e conflitantes. Jornais e revistas
passaram a publicar matérias compostas de várias opiniões
sobre o mesmo tema, na tentativa de dar conta de sua mul-
tiplicidade e atrair leitores de todos os grupos . Nos regi-
mes democráticos, predominantes nas sociedades ociden-
tais nos últimos cinqüenta anos, essa pluralidade recebe
espaço institucional de manifestação e desenvolvimento.
Do ponto de vista jurídico, é possível identificar dois
processos em curso, também no meio século precedente,
ambos interligados. O primeiro deles tem sido identificado
como o movimento de
retorno do direito aos valores
Após a Segunda Guerra Mundial, e uma vez que o signifi-
cado da barbárie nazista pôde ser apreendido pelo pensa-
mento jurídico, o positivismo exclusivamente formal e nor-
mativista, que já se encontrava em crise, deixou de ser con-
siderado uma forma adequada de compreender o direito. A
14
ANOTILHO, J. J. Gomes.
A principialização da jurisprudência
através da Constituição,
Revista de Processo n° 98 (Estudos em
homenagem ao Ministro S álvio de Figueiredo Teixeira — Segunda parte),
2000, pp. 83 a 89.
15
INO, Carlos Santiago.
Etica y derechos humanos,
1989, p. 3 e ss.;
ALEXY, Robert.
Teoria de argumentação jurídica,
2001, p. 19 e ss.; e
TORRES, Ricardo Lobo.
Os direitos humanos e a tributação —
Imunidades e isonomia,
1995, p. 6 e ss..
8
teoria jurídica voltou-se então para os valores, reaproxi-
mou-se da moral e tem procurado desenvolver formas e
técnicas capazes de lidar com esses elementos ideais, mui-
tas vezes introduzidos no direito positivo sob a forma de
princípios
.
O segundo processo em curso na experiência jurídica
liga-se à ampliação do espaço no qual a interpretação jurí-
dica e o intérprete estão autorizados a transitar. É fácil
perceber que existe um vínculo entre essa ampliação e a
reaproximação com os valores e a moral: tendo em conta
sua abertura e abstração características, a aplicação de valo-
res a casos concretos, ainda que veiculados sob a forma de
princípios, exigirá do intérprete um esforço considerável
de integração. De toda sorte, é possível identificar no
pró-
prio
sistema jurídico causas imediatas para essa ampliação
do espaço próprio da interpretação jurídica, tanto no nível
constitucional, como na esfera infraconstitucionalu.
16
ara uma visão mais profunda do tema, v. BARROSO, Luis Roberto.
Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
brasileiro (pós-modernidade, teoria critica e pós-positivismo) .
In:
BARROSO, Luís Roberto (organizador).
A nova interpretação
constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas,
2003, pp. 1 a 49.
17
SANCHIS, Luis Prieto. Neoconstitucionalismo y ponderación
judicial . In: CARBONELL, Miguel (organizador).
Neoconstitucionalimo(s),
2003, pp. 131 e 132: El constitucionalismo
está impulsando una nueva teoria dei Derecho, cuyos rasgos más
sobresalientes cabria resumir en los siguientes cinco epígrafes: más
principios que regias; más ponderación que subsunción; omnipresencia de
Ia Constitución en todas las áreas jurídicas y en todos los conflictos
minimamente relevantes, en lugar de espacios exentos en favor de la
opción legislativa o reglamentaria; omnipotencia judicial en lugar de
autonomia dei legislador ordinario; y, por último, coexistencia de una
constelación plural de valores, a veces tendencialmente contradictorios,
en lugar de homogeneidad ideológica .
9
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Diversas Constituições contemporânea& e a brasileira
em particular, são generosas na referência a elementos va-
lorativos'
s
de conteúdo bastante vago (como justiça social
e dignidade humana), cuja definição detalhada — a ser afe-
rida pelo intérprete — pode variar em certa medida no
tempo, no espaço e em função das circunstâncias do caso
concreto. Também constam do texto constitucional metas
políticas sob a forma de princípios, que em geral admitem
uma variedade de meios de realização'
Além disso, cartas compromissorias — como é o caso
da Constituição de 1988 — refletem, de forma nítida ou
distorcida, sociedades plurais, em vários níveis. O mesmo
texto constitucional consagra valores diferentes, opções e
interesses políticos diversos e direitos que, em vários de
seus desenvolvimentos, poderão se chocar reciprocamen-
te'''. Essa pluralidade exigirá do intérprete um esforço todo
18
LEXY, Robert.
El conceptoyla validez de derecho
1994, p.
159
19 ALEXY, Robert. Derechos fundamentales y estado constitucional
democrático .
In
CARBONELL, Miguel (organizador).
Neoconstituconalismo s),
2003, p. 35 e ss..
20
m dos exemplos mais estudados desse conflito potencial é o que se
verifica entre liberdade de imprensa, liberdade de expressão e de
informação em oposição aos direitos à intimidade, à vida privada e à
honra. Há ampla bibliografia sobre o tema. Vejam-se, por todos,
GUERRA, Sidney Cesar Silva.
A liberdadedeimprensa eodiretoà
imagem
1999; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de.
Diretodeinformaçãoeliberdadedeexpressão
1999; SOUZA, Edilsom
Pereira de.
Coisãodedretosfundamentais.
A
honra, a intimdade a
vida privada ea imagemversusa liberdadedeexpressãoedeinformação
2000; CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva.
Honra, imagem
vda
privada eintimdade emcoisãocomoutrosdretos
2002; MARTINEZ,
Miguel Angel Alegre.
El derechoa la propa imagen,
1997; CALDAS,
Pedro Frederico.
Vida privada, liberdadedeimprensa edanomoral,
1997; BARROSO, Porfirio e TAVALERA, Maria dei Mar Lopez.
a
libertaddeexpresón ji suslimtaconesconstituconales
1998; CARDO,
10
especial — e também técnicas próprias — a fim de preser-
var cada uma das disposições envolvidas, definir-lhes os
contornos e manter a unidade da Constituição''.
No
caso
brasileiro, une-se a isso a circunstância de a Constituição
de 1988 dispor sobre os temas mais variados, autorizando
Antonio Fayos.
Derechoa la intimdadymedosdecomunicacón,
2000;
e BARROSO, Luis Roberto.
Coisãoentreliberdadedeexpressãoe
dretos da personalidade Critérios deponderação Interpretação
constituconalmenteadequada doCódigoCivil eda Le deImprensa,
Revista de Direito Administrativo n° 235, 2004, pp. 1 a 36.
Sobre esse tema, a Corte Européia de Direitos Humanos proferiu
importante decisão recentemente declarando contrária ao art. 8° da
Convenção Européia de Direitos Humanos a orientação do Tribunal
Constitucional Federal alemão em matéria de proteção à privacidade de
figuras públicas. A questão foi levada à Corte Européia pela princesa
Caroline von Hannover, do Principado de Mônaco, após diversas
tentativas de impedir a publicação de
fotos
suas em atividades cotidianas
eg,
fazendo compras ou praticando esportes). A Corte Européia
considerou que os critérios do Tribunal alemão não protegiam
satisfatoriamente a privacidade e defendeu a necessidade de uma
ponderação orientada pelo seguinte critério: a publicação se justificaria na
medida em que trouxesse uma contribuição para o debate de interesse
geral , para além da satisfação de uma mera curiosidade do público. Os
eventos da vida cotidiana de uma pessoa pública, a principio, não
poderiam ser objeto de divulgação, ainda quando ocorridos em ambientes
que não possam ser considerados como reservados . Dois juizes da
Corte, embora endossando o resultado do julgamento, discordaram do
critério fixado, retomando em parte o argumento do Tribunal alemão no
sentido de que também há um interesse juridicamente tutelável ao
entretenimento . O critério, para tais juizes, deveria ser a existência ou
não de uma expectativa legitima de privacidade , que não estaria
presente quando uma figura pública vai às compras, mas estaria quando
pratica esportes em um ambiente aparentemente protegido de
observação externa. A íntegra da decisão pode ser obtida no
sue
da Corte
Européia de Direitos Humanos
httn://www.echr.coe.int).
21
ARROSO, Luis Roberto.
Interpretaçãoeapicaçãoda Constitução
2003, p. 192 e ss..
11
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um amplo controle de constitucionalidade sobre leis e atos
administrativos em geraln.
A ordem infraconstitucional, na medida em que regula-
menta ou desenvolve disposições constitucionais, reproduz
o mesmo quadro descrito acima: previsões que tutelam
bens diversos e que, em determinado ponto, podem gerar
situações de antinomia
n
. Mas há também duas outras cau-
sas, originárias da própria ordem infraconstitucional, e, in-
dependentemente do juízo que se forme acerca delas, é
certo que elas contribuem igualmente para a ampliação do
papel da interpretação jurídica.
Em primeiro lugar, assim como a Constituição, tam-
22 Desde a promulgação da Constituição em 05.10.1988 até
22.08.2004 foram distribuídas 3294 ações diretas de
inconstitucionalidade, das quais já foram julgadas 2229, segundo a
Secretaria de Informática do STF (a informação consta do Banco
Nacional
e ados
o
oder
udiciário,
htto://www.stf.gov.bribndpi/stf/ADIN.asp
acesso em 28.08.2004).
23
mesmo acontece em outras ordens jurídicas, como a italiana, v.
GUASTINI, Riccardo. La sconstitucionalización
del ordenamiento
jurídico .
In
CARBONELL, Miguel organizador).
Neoconstitucionalismo(s),
2003, p. 58 e ss.. V. também DWORKIN,
Ronald.
The Judge s New Role: Should Personal Convictions
Count?,
Journal of International Criminal Justice I, 2003, pp. 5 e 6: The role of
moral judgment is pervasive and undeniable in administrative regulation,
on the other hand, because the standards of that task are themselves set
out in moral language — the language of convenience and necessity, or
reasonableness, or proportionality, for example — and because it requires
judges to choose among contested conceptions of economic and
adrninistrative efficiency, and to fix an interaction and balance between
efficiency and other moral values. The role of moral judgment is still
more pervasive and less deniable in constitutional adjudication, because
the pertinent constitutional standards are even more explicitly moral:
they declare rights of free expression, treatment as equals, and respect for
life and dignity, and sometimes make exceptions for constraints
'necessary in a democratic society', for example. .
12
bém as leis mais recentes têm empregado em seus textos
expressões gerais — como, e.g., boa-fé e função social do
contrato
4 —, de conteúdo fluido e sentido não inteiramen-
te determinado. Ao utilizar conceitos jurídicos indetermi-
nados e cláusulas gerais, o legislador acaba transferindo a
delimitação do sentido e alcance dos enunciados normati-
vos para o intérprete'.
24 Código Civil: Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser
interpretaaos conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
(...) Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade
e boa-fé.
Código de Defesa do Consumidor: Art. 4°. (...) III - harmonização
dos interesses dos participantes das relações de consumo e
compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de
desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os
princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da
Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas
relações entre consumidores e fornecedores;
(...) Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas
contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
(...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que
coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.
25
ARNIO, Aulis.
Reason and Authority, 1997, pp. 166 e 167:
Especially in a rapidly changing society, there is pressure to create norms
that are open in a way that makes it possible to adjust them to new
conditions at the application stage. (...) These norms, in the same way as
weighing norms in general, transfer the focus of discretionary power in
the direction of the machinery of authorities applying the law. Especially
in the sphere of public administration, some norms give only information
about the goals of law leaving open or scantily specified the criteria of the
application. (...) It seems that in the Welfare State the traditional
regulation of rights and duties is being displaced by weighing, goal and
resource norms. At least in the public sector the development moves in
13
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Em segundo lugar, e por razões que não cabe aqui apro-
fundar , os legislativos contemporâneos têm empregado
técnicas variadas de delegação de competências normativas
ao Poder Executivo . Essa transferência, explícita ou im-
plícita, amplia igualmente o espaço da interpretação jurídi-
ca própria do Judiciário, já que aos juizes caberá, em qual-
quer caso, exercitar o controle das ações administrativas ,
empregando os parâmetros disponíveis. Quando a lei não
the direction of goal and need orientation. But also in civil law, the same
tendencies are active, as is indicated by general clauses and conciliation
rules. These lines of development will not, however, be further
considered in the following presentation because the main emphasis will
be on interpretation. In them, and in them expressly, come out the
crucial questions of legal reasoning.
26
.
sobre o assunto, dentre outros, CLIVE, Clèmerson Merlin. A
lei
no estado contemporâneo
Cadernos de Direito Constitucional e Ciência
Política n° 21, 1997, pp. 124 a 138; e CLÈVE, Clèmerson Merlin.
Atividade legislativa do Poder Executivo,
2000. De forma geral, a
doutrina aponta algumas causas para essa transferência de poderes
normativos do Legislativo para o Executivo, dentre outras: a
complexidade e o caráter técnico de muitas matérias a serem
disciplinadas, a necessidade de celeridade no processo decisório, a
dificuldade de formação de consensos no âmbito do parlamento sobre a
regulação dos aspectos específicos das matérias etc.
27
obre a discussão da suposta deslegalização , v. MOREIRA NETO,
Diogo de Figueiredo.
Direito regulatório
2003; e ARAGÁ0, Alexandre
Santos de.
Agências reguladoras e
evolução do direito administrativo
econômico
2002.
28
Embora o Executivo também seja um dos intérpretes da
Constituição. V. HÃBERLE, Peter.
Hermenêutica constitucional. A
sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a
interpretação pluralista e procedimental da Constituição, 1997.
V. sobre
o tema, na experiência brasileira, BARROSO, Luís Roberto.
Poder
Executivo. Lei inconstitucional. Descumprimento,
Revista
de Direito
Administrativo n° 181/182, 1990, pp. 387 a 397; e BINENBOJM,
Gustavo.
A nova jurisdição constitucional brasileira,
2001, p. 203 e ss..
oferece parâmetros específicos, a validade da ação adminis-
trativa acaba por ser aferida em confronto com princípios
gerais, constitucionais ou infraconstitucionais, como os da
razoabilidade, da eficiência, da moralidade e da economici-
dade, dentre outros.
Por fim, há ainda um último elemento, agora de nature-
za política, que ajuda a compor o quadro aqui descrito. O
crescimento do espaço da interpretação jurídica tem sido
fomentado também por um processo de transferência da
discussão política para o Judiciário, em detrimento das ins-
tâncias de representação política. Explica-se melhor.
A crise dos parlamentos e da legalidade é um fenômeno
antigo, cuja origem é identificada pela doutrina ainda no
século XIX . Ao longo do último século, esse quadro de
crise não foi superado e é possível afirmar que a relação
de confiança entre o povo e sua representação parlamentar
é bastante frágil. Ao mesmo tempo, no caso brasileiro, a
29
Talvez o primeiro sintoma da crise tenha surgido após a
universalização do voto masculino (e posterior extensão do direito a
outros grupos), quando restou claro que a lei poderia ser apenas o
resultado de acordos entre os diferentes grupos parlamentares, e não
fruto de uma razão universal. V. sobre o tema SALDANHA, Nelson. O
Estado moderno e a separação dos poderes
1987, p. 104 e ss.; e CLÈVE,
Clèmerson Merlin.
A
teoria constitucional e o direito alternativo . M:
Uma vida dedicada ao direito — Homenagem a Carlos Henrique de
Carvalho, o editor dos juristas,
1995, pp. 34 e 35.
30
Na verdade, ao longo do século XX a crise dos parlamentos e da
legalidade parece ter se agravado em função de diversos fatores: a
experiência nazista e sua relação com um
status
de legalidade, os variados
escândalos envolvendo parlamentos e parlamentares, que são cada vez
melhor percebidos pelo público por conta da liberdade de imprensa, a
própria divulgação, pelos meios de comunicação, das manobras próprias
do jogo político contemporâneo etc. V. FERRAJOLI, Luigi. Pasado y
futuro del Estado de derecho .
In:
CARBO NELL, Miguel organizador).
Neoconstitucionalismo(s),
2003, p. 20 e ss..
14
5
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redemocratização recolocou o Judiciário na sua posição de
poder político, dando-lhe cada vez maior visibilidade.
Nesse contexto, parte da sociedade (no Brasil e tam-
bém em outros países), descrente do processo político nor-
mal, alimenta a expectativa de que o Judiciário seja afinal
um espaço onde possam desenvolver-se de maneira mais
lisa a discussão e a definição de políticas públicas'. Esse
movimento político acaba encontrando algum respaldo em
disposições normativas bastante vagas, especialmente no
nível constitucional, como visto acima
. A despeito do im-
pacto que essa forma de visualizar o Judiciário possa ter
sobre o regime democrático, a percepção desse fenômeno
ajuda a entender o ambiente no qual a técnica da pondera-
ção tem se desenvolvido e aplicado.
Em resumo: associando-se (i) uma sociedade plural; (ii)
suas Constituições e leis — que refletem a pluralidade de
31
certo que essa expectativa em relação ao Judiciário, ao menos no
Brasil, é própria de segmentos específicos da sociedade, que têm
informação e acesso ao Judiciário. Não se pode dizer que ela seja
compartilhada pela maioria da população.
2
A TORRE Maximo.
Theories of Legal rgumentation and Concepts
of Law. An Approximation
Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, p. 381: We
are seeing what has been called the 'juridification' of social life, or also, in
H abermas's words, the 'colonization of the life-world', but
this
over-production of
laws and
decrees
this instrumental and 'situationar
use of law, does not do any good to the legislator's prestige. The mass
production of laws necessarily escapes discussion of principies or
pondered public debate, obeying instead more corporative, not to say
clientelist, logic. The 'public reason' thus driven out
of
legislative
assemblies is often transferred to courtrooms, and democracy — in order
to escape the corrupt and corrupting logics of part clientelism and
technobureaucratic opacity — tenda to become, so to speak, 'judicial'
(for a comparative perspective on this phenomenon, see Guarnieri and
Pederzoli 1997). It is today the judge that is put forward as the new
centre of the legal system, no longer the legislative power, like it or not.
valores e fazem uso intensivo de expressões gerais, cujo
sentido pode variar justamente em função de concepções
valorativas ou ideológicas —, e (iii) a ascensão política do
Judiciário como espaço de discussão alternativo àquele dos
órgãos eleitos, tem-se a ampliação progressiva do espaço
próprio da interpretação jurídica. Considerando ainda que
cada intérprete dispõe de suas próprias convicções valora-
tivas e políticas, não é de surpreender que sejam diagnosti-
cados tantos conflitos normativos e que a ponderação seja,
tão freqüentemente empregada.
Descrito sumariamente o quadro sociológico, jurídico e
político no qual se insere (e no qual pode ser compreendi-
do) o crescente uso da ponderação como técnica de supe-
ração de conflitos normativos, volta-se ao ponto. Não é
difícil perceber que a ponderação — compreendida no sen-
tido estrito aqui identificado — suscita uma série de ques-
tões jurídicas relacionadas sobretudo com a legitimidade e
a previsibilidade das decisões que a empregam, questões
essas que são tanto mais graves e urgentes quanto mais
generalizado e indiscriminado se torna seu uso. É preciso,
portanto, investigar o tema, e algumas perguntas podem
ser suscitadas desde logo. O que é, afinal, a ponderação? O
que justifica sua utilização? Por que essa ferramenta dog-
mática é necessária (se é que o é de fato)? E se ela é indis-
pensável, em que consiste, do ponto de vista metodológi-
co? Como ela funciona, quais são seus limites e que parâ-
metros devem orientar o intérprete que a utiliza? O estudo
que segue pretende exatamente discutir essas questões e,
com esse propósito, foi ordenado em três partes.
O objetivo
daprimeira pane
do estudo é responder às
três perguntas iniciais: o que é a ponderação, o que justifica
sua utilização e por quais razões precisamos dela, afinal. No
primeiro capítulo, vão-se identificar as circunstâncias que
explicam a necessidade da ponderação, delinear o sentido
16
17
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propriamente dito da técnica e distingui-la das técnicas
hermenêuticas tradicionais. De forma simples, já se pode
adiantar que ponderação, no conceito adotado neste estu-
do, corresponde à técnica de decisão jurídica empregada
para solucionar conflitos normativos que envolvam valores
ou opções políticas
B
em tensão, insuperáveis pelas formas
hermenêuticas tradicionais.
Nos capítulos segundo e terceiro serão examinadas as
críticas à ponderação — que tratam sempre, com boa par-
cela de razão, de sua inconsistência metodológica e do pe-
rigo de arbítrio que seu uso enseja — e as técnicas alterna-
tivas capazes de solucionar, segundo parte da doutrina, os
mesmos problemas que a técnica da ponderação pretende
resolver com menor quantidade de inconvenientes. A con-
clusão a que se chega, porém, é a de que, a despeito das
críticas, nenhuma das opções sugeridas pela doutrina subs-
titui satisfatoriamente a ponderação e nem supera as difi-
culdades metodológicas a ela imputadas. No capítulo qua-
tro, ao fim desta primeira parte, se fará um breve registro
de como dois sistemas jurídicos — o norte-americano e o
alemão — têm lidado com a ponderação e tentado superar
suas limitações.
j3 Vale esclarecer que embora a referência feita a opções políticas ou
ideológicas ao longo do texto se aproxime, quanto ao conteúdo, da idéia
de policy
de Dworkin, não se estará trabalhando com as concepções do
autor nesse particular. Como se sabe, Dworlcin distingue
po/icy
de
principie —
DWORKIN, Ronald. Is Law a System of Rules? .
In:
SUMMERS, Robert (organizador).
Essays in Legal Philosophy
1968, p.
34 e ss. —, associando a primeira expressão a objetivos políticos,
econômicos ou sociais e, a segunda, a padrões valorativos ou morais
vinculados ao elemento justiça, extraindo dessa distinção algumas
conseqüências importantes. A Constituição brasileira de 1988, porém,
incorporou a seu texto, em geral sob a forma de princípios, tanto valores
como opções políticas, de modo que os dois grupos de fenômenos são, no
Brasil, elementos do sistema jurídico constitucional.
A busca por respostas às perguntas subseqüentes — Em
que consiste, do ponto de vista metodológico, a técnica da
ponderação? Como ela funciona, quais são seus limites e
que parâmetros devem orientar o intérprete que a utiliza?
— é o que move a segunda e a terceira partes do trabalho.
Na
segunda parte
será apresentada uma proposta de or-
denação metodológica da técnica da ponderação, em três
fases. Já que parece indispensável ter de empregá-la em
determinadas hipóteses, o propósito do estudo é organizar
um percurso lógico, com etapas definidas e fundamenta-
das, que seja capaz de conferir racionalidade ao processo e
reduzir a arbitrariedade na sua utilização. É bem de ver,
porém, que, embora a consistência metodológica seja valio-
sa, a ponderação continua a ser um mecanismo instrumen-
tal e vazio de conteúdo. Por isso, além da ordenação da
técnica, são necessários também parâmetros que condu-
zam o intérprete no momento decisório.
A
terceira parte
do estudo concentra-se na formulação
de parâmetros capazes de orientar e balizar as decisões do
intérprete no emprego da ponderação. Serão propostos,
em primeiro lugar, dois parâmetros seqüenciais e de natu-
reza geral:
seqüenciais
porque devem ser aplicados separa-
damente e na ordem em que são apresentados; e de
natu-
reza geral
porque tais parâmetros são potencialmente apli-
cáveis a qualquer conflito normativo. De forma simplifica-
da, os dois parâmetros podem ser enunciados nos seguintes
termos: (i) as regras têm preferência sobre os princípios; e
(ii) as normas que realizam diretamente os direitos funda-
mentais dos indivíduos têm preferência sobre aquelas que
estão relacionadas com esse fim apenas de forma indireta.
Por fim, já no último capítulo, serão propostos elemen-
tos a serem considerados na concepção de parâmetros es-
pecíficos, que devem ser construídos tendo em conta as
características de conflitos normativos em particular. Isso
8
9
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porque, além dos parâmetros gerais, é necessário, para cada
conflito-tipo, o desenvolvimento de parâmetros próprios,
que possam conduzir o intérprete de maneira mais precisa.
De forma simples, o propósito geral do estudo pode ser
assim resumido: considerando que o emprego da técnica da
ponderação parece realmente inevitável em determinados
casos, como fazer para lhe conferir maior juridicidade (isto
é: vinculação à ordem jurídica) e racionalidade (a fim de
reduzir o arbítrio)? A proposta de uma ordenação metodo:
lógica para a técnica — operacional e acessível — e de pa-
râmetros capazes de nortear as decisões a serem tomadas
pretende alcançar exatamente esses objetivos .
34 O presente estudo tem a ambição de apresentar propostas
operacionais por meio das quais seja possível ligar de forma proveitosa o
mundo da reflexão teórica e filosófica ao mundo da realização prática do
Direito. É certo, no entanto, que esses dois mundos vinculam-se a funções
diversas, como destaca ATIENZA, Manuel.
Las razones dei derecho.
Sobre la justificación de Ias decisiones judiciales
Revista Isonomia n° 1,
2004, p. 64: Mientras que en la ciencia y en la filosofia — sobre todo, en
la filosofia — las discusiones pueden proseguir indefinidamente, esto es,
el proceso de argumentación es un proceso abica°, en el sentido de que
no hay ninguna autoridad que tenga la última palabra, en el Derecho la
argumentación está, em diversos sentidos, limitada y, en particular,
existen instituciones — los órganos de última instancia — que ponen
punto y final ala discusión. El que las cosas sean así se debe naturalmente
a que Ias instituciones jurídicas — a diferencia de las científicas o
filosóficas — no tiene como su función central la de aumentar nuestro
conocimiento dei mundo, sino la de resolver, mejor o peor, conflictos
sociales; no persiguen basicamente una finalidad cognoscitiva, sino
práctica. . Por essa razão, algumas questões, discutidas em um nível mais
complexo e profundo pela filosofia constitucional e pelos autores que
investigam a teoria do discurso e da argumentação, serão aqui
propositadamente simplificadas, já que uma abordagem completa fugiria
aos propósitos do estudo. De todo modo, observações bibliográficas
específicas sobre os temas serão incluídas nas notas de rodapé.
PARTE I
20
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I. Localizando o tema
da ponderação
1.1. Ponderação, interpretação e antinomias
Ponderação também chamada, por influência da dou-
trina norte-americana, de
balancing
será entendida neste
estudo como
a técnica jurídica de solução de conflitos nor-
mativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão,
insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais.
Na
verdade, a simples questão do que é a ponderação exige um
exame mais aprofundado, tanto porque a idéia tem sido
empregada pela jurisprudência de forma generosa, e fre-
qüentemente desprovida de qualquer sentido preciso,
como porque outros conceitos, diversos do que se acaba de
apresentar, têm sido associados pela doutrina à expressão.
O conteúdo propriamente dito da técnica será objeto de
análise apenas mais adiante. Assim, ainda que de maneira
objetiva, e em proveito da clareza, é necessário identificar
as principais formas pelas quais a
ponderação tem sido
compreendida ou explicada e justificar a opção que se aca-
ba de fazer.
3
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É possível visualizar na doutrina e na prática jurídica
brasileiras ao menos três maneiras diferentes de compreen-
der a ponderação. Em primeiro lugar, a ponderação é des-
crita por muitos autores como a forma de aplicação dos
princípios. Na verdade, foi assim que a ponderação ingres-
sou inicialmente nas discussões jurídicas no Brasil. A con-
cepção original de Ronald Dworkin — de que os princípios
operam em uma dimensão de peso, ao passo que as regras
obedecem a uma lógica de tudo ou nada — e as
formulações mais sofisticadas de Robert Alexy sobre o
tema continuam extremamente populares na doutrina bra-
sileira e internacional .
35 DWORKIN, Ronald.
Taking Rights Seriously
1977, pp. 24 a 26:
The difference between legal principies and legal mies is a logical
distinction. Both sets of standards point to particular decisions about legal
obligation in particular circumstances, but they differ in the character of
the direction they give. Rules are applicable in an all-or-nothing fashion.
If the facts a rule stipulates are given, then either the nile is valid, in
which case the answer it supplies must be accepted, or it is not, in which
case it contributes nothing to the decision. (...) Of course, a mie may have
exceptions (...) However, an accurate statement of the mie would take
this exception jato account, and any that did not would be incomplete.
(...) But this is not the way the sample principies in the quotations
operate. Even those which look most like mies do not set out legal
consequences that follow automatically when the conditions provided
are met. (...) This first difference between rules and principies entails
another. Principies have a dimension that mies do not — the dimension
of weight or importance. When principies intersect (...), one who must
resolve the conflict has to take into account the relative weight of each.
36
LEXY, Robert.
Teoria delas derechos fundamentales
1997, p. 86 e
ss.; e ALEXY, Robert.
Colisão de direitos fundamentais e realização de
direitos fundamentais no estado de direito democrático
Revista de Direito
Administrativo n° 217, 1999, p. 79 e ss.
37 V. BONAVIDES, Paulo.
Curso de direito constitucional
1999, p.
243 e ss.; GRAU, Eros Roberto.
A ordem econômica na Constituição de
Nesse sentido, e empregando a lógica de Alexy, uma
vez que os princípios funcionam como comandos de otimi-
zação, pretendendo realizar-se da forma mais ampla possí-
vel, a ponderação é o modo típico de sua aplicação. Por
meio da ponderação se vai sopesar a extensão de aplicação
possível de cada princípio, considerando as possibilidades
jurídicas (outros princípios contrapostos e eventualmente
regras) e físicas existentes . Na verdade, em vários escri-
tos recentes Alexy tem manifestado preocupação em deli-
near o conteúdo da ponderação e a forma de sua utili-
zação .
1988 — Interpretação e crítica
1996, p. 92 e ss.; BARROSO, Luís
Roberto.
Interpretação e aplicação da Constituição
2000, p. 141 e ss.;
COELHO, Inocêncio Mártires.
Interpretação constitucional
1997, p. 79
e ss.; GUERRA FILHO, Willis Santiago.
Processo constitucional e direitos
fundamentais
1999, p. 51 e ss.; ROTHENBURG, Walter Claudius.
Princípios constitucionais
1999; ESPÍNDOLA, Ruy Samuel.
Conceito de
princípios constitucionais
1999. Na doutrina estrangeira, confiram-se
CANOTILHO, J. J. Gomes.
Direito constitucional e teoria da
constituição
1998, p. 1034 e ss.; BOBBIO, Norberto.
Teoria do
ordenamento jurídico
1997, pp. 158 e 159 e ss.; GARCIA DE
ENTEARIA, Eduardo.
La cons ti tución como norma y el tribunal
constitucional
1994, pp. 98 e 99 e ss.
38
LEXY, Robert.
Teoria de los derechos fundamentales
1997, p. 86 e
ss
39 ALEXY, Robert.
Colisão de direitos fundamentais e realização de
direitos fundamentais no estado de direito democrático
Revista de Direito
Administrativo n° 217, 1999, p. 75: Princípios e ponderações são dois
lados do mesmo objeto. Um é do tipo teórico-normativo, o outro,
metodológico. Quem efetua ponderações no direito pressupõe que as
normas, entre as quais é ponderado, têm a estrutura de princípios e quem
classifica normas como princípios deve chegar a ponderações A discussão
sobre a teoria dos princípios é, com isso, essencialmente, uma discussão
sobre a ponderação. . Em estudo mais recente, porém, Alexy vai
identificar a ponderação com o terceiro elemento da proporcionalidade
— a ponderação em sentido estrito —, conferindo, aparentemente, certa
25
24
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Uma segunda maneira de compreender a ponderação é
a que a visualiza, sem maiores preocupações dogmáticas,
como um modo de solucionar qualquer conflito normativo,
relacionado ou não com a aplicação de princípios. É nesse
sentido que ela tem sido empregada em muitas decisões
judiciais, que parecem identificá-la como uma técnica ge-
nérica de solução de aparentes tensões normativas. A téc-
nica consistiria em
balancear
ou
sopesar
os elementos em
conflito para atingir a solução mais adequada
°
.
Por fim, e em terceiro lugar, diversos autores ligados às
autonomia à técnica (ALEXY, Robert.
Constitutional Rights, Balancing
and Rationality,
Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, pp. 131 a 140). Em outro
trabalho, Aleicy propõe uma fórmula para a ponderação empregando a
lógica aritmética (ALEXY, Robert. On
Balancing and Subsumption. A
Structural Comparison,
Ratio Juris, vol. 16, n°4, 2003, pp. 433 a 449).
40
Vejam-se, exemplificativamente, os seguintes acórdãos: TRF 1'
Região, AGRPSL 2000.01.00.012735-8/MG, Rel. Juiz Tourinho Neto,
DJU 29.06.2000: 1. Em liminar, o juiz deve analisar, de maneira
perfunctória, superficial, os pressupostos do fumus boni iuris e do
periculum in mora, não devendo proceder, em princípio, a análise do
fundo da controvérsia. 2. Não pode a liminar coarctar a investigação de
fatos que deverão ser objeto da instrução. 3. Na ponderação dos valores
em conflito, há de prevalecer o que não cause grave lesão à ordem, à
saúde, à segurança e à economia publicas. ; e TRF 4 Região, ApMS
77562/SC, Rel. Juiz Paulo Afonso Brum Vaz, DJU 05.06.2002:
Previdenciário. Benefício por invalidez decorrente de acidente do
trabalho. Restabelecimento. Mandado de segurança. Competência da
justiça estadual. A despeito da regra inscrita no inciso VIII do art. 109 da
Constituição Federal, é competente a Justiça Estadual para julgar
mandado de segurança que tenha por objeto a concessão ou revisão de
benefício previdenciário decorrente de acidente do trabalho. Se o
legislador constitucional excluiu da competência federal a matéria
relacionada com acidente do trabalho, não se pode sobrepor a esse
desígnio regra de natureza instrumental, ainda que tenha esta última
também sede na Carta Constitucional. Na ponderação dos interesses em
conflito, deve prevalecer a substância sobre a forma.
discussões sobre a teoria da argumentação compreendem a
ponderação em sentido muito mais amplo, como elemento
próprio e indispensável ao discurso e à decisão racionais.
Ponderação, nesse sentido, é a atividade pela qual se ava-
liam não apenas enunciados normativos ou normas'', mas
todas as razões e argumentos relevantes para o discurso,
ainda que de outra natureza (argumentos morais, políticos,
econômicos etc.)
. Nesse sentido, ao aplicar a idéia ao dis-
curso jurídico, a ponderação acaba por se confundir com a
atividade de interpretação jurídica como um todo'''. Para
esses autores, não há uma relação necessária entre a ponde-
ração e a situação específica de conflito entre disposições
normativas, já que toda decisão envolverá necessariamente
a avaliação de razões e argumentos relevantes. Assim, inter-
pretação sempre envolveria ponderação.
4
diante se vai discutir a diferença entre esses dois fenômenos.
42
omo se processa essa avaliação de razões é, naturalmente, uma das
principais preocupações dos autores. Vejam-se, por todos, PECZENIK,
Alelcsander. On
Law and Reason
1989; e ATIENZA, Manuel.
As razões
do direito,
2002.
43
Essa é aparentemente a posição de Humberto Ávila, v. ÁVILA,
Humberto.
Teoria dos princípios
2003, p. 50: Todas essas considerações
demonstram que a atividade de ponderação de razões não é privativa da
aplicação dos princípios, mas é qualidade geral de qualquer aplicação de
normas. Não é correto, pois, afirmar que os princípios, em contraposição
às regras, são carecedores de ponderação
abwãgungsbedürftig).
A
ponderação diz respeito tanto aos princípios quanto às regras, na medida
em que qualquer norma possui um caráter provisório que poderá ser
ultrapassado por razões havidas como mais relevantes pelo aplicador
diante do caso concreto. Concepção semelhante é a desenvolvida pOr
PECZENIK, Aleksander. On
Law and Reason,
1989, p. 81: All socially
established legal norms, expressed in statutes, precedents etc., have a
merely prima facie character. The step from prima facie legal rules to the
all-things-considered legal (and moral) obligations, claims etc. involves
evaluative interpretation, that is, weighing and balancing. (grifos no
original); e HAGE, Jaap. C.
Reasoning with Rides
1997.
26
27
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Não se adotou neste estudo qualquer dos três conceitos
descritos acima para a ponderação, preferindo-se um quar-
to. A fundamentação analítica dessa escolha depende de
temas a serem desenvolvidos ao longo do texto, mas é pos-
sível apresentar desde logo um conjunto de argumentos
preliminares que justificam essa decisão. Para fins didáti-
cos, será útil examinar, em primeiro lugar, por que a segun-
da forma de compreender a ponderação identificada acima
não é adequada. Em seguida, tentar-se-á demonstrar por
que tampouco foram adotadas as duas outras possibilida-
des descritas.
O direito está muitíssimo acostumado aos conflitos
normativos. A hermenêutica jurídica sempre conviveu com
o problema das antinomias e com as diversas técnicas con-
cebidas para superá-las. Os critérios temporal, hierárquico
e da especialidade continuam a ser de grande utilidade e
dão conta de boa parte dos problemas envolvendo conflitos
normativos, aplicando-se não apenas à ordem infraconsti-
tucional , mas também à constitucional . Em outra fren-
44
OBBIO, Norberto.
Teoria do ordenamento jurídico
1997, p. 71 e
SS..
45
Como se sabe, as regras contidas no art. 100 da Constituição —
disciplina geral dos precatórios — e no art. 33 do ADCT — que formula
regra especial nessa mesma matéria — convivem apenas por conta da
especialidade de uma em relação à outra. O mesmo se dá com o art. 15,
111 — regra geral quanto aos efeitos de condenação criminal sobre os
direitos políticos — e o art. 55 VI e § 2° — que cria regra especial quando
se trate de deputado federal ou senador. Emendas constitucionais
revogam o texto original da Carta (quando isso seja possível) e conflitos
entre as disposições antigas e as novas são resolvidos pelo critério
temporal. Por fim, se uma emenda pretende alterar alguma das chamadas
cláusulas pétreas
uma manifestação específica do critério hierárquico
impedirá a iniciativa, já que não se admite alteração tendendo a abolir o
que esteja contido em dispositivos que desfrutem
desse status.
28
te, os elementos clássicos de interpretação , especialmen-
te o sistemático e o teleológico, também são meios herme-
nêuticos empregados para adequar o sentido do texto à sua
finalidade e evitar incongruências e até mesmo antinomias.
Por meio desses elementos, é possível chegar a interpreta-
ções extensivas ou restritivas, desenvolver raciocínios ana-
lógicos, de tal forma que eventuais conflitos sejam supera-
dos.
Ou seja: o problema da colisão normativa (antinomia)
não é novo e, muito antes que se cogitasse formalmente da
técnica da ponderação, a hermenêutica jurídica já havia de-
senvolvido mecanismos variados para solucioná-lo. Uma
primeira crítica à idéia de que ponderação vem a ser a téc-
nica empregada para a solução de qualquer conflito norma-
tivo consiste exatamente nisto: ou bem todas essas técnicas
tradicionais de interpretação se transformaram subitamen-
te em ponderação ou a concepção descrita acerca desta
última é excessivamente abrangente.
A evidência de que a ponderação não se confunde com
as fórmulas hermenêuticas tradicionais para a solução de
antinomias coloca, porém, urna nova questão: em que a
ponderação se particulariza, comparada com os critérios da
especialidade, hierárquico ou temporal e com as demais
técnicas convencionais de interpretação? A pergunta é fun-
damental e tem na verdade duas respostas: há uma distin-
ção metodológica entre a ponderação e essas outras técni-
cas e há também uma distinção material entre os conflitos
normativos de que elas se ocupam. Na verdade, a distinção
material provoca, de certa forma, a metodológica. Explica-
se melhor.
46
Sobre os elementos clássicos de interpretação, v. BARROSO, Luís
Roberto.
Interpretação e aplicação da C onstituição
2003, p. 124 e ss..
29
7 1 1 1 1 1 P r r .
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Todos os elementos de interpretação tradicionais refe-
ridos acima operam, em última análise, sob a lógica da sub-
sunção, que continua a ser a lógica ordinária de aplicação
silogística do direito. O raciocínio subsuntivo aplicado ao
direito pode ser descrito simplificadamente nos seguintes
termos: em primeiro lugar, identifica-se uma premissa
maior, composta por um enunciado normativo ou por um
conjunto deles. A premissa maior incide sobre uma premis-
sa menor (o conjunto de fatos relevantes na hipótese), e
desse encontro entre as premissas maior e menor produz-
se uma conseqüência: a aplicação de uma norma específica
ao caso, extraída ou construída a partir da premissa
maior . As técnicas tradicionais de solução de antinomia e
a aplicação dos elementos sistemático e teleológico, dentre
outras fórmulas hermenêuticas , pretendem exatamente
47
Não cabe aqui aprofundar o tema, mas fica o registro de que o
processo de subsunção jurídica está longe de ser simples e unívoco. A
seleção da premissa maior aplicável, a identificação dos fatos relevantes e
a definição da conseqüência que se deve extrair da premissa maior são
questões que se interligam e podem envolver muitas complexidades, V.
REALE, Miguel.
Liçõespreimnaresdedreto
1999 p. 303: Na
realidade, porém, as coisas são bem mais complexas, implicando uma
série de atos de caráter lógico e axiológico, a começar pela determinação
prévia da norma aplicável à espécie, dentre as várias normas possíveis, o
que desde logo exige uma referência preliminar ao elemento fático. (...)
Como se vê, a norma não fica
antes
nem o fato vem
deposno raciocínio
do juiz, pois este não raro vai da norma ao fato e vice-versa, cotejando-os
e aferindo-os repetidas vezes até formar a sua convicção jurídica, raiz de
sua decisão. (...) Donde podemos concluir que o ato de subordinação ou
subsunção do fato à norma não é um ato reflexo e passivo, mas antes um
ato de participação criadora do juiz, com a sua sensibilidade e tato, sua
intuição e prudência, operando a norma como substrato condicionador de
suas indagações teóricas e técnicas.
48
Sobre elementos específicos de interpretação constitucional (afora a
ponderação , v. BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de.
O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos
30
superar a antinomia, afastar a incidência de outras possibi-
lidades normativas e isolar uma única premissa maior, para
que a subsunção possa ter início.
Do ponto de vista metodológico, porém, a ponderação
é exatamente a alternativa à subsunção , quando não for
possível reduzir o conflito normativo à incidência de uma
princípios no direito brasileiro .
In
BARROSO, Luís Roberto
(organizador).
A nova interpreaçãoconstituconal. Ponderação dretos
fundamentaisereaçõesprivadas
2003 pp. 327 a 379
49 ALEXY, Robert. On
BalancngandSubsumption A Structural
Comparison
Ratio Juris, vol. 16, n° 4, 2003 p. 434: It is easy to see that
the application of the law is not exhausted by a deduction of this kind.
There are two reasons for this. The first is that it is always possible that
other norm, requiring another solution, is applicable. If this is the case,
the question of precedence arises. The answer to this question may
involve balancing, but it must not do so. Oftenmeta-rules like
lex superior
derogat leg inferiori, lex posterior derogat leg priori,
or lex specalis
derogat leg generali
are applicable. In order to arrive at a solution, a
second subsumption has to be performed under such a meta-rule. One
might call this second subsumption 'meta-subsumption'. S o long as
conflicts of norms are resolved by meta-subsumption, we remam
n within
the realm of subsumption. As soon as we resort, however, to balancing to
resolve the conflict, we shift over from subsumption at the first levei to
balancing at the second levei. Isso não significa que o processo de
ponderação não empregue em determinados momentos o raciocínio
subsuntivo como destaca SANCH1S Luis Prieto.
Neoconstitucionalismo y ponderación judicial .
InCARBONELL,
Miguel (organizador).
Neoconstituconalimo s),
2003 p. 145: Pero si
antes
de ponderar es preciso de alguna manera subsumir, mostrar que el
caso individual que examinamos forma parte dei universo de casos en el
que resultan relevantes dos principios en pugna,
desprás
de ponderar creo
que aparece de nuevo la exigencia de subsunción. Y ello es así porque,
como se verá, la ponderación se endereza a la formulación de una regia, de
una norma en la que, reuniendo en cuenta las circunstancias dei caso, se
elimina o posterga uno de los principios para ceder el paso a otro que,
superada la antinomia, opera como una regia y, por tanto, como la premisa
normativa de una subsunción. (grifos no original).
31
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única premissa maior. Isso é o que ocorre quando há diver-
sas premissas maiores igualmente válidas e vigentes, de
mesma hierarquia e que indicam soluções diversas e con-
traditórias. Nesse contexto, a subsunção não tem elemen-
tos para produzir uma conclusão que seja capaz de conside-
rar todos os elementos normativos pertinentes: sua lógica
de funcionamento tentará isolar uma única premissa maior
para o casos°.
Isso é o que se passa,
e.g. quando várias disposições
constitucionais originárias incidem sobre uma mesma hipó-
tese, indicando soluções diversas: todas foram editadas ao
mesmo momento, dispõem da mesma hierarquia e na
maior parte dos casos inexiste qualquer relação de genera-
lidade/especialidade entre elas. Ademais, não é possível
simplesmente escolher um
disposição constitucional em
detrimento das demais: o princípio da unidade, pelo qual
todas as disposições constitucionais têm mesma hierarquia
e devem ser interpretadas de maneira harmônica, não ad-
mite essa soluçãom.
Situação semelhante ocorre com muitos enunciados in-
fraconstitucionais que, refletindo os conflitos internos da
Constituição, encontram suporte lógico e axiológico em
algumas disposições constitucionais, mas parecem afrontar
outras. Também aqui, a verificação da constitucionalidade
5 ORRE, Maxim° La. Theories of Legal rgumentation and Concepts
of Law. An Approximation
Ratio Juris, vol. 14, n° 4, 2002, p. 380: But
the decisive problem that explains why the syllogistic model is
(theoretically) in crisis is that even where a clear provision is available,
appropriate to the case under consideration, and the factual elements
have been adequately classified and tested, it is not always possible to
reach a single correct answer.
51 Esse é o entendimento consolidado no Brasil. Veja-se, por todos,
BARROSO, Luís Roberto.
Interpretação e aplicação da Constituição
2003, p. 196 e ss.
da ordem infraconstitucional não poderá ser resolvida por
uma mera subsunção, já que várias disposições constitucio-
nais devem funcionar como parâmetro para esse controle e
cada uma delas parece indicar uma conclusão diversa acer-
ca da validade do dispositivo legal. Pois berri: a ponderação
pretende ser exatamente a técnica que conseguirá, a partir
de uma lógica diversa da subsuntiva, decidir esses conflitos
considerando todas as premissas maiores pertinentes.
Essa, portanto, é a primeira distinção entre a pondera-
ção e as técnicas tradicionais de solução de antinomias:
estas estão ligadas à subsunção, ao passo que a ponderação
é uma alternativa a ela.
A segunda distinção, como referido, relaciona-se com a
natureza dos conflitos normativos afinal superados pelas
técnicas tradicionais e daqueles que persistem e exigem o
emprego da ponderação. Embora essa forma de sistemati-
zar os conflitos normativos em dois grupos não seja rigorosa
e, possivelmente, não se aplique a todos os casos, ela ajuda
a compreender parte importante do fenômeno examinado.
As antinomias com as quais a hermenêutica tem lidado
tradicionalmente não envolvem um conflito axiológico im-
portante ou uma disputa entre opções políticas, isto é, não
se cuida de uma oposição de elementos igualmente rele-
vantes para a ordem jurídica. Trata-se, em geral, apenas de
um conflito lógico entre enunciados ou ainda de um texto
que veiculou de forma não completamente satisfatória o
que se pretendia. Os conhecidos conflitos aparentes entre
os arts. 100 do corpo permanente da Carta de 1988 e o 33
do ADCT, bem como entre ao arts. 15, III, e 55, VI, § 2°,
ambos solucionados pelo critério da especialidade, exem-
plificam o ponto.
Nesse contexto, não há propriamente um conflito en-
tre valores ou entre opções políticas fundamentais. No má-
ximo, é possível visualizar uma resistência às interpreta-
32
3
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ções menos literais, já que, ao se afastarem do sentido mais
evidente do texto, elas podem representar um risco para a
segurança jurídica e a previsibilidade. Essa tensão, entre-
tanto, é própria de toda e qualquer interpretação da lingua-
gem e dentro de certos limites não revela um conflito valo-
rativo autônomo. Em situações específicas, por outro lado,
essa tensão pode dar origem a uma colisão aberta de valo-
res, como se verá mais adiante.
Diversamente, os conflitos que não podem ser supera-
dos pelas técnicas tradicionais refletem em geral um con-
fronto entre valores ou opções políticas decorrentes da
própri
Constituição como um todo e dos princípios por
ela previstos em particular . Conflitos entre liberdade de
expressão e direito à honra e à intimidade, entre proprieda-
de e sua função social, entre proteção do meio ambiente e
direito à moradia, dentre muitos outros, revelam tensões
entre elementos consagrados pelo próprio constituinte.
Ora, além de as técnicas tradicionais de solução de an-
tinomias não serem capazes de resolver essa espécie de
conflito, também os elementos clássicos de interpretação
— que, ao delinearem o sentido dos elementos normativos
em tensão, poderiam superar o impasse — têm aplicação
limitada. É fácil entender a razão. Como se acaba de regis-
trar, a definição do próprio sentido e alcance dos enuncia-
dos normativos nesses casos depende de escolhas entre va-
lores ou opções políticas em confronto, todos refletidos de
forma mais ou menos intensa no sistema constitucional.
Ocorre que, em geral, os critérios para essas escolhas não
podem ser extraídos facilmente do texto ou do sistema.
5
ECZENIK, Aleksander. On Law and Reason
1989, p. 19: A 'hard'
case, on the other hand, 'presents a moral dilemma, or at least a difficult
moral determination' (Morawetz, 1980, 90).
Qual o fundamento para decidir entre eles, então? O crité-
rio teleológico tem pouca utilidade, já 'que não é possível
apurar
uma única
finalidade com clareza. Os demais ele-
mentos, como o lógico e o sistemático, igualmente enfren-
tam problemas: o mesmo texto e o mesmo sistema forne-
cem elementos que podem sustentar diferentes conclu-
sões. Diante de hipóteses assim, a subsunção é insuficiente
e a ponderação parece ser a única forma de superar o con-
flito e chegar a uma decisão.
A distinção material entre os conflitos reforça ainda
mais a inadequação da idéia que visualiza a ponderação
como uma técnica genérica para solução de qualquer con-
flito normativo. Não apenas a afirmação é imprecisa, como,
pior que isso, banaliza o uso da ponderação, cujo emprego
deve ser reservado apenas para as hipóteses de insuficiên-
cia da subsunção, que continua a ser a forma ordinária de
aplicação dos enunciados normativos.
Cabe agora examinar o primeiro conceito acerca da
ponderação exposto acima: o que a identifica como a forma
de aplicação dos princípios. Essa concepção não parece to-
talmente adequada por algumas razões. De fato, a maioria
absoluta dos conflitos normativos que exige ponderação
envolve princípios, já que boa parte deles ocupa-se exata-
mente de veicular valores ou opções e fins políticos. Na
verdade, a incidência simultânea do conceito de pondera-
ção proposto neste estudo —
técnica jurídica de solução de
conflitos normativos que envolvem valores ou opções políti-
cas em tensão insuperáveis pelas formas hermenêuticas tra-
dicionais —
e daquele que visualiza a ponderação como
forma de aplicação dos princípios certamente produzirá
amplas áreas de superposição. Há, porém, duas dificulda-
des que não recomendam a utilização dessa última idéia.
Em primeiro lugar, os conflitos normativos não resolvi-
dos pela subsunção podem, ainda que em caráter excepcio-
34
5
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nal, envolver regras . A ponderação, nesses casos, não
pode ser reduzida a uma forma de aplicar princípios; trata-
se na verdade de uma técnica de decisão autônoma que,
embora muitas vezes envolva princípios, não se vincula a
eles de maneira exclusivas'. Além disso, como se verá
adiante, há princípios que não funcionam completa ou ne-
cessariamente sob a lógica da ponderação (seja porque dis-
põem de núcleo com natureza de regra, seja porque têm
estrutura e funcionamento diversos). O ponto será retoma-
do adiante.
Por fim, resta expor as razões pelas quais tampouco se
adotou a terceira forma identificada acima de entender a
ponderação: aquela que a descreve como elemento ineren-
te e indistinto da atividade de interpretação e argumenta-
ção jurídicas, já que todo o discurso racional, em última
análise, depende da lógica ponderativa, por meio da qual
toda sorte de argumentos, inclusive os jurídicos, pode ser
avaliada.
A investigação do discurso racional em geral, e da argu-
mentação jurídica em particular, é da maior relevância para
o
direito contemporâneo, e a discussão sobre a ponderação
normativa em especial — sendo esta a que se ocupa direta-
mente de elementos normativos — é apenas uma parcela
de um objeto de estudo muito mais amplo. Compreender
a ponderação neste sentido amplíssimo exigiria um exame
aprofundado da teoria do discurso e da argumentação, mas
não é esse o propósito deste estudo. Aqui se pretende ana-
5
tema será examinado adiante, no Capítulo VIII.2.
54 Nesse sentido, RODRIGUEZ DE SANTIAGO, José Maria.
La
ponderación de bienes e intereses en el derecho administrativo,
2000, p. 9;
e ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios,
2003, p. 35: Com efeito, a
ponderação não é método privativo de aplicação dos
princípios.
36
usar apenas um elemento desse universo: a ponderação
propriamente dita de enunciados e normas jurídicas.
Por esta razão, sob uma perspectiva estritamente jurídi-
ca e operacional, não parece muito útil trabalhar com uma
noção tão ampla de ponderação, dentro da qual o problema
da ponderação normativa — especialmente grave para a
prática jurídica — ficaria diluído. É certo que o direito
sempre envolve ponderação no sentido comum do termo:
o
legislador considera vantagens e desvantagens envolvidas
em determinada questão e decide por um caminho. Nesse
sentido, é perfeitamente possível afirmar que em toda de-
cisão judicial há alguma ponderação: ao juiz são apresenta-
das razões contrastantes, ambas postulando primazia, e
cabe a ele decidir por uma delas ou por uma solução inter-
mediária, na medida em que isso seja possível. Isto é: o
julgador deverá levar em conta , considerar as diferen-
tes razões das partes antes de decidir. A ponderação nor-
mativa propriamente dita, porém, apresenta características
particulares, tem importância específica para a dogmática
jurídica e merece, por isso, um estudo próprio.
Ademais, como se aprofundará a seguir, por conta da
singularidade das antinomias que lhe cabe solucionar, a
ponderação normativa acaba por conferir ao intérprete po-
deres especialmente amplos. A afirmação genérica de que
toda interpretação envolve uma ponderação (quando a ri-
gor o termo
ponderação
estaria sendo usado em sentido
amplo, e não para designar uma técnica específica de solu-
ção de conflitos normativos) poderia autorizar o operador
jurídico a lançar mão desses poderes em qualquer exercício
da atividade interpretativa, ainda que não estivessem pre-
sentes as circunstâncias que os justificam .
55 CANOTILHO, J. J. Gomes.
Direito constitucional e teoria da
Constituição
1998, pp. 1161 e 1162: Em muitas propostas
37
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A despeito das críticas apresentadas, a verdade é que é
possível denominar e classificar os fenômenos jurídicos
como se prefira, em função da utilidade e da clareza visua-
lizadas em uma ou outra fórmula. O importante realmente
é que essas fórmulas sejam capazes de comunicar os con-
teúdos pretendidos aos diferentes usuários dessas conven-
ções. Pois bem: considerando os dois objetivos centrais
deste estudo — (i) propor uma ordenação que confira
maior juridicidade e racionalidade à ponderação enquanto
técnica para solução de conflitos normativos e (ii) propor
parâmetros capazes de orientar o emprego dessa técnica
—, a noção de ponderação inicialmente adotada parece sa-
tisfatória. Desse modo, para os fins deste estudo, e à guisa
de conclusão deste tópico, a ponderação será compreendi-
da e identificada como urna técnica jurídica de solução de
conflitos normativos que envolvem valores ou opções polí-
ticas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas
tradicionais.
metodológicas a ponderação é apenas um elemento do procedimento da
interpretação/aplicação de normas conducente à atribuição de um
significado normativo e à elaboração de uma norma de decisão. Aqui o
balancing process vai recortar-se em termos autônomos para dar relevo à
idéia de que no momento de ponderação está em causa não tanto atribuir
um
significado normativo ao texto da norma, mas sim equilibrar e ordenar
bens conflituantes (ou, pelo menos, em relação de tensão) num
determinado caso. Neste sentido, o balanceamento de bens situa-se a
jusante da interpretação. A actividade interpretativa começa por uma
reconstrução e qualificação dos interesses ou bens conflituantes
procurando, em seguida atribuir um sentido aos textos normativos e
aplicar. Por sua vez a ponderação visa elaborar critérios de ordenação
para, em face dos dados normativos e factuais, obter a solução justa para
o conflito de bens.
1.2. Direito, racionalidade e justificação: algumas notas
O tópico anterior teve por fim identificar o objeto prin-
cipal de investigação deste estudo: a ponderação. Além das
notas já feitas, e antes de prosseguir, parece importante
também justificar os objetivos do estudo. Por que, afinal, é
necessário ordenar metodologicamente a técnica da ponde-
ração e formular parâmetros que orientem e limitem o seu
emprego pelo intérprete? Embora a resposta a essa pergun-
ta pareça bastante óbvia e quase intuitiva, há algumas
observações importantes a fazer sobre o ponto.
Na verdade, e como já se mencionou, o objeto deste
trabalho insere-se em uma discussão muito mais ampla,
que envolve o tema da racionalidade e da justificação do
direito e das decisões jurídicas, sobretudo as judiciais
. O
tema é cada vez mais relevante no Brasil, pelo menos por
duas razões. Em primeiro lugar, os sistemas jurídicos con-
temporâneos, e em particular o brasileiro, conferem ao in-
térprete um espaço de atuação e criação cada vez mais am-
plo. Retomando o que se registrou na introdução, a utiliza-
ção intensiva pelos enunciados constitucionais e legais de
princípios e conceitos abertos ou indeterminados, dentre
outros mecanismos, transfere ao Judiciário contemporâneo
um amplo poder na definição do que é, afinal, o direito.
Sob pena de serem acusadas de puramente arbitrárias e
ilegítimas em um Estado democrático de direito
7 , as esco-
6
s temas da teoria da argumentação serão abordados apenas quando
isso seja necessário (e à medida que seja necessário) aos propósitos do
estudo. Como já referido, o objetivo do estudo é apresentar uma proposta
operacional para a técnica da ponderação e seria impossível atingir essa
meta se o estudo pretendesse aprofundar as complexas questões da teoria
da argumentação.
57 Para uma discussão mais profunda sobre o conceito de estado
democrático de direito, v. SILVA, José Afonso da. O
stado democrático
de direito
Jurisprudência Mineira n°101, 1988, p. 1 e ss..
38
9
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lhas do intérprete nesse ambiente demandam justifica-
tivas .
Por outro lado, e em segundo lugar, o processo de rede-
mocratização do País, nos últimos vinte anos, a reorganiza-
ção da sociedade civil e a liberdade de imprensa passaram a
submeter o Judiciário à crítica a que estão sujeitos todos os
poderes estatais. Obviamente, a necessidade de o agente
público demonstrar a legitimidade de seus atos cresce à
medida que haja mais controle .
58
LA TORRE Maximo.
Theories of Legal Argumentation
and
Concepts
of Law AnApproximation
Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, p. 382: It is
today the judge that is put forward as the new centre of the lega system,
no longer the legislative power, like it or not. And in the judge's view
central importance inevitably attaches to the procedure by which the
decision is arrived at. Here, the law is not enough, other criteria of choice
have to be resorted to. ; e AARNIO, Aulis.
Loraconal comorazonabe
1991, p. 29: Corno se ha mencionado, el decisor ya no puede apoyarse
en una mera autoridad forma. En una sociedad moderna la gente exige
no solo decisiones dotadas de autoridad sino que pide razones. Esto vae
también para la administración de justicia La responsabilidad dei juez se
ha convertido cada vez más en la responsabilidad de justificar sus
decisiones. La base para el uso dei poder por parte dei juez reside en la
aceptabilidad de sus decisiones y no en la posición forma de poder que
pueda tener. En este sentido, la responsabilidad de ofrecer justificación
es, especificamente, una responsabilidad de maximizar el control público
de la decisión. Así pues, la presentación de la justificación es siempre
también un medio para asegurar, sobre una base raciona, la existencia de
la certeza jurídica en la sociedad.
59 MAIA, Antônio Cavalcanti.
importânca da dmensão
argumentativa à compreensãoda práxis jurídca contemporânea
Revista
Trimestral de Direito Público n° 8, 2001, pp. 280 e 281: Eis que a
reconstitucionaização implicou nítido aargamento nas funções dos juízes
e uma maior participação do Judiciário nos problemas gerais da vida
brasileira Deste modo, cabe à comunidade dos profissionas do Direito
uma reflexão mas profunda acerca destas questões, tendo em vista que a
'nova retórica oferece novas possibilidades de reflexões no mundo do
ireito e postula uma integração maior entre a produção
Além dessas razões gerais, a necessidade de racionalida-
de e justificação torna-se ainda mais acentuada quando se
trate de decisão que emprega a técnica da ponderação.
Como exposto no tópico anterior, a técnica se destina a
solucionar antinomias que, na verdade, refletem conflitos
muito mais complexos, envolvendo valores e diferentes op-
ções políticas.
Neste contexto,
as decisões jurídicas não são
tomadas com base em uma subsunção simples ou facilmen-
te perceptível, já que os critérios utilizados para definir a
solução em cada caso não estão no texto jurídico. Sua legi-
timidade, portanto, não decorre de forma evidente de
enunciados normativos. Em suma: com mais razão que a
existente relativamente a todas as decisões judiciais, a legi-
timidade daquelas que se valem da técnica da ponderação
depende fortemente de sua
r cion lid de
e capacidade de
justific ção
6
Esses dois elementos — racionalidade e jus-
tificação — exigem um breve comentário.
doutrinário-acadêmica e o quotidiano do juiz e do advogado. Ademas,
nos últimos anos tem-se freqüentemente sustentado uma fiscalização
maior da atividade do Judiciário, cogitando-se por vezes o controle
externo deste poder. Trata-se de um debate difícil, complexo e delicado.
(...) Entretanto, pode-se apontar urna outra forma — diferente daquela
do controle externo — de procurar garantir mecanismos de fiscalização da
sociedade e da comunidade dos operadores do Direito em relação ao
Judiciário. Ta se daria basicamente, a partir de uma outra perspectiva
situada numa dimensão metodológica através de um exame mas apurado
da fundamentação das decisões, à luz de todas essas cogitações de
natureza teórica abertas pela
démarche
tópica Neste quadro atua, onde
os magistrados dispõem de uma área maor anda de liberdade do que a
tradicionalmente garantida em nossa .história jurídica, impõe-se uma
atenção maor à questão concernente as justificativas pelas quas os juizes
chegam às decisões que dirimem as lides a eles submetidas.
60
PECZENIK, Aleksander. On
LatoandReason
1989, p. 31: Why
should value judgments, based on weighing and balancing of various
considerations, play such a great role in legal reasoning, particularly in
40
41
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De forma simples, é possível dizer que a racionalidade
na esfera das decisões jurídicas está ligada a dois elemen-
tos: (i) a capacidade de demonstrar conexão com o sistema
jurídico
6
e (ii) a racionalidade propriamente dita da argu-
legal interpretation? The answer is based on the fact that the
interpretation and application of law is to some extent rational and, for
that reason, promotes legal certainty in material sense, that is, the optimal
compromise between predictability of legal decisions and their
acceptability in view of other moral considerations. (grifos no original);
e AARNIO, Aulis.
La tesis de la única respuesta correcta y el principio
regulativo dei razonamiento jurídico
Revista Doxa n° 8, 1990, p. 25 e ss..
Sobre a especial necessidade de racionalidade e justificação da jurisdição
constitucional, v. VILLALÓN, Pedro Cruz. Legitimidade da justiça
constitucional e princípio da maioria .
In: Legitimidade e legitimação da
justiça constitucional — Colóquio no 10
aniversário do Tribunal
Constitucional
1995, p. 88; GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo.
La
constitución como norma y el tribunal constitucional 1983
pp. 234 a 236:
Es precisamente esa calificación estrictamente judicial, aplicada a una
materia tan trascendental y tan sensible para el cuerpo político y social, la
que exige de manera particular a las sentencias constitucionales
intensificar la exigencia común de la motivación de todo fallo judicial, la
de presentarse como
principie
justificada de una manera detallada y
explícita en principios que trasciendan la apreciación singular dei caso,
principios que aqui han de ser precisamente los expresados en la
Constitucion o deducibles de los mismos con claridad. (...) Se trata, en
definitiva, en la expresiva dicotomia dei libro de Howard Bali, de
presentar ai pueblo las decisiones constitucionales con un producto de la
artesanía jurídica, a partir de los principios constitucionales, y no como
ukases, como decisiones de poder que solo podrían apoyarse en las
inclinaciones personales de los jueces constitucionales, inclinaciones
irrelevantes para el pueblo y que carecen de cualquier legitimidad para
erigirse em motivos últimos de dichas decisiones. ; e TAVARES, André
Ramos.
Tribunal e jurisdição constitucional
1998, p. 40 e ss..
61 Essa vinculação pode assumir variadas formas, admitindo
modalidades mais ou menos diretas. A existência de disposições
implícitas, construídas a partir do sistema, e de princípios gerais do direito
não é uma novidade.
42
mentação
6 2 , em especial nas hipóteses em que existam vá-
rias conexões possíveis — e diferentes — com o sistema
jurídico
6 3
. Explica-se melhor.
De forma esquemática, em um Estado de direito, repu-
blicano e democrático, no qual se adota como pressuposto
a igualdade de todos, a imperatividade do ordenamento
jurídico decorre de contar, em última análise, com o respal-
do de uma decisão majoritária, representada pela lei e/ou
pela Constituição. Isto é: apenas uma decisão tomada em
bases majoritárias, com a participação direta ou indireta
das pessoas, pode ser considerada legitimamente obrigató-
ria e capaz de desencadear os mecanismos de coerção do
Estado. Nesse mesmo sentido, e deixando de lado outras
considerações, a legitimidade da atuação judicial decorre
igualmente de sua
vinculação a decisões majoritárias.
Superou-se há muito, é certo, a ficção de que o juiz
seria um agente neutro de execução de subsunções lógicas,
62
ECZENIK, Aleksander. On Law and Reason
1989, pp. 188 e 189.
O autor registra que, além da coerência com o sistema jurídico (o que
envolve inclusive a criação de parâmetros), é preciso que também o
processo de argumentação e decisão seja racional e coerente. Salvo por
algumas observações pontuais, este estudo ocupa-se apenas da coerência
sistemática e não da argumentativa.
63 O que qualifica uma argumentação ou decisão jurídicas como
racionais? Esta é uma das questões mais importantes e complexas da
teoria da argumentação. Alelcsander Peczenik, por exemplo, visualiza na
racionalidade três exigências principais. PECZENIK, Aleksander. On
Law and Reason
1989, p. 119: I have also put forward three different
demanda of rationality, that is, the demand that the conclusion is logically
and linguistically valid (L-rationality), follows from a highly coherent set
of statements (S-rationality), and would not be refuted in a perfect
discourse (D-rationality). . Veja-se também TEIXEIRA, João Paulo
Aliam
Crise moderna e racionalidade argumentativa no direito: o modelo
de Aulis Aarnio
Revista de Informação Legislativa n° 154, 2002, pp. 213
a 227.
43
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não lhe cabendo qualquer papel criativo ou inovador. Se
essa crença já era ilusória no século XIX e na primeira me-
tade do século XX, que se dirá nos dias de hoje, tendo em
conta a abertura dos sistemas jurídicos contemporâneos? A
visualização mais precisa do real papel do aplicador do di-
reito, no entanto, não deve conduzir o debate ao outro ex-
tremo. Continua a ser vedado ao juiz, em um Estado demo-
crático de direito, inovar na ordem jurídica sem fundamen-
to majoritário, sob pena de usurpar a competência própria
dos demais poderes estatais.
Nesse sentido, portanto, a vinculação da decisão judi-
cial ao sistema jurídico em vigor é um primeiro elemento
de racionalidade; ao demonstrar essa vinculação de forma
consistente
, a decisão judicial se beneficia da presumida
racionalidade do sistema jurídico e, sobretudo, da contida
em seu elemento central: a Constituição .
Muitas vezes, porém, o próprio sistema fornece funda-
mentos para diferentes decisões, e técnicas interpretativas
diversas podem conduzir a resultados incompatíveis. Isto
é: nem sempre o sistema indicará uma solução única e in-
disputada e, nessas circunstâncias, não bastará demonstrar
alguma
conexão com o sistema jurídico: é necessário de-
monstrar a
racionalidade propriamente dita
da conexão es-
colhida. Será necessário responder racionalmente a ques-
64
PECZENIK, Aleksander. On
LawandReason
1989, p. 177: A legal
justification which neither explicitly nor implicitly refers to a system is an
ad-hoc justification. Neither universal nor general, it would not fulfill
elementary demands of justice (MacCormick 1984, 243). Justice
requires that legal justification is embedded in a fairly coherent system.
(grifos no original).
65
É claro que sob uma perspectiva filosófica ou sob a ótica da teoria do
discurso é possível questionar a racionalidade do sistema jurídico e da
própria Constituição. Essa discussão, porém, está fora do escopo deste
estudo.
44
tões como as seguintes: Por que determinados enunciados
estão sendo considerados e outros não? Por que uma deter-
minada solução deve ser adotada e não outra, igualmente
respaldada por fundamento normativo?
A
justificação por sua vez, está associada à necessidade
de explicitar as razões pelas quais uma decisão foi tomada
dentre outras que seriam possíveis. Na verdade, cuida-se
de transformar os diferentes processos lógicos internos do
aplicador, que o conduziram a uma determinada conclusão,
em linguagem compreensível para a audiência . Há aqui
um ponto importante que é muitas vezes negligenciado.
Em um Estado republicano, no qual — repita-se — todos
são iguais, ninguém tem o direito de exercer poder político
por seus méritos pessoais, excepcional capacidade ou sabe-
doria. Todo aquele que exerce poder político o faz na qua-
lidade de agente delegado da coletividade e deve a ela
satisfações por seus atos . Esse raciocínio, bastante singelo
66É freqüente que o termo justificaçãoseja compreendido como
englobando não apenas a obrigação de apresentar a motivação das
decisões, mas também de fornecer uma motivação consistente, racional e
jurídica. Apenas para que fosse mais fácil visualizar os dois momentos —
a apresentação da justificativa e o juízo acerca de seu conteúdo — é que
se fez a distinção no texto, de modo que
justificação
acabou por ser
associada apenas à prestação de contas por parte do intérprete.
67 BARROSO, Luis Roberto. Promoção de magistrado por
merecimento e recusa de promoção por antigüdade. Dever de voto
aberto e motivado .
In PELLEGRINA, Maria Aparecida e SLVA, Jane
G ranzoto Torres da organizadoras).
Constituconalismosocal — Estudos
emhomenagemaoMinistroMarcoAuréioMendes deFaria Melo
2003
pp. 194e 195: Assinale-se que em um Estado democrático de direito,
todo poder é representativo, no sentido de que é exercido em nome do
povo e deve visar à promoção do bem comum. O fato de os agentes
públicos investidos de função judicial não serem escolhidos por meio de
sufrágio popular não infirma a premissa estabelecida. Juízes não são
eleitos por uma opção do constituinte, que reservou parcela do poder
45
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do ponto de vista da teoria democrática, também se aplica
ao Judiciário. O juiz exerce poder político ao desempenhar
uma das atividades próprias do Estado: a jurisdição. E, por-
tanto, um agente delegado da sociedade, a quem deve con-
tas de sua atuação. Note-se que a decisão judicial não é
mero conselho: ela poderá ser imposta pela força ao jurisdi-
cionado, se necessário, em uma manifestação típica do po-
der de império estatal. Parece evidente que o cidadão tem
o direito de saber por que um seu agente delegado decidiu
em determinado sentido e não em outro .
Não se ignora o sem-número de obstáculos enfrentados
pelo juiz para cumprir o dever de motivar adequadamente
político para ser exercida com base em critérios técnicos, sem submissão
aos mecanismos majoritários. Aliás, o Judiciário desempenha, muitas
vezes, uma função contra-majoritária, invalidando atos dos outros
Poderes e protegendo os direitos fundamentais contra o abuso das
maiorias políticas. Mas o constituinte não dispensou os órgãos judiciais de
um conjunto importante de controles próprios do regime democrático .
V. também PECZENIK, Alelcsander. On
LawandReason
1989, p. 41:
Thus, democracy demands a legal decision making which harmonizes
respect for both the wording of the law and its preparatory materiais and,
on the other hand, moral rights and values, including freedom and
equality. 1t also demands that the decisions are justified as clearly as
possible.
68
AARNIO, Aulis.
ReasonandAuthority
1997, p. 193: This is, thus,
due to the fact that one of the most important properties of a mature
democracy is openness. It makes the externai control of the
decision-making activity possible. This holds true also as to the
adjudication. The independence of the courts of justice does not mean
that they are completely outside of the democratic control. The division
of power guarantees the independence of the courts only in relation to
the other power centres, especially to the executive power. On the other
hand, the courts of justice are a part of society and of its democratic
order. Also the courts must thus, in an open society, be under a societal
control used by people. The only means of this control is the demand that
the courts really
argue
for their decisions. .
46
(número reduzido de juízes, grande quantidade de deman-
das repetidas etc. ), e igualmente as diversas propostas
hoje discutidas para tentar superar esses obstáculos. O que
importa destacar aqui é que o dever de motivar não decorre
apenas de uma regra formal contida no texto constitucional
(art. 93, IX) ou de uma exigência do direito de defesa das
partes. Ele está vinculado à própria necessidade republica-
na de justificação das decisões do Poder Público. Quando o
juiz emprega a técnica da ponderação, essa necessidade é
potencializada: se há uma variedade de soluções possíveis
nesses casos, é preciso demonstrar o motivo de se escolher
uma delas em detrimento das demais
m.
69 Sobre esse tema, acaba de ser divulgado pelo Ministério da Justiça
interessante estudo estatístico denominadoDiagnósticodoPoder
Judcário
Ministério da Justiça, Brasil, 2004. De acordo com o
levantamento, o país tem 7,7 juízes por 10000habitantes e no ano de
2003 foram distribuídos 17,3 milhões de processos ao Judiciário
brasileiro. Os problemas estruturais do Judiciário brasileiro não
constituem propriamente uma novidade. Há alguns anos são feitas
pesquisas sobre o tema, ainda que não tão abrangentes, como observa
BONAVIDES Paulo.
Dopais constituconal aopaís neocoonial,2001, p.
80e ss.
70Examinando a mesma questão sob uma perspectiva diversa e muito
interessante, v. DWORKIN, Ronald.
TheJudges NewRoe Should
Personal Convctions Cot u?
Joumal of Intemational Criminal Justice I,
2003, p. 11: The new role played by judges — wielding power in service
of conscience — was once played by priests and then later by politicians.
(...) Priests ruled by divination from the occult (...) Democratic
politicians now rule, not by the instinctive wisdom and fairness
celebrated in the old parliamentary model, but by representation, which
means by compromises, trade-offs and political deals that do not even
aim at coherence. Neither priests nor politicians have a responsibility of
justification in principie. (...) But that responsibility for articulation is the
nerve of adjudication. Judges are supposed to do nothing that they cannot
justify in principie, and to appeal Only to principies that they thereby
undertake to respect in other contexts as well. (...) Government by
47
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Em suma: em um Estado de direito, republicano e de-
mocrático, as decisões judiciais devem vincular-se ao siste-
ma jurídico da forma mais racional e consistente possível, e
o processo de escolhas que conduz a essa vinculação deve
ser explicitamente demonstrado. Aprimorar a consistência
metodológica da técnica da ponderação e construir pai-à--
metros jurídicos capazes de orientar seu emprego são es-
forços dogmáticos que podem contribuir, em primeiro lu-
gar, para que a vinculação ao sistema das decisões que em-
pregam essa técnica seja juridicamente mais consistente e
mais racional. Em segundo lugar, e aqui apenas de forma
indireta, a ordenação objetiva e clara das etapas a serem
percorridas pelo intérprete no uso da ponderação poderá
facilitar a demonstração pública do processo decisório no
momento da motivação.
adjudication is newly appealing for a different reason as well: it seems
better suited that the alternatives to the cultural and ethical pluralism
that is so marked in modern political communities and associations. (...)
The church as Caesar is no longer an option: we are too divided about
religion, and too united in our conviction that religion and State should be
separate, to permit that. We lcnow that politicians aim mainly at their
next electoral success, and while it is sensible to give officials who have
that prime ambition the task of benefiting the majority, it seems less
sensible to ask them to be the majority's conscience as well.
II. Examinando as críticas
à ponderação
Antes de apresentar uma proposta de ordenação para a
técnica da ponderação, anunciada nos tópicos anteriores, é
preciso enfrentar um questionamento relevante. Nos últi-
mos anos, autores têm formulado críticas contundentes à
propriedade da ponderação, à sua utilidade e até mesmo à
sua necessidade como ferramenta da hermenêutica jurídi-
ca. O exame dessas críticas (objeto deste capítulo) e das
opções à ponderação concebidas pela doutrina (objeto do
próximo capítulo) não atende apenas a uma necessidade de
organização do estudo acadêmico. Na verdade, a despeito
de se concluir ao final que a ponderação continua sendo
indispensável em diversas hipóteses, o exame das críticas
auxilia na identificação de inconsistências da técnica e no
esforço para aprimorá-la. Como se verá, a proposta de or-
denação exposta no capítulo V absorve e procura superar
várias das objeções formuladas contra ,a ponderação, bem
como assimila idéias lançadas pelos autores que defendem
a substituição da técnica por outras opções hermenêuticas.
Volte-se então ao ponto.
48
49
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Ao longo das últimas décadas, muitas críticas têm sido
formuladas à ponderação. E, embora dirigida de forma ge-
ral à ponderação como técnica de decisão jurídica em am-
bientes de conflitos normativos, a crítica se torna especial-
mente incisiva em duas situações: quando a ponderação
envolve direitos fundamentais previstos constitucional-
mente e quando se trata da modalidade chamada pelos nor-
te-americanos de
ad hoc balancingn
De forma simples, o
ad hoc balancing
descreve a pon-
deração levada a cabo pelo juiz no caso concreto, livremen-
te, isto é, independentemente de qualquer parâmetro ou
standard
anterior e abstrato ao qual o aplicador esteja vin-
culado. Adiante se voltará a tratar mais detidamente desse
fenômeno. Por motivos bastante lógicos, o tema se torna
ainda mais controvertido quando a ponderação envolve di-
reitos fundamentais. Em muitos países, tais direitos têm
status
constitucional e, em outros, até constituem cláusu-
las pétreas, de sorte que nem mesmo o constituinte deriva-
do pode restringi-los (no caso brasileiro, como se sabe, não
podem ser aprovadas emendas tendentes a abolir tais direi-
tos — art. 60, § 4°, IV). Mesmo nos Estados em que tais
disposições não são qualificadas como cláusulas pétreas, a
possibilidade de se restringirem por meio de decisões judi-
ciais direitos assegurados constitucionalmente desperta al-
guma perplexidade.
Nesse contexto, é possível sistematizar as principais
críticas à ponderação nas seguintes proposições:
a) A ponderação seria uma técnica inconsistente do
ponto de vista metodológico. As noções de balanceamento
ou sopesamento são vagas e não veiculam uma idéia clara
sobre o conteúdo da técnica. Além disso, não há parâme-
71
eja-se, por todos, ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Law
in the Age of Balancing
Yale Law Journal n° 96, 1987, p. 964 e ss..
tros racionais para a ponderação e inexiste um padrão de
medida homogêneo e externo aos bens em conflito capaz
de
pesar
de forma consistente a importância de cada um
deles . A ausência de parâmetros impede até mesmo que
se verifique se uma ponderação levada a cabo é ou não
correta .
b) Por conta da inconsistência metodológica, a ponde-
ração admite um excessivo subjetivismo na interpretação
jurídica e, portanto, enseja arbitrariedade e voluntarismo.
c) A ponderação arruína as conquistas próprias do Esta-
do de direito, em especial a contenção do arbítrio por meio
da legalidade (enunciados gerais e abstratos) e a segurança
jurídica daí decorrente, transmudando o Estado de direito
em um Estado de ponderação'.
72 SERNA Pedro e TOLLER Fernando. La interpretación
constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los
conflictos d e derechos 2000, p. 31: Como explica alguna doctrina, no es
posible contrapesar dos bienes sin establecer un
tertium comparationis
es
decir sin sefialar un principio un parámetro con respecto ai c-ual se pueda
determinar cuál pesa más. Nesse mesmo sentido, v. ALEINIKOFF, T.
Alexander. Constitutional Lato in the Age of Balancing
Yale Law Journal
n°96, 1987, p. 943 e ss..
73 ALEXY, Robert. Constitutional Rights Balancing and Rationality
Ratio Juris vol. 16 n° 2 2003 p. 134 e ss.; HABERMAS Jurgen.
Direito
e democracia entre facticidade e validade vol.
I, 2003, p. 241 e ss.; e
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democratica
2004, p. 135 e ss..
7 4
ORRES, Ricardo Lobo. A legitimação dos Direitos Humanos e os
Princípios da Ponderação e da Razoabilidade . /n: TORRES, Ricardo
Lobo (organizador),
Legitimação dos Direitos Humanos
2002, p. 421 e
ss.; e NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constiuição
2003, p. 640: O recurso à
ponderação de bens no Direito Público e, designadamente, no domínio
que aqui nos ocupa exclusivamente, o das restrições aos direitos
fundamentais, generalizou-se, nos últimos cinqüenta anos, de uma forma
tão avassaladora que pôde ser designada, criticamente, numa
50
1
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d)
A lógica da ponderação transforma a aplicação do
direito em um novo processo político, no qual vantagens
e
desvantagens serão livremente (re) avaliadas por órgãos que
não têm legitimidade para exercer esse ofício, em franca
violação ao princípio da separação de poderes.
e)
Quando envolve a Constituição, a ponderação acaba
por aniquilar a conquista da normatividade de suas disposi-
ções, já que dilui a certeza e a previsibilidade que deveriam
caracterizá-las, especialmente quando se trate de cláusulas
pétreas. A ponderação submete tais disposições ao jogo
próprio da política e à imprevisibilidade, ameaçando sobre-
tudo os direitos fundamentais .
f)
Na maior parte dos casos, o juiz manifestará as
convicções comuns à maioria da população acerca dos dife-
rentes temas constitucionais. Historicamente, porém, os
direitos fundamentais têm previsão constitucional justa-
mente para estarem a salvo dos humores das maiorias. Se
tais direitos puderem ser livremente submetidos à ponde-
ração, na prática eles estarão sendo lançados às maiorias
novamente. E nem se tratará de uma maioria política, elei-
caracterização que revela a controvérsia que acompanha esse processo,
como determinando uma substituição do Estado de Direito pelo
Estado
da ponderação
(LEISNER). Impossibilidade de colher da Constituição
parâmetros materiais susceptíveis de balizar objectivamente o recurso ao
método, subjectivismo, intuicionismo e arbitrariedade, transferência
ilegítima de poderes do legislativo para o juiz com substituição da reserva
de lei pela reserva de sentença, dissolução dos controlos típicos de Estado
de Direito, corrosão da força normativa da Constituição, nivelação e
indiferenciação dos direitos fundamentais, tirania dos valores e fórmula
vazia de tudo a ponderação de bens no domínio dos direitos
fundamentais tem sido, e com argumentos de peso, acusada.
75 ALEXY, Robert.
Constitutional Rights, Balancing and Rationality,
Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 134: Habermas's first objection is that
balancing approach deprives constitutional rights or their normative
power.
ta, que represente os diferentes segmentos da sociedade
(em particular quando se adote o sistema eleitoral propor-
cional), mas apenas da opinião pessoal de um juiz ou de um
grupo de juizes sobre o assunto. Ou seja: os dispositivos
constitucionais sobre direitos fundamentais acabam por va-
ler menos que um enunciado normativo qualquer.
É preciso reconhecer que a crítica resumida acima é em
boa parte procedente. Não há como negar, considerando o
estado atual da dogmática sobre o assunto, que, de fato, a
ponderação é metodologicamente inconsistente, enseja ex-
cessiva subjetividade e não dispõe de mecanismos que pre-
vinam o arbítrio.
Por outro lado, parte da crítica resumida acima seria
aplicável, ainda que em menor intensidade, à interpretação
jurídica como um todo , especialmente nas hipóteses em
que o intérprete está diante de princípios que veiculem
valores ou opções políticas, ou ainda diante de conceitos
76 DWORKIN, Ronald.
The Judge s New Role: Should Personal
Convictions Count?,
Journal of International Criminal Justice I, 2003, p.
5: I know that many non-lawyers (and even some law professors, lawyers
and judges) think that law is wholly independent of morality, and that
judges who appeal to moral principies or ideais to support their decisions
are trespassing on the roles of priests, statesmen and moralizers, and
violating their responsibilities to decide cases according to what the law
is, not what it should be. That positivist canon was never defensible —
nor, perhaps, would any of us here defend it. it was not true even when
the highest courts of modern democracies were occupied almost entirely
with enforcing codes or statutes or applying the precedent decisions of
the common law to new situations. The strict positivistic sources of law
had fuzzy boundaries and left gaps: these had to be sharpened or filled in
with interpretation, and interpretation requires judges to decide which
way of continuing the story that the legislature or other judges have begun
is the most satisfactory ali things considered. That is a judgment that is
moral at its core.
5
3
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vagos que exijam determinação. Nessa espécie de ambien-
te normativo, a subsunção, ainda que possível, está longe
de ser objetiva ou rigorosamente previsível, franqueando
ao intérprete amplo espaço para avaliações e escolhas .
Em qualquer caso, não são apenas os autores contrários
ao uso da ponderação como uma técnica válida de solução
de conflitos normativos que se ocupam de criticá-la; tam-
bém aqueles que a consideram um instrumento útil para os
fins a que se destina apontam problemas similares
. A di-
77
A posição de Kelsen sobre a questão é bastante conhecida, v,
KELSEN, Hans.
Teoria pura
do direito,
1998, p. 390: Se por
'interpretação' se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do
objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente
pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e,
conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro
desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve
necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única
correta, mas possivelmente a várias soluções que — na medida em que
apenas sejam aferidas pela lei a aplicar — têm igual valor, se bem que
apenas urna delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do
Direito.
78
NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição,
2003, p. 722: Cabe, nessa
altura, perguntar, com LARENZ, se a ponderação é verdadeiramente um
método ou apenas a
confissão
da sua impossibilidade com a remissão do
problema para o parecer subjectivo de um juiz que decide, não de acordo
com ordens de valores inexistentes ou inoperativas, mas segundo pautas
que ele próprio estabelece. Segundo a perspectiva que defendemos, só há
a ganhar no reconhecimento frontal dessa debilidade. A saída para ela não
reside nas propostas dos modelos que atrás criticamos e que, como vimos,
não constituem alternativas plausíveis à ponderação de bens, mas em
estratégias razoáveis e praticáveis — porque conscientes dos seus limites
— de racionalização dos procedimentos de ponderação de bens, de
redução do intuicionismo que lhe é inerente. Como diz Ossenbühl, não ha
que lamentar as debilidades de um procedimento que é inevitável, mas
antes que procurar racionalizar progressivamente a sua utilização.
54
ferença reside nas conseqüências extraídas desse quadro
pelos diferentes autores.
Para muitos, a despeito de todos os inconvenientes, os
conflitos normativos que envolvem valores e/ou diferentes
opções político-ideológicas de fato existem, é preciso solu-
cioná-los e não há outra maneira de fazê-lo a não ser por
meio da ponderação. E já que a necessidade de empregar a
ponderação é inexorável, cabe tentar aprimorar a técnica
com o objetivo de resolver as imprecisões que fundamen-
tam as críticas 9
. Esse na verdade é o propósito central des-
te estudo. A tentativa de ordenar a estrutura da técnica da
ponderação, exposta na segunda parte do estudo, destina-
se exatamente a lhe conferir maior consistência metodoló-
gica. A elaboração de parâmetros, objeto da terceira parte,
é um dos instrumentos para reduzir a subjetividade do in-
térprete, preservar o conteúdo próprio dos elementos nor-
mativos envolvidos, sobretudo os constitucionais, e assegu-
rar maior previsibilidade ao processo.
Para outros autores, diversamente, as dificuldades en-
volvendo a ponderação são de tal ordem que a técnica deve
79
SANCHIS, Luis Prieto. Neoconstitucionalismo y ponderación
judicial .
In: CARBONELL, Miguel organizador).
Neoconstitucionalismo s),
2003, p. 152: Las críticas de subjetivismo no
pueden ser eliminadas, pero tal vez si matizadas. ; SCACCIA, Gino.
bilanciamento degli interessi come tecnica di controllo costituzionale,
Giurisprudenza constituzionale, vol. VI, 1998, p. 3998: Nella dottrina
italiana, di giomo in giorno pià sensibile all'esigenza di delimitare gli spazi
di discrezionalitá delle operazioni di bilanciamento e di ridurre una
creatività talora incompatibile con il carattere giurisdizionale dell'attività
espletata dalla Corte (...). ; e CISME, Clèmerson Merlin e FREIRE,
Alexandre Reis Siqueira. Algumas notas sobre colisão de direito
fundamentais .
In
GRAU, Eros Roberto e CUNHA, Sérgio Sérvulo da
(organizadores).
Estudos de direito constitucional em homenagem a José
Afonso da Silva,
2003, p. 241 e ss..
55
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ser descartada
s°
. Parece também razoável investigar o terna
sob esse ponto de vista, antes de se chegar a uma conclusão.
Se a ponderação é tão indesejável, se suscita tantas dificul-
dades e perigos, por que usá-la? A ponderação é realmente
necessária? Os conflitos normativos que ela pretende solu-
cionar não poderiam ser superados de outra forma, que
oferecesse menor quantidade de contra-indicações? Mais
que isso: esses conflitos são reais efetivamente? O
próximo
tópico cuida justamente de examinár a viabilidade das al-
ternativas à técnica da ponderação que têm sido formula-
das pela doutrina.
80 Essa é a conclusão de ALEINIKOFF, T. Alexander.
Constitutional
Laut intheAgeof Balancng
Yale Law Journal ri° 96, 1987, pp. 992 e
1005: If each constitutional provision, every constitutional value, is
understood simply as an invitation for a discussion of good social policy,
it means little to talk of constitutional theory. Ultimately, the notion of
constitutional supremacy hangs in the balance. (...) In sum, balancing is
not inevitable. To balance the interests is not simply to be candid about
how our minds -- and legal analysis
must work. It is to adopt a
particular theory of interpretation that requires justification. Balancing
has turned us away from the Constitution, supplying 'reasonable'
policymalcing in lieu of theoretical investigations of rights, principles and
structures. Constitutional law may not represent the search for truth or
beauty, moral salvation or divine inspiration. But it is crucial for this
political society to have a distinct way of thinking and talking about
fundamental background principies of govemment — one that both
connects up with, and pushes beyond past understandings.
Constitutional law wll have trouble helping to define the arena of politics
if it is seen simply as an act of ordinary politics. This is not to suggest that
constitutional law is not intensely political, rather that there is real value
in seeing it as a different sort of politics.
III. Há alternativas à ponderação?
Os limites imanentes, o conceptualismo
e a hierarquização
Em continuidade às críticas formuladas à ponderação, e
como decorrência delas, vários autores têm procurado de-
senvolver alternativas a essa técnica. Algumas das diferen-
tes soluções propostas podem ser agrupadas, de forma sim-
plificada'', em duas grandes categorias: (i) os que negam —
total ou parcialmente — a realidade dos conflitos normati-
vos que solicitam o emprego da ponderação e, por conse-
qüência, afastam a própria necessidade da técnica; e (ii) os
que reconhecem a realidade dos conflitos e procuram ofe-
recer uma técnica alternativa. Na primeira categoria, dois
conjuntos de idéias podem ser indicados desde logo: as di-
81
É bem de ver que cada autor apresenta propostas e observações
particulares que o distinguem dos demais. Não há uma preocupação de
refletir na exposição essas variedades com precisão. O objetivo aqui é
apurar os elementos essenciais comuns aos diferentes autores, de modo a
proporcionar uma visão sistemática, ainda que em certa medida
simplificadora.
56
7
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ferentes teorias sobre os limites imanentes e o conceptua-
lismo. Na segunda, encontra-se a proposta de hierarquiza-
ção dos elementos normativos em conflito.
A idéia de limites imanentes foi desencadeada de ma-
neira particular (embora não exclusiva) a partir da seguinte
concepção sobre o sistema constitucional dos direitos fun-
damentais. Ao dispor sobre determinados direitos, algumas
constituições autorizam o legislador a regulamentar seu
exercício e definir seus contornos; em outros casos não há
cláusula semelhante e o direito é aparentemente formula-
do em termos absolutos. A questão que se coloca nesse
contexto é bastante simples: que conseqüência atribuir a
essa diferença de redação? A conclusão aparentemente
mais lógica é a de que, quanto a esse segundo grupo de
direitos, a Constituição teria vedado a possibilidade de
restrições (tanto pelo legislador quanto, com muito mais
razão, pelo aplicador do direito). A Constituição portugue-
sa, como se sabe, refere de forma explícita em seu texto
que a restrição a direitos não é admitida fora das hipóteses
previstas pelo texto constitucional .
82 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos.
Os direitos fundamentais
na
Constituição portuguesa de 1976
1998; CANOTILHO, J. J. Gomes.
Direito constitucional e teoria da Constituição
1998, p. 1199 e ss.; e
HESSE, Konrad.
lementos de direito constitucional da R epública Federal
da Alemanha
1998, p. 250 e ss.. No Brasil, v. STEINMETZ, Wilson
Antônio.
olisão de direitos fundamentais e principio da
proporcionalidade
2001, p. 15 e ss..
83 Essa é a redação do art. 18, n° 2 da Carta Portuguesa: A lei só pode
restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente
previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário
para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos:. Em linha semelhante, veja-se a Constituição Argentina,
1854 (com as alterações de 1994), art. 28: Los principios, garantias y
derechos reconocidos en los anteriores artículos, no podrán ser alterados
por las leyes que reglamenten su ejercicio. .
8
O raciocínio descrito acima, porém, embora aparente-
mente lógico, acabava por gerar problemas insustentáveis
de interpretação e aplicação constitucional. As exigências
da vida social — preocupações urbanísticas, sanitárias, am-
bientais, dentre outras — impõem sempre alguma espécie
de restrição ao exercício de direitos individuais. No mesmo
sentido, a convivência com outros direitos também previs-
tos na Constituição não admite uma interpretação absolu-
tizadora de cada um deles. Mas o que fazer com a diferença
de redação das normas constitucionais ou com a própria
cláusula que veda a restrição de direitos não autorizada
expressamente pela Carta? Ignorá-la?
A idéia de limites imanentes de certa forma contorna o
problema que se acaba de apontar . Por ela se sustenta que
cada direito apresenta limites lógicos, imanentes, oriundos
da própria estrutura e natureza do direito e, portanto, da
própria disposição que o prevê . Os limites já estão conti-
dos no próprio direito, portanto não se cuida de uma restri-
ção imposta a partir do exterior . No conhecido exemplo
84 Tratando da experiência portuguesa, v. NOVAIS, Jorge Reis.
As
restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição
2003, p. 185 e ss., 307 e ss., e 528 e ss.. Esse raciocínio
também foi empregado pelo Tribunal Constitucional italiano, como
descreve ZAGREBELSKY, Gustavo. El Tribunal Constitucional
italiano . In:
Tribunales constitucionales europeos y derechos
fundamentales
1984, p. 413 e ss..
85 Alguns autores sublinham que os limites imanentes decorrem da
compreensão de cada direito em conjunto com elementos implícitos no
sistema jurídico, como a cláusula de comunidade, a prevenção do
exercício abusivo, o respeito à lei moral e a outros direitos, etc. V.
STEINMETZ, Wilson Antônio.
Colisão de direitos fundamentais e
princípio da proporcionalidade
2001, p. 45 e ss..
86 A chamada teoria institucional dos direitos fundamentais parte de
pressupostos semelhantes. V. NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos
59
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do Professor Vieira de Andrade, a liberdade de expressão
artística não autoriza um pintor a armar seu cavalete no
meio de uma via expressa para lá permanecer pintando:
essa pretensão seria bloqueada por um limite imanente,
lógico, contido no próprio direito
.
direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituiçã
o
2003, pp. 310 a 312: Já para a teoria institucional dos direitos
fundamentais, que inspira a nova concepção alternativa de limites do
s
direitos fundamentais, não haveria mais lugar para uma compreensão de
liberdade como esfera ou reserva natural a defender da intervenção do
Estado, no quadro da concepção liberal de separação Estado/sociedade
(...) Hoje, a liberdade só tem sentido enquanto liberdade na sociedade,
enquanto liberdade normativamente conformada e ordenada; (...) Os
limites não são elementos 'externos' legitimadores de intervenções
ablativas no conteúdo dos direitos fundamentais, mas sim concretizações
da sua substância jurídica, fronteiras
do seu âmbito de garantia
constitucional, reveladas a partir 'de dentro' do direito, ou seja, 'limites
imanentes' aos direitos fundamentais cuja eventual positivação, na
qualidade de elementos negativos da sua previsão normativa, tem um
caracter meramente declarativo.
8 IEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os
direitos fundamentais na
Constituição portuguesa de 1976 1998, pp. 216 e 217: No entanto, há
'limites imanentes' dos direitos fundamentais que s6 são determináveis
por interpretação pelo facto de estarem apenas implícitos no
ordenamento constitucional. Se é fácil saber qual o bem que está
protegido, já é muitas vezes difícil determinar-lhe os contornos,
sobretudo quando o seu exercício se faça de modos atípicos ou em
circunstâncias especiais, afectando, de uma maneira ou de outra, valores
ou direitos também constitucionalmente protegidos. Estes casos são
muitas vezes acriticamente considerados como de conflitos
entre direitos
e valores constitucionais ou como colisões de direitos. Importa, todavia,
distinguir nesta matéria situações que não podem ter o mesmo
tratamento jurídico. Por exemplo, poder-se-á invocar a liberdade religiosa
para efectuar sacrifícios humanos ou para casar mais de uma vez? Ou
invocar a liberdade artística para legitimar a morte de um actor no palco,
para pintar no meio da rua, ou para furtar o material necessário à execução
de uma obra de arte? (...) Nestes, como em muitos outros casos, não se
deve falar propriamente de um conflito entre o direito invocado e outros
Em verdade, a doutrina não apresenta um método es-
pecífico para determinar esses limites; sua percepção é
considerada quase intuitiva e está relacionada com a evi-
dência desses limites para o senso comum. Note-se, ainda,
que toda a discussão sobre os limites imanentes repercute
apenas sobre conflitos ou colisões envolvendo enunciados
que afetem direitos fundamentais, e não sobre todo e qual-
quer conflito normativo.
Os autores se dividem quanto às conseqüências a ex-
trair da construção dos limites imanentes. Para alguns, to-
dos os aparentes conflitos envolvendo direitos fundamen-
tais inexistem de fato. Os limites imanentes de cada um
direitos ou valores, por vezes expressos através de deveres fundamentais.
É que se trata de algo mais ou de algo menos do que isso. É o próprio
preceito constitucional que não
protege essas formas de exercício do
direito fundamental, é a própria Constituição que, ao enunciar os direitos,
exclui da respectiva esfera normativa esse tipo de situações. E a diferença
é importante, como veremos melhor, já que, se entendermos que não há
conflito, a solução do problema não tem que levar em conta o direito
invocado, porque ele não existe
naquela situação. Pelo contrário, havendo
conflito, tal significaria a existência de um direito em face de outros
direitos ou de outros valores (deveres) e a solução nunca poderia sacrificar
totalmente o direito invocado a não ser que se partisse do
reconhecimento de uma ordenação hierárquica dos bens
constitucionalmente protegidos, sacrificando-se então o menos valioso.
Só que um critério de hierarquia não é sustentável e acabaria, de qualquer
modo, por suscitar uma série de problemas sem solução racional.
Preferimos, por isso, considerar a existência de limites imanentes
implícitos nos direitos fundamentais, sempre que não seja pensável que a
Constituição, ao proteger especificamente um certo bem através da
concessão e garantia de um direito, possa estar a dar cobertura a
determinadas situações ou formas do seu exercício, sempre que, pelo
contrário deva concluir-se que a Constituição as exclui sem condições
nem reservas. A idéia de limites imanentes não é nova e tem sido
largamente utilizada na doutrina e jurisprudência alemãs. (grifos no
original)
60
61
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dos direitos impedem O
confronto. Na verdade, por conta
dos limites imanentes, a abrangência de cada direito é me-
nor do que se supõe inicialmente, portanto não chega a
haver conflito algum. Não havendo conflito, não há neces-
sidade de técnica para solucioná-lo e, destarte, a pondera-
ção é desnecessária. Caberia ao intérprete apenas declarar
esses limites pré-existentes, a fim de delinear o espaço do
direito .
Para outros autores, diversamente, os limites imanen-
tes superam de fato um conjunto importante de conflitos
que são apenas aparentes . Essas supostas antinomias não
existem na realidade, pois a colisão ocorreria entre
manifestações hipotéticas dos direitos que se encontram
fora de seus limites imanentes. Este segundo conjunto de
autores admite, contudo, que podem persistir conflitos en-
volvendo direitos mesmo depois de considerados os limites
88 Para uma apresentação geral sobre o tema, v. NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos dretos fundamentais nãoexpressamenteautorizadas
pea Constitução
2003, p. 185 e ss. e 363 e ss..
89 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os
dretos fundamentais na
Constituçãoportuguesa de1976
1998, p. 214: Esse conflito não se
apresenta sempre da mesma maneira e, assume, visto da perspectiva do
direito limitado, formas diferentes, que convém separar. Umas vezes, a
'limitação' do direito atinge o seu próprio âmbito de protecção
constitucional, de tal maneira que exclui em termos absolutos certas
formas ou modos do seu exercício — fala-se então de
limtesimanentes
Outras vezes, a limitação resulta dos compromissos naturais entre valores
constitucionais que concorrem directamente em determinados tipos de
situações e que, nessas circunstâncias, reciprocamente se limitam —
estamos perante as
coisões
de direitos ou
conflitos
em sentido estrito.
Noutros casos, ainda, a limitação resulta de uma intervenção normativa
dos poderes públicos para salvaguarda de valores constitucionais — esta
intervenção é reservada ao poder legislativo e, por isso, põe-se aqui o
problema das
les restritivas
de direitos fundamentais.
62
imanentes e, nesse particular, o único meio de saná-los se-
ria realmente a ponderação
9 . O importante aqui é que,
para tais autores, o recurso à ponderação ficará restrito a
um número significativamente menor de situações, já que
boa parte dos conflitos normativos seria resolvida pela ma-
nipulação do conceito de limites imanentes.
Uma segunda alternativa que tem sido concebida para
substituir a técnica da ponderação pode ser denominada de
conceptualismo. Seus resultados práticos são semelhantes
aos obtidos por aqueles que sustentam que todo e qualquer
conflito normativo envolvendo direitos é na verdade um
falso conflito, já que a questão pode ser solucionada com a
identificação dos limites imanentes. Outra semelhança
com os limites imanentes é que também o conceptualismo
se ocupa basicamente dos conflitos envolvendo direitos
fundamentais. A estrutura dessa opção, porém, é bastante
diversa.
Os defensores do que se convencionou denominar
con
90 Quanto aos resultados obtidos, a identificação dos limites imanentes
de cada direito (na modalidade que admite a necessidade de ponderação)
se aproxima da idéia de
deintional balancngdos norte-americanos e
igualmente do esforço para a construção de parâmetros específicos objeto
do último capítulo deste estudo. V. CANOTILHO, J. J. Gomes,
Direto
constituconal eteoria da Constitução
1998, p. 1164: delimitar o
âmbito de proteção de uma norma constitucional, estabelecendo uma
espécie de linha de demarcação entre o que entra nesse âmbito e o que
fica de fora. É o que a doutrina americana designa por definitional
balancing e que no esquema metódico atrás referido corresponde ao
recorte do chamado âmbito normativo . A linha dedeintional balancng
é seguida pela jurisprudência americana para precisar a esfera de proteção
da norma e excluir certas dimensões. (...) Como se vê, o
deintional
balancng
não é, em rigor, um modelo de ponderação, pois localiza-se
ainda no procedimento interpretativo destinado a determinar o âmbito de
proteção de normas garantidoras de direitos e bens constitucionais.
Define, por via geral e abstracta, os 'campos normativos'.
63
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ceptualismo
negam a existência de conflitos envolvendo
os
direitos fundamentais. Para eles, a difundida idéia de que
os direitos podem colidir entre si e/ou com disposições
constitucionais que consagram bens coletivos ou fins públi-
cos tem origem em um pressuposto filosófico equivocado,
de origem liberal e individualista, que compreende os di-
reitos como poderes individuais ilimitados e desvinculados
de qualquer função ou propósito
.
Esse pressuposto filosófico liberal acaba por ter uma
conseqüência hermenêutica que estimula a multiplicação
dos conflitos: os direitos deixam de ser compreendidos
como conceitos, isto é, como noções com sentido próprio,
construídas historicamente e associadas a determinado
fim, para serem identificados com o texto do enunciado
normativo e todas as suas possibilidades lingüísticas. As-
sim, equivocadamente, passou a ser considerada
direito
toda e qualquer manifestação humana que, do ponto de
vista lingüístico, pudesse agasalhar-se sob a descrição con-
tida no texto normativo, ainda que não guardasse qualquer
relação lógica com os fins daquele direito. Esse conjunto de
equívocos acabou por conferir o status
de direito funda-
mental a situações que simplesmente não poderiam ser
classificadas dessa maneira; e, com a multiplicação desses
pseudo direitos
surge o problema dos conflitos. Mantendo
o exemplo do pintor na via expressa, para o conceptualis-
mo, a iniciativa do pintor nada tem a ver com o direito de
expressão artística, podendo ser descrita como um
pseudo
direito; e se não há direito, tampouco há conflito.
Para os conceptualistas, os direitos fundamentais de-
91 SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando.
La interpretación
constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los
conflictos de derechos
2000; e CIANCIARDO, Juan.
El conflictivismo en
los derechos fundamentales
2000.
6
vem ser compreendidos não como vetores em oposição,
mas de forma integrada, cada qual ocupando um espaço e
desempenhando um papel na construção do bem-estar do
homem dentro da sociedade. De acordo com essa concep-
ção, cada direito corresponde a um conceito jurídico asso-
ciado a determinados fins e fruto de uma história. Com-
preendidos dessa forma, os direitos fundamentais e as exi-
gências coletivas se completam e formam uma unidade ló-
gica, não havendo espaço para conflito .
A conseqüência hermenêutica dessa forma de ver o
problema é a seguinte: o texto normativo apenas procura
captar o conceito
de cada direito, mas não se confunde com
ele. Isto é: o texto que prevê o direito e suas possibilidades
lingüísticas não se confunde com o direito em si. A delimi-
tação do conceito de cada direito deverá ter em conta os
elementos referidos acima — função social e histórica do
direito e seus fins lógicos —, além da própria necessidade
de convivência com os demais direitos. Uma vez delinea-
dos os conceitos dos diferentes direitos, não haverá confli-
92 SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando.
La interpretación
constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los
conflictos de derechos
2000, pp. 40 e 41: Como se ha expuesto más
arriba, el conflicto o la colisión entre las normas relativas a derechos
fundamentales — tomadas como enunciados lingüísticos — resulta
prácticamente inevitable. Por outra parte, si los derechos son la expresión
de la regra de coexistencia entre los individuos y sus pretensiones, los
conflictos entre ellos no sólo son evitables sino que, en rigor, son
imposibles. Por tanto, la primeira pauta hermeneutica para resolver los
conflictos será distinguir entre derechos fundamentales y normas de
derecho fundamental, y buscar la armonización en el nível de los
derechos, no de las meras normas. Dicho de outro modo, se tratará de
superar — en los casos de conflicto — la interpretación literal de las
normas iusfundamentales, dando entrada a los derechos por via de una
interpretación dirigida al fundamento de la norma, concretamente de una
interpretación teleolágica y sistemática.
65
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tos entre eles ou entre eles e exigências associadas a algu
interesse coletivo. Dito de outra forma, o problema dos
conflitos deixa de existir — e também assim a necessidade
da técnica da ponderação — na medida em que se estabe-
leça com razoável precisão o conceito de cada um dos direi-
tos e se deixe de considerá-los como o conjunto de todos os
fenômenos que possam ser enquadrados lingüística e se-
manticamente sob o enunciado contido no texto constitu-
cional.
As teorias dos limites imanentes e do conceptualismo,
como mencionado inicialmente, questionam a própria exis-
tência do conflito normativo e, por isso, em maior ou me-
nor grau, acabam por negar a necessidade da técnica da
ponderação. Ao lado dessas duas concepções, porém, há
uma terceira que igualmente rejeita o emprego da pondera-
ção, mas por motivos inteiramente diversos: trata-se da
hierarquização.
Para os defensores da hierarquização, os conflitos nor-
mativos existem e são inexoráveis. Nada obstante, a forma
de resolvê-los não deve ser a ponderação. A proposta dessa
corrente de pensamento será a construção de uma tabela
hierárquica ou de importância entre os enunciados norma-
tivos — inclusive e especialmente os constitucionais. As-
sim, diante do conflito, o intérprete disporá de um elemen-
to objetivo para decidir, fornecido pelas diferentes posi-
ções dos enunciados em disputa na escala hierárquica. As
disposições normativas mais bem situadas nessa escala de-
veriam preponderar sobre as que ocupam posições menos
graduadas .
93
KMEKDJIAN, Miguel Angel.
De nuevo sobre el orden jerárquico de
los derechos civiles
El Derecho n°114, p. 945 e ss., 1985 apud SERNA,
Pedro e TOLLER, Fernando.
La interpretación constitucional de los
derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos
66
A hierarquização tem como fundamento último as cor-
rentes filosóficas para as quais é possível escalonar os valo-
res em função de sua importância essencial . Como os
enunciados constitucionais, sobretudo os princípios, estão
direta ou indiretamente associados a valores, a um escalo-
namento de valores poderia corresponder um escalona-
mento de disposições constitucionais .
2000, p. 8 e ss.; e EKMEKDJAN, Miguel Angel. El valor dignidad y la
teoria dei orden jerarquico de los derechos individuales . /72: BIDART
CAMPOS, German J. e DOMINGUEZ, Andres Gil.
Los valores em la
Constitucion argentina
1999
pp. 9 a 36. Para uma exposição sobre o
tema, v. SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando.
La interpretación
constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los
conflictos de derechos
2000, pp. 7 e 109 e ss.; e CIANCIARDO, Juan.
El
conflictivismo en los derechos fundamentales
2000, p. 107 e ss..
94 Sobre a hierarquia de valores na concepção de Max Scheler,
The
Cambridge Dictionary of Philosophy
1998 (verbete: Max Scheler), faz o
seguinte registro (p. 714): The core of Scheler's phenomenological
method is bis conception of the objectivity of essences, which, though
contained in experience, are a priori and independent of the lcnower. For
Scheler, values are such objective, though non-Platonic, essences. Their
objectivity is intuitively accessible in immediate experience and feelings,
as when we experience beauty in music and do not merely hear certain
sounds. Scheler distinguished between valuations or value perspectives
on the one hand, which are historically relative and variable, and values on
the other, which are independent and invariant. There are four such
values, the hierarchical organization of which could be both immediately
intuited and established by various public criteria like duration and
independence: pleasure, vitality, spirit and religion. Veja-se também
FRANCA, Pe. Leonel.
Noções de história da filosofia 1987, p. 249 e ss..
95 Esse esca lonamento dependerá naturalmente de avaliações de
natureza valorativa. SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando.
La
interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una
alternativa a los conflictos de derechos 2000, pp. 7 e 8: Por outra parte,
las diferentes jerarquizaciones propuestas suelen depender de criterios y
baremos que, aunque gozan de cierta justificabilidad en términos
constitucionales se encuentran fuertemente marcados por
67
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Concluída a breve exposição sobre essas alternativas à
ponderação, cabe fazer uma análise, ainda que rápida,
so
-
bre o exposto. Seria realmente desejável que a hermenêu-
tica jurídica, em seu arsenal de técnicas, pudesse prescindir
da ponderação, considerando os efeitos colaterais e riscos a
ela associados. A verdade, porém, a despeito das formula-
ções descritas acima, é que isso não parece possível . A
afirmação de que os conflitos valorativos são fictícios não é
consistente e as opções metodológicas apresentadas pelos
críticos da ponderação apresentam problemas ainda maio-
condicionamientos ideológicos. Para la visión más extendida, la cláusula
dei interés general o el estándar de lo necesario en una sociedad
democrática determinan, por ejemplo, la supremacia de la libertad de
prensa, convirtiéndola en una libertad 'preferida', 'estratégica' e
'institucional'. Otros, desde una consideración de los derechos por
referencia a su mayor o menor cercania con el núcleo de la personalidad,
considerarán prevalentes el honor o la vida privada frente a la
información, que estaria más lejos de la persona, pues se situaria, ai menos
a simple vista, en su vida de relación. A similares consecuencias se podria
llegar ai enfrentar otros derechos, como la libertad de cátedra y el derecho
de los titulares de los centros educativos, o el de los padres a elegir la
educación de los hijos. . A despeito da crítica formulada pelos autores,
dentro de certos limites, o emprego de critérios materiais na
interpretação constitucional não constitui um problema metodológico,
especialmente tendo em conta que as Constituições contemporâneas
formulam explicitamente opções valorativas. O ponto será retomado
mais adiante. V. sobre o tema SOUZA NETO, Cláudio Pereira de.
Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma
reconstrução teórica à luz do principio democrático In: MELLO, Celso
de Albuquerque e TORRES Ricardo Lobo (organizadores).
Arquivos de
Diretos Humanos,
vol. 4, 2002, pp. 17 a 61.
96 CANOTILHO, J. J. Gomes.
A princpalizaçãoda jurisprudênca
através da Constituição,
Revista de Processo n° 98, 1999, pp. 83 a 89; e
NOVAIS Jorge Reis.
srestriçõesaosdretosfundamentaisnão
expressamenteautorizadas pea Constiuição
2003, pp. 357 e 695 e ss..
res que os da técnica da ponderação
. Não é difícil de-
monstrar essa conclusão.
A teoria dos limites imanentes não propõe qualquer
método pelo qual seja possível apurar o que se encontra
dentro desses limites e o que está fora deles. Como fixar,
em cada caso, as coordenadas por onde deve passar a linha
de fronteira entre esses dois espaços? É evidente que, se
todos os envolvidos estiverem de acordo acerca dos limites
de um determinado direito, a ponderação não será necessá-
ria ou qualquer outra técnica sofisticada, simplesmente
porque não haverá conflito e sequer será preciso discutir a
questão.
Mas e se o tema for controvertido? Por qual fundamen-
to uma posição acerca dos limites imanentes — a que de-
fende, por exemplo, um sentido mais amplo para o direito
— deve prevalecer em detrimento da outra? Na verdade,
independentemente da forma pela qual se queira denomi-
nar o processo de decisão na hipótese, o intérprete não
97 Para uma critica de cunho filosófico sobre as diferentes formas de
lidar com os conflitos (reais ou aparentes) de direitos, v. MORELLI,
Mariano G.
Los llamados conflictos dederechos . El cálculodebenes
utilitarista yla critica deJohnFinns,
Revista Telemática de Filosofia dei
Derecho n°7, 2004.
98 NOVAIS Jorge Reis.
As restrições aos diretos fundamentais não
expressamenteautorizadas pea Constiuição2003, p. 320: Com efeito,
sempre que num contexto argumentativo se invoca a existência de limites
imanentes a um direito fundamental a decorrência prática naturalmente
inevitável éa da consequente legitimação da acção restritiva do poder
público. Porém, esse resultado — baseado exclusivamente na afirmação
da existência imperativa de limites imanentes — édificilmente acessível
ao crivo da análise critica já que ao contrário do que acontecia no modelo
da teoria externa, se 'esconde' o jogo de interesses opostos em disputa e
das correspondentes razões e contra-razões que, na realidade,
determinaram a decisão
68
69
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escapará de empregar um raciocínio ponderativo
. E, as-
sim, aos problemas associados à ponderação agrega-se um
novo, que é o fato de encobrir-se a ocorrência de uma po
n -
deração. Este é um ponto importante. Se o processo inter-
pretativo corresponde a uma simples declaração de limites
imanentes e pré-existentes do direito, o intérprete sente-
se livre do ônus argumentativo que acompanha a pondera-
ção. Há mais espaço para o arbítrio e para o abuso.
O mesmo se pode dizer acerca do conceptualismo. Na
forma descrita pelos autores que tratam do tema, o proces-
so de delimitação ou construção do
conceito
do direito
identifica-se, na prática, com o emprego da própria técnica
da ponderação. Valem aqui as mesmas questões postas para
as teorias dos limites imanentes: como será construído o
conceito
do direito? Por que ele terá tais ou quais contor-
nos, será mais ou menos abrangente? Afinal, o conceito de
cada direito não está pronto e acabado, à disposição do
intérprete; ele precisará ser construído por meio de algum
processo que deverá levar em conta, além de seus fins lógi-
cos e das exigências sociais, os demais direitos que com ele
disputam espaço
m°
. Qual a diferença essencial do que se
acaba de descrever para a lógica da ponderação?
99
ALEXY, Robert.
Colisão de direitos fundamentais e realização de
direitos fundamentais no estado de direito democrático
Revista
de Direito
Administrativo n° 217, 1999, p. 76; e NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições
aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição
2003, p. 173: Porém, na medida em que qualquer
restrição pode ser teoreticamente configurável como limite imanente
(...), os limites aos limites ficariam, na prática, sem objecto de aplicação
ou, pelo menos, a exigência da sua aplicação seria manipulável de
forma
totalmente arbitraria.
100 O
processo de definição do conceito do direito é descrito nos
seguintes termos por SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La
interpretación constitucional de los derechos fundamentales.
Una
70
Talvez a principal distinção aqui decorra da circunstân-
cia de os conceptualistas trabalharem a idéia de
conceito de
direito
tanto quanto possível em abstrato, em tese, e não
perante um caso concreto. Mas, como se verá adiante, a
ponderação também pode e deve desenvolver-se em abs-
trato ou preventivamente. Em suma: tanto a idéia de limi-
tes imanentes quanto a do conceptualismo não oferecem
uma metodologia alternativa para solução dos conflitos
normativos que envolvem valores e opções políticas, e sua
negação dos conflitos não é, afinal, consistente. Embora
empregando outras denominações, essas teorias acabam
por exigir o emprego da ponderação em maior ou menor
medida.
Por fim, o que dizer da hierarquização? Essa proposta
enfrenta obstáculos ainda maiores que as anteriores. Con-
siderando o axioma da unidade da Constituição, simples-
mente não é possível estabelecer uma hierarquia em abs-
trato entre as disposições constitucionais de tal forma que,
alternativa a los conflictos de derechos
2000, pp. 53 e 57: El modo de
determinar cuándo se está ante un ejercicio lícito de ciertas libertades
concretas es conjugar su finalidad con la perspectiva aportada por la visión
coexistencial, esto es, por los bienes jurídicos básicos afectables
eventualmente por el ejercicio de esta libertad. (...) El contenido total de
un derecho, su determinación completa, implica la especificación de ai
menos los siguientes elementos: quién es su titular; quién debe respetar o
dar efecto ai derecho de aquél; cuál es el contenido de la obligación,
describiendo no solo sus actos específicos, sino también el tiempo y otras
circunstancias y condiciones para su aplicación; cuáles son las condiciones
en las que el titular pierde su derecho, incluyendo aquéllas — si las
hubiera — bajo las cuales puede renunciar a las obligaciones relevantes;
qué facultades y poderes ostenta el titular en caso de incumplimiento dei
deber; y, sobre todo, quê libertades disfruta el titular que demanda el
derecho, incluyendo una especificación de sus fronteras, como es el caso
de la determinación de sus deberes, especialmente el deber de no
interferencia con las libertades de otros titulares de ese derecho ode otros
derechos reconocidos.
7
Como registrado acima, a idéia de hierarquizar rigida-
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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perante o conflito, a melhor posicionada na escala devesse
preponderar. Na verdade, esse óbice reflete um problema
filosófico mais complexo: qual será o fundamento axiológi-
co apto a justificar a hierarquização das disposições consti-
tucionais, sobretudo quando se trate dos direitos funda-
mentais? Há ainda uma outra dificuldade: como a hierar-
quização poderá lidar com diferentes manifestações de um
mesmo direito? Embora a simplicidade da fórmula possa
ser sedutora, ela não é compatível com a realidade jurídica
nem com a realidade social, que exige a convivência, tão
harmônica quanto possível, de valores diversos, e não a eli-
minação de uns em prol de outros'''.
A despeito da crítica que se acaba de fazer, e embora as
opções à ponderação apresentadas pela doutrina não pare-
çam oferecer qualquer alternativa consistente para a solu-
ção de conflitos normativos envolvendo valores e opções
políticas, algumas questões suscitadas por seus defensores
merecem ser consideradas. Na verdade, mais que isso, es-
ses questionamentos podem contribuir de forma relevante
para aprimorar a própria técnica da ponderação.
101 SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando.
La interpretación
constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los
confnetos de derechos
2000, p. 26: Una jerarquia cerrada implica no
tomar en serio todos los derechos, porque alguns siempre quedarán
diferidos en las controversias judiciales ante la presencia de otros de rango
superior. (...) Además, la jerarquización de los derechos no tiene en
cuenta la complejidad de este tipo de problemas y la multiplicidad de
excepciones y matices que ofrece la vida practica. ; SCACCIA, Gino.
II
bilanciamento degli interessi come tecnica di controllo costituzionale
G iurisprudenza constituzionale, vol. VI, 1998, p. 3962 e ss.; e
STEINMETZ, Wilson Antônio.
Colisão de direitos fundamentais e
princípio da proporcionalidade
2001, p. 120: Inaceitável,
juridicamente, é uma hierarquia de valores. Parece impossível
fundamentar, jurídico-constitucionalmente, uma tábua de valores.
Qualquer hierarquia é uma construção fundada meramente em
preferências políticas, ideológicas, pessoais, de grupos etc.
mente as disposições normativas, sobretudo as constitucio-
nais, a fim de obter-se um critério de solução objetivo e
pronto diante dos conflitos não é compatível com a ordem
constitucional. Nada obstante, é cada vez mais comum na
doutrina a referência a uma diferenciação axiológica entre
os enunciados constitucionais
a mesma linha, fala-se
também de uma espécie de hierarquização funcional: não
há dúvida, por exemplo, de que os direitos fundamentais e
os princípios contidos nos artigos iniciais da Carta de 1988
são axiologicamente mais relevantes que as regras,
e.g.
de
natureza orçamentária. A própria Constituição de 1988
identifica uma categoria de
preceitos fundamentais
ao criar
a argüição de descumprimento de preceito fundamental
(art. 102, § 10103)
Ora, as constituições contemporâneas em geral, e a bra-
sileira em particular, consagram o homem, sua dignidade e
seu bem-estar como centro do sistema jurídico. Se é assim,
é perfeitamente possível conceber uma preferência — de
caráter
prima facie —
para as disposições constitucionais
diretamente relacionadas com esses fins constitucionais,
em contraste com outras que apenas indiretamente contri-
buam para a dignidade humana. Nesse sentido, ainda que
não se trate de hierarquia, a preferência atribuída às nor-
102 V. BARROSO, Luís Roberto.
Interpretação e aplicação da
Constituição
2003, p. 203; e TAVARES, André Ramos. Elementos para
uma teoria geral dos princípios na perspectiva constitucional .
In
LEITE,
George Salomão (organizador).
Dos princípios constitucionais.
Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição
2003, pp. 27 e 28.
103 CF/88: Art. 102 (...) § 1° A argüição de descumprimento de
preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo
Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. . O dispositivo foi
regulamentado pela Lei n°9.882/1999.
72
mas que diretamente produzem o bem-estar das pessoas e
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protegem seus direitos poderá ser um parâmetro de orien-
tação para o intérprete no emprego da ponderação' . O
terna será retomado adiante.
Das idéias conceptualistas é possível extrair ao menos
uma contribuição particularmente valiosa que pode ser in-
corporada para aprimorar a técnica da ponderação. O con-
ceito de cada direito, como já se registrou, não é um ele-
mento pronto, ao qual se possa recorrer para solucionar
conflitos, ainda que aparentes. Na verdade, a construção
do conceito já é o resultado final, obtido após a solução do
problema. Por quais meios, no entanto, se terá chegado a
essa solução? Se a disputa envolver valores em oposição, ou
opções político-ideológicas conflitantes, não há como al-
cançar esse resultado sem ponderação, mesmo que se quei-
ra chamar a técnica de outro nome. Não obstante a crítica,
o conceptualismo projeta luz sobre uma questão importan-
104 Na verdade, embora uma hierarquia rígida seja inviável, um sistema
de preferências entre os enunciados é não apenas possível, .como
desejável. V. ALEXY, Robert.
Sistema jurídico principios jurídicos y
razán práctica
Revista Doxa n°3, 1988, pp. 149 a 150: Los problemas
de una jerarquia de los valores juridicamente relevantes se han discutido
con frecuencia. Se ha mostrado asi que no es posible un orden que
conduzca en cada caso precisamente a un resultado — a tal orden habría
que llamarlo 'orden estricto'. Un orden estricto solamente seria posible si
el peso de los valores o de los principios y sus intensidades de realización
fueran expresables en una escala numérica, de manera calculable. El
programa de semejante orden cardinal fracasa ante los problemas de una
medición dei peso y de la intensidad de realización de los principios
jurídicos o de los valores jurídicos, que sea más que una ilustración de un
resultado ya encontrado. El fracaso de los ordenes estrictos no significa sin
embargo que sean imposibles teorias de los principios que sean más que
un catálogo de topoi. Lo que es posible en un orden débil que consista de
tres elementos: 1) un sistema de condiciones de prioridad, 2) un sistema
de estructuras de ponderación y 3) un sistema de prioridades prima
facie. . O tema será retomado adiante.
74
te: quanto mais a doutrina precisar os contornos de cada
direito, isoladamente considerado e na convivência com
outros, menor será a necessidade da chamada ponderação
ad hoc
(aquela levada a cabo pelo juiz no caso concreto,
sem vinculação a qualquer parâmetro). Quanto maior a
quantidade de parâmetros delimitando o sentido e o alcan-
ce de cada enunciado normativo, menor será a discriciona-
riedade e subjetividade envolvidas na ponderação'''. Mais
adiante se voltará ao assunto.
105 Das teorias dos limites imanentes também é possível extrair algumas
idéias para o aprimoramento da técnica da ponderação. A principal delas
provavelmente se relaciona com a percepção de que há, realmente, uma
quantidade importante de pseudo conflitos, que não configuram colisão
normativa alguma. A dificuldade é que essa observação apenas terá
utilidade prática na hipótese de todos os agentes envolvidos estarem de
acordo sobre o ponto; caso contrário, apenas ao fim do processo
interpretativo, e eventualmente após o emprego da ponderação, será
possível chegar a essa conclusão.
7
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77
IV. Enfrentando a ponderação:
Notas sobre as experiências
norte-americana e alemã
Registrados os traços gerais das principais propostas al-
ternativas à ponderação desenvolvidas basicamente na Eu-
ropa e na América Latina cabe agora fazer um rápido regis-
tro sobre como o tema é tratado nas experiências norte-
americana e alemã nas quais a despeito das objeções a
ponderação tem sido incorporada à prática judiciáriaws. O
propósito deste tópico não é prover informação sobre a
história da ponderação nesses países mas sim identificar
ainda que de forma esquemática como essas experiências
têm lidado com suas limitações e fragilidades.
Na experiência norte-americana as críticas à pondera-
ção levaram em geral a movimentos de reforma da própria
106 Especialmente pelos órgãos de cúpula dos respectivos sistemas
judiciários. Para uma visão geral sobre o tema v. SERNA Pedro e
TOLLER Fernando.
a interpretación constitucional de los derechos
fundamentales. Una alternativa a los conflictos de dere chos
2000 p. 11 e
ss
e jurisprudencial no sentido de aperfeiçoá-la do ponto de
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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técnica
. Na Alemanha, a despeito de desenvolvimento
s
teóricos que procuram substituir a ponderação por outras
técnicas de decisão, há também amplo esforço doutrinário
107 ALEINIKOFF, T. Alexander.
Constitutional Law in the Age of
Balancing
Yale Law Journal n°96, 1987, pp. 964 a 966: Over the past
few decades, with little justification or scrutiny, balancing has come of
age. Every sitting Justice on the Supreme Court has relied on balancing,
and Justices Blackmun, Brennan, Marshall, Powell, and White frequently
adopt a balancing approach. As a result, balancing now dominates major
areas of constitutional law. In Fourth Amendment cases, the Court has
balanced in determining the scope of the Fourth Amendment, the
definition of a search, the reasonableness of a search, the reasonableness
of a seizure, the meaning of probable cause, the levei of suspicion
required to support stops and detentions, the scope of the exclusionary
rule, the necessity of obtaining a warrant, and the legality of pretrial
detention of juveniles. Balancing has been a vehicle primarily for
weakening earlier categorical doctrines restricting governmental power to
search and seize. Occasionally, however, the balance worIcs against the
government. Whichever way the balance tips, the role of balancing in the
law of search and seizure is clear. As the Court has stated and restated,
'the balancing of competing interests' [is] 'the key principie of the Fourth
Amendment.'. Balancing has also become the central metaphor for
procedural due process analysis. The rise of balancing here is closely
linked with the recognition of new forms of property protected by the
due process clause. The importance of entitlements such as welfare
benefits and government employment seemed to demand procedural
protections against their deprivation, but the ever-increasing size of the
welfare state made imposition of procedures a costly enterprise.
Balancing provided a flexible strategy that took account of both interests.
By 1976, the Court hadsettled on the now familiar three-pronged test of
Mathews v. Eldridge. Justice S tone introduced balancing to the dormant
commerce clause cases. Since the 1970s, the Court has increasingly
relied on a balancing test to decide whether state regulations impose an
'undue burden' on interstate commerce. The classic formulation is
Justice Stewart's in Pike v. Bruce Church, Inc. (...) Balancing, of course,
has had a long affair with the First Amendment. ; e NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas
pela Constituição
2003, p. 644 e ss. e 897 e ss..
78
vista metodológicoi°s. É bem de ver que os meios emprega-
dos por norte-americanos e alemães na tentativa de apri-
morar a ponderação são bastante diversos e, por isso mes-
mo, acabam sendo complementares.
A percepção da ponderação como técnica ou método
para lidar com conflitos normativos envolvendo valores ou
opções políticas pode ser localizada nos Estados Unidos ao
longo das décadas de 30 e 40 do Século >0<, mas foi sobre-
tudo na década de 50 que o tema passou a ser mais ampla-
mente debatido, tendo em conta um contexto bastante es-
pecífico
9
. Nesse período, como se sabe, o Judiciário nor-
te-americano foi confrontado por diferentes leis e atos que
restringiam liberdades individuais consagradas pela Consti-
tuição por conta de necessidades relacionadas com a segu-
rança nacional e o combate ao comunismo.
Considerando a fórmula ampla com que os direitos fo-
ram consagrados no
Bill of Rights
as restrições só seriam
válidas se se admitisse a ponderação dos direitos em ques-
tão com outros bens considerados valiosos. É fácil perceber
que, nesse primeiro momento, o debate em torno da pon-
deração/balancing assumiu um contorno evidentemente
político. Aqueles que consideravam válidas as restrições às
liberdades individuais abraçaram o
balancing
como uma
técnica pertinente de interpretação dos direitos, argumen-
tando que o exercício dos direitos poderia ser condiciona-
do em função de interesses gerais, como a segurança nacio-
108 ALEXY, Robert.
Constitutiona/ Rights Balancing and Rationality
Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 134 e ss.; e NOVAIS, Jorge Reis.
As
restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição
2003, p. 678 e ss..
109 ALEINIKOFF, T. Alexander.
Constitutional Law in the Age of
Balancing
Yale Law Journal n°96, 1987, pp. 943 a 1005.
79
nal. Aqueles que rejeitavam as restrições defendiam, n
esse
nica da ponderação, de categorias, parâmetros, testes dog-
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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contexto, o absolutismo das cláusulas do
Bill of Rights.
Na prática judicial, acabou prevalecendo o uso do
balancing
que, nesse ponto, assumiu os contornos do que
se passou a denominar de
ad hoc balancing °.
Como já
referido, o
ad hoc balancing
identifica as situações nas
quais o juiz, diante de um caso concreto, pondera livremen-
te os elementos em disputa, sem qualquer parâmetro pré-
vio, objetivo e público que o oriente, guiado mais pelo seu
bom senso do que por qualquer outro elemento.
Com o passar do tempo, superada a intensa disputa
política dos primeiros debates, os defensores originais do
absolutismo retraíram-se, de certa forma, e passaram a re-
conhecer que uma concepção absoluta dos direitos funda-
mentais seria insustentável na sociedade contemporânea.
Por outro lado, há amplo consenso na doutrina norte-ame-
ricana de que o
ad hoc balancing,
ao ensejar excessiva sub-
jetividade e discricionariedade, é altamente indesejável e
deve ser tanto quanto possível evitado. A síntese dessas
duas posições tem sido o desenvolvimento, associado à téc-
110 Em Car/son v.
Landon,
342 U.S. 524 (1952), a Suprema Corte
norte-americana decidiu que o
Attorney General
poderia manter preso
até a decisão sobre a deportação, sem direito à fiança, estrangeiro que
fosse membro do Partido Comunista dos Estados Unidos, quando
houvesse indício de risco para a segurança nacional por conta da liberação
por fiança, embora não houvesse dispositivo constitucional que
respaldasse essa competência. Embora a decisão desrespeitasse a cláusula
do devido processo legal (quinta emenda), entendeu-se que essa garantia
deveria ser ponderada com a proteção da segurança nacional. Em
Barenblatt v. United States, 360 U.S. 109 (1959), a Corte considerou
constitucional a legislação que conferia ao Comitê de Atividades Não
Americanas do Parlamento plenos poderes para investigar atividades
comunistas no país, o que incluía a possibilidade de interrogar professores
universitários acerca de sua participação em grupos comunistas, sob pena
de prisão.
80
maticamente sustentáveis e aplicáveis de forma geral e abs-
trata a fim de reduzir a subjetividade do processom
No mais das vezes, a doutrina e a jurisprudência norte-
americanas tratam do assunto casuisticamente, procurando
construir parâmetros específicos para os diferentes confli-
tos'''. O exemplo mais expressivo desse esforço é o amplo
material existente sobre as várias hipóteses de tensão que
envolvem a liberdade de expressão (consagrada pela Pri-
meira Emendam). Há diferentes
standards
conforme a
111 S CHAUER, Frederick.
Principies, Institutions and the First
Amendment,
Harvard Law Review, vol. 112, n° 1, 1998, pp. 84 a 120; e
ALEINIKOFF, T. Alexander.
Constitutional Law in the Age of Balancing,
Yale Law Journal n° 96, 1987, p. 948: Commentators have occasionally
distinguished balancing that establishes a substantive constitutional
principie of general application (labeled 'definitional' balancing by
Professor Nimmer) from balancing that itself is the constitutional
principie (so-called 'ad hoc balancing). New York v. Ferber is an example
of definitional balancing. Ferber's holding, that the distribution of child
pornography is not protected by the First Amendment, may be appliedin
subsequent cases Without additional balancing. Ad hoc balancing is
illustrated by the Court's approach in procedural due process cases.
Under Mathews v. Eldridge, the process that the Constitution requires is
determined by balancing the governmental and private interests at stake
in the particular case. V. também NISHIGAI, Makato.
Comment: From
Categorizing to Balancing Liberty Interests in Constitutional
Iurisprudence: An Emerging Sliding-Scale Test
in
the Seventh Circuit and
Public School U niform Policies,
Wisconsin Law Review 2001, pp. 1583 a
1617.
112 Vale registrar que da experiência norte-americana não se extraem
exclusivamente parâmetros para conflitos específicos. A jurisprudência
construiu, por exemplo, standards
gerais vedando que leis ou atos
restritivos de direitos empreguem expressões excessivamente vagas ou
abrangentes
vagueness
ou
broadness).
113 Texto da Primeira Emenda: Congress shall make no law respecting
an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or
abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people
8
manifestação dessa liberdade esteja relacionada a objetivos
por conta da ameaça que esse recurso hermenêutico pode-
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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políticos, culturais ou comerciais (propaganda comercial);
conforme as restrições envolvam o conteúdo da mensagem
ou apenas o modo, tempo e/ou lugar como ela será divulga-
da; dentre outras variações'
.
Na Alemanha, as discussões sobre a ponderação, a par-
tir da Constituição de 1948, desenvolveram-se em um
con-
texto
político totalmente distinto do norte-americano e re-
ceberam o influxo de idéias as mais diversas' . Seria im-
possível descrever aqui com um mínimo de precisão esse
complexo debate, travado sobretudo nas décadas de 50 a
70' I'. Para os fins deste capítulo, basta destacar algumas
práticas já consolidadas pelo Tribunal Constitucional ale-
mão
7
.
Também na Alemanha, a possibilidade de o juiz proce-
der ao
ad hoc balancing
suscitou inúmeras críticas (muitas
das quais resumidas nos tópicos anteriores), não só por for-
ça da inconsistência metodológica da técnica, mas também
peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of
grievances.
114 SCHAUER, Frederick.
Principies, Institutions and the First
Antendment,
Harvard Law Review, vol. 112, n° 1, 1998, pp. 84 a 120;
SUNSTEIN, Cass.
Pornography and the First Emendment,
Duke Law
Journal, 1986, pp. 589 a 627; e PORTO, Brian L.
The Constitution and
Political Patronage: Supreme Court Jurisprudence and the Balancing of
First Amendment Freedoms, Pace Law Review n° 13, 1993, pp. 87 a 139.
115 NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, p. 678 e ss..
116 V. sobre o tema, TORRES, Ricardo Lobo. A legitimação dos
direitos humanos e os princípios da ponderação e da razoabilidade .
In
TORRES, Ricardo Lobo (organizador).
Legitimação dos direitos
humanos,
2002, p. 421 e ss..
117 RUPP, Hans G. El Tribunal Constitucional Federal alemán .
In
Tribunales constitucionales europeosy derechos fundamental es,
1984, pp.
319 a 412.
82
ria representar em matéria de restrições a direitos funda-
mentais'''. Esse quadro foi especialmente agravado uma
vez que também na Alemanha desenvolveu-se a discussão,
já referida, sobre a possibilidade ou não de restringirem-se
direitos (pela via legislativa ou jurisprudencial) formulados
de maneira aparentemente absoluta pelo constituinte (isto
é, sem qualquer cláusula autorizativa de restrição), em
oposição àqueles outros direitos que contêm uma reserva
de regulamentação atribuída pela Constituição ao legis-
lador.
Uma técnica concebida inicialmente como alternativa à
ponderação foi a chamada concordância prática .
Por
meio dela se buscaria uma otimização dos bens em conflito
sem privar qualquer deles de sua garantia jurídico-constitu-
cional. A doutrina registra que o principal instrumento me-
todológico da concordância prática era (e é) a idéia de pro-
porcionalidade, analiticamente desenvolvida em suas três
fases (adequação, necessidade e proporcionalidade em sen-
tido estrito) pela doutrina alemã e já amplamente incorpo-
rada pela doutrina e prática judicial brasileiraslw.
118 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza.
Jurisdição constitucional
democrática, 2004, p. 157 e ss..
119 HESSE, Konrad.
Elementos de direito constitucional da República
Federal da Alemanha,
1998, p. 65 e ss..
120 ,BARROSO, Luis Roberto.
Interpretação e aplicação da Constituição,
2003, p. 213; ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios,
2003, p. 104 e
ss.; ÁVILA, Humberto.
A distinção entre princípios e regras e a
redefinição do dever de proporcionalidade,
Revista de Direito
Administrativo n°215, pp. 151 a 179; SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O
proporcional e o razoável,
Revista dos Tribunais n°798, 2002, pp. 23 a 50;
e GUERRA FILHO, Willis Santiago. Sobre o princípio da
proporcionalidade . In: LEITE, George Salomão (organizador). Dos
princípios constitucionais. Considerações em torno das normas
83
A concordância prática foi concebida inicialmente
ponderação incorporou-se definitivamente ao arsenal her-
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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como uma técnica alternativa à ponderação, pois se imagi-
nava que a ponderação levaria sempre à preeminência de
um bem constitucional sobre o outro, ao passo que a con-
cordância prática procurava harmonizá-los. A fórmula de
solucionar conflitos pela qual um elemento normativo pre-
valecia em detrimento dos demais, àquela altura identifica-
da com a própria ponderação, era objeto de acirrada crítica,
especialmente tendo em conta a necessidade de manter-se
a unidade da Constituição. Com o tempo, e considerando
a prática do Tribunal Constitucional, a concordância práti-
ca acabou por ser incorporada à ponderação como um seu
ideal, e com ela os testes relacionados com a proporciona-
lidade. Isto é: a ponderação deve, sempre que possível,
buscar a concordância prática' .
De toda sorte, e como registra Robert Alexy, a partir de
1958 (sobretudo após o julgamento do caso Lüth' ), a
principiológicas da Constituição
2003, pp. 237 a 253. Mais adiante será
examinada a relação entre a concordância prática e a proporcionalidade.
121 Nada obstante, essa oposição entre os conceitos continua a ser
defendida por alguns autores, como se percebe da observação de SERNA,
Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los
derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos
2000, p. 34: Es interesante observar — por lo que se dirá en el siguiente
capitulo — que este 'principio de la concordancia práctica' es
denominado por Scheuner 'principio interpretativo de la 'armonización',
y por Lerche 'equilibrio de máximo respecto en ambas direcciones'.
Desafortunadamente, el Tribunal Constitucional Federal alemán recurre
a tal principio solo cuando a través de la ponderación de bienes no ha
logrado establecer una jerarquia entre los bienes en conflicto, invirtiendo
asi el orden que debiera ser más razonable desde su propia perspectiva.
122 O caso decidido pelo Tribunal Constitucional pode ser resumido,
simplificadamente, nos seguintes termos. No fim da década de 40, Erich
Lüth havia defendido publicamente o boicote geral a determinado filme
produzido por cineasta que servira ao regime nazista. A produtora do
84
menêutico do Tribunal Constitucional alemão
1 2 3
. Ao longo
do tempo, a jurisprudência do Tribunal elaborou diversas
diretrizes sobre a matéria, especialmente quando se trate
de conflitos entre direitos fundamentais e metas públicas
ou bens coletivos. Algumas dessas diretrizes podem ser re-
sumidas nos seguintes termos: (i) quanto maior for a inten-
sidade da restrição, mais significativos devem ser os valores
comunitários que a justificam; (ii) quanto maior for o peso
e a premência de realização do interesse comunitário que
justifica a restrição, mais intensa ela poderá ser; e (iii)
quanto mais diretamente forem afetadas manifestações
elementares da liberdade individual, mais exigentes devem
ser as razões comunitárias que fundamentam a restrição
1 2 4
filme ajuizou demanda contra Lüth e o Tribunal estadual de Hamburgo
julgou o pedido procedente, considerando a conduta de Lüth ilícita, com
fundamento em disposição do Código Civil sobre bons costumes, e
condenando-o a interrompenhar a campanha pelo boicote, sob pena de
prisão ou multa. O Tribunal Constitucional, entretanto, reformou a
decisão da Corte estadual (Sentença 7, 198, de 1958). O Tribunal
Constitucional entendeu que a legislação infraconstitucional deve ser
interpretada à luz do direito fundamental à liberdade de opinião e, que no
caso, a liberdade constitucional de opinião protegia a conduta de Erich
Lüth. Para maiores detalhes, v. SCHWABE, Jürgen,
Cincuenta arios de
jurisprudencia dei Tribunal Constitucional Federal Alemán
2003, p. 132
e ss
123 ALEXY, Robert.
Constitutional Rights Balancing and Rationality
Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 134: From a methodological point of
view, the concept of balancing is the central concept in the adjudication
of the Federal Constitutional Court, which has developed further the line
first set out in the
Lüth
decision.
124 NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição
2003, p. 692 e ss.; e
ALEXY, Robert.
Constitutional Rights Balancing and Rationality
Raio
Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 131 e ss..
85
Também decorre da jurisprudência do Tribunal a cons-
trução que visualiza no texto constitucional uma ordem
combinações delas podem ser especialmente úteis para a
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escalonada de valores, conformada pelos direitos funda-
mentais, de modo que da própria Constituição se podem
extrair relações de preferência condicionada ou
prima facie
entre seus enunciados. Mais recentemente, a doutrina ale-
mã, e Robert Alexy em particular, tem procurado desen-
volver uma fórmula esquemática para ordenar a ponde-
ração, a fim de conferir-lhe mais racionalidade e objetivida-
de'
2 5
Da rápida narrativa que se acaba de fazer, é interessan-
te observar um ponto. Diferentemente dos Estados Uni-
dos, onde a ponderação foi sendo ordenada, sobretudo por
meio da elaboração casuística de standards materiais (isto
é: relativos ao conteúdo específico das disposições em ten-
são e por isso mesmo aplicáveis a conflitos particulares), na
Alemanha, o esforço doutrinário e as próprias formulações
do Tribunal Constitucional se concentram na criação de
parâmetros lógicos de caráter geral, cujo objetivo é organi-
zar e controlar o raciocínio jurídico levado a cabo quando se
emprega a ponderação.
São mecanismos diferentes cujo propósito, em última
análise, é semelhante: reduzir a discricionariedade do in-
térprete, conferindo maior racionalidade e previsibilidade
ao processo ponderativo. E essas duas formas de conferir à
ponderação maior previsibilidade e racionalidade — isto é:
standards
materiais associados a conflitos específicos e
construídos a partir da observação da casuística e parâme-
tros gerais de natureza argumentativa e lógica — ou
125 ALEXY, Robert., On
Balancing and Subsumption. A Structural
Comparison
Ratio Juris, vol. 16, n°4, 2003, p. 433 e ss.. No artigo, Alexy
procura organizar uma fórmula para a ponderação empregando noções de
aritmética.
86
experiência brasileira.
Em resumo desta primeira parte, é possível registrar o
que se segue. A ponderação é uma técnica de solução de
determinados conflitos normativos, a saber, aqueles que
envolvem colisões de valores ou de opções político-ideoló-
gicas. Essa técnica, embora venha se tornando cada vez
mais popular, sofre hoje com a inconsistência metodológi-
ca, com a excessiva subjetividade e com a banalização do
discurso constitucional, dentre outras críticas.
Essas críticas são em boa parte pertinentes e devem ser
enfrentadas, mesmo porque as alternativas à técnica não
parecem consistentes e não superam as dificuldades impu-
tadas à ponderação, apenas modificando a nomenclatura
aplicável. As experiências norte-americana e alemã têm
procurado aperfeiçoar a técnica através de mecanismos di-
ferentes e é possível inspirar-se na experiência internacio-
nal para conceber fórmulas adequadas à realidade nacio-
na
1 2 6
O objetivo da próxima parte do estudo é exatamente
propor uma ordenação para a técnica da ponderação que
possa superar, ainda que parcialmente, as críticas descritas
acima.
126
NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constiuição
2003, p. 643: Assim,
enquanto que na Europa, particularmente sob influência da experiência
alemã, a síntese do processo de racionalização e dessubjectivização do
recurso à ponderação de bens gira em torno da sua integração e aplicação
concreta nos quadros do princípio da proporcionalidade em sentido lato,
nos Estados Unidos da América, sem se desconhecer, como se verá, este
instituto a síntese opera-se sobretudo na
standardização
dos
procedimentos de controlo e na cristalização tendencial dos seus
resultados em regras de aplicação geral e abstracta.
87
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V. A técnica da ponderação:
Uma proposta em três etapas
O objetivo deste capítulo é propor um modelo de orde-
nação da técnica da ponderação pelo qual seja possível
identificar com maior clareza as etapas que o intérprete
deve percorrer ao empregá-la. Trata-se, ao mesmo tempo,
de um roteiro para o próprio intérprete e de uma forma de
controlar com mais facilidade suas conclusões.
A proposta concebe a aplicação da ponderação como
um processo composto de três etapas sucessivas' , que
127
ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princpos
2003, propôs igualmente
uma ponderação em três etapas que identifica da seguinte forma (fls. 79
e ss.): (i) a preparação da ponderação (análise o mais exaustiva possível de
todos os elementos e argumentos pertinentes); (ii) a realização da
ponderação (fundamentar a relação estabelecida entre os elementos
objeto de sopesamento); e (iii) reconstrução da ponderação (formulação
de regras de relação com pretensão de validade para além do caso). V.
também BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. O
começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos
princípios no direito brasileiro . In: BARROSO, Luís Roberto
(organizador). A nova interpretaçãoconstituconal. Ponderação dretos
fundamentais ereações privadas
2003, pp. 327 a 379.
91
podem ser identificadas, muito resumidamente, nos se-
guintes termos. Na primeira delas, caberá ao intérpret
e
a ponderação se desenvolva sem maiores distorçõ
es 2 9
. É
fácil perceber que, se um dispositivo — relevante para o
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identificar todos os enunciados normativos que aparente-
mente se encontram em conflito ou tensão e agrupá-los em
função da solução normativa que sugerem para o caso con-
creto. A segunda etapa ocupa-se de apurar os aspectos de
fato relevantes e sua repercussão sobre as diferentes solu-
ções indicadas pelos grupos formados na etapa anterior. A
terceira fase é o momento de decisão: qual das soluções
deverá prevalecer? E por quê? Qual a intensidade da restri-
ção a ser imposta às soluções preteridas, tendo em conta,
tanto quanto possível, a produção da concordância prática
de todos os elementos normativos em jogo? Cada etapa
exige algumas considerações específicas.
V. 1. Primeira etapa: identificação dos enunciados
normativos em tensão
Parece natural que a
primeira etapa
da ponderação
consista exatamente em identificar os enunciados normati-
vos aparentemente em conflito; afinal, esta é a circunstân-
cia que justifica o recurso à técnica da ponderação' . A
identificação de todos os elementos normativos que devem
ser levados em conta em determinado caso é vital para que
128 Na verdade, não basta o conflito aparente entre os enunciados. Como
se registrou na primeira parte deste estudo, só será necessário empregar a
ponderação se o conflito não puder ser superado pelas técnicas
tradicionais de solução de antinomias, por envolver uma disputa grave
entre valores ou opções políticas. Assim, após a identificação preliminar
dos enunciados em tensão, será o caso de verificar se o conflito não pode
ser solucionado por qualquer das técnicas tradicionais. Apenas se isso não
for possível é que o processo de ponderação terá continuidade.
92
caso — for ignorado pelo intérprete, os elementos que su-
gerem uma solução contrária à que a disposição ignorada
indicaria assumirão um peso artificialmente maior ao longo
da arg
umentaçãom.
129 ALEXY, Robert.
Colisão de direitos fundamentais e realização de
direitos fundamentais no estado de direito democrático
Revista de Direito
Administrativo n° 217, 1999, p. 69: Exatamente para compreender
adequadamente colisões complexas, porém, é necessário identificar
claramente os elementos fundamentais dos quais elas são compostas. , e
ÁVILA, Humberto,
Teoria dos princípios
2003, pp. 87 e 88: Nessa fase
devem ser analisados todos os elementos e argumentos, o mais
exaustivamente possível. É comum proceder-se a uma ponderação sem
indicar, de antemão, o que, precisamente, está sendo objeto de
sopesamento. Isso, evidentemente, viola o postulado científico da
explicitude das premissas, bem como o princípio jurídico da
fundamentação das decisões, ínsito ao conceito de Estado de Direito. .
130 Um exemplo curioso desse desequilíbrio se deu no julgamento do
habeas corpus
73662/MG, decidido pela 2
Turma do Supremo Tribunal
Federal. Tratava-se de definir se a presunção de violência, referida no art.
213 c/c o art. 224,
a
do Código Penal, que qualifica como estupro a
relação sexual mantida com menor de 14 anos, era absoluta ou relativa. O
voto do Ministro Marco Aurélio, relator do processo, acompanhado pela
maioria, considerou que a presunção era relativa, fundado principalmente
nas circunstâncias fáticas do caso, mas também por conta do art. 226 da
Constituição, que trata da proteção à família. O argumento era o de que
o acusado de estupro no caso, após os eventos que deram origem à ação
penal, havia constituído família e sua condenação desagregaria esse grupo
social que a Constituição pretendia proteger. A minoria sequer examinou
esse elemento normativo, fundando-se em outro enunciado
constitucional: o art. 227, § 4°, no qual se impõe ao legislador o dever de
punir severamente a exploração sexual de crianças e adolescentes. O
argumento da minoria era o de que compreender a presunção do art. 224,
a
do Código Penal como relativa violaria o dispositivo constitucional em
questão, já que bastaria a vítima — com freqüência coagida pelo agressor
— afirmar que não houve violência para descaracterizar o crime. O art.
227, § 4°, da Constituição, porém, sequer foi examinado pelo voto do
9
O processo se desenvolve de forma semelhante no caso
de disposições infraconstitucionais cuja validade esteja em
Não há nesses processos um contraditório propriamen-
te dito, a despeito do papel reservado à Advocacia Geral da
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disputa por força da incidência de enunciados constitucio-
nais diversos, que aparentemente indicam conclusões con-
traditórias'''. Todos os elementos devem ser identificados
— os que postulam a constitucionalidade do dispositivo e
os que sugerem sua inconstitucionalidade — para que se
possa passar à segunda fase' .
Note-se um ponto importante. Em processos subjetivos,
em que há lide, pretensão e resistência, é razoável supor que
cada parte tentará levar ao juiz todos os argumentos normati-
vos imagináveis capazes de sustentar sua posição jurídica.
Por conta do esforço das partes, o órgão competente terá
melhores condições de visualizar o quadro completo de inci-
dências normativas para iniciar a ponderação. O mesmo não
ocorre nos processos objetivos de controle de constituciona-
lidade, como é o caso da ação direta de inconstitucionalidade
(ADIn) e da ação declaratória de constitucionalidade
(ADECON) e, de certa forma, também da argüição de des-
cumprimento de preceito fundamental (ADPF)' .
Ministro Relator. (STF, HC 73662/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU
20.09.1996).
131 As cláusulas constitucionais que tratam do devido processo legal e do
direito de defesa,
e.g.
fornecerão suporte para um dispositivo legal que
restrinja a possibilidade de concessão de providências liminares em
processos judiciais. A garantia constitucional da inafastabilidade do
controle judicial, no entanto, poderá indicar em sentido oposto. O tema
foi enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn n° 223, que será
examinada adiante, no capitulo VIII.
132 HAGE, Jaap C.
Reasoning with Rules,
1997, p. 86 e ss.. Embora o
autor compreenda a ponderação em sentido muito mais amplo e diverso
do que o proposto neste estudo, seu raciocínio pode ser aplicado aqui com
proveito, apenas procedendo-se a algumas adaptações.
133 O espaço para ponderação e a necessidade de emprego da técnica
poderão ser mais limitados em processos abstratos e objetivos, nos quais
União de defender a disposição impugnada no caso da
ADIn'
. Nesse contexto, a figura do amicus curiae,
intro-
duzida no Brasil pelo art. 7
, § 2°, da Lei n° 9868/1999',
poderá ser um instrumento capaz de fazer chegar ao Supre-
mo Tribunal Federal percepções diversas acerca da maté-
ria, das quais talvez o autor da ação, o Advogado Geral da
União, o Ministério Público e os próprios Ministros não
cogitasseml . Os setores da sociedade diretamente inte-
eventuais tensões normativas serão examinadas em tese. Sobre o tema, v.
SANCHÍS, Luis Prieto.. Neoconstitucionalismo y ponderación judicial .
/n: CARBONELL, Miguel (organizador).
Neoconstitucionalimo s),
2003,
p. 155 e ss.. Nada obstante, embora tais processos sejam descritos como
objetivos
pelo fato de neles se discutir a compatibilidade em abstrato de
enunciado normativo com a Constituição, e não pretensões individuais,
não há como ignorar que a decisão a ser tomada acerca da validade do
enunciado terá sempre repercussão na esfera dos interesses subjetivos. V.
BINENBOJM, Gustavo.
A nova jurisdição constitucional brasileira,
2001, p. 137 e ss..
134 Note-se, ademais, que o Supremo Tribunal Federal tem dispensado
o Advogado Geral da União de proceder à defesa do dispositivo
impugnado, quando já houver entendimento do STF no sentido da sua
inconstitucionalidade. V. STF, ADIn 2687/PA, Rel. MM. Nelson Jobim,
DJU 06.06.2003; ADIn 1616/PE, Rel. Min. Maurício Correa, DJU
24.08.2001; e ADIn 2101/MS, Rel. MM. Maurício Correa, DJU
05.10.2001.
135 O STF tem considerado aplicável, por analogia, a figura do
amicus
curiae
também no processo de argüição de descumprimento de preceito
fundamental. STF, ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, decisão
liminar, DJU 02.08.2004.
136 A partir do segundo semestre de 2003,0 Supremo Tribunal Federal,
em oposição a sua tendência inicial restritiva, ampliou as possibilidades
e
participação do
amicus curiae,
admitindo não só que ele (ou eles)
apresente memoriais, como também que sustente oralmente suas razões,
a juízo da Corte. Vejam-se, entre outros, os seguintes acórdãos que
94
5
ressados nas questões discutidas muitas vezes são capazes
de demonstrar incidências normativas que, em tese, talvez
resses e, de forma geral, a justiça ou injustiça de suas pre-
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não fossem tão facilmente perceptíveisl . Seja no processo
subjetivo, seja no objetivo — e neste de forma especial,
tendo em conta os efeitos
erga omnes e vinculantes de suas
decisões —, o importante é que todos os enunciados nor-
mativos pertinentes sejam identificados nesse primeiro
momento da ponderação, ou ao menos que se tente produ-
zir o quadro mais completo possível desses elementos nor-
mativos. Há ainda três observações a fazer sobre essa pri-
meira etapa do processo.
a Interesses e enunciados normativos
Quando o intérprete é confrontado com um impasse
jurídico, é freqüente que os interesses em oposição sejam
percebidos de forma mais clara que os próprios enunciados
normativos envolvidos. Em outras palavras, é comum que a
primeira coisa a captar a atenção de quem esteja examinan-
do o caso sejam as conveniências dos envolvidos, seus inte-
trataram da admissão do
amcuscuriae
no STF: ADIn 1104/DF, Rel.
Min. Gilmar Mendes, DJU 29.10.2003; e ADIn 2540/RJ, Rel. Min.
Celso de Mello, DJU 08.08.2002.
137
MORSE, Allison.
GoodScence BadLaw a MutipeBaancng
Aproach toAdudication
South Dakota Law Review n°46, 2000/2001,
pp. 410 e 411: This article advocates a multiple balancing framework
in which the Court takes into consideration multiple sources of
information. (...) The more information of which the Court must take
notice, the more it will be forced to provide explicit reasoning why it
relies on some information and not on other information. (...) In order to
get the Court's biases out in the open, 'multiple balancing' calls for the
Justices to follow an explicit process of adjudication. Additionally,
'multiple balancing' allows the input of other voices from different
disciplines to submit amicus briefs, in order that the Justices take in
account perspectives of other values.
96
tensões. Não obstante isso, quando se vai iniciar a primeira
fase da ponderação, interesses genericamente considerados
só podem ser levados em conta se puderem ser reconduzi-
dos a enunciados normativos explícitos ou implícitos. Um
interesse que não encontre fundamento no sistema jurídico
não deverá ser considerado' e, em qualquer caso, nesta
primeira fase, o que estará sendo examinado é o enunciado
normativo no qual o interesse encontrou respaldo lógico, e
não o interesse propriamente dito. Explica-se melhor.
A ponderação, como já se mencionou, é uma técnica de
decisão jurídicam .
Se o intérprete a quem cabe decidir
considerar, ao lado de elementos normativos pertinentes, e
no mesmo nível destes, interesses não qualificados pelos
138
Esse fundamento normativo não significa necessariamente um
dispositivo explícito, já que, como se sabe, o sistema jurídico é aberto. V.
CLEVE, Clèmerson Merlin e FREIRE, Alexandre Reis Siqueira.
Algumas notas sobre colisão de direitos fundamentais .
In GRAU Eros
Roberto e CUNHA, Sérgio Sérvulo da (organizadores).
Estudosdedreto
constitucona emhomenagema JoséAfonsoda Silva
2003, p. 233: Os
conflitos entre direitos fundamentais e bens jurídicos de estatura
constitucional ocorrem quando o exercício de direito fundamental
ocasiona prejuízo a um bem protegido pela Constituição. Nesta hipótese
não se trata dequalquer valor interesse exigênca
imperativo da
comunidade, mas sim de um bem jurídico. Bens jurídicos relevantes são
aqueles que a Constituição elegeu como dignos de especial
reconhecimento e proteção.
139 HESSE, Konrad.
Elementosdediretoconstitucona da Repúbica
Federa da Alemanha
1998, p. 66: De todo, é inadmissível dar primazia
a 'bens comunitários superiores' constitucionalmente não protegidos —
que se deixam sustentar discricionalmente — e, com isso, não só
simplesmente ludibriar a unidade da Constituição, mas também a
Constituição. Na medida em que as valorações de uma ponderação de
bens são determinadas 'somente no plano constitucional', um princípio
de ponderação de bens, assim entendido, aproxima-se do princípio da
concordância prática. (grifos no original).
97
órgãos competentes como juridicamente relevantes e dig-
nos de proteção, isto é, se se admite o ingresso de meros
cam uma solução contrária ao reconhecimento do direito à
compensação 4
, mas o mero interesse de aumentar a arre-
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interesses no processo, a ponderação acaba por se transfor-
mar em uma avaliação puramente política. É próprio da
lógica política considerar todas as vantagens e desvantagens
de uma determinada decisão; não é isso, porém, que cabe
fazer na ponderação de que se cuida aqui. Embora a estru-
tura do raciocínio seja semelhante, na ponderação jurídica
deverão ser considerados apenas os elementos normativos
em conflitol . Equiparar disposições normativas e interes-
ses não juridicizados é uma forma ilegítima de refazer o
ofício do legislador. Alguns exemplos ajudam a esclarecer o
ponto.
Suponha-se que um juiz esteja examinando um feito no
qual se discute a não-cumulatividade do IPI ou do ICMS,
prevista nos arts. 153, § 3
, II, e 155, § 2°, I, da Constitui-
ção Federal. Contra a pretensão do particular de ver reco-
nhecida a não-cumulatividade e o direito à compensação
tributária, a Fazenda federal ou estadual argumenta que, no
caso, a não-cumulatividade produzirá uma queda impor-
tante de arrecadação. É fácil perceber que o interesse gené-
rico da Fazenda de incrementar a arrecadação não o trans-
forma, por si só, em um elemento jurídico capaz de valida-
mente se contrapor aos enunciados constitucionais referi-
dos em um hipotético processo de ponderação. A Fazenda
poderá demonstrar que outros elementos normativos indi-
HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997, p. 90: Practically this
means that if we are engaged in a legal discussion and we collect mies to
base reasons on, these mies must be
leg lly
valid. Legal conclusions must
be based on legal reaons, which in their tum must be based on legal mies
(or legal principies, or legal goals etc.). O autor considera (p. 92 e ss.)
que além dos enunciados legais propriamente ditos, há regras sociais
(social mies) que são reconhecidas e empregadas pela comunidade como
leg l rides
e, nesse caso, também elas devem ser consideradas.
98
cadação não pode ser considerado nesta primeira fase da
ponderaçãoi .
Imagine-se ainda, como outro exemplo, que os vizinhos
de um edifício em construção — regularmente licenciado
— preferissem que nada fosse edificado no lote em ques-
tão, para preservar a tranqüilidade atual da área. O simples
interesse ou desejo, porém, não é um elemento normativo.
Há algum fundamento jurídico capaz de respaldar esse in-
teresse? O advogado do grupo talvez pudesse cogitar, na
esfera constitucional, dos princípios que consagram os di-
reitos difusos ao meio ambiente ecologicamente equilibra-
do e à sadia qualidade de vida, previstos no art. 225 da
Constituição.
Assim, um hipotético conflito entre, de um lado, as
disposições normativas que regulam o direito de construir
e a autorização para edificar na cidade e, de outro, o desejo
dos vizinhos de não verem coisa alguma construída no local
deve ser descrito, nessa primeira fase do processo pondera-
tivo, como um conflito entre as disposições normativas que
tutelam o direito de construir e concedem a autorização
para edificar na cidade e os princípios constitucionais que
tratam do meio ambiente e da qualidade de vida, inscritos
no
c puz
do art. 225 da Carta. Não se trata, note-se, de um
já referido, a simples existência de antinomias aparentes ou de
pretensões resistidas não transforma a disputa em uma hipótese na qual a
ponderação deverá ser empregada; as técnicas hermenêuticas tradicionais
solucionam a maioria dos casos. O objetivo do exemplo é apenas destacar
a diferença entre interesses e enunciados normativos,
As repercussões fáticas do acolhimento da pretensão do particular
poderão ser examinadas na segunda fase da ponderação, como se verá
adiante.
99
conflito entre os enunciados que consagram o direito de
construir e um suposto direito à não construção do pré-
histórico ou cultural, um determinado sistema jurídico não
apresenta essas características, antes de se discutir a pon-
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dio , pois não existe disposição normativa alguma atribuin-
do esse direito aos vizinhos do empreendimento. Se esse
direito vier a existir, no caso, ele terá sido construído, a
partir do dispositivo mencionado, após o processo de inter-
pretação e, se necessário, de ponderação
4
. O ponto será
aprofundado no tópico seguinte. Nesse momento, tudo
que existe a favor dos vizinhos são os princípios do art. 225
e são eles os elementos normativos a serem identificados.
Cabe aqui uma observação importante. O que se acab
a
de registrar não significa que a ponderação deva orientar-se
por uma lógica positivista normativista ou que interesses,
bens e valores devam ser eliminados do processo pondera-
tivo. E isso por um conjunto de razões. Em primeiro lugar,
a questão sequer se coloca uma vez que se mantenha o
debate sobre a ponderação dentro do seu contexto históri-
co. Os sistemas jurídicos nos quais essa discussão se desen-
volve — de que é exemplo o brasileiro — são sistemas
abertos, compostos de princípios e regras, explícitos e im-
plícitos, que incorporam opções valorativas e professam
compromisso com a dignidade humana, com os direitos
fundamentais, com a igualdade de todos e com a democra-
ciai . Ou seja: na verdade, os elementos valorativos inte-
gram o próprio sistema, e todas as questões discutidas nes-
se estudo pressupõem esse quadro. Se, em outro ambiente
143
Supondo evidentemente, para simplificar o exemplo, que o único
enunciado normativo capaz de oferecer fundamento à pretensão dos .
vizinhos seja a disposição constitucional referida.
144 Aliás,
como mencionado na introdução, uma das causas jurídicas
imediatas da multiplicação de conflitos normativos que exigem a
ponderação é justamente a ampla introdução de elementos valorativos no
sistema, e sobretudo na Constituição.
100
deração será necessário travar um debate acerca da legiti-
midade desse sistema' 5
mas não é disso que se cuida aqui.
Em segundo lugar, associando-se a moderna hermenêu-
tica a sistemas jurídicos como os que se acaba de descrever,
ter-se-á tantas modalidades de vínculos entre uma preten-
são e o sistema quantas a argumentação e a lógica jurídicas
forem capazes de construir, desde a subsunção mais sim-
ples, até os raciocínios mais sofisticados. Ou seja: interes-
ses, bens, valores ou qualquer outra espécie de argumento
poderão, sim, ingressar na primeira etapa da ponderação,
uma vez que possam ser descritos juridicamente e encon-
trem suporte em algum elemento do sistema. É certo que
não basta a indicação ritualística de um enunciado norma-
tivo qualquer para que se encontre satisfeita a exigência. A
consistência do vínculo entre a pretensão e o ordenamento
jurídico será submetida a controle argumentativo ao longo
da ponderação, sobretudo tendo-se em conta que preten-
sões opostas podem justificar-se a partir do mesmo sis-
tema.
Na verdade, o uso exclusivo de enunciados normativos
na ponderação tem por objetivo preservar o espaço de de-
terminação democrática e a legitimidade da própria opera-
ção ponderativa, na medida em que se exige, desde o início,
que as diferentes pretensões demonstrem sua vinculação
45
A discussão acerca da legitimidade do conteúdo de um determinado
sistema jurídico pode envolver parâmetros morais extraídos de consensos
substantivos (apurados historicamente ou de alguma outra forma) ou
pode valer-se de concepções procedimentais acerca da forma mais
adequada de ordenação da sociedade. O tema é próprio da filosofia do
Estado e do Direito.
101
com o sistema juridico
46
. Os interesses que não puderem
demonstrar alguma conexão com a ordem jurídica não se-
li Normas e enunciados normativos
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rão admitidos na discussão 47 . Desse modo, tenta-se redu-
zir a fragilidade apontada pela crítica quando afirma que a
ponderação seria um meio de politizar as decisões jurídicas
e invadir, arbitrária e ilegitimamente, a esfera reservada aos
órgãos majoritários. Também a crítica de que a ponderação
não contaria com um parâmetro de comparação externo
aos elementos em conflito perde consistência, já que o sis-
tema jurídico vigente, e o constitucional em particular, for-
necem esse parâmetro' .
A segunda observação, ainda sobre esta primeira etapa,
envolve uma definição mais precisa do que seja o
l m nto
normativo
que estará sendo identificado aqui. Trata-se na
verdade de fazer uma distinção da maior importância entre
dois fenômenos diversos, ainda que interligados: o enuncia-
do normativo e a norma.
A distinção que há entre enunciado normativo e norma
não é nova'49, mas recentemente tem sido sublinhada pela
doutrina
5
. De forma geral, o enunciado normativo corres-
146 ALEXY Robert. Teoria da argumentaçãojurídca
2001, p. 212: A
questão sobre o que distingue a argumentação jurídica da argumentação
geral pratica é um dos problemas centrais da teoria do discurso jurídico.
Um ponto pode ser estabelecido mesmo neste estágio: a argumentação
jurídica é caracterizada por seu relacionamento com a lei válida; contudo,
isso precisa ser determinado. Isso esclarece uma das mais importantes
diferenças entre a argumentação jurídica e a argumentação prática geral.
No contexto da discussão jurídica nemtodas as questões estão abertas ao
debate. Essa discussão ocorre com certas limitações.
147 AARNIO, Aulis.
ReasonandAuthority
1997, p. 192: This means
that one has to be able to justify every interpretation by referring to the
formallaw(statute; legal rule), but it must, in addition to this, fulfil the
set standards of
valuation.
Only thus can the expectation of legal
certainty be fulfilled to its maximum, and therefore legal certainty seems
always to be, partially, a substantive notion.
148
ALEXY, Robert. On
BalancngandSubsumption. A Structural
Comparison
Ratio Juris, vol. 16, n° 4, 2003, p. 442: The question is not
the direct comparability of some entities, but the comparability of their
importance for the constitution, which of course indirectly leads to their
comparability. The concept of importance for the constitution contains
two elements which suffice to bring about commensurability. The first is
a common point of view: the point of view of the constitution. It is,
naturally, possible to have a dispute about what is valid fromthis point of
view. Indeed, this occurs regularly. It is, however, always a dispute about
what is correct on the basis of the constitution. Incommensurability,
indeed, comes into being immediately, once the common point of view is
given up. This would, for example, be the case if one interpreter of the
constitution were to say to the other that from bis point of view the one
thing is valid, and fromthat of the other the opposite, so that each is right
from his point of view, and neither of them can be wrong or even
criticized, because a common point of view from which anything couldbe
proven as wrong neither exists nor could exist. Discourse which is more
than empty rhetoric, that is, rational discourse about the right or correct
solution, would then be impossible. Now, the opposite is valid, too. If
rational discourse about what is correct on the basis of the Constitution is
possible then a common point of view is possible. It becomes real as soon
as rational discourse begins which is oriented to the regulative idea of
what is correct on the basis of the constitution. Whoever wants to
undermine the possibiliity of evaluations by appeal to the impossibility of
a common point of view must then be prepared to claim that rational
discourse about evaluations in the framework of constitutional
interpretation is impossible.
149
LARENZ Karl.
Metodooga da cênca dodreto
1969, p. 270 e ss..
150
MOI
FR, Friedrich.Méodos detrabalhododretoconstituconal
Revista da Faculdade de Direito da UFRGS Edição especial
comemorativa dos 50 anos da Lei Fundamental da República Federal da
Alemanha, 1999, p. 45 e ss.; GUASTINI, Riccardo.
Distinguendo Stud
d Teoria eMetateoria de Diritto
1996, pp. 82 e 83; e GRAU, Eros
Roberto.
Ensaioedscursosobrea interpretaçãoeapicaçãododreto
2002, p. 17: O que em verdade se interpreta são os textos normativos;
102
103
ponde ao conjunto de frases, isto é, aos signos lingüístico
s
que compõem o dispositivo legal ou constitucional e des-
gamento, não está obrigado a prestar esclarecimentos ou
fornecer informações que lhe possam ser desfavoráveis. Ele
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crevem uma formulação jurídica deontológica, geral e abs-
trata, contida na Constituição ou na lei, ou extraída do
sistema. Quando se trate de disposições constitucionais ou
legais, o enunciado normativo corresponde ao texto, mas é
perfeitamente possível haver enunciados implícitos ou que
decorram do sistema como um todo'''.
A norma, diversamente, corresponde ao comando es-
pecífico que dará solução a um caso concreto. De forma
geral, ela encontra seu fundamento principal em um ou
mais de um enunciado normativo, ainda que seja perfeita-
mente possível haver normas extraídas do sistema como
um todol . Um exemplo ajuda a compreender o ponto.
O art. 5
0
, inciso LXIII, da Constituição de 1988 regis-
tra que
o preso será informado de seus direitos, entre os
quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assis-
tência da família e de advogado .
Este é o enunciado nor-
mativo. A norma que mais evidentemente se extrai desse
enunciado produz-se nas seguintes circunstâncias, já roti-
neiramente conhecidas: um indivíduo, preso e levado a jul-
da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se
identificam. A norma é a interpretação do texto normativo. (...) O
conjunto dos textos — disposições, enunciados — é apenas ordenamento
em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um
conjunto de normas potenciais [Zagrebelsky].
151 A identificação dos enunciados implícitos ou daqueles que decorrem
do sistema exige, por natural, um esforço interpretativo prévio. Antes de
sua introdução formal no sistema jurídico, isso era o que se passava, por
exemplo, com a razoabilidade, a boa-fé e a vedação do enriquecimento
sem causa.
152 Sobre o tema, v. ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princípios,
2003, p.
13.
104
terá direito ao silêncio e o exercício desse direito não pode-
rá ser usado contra ele para reforçar sua incriminação' .
Interessantemente, em função de outras circunstâncias
concretas que foram se repetindo no mundo dos fatos,
doutrina e jurisprudência desenvolveram outra norma a
partir desse mesmo enunciado normativo: os indivíduos
convocados para prestar esclarecimentos perante Comis-
sões Parlamentares de Inquérito (CPIs) — embora não se-
jam, a rigor, acusados de coisa alguma e muito menos este-
jam presos — podem socorrer-se do direito constitucional
ao silêncio e deixar de prestar informações que considerem
prejudiciais a seus interesses 5
. Na verdade, entende-se
153 STF, HC 80949/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU
14.12.2001: O privilégio contra a auto-incriminação —
nemo tenetur se
detegere —
erigido em garantia fundamental pela Constituição — além
da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186
C.Pr.Pen. — importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juizo, ao
dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da
advertência — e da sua documentação formal — faz ilícita a prova que,
contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal
e, com mais razão, em 'conversa informal' gravada, clandestinamente ou
não.
154 STF, HC 79812/SP, Rel. MMCelso de Mello, DJU 16.02.2001: O
privilégio contra a auto-incriminação — que é plenamente invocável
perante as Comissões Parlamentares de Inquérito — traduz direito
público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de
testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante
órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.
— O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os
órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição
à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa
fundamental. Precedentes. O direito ao silêncio — enquanto poder
jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas
105
que o enunciado contido no art.
5 1
LXIII reflete um enun-
ciado mais geral, que vem a ser o que protege os indivíduos
urna interpretação ou, eventualmente, de uma ponde-
ração' .
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da auto-incriminação.
É fácil perceber que as duas normas referidas acima —
a que diz respeito aos presos e a que envolve depoentes em
CPIs — são distintas como conseqüência da incidência de
um mesmo enunciado sobre diferentes ambientes fáticos.
Ou seja: o mesmo enunciado poderá desencadear o surgi-
mento de normas diversas, em função das diferentes cir-
cunstâncias de fato sobre as quais incidal . A norma cor-
responderá afinal ao comando, extraído ou construído a
partir de enunciado(s), para incidir sobre determinada cir-
cunstância de fato
15 6
. Quanto à estrutura, portanto, a nor-
ma será uma
regra
que corresponde ao resultado final de
respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) — impede,
quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal
específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou
pelas autoridades do Estado. — Ninguém pode ser tratado como culpado,
qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido
atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória
transitada em julgado. O princípio constitucional da não-culpabilidade,
em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede
o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao
indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido
condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário.
Precedentes.
155 É possível cogitar de situações nas quais o mesmo enunciado pode ser
apresentado por partes em conflito, cada qual pretendendo extrair dele
uma norma que atenda a seus interesses. Os argumentos suscitados nos
debates envolvendo aborto opõem em geral, dentre outros elementos, a
dignidade da gestante e do feto. O mesmo princípio da legalidade (CF,
art. 5°, II) pode ser empregado na argumentação da Administração e
d o s
particulares em sentidos diversos e para justificar pretensões
eventualmente colidentes.
156 GRAU, Eros Roberto.
Ensaio e discurso sobre a interpretação e
aplicação do direito
2002, p. 19.
106
A despeito do que se acaba de observar, não é possível
ignorar que o termo
norma
tem sido usado indistintamente
para significar ora o enunciado normativo, ora a norma pro-
priamente dita, e que será provavelmente inútil lutar con-
tra um uso lingüístico tão enraizado. Mais do que as pala-
vras, porém, a distinção é importante porque terá conse-
qüências práticas e não apenas teóricas. No que diz respei-
to ao terna deste tópico, a conseqüência mais relevante é a
seguinte: para o fim de verificar quais são os elementos
normativos em tensão, o que deverá ser identificado nessa
primeira fase da ponderação são os enunciados normativos,
e não as normas. A observação parece óbvia e de fato o é: se
a ponderação é uma técnica pela qual se vai decidir qual a
solução do caso — ou seja, qual a
norma
que se deve extrair
do conjunto de diferentes enunciados que incidem na hipó-
tese —, não se pode, evidentemente, iniciar o processo a
partir do fim.
É certo que o tema envolve um outro aspecto. Embora
enunciado normativo e norma sejam fenômenos distintos,
eles interagem ao longo de todo o processo ponderativo e
antes mesmo de seu início formal. Como já se referiu, a
ponderação será empregada quando se esteja diante de um
conflito normativo que envolva valores ou opções políticas
e que não tenha sido solucionado pelas técnicas hermenêu-
ticas tradicionais. Há, portanto, um momento preliminar
no qual o intérprete, tendo em conta as circunstâncias fáti-
cas da hipótese e sua compreensão da realidade e do Direi-
157 ALEXY, Robert. On
the Structure of L egal Principies Ratio Juris vo l.
13, n°3, 2000, p. 297 e ss.; e HAGE, Jaap C.
Reasoning with Rules
1997,
p. 96.
107
toi5 8
, visualiza um conflito dessa natureza entre as normas
que imagina ou intui decorrerem do sistema jurídico
1 5 9
.
Feita a digressão, e retornando ao ponto, repita-se ain-
da uma vez: são os enunciados normativos em tese aplicá-
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Ora, a primeira etapa da ponderação é justamente um
momento de reflexão acerca desse impulso inicial, na qual
se procurará identificar se há de fato enunciados normati-
vos no sistema jurídico fundamentando as normas que se
imaginou estarem em conflito e, por conseqüência, se há
efetivamente um conflito normativo. Essa primeira etapa
serve também para que se verifique se todos os enunciados
pertinentes estão sendo considerados e se eles justificam a
existência de outras normas, capazes inclusive de superar o
conflito visualizado inicialmente. Com
efeito, após esse es-
forço inicial é perfeitamente possível concluir — e quiçá
essa será a hipótese mais freqüente — que não há afinal um
conflito normativo ou que ele pode ser superado por meios
hermenêuticos convencionais, sendo desnecessário percor-
rer as etapas seguintes da ponderação. Como se vê, há aqui
um movimento de ir e vir entre enunciado e normas possí-
veis
1 6 0
, como a rigor é próprio da interpretação em geraP
6 1
158
Embora não caiba aprofundar o tema aqui, a interpretação não é um
fenômeno externo ao objeto interpretado ou neutro em relação a ele. De
certa forma, a interpretação participa da própria constituição desse
objeto. Sobre o tema, v. PASQUALINL Alexandre.
Hermenêutica e
sistema jurídico 1999, p. 15 e ss.; e CAMARGO, Margarida Maria
Lacombe.
Hermenêutica e argumentação
2001.
159
Como se verá ao longo do estudo, a ponderação pode se desenvolver
também em abstrato ou preventivamente, isto é, fora de um caso
concreto. Mesmo nesses casos, porém, sempre haverá circunstâncias
fáticas a considerar, fruto da observação de casos pretéritos ou da
imaginação dos teóricos.
160
O que inclui também, necessariamente, uma apreciação preliminar
dos fatos, embora seu exame ordenado só vá ocorrer na segunda fase da
ponderação.
161 REALE, Miguel.
Lições preliminares de direito
1999, p. 303:
Donde podemos concluir que o ato de subordinação ou subsunção do
veis à hipótese que devem ser indicados nesta fase, seja
qual for sua estrutura (regra ou princípio). Ou seja: se o
enunciado que se considera aplicável é um princípio geral
(como a dignidade humana ou o princípio democrático), é
ele que deverá figurar nessa fase. No exemplo do empreen-
dimento imobiliário descrito no tópico anterior, são os
princípios gerais que protegem o meio ambiente ecologica-
mente equilibrado e a sadia qualidade de vida que deverão
ser indicados nesta primeira fase.
Esse cuidado é importante a fim de evitar-se um desvio
que não é incomum na argumentação jurídica. O intérpre-
te, desejando — conscientemente ou não — fazer prevale-
cer uma determinada solução, procede da seguinte forma
nessa primeira etapa. Para fundamentar a solução que lhe é
cara, ele indica uma norma construída de forma isolada a
partir de apenas um ou alguns dos enunciados relevantes,
sem submetê-los, dessa forma, ao confronto com os demais
enunciados pertinentes; para justificar a solução oposta,
porém, o intérprete apresenta os enunciados no seu nível
de generalidade próprio. Por esse mecanismo, um (ou al-
guns) dos enunciados corre por fora e se apresenta na
primeira fase do processo como uma disposição muito mais
concreta do que de fato é, e eventualmente com uma estru-
tura diversa da sua original: em vez de princípio, ele passa a
figurar como urna regra, desequilibrando a ponderação.
O exemplo a seguir, embora um tanto curioso, ajuda a
fato à norma não é um ato reflexo e passivo, mas antes um ato de
participação criadora do juiz, com a sua sensibilidade e tato, sua intuição
e prudência, operando a
epois no raciocínio do juiz pois este não raro vai
da norma ao fato e vice-versa, cotejando norma como substrato
condicionador de suas indagações teóricas e técnicas.
108
109
esclarecer a questão. Suponha-se que uma senhora de 66
anos more em uma casa na frente da qual há um amplo e
belo jardim. Infelizmente, a senhora já não tem condições
O importante a destacar aqui é que o intérprete, ao
identificar os enunciados normativos em conflito na pri-
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de pagar o jardineiro, o jardim começa a deteriorar-se e ela
decide exigir judicialmente que o Poder Público custeie a
manutenção da área. Os fundamentos da demanda são o
dever estatal de amparar as pessoas idosas e defender o seu
bem estar (Constituição Federal, art. 230) e o fato de que
a visão do jardim bem cuidado tornou-se indispensável para
a sua qualidade de vida (art. 225), para sua saúde psíquica
e emocional (art. 196) e, afinal, para sua dignidade (art. I°,
III). Evidentemente, é possível cogitar de um conjunto
grande de outros enunciados, constitucionais e infraconsti-
tucionais, que se opõe à pretensão da senhora, mas não há
necessidade de discorrer sobre esse ponto.
Se, porém, na primeira fase de um hipotético processo
de ponderação, em vez dos princípios contidos nos referi-
dos arts. 1°, III, 196, 225 e 230 da Constituição, já se
concluir que deles decorre um direito a ter o jardim manti-
do pelo Poder Público, haverá uma distorção no processo.
Em vez de se confrontarem com os princípios que consti-
tuem o vínculo da pretensão da senhora com a ordem jurí-
dica, os enunciados que venham a se opor a essa pretensão
terão de disputar primazia com um direito específico,
construído com base nos enunciados suscitados apenas pela
autora. Toda a operação hermenêutica para saber se o con-
junto de enunciados alegados pela autora autoriza que se
fale de um direito a ter o jardim mantido pelo Poder Públi-
co terá sido subtraída do processo. Do ponto de vista estru-
tural também haverá uma distorção: em vez de princípios,
a pretensão autoral terá agora uma regra a seu favor' .
162 Interessante problema, semelhante ao descrito no texto, é discutido
nos Estados Unidos acerca da forma mais ou menos geral como um direito
meira fase da ponderação, deve ter a cautela de não intro-
duzir normas obtidas com base em apenas alguns enuncia-
dos de forma isolada, à margem do processo de ponderação
e antes que ele possa se desenvolver. É certo que muitas
em discussão deve ser identificado. V. TRIBE, Laurence H. e DORF,
Michael C..
Leveis of General ity in the Definition of Rights University of
Chicago Law Review n° 57, 1990, p. 1065: Bowers v Hardwick
illustrates the centrality of the leveis of generality question. Writing for
the majority, Justice White contended that 'the issue presented is
whether the Federal Constitution confers a fundamental right upon
homosexuals to engage in sodomy'.. In dissent, Justice Blacicmun argued
that the case was no more about 'a fundamental right to engage in
homosexual sodomy' than Stanley v Georgia, 394 US 557 (1969), was
about a fundamental right to watch obscene movies, or Katz v United
States, 389 US 347 (1967), was about a fundamental right to place
interstate bets from a telephone booth. Rather, this case is about 'the
most comprehensive of rights and the right most valued by civilized men',
namely, 'the right to be let alone'. Justice Blackmun may have overstated
the point, since Katz involved a type of 'privacy' that 'does make the
claimant's substantive conduct irrelevant; at issue [in a case like Katz] is
the government's manner of discovering the conduct'. But he overstated
it only a little, because the Court need not have regarded Hardwick as a
case about 'homosexual sodomy' at ali. The state statute at issue drew no
distinction between homosexual and heterosexual intimacies. The
majority and the dissenters in Hardwick argue over how abstractly to
describe the right at issue. The majority describes the right narrowly, the
dissent broadly. These alternative descriptions evidently reflect the fact
that the majority and dissent have reached different conclusions as to
whether Hardwick's behavior is constitutionally protected. As such, we
might view them as shorthand for the holding and the dissent. Yet the
characterizations are the starting points for the analysis. Because the
majority and dissent ask different questions, it is not surprising that they
give different answers. The majority's question answers itself. Describing
a claimed right in very specific terms — here, as a 'right to engage in
homosexual sodomy' — disconnects it from previously established
rights.
110
11
vezes o aplicador, intuitivamente, já sabe a que resultado
chegará ao fim da ponderação e haverá a tendência de ante-
cipá-lol . Ora, o propósito de ordenar e explicitar as eta-
resses coletivos pretendem restringir direitos indivi-
duais' . É freqüente que nessas hipóteses o intérprete seja
tentado a visualizar o problema normativo como uma opo-
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pas do raciocínio ponderativo é precisamente submeter a
intuição a controles de juridicidade e racionalidade. Se o
resultado intuitivo for afinal juridicamente consistente e
racional, ele resistirá a esses controles e será possível che-
gar à mesma conclusão — agora fundamentadamente —
após todo o percurso.
c Situações individuais e enunciados normativos
Sobre essa primeira fase do processo ponderativo, há
uma última observação a fazer, que se relaciona à anterior.
Como já se repetiu várias vezes, devem ser selecionados
nesta primeira fase apenas os enunciados normativos. Man-
ter-se fiel a essa premissa é particularmente importante
quando o caso concreto no qual o conflito se manifesta
confronta situações individuais e algum tipo de política de
interesse geral.
Os exemplos mais freqüentes dessa espécie de conflito
ocorrem quando as chamadas leis de ordem pública pare-
cem chocar-se com atos jurídicos perfeitos ou direitos ad-
quiridos'
, ou ainda quando leis ou atos fundados em inte-
163 Curiosamente, o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal
Federal, não se limita a reconhecer o fato, chegando a recomendar ao
magistrado essa postura, nos seguintes termos, que reproduz em alguns de
seus votos: Ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais
justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após,
cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensável apoio,
formalizá-la.
e.g.,
RE 111787/GO, DJU 13.09.1991, RTJ 136/1292).
164 Sobre o conflito entre o direito adquirido e a incidência das
chamadas
leis de ordem pública,
v. PORCHAT, Reynaldo.
Da
112
sição entre o interesse de um indivíduo e o interesse da
coletividade como um todo. A formulação do conflito nes-
ses termos, como é fácil perceber, gera um equívoco lógico
que poderá produzir uma distorção inicial do processo pon-
derativo em favor da solução que privilegia os interesses da
coletividade.
O equívoco lógico pode ser descrito da seguinte manei-
ra. Ao imaginar que o conflito se opera entre a pretensão
individual e o enunciado que consagra um bem coletivo, o
intérprete estará contrapondo uma norma — o direito do
indivíduo — e um enunciado normativo. O desequilíbrio
decorre de a contraposição se dar entre fenômenos diver-
sos, já que o direito do indivíduo está fundado também em
um enunciado normativo geral, que consagra determinada
posição jurídica não apenas para o benefício de um indiví-
duo em particular, mas para o benefício de todos que este-
jam em situação equivalente.
Assim, quando um particular questiona a incidência de
determinada lei de ordem pública sobre sua posição jurí-
dica, alegando violação a direito adquirido, o conflito que
retroactividade das leis civis,
1909, p. 67: O que convém ao applicador
de uma nova lei de ordem pública ou de direito público, é verificar se, nas
relações jurídicas já existentes, há ou não direitos adquiridos. No caso
affirmativo, a lei não deve retroagir, porque a simples invocação de um
motivo de ordem publica não basta para justificar a offensa ao direito
adquirido, cuja inviolabilidade, no dizer de Gabba, é também um forte
motivo de interesse publico.
165 Robert Alexy formula uma preferência abstrata dos direitos
individuais sobre os interesses coletivos. V. ALEXY, Robert.
Derechos,
razonamiento jurídico e discurso racional,
Revista Isonomia n° 1, p. 44 e
ss., 1994. A esse ponto se voltará no capítulo 1X.
113
pode se estabelecer não é entre a pretensão individual e o
enunciado de ordem pública, mas sim entre a disposiçã
o
constitucional que protege o direito adquirido contra a in-
suma: os enunciados normativos devem ser todos aprecia-
dos no mesmo nível de abstração, não se confundindo com
a(s) norma(s) que cada um deles pode justificar.
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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cidência da lei nova — e que certamente também pode ser
descrita como de ordem pública'
— e o enunciado legal
em questão. Quando se visualiza o conflito equivocada-
mente como posição individual
versus
enunciado de ordem
pública, isso poderá conduzir o intérprete à conclusão
apressada — e a rigor imprecisal — de que o direito indi-
vidual deve ceder em benefício do interesse público'''. Em
166
BARROSO, Luis Roberto.
Interpretação e aplicação da Constituição
2003, p. 47 e ss..
167
A moderna doutrina de direito público brasileira tem questionado e
reformulado o tradicional princípio da supremacia do interesse público,
tendo em conta a centralidade do indivíduo e dos direitos fundamentais
no sistema jurídico, especialmente após a Carta de 1988. ÁVILA,
Humberto Bergman.
Repensando o princípio da supremacia do interesse
público sobre o particular
Revista Trimestral de Direito Público n°
24
1998
p. 159; e OSÓRIO, Fábio Medina.
Existe uma supremacia do
interesse público sobre o privado no direito administrativo brasileiro?
Revista dos Tribunais n°770
1999, p. 53.
168
Essa assimetria entre, de um lado, pretensões de
interesse público
e
de outro, pretensões individuais pode ocorrer não apenas nos termos
descritos no texto, mas também em conseqüência de como se interpreta
cada um dos enunciados O tema é recorrente na experiência
norte-americana. V., por todos, ACKERMAN, Bruce.
Exchange; Levels of
Generality
in
Constitucional Interpretation: Liberating Abstraction
University of Chicago Law Review n°59, 1992, p. 318: The statism of
the new Republican court expresses itself in a fundamental asymmetry in
its attitude toward legal abstraction. In interpreting the power-granting
side of the Constitution, today's Court exhibits no hesitation about the
liberating power of abstraction. It shows no serious inclination to question
the New Deal transformation of a federal government with limited
powers into a national government with plenary powers at home and
abroad. Instead, the Court saves ali its doubts about abstract thought for
the rights-granting side of the Constitution. This asymmetry — abstract
powers, but particular rights — shows the authoritarian bias in the
114
Ainda nesta primeira fase, após a identificação dos
enunciados pertinentes, é conveniente ordená-los em gru-
pos de sentido, em função das direções que indiquem para
a solução do caso concreto . Essa operação não envolverá,
em geral, maiores complexidades e com essas observações
já se pode avançar para a segunda fase da ponderação.
V.2. Segunda etapa: identificação dos fatos relevantes
Na segunda fase cabe examinar as circunstâncias con-
cretas do caso e suas repercussões sobre os elementos nor-
emerging pattern of Supreme Court decisions. Time and again, the Court
authorizes the activist state to assault fundamental constitutional rights in
ways that evade the narrowing judicial focus. This asymmetry would be
troubling enough if it were 'only' a matter of legal method. it is a single
Constitution we are interpreting — both when it speaks about powers
and when it speaks about rights. Nobody who takes interpretation
seriously should feel free to split the text in two, and approach the
fragments in radically different ways — unless he is prepared to tell us
why. ; e EASTERBROOK, Frank. H..
Exchange; Levels of Generality in
Constitutional Interpretation: Abstraction and Authority
University of
Chicago Law Review n°59, 1992, pp. 349 a 380.
169
Embora seja comum a polarização dos elementos, formando dois
grupos, nada impede que haja mais de dois, cada qual apontando para uma
direção diversa. É possível imaginar, por exemplo, hipóteses em que
diferentes enunciados constitucionais relativos à ordem econômica
possam entrar em tensão, como, por exemplo, o que prevê o tratamento
favorecido para empresas brasileiras de pequeno porte (art. 170, IX), o
que comanda que a lei apóie e estimule o cooperativismo (art. 174, §§ 2°
a 4°) e o que autoriza a exploração direta pelo Estado de atividades
econômicas (art. 173).
115
inativos, daí se dizer que a ponderação depende substan-
cialmente do caso concreto e de suas particularidades'
°
Há algumas observações a fazer sobre a questão.
to pelo qual se consideram relevantes determinados fatos é
a existência de disposições normativas que autorizam essa
conclusãom. É certo que haverá hipóteses nas quais o in-
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A frase examinar as circunstâncias concretas do caso e
suas repercussões sobre os elementos normativos descre-
ve, na verdade, uma operação composta de no mínimo duas
partes. Em primeiro lugar, o intérprete terá que destacar,
dentre todas as circunstâncias de fato que caracterizam a
hipótese, aquelas que considera relevantes. E o primeiro
problema que se coloca é saber o que atribui relevância a
um aspecto de fato. Em segundo lugar, e as duas questões
estão interligadas, os fatos relevantes terão influência sobre
o
peso ou a importância a ser reconhecida aos enunciados
identificados na fase anterior e às normas por eles propug-
nadas. Essa repercussão dos fatos sobre os enunciados tam-
bém merece uma breve nota.
a Fatos relevantes
O que leva uma determinada circunstância fática a ser
considerada relevante no sentido aqui referido? Essa dis-
cussão pode muitas vezes transitar pelo óbvio ou, ao con-
trário, suscitar graves disputas. Nesse contexto, será útil
observar que há em geral dois fundamentos que justificam
a relevância atribuída aos elementos de fato. O primeiro
deles é dado pelo senso comum de uma sociedade, forma-
do a partir de sua história e cultura. Dessa forma, um de-
terminado aspecto fático é considerado relevante se a ex-
periência social assim o considera. Um segundo fundamen-
170 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica, 2001, p. 227;
SARMENTO, Daniel.
A ponderação de interesses na Constituição
Federal
2000; e DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico,
1996
(os três primeiros capítulos).
térprete identificará um elemento de fato como relevante
por conta dos dois fundamentos. Alguns exemplos ajudam
a ilustrar a hipótese.
Com fundamento apenas no senso comum, e conside-
rando a realidade brasileira, a cor dos cabelos do indivíduo
será irrelevante para a decisão acerca da maior ou menor
proteção de sua vida privada, quando este bem esteja em
confronto, e.g.,
com a liberdade de imprensa. Já mesclando
o
senso comum com fundamentos jurídicos, a solução des-
se mesmo conflito normativo será certamente influenciada
pelo fato de a pessoa envolvida ser,
e.g.
titular de um man-
dato eletivo, de modo que este será agora um aspecto de
fato relevante. As disposições normativas que tratam da
democracia, da obrigação de prestar contas por parte dos
agentes políticos e do princípio da publicidade qualificarão
a circunstância como relevante nessa espécie de conflito.
Entretanto, nem sempre o processo de apurar a rele-
vância dos fatos será simples assim, tanto quando se trate
do senso comum, como quando se cuide de relevância por
qualificação jurídica. Famosa decisão de tribunal estadual
considerou que determinada atriz, cuja foto, na qual posava
nua, foi publicada por jornal popular sem autorização espe-
cífica, não tinha direito à indenização por dano moral —
embora fizesse jus à reparação pela violação do direito à
imagem —, pois se tratava de moça especialmente bonita e
o
evento não lhe teria causado sofrimento algum. Na per-
cepção do órgão julgador, haveria dano moral apenas se se
171 LARENZ, Karl.
Metodologia da ciência do direito, 1969,
p 280 e ss
116
17
tratasse de moça feia que fosse retratada nessas condi-
ções'''. O fato identificado como relevante no caso foi a
beleza (ou a falta dela) da moça. Posteriormente, a juris-
A qualificação de fatos a partir de elementos jurídicos
também poderá ensejar alguma discussão. A Constituição
afirma que, salvo na hipótese de segredo de justiça, os atos
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prudência evoluiu em sentido diverso, considerando que a
beleza ou não da pessoa que tem sua imagem exposta não é
relevante para o fim de configurar-se o dano moral ou a
violação do direito à honra. O que será considerado humi-
lhante ou vexatório para cada indivíduo dependerá de no-
vas avaliações que levem em conta as circunstâncias do caso
concreto
7
.
172
TJRJ, Embargos Infringentes n°250/99 Rel. Des. Wilson Marques,
DORJ 04.10.1999: Só mulher feia pode se sentir humilhada,
constrangida, vexada em ver seu corpo desnudo estampado em jornais ou
em revistas. As bonitas, não. Fosse a autora uma mulher feia, gorda, cheia
de estrias, de celulite, de culote e de pelancas, a publicação de sua
fotografia desnuda — ou quase — em jornal de grande circulação,
certamente lhe acarretaria um grande vexame, muita humilhação,
constrangimento enorme, sofrimento sem conta, a justificar — aí sim —
o
seu pedido de indenização de dano moral, a lhe servir de lenitivo para o
mal sofrido.
173
Ao votar no julgamento do Recurso Especial que reformou o acórdão
do TJRJ acima referido, a Min. Nancy Andrighi fez o seguinte registro: A
amplitude de que se utilizou o legislador no art. 5
, inc. X da CF/88
deixou claro que a expressão 'moral', que qualifica o substantivo dano,
não se restringe aquilo que é digno ou virtuoso de acordo com as regras da
consciência social. E possível a concretização do dano moral
independentemente da conotação média de moral, posto que a honra
subjetiva tem termômetro próprio inerente a cada indivíduo. (...) Por
isso a sábia doutrina concebeu uma divisão no conceito de
honorabilidade: honra objetiva, a opinião social, moral, profissional,
religiosa que os outros têm sobre aquele indivíduo, e honra subjetiva, a
opinião que o indivíduo tem de si próprio. (...) A norma jurídica protetora
da honra alcança as dores internas. (STJ, REsp 270730/RJ, Rel. Min.
Nacy Andrighi, DJU 07.05.2001). Vejam-se, ainda, STJ, REsp
230268/SP, Rel. MM Antônio de Pádua Ribeiro, DJU 18.06.2001 e STJ,
REsp 448604/RJ, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJU 25.02.2004.
118
processuais são públicos'
. Isso significa que questões dis-
cutidas no âmbito de processos judiciais podem ser livre-
mente divulgadas pela imprensa? Esse tem sido o entendi-
mento no Brasil' , ao menos na maior parte dos casos, mas
não foi essa a tese vitoriosa no caso
Lebach,
julgado em
1973, pelo Tribunal Constitucional alemão' . Seria impos-
174
CF: Art. 5° - (...) LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos
atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o
exigirem .
175
STF, RE 208685/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, DJU 22.08.2003:
Direito à informação (CF, art. 220). Dano moral. A simples reprodução,
pela imprensa, de acusação de mau uso de verbas públicas, prática de
nepotismo e tráfico de influência, objeto de representação devidamente
formulada perante o TST por federação de sindicatos, não constitui abuso
de direito. Dano moral indevido. RE conhecido e provido. No mesmo
sentido, v. STF, AO 770/AM, Rel. Min. limar Galvão, DJU 09.05.2003.
176
Em linhas gerais, tratava-se de decidir se um canal de televisão
poderia exibir documentário sobre um homicídio que havia abalado a
opinião pública alemã alguns anos antes, conhecido como o assassinato
de soldados de Lebach . A questão foi suscitada por um dos condenados,
então em fase final de cumprimento de pena, sob o fundamento de que a
veiculação do programa atingiria a sua honra e, sobretudo, configuraria
sério obstáculo ao seu processo de ressocialização. A primeira instância e
o
tribunal revisor negaram o pedido de liminar formulado pelo autor, que
pretendia obstar a exibição. O fundamento adotado foi o de que o
envolvimento no fato delituoso o tornara um personagem da história
alemã recente, o que conferia à divulgação do episódio interesse público
inegável prevalente inclusive sobre a legítima pretensão de
ressocialização. Diante disso, o autor interpôs recurso constitucional
Verfassungsbeschwerde)
perante o Tribunal Constitucional, alegando,
em síntese, violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, que
abrigaria em seu conteúdo o direito à reinserção social. Após proceder à
oitiva de representantes do canal de televisão interessado, da comunidade
119
sível, por óbvio, examinar aqui a relevância das inúmeras
circunstâncias de fato que podem ocorrer nos diferentes
conflitos envolvendo valores ou opções políticas e nem é
buem propriamente um peso maior ou menor a determina-
da solução; diversamente, elas são responsáveis por infor-
mar o grau de restrição que a escolha de cada uma das
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esse o propósito deste estudo. É bem de ver que um dos
objetivos que se pretende alcançar com a construção de
parâmetros específicos, sobre o que se tratará na terceira
parte deste trabalho, é exatamente tabular os elementos de
fato relevantes que com maior freqüência estão presentes
nos diferentes tipos de conflito dessa natureza. O exame da
jurisprudência será especialmente útil nesse particular.
b Repercussões dos fatos sobre os enunciados norma-
tivos
Há ainda duas observações a fazer sobre esta segunda
fase da ponderação. A experiência indica que as circunstân-
cias de fato podem repercutir de duas formas distintas so-
bre as soluções indicadas pelos grupos de elementos nor-
mativos identificados ao fim da primeira fase, descrita aci-
ma. Em primeiro lugar, os fatos podem atribuir um peso
maior ou menor a alguma delas. Assim, em um confronto
entre as duas soluções — publicar ou não matéria jornalís-
tica sobre a rede de amigos de um deputado federal —, o
fato de se tratar de matéria envolvendo um deputado fede-
ral atribuiria maior peso, nesse caso, ao grupo de enuncia-
dos normativos que sugere a publicação da matéria.
Há outras circunstâncias de fato, porém, que não atri-
editorial alemã, de especialistas nos diversos ramos do conhecimento
pertinentes, do Governo Federal e do Estado da Federação onde o
condenado haveria de se reintegrar, o Tribunal reformou o entendimento
dos juizos anteriores, concedendo a liminar para impedir a veiculação do
programa, caso houvesse menção expressa ao interessado.
soluções possíveis pode impor sobre as demais naquele
caso concreto. Essa informação será da maior utilidade para
o intérprete: se a realização prática de uma das soluções
importar uma restrição insignificante ao que as derhais pos-
tulam, os enunciados normativos correspondentes a essa
primeira solução terão um peso reforçado no caso concre-
to. O chamado caso Glória Trevi , decidido pelo Supre-
mo Tribunal Federal, ilustra essa espécie de situação.
A cantora Glória Trevi, ao descobrir-se grávida na pri-
são, acusou de estupro os policiais que trabalhavam na car-
ceragem. Quando do nascimento da criança, os acusados
apresentaram seus padrões de bNA e solicitaram que fosse
realizado o exame na Criança, de modo que a veracidade
das acusações formuladas pela mãe pudesse ser submetida
à prova. A questão acabou sendo decidida pelo STF, que, a
despeito da oposição da mãe, deferiu o pedido. A decisão
do Supremo Tribunal Federal levou em conta especialmen-
te a possibilidade de realizar o exame com o material da
placenta, o que não importaria qualquer restrição impor-
tante à integridade física da mãe ou da criançal .
Note-se que o dado fático em questão — a circunstân-
cia de ser possível realizar o exame de DNA a partir de
material da placenta — não confere maior importância à
honra dos policiais. Ele simplesmente revela que o atendi-
mento dessa peetensão no caso não causa qualquer restri-
ção relevante ao outro elemento em disputa, a saber: a in-
tegridade física da mãe e, sobretudo, da criança. Por outro
lado, a adoção de uma norma que vedasse a realização do
177
STF, RCL 2040/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, DJU 27.06.2003.
120
,
21
teste impediria a comprovação da falsidade da acusação,
meio pelo qual se poderia restaurar a honra e o bom nome
dos acusados.
corresponde a uma norma possível, isto é, a uma possibili-
dade normativa a ser extraída do conjunto de enunciados
pertinentes no caso. Esses dados de fato permitirão ao in-
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A última observação importante sobre esta segunda
fase do processo ponderativo guarda relação com o que se
acaba de registrar acerca do grau de restrição que a adoção
de cada uma das soluções apuradas na Primeira fase impõe
às demais. Muito freqüentemente haverá diferentes meios
físicos de realizar, com mais ou menos intensidade, cada
um dos conjuntos normativos em conflito. E cada uma des-
sas diferentes possibilidades produzirá um equilíbrio dife-
renciado entre os enunciados em tensão. Explica-se melhor
com um exemplo.
Imagine-se que um indivíduo qualquer, portador de
epilepsia, estivesse assistindo a uma sessão do plenário do
Senado Federal e sofresse uma grave crise, necessitando de
cuidados médicos. A imprensa pretende divulgar o ocorri-
do e o indivíduo deseja impedir a divulgação, alegando a
proteção de sua intimidade. Na realidade, não existem ape-
nas as opções de
divulgar
e
não divulgar
o ocorrido. Dentro
da solução que autoriza a divulgação, há diversas possibili-
dades: (i) a história pode ser descrita sem referência ao
nome da pessoa e sem imagens que possam identificá-la,
(ii) a história pode referir o nome do indivíduo, mas sem a
utilização de imagens, e (iii) por fim, a empresa de comu-
nicação pode contar a história referindo o nome do envol-
vido e ilustrando com imagens.
Nesta segunda fase, e sempre que isso seja possível, o
intérprete deverá cogitar de todas as possibilidades fáticas
por meio das quais as diferentes soluções indicadas pelos
grupos normativos da primeira fase podem ser realizadas,
desde a que atende mais amplamente às suas pretensões,
até a que as restringe de forma importante, na linha exem-
plificada acima. Cada uma dessas soluções, na verdade,
térprete apurar se existe alguma possibilidade fática de
atender a todas as soluções em um nível ótimo e, em qual-
quer caso, servirão de importante subsídio para a última
etapa da ponderação, como se verá adiante, especialmente
para a realização, quando viável, da concordância prática.
V.3. Terceira etapa: decisão
Identificados todos os elementos pertinentes — nor-
mativos e fáticos — chega-se afinal à fase de decisão. É
nesta etapa que se estará examinando conjuntamente os
diferentes grupos de enunciados, a repercussão dos fatos
sobre eles e as diferentes normas que podem ser construí-
das, tudo a fim de apurar os pesos que devem ser atribuídos
aos diversos elementos em disputa' . Diante da distribui-
ção de pesos — e esse o diferencial da ponderação — será
178 Lembre-se, como já se referiu, que as três fases propostas para o
processo ponderativo não são estanques ou incomunicáveis. Acontece
aqui, como em toda atividade hermenêutica, o movimento de ir e vir (o
circulo hermenêutico) entre as diferentes premissas, fáticas e normativas,
e as possíveis conclusões, até que se chegue à solução final. Em todo caso,
a necessidade de fundamentação posterior impõe a ordenação do
raciocínio. V. LARENZ, Karl.
Metodologia da ciência do direito
1969, p.
371 e ss.; GRAU, Eros Roberto.
Ensaio e discurso sobre a interpretação e
aplicação do direito
2002, p. 31; CLÈVE, Clèmerson Merlin e FREIRE,
Alexandre Reis Siqueira. Algumas notas sobre colisão de direitos
fundamentais . In: GRAU, Eros Roberto e CUNHA, Sérgio Sérvulo da
(organizadores).
Estudos de direito constitucional em homenagem a José
Afonso da Silva 2003, p. 234 e ss.; e CAMARGO, Margarida Maria
Lacombe.
Hermenêutica e argumentação
2001, p. 50 e ss..
123
122
o momento de definir se é possível conciliar os diferente
s
elementos normativos ou se algum deles deve preponderar
e, afinal, qual a norma que dará solução ao caso.
dos parâmetros propriamente jurídicos, é possível anotar
três diretrizes gerais que não só podem como devem orien-
tar a atividade do intérprete nesse momento decisório.
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A despeito da formulação quase singela, esta é sem dú-
vida a fase mais complexa de toda a operação. Na verdade,
as questões que se colocam aqui são várias. Que peso deve
ser atribuído a cada elemento normativo? Por que uns rece-
berão um peso maior que outros? Por qual razão uma solu-
ção indicada por determinados elementos normativos deve
prevalecer sobre outra? A técnica da ponderação não ofere-
ce respostas definitivas para essas perguntas' . Em si mes-
ma, a ponderação é apenas uma técnica instrumental, vazia
de conteúdo. E bem de ver que essa limitação não retira o
valor de aprimorar-se a técnica da ponderação propriamen-
te dita. A organização do raciocínio ponderativo facilita o
processo decisório, torna visíveis os elementos que partici-
pam desse processo e, por isso mesmo, permite o controle
da decisão em melhores condições.
Ou seja: as etapas de exame já descritas são úteis para
conduzir o raciocínio e ordenar a argumentação, mas a ver-
dade é que elas não fornecem parâmetros para fundamen-
tar uma escolha diante dos elementos em colisão. A cons-
trução de parâmetros que auxiliem o intérprete nesse pon-
to é absolutamente necessária: esse é o objeto da terceira
parte deste estudo. Porém, antes de ingressar na discussão
179 ALEXY, Robert. On
Balancing and Subsumption. A Structural
Comparison,
Ratio Juris, vol. 16, n° 4, 2003, pp. 439 e 448: Of course,
such judgments presuppose standards that are not themselves to be
found in the Law of Balancing. (...) Neither the Subsumption Formula
nor the Weight Formula contributes anything directly to the justification
of the content of these premisses. To this extent both are completely
formal. But this cannot diminish the value of identifying the lcind and the
form of the premisses which are necessary in order to justify the result.
124
Em primeiro lugar, o intérprete deve estar comprome-
tido com a capacidade de universalização tanto dos funda-
mentos empregados no processo, como da decisão propria-
mente dita. Em segundo lugar, e como já referido, os esfor-
ços do aplicador nesta fase devem ter por meta a concor-
dância prática dos enunciados normativos em conflito. Por
fim, uma terceira questão que não pode ser negligenciada
nesta fase, quando ela envolva direitos fundamentais, diz
respeito ao núcleo dos direitos e o limite que ele representa
à ponderação. Explica-se melhor cada um desses elemen-
tos.
a Pretensão de universalidade
Para que o discurso em geral, e o discurso jurídico em
particular, possa ser considerado minimamente racional,
ele deve atender a um conjunto bastante amplo de exigên-
cias lógicas'
. Não se vai cuidar aqui desse tema, como já
sublinhado, mesmo porque ele demandaria um estudo ex-
clusivo. Entretanto, dentre essas exigências, uma se desta-
ca de forma particular e merece algumas notas: trata-se
justamente da pretensão de universalidade' .
180 V. sobre o tema ALEXY, Robert.
Teoria da argumentação jurídica,
2001; PECZENIK, Alelcsander. On
Law and Reason, 1989; e MA1A,
Antônio Cavalcanti e SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Os princípios
de direito e as perspectivas de Perelman, Dworkin e Alexy .
In
PEIXINHO, Manoel Messias. Os
princípios da Constituição de 1988,
2001, pp. 57 a99.
181 Como já se registrou antes, o objetivo deste estudo não é expor as
diferentes questões debatidas pelos teóricos da argumentação, mas
apresentar uma proposta operacional de organização da técnica da
ponderação e de parâmetros que possam servir-lhe de balizamento. Por
125
Com a expressão
pretensão de universalidade
quer-s
e
significar, na verdade, duas necessidades distintas: uma re-
lacionada com a argumentação jurídica propriamente dita e
outra com a decisão final do intérprete. Em primeiro lugar,
magistrado, não pode valer-se de argumentos ou razões que
apenas façam sentido para um grupo, e não para a totalida-
de das pessoas' .
Imagine-se um exemplo: uma nova seita mística susten-
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espera-se do intérprete jurídico que ele empregue uma ar-
gumentação universal, assim entendida aquela aceitável de
forma geral dentro da sociedade e do sistema jurídico no
qual ela está inserida e racionalmente compreensível por
todos'
. Vale dizer: o aplicador do direito, sobretudo o
essa razão, apenas a exigência da universalidade será abordada de forma
específica.
182 A exigência pode ser associada ao conceito geral de razão
pública de
John Rawls. É bem de ver que ao tratar da razão
pública o autor
desenvolve diversas outras discussões, afora a mencionada no texto. Para
os fins deste estudo, basta registrar que, embora a propriedade do uso da
razão pública em outras relações dentro da sociedade possa ser discutida,
apenas essa espécie de razão deve ser admitida na fundamentação das
decisões judiciais. RAWLS, John. Liberalismo político
1992, pp. 204,
205 e 207: No todas las razones son razones públicas, pues existen las
razones no públicas de las Iglesias, universidades y de otras muchas
asociaciones en la sociedad civil. (...) La razón pública es característica de
un pueblo democrática: es la razón de sus ciudadanos, de aquellos que
comparten la calidad de ciudadanía en pie de igualdad. (...) Outra
característica de la razón pública es que sus limites no se aplican a nuestras
deliberaciones y reflexiones personales sobre lãs cuestiones políticas, o ai
razonamiento acerca de ellas por miembros de asociaciones tales como Ias
Iglesias y las universidades, todo lo cual forma parte importante dei
trasfondo cultural. Está claro que en esto pueden desempenar un papel
apropiado las consideraciones religiosas, filosóficas y morales de muchas
clases. Pero el ideal de la razón pública se aplica a los ciudadanos cuando
empreenden la defensa política de algún asunto en el foro público. (...) Se
aplica también, de manera especial, ai Poder Judicial y, sobre todo, a la
Suprema Corte, en una democracia constitucional donde existe la
revisión judicial en todas las instancias. . Para Rawls, tendo em conta sua
teoria da justiça o espaço da razão pública esta relacionado
principalmente com o reconhecimento de determinados direitos e
liberdades aos indivíduos em caráter prioritário e com a existência
e
ta que as pedras e minérios não devem ser retirados de seus
locais de origem na natureza, sob pena de todo o universo
desintegrar-se. Imagine-se, ainda, que uma companhia mi-
neradora ingressa em juízo disputando o direito de explora-
ção de uma mina de cobre com outra empresa. Por eviden-
te, o juiz não poderá adotar validamente, como um dos
fundamentos de sua decisão, qualquer que seja ela, a con-
cepção mística acerca dos minérios descrita acima. Por essa
mesma razão, um magistrado ateu não pode fundamentar
suas decisões a partir de sua própria concepção materialista
do universo, assim como um religioso não pode impor aos
jurisdicionados sua crença como razão de decidir. Em
meios apropriados para que todos possam desenvolver suas liberdades e
oportunidades básicas. V. RAWLS, John.
Liberalismo político 1992, p.
213 e ss.. Sobre o conceito correlato de
espaço público
e suas diferentes
concepções, v. TORRES, Ricardo Lobo. O
espaço público e os intérpretes
da Constituição
Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do
Rio de Janeiro n°50, 1997, pp. 92 a 110.
183 Essa preocupação é manifestada por vários autores. Para Perelman, a
racionalidade e objetividade do discurso dependem de os argumentos
serem aceitáveis e convincentes para a audiência que, no caso do jurista,
já não é a audiência universal própria da filosofia, mas aquela vinculada a
uma comunidade social específica (PERELMAN,
Logique jurídique.
Nouvelle rhétorique
1976). Na mesma linha, PECZENIK, Alelcsander.
On Law and Reason
1989, p. 189: What matters for rationality is not
actual consensus but acceptability within the relevant group of people,
that is, 'audience', colleag-ues, peers, etc. These persons accept p or at
least agree that p is acceptable according to the standards they accept; p
is acceptable to a person. ; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe.
Hermenêutica e argumentação
2001, p. 220 e ss.; e TORRE, Maximo La.
Theories of LegalArgumentation and Concepts of Law. AnApproximation
Ratio Juris, vol. 14, n° 4, 2002, p. 384 e ss..
126
27
suma: as pessoas têm ampla liberdade de convicção e práti-
ca religiosa e filosófica — o que é, afinal, um precioso bem
protegido por praticamente todas as Constituições con-
temporâneas ocidentais' —, mas razões exclusivas de gru-
A exigência de universalidade será mais sensível quan-
do se trate de selecionar fatos, apreciar sua relevância e
escolher os enunciados normativos em cada hipótese. A
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pos sociais parciais não podem fundamentar decisões que
devem justificar-se no espaço público'''.
Essa exigência será mais facilmente atendida quando o
intérprete esteja lidando com argumentos predominante-
mente jurídicos, derivados de enunciados normativos. E
isso por duas razões. Em primeiro lugar, porque se presume
que o conteúdo dos enunciados compartilhe de uma racio-
nalidade comum a todos . E, em segundo lugar, porque o
argumento em si da
imperatividade própria
aos dispositivos
,Y jurídicos é um elemento da racionalidade geral em um Es-
tado de direito, especialmente em se tratando de um siste-
ma romano-germânico. Dito de outra forma, as pessoas es-
tão de acordo com a regra geral de que os enunciados nor-
mativos são obrigatórios, e vinculantes e, por isso, devem
ser obedecidos.
184 Razões próprias dos diferentes grupos religiosos ou filosóficos serão
levadas em conta quando se trate exatamente de proteger a liberdade de
crença e convicção. A rigor, porém, o fundamento de qualquer decisão
nesse sentido será a própria liberdade de crença e convicção em si, e não
o conteúdo de cada crença em particular. E a liberdade de crença e
convicção é por certo um elemento comum à racionalidade geral, ao
menos nas democracias ocidentais. Veja-se sobre o tema SOUZA NETO,
Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa 2004
(ainda mimeografada).
185 É evidente que, como em todas as demais circunstâncias, o raciocínio
do intérprete será influenciado por suas concepções filosóficas,
ideológicas e religiosas. O controle do discurso, porém, é o meio
disponível de obter-se a neutralidade possível.
86 É certo que nos sistemas que admitem o controle de
constitucionaliclade das leis e atos do Poder Público essa presunção é
relativa.
128
seleção inicial dos enunciados pertinentes e dos fatos que
devem ser considerados são operações preliminares de di-
fícil controle, determinadas, no mais das vezes, pela forma
como o intérprete compreende a própria realidade, que
pode variar em função de sua pré-compreensão do tema .
A atribuição de relevância aos fatos, como já se viu, poderá
depender de avaliações não apenas jurídicas, mas também
— e principalmente — culturais, e por isso mesmo há o
risco de opiniões pessoais não justificáveis publicamente
dominarem o processo. Sobretudo nesses momentos, por-
tanto, o raciocínio desenvolvido pelo intérprete deve utili-
zar categorias comuns a todos e, nesse sentido, ser univer-
sal, de modo a ser compreendido racionalmente por todos
dentro de um determinado sistema jurídico .
187 V. GRAU, Eros Roberto.
Ensaio e discurso sobre a interpretação e
aplicação do direito
2002, p. 27: Como a interpretação abrange também
os fatos, o intérprete os reconforma, de modo que podemos dizer que o
direito institui a sua própria realidade. Dai a importância do relato dos
fatos (= narrativa dos fatos a serem considerados pelo intérprete) para a
interpretação. Pois é certo que os fatos não são, fora de seu relato (isto é,
fora do relato a que correspondem), o que são. O que desejo afirmar é a
fragilidade do compromisso entre o relato e seu objeto, entre o relato e o
relatado. Esse compromisso é, antes de mais nada, comprometido em
razão (1) de jamais descrevermos a realidade; o que descrevemos é o
nosso modo de ver a realidade. Além de não descrevermos a realidade,
porém o nosso modo de ver a realidade, (2a) essa mesma realidade
determina o nosso pensamento e, (2b) ao descrevermos a realidade, nossa
descrição da realidade será determinada (i) pela nossa pré-compreensão
dela (= da realidade) e (ii) pelo lugar que ocupamos ao descrever a
realidade (= nosso lugar no mundo e lugar desde o qual pensamos).
188 Isso não significa que todos deverão concordar com o intérprete, já
que outros argumentos igualmente universais podem ser relevantes e
129
O segundo sentido da pretensão de universalidad
en-
volve a decisão formulada pelo intérprete e pode ser des-
crita de forma simples. A solução a que chega o intérprete
deve poder ser generalizada para todas as outras situações
metida ao teste da universalização: é possível e adequado
aplicar a decisão a que se chegou a todos os casos similares?
Essa exigência decorre naturalmente do dever de isono-
mia aplicado à prestação da jurisdição', pelo qual todos
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semelhantes ou equiparáveis' e, para isso, deve ser sub-
aqueles que se encontrem em situação equivalente devem
receber a mesma resposta do Poder Judiciário'''. Além dis-
conduzir a conclusões diversas. Veja-se sobre o tema AARNIO, Aulis.
La
tesis de la única respuesta correcta y el principio regulativo dei
razonamiento jurídico,
Revista Doxa n° 8, 1990, pp. 23 a 38. Embora o
autor reconheça que muitas vezes é impossível apurar uma resposta única
correta, ele propõe a seguinte diretriz para a argumentação jurídica (p.
37): En• la decisión de un caso difícil se debe tratar de alcanzar una
solución tal y una justificación tal que la mayoría de los miembros
racionalmente pensantes de la comunidad jurídica pueda aceptar esa
solución y esa justificación. .
189 ALEXY, Robert.
Teoria da argumentação jurídica,
2001, pp. 186,
187 e 197: As regras que definem o discurso prático racional são de
diferentes tipos. (...) A validade do primeiro grupo de regras é urna
condição prévia da possibilidade de toda comunicação lingüística que dá
origem a qualquer questão sobre a verdade ou a correção: (1.1) Nenhum
orador pode se contradizer. (1.2) Todo orador apenas pode afirmar aquilo
em que crê. (1.3) Todo orador que aplique um predicado F a um objeto
tem de estar preparado para aplicar F a todo outro objeto que seja
semelhante a a
em todos os aspectos importantes. (1.4) Diferentes
oradores não podem usar a mesma expressão com diferentes significados.
(...) Quem fizer uma afirmação normativa que pressuponha uma regra
com certas conseqüências para a satisfação dos interesses de outras
pessoas deve ser capaz de aceitar essas conseqüências, mesmo na situação
hipotética em que esteja na situação dessas pessoas. ; e PECZENIK,
Aleksander. On
Lato and Reason, 1989, p. 191 e ss.. Em sentido diverso,
GUASTINI, Riccardo.
Distinguendo. Studi de teoria e metateoria dei
diria°,
1996, p. 145: L'operazione di bilanciamento dei principi si fonda
dunque su una peculiare interpretazione dei principi di cui si trattta,
noncué su un soggettivo giudizio di valore (un giudizio in termini di
'giustizia') dei giudice. Cosi facendo, ii giudice sovrappone una
valutazione sua propria alia valutazione dell'autorità normativa (in questo
caso, l'autorità costituente). Inoltre, ii conflitto non è
risoltostabilmente,
una volta per tutte, facendo senz'altro prevalere uno dei chie principi
confliggenti sull'altro (como accadrebbe invece se si adottasse ii criterio
'lex specialis'); ogni soluzione dei conflitto vale solo per il caso concreto,
e resta pertanto imprevedibile la soluzione deito stesso conflitto in casi
futuri.' A posição de Guastini parece decorrer da importância essencial
atribuída pelo autor às características de cada caso concreto para a solução
da ponderação. Embora essas características sejam realmente da maior
importância, isso não significa (e seria•irreal afirmá-lo) que inexistam
casos equiparáveis ou semelhantes, aos quais, por um imperativo de
isonomia, deva-se aplicar a mesma solução. Para uma crítica à posição de
Guastini, v. MORESO, José Juan. Conflictos entre principios
constitucionales .
In:
CARBONELL, Miguel (organizador).
Neoconstitucionalismo s),
2003, p. 100 e ss..
190 Sobre o tema, vejam-se, dentre muitos outros: DANTAS, San Tiago.
Igualdade perante a lei e due process of law .
In: Problemas de direito
público
1953; FAGUNDES, M. Seabra. O
principio constitucional da
igualdade perante a lei e o Poder Legislativo,
Revista dos Tribunais n° 235,
1995, p. 3; MELLO, Celso Antdnio Bandeira de.
Conteúdo jurídico do
princípio da igualdade,
1993; BARROSO, Luís Roberto. A igualdade
perante a lei .
In: Temas atuais do direito brasileiro,
1987 e, do mesmo
autor,
Interpretação e aplicação da Constituição,
2003, p. 230 e ss.;
CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O
princípio da isonomia e a
igualdade da mulher no direito constitucional,
1983. A construção do
sentido da cláusula constitucional
equality under the lato é
um dos mais
recorrentes temas do direito constitucional norte-americano. Vejam-se,
por todos, TRIBE, Laurence.
American Constitutitional Lato,
1988, e
NOWAK, ROTUNDA e YOUNG,
Constitutional Lato,
1986. Entre os
autores portugueses v. CANOTILHO J. J. Gomes.
Direito
constitucional e teoria da Constituição,
1998, p. 1160 e ss..
191 STF, Mandado de Injunção n° 58, Rel. MMCelso de Mello, Revista
de Direito Administrativo n° 183, p. 143: Esse princípio [o da isonomia]
— cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações
130
131
so, assim como se passa com a ampliação de uma imagem
qualquer, ao se formular como regra geral a solução apura-
da para um determinado caso, será mais fácil visualiza
b Busca da concordância prática
O objetivo final do processo de ponderação será sempre
alcançar a concordância prática dos enunciados em tensão,
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eventuais distorções ou vícios nela contidos' .
Vale dizer: além de empregar argumentos que possam
transitar livremente no espaço público, e que façam senti-
do para todos os indivíduos independentemente de suas
convicções individuais, a decisão proposta ao fim da ponde-
ração deve poder ser validamente universalizada para os
demais casos equiparáveis
1 9 3 . Embora essas diretrizes lógi-
cas não forneçam ao intérprete critérios materiais para
orientar suas decisões, elas funcionam como controles nes-
sa fase decisória.
do Poder Público — deve ser considerado, em sua precípua função de
obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA, 55/114), sob
duplo aspecto: a) o da igualdade na lei; b) o da igualdade perante a lei. A
igualdade na lei — que opera uma fase de generalidade puramente
abstrata — constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de
sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação,
responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei,
contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos
demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão
subordiná la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou
discriminatório .
192 V. ATIENZA, Manuel.
Las razones dei derecho. Sobre la justificación
de las decisiones judiciales,
Revista Isonomia n°1, 2004, p. 51 e ss..
193 PECZENIK, Aleksanàer.
The Basis of Legal Justification,
1983, p.
63: Whenever one reinterprets or ranks norms which are prima facie
colliding with each other, one should do so in a manner which one can
repeatedly use when confronted with similar collisions between other
norms. One requires especially strong reasons to justify a reinterpretation
or a priority order applied ad hoc that is, only in the case under
consideration. (grifos no original)
132
isto é, sua harmonização recíproca de modo que nenhum de-
les tenha sua incidência totalmente excluída na hipótese
1 9 4
Para isso, a concordância prática, na qualidade de diretriz
metodológica, pode valer-se de todo o arsenal hermenêutico
disponível: os elementos clássicos de interpretação, a eqüi-
dade, a proporcionalidade''', as técnicas modernas de inter-
194 A concordância prática é, por certo, uma das exigências da coerência
no processo de justificação jurídica. Sobre a noção de coerência, v.
PECZENIK, Aleksander. On
Law and Reason,
1989, p. 158 e ss.. Sobre
a concordância prática propriamente: HESSE, Konrad.
Elementos de
direito constitucional da República Federal da Alemanha,
1998, pp. 66 e
67: Em conexão estreita com isso está o princípio da
concordância
prática; bens jurídicos protegidos jurídico-constitucionalmente devem,
na resolução do problema, ser coordenados um ao outro de tal modo que
cada um deles ganhe realidade. Onde nascem colisões não deve, em
'ponderação de bens' precipitada ou até 'ponderação de valor abstrata,
um ser realizado à custa do outro. Antes, o principio da unidade da
Constituição põe a tarefa de uma otimização: a
ambos
os bens devem ser
traçados limites, para que ambos possam chegar a eficácia ótima. Os
traçamentos dos limites devem, por conseguinte, no respectivo caso
concreto ser proporcionais; eles não devem ir mais além do que é
necessário para produzir a concordância de ambos os bens jurídicos.
(grifo no original). O conceito de integridade, desenvolvido por Dworkin,
pode ser visualizado como uma espécie de coerência máxima:
DWORKIN, Ronald. O
império do direito,
1999, p. 294: O direito como
integridade, então, exige que um juiz ponha à prova sua interpretação de
qualquer parte da vasta rede de estruturas e decisões políticas de sua
comunidade, perguntando-se se ela poderia fazer parte de uma teoria
coerente que justificasse essa rede como um todo.
195 Note-se que embora concordância prática e proporcionalidade não
se confundam (como registra ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princípios,
2003, pp. 88 e 89 e 104 a 116), os três testes da proporcionalidade
(adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) podem
133
pretação constitucionall% etc. A questão, porém, nem sem-
pre é simples e merece alguns comentários.
Como descrito no início deste estudo, os conflitos no
r
mativos que exigem ponderação são aqueles que reflete
m
de elementos resulta freqüentemente em um conflito par-
cial, isto é, que não confronta de forma radical os enuncia-
dos a ponto de a realização de um importar a não incidência
do outro' . Explica-se melhor.
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tensões entre valores e/ou opções político-ideológica
s
e,
muito freqüentemente, os enunciados envolvidos nessas
disputas têm a estrutura de princípios' . Essa conjugação
ser úteis eventualmente na operação de tentar obter a concordância
prática. Com
efeito, ao verificar se uma norma possível é capaz de atender
aos efeitos pretendidos pelos diferentes enunciados em disputa, faz-se
um juízo de adequação. A eliminação de uma solução em favor de outra
pelo fato de a primeira restringir excessiva e desnecessariamente algum
dos enunciados envolve de forma evidente uma avaliação acerca da
necessidade das providências. A proporcionalidade em sentido estrito, a
rigor, permeia não apenas esta terceira etapa da ponderação, mas toda ela,
já que o propósito aqui é exatamente racionalizar o processo de atribuição
de pesos aos diferentes elementos em conflito.
196 Sobre algumas técnicas próprias da interpretação constitucional, v.
MENDES, Gilmar Ferreira.
Jurisdição constitucional,
1998; do mesmo
autor,
Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, 1998;
e
BARROSO, Luís Roberto.
Interpretação e aplicação da Constituição,
2003.
197
Quando um aparente conflito normativo envolve valores em um
nível mais abstrato há ainda a questão filosófica de delinear o sentido de
tais valores. O ponto é sublinhado por Ronald Dworkin ao tratar do
conflito entre liberdade e igualdade. Para o autor, é possível conciliar
esses dois valores uma vez que se tenha uma adequada compreensão
deles. V. DWORKIN, Ronald.
Do Values Conflict? A Hedgehog s
Approach,
Arizona Law Review n°43, 2001, pp. 255 e 256: We need
philosophical analysis to tell us what liberty and equality really are, not
what they are widely supposed to be. (...) Liberty and equality are not
natural kinds, like gold and dogs, but values, and we cannot understand a
value unless we understand why it is important that we respect or seek
out that value, unless we understand what is good about it. (...) We have
established something important: so far as the famous and celebrated
conflict between liberty and equality depends on adopting the flat
conceptions of these two virtues, it is a fake conflict.
Os princípios, e a questão será examinada mais detida-
mente adiante, descrevem em gerétIrn conjunto de efeitos
tugd
ue pretendem ver realizados net.
dos fatos, sendo
que cada um deles pode justificar con dto diversas. Nesse
contexto, em um caso concreto, a disputa e
t
lkis enunciados
que apresentem a estrutura de princípios dificihnente coni 77,,
fronta todos esses efeitos e condutas ao mesmo tei
srliao í /7
. 5 .
mais comum é que ocorram oposições parciais entre det
o
minados efeitos ou condutas, de modo que a colisão afeta,
na prática, apenas algumas manifestações de sentido dos
enunciados 9 9
. E para visualizar os aspectos realmente afe-
198
Um exemplo simples ilustra o ponto. Alegando que o rodízio de
veículos, imposto por lei estadual paulista, violava a liberdade de
locomoção, um indivíduo impetrou mandado de segurança pretendendo
ver reconhecido o direito de circular livremente com seu veiculo. A
ordem foi concedida em primeiro g rau, mas o Tribunal de Justiça
denegou a segurança sustentando, dentre outros fundamentos, que o
'rodízio' não acarreta a violação ao direito de locomoção, considerando
que o impetrante pode cumprir seus compromissos utilizando-se de
transporte coletivo, de táxis e mesmo de outro veículo, nos dias do
impedimento. (TJSP, AC 0378855/1-00, Rel. Des. Ribeiro Machado, j.
18.08.1998)
199 NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição,
2003, pp. 129 e 130: Com
idêntico sentido, é necessário, também, distinguir entre o direito
principal — aquele que a interpretação permite concluir ser o sentido
primário de garantia visado pela norma de direito fundamental,
independentemente da possibilidade da sua perspectivação estilizada em
cada uma das faculdades ou pretensões nele contidas — e os direitos
instrumentais, ou seja, os direitos que se destinam a proteger, concretizar,
tornar possível ou a garantir um exercício optimizado ou adequado do
direito principal, a afastar os perigos ou ameaças que sobre ele impendem
134
35
tados pelo conflito é necessário apurar as possibilidade
de
realização do efeito pretendido pelos diversos grupos de
enunciados normativos e o grau de restrição que cada uma
dessas possibilidades impõe sobre os diferentes enunciados
mente será possível, no mundo real, conceber uma fórmula
que restrinja igualmente todos os enunciados em disputa,
mesmo porque inexiste um instrumento de medida capaz
de verificar se há ou não igualdade de restrição em rela-
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envolvidos (como já se havia afirmado ao tratar da segunda
fase da ponderação).
É certo que apenas conceber essas diferentes possibili-
dades não soluciona o problema; cada uma delas produzirá
um grau de restrição diferenciado sobre os elementos em
disputa e de qualquer modo será preciso decidir qual delas
deve ser escolhida. De toda sorte, a idéia de concordância
prática já oferece uma diretriz geral para essa escolha, que
pode ser enunciada nos seguintes termos: o intérprete deve
escolher a solução que produz o melhor equilíbrio, impon-
do a menor quantidade de restrição à maior parte de ele-
mentos normativos em discussão.
Embora a diretriz que se acaba de enunciar seja útil em
muitos casos, ela enfrenta duas limitações principais que
não devem ser desconsideradas. Em primeiro lugar, dificil-
ou a reconstruir a situação anterior a uma lesão verificada no seu âmbito
de protecção ou, na impossibilidade dessa reconstrução, a compensar o
titular por danos sofridos. (...) Logo, na norma constitucional do art. 24°
('a vida humana é inviolável'), se, para além dos deveres jurídicos
objectivos que dela resultam para o Estado, considerarmos que há
também um 'direito à vida', então, o direito principal será o direito de
cada um a ter uma vida. Este direito principal é integrado por um
conjunto de faculdades ou pretensões como, por exemplo, a de não ver a
sua vida afectada, a de não ser privado da própria vida, 'a ter' uma vida em
condições mínimas de dignidade, a, eventualmente, dispor da própria
vida. Qualquer uma destas pretensões ou direitos especiais encontra-se,
relativamente ao direito principal, numa relação de especialidade, de
concretização ou de conformação, pelo que podemos dizer constituírem,
cada um deles, elementos integrantes do próprio direito principal, mas
que, simultaneamente, podem ser considerados autonomamente como
direitos fundamentais.
ção a todos os elementos normativos. Em segundo lugar, e
mais importante, alguns elementos normativos poderão ter
maior relevância em abstrato ou em concreto do que ou-
tros, e sua restrição, mesmo que pequena, seria ainda assim
inaceitável.
Retome-se o exemplo descrito no tópico anterior do
rapaz epiléptico que sofre uma crise no plenário do Senado
Federal. A imprensa pretende divulgar o ocorrido e surge o
conflito entre a intimidade e a liberdade de informação e
de imprensa. Cogitou-se, àquela altura, de várias possibili-
dades de solução do conflito: (i) a proibição de divulgação
da história; (ii) a divulgação da história sem menção ao
nome do rapaz ou uso de qualquer imagem que pudesse
identificá-lo; (iii) a divulgação contendo apenas a informa-
ção do nome da pessoa; e (iv) a divulgação com nome e
imagens. Aparentemente, as soluções que produzem o me-
lhor equilíbrio de restrições são as duas intermediárias, isto
é, aquela que autoriza que a história seja contada sem a
exposição do nome ou da imagem do rapaz ou apenas com
a referência ao nome.
Imagine-se agora o mesmo conflito em tese — intimi-
dade v rsus
liberdade de informação e de imprensa — mas
em outra circunstância. Trata-se de Ministro de Estado
qu
é encontrado inconsciente e alcoolizado em uma calçada e
precisa ser internado. As mesmas possibilidades de solução
descritas acima se apresentam aqui, mas parece evidente
que impedir o meio de comunicação de identificar a pessoa
em questão nesse caso — embora se trate igualmente de
intimidade — terá um peso totalmente diverso. As circuns-
137
136
tâncias do caso, qualificadas por outros fatores jurídicos,
atribuem maior relevância a alguns dos elementos em ten-
são. E há ainda hipóteses em que os enunciados em conflito
poderão ter uma relevância diferenciada, mesmo conside-
cia em nenhuma medida de um enunciado válido e perti-
nente em determinado caso, não afastado por qualquer das
exceções admitidas pela ordem jurídica, constitui uma
quebra de sistema e deve, tanto quanto possível, ser evita-
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rados em abstrato: ainda que se pudesse medir uniforme-
mente a restrição a diferentes enunciados normativos, res-
tringir a integridade física de um indivíduo é por certo di-
ferente de restringir o princípio federativo'''.
A observação que se acaba de fazer presta-se a demons-
trar que a diretriz geral puramente lógica da concordância
prática — pela qual a decisão deve recair sobre a solução
que produza a menor restrição possível sobre a maior parte
dos elementos em conflito — não pode ser aplicada isola-
damente, mas precisa ser combinada com parâmetros que
apresentem fundamento normativowl, tema da terceira
parte deste estudo.
Há ainda uma última nota a fazer sobre essa questão. A
despeito do que se acaba de afirmar acerca da concordância
prática, é necessário reconhecer que haverá hipóteses em
que, depois de percorridas as etapas anteriores da pondera-
ção, simplesmente não será possível obter qualquer harmo-
nização dos elementos em disputa: um afastará totalmente
o outro e será preciso escolher entre eles' . A não incidên-
200 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os
direitos fundamentais na
Constituição portuguesa de 1976,
1998, pp. 222 e 223: o principio da
concordância prática não prescreve propriamente a realização óptima de
cada um dos valores em jogo, em termos matemáticos. É apenas um
método e um processo de legitimação das soluções que impõe a
ponderação de todos os valores constitucionais aplicáveis. (...) O princípio
da concordância prática executa-se, portanto, através de um critério de
proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito.
201 HESSE, Konrad.
Elementos de direito constitucional da República
Federal da Alemanha, 1998, p. 67.
202 V. ATIENZA, Manuel.
I os razones dei derecho. Sobre la justificación
da. De toda sorte, quando se tratar de um resultado inevi-
tável, o processo de ponderação continuará a ser uma ferra-
menta importante de ordenação e fundamentação da esco-
lha entre as soluções propugnadas pelos enunciados confli-
tantes.
c Construção do núcleo essencial dos direitos funda-
mentais
Ainda nesta fase de decisão, uma última diretriz a ser
observada pelo intérprete diz respeito ao núcleo ou conteú-
do essencial dos direitos fundamentais. Como se sabe, a
idéia de núcleo ou conteúdo essencial foi introduzida em
várias constituições contemporâneas como uma forma de
proteger os direitos contra a ação do legislador e também,
de certa forma, do aplicador do direito
3
. Mesmo onde não
de las decisiones judiciales,
Revista Isonomia n°1, 2004, p. 67 e 68. Como
se verá adiante, isso acontece mais freqüentemente com regras.
203 Constituição Alemã, art. 19: 1. Quando, segundo esta Lei
Fundamental, um direito fundamental for restringido por lei ou em
virtude de lei, essa lei será aplicada de maneira geral e não apenas para um
caso particular. Além disso, a lei deverá especificar o direito fundamental
afetado e o artigo que o prevê. 2. Em hipótese nenhuma um direito
fundamental poderá ser afetado em sua essência. 3. Os direitos
fundamentais se aplicarão igualmente as pessoas jurídicas nacionais, na
medida em que a natureza desses direitos o permitir. (...)
Constituição Portuguesa, art. 18: 3. As leis restritivas de direitos,
liberdades e garantias têm de revestir caracter geral e abstracto e não
podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do
conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
138
39
há uma previsão formal nesse sentido, como no Brasil, en-
tende-se que os direitos fundamentais não podem ser res-
tringidos (pelo legislador ou pelo juiz) a ponto de se torna-
rem invólucros vazios de conteúdo, sobretudo em sistemas
Paralelamente a essa garantia ao núcleo, admite-se cor-
rentemente na prática jurídica que os direitos possam so-
frer conformações
2 5
(mesmo porque o sentido e os contor-
nos precisos dos direitos não decorrem automaticamente
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onde desfrutem do
status
de cláusulas pétreas
2 4
.
Constituição Espanhola, art. 53: 1. Los derechos y libertades
reconocidos en el Capítulo segundo dei presente Titulo vinculan a todos
los poderes públicos. Sólo por ley, que en todo caso deberá respetar su
contenido esencial, podrá regularse el ejercicio de tales derechos y
libertades que se tutelarán de acuerdo con lo previsto en el artículo 161,
I , a).
Declaração de Direitos da África do Sul (Bill of Rights), art. 36: (1)
The rights in the Bill of Rights may be limited only in terms of law of
general application to the extent that the limitation is reasonable and
justifiable in an open and democratic society based on human dignity,
equality and freedom, talcing into account all relevant factors, including
the nature of the right; the importance of the purpose of the limitation
;
the nature and extent of the limitation; the relation between the
limitation and its purpose; and less restrictive means to achieve the
purpose. (2) Except as provided in subsection (1) or in any other
provision of the Constitution, no law may limit any right entrenched in
the Bill of Rights.
Constituição do Timor Leste, art. 24: 1. A restrição dos direitos,
liberdades e garantias só pode fazer-se por lei, para salvaguardar outros
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e nos casos
expressamente previstos na Constituição. 2. As leis restritivas dos
direitos, liberdades e garantias têm, necessariamente, carácter geral e
abstracto, não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo
essencial dos dispositivos constitucionais e não podem ter efeito
retroactivo.
Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, art. 52: 1:
'Any limitation on the exercise of the rights and freedoms recognised by
this Charter must be provided for by law and respect the essence of those
rights and freedoms. Subject to the principie of proportionality,
limitations mar be made only if they are necessary and genuinely meet
objectives of general interest recognised by the Union or the need to
protect the rights and freedoms of others.
204 Como é o caso da Constituição brasileira de 1988, art. 60, § 4°, IV.
140
205 Ainda que com fundamento em argumentações variadas, como já se
referiu ao tratar das teorias sobre os limtes imanentes e o
conceptualismo. Para parte dos autores que tratam do assunto, ao
regulamentar o exercício do direito o legislador poderá explicitar limites
imanentes, independentemente de expressa previsão constitucional. V.
sobre o assunto STEINMETZ, Wilson Antônio.
Coisãodedretos
fundamentaiseprincpoda proporconalidade
2001
p 60 e ss ;
NOVAIS, Jorge Reis.
Asrestriçõesaosdretosfundamentaisnão
expressamenteautorizadaspea Constitução
2003; e SERNA, Pedro e
TOLLER, Fernando.
La interpretacón constituconal delos derechos
fundamentaes— Una aternativa a losconflicosdederechos
2000.
206 Como já advertiam, com parcela de razão, os conceptualistas, para
quem o conceito do direito não se confunde com o texto que o prevê, mas
depende de uma elaboração teórica que leve em conta, dentre outros
elementos, a formação histórica do direito, seus fins, os demais elementos
do sistema jurídico etc. Veja-se mais sobre esse assunto
no Capítulo III.
207 Como já se expôs no Capítulo III, será bastante difícil distinguir,
antes do fim do processo herinenêutico, o que é conformação e o que é
restrição, embora alguns autores considerem a distinção relevante. V.
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os
dretosfundamentaisna
Constituçãoportuguesa de1976 1998, p. 230 e ss..
141
do texto que os preveo
até mesmo algum grau de restri-
ção, tendo em conta conflitos específicos envolvendo direi-
tos entre si ou direitos e enunciados que consagram fins
coletivos
2 7
. Da conjugação desses dois elementos tem-se a
seguinte conclusão: não se pode admitir que conformações
ou restrições possam chegar a esvaziar o sentido essencial
dos direitos, que, afinal, formam o conjunto normativo de
maior fundamentalidade, tanto axiológica, quanto norma-
tiva, nos sistemas jurídicos contemporâneos. Nesse senti-
do, o núcleo deve funcionar como um limite último de
sentido, invulnerável, que sempre deverá ser respeitado.
Essa, portanto, é a terceira diretriz a ser observada pelo
intérprete: a decisão que vier a ser apurada no processo de
ponderação não poderá violar o núcleo dos direitos funda-
mentais. Ou, em outras palavras, as prerrogativas contidas
pectivamente, teorias do
núceoduro
e teorias do núceo
flexíve.
As teorias absolutas ou do
núceoduro
sustentam duas
concepções principais acerca do conteúdo essencial dos di-
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no núcleo ou consideradas essenciais ao direito devem ser,
em qualquer caso, respeitada0
. Mas a questão realmente
importante aqui é a seguinte: o que é, afinal, o núcleo de
cada direito fundamental? Onde encontrar a descrição des-
sas prerrogativas essenciais e desses contornos?
Não cabe aqui examinar as diferentes discussões teóri-
cas que o tema tem suscitado na doutrina estrangeira e
nacional. Basta identificar uma distinção corrente entre
dois grupos de concepções sobre o assunto 9
: as teorias
absolutas e as teorias relativas, denominadas também, res-
208 Trabalha-se aqui com a idéia de núcleo como garantia da dimensão
subjetiva dos direitos, isto é, como uma proteção do indivíduo na
qualidade de titular desses direitos, e não como mecanismo de
preservação do enunciado objetivo e abstrato, pelo qual seu papel seria
apenas o de proteger o enunciado de modificações em sua redação. Sobre
esta distinção, v. CANOTILHO, J. J. Gomes.
Diretoconstituconal e
teoria da Constituição
1998, p. 430 e ss.; e ANDRADE, José Carlos
Vieira de.
Osdretosfundamentaisna Constituçãoportuguesa de1976
1998, p. 230 e ss..
209 É certo que cada autor, dentro dos grupos identificados, apresenta
sua concepção particular do tema, mas não há necessidade de abordar
aqui as especificidades das diferentes teorias. V. sobre o tema GAVARA
DE CARA, Juan Carlos.
Derechos fundamentales ydesarrololegslativo
La garantia de contendoesencal delosderechosfundamentalesenla Ley
Fundamental deBonn
1994; LOPES, Ana Maria D Ávila. Os
dretos
fundamentaiscomolimtesaopoder delegslar
2001; BARROS, Suzana
de Toledo. O
princpod proporcon lid deeocontroede
constituconalidadedas les restritivas dedretos fundamentais
1996; e
MELO, Sandro Nahmias.
A garantia doconteúdoessencal dos dretos
fundamentais
Revista de Direito Constitucional e Internacional n° 43.
pp. 82 a97, 2003.
142
reitos, ambas intimamente relacionadas. Para essas teorias,
o núcleo de cada direito corresponde a um conteúdo nor-
mativo que não pode sofrer restrição ou ser relativizado em
nenhuma circunstância e, por isso mesmo, esse conteúdo
deve ser delimitado em abstrato para cada direito. De acor-
do com essa concepção, portanto, antes mesmo de iniciar
um processo de ponderação, o intérprete já saberá que
prerrogativas dos direitos envolvidos não podem ser res-
tringidas, de modo que há um limite objetivo e pré-estabe-
lecido para sua atuação. Os críticos apontam duas grandes
objeções a essa forma de conceber o núcleo dos direitos.
Em primeiro lugar, afirmam que esse núcleo abstrato não
existe pronto em lugar algum, de modo que é uma ficção
imaginar que o intérprete tem como conhecê-lo antecipa-
damente. Ademais, a idéia do núcleo duro acabaria por
desvalorizar os elementos do direito localizados fora do nú-
cleo.
As chamadas teorias relativas, por sua vez, sustentam
que o conteúdo essencial de um direito só pode ser visuali-
zado diante do caso concreto e que, portanto, apenas de-
pois da ponderação será possível identificar o que é afinal o
núcleo. Não se pode falar, assim, de um conteúdo abstrato
que não possa sofrer restrições; esse conteúdo será identi-
ficado caso a caso, em função das circunstâncias da hipóte-
se examinada. A crítica central às teorias relativas ou do
núcleo flexível é a de que elas destroem a proteção dos
direitos que a idéia de núcleo deveria assegurar, na medida
em que ela acaba por se confundir e ser dissolvida na pró-
pria noção de ponderação. Se o conteúdo essencial deveria
143
funcionar como um limite à ponderação, como ele poderá
ser um resultado dela?
Diante do quadro que se acaba de descrever, permane-
ce a questão: qual diretriz deve ser seguida afinal pelo in-
como se o sentido dos conceitos jurídicos não variasse em
função da compreensão histórica dos fenômenos sociais.
O que se acaba de registrar, porém, não significa que a
impossibilidade de se atingir o ideal das teorias absolutas
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térprete na fase decisória da ponderação? De acordo com
as teorias relativas, não haverá diretriz alguma, já que ape-
nas após a ponderação é que se descobrirá o núcleo dos
direitos fundamentais. Do ponto de vista operacional, essas
teorias reduzem a pouco mais que nada o conceito de nú-
cleo de direito ou conteúdo essencial, uma vez que ele já
não serve de qualquer tipo de balizamento ou limite para o
intérprete no momento decisório.
As teorias absolutas, por sua vez, fornecem uma dire-
triz teoricamente consistente, mas a verdade é que não
existe pronto, à disposição do aplicador, um manual com a
descrição do núcleo de cada direito fundamental. Mais que
isso, parece realmente impossível (e mesmo inconvenien-
te) que se possa delinear esse núcleo de forma absoluta —
dura — e permanente, como se fosse humanamente viá-
vel formular um juízo
ali things considered
2
capaz de
antever e considerar todos os elementos relevantes, ou
210 PECZENIK, Alelcsander. On
LawandReason,
1989, pp. 76 e 77: A
practical statement is definitive only if by uttering it one declares that one
no longer is prepared to pay attention to reasons which justify the
contrary conclusion. Our culture demands that definitive moral
statements are all-things-considered moral statements. In order to state
this demand more precisely, one needs the followng distinction. A
practical statement has the all-things-considered quality sensu stricto if
and only if it has support of considerations regarding (a) ali morally
relevant circumstances, that is, ali facts relevara in practical reasoning
about ethics, utilitarian moralily, moral principies, rights and duties,
virtues, justice etc., and (b) ali criteria of coherent reasoning. No human
being has resources sufficient to formulate all-things-considered
statements sensu stricto. (grifos no original)
144
condene o intérprete e os jurisdicionados às teorias flexí-
veis ou relativas. E perfeitamente possível e desejável, por
meio da reflexão abstrata e/ou do estudo e tabulação dos
precedentes judiciais, que a doutrina se ocupe de construir
os sentidos próprios de cada direito, propondo parâmetros
ou
standards
específicos capazes de identificar o que deve
ser considerado como prerrogativa essencial de cada direi-
to, o que pode sofrer restrição, em que circunstâncias isso
pode acontecer, dentre outros elementos necessários para
a compreensão mais precisa dos direitos
. Esse esforço
hermenêutico contínuo não produzirá um núcleo duro nem
permanente ou não-histórico, mas fornecerá um núcleo su-
ficientemente consistente para funcionar como limite à
atuação do intérprete e proteger em alguma medida os di-
reitos fundamentais de ações arbitrárias e abusivas. O pró-
211 Em decisão proferida em junho de 1995 a Corte Constitucional da
República Sul Africana
TheStatev. T. MakwanyaneandM Mchunu
—
Case n° CCT/ 3/94) considerou a pena de morte incompatível com a
dignidade humana e especialmente com o direito à não submissão a penas
desumanas e cruéis (a Constituição Sul Africana definitiva entrou em
vigor apenas em 07.02.97, mas desde 27.04.94 vigia uma Constituição
Interina . Na ausência de um conjunto próprio de decisões capaz de servir
de parâmetro, uma vez que o Tribunal Constitucional fora instalado
apenas no fim de 1994, a Corte valeu-se do que identificou como
jurisprudência comparada dos direitos fundamentais , empregando para
isso os critérios construídos pela jurisprudência do Canadá dos Estados
Unidos, da Alemanha, da índia e da Corte Européia dos Direitos
Humanos sobre o assunto. V. HOFFMAN, Florian.
Jurisdição processoe
argumentaçãona orte onstituconal da
África
doSu nocaso
paradigma
Leadingcase) TheStatev. T. MakwanyaneandM. Mchunu
1995) [Proibçãoda pena demorte] , 1999.
145
ximo capítulo e o último retomam o tema da construção de
standards
específicos para os diversos enunciados normati-
vos, sobretudo para aqueles que prevêem direitos, incluin-
do a delimitação de seu núcleo essencial.
ponderativo acontecendo em um outro ambiente. Na ver-
dade, mais que possível, é desejável que a ponderação se
desenvolva também antes do surgimento do caso concreto.
Na medida em que a ponderação vai sendo forjada em abs-
trato ou preventivamente, por meio da discussão de casos
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Em suma: após identificar os enunciados normativos
em tensão e as diferentes normas que eles podem justificar
primeira fase) e selecionar os aspectos fáticos relevantes
segunda fase), o intérprete chega à etapa decisória da po
deração. Neste momento, o aplicador precisará de parâme-
tros propriamente jurídicos para orientar suas escolhas
que, no entanto, não são fornecidos pela técnica da ponde-
ração em si. De toda sorte, antes mesmo desses parâme-
tros, três diretrizes devem ser consideradas pelo intérpre-
te: i) qualquer decisão deve poder ser generalizada para
casos equiparáveis pretensão de universalidade), assim
como a argumentação empreendida deve utilizar uma ra-
cionalidade comum a todos; ii) sempre que possível o in-
térprete deve produzir a concordância prática dos enuncia-
dos em disputa; e iii) a decisão a ser produzida deve res-
peitar o núcleo dos direitos, ainda que um núcleo apenas
consistente, e não duro.
VI. Ponderação preventiva ou abstrata e real ou
concreta
Os tópicos anteriores foram ocupados com o exame de
algumas críticas à ponderação e com a proposta de uma
ordenação para o uso dessa técnica. Antes de prosseguir,
contudo, é importante fazer um registro. Como já se obser-
vou, tanto críticos como defensores da técnica discutem o
tema tendo em mente a chamada ponderação
ad hoc
isto
é, aquela feita pelo juiz diante de um caso concreto que ele
deverá decidir. E possível, no entanto, visualizar o processo
hipotéticos ou passados, o juiz terá balizas pré-fixadas
quando se defrontar com casos reais. Esse conjunto de
idéias conduz à formulação de dois momentos para a pon-
deração ou de duas modalidades de processo ponderativo,
que podem ser denominadas ponderação preventiva ou
abstrata e ponderação real ou concreta. Explica-se melhor.
A imagem que em geral está associada à idéia de ponde-
ração no meio jurídico é a do magistrado posto diante de
um complexo caso concreto para o qual não há solução
pronta no ordenamento ou, pior que isso, para o qual o
ordenamento sinaliza com soluções contraditórias diante
das quais caberá a ele decidir o que fazer: ninguém pode
ajudá-lo e não há a quem recorrer.
O cenário que se acaba de descrever corresponde, sem
dúvida, a um momento da técnica da ponderação, mas ape-
nas a um, ou a uma das formas possíveis de sua manifesta-
ção. Tanto assim que é possível imaginar uma outra cena.
Um grupo de acadêmicos se encontra para debater a tensão
potencial que existe entre,
e.g.
a liberdade de reunião e
manifestação pública
, de um lado, e bens coletivos rela-
cionados com a tranqüilidade, a saúde e a livre circulação
das demais pessoas, de outro. No encontro, diversos ques-
tionamentos podem ser formulados na tentativa de demar-
car o conteúdo específico de cada enunciado e as fronteiras
de convivência entre eles. A liberdade de reunião e mani-
festação pública exige que essas reuniões possam ser feitas
em qualquer local da cidade inclusive,
e.g.
próximo a hos-
212 Consagrada, no Brasil, no art. 5°, XVI, da Constituição.
146
47
O exercício descrito acima é também uma forma de
ponderação; apenas se trata de uma ponderação em abstra-
to ou preventiva. Na verdade, muitos conflitos normativos
de natureza constitucional podem ser antecipados com o
auxílio de situações hipotéticas: livre iniciativa
versus
pro-
pitais)? A autoridade pública pode definir que as
manifestações públicas sejam feitas apenas em determina-
dos locais? A autoridade pública pode exigir que o evento
se realize em local amplo e onde haja fácil transporte, mas
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teção do consumidor e proteção do meio ambiente; liber-
dade de informação e de imprensa
versus
intimidade, hon-
ra e vida privada, dentre muitos outros. Da mesma forma,
a observação e a contínua experiência com a interpretação
e aplicação desses dispositivos produz uma espécie de ban-
co de dados formado por situações típicas e elementos de
fato relevantes, em função dos quais é possível, mesmo em
tese, isto é, independentemente de um caso concreto espe-
cífico, proceder a um raciocínio de natureza ponderativa
para propor parâmetros. Um exemplo ajuda a esclarecer a
idéia.
30.09.1960 (Presidente da Corte o Mia Nelson Hungria), considerou
válido ato de Secretaria de Segurança estadual que fixou locais onde
poderiam se realizar comícios eleitorais, uma vez que a finalidade do ato
seria a preservação do interesse público com a manutenção das condições
de trânsito da cidade. O mesmo TSE, na Resolução n° 14526/1994,
definiu que a realização de comícios não está restrita ao horário de
propaganda eleitoral disciplinado pelo Código Eleitoral, devendo os
partidos e coligações observarem apenas a designação dos locais
adequados e a comunicação às autoridades policiais com no mínimo 24
horas de antecedência, nos termos da Lei n° 1207/1950. Autoridades de
trânsito portuguesas determinaram a manifestante, que obstruía o
trânsito em determinada ponte da cidade comum veículo, que retirasse o
veículo do local, mas não foram obedecidos. O Tribunal de Relação de
Lisboa entendeu que houve crime de desobediência na hipótese, alegando
que, embora previstas na Constituição, as liberdades de manifestação e
reunião não podem colidir com outros direitos fundamentais dos
cidadãos, dentre os quais o de livre circulação (número do documento
RL199610160007333, Rel. Diniz Alves, j. 16.10.1996). O Tribunal
Constitucional da Espanha também já examinou hipóteses semelhantes
(STC 59/1990 e 66/1995).
149
longe das regiões centrais da cidade? As manifestações pú-
blicas podem realizar-se em qualquer horário? A autorida-
de pública pode impor horários específicos para sua realiza-
ção? A natureza da manifestação — se se trata de uma ma-
nifestação de natureza política, artística, comercial ou de
qualquer outro tipo — terá alguma influência no nível
maior ou menor de restrição que se poderá admitir sobre a
liberdade em questão?
O debate acadêmico pode ser enriquecido se às ques-
tões descritas acima forem agregadas informações acerca
dos pronunciamentos jurisprudenciais na matéria. O Su-
premo Tribunal Federal, e.g.
no julgamento da ADIn no
1969-4/DF (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 05.05.2004) sus-
pendeu, em sede cautelar, decreto autônomo que proibia a
utilização de carros ou aparelhagem de som em manifesta-
ções realizadas em determinadas áreas do Distrito Federal
(Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios e Praça
do Buriti). O voto do Relator, embora admitindo que o
direito de manifestação não tem viés absoluto, considerou
que a restrição pretendida esvaziaria a garantia constitucio-
nal, afetando a manifestação do pensamento e as conquis-
tas democráticas. O Plenário do Tribunal discutiu ampla-
mente questões como limitações geográficas, uso ou não de
aparelhos de amplificação de som, controle prévio ou ape-
nas repressivo de abusos, a cargo de autoridades públicas,
dentre outros aspectos .
213 Há outras decisões sobre o assunto na jurisprudência brasileira e
estrangeira que podem enriquecer ainda mais o debate. Seguem alguns
exemplos. O Tribunal Superior Eleitoral, em decisão proferida em
148
Suponha-se o conflito entre liberdade de informaçã
o
e
de imprensa v rsus
intimidade, honra e vida privada. É pos-
sível examinar alguns elementos freqüentement
encon-
trados nesse ambiente e formular questões diversas: (i)
quem se encontra em local público está em sua esfera pes-
ao aplicador pela ponderação em abstrato acabam por
transformar muitos conflitos normativos, que seriam casos
difíceis, em fáceis, simplesmente porque já há um modelo
de solução que lhes é aplicável. Nem sempre, todavia, os
parâmetros concebidos em abstrato serão capazes de solu-
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soal de intimidade? (ii) Atos considerados criminosos per-
tencem à esfera de privacidade ou podem/devem ser de-
nunciados à opinião pública? (iii) A informação verdadeira
e obtida de forma licita pode ser proibida? (iv) A proteção
à vida privada de titulares de cargos eletivos e artistas é
menor que a assegurada a cidadãos comuns?
A partir das respostas sugeridas a essas questões, pode-
se então propor um conjunto de soluções ponderativas pré-
fabricadas,
e.g.:
se a informação é verdadeira, foi obtida de
forma licita, envolve a prática de crime e o indivíduo é
titular de mandato eletivo, não se poderá impedir a divul-
gação dos fatos invocando proteção à intimidade'''. Como
é fácil perceber, esses modelos de solução foram construí-
dos por meio de uma ponderação feita em abstrato ou pre-
ventivamente e servem de parâmetros para o aplicador no
momento em que este se debruçar sobre casos concretos.
Note-se, porém, um ponto importante. Uma vez que as
circunstâncias fáticas imaginadas pela doutrina se reprodu-
zam no caso real, ou se repitam hipóteses já verificadas
anteriormente, o juiz terá à sua disposição modelos de so-
lução pré-prontosm. Na verdade, os subsídios oferecidos
214 Sobre o tema, v. BARROSO, Luís Roberto.
Colisão entre liberdade
de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação.
Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de
Imprensa,
Revista de Direito Administrativo n° 235, 2004, pp. 1 a 36.
215 SANCHIS, Luis Prieto. Neoconstitucionalismo y ponderación
judicial .
In
CARBONELL, Miguel (organizador).
Neoconstitucionalimo s),
2003, pp. 145 e 146: La ponderación se
configura, pues, como un paso intermedio entre /a declaraci6n de
cionar adequadamente um conflito normativo concreto. É
perfeitamente possível imaginar situações em relação às
quais modelos elaborados em abstrato não se adaptam, seja
porque nenhuma das formulações em tese existentes é per-
tinente, seja porque detalhes fáticos que se apresentam
agora como importantes não foram cogitados antes, seja
por outra razão qualquer que não se é capaz de antecipar'''.
Nesses casos, para além da aplicação dos parâmetros,
será necessária uma ponderação específica, particular para
aquela hipótese
m
: um modelo de alta costura, cosido sob
relevancia de dos principios en conflicto para regular
prima facie
un cierto
caso y la construcción de una regia para regular
en definitiva
ese caso;
regia que, por cierto, merced ai precedente, puede generalizarse y
terminar por hacer innecesaria la ponderación en los casos centrales o
reiterados. ; e SCACCIA, Gino. II
bilanciamento degli interessi coMe
tecnica di controlo costituzionale,
Giurisprudenza constituzionale, vol.
VI, 1998, p. 3966 e ss..
216 A verdade é que, algumas vezes, a complexidade de determinados
conflitos concretos exigirá um exame particular. V. BUCHANAN, G.
Sidney.
Accommodation of Religion in the Public Schools: a Plea for
Careful Balancing of Competing Constitutional Values,
University of
California Law Review, vol. 28, 1981, p. 1047: Finally, as applied in the
public school setting, a 'weighing of values' approach better enables
courts to disentangle 'the complexity of strands' in the accommodation
inquiry, thereby avoiding, in this area of constitutional law, 'the perils
that are latent in 'a jurisprudence' of absolutes.
217 STEINMETZ, Wilson Antônio.
Colisão de direitos fundamentais e
princípio da proporcionalidade,
2001, p. 143: Esses pressupostos
indicam que a ponderação de bens deve ser uma ponderação concreta de
bens. A norma de decisão não resulta de uma ponderação abstrata de
bens, consistente na comparação dos direitos ou bens com base em uma
150
51
medida, e não um modelo prêt-a-porter.
Trata-se do qu
e
já
se identificou aqui como ponderação em concreto ou real.
Não será mais o caso de uma simples ponderação
ad hoc
na
qual o juiz conta apenas com o seu próprio bom senso para
solucionar o conflito; ao contrário, haverá um conjunto im-
são levadas a cabo a partir de informações padronizadas
que em um caso real poderão se apresentar de maneira
diversa, cabendo ao aplicador proceder aos ajustes necessá-
rios
n
Basta retomar um exemplo já descrito para perceber a
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portante de
standards
públicos a sua disposição e, mais que
isso, caberá a ele justificar de forma específica por que os
standards existentes não são adequados para aquele caso
concreto ou merecem algum tipo de adaptação.
Aqui será útil resgatar a distinção entre
norma e
enun-
ciado normativo
observada na primeira parte do estudo.
Na verdade, a distinção ajuda a compreender a convivência
da ponderação em abstrato ou preventiva com a desenvol-
vida diante dos casos concretos. Em primeiro lugar, ainda
no âmbito da ponderação em abstrato, é relevante perceber
que a norma aplicável a um caso paradigmático ou a uma
situação-tipo constitui fenômeno diverso do enunciado
normativo em si. Por outro lado, já considerando a ponde-
ração em concreto ou real, se as normas concebidas em tese
pela doutrina e pela jurisprudência a partir dos enunciados
existentes e/ou do sistema como um todo não forem capa-
zes de solucionar o conflito verificado no caso concreto,
este, com suas sutilezas e particularidades, vai fornecer ao
aplicador subsídios para uma nova regulagem do processo
ponderativo e, conseqüentemente, para a construção da
norma adequada a ele. Lembre-se que na ponderação em
abstrato a atribuição de pesos e todas as demais avaliações
hierarquia ou em uma escala prévia. Contudo, isso não impede que o
operador do Direito, previamente à aplicação da ponderação concreta de
bens, possa fazer uma ponderação abstrata apenas com finalidades
heurísticas, como por exemplo, para verificar se há uma colisão real
(autêntica) ou se há uma carga argumentativa a favor de um dos direitos
em colisão.
relevância das circunstâncias do caso para a ponderação.
Imagine-se um esforço doutrinário para construir, em abs-
trato, parâmetros capazes de balizar conflitos que se verifi-
quem entre o direito à integridade física e o direito à honra.
A primeira dificuldade, facilmente percebida, reside na
circunstância de esse tipo de conflito não ser freqüente e,
portanto, inexistirem casos típicos nos quais ele possa ser
observado. De toda sorte, é possível cogitar de uma hipóte-
se: um indivíduo pretende agredir fisicamente outro pelo
fato de este haver ofendido sua honra de forma que julga
grave. Em um exame preliminar, parece evidente que o
direito à integridade física deverá prevalecer sobre a forma
(agressão física) por meio da qual o ofendido pretende ob-
ter a reparação pelo ataque sofrido. No caso Glória Trevi,
referido acima, porém, a solução foi exatamente a inversa.
Como registrado, no caso Glória Trevi, o próprio Su-
premo Tribunal Federal destacou que as circunstâncias
particulares do caso — interferência diminuta na integrida-
de física da mãe e do menor (o material orgânico foi retira-
do da placenta) e a repercussão das acusações perpetradas
pela mãe aos servidores públicos — tiveram papel decisivo
no peso atribuído a cada uma das disposições constitucio-
nais em confronto. Diante de outras circunstâncias,
e.g.
se
a acusação de estupro tivesse sido conhecida por pequeno
218 PECZENIK, Aleksander. On
Law and Reasan
1989, p. 251: The
all-things-considered law is an idealisation. In practice, nobody can
consider ali things. But the more the interpreted law approximates the
all-things-considered law, the better the interpretation.
152
153
grupo de pessoas ou se fosse necessário efetivamente co-
lher material orgânico do recém nascido, talvez a decisão
do STF — isto é, a norma própria ao caso concreto -- fosse
diferente.
Uma vez que se proceda a uma ponderação em concre-
partir das conclusões dessa ponderação preventiva, é possí-
vel formular parâmetros específicos para orientação do
aplicador quando ele esteja diante dos casos concretos.
Evidentemente, o aplicador estará livre para refazer a
ponderação, considerando agora os elementos da hipótese
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to, a solução adotada no caso poderá aprimorar o modelo
geral formulado pela ponderação em abstrato. Isto é, o mo-
delo geral poderá incorporar os novos dados fáticos que se
verificaram no caso concreto, assim como a solução a que
se chegou em função deles, de tal modo que, caso eles se
reproduzam em situação análoga, não será mais necessário
recorrer à ponderação no caso concreto: a ponderação em
abstrato já será capaz de fornecer o modelo adequado. Por
natural, para que a ponderação em concreto possa alimen-
tar a ponderação em abstrato de informações é preciso que
as soluções adotadas em cada caso possam ser universaliza-
das'''. O tema da pretensão de universalidade das decisões
já foi examinado no tópico anterior.
Em suma: há, na realidade, dois níveis possíveis de aná-
hse quando se trata de ponderação. É possível, primeira-
mente, percorrer em abstrato ou preventivamente todas as
etapas do processo descrito no capítulo anterior, isto é,
considerar apenas situações-tipo de conflito (imaginadas
e/ou colhidas da experiência) tanto no que diz respeito aos
enunciados envolvidos, como no que toca aos aspectos de
fato. Tudo isso sem que se esteja diante de um caso real. A
219 NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição
2003, p. 945: O modelo
da ponderação de bens, quando os resultados obtidos não se orientarem à
formulação de regras generalizáveis ou a metodologia não for estruturada
segundo
standards
de controlo constringentes, é totalmente imprevisível
(...) e acentua o subjectivismo e discricionaridade do exercício da justiça
constitucional.
real, toda vez que esses parâmetros não se mostrarem per-
feitamente adequados. De toda sorte, caberá ao intérprete
o ônus argumentativo de demonstrar por que o caso por ele
examinado é substancialmente distinto das situações-tipo
empregadas na ponderação preventiva. Isto é: o juiz deverá
mostrar por que os parâmetros por ela sugeridos — cuja
legitimidade decorre de haverem sido concebidos e discu-
tidos publicamente e de serem aceitos racionalmente de
forma geral — não devem ser aplicados à hipótese. O obje-
tivo deste tópico era apenas identificar o fenômeno da pon-
deração preventiva ou abstrata, destacar suas potencialida-
des e distingui-lo da ponderação real ou concreta. O tema
específico dos parâmetros é objeto dos próximos capítulos.
155
154
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PARTE III
Nos tópicos anteriores procurou-se conferir melhor or-
dem metodológica à ponderação na qualidade de técnica
hermenêutica. Por isso se tratou das etapas que o intérpre-
te deve percorrer, dos cuidados a tomar e dos elementos a
considerar. Nada obstante isso, e como também já se refe-
riu, a ponderação continua a ser uma técnica vazia de senti-
do material, apenas um instrumento de organização do
pensamento e do processo decisório, o que, embora seja
importante e irti1
, não é suficiente. O objetivo desta ter-
ceira parte do estudo é formular parâmetros juridicamente
220 ALEXY, Robert.
Teoria da argumentaçãojurídca
2001, p. 224:
No entanto, a exigência de justificação interna não é vã. No curso da
justificação interna se torna claro quais premissas têm de ser
externamente justificadas. Pressuposições que caso contrário
permaneceriam ocultas têm de ser explicitamente formuladas. Isso
aumenta a possibilidade de reconhecer erros e de criticá-los. Finalmente,
articular regras universais facilita a consistência da tomada de decisão e,
assim, contribui para a justiça e a segurança jurídica.
157
fundamentados que, associados à técnica propriamente
dita, poderão orientar o intérprete em seu ofício'. Antes
de apresentar esses parâmetros, é preciso fazer duas
observações preliminares, expostas nos itens que seguem.
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221
TORRE, Maximo La.
Theories of Legal rgumentation and Concepts
of Law. An Approximation
Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, p. 380: "But
practical reason, the reason that justifies value judgements ar deontic
statements, does not precisely coincide with theoretical reason. This is
because experiential data and logical operations are not enough to supply
us with indications of preference and guides to action. There is a need
or
a further type of premise, for criteria ar normative principies.; e ÁV1LA,
Humberto.
Teoria dos princípios
2003, p. 86: "E preciso estruturar a
ponderação com a inserção de critérios."
158
VII. Algumas notas sobre
os parâmetros
VII. . Parâmetros preferenciais
Antes de propor qualquer espécie de parâmetro para a
ponderação, cabe responder a uma pergunta relevante.
Considerando a importância que os elementos do caso con-
creto têm para a ponderação, e tendo em conta que muitas
vezes as particularidades de cada caso é que vão determinar
sua solução, é possível e/ou útil estabelecer afinal algum
parâmetro? A resposta, já se adianta, é afirmativa, por um
conjunto de razões.
A relação extremamente próxima que há entre a pon-
deração e o caso concreto concentra, ao mesmo tempo, a
força e a fragilidade dessa técnica de decisão jurídica. E sua
força porque, como referido, fornece ao intérprete um ins-
trumento poderoso, capaz de resolver casos para os quais
não há solução pré-fabricada no ordenamento. Por outro
lado, como também já se examinou nos capítulos iniciais,
não parece compatível com a idéia de Estado de direito ou
com a opção por uma Constituição rígida autorizar que boa
159
parte da interpretação e aplicação das disposições constitu-
cionais (incluindo os direitos fundamentais) seja definida
em função de juízos exclusivamente pessoais (bem ou mal
intencionados), puramente casuísticos e que, muitas vezes,
serão contraditórios entre si.
sam ser aplicados à moda da subsunção clássica pelo intér-
prete ao caso, até por conta da natureza das hipóteses que
exigem o emprego da ponderação. Quando um parâmetro
normativo formulado em tese puder ser aplicado objetiva-
mente, de forma generalizada e sem maiores dificuldades,
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Com efeito, se o constituinte originário, para retirar
determinadas matérias do alcance das disputas políticas
(matérias que idealmente correspondem a um consenso
social básico), impediu que o constituinte derivado pudes-
se aprovar emendas tendentes a abolir as cláusulas
pé-
treas
dentre as quais os direitos e garantias individuais
(CF, art. 60, § 4°, IV), conferir ao intérprete o poder de
restringir e até mesmo afastar a aplicação de disposições
constitucionais não parece coerente com o sistema consti-
tucional. Aliás, não há razão alguma para supor que o intér-
prete — e aqui em especial o judicial —, diferentemente
dos demais órgãos do Estado, não tenderia a utilizar pode-
res tão amplos de forma abusiva ou arbitrária
.
Nesse passo, se a ponderação é inevitávelm, por conta
da complexidade da sociedade contemporânea, da estrutu-
ra estatal e da própria Constituição, isso não condena os
cidadãos a dependerem cegamente de cada intérprete e de
suas concepções pessoais. Parâmetros — e aqui se estará
tratando de parâmetros que possam ser juridicamente fun-
damentados — não só podem como devem ser buscados
para balizar e controlar a interpretação jurídica, de modo a
assegurar, ao menos, a aplicação isonômica do direito.
Por outro lado, nem sempre será possível apresentar
parâmetros inteiramente objetivos ou definitivos, que pos-
222 O axioma da ciência política, pelo qual se registra que o detentor de
um poder sem controle ou limites tenderá a empregá-lo abusivamente,
continua válido.
223 Sobre o ponto, v. os capítulos II e III.
160
já não se estará diante de um conflito normativo insuperá-
vel e a ponderação em abstrato terá sido capaz de resolver
a dificuldade. Mas nem sempre será assim. Repete-se, en-
tão, a pergunta inicial deste tópico: é possível e útil, ainda
neste ponto, construir parâmetros? A resposta continua a
ser afirmativa e as observações que seguem ajudam a escla-
recer o porquê.
Os modelos que se passa a discutir não pretendem fun-
cionar como elementos rígdos e imutáveis, mas como pre-
ferências ou parâmetros preferenciais'''. Ao modo das
224 PECZENIK, Aleksander. On
Lauf and Reason
1989, p. 80: One
may assume that individual situations may be classified into moral Pines.
All situations belonging to such a type are weighed in the same way. We
can then say generallv that in the situation of the tvoe Sithe value VI
fulfilled to the extent ei precedes the value v2 fulfilled the extent e2; etc.
Under this assumption, a general mie os a general value-statement can
have a ceteris-oaribus all-things-considered character, in the following
sense: if circumstances remam
n unchanged, that is, nothing new and
morally relevant happens, then one always ought to follow the mie. Or, if
ali morally relevant circumstances remam unchanged, then an object of a
certain type is good etc. (grifos no original); e ALEXY, Robert. On
the
Structure of Legal Principies
Ratio Juris, vol. 13, n° 3, 2000, p. 297: The
collision law expresses the fact that the priority relations between the
principies of a system are not absolute but only conditional or relative.
The task of optimizing is to determine correct conditional priority
relations. The fact that a determination of a conditional priority relation
in accordance with the collision law is always the determinations of a mie
formed on the occasion of the case demonstrates that the respective
leveis of principies and mies are by no means unconnected. To solve a
case by weighing is to decide by means of a mie that is substantiated by
6
presunções, tais parâmetros devem ser observados regular-
mente pelo intérprete. Entretanto, este não estará radical-
mente impedido de afastá-los em um caso concreto, por
razões ' extremamente particulares que sejam capazes de
ilidir a presunção contida nos parâmetros. Nessas circuns-
VII.2. Parâmetros gerais e particulares
Afora o caráter preferencial, referido acima, os parâme-
tros podem ser classificados em dois grupos distintos, e
essa é a segunda observação a fazer sobre o tema antes de
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tâncias, que muitas vezes veiculam até mesmo situações
inevitáveis de ruptura do sistema, como se verá adiante, o
intérprete carregará o ônus especialmente reforçado da
motivação. Caberá a ele demonstrar, de forma analítica, o
porquê de se estar afastando de tais parâmetros.
A despeito de seu caráter preferencial e não absoluto, a
utilidade desses parâmetros parece evidente: juntamente
com elementos de verificação da racionalidade do discurso
jurídico
, eles são os únicos instrumentos capazes de con-
trolar em alguma medida as possibilidades quase ilimitadas
que a ponderação oferece. O fato de não ser possível ou
adequado formular parâmetros absolutos e inderrogáveis
não deve impedir a construção e o emprego daqueles que
sejam possíveis e que, na maior parte dos casos, funciona-
rão apropriadamente.
giving priority to the preceding principie. In this respect, principies are
necessarily reasons for rules. ..
225 Sobre a idéia de razões , v. HAGE, Jaap C.
Reasoning with Rules
1997, p. 20 e ss..
226 Alguns desses elementos já foram expostos no texto, corno a
necessidade de os argumentos utilizados serem compartilháveis pela
razão pública e a pretensão de universalidade. A teoria da argumentação
se ocupa do tema especificamente. Sobre o tema, no Brasil, v. MAIA,
Antônio Carlos Cavalcanti. Notas sobre direito, argumentação e
democracia .
In:
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (organizadora).
1988-1998: uma década de Constituição
1999; e SOUZA NETO,
Cláudio Pereira de.
Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade
prática
2002.
se dar início ao estudo dos parâmetros propriamente ditos.
Com
efeito, é possível distinguir parâmetros de natureza
geral, aplicáveis a qualquer espécie de conflito ou ao menos
úteis na maioria absoluta deles, e outros de natureza parti-
cular, que se ocupam de colisões entre disposições especí-
ficas, aos quais inclusive já se fez menção. Explica-se me-
lhor.
Nos tópicos anteriores utilizaram-se vários exemplos
envolvendo conflitos normativos específicos
e.g.,
liberda-
de de imprensa e de informação
versus
intimidade, vida
privada e honra; integridade física
versus
direito à honra
etc.). De fato, um dos importantes trabalhos da dogmática
constitucional é exatamente esse: formular parâmetros
fundamentados que permitam delinear os limites de cada
um dos enunciados constitucionais, especialmente nas
situações em que, com maior freqüência (ou mais previsi-
velmente), eles entrem em confronto uns com os outros. O
estudo em abstrato desses conflitos, como descrito no Ca-
pítulo VI, e os parâmetros que venham a ser propostos em
decorrência dele proporcionarão maior segurança e unifor-
midade à interpretação constitucional. Cuida-se aqui, por-
tanto, de parâmetros particulares, que se relacionam com
conflitos entre enunciados normativos específicos. O últi-
mo capítulo deste estudo voltará a tratar deles.
Entretanto, ao lado desses parâmetros particulares é
possível também formular parâmetros gerais. Os parâme-
tros gerais decorrem de construções da metodologia jurídi-
ca, estão fundados no sistema como um todo e não se ligam
a qualquer circunstância de fato específica: eles servem de
162
63
referência a ser usada pelo aplicador diante de qualquer
conflito.
Nos próximos tópicos se estará discutindo exatament
a proposta de dois parâmetros gerais, que podem ser des-
critos da seguinte forma: i) em uma situação de pondera-
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ção, regras constitucionais e infraconstitucionais) devem
ter preferência sobre princípios; e ii) as normas que atri-
buem ou promovem diretamente direitos fundamentais
dos indivíduos devem ter preferência sobre as que com elas
por acaso se choquem e se liguem à realização desses direi-
tos apenas de forma indireta. Em seguida, vai-se igualmen-
te propor um conjunto de elementos capazes de orientar a
construção de parâmetros para conflitos normativos espe-
cíficos na nomenclatura aqui adotada, parâmetros particu-
lares). A ordem em que os temas são apresentados não é
aleatória: como se verá, os parâmetros particulares que ve-
nham a ser construídos deverão levar em conta os parâme-
tros gerais na seqüência descrita.
VIII. Parâmetro geral I:
Regras têm preferência
sobre princípios
O primeiro parâmetro proposto pode ser descrito nos
seguintes termos: diante de uma situação que exija o
emprego da ponderação, as regras constitucionais e infra-
constitucionais) têm preferência sobre os princípios
constitucionais e infraconstitucionais). Isso significa, de
forma simples, que diante de um conflito insuperável
pelos métodos tradicionais de interpretação aqui já in-
cluída a utilização dos princípios de interpretação especi-
ficamente constitucionais e também da interpretação das
regras orientada pelos princípios, dentre outras técnicas
da moderna :hermenêutica constitucional), o princípio
deve ceder, e não a regra, já que esta, como padrão geral,
não deve ser ponderada. Lembre-se que regras e princí-
pios são categorias de enunciados normativos, de modo
que é de enunciados que se está cuidando quando se trata
deste primeiro parâmetro.
164
5 5
O parâmetro que se acaba de propor pode parecer em
desarmonia com tudo o que recentemente se tem como
conhecimento assentado acerca dos princípios: sua ascen-
dência axiológica em relação às regras e sua centralidade no
sistema'. Como se verá, no entanto, o parâmetro que in-
distinção entre princípios e regras
. Não é preciso descre-
ver aqui todas as discussões teóricas envolvendo o tema '
e nem seria útil reproduzir os vários critérios que têm sido
empregados para extremar as duas espécies de enunciados
normativos
. Bastam, para os fins aqui pretendidos, dois
registros: um sobre a distinção geral entre princípios e re-
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dica a preferência das regras sobre os princípios em situa-
ções de conflito não está em desacordo com qualquer des-
ses pressupostos da moderna teoria dos princípios. Muito
ao revés: os fundamentos desse parâmetro preferencial de-
correm, na verdade, tanto de algumas distinções relevantes
entre princípios e regras, que já se tornaram correntes na
doutrina brasileira e estrangeira, quanto dos próprios con-
ceitos de Constituição e democracia. Ainda que de forma
objetiva, os próximos tópicos cuidam de revisitar essas no-
ções.
VIII]. Fundamentação
a Revendo as distinções relevantes entre princípios,
sua estrutura e diferentes categorias, e regras.
Muito se tem escrito, no Brasil e no exterior, acerca da
227
Talvez o registro mais famoso sobre o tema seja o de MELLO, Celso
Antônio Bandeira de.
Elementos de direito administrativo,
1986, p. 230:
Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre
diferentes normas (...) Violar um princípio é muito mais grave do que
transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não
apenas a um especifico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de
comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,
conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência
contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais.
228 a
verdade, embora o tema seja hoje recorrente, a juridicidade dos
princípios é uma conquista recente mais ainda dos princípios
constitucionais. V. sobre o tema, SILVA, José Afonso.
Aplicabilidade das
normas constitucionais,
1998; e BONAVIDES, Paulo.
Curso de direito
constitucional,
1999, p. 228 e ss..
229
Sobre o tema, vejam-se, dentre muitos, BONAV1DES, Paulo.
Curso
de direito constitucional,
1999, p. 243 e ss.; GRAU, Eros Roberto.
A
ordem econômica na Constituição de 1988 — Interpretação e crítica,
1996, p. 92 e ss.; GRAU, Eros Roberto.
Ensaio e discurso sobre a
interpretação e aplicação do direito,
2002, p. 122 e ss.; BARROSO, Luís
Roberto.
Interpretação e aplicação da Constituição,
2003, p. 141 e ss.;
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo
direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e
pós-positivismo) .
In:
BARROSO, Luís Roberto (organizador).
A nova
interpretação constitucional. Ponderação direitos fundamentais e relações
privadas,
2003, p. 27 e ss.; COELHO, Inocêncio Mártires.
Interpretação
constitucional,
1997, p. 79 e ss.; e ESPÍNDOLA, Ruy Samuel.
Conceito
de princípios constitucionais,
1999. Na doutrina estrangeira, confiram-se
CANOTILHO,
J. J.
Gomes.
Direito constitucional e teoria da
Constituição,
1998, p. 1034 e ss.; ALEXY, Robert.
Teoria de los derechos
fundamentales,
1997, p. 83 e ss.; e DWORKIN, Ronald.
Taking Rights
Seriously,
1977, p. 95 e ss..
230 VIGO Rodolfo L..
Los principias jurídicos — perspectiva
jurisprudencial,
2000, pp. 9 a 20. O autor apresenta um interessante
panorama dos critérios distintivos entre princípios e regras já propostos
pela doutrina. Pode-se encontrar um apanhado desses critérios também
em BARCELLOS, Ana Paula de.
A eficácia jurídica dos princípios
constitucionais —
O
princípio da dignidade da pessoa humana,
2002, p.
40 e ss.. Confira-se também, para uma visão crítica de alguns desses
critérios, SANCHIS, Luis Prieto.
Sobre principios y normas. Problemas
dei razonamiento juridico,
1992.
166
67
gras e outro sobre a estrutura própria de parte dos princí-
pios constitucionais i.
Para alémde outros critérios distintivos, há algum
consenso acerca do fato de que princípios e regras são
categorias de enunciados ' que têm estrutura diver-
sam
, sendo que essa diferença pode ser descrita de modos
variados. Uma forma bastante simples de apresentar a ques-
tão é a seguinte: as regras descrevemcomportamentos, sem
se ocupar diretamente dos fins que as condutas descritas pro-
curamrealizar. Os princípios, ao contrário, estabelecemes-
tados ideais, objetivos a seremalcançados, semexplicita-
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231 A razão pela qual se faz referência a apenas parte dos princípios
constitucionais éexplicitada na nota n° 240.
232 Emsentido diverso, ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princpos
2003,
p. 26: Enfim é justamente porque as normas são construídas pelo
intérprete a partir dos dispositivos que não se pode chegar à conclusão de
que este ou aquele dispositivocontém
uma regra ou umprincípio. Essa
qualificação normativa depende de conexões axiológicas que não estão
incorporadas ao texto nema ele pertencem mas são, antes, construída
pelo próprio intérprete. . Para o autor, p. 56: A distinção entre
categorias normativas, especialmente entre princípios e regras, temduas
finalidades principais. Emprimeiro lugar, visa a
antecpar
características
das espécies normativas de modo que o intérprete ou o aplicador possa ter
facilitado seu processo de interpretação e aplicação do Direito. Em
conseqüência disso, a referida distinção busca, emsegundo lugar,
alivar
estruturando-o, o ônus de argumentação do aplicador do Direito, na
medida emque a uma qualificação das espécies normativas permte
mnorar — elimnar, jamais — a necessidade de fundamentação, pelo
menos indicando o que deve ser justificado. (...) Uma análise mais atenta
das referidas distinções entre princípios e regras demonstra que os
critérios utilizados pela doutrina muitas vezes manipulam, para a
interpretação abstrata das normas, elementos que só podemser avaliados
no plano concreto de aplicação das normas. Ao fazêlo, elegemcritérios
abstratos de distinção que, no entanto, podemnão ser — e com
freqüência não o são — confirmados pela aplicação concreta. Com
isso, a
classificação, emvez de aliviar o ônus de argumentação do aplicador do
Direito, elimna-o. (grifos no original) Ao registrar que só épossível falar
de princípio ou regra ao fimda interpretação, o autor parece querer
desvincular-se do critério de aplicação tudo ou nada , identificado por
parte da doutrina como umelemento distintivo das regras. E isso para
concluir (p. 45) que as regras tambémpodemter seu conteúdo
prelimnar de sentido superado por razões contrárias, mediante um
processo de ponderação de razões. , exigindo para isso apenas umônus
argumentativo maior. Lembre-se, como já referido, que o autor
168
compreende a ponderação emsentido amplo, como inerente a toda
interpretação, e não no sentido estrito discutido neste estudo.
Como se verá na seqüência do texto, não se sustenta aqui que o tudo
ou nada seja umtraço identificador das regras e, nesse ponto, a crítica de
Humberto Ávila éinteiramente procedente. Entretanto, se a classificação
princpoou regra é
umproduto final da interpretação, jánão háutilidade
emempregá-la; o objetivo da distinção indicado pelo próprio autor na
transcrição acima — antecipar as características da espécie normativa e
facilitar o processo de interpretação — parece pressupor, como aqui se
sustenta, que a qualidade de princípio ou regra éprópria dos enunciados
normativos e não o resultado final da interpretação (tendo emconta a
distinção feita neste estudo entre enunciado e norma). Alémdisso, o
objetivo final da interpretação não équalificar os diferentes enunciados
examnados e simapurar a norma adequada — cuja estrutura é
tipicamente a de uma regra, como jáse viu — para o caso concreto.
Quanto ao tema da ponderação de regras, ele seráexamnado de forma
específica mais adiante.
233 Essa éa concepção forte da distinção entre princípios e regras que se
tornou majoritária no Brasil. Háautores, porém que sustentamhaver
apenas uma distinção
fraca
entre eles, isto é, regras e princípios teriama
mesma estrutura básica, e a diferença estaria apenas na intensidade maior
ou menor de algumas características. É o caso, entre outros, de
SANCHIS, Luis Prieto.
Sobreprincposynormas Probemasde
razonamentojuridco
1992, p. 132: (...) los Ilamados principios no son
nada sustancialmente distintos a las normas, caracterizándose
simplemente por la posesión de ciertos rasgos (generalidad,
fundamentalidad, etc.) que no se configuran a la manera de todo o nada,
sino que se pueden tener, y que de hecho se tienen, en determnada
medida. Consiguientemente, y desde uma perspectiva positivista, la
existencia de los principios plantea los msmos problemas que la
existencia de las normas. .
169
associado a outros) pretende produzir efeitos sobre a reali-
dade. Esses efeitos podem ser relativamente simples —
impedir que menores de 18 anos trabalhem à noite — ou
complexos — assegurar que a Administração Pública trate
os particulares de forma isonômica. Essa complexidade,
como é fácil perceber, pode decorrer das próprias caracte-
rem necessariamente as ações que devem ser praticada
para a obtenção desses fins
4 .
Embora a descrição acima seja suficiente para explicar
boa parte da realidade, há momentos em que ela exigirá
complementação. Por vezes,
e.g.
além de descrever uma
conduta de forma específica, uma mesma regra pode justi-
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rísticas do efeito e/ou da diversidade de circunstâncias de
fato sobre as quais o enunciado incidirá. Seja como for, o
efeito pretendido pelo enunciado é o primeiro elemento
importante a ser considerado. O segundo dado fundamen-
tal envolve as condutas necessárias para realização desses
efeitos e que podem ser exigidas. Cada conduta que se
identifique como necessária e exigível relativamente a um
efeito descreve o conteúdo de uma norma construída a
partir do enunciado em questão. Feito o esclarecimento
inicial, volta-se ao ponto.
As regras são enunciados que estabelecem desde logo
os efeitos que pretendem produzir no mundo dos fatos,
efeitos determinados e específicos'''. Dependendo da
complexidade do efeito pretendido, a regra pode deman-
dar uma única conduta (muitas vezes descrita de forma
direta no próprio enunciado), que não sofrerá alteração im-
portante em decorrência dos diferentes ambientes de fato
sobre os quais incidirá, ou condutas diversas, que variam
em função dos fatos subjacentes, ainda que o efeito preten-
dido seja sempre o mesmo.
Exemplos ajudam a esclarecer o que se afirma. A regra
que proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos
ficar a exigibilidade de outras obrigações. Por conta da ge-
neralidade de sua formulação e dos diferentes ambientes
sobre os quais incidem, as regras podem dar origem a dife-
rentes normas e, por conseqüência, ensejar condutas diver-
sas. O exemplo já referido acerca do direito ao silêncio
conferido ao preso (CF, art. 5', LXIII) ilustra o ponto.
Trata-se de regra a partir da qual, além da norma mais
evidente, relacionada ao preso, desenvolveu-se uma outra,
que conferiu aos depoentes em Comissões Parlamentares
de Inquérito o direito ao silêncio diante das perguntas dos
parlamentares. Também quanto aos princípios, a mera afir-
mação de que eles indicam fins sem definição das condutas
nem sempre será o bastante. Há hipóteses em que ao me-
nos algumas ações necessárias para atingir o fim proposto
podem ser definidas desde logo, ao passo que os fins descri-
tos no enunciado podem apresentar-se determinados ou
relativamente indeterminados.
Uma outra forma de descrever a distinção entre princí-
pios e regras ' depende da compreensão prévia de dois
elementos '. Todo enunciado normativo (isoladamente ou
234
ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princípios
2003, p. 56 e ss..
235
Esse mesmo tema foi abordado de forma mais analítica em
BARCELLOS, Ana Paula de.
A eficácia jurídica dos princípios
constitucionais —
O
princípio da dignidade da pessoa humana
2002,
embora no presente estudo novos elementos tenham sido agregados à
discussão.
236
A distinção proposta na seqüência procura diferenciar princípios e
regras predominantemente a partir de suas características estruturais,
embora se recorra, em determinado ponto, a elementos materiais. A
questão será exposta com mais detalhes no texto.
237
É importante não confundir a indeterminação dos efeitos com a
indeterminação de conceitos empregados na descrição da hipótese fática
utilizada
por muitas regras. A esse ponto se voltará adiante.
170
171
menores de dezoito anos pretende produzir um efeito es-
pecífico: nenhum menor de dezoito anos poderá realizar
trabalhos noturnos, perigosos ou insalubres, mesmo que
ainda seja necessária uma definição técnica sobre o que é
perigoso ou insalubre. A conduta óbvia que dela decorre é
a de que nenhum empregador pode contratar um menor
o
efeito pretendido pela regra encontra-se definido e as
diversas condutas referidas decorrem logicamente dele.
Este é um aspecto importante. As complexidades que a
regra enfrenta no percurso entre o enunciado e sua aplica-
ção concreta — isto é, entre o efeito determinado descrito
no enunciado e as normas condutas) necessárias para sua
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nessas condições. Situação similar ocorre com a regra que
afirma que aos sindicatos caberá a defesa, judicial ou extra-
judicial, dos direitos e interesses coletivos ou individuais da
categoria. O efeito pretendido pela regra é o de que o sin-
dicato possa participar de uma demanda judicial, adminis-
trativa, ou de qualquer outra natureza, em nome da catego-
ria. Nada além disso. Aqui a regra já impõe várias condutas:
o
juiz ou o administrador terá de reconhecer a legitimidade
do sindicato. O mesmo se diga da parte contrária na dispu-
ta que, caso vencida, estará obrigada a reconhecer o benefí-
cio obtido pelo sindicato relativamente a todos os seus fi-
liados.
Já a regra contida no art. 37, XXI, da Constituição, pela
qual se impõe que a contratação de obras, serviços, com-
pras e alienações com a Administração Pública seja prece-
dida de licitação, poderá dar a origem a normas e,
a foniori
a condutas bastante diversas. O efeito pretendido aqui é
determinado, embora muito mais complexo que nos dois
exemplos anteriores, recebendo ademais o influxo de ou-
tras regras e princípios. Com
fundamento nessa regra,
como se sabe, a Administração está obrigada, i) antes de
qualquer coisa, a licitar, salvo nas hipóteses excluídas por
lei; ii) a impor aos interessados apenas as exigências neces-
sárias ao fim por ela pretendido com a licitação; iii) a não
adotar cláusulas discriminatórias, de modo que a maior
quantidade de interessados possa participar do certame,
etc.
De toda forma, a despeito dessa variedade de condutas,
realização — decorrem da natural dificuldade que o direito
em geral enfrenta para disciplinar os fenômenos sociais e
são, a rigor, inelimináveis. Para produzir efeitos mais com-
plexos sobre a realidade é necessário impor um conjunto
variado de condutas. Além disso, é impossível prever todas
as circunstâncias de fato que estarão recebendo a incidên-
cia da regra, de modo que, também por conta disso, condu-
tas diferentes poderão ser apuradas a partir de um mesmo
enunciado normativo.
Esses elementos — efeitos e condutas/normas — e as
relações entre eles se apresentam de forma diversa quando
se trata de princípios. Como descrito acima, as regras
enunciam desde logo efeitos determinados e o caminho
que os liga às condutas por eles exigidas pode ser mais ou
menos longo, mas em todo caso trata-se de um único cami-
nho. Os princípios, todavia, funcionam diversamente. Para
facilitar a exposição sobre os princípios, e tendo em conta
razões estruturais, é possível agrupá-los em duas catego-
rias.
O primeiro grupo congrega os princípios que descre-
vem efeitos relativamente indeterminados, cujo conteúdo,
em geral, é a promoção de fins ideais, valores ou metas
políticas. E essa indeterminação, ainda que relativa, decor-
re de a compreensão integral do princípio depender de
concepções valorativas, filosóficas, morais e/ou de opções
ideológicas.
O segundo grupo também pretende produzir efeitos
associados a metas valorativas ou políticas, assim como
172 173
acontece com o primeiro, mas os fins aqui descritos são
determinados, o que aparentemente os aproximaria das re-
gras. A dificuldade, porém, é que a identificação das con-
dutas necessárias e exigíveis para a realização dos efeitos
desses princípios não depende apenas da complexidade do
próprio efeito e/ou da variedade de circunstâncias fáticas
seja dignidade humana, influenciadas por posições religio-
sas, filosóficas, políticas, etc. Muito provavelmente, haverá
opiniões diversas sobre os efeitos da dignidade neste ponto.
O mesmo se pode dizer,
e.g.
do princípio da livre ini-
ciativa. Certamente, um dos efeitos que tal enunciado nor-
mativo pretende produzir é impedir a apropriação estatal
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sobre as quais ele incide, como nas regras. Por conta da
natureza do efeito pretendido, não se trata apenas de em-
preender um raciocínio lógico-jurídico para apurar as con-
dutas exigíveis; cuida-se, diversamente, de escolher entre
diferentes condutas possíveis a partir de distintas posições
políticas, ideológicas e valorativasm. Se há um caminho
que liga o efeito às condutas no caso das regras, há uma
variedade de caminhos que podem ligar o efeito do princí-
pio a diferentes condutas, sendo que o critério que vai de-
finir qual dos caminhos escolher não é exclusivamente jurí-
dico ou lógico.
Alguns exemplos ajudam a esclarecer o que se acaba de
expor. Tome-se, em primeiro lugar, o princípio da dignida-
de da pessoa humana: que efeitos ele pretende produzir? O
que ele significa? Ora, que as pessoas tenham uma vida
digna. Sem maiores dificuldades, é possível concluir que
matar indiscriminadamente as pessoas viola a dignidade e,
portanto, impedir tal espécie de ação e assegurar a vida é
um dos efeitos pretendidos por esse princípio. Mas que se
dirá da pena de morte, da eutanásia e do aborto, para ficar
apenas no aspecto 'vida' da dignidade? Muitas vezes os de-
fensores e detratores de algumas dessas políticas fundam-
se, em última análise, em concepções diferentes do que
238 Os dois grupos não são estanques evidentemente. Princípios cujos
efeitos são relativamente indeterminados também podem depender de
decisões políticas ou valorativas para a definição das condutas necessárias
à realização de seus efeitos (ainda que a parte determinada deles).
174
de todos os meios de produção. Mas teria ele também o
condão de impedir a existência de monopólios estatais? E
empresas públicas explorando atividades econômicas? E o
controle de preços por parte do Poder Público? Também
nesse particular não há unanimidade. O efeito pretendido
não é totalmente definido e sua definição depende de
avaliações que não são propriamente jurídicas.
Fenômeno semelhante se passa quando, embora o efei-
to pretendido pelo princípio sobre o mundo dos fatos seja
perfeitamente definido, há uma multiplicidade de condu-
tas em tese possíveis e adequadas para atingi-lo, sem que a
Constituição tenha optado por qualquer uma delas
3 9
. O
enunciado constitucional que determina à ordem econômi-
ca a busca do pleno emprego apresenta um exemplo dessa
característica. Não há propriamente indeterminação no
que toca aos efeitos pretendidos pelo dispositivo: seu claro
propósito é que todos tenham emprego. É essa alteração
que ele deseja produzir no mundo dos fatos. Porém, esse
resultado pode, em tese, ser alcançado de várias manei-
ras
4
239 Essa é a fórmula usada, em geral, para descrever as chamadas normas
programáticas que, nada obstante, estruturalmente consideradas, nada
mais são do que espécies de princípios.
240 ÁVILA, Humberto.
A distinção entre princípios e regras e a
redefinição do dever de proporcionalidade
Revista da Pós-Graduação da
Faculdade de Direito da USP vol. 1, 1999, p. 43: Essas considerações
levam à seguinte conclusão: tanto as normas de conduta [regras] quanto
aquelas que estabelecem fins [princípios] possuem a conduta como
175
Uns dirão que a melhor forma de atingi-lo é a abertura
de frentes de trabalho pelo Estado; outros, que é o incenti-
vo a pequenas e médias empresas; outros, que é o aparelha-
mento da infra-estrutura, que atrairá as empresas que,
por
sua vez, gerarão empregos. Outros ainda dirão que o Estado
deve investir em turismo. Ainda que o fim seja bastante
que se passa com algumas regras. Em relação a elas, a varie-
dade de condutas exigíveis decorre da necessidade, própria
do direito em geral, de ajuste entre o efeito previsto no
enunciado e a complexidade das situações de fato que ele
pretende regular ou sobre as quais vai incidir
.
Registradas as diferenças fundamentais entre princí-
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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preciso, o fato é que há meios variados para alcançá-lo em
função das diferentes opções político-ideológicas que
po-
em
ser adotadas. O mesmo raciocínio se pode aplicar,
eg
em relação aos enunciados que propugnam a redução
da desigualdade regional, a erradicação da pobreza, o in-
centivo estatal à pesquisa e tecnologia etc. O dispositivo
não escolhe o meio.
Os dois grupos de princípios que se acaba de descrever
têm sua indefinição — no primeiro caso, indefinição de
efeitos, e, no segundo, das condutas — associada a disputas
entre valores diversos, concepções morais e filosóficas e/ou
diferentes opções político-ideológicas, sendo que, repita-
se, a escolha entre esses elementos não decorre de um juízo
puramente jurídico ' . Esse quadro é bastante diverso do
objeto. A única diferença é o grau de determinação quanto à conduta
devida: nas normas finalísticas, a conduta devida é aquela adequada à
realização dos fins; nas normas de conduta, há previsão direta da conduta
devida, sem ligação direta com fins. (grifo no original) Artigo também
publicado na Revista de Direito Administrativo n°215, 1999, pp. 151 a
179.
241
A distinção descrita no texto entre princípios e regras é
forte
isto
é,
decorre de uma diferença essencial entre eles e não apenas de grau ou
intensidade relativamente a características comuns aos dois tipos de
enunciados. Nada obstante, é possível agrupar em uma terceira categoria
enunciados que a doutrina em geral identifica como princípios mas que,
na verdade, apresentam estrutura muito mais próxima das regras e delas
se diferenciam por conta da intensidade de determinadas características.
Trata-se daqueles princípios que pretendem impor determinadas
qualidades ou virtudes a atos jurídicos, como,
eg
s chamados princípios
176
pios e regras, cabe um último registro acerca da indetermi-
nação que, a rigor, caracteriza as duas categorias de princí-
da moralidade, da eficiência, da impessoalidade e da isonomia (em
sentido formal). O efeito que esses enunciados pretendem produzir não
depende de novas decisões valorativas ou políticas e a indeterminaçáo que
os caracteriza decorre na realidade da multiplicidade de situações sobre as
quais o enunciado vai incidir. Nesse ponto, aliás, é preciso reconhecer
que, embora a distinção forte entre princípios e regras seja extremamente
útil na maioria dos casos, há hipóteses em que os fenômenos se
aproximam de tal forma que as discussões sobre o tema têm pouca valia.
Anotam esse ponto, V. NOVAIS, Jorge Reis.Asrestriçõesaosdretos
fundamentaisnãoexpressamenteautorizadaspea Constiuição2003, pp.
344 e 345 e 350 e ss.; AARNIO, Aulis.
ReasonandAuthority
1997, p.
174 e ss.; SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretacón
constituconal delos deechos fundamentale. Una altenativa a los
conflictosdederechos 2000, p. 59; e CIANCIARDO, Juan.
Princposy
regas: una aproximacón dedelos criteios dedstincónBoletín
Mexicano de Derecho Comparado, nueva serie, afio >0=1, n° 108,
2003, pp. 891 a 906.
4 Como se pode perceber, a distinção entre princípios e regras
apresentada no texto conjuga um
critérioestrutural
(a determinação dos
efeitos e/ ou a multiplicidade de meios para atingi-los) com umcritério
material:
a circunstância de a determinação dos efeitos e/ou dos meios
para atingi-los depender ou não de decisões de natureza política,
ideológica ou valorativa. Em estudo anterior
A eicáca jurídca dos
princposconstituconais—
O princpoda dgnidadeda pessoa humana,
2002) desenvolvemos apenas o critério estrutural que, no entanto, parece
agora insuficiente. Nesse sentido, portanto, procedente a crítica
formulada por SILVA, Virgílio Afonso da.
Princpioseregras: mtose
equívocosacerca deuma dstinção
Revista latino-Americana de Estudos
Constitucionais n° 1, 2003, p. 623 e ss..
177
pios referidas acima. Ao longo do texto, e até aqui, falou-se
sempre de efeitos
relativamente
e não
completamente
in-
determinados, e o mesmo acontece com as condutas
4
E
isso porque, a despeito de todas as indeterminações, é pos-
sível afirmar, com freqüência, que certos efeitos estão con-
tidos de forma inexorável na descrição do princípio, até por
pas chão, mesas e bancadas), ao passo que o interior dos
eletrodomésticos fogão, geladeira e microondas) não so-
freu qualquer intervenção. Insatisfeito, o empregador pas-
sa a entregar ao empregado uma lista de atividades especi-
ficas a serem desempenhadas ao longo do dia, na qual inclui
a limpeza interna dos três eletrodomésticos referidos, ob-
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força de uma imposição lingüística, já que toda expressão
haverá de ter um sentido mínimo. Esse conjunto de efeitos
forma um núcleo essencial de sentido do princípio, com
natureza de regra, uma vez que se trata agora de um con-
junto de efeitos
determinados.
Igualmente, muitas vezes
será possível afirmar que certas condutas são absolutamen-
te indispensáveis para a realização do fim indicado pelo
princípio.
Observe-se urna questão importante. Quando se afirma
que é possível identificar um núcleo com natureza de regra
nos princípios seja de efeitos determinados, seja de con-
dutas indispensáveis à realização de efeitos), já não se está
trabalhando no plano dos enunciados normativos originais.
Esse núcleo — e,
a fortiori,
essas regras — é apurado após
um processo de interpretação e, se necessário, de pondera-
ção abstrata ou preventiva
4 4
Um último exemplo: um empregado doméstico recebe
de seu empregador a ordem de limpar a cozinha de uma
residência ao longo de um determinado dia. Ao fim do dia,
o empregador verifica que apenas as superfícies foram lim-
tendo, assim, o resultado desejado.
Na primeira situação descrita, como é fácil perceber, o
empregador veiculou sua ordem por meio de um princípio,
ao passo que, no segundo caso, utilizou-se de regras especi-
ficas. É interessante notar que as percepções dos dois indi-
víduos acerca do que se pretendia com a ordem e das con-
dutas necessárias para atingir esse fim a limpeza da cozi-
nha) eram diversas, embora apresentassem um núcleo co-
mum a limpeza das superfícies).
Dito de forma direta, as duas categorias de princípios
podem ter sua estrutura descrita como dois círculos con-
cêntricos. O círculo interior corresponderá — quanto ao
primeiro grupo de princípios — a um núcleo de efeitos que
acabam tornando-se
determinados
por decorrerem de for-
ma inafastável do seu sentido e, conseqüentemente, adqui-
rem a natureza de regra. Isto é: cuida-se de um conjunto
mínimo de efeitos determinados e a partir deles as condu-
tas necessárias e exigíveis deverão ser construídas) conti-
dos no princípio. Ainda que haja disputa sobre a existência
de outros efeitos a partir desse núcleo, a idéia é a de que
quanto a estes haverá consenso. O espaço intermediário
entre o círculo interno e o externo a coroa circular) será o
espaço de expansão do principio reservado à deliberação
democrática; esta é que definirá o sentido, dentre os vários
possíveis em uma sociedade pluralista, a ser atribuído ao
princípio a partir de seu núcleo.
O mesmo pode ocorrer com a segunda categoria de
princípios. Embora a definição das condutas necessárias
243 A partir deste momento a distinção entre as duas categorias de
princípios já não terá maior relevância.
244 Sobre o tema da ponderação abstrata ou preventiva, veja-se o
Capítulo VI. Sobre o núcleo do princípio da dignidade humana
relativamente a prestações materiais v. BARCELLOS, Ana Paula de.
A
eficácia jurídica dos princípios constitucionais —
O
principio da
dignidade da pessoa humana,
2002.
178
179
para realizar o efeito normativo dependa de avaliações po-
líticas, em muitos casos será possível identificar condutas
básicas indispensáveis para a realização do efeito indicado
pelo princípio, independentemente de colorações ideológi-
cas. Desse modo, a imagem de dois círculos concêntricos
também aqui pode ser empregada de forma útil: o círculo
dução de efeitos determinados, de maneira que a não veri-
ficação desses efeitos importa violação das mesmas. Trata-
se em geral de estruturas subsuntivas que, em um Estado
de direito, devem ser observadas. Não é preciso alongar-se
neste ponto.
A situação não será tão rígida quando se trate de princí-
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interior ocupado por condutas mínimas, elementares, e
exigíveis e o exterior a ser preenchido pela deliberação de-
mocrática
4 5
. A estrutura que se acaba de descrever revela
um dado da maior importância, descrito a seguir. Os prin-
cípios em questão operam na realidade de duas formas dis-
tintas: relativamente ao seu núcleo, funcionam como regras
e, apenas em relação a sua área não nuclear, funcionam
como princípios propriamente ditos.
Feita essa longa exposição sobre as diferenças entre re-
gras e princípios e sobre a estrutura destes últimos, cabe
perguntar: qual a relação entre o que se acaba de descrever
e a ponderação, sobretudo tendo em conta o parâmetro da
preferência das regras, anunciado logo de início? A questão
não é complexa. Como visto, as regras determinam a pro-
245
identificação do núcleo será em geral mais fácil — aqui já migrando
para um exame do conteúdo dos enunciados — quando se trate de
princípios que consagram direitos. Princípios que estabelecem metas ou
fins públicos de natureza geral sofrem muito maior influência de
concepções políticas diversas que os direitos, cuja existência lógica
independe, em geral, do Direito. V. NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições
aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição
2003, pp. 162 e 163. Em qualquer caso, o ideal é que os
efeitos e condutas identificados no núcleo dos princípios possam ser
exigidos diretamente, como acontece com a maior parte das regras, uma
vez que a estrutura normativa será equivalente (eficácia positiva ou
simétrica). Nada obstante, a questão da eficácia jurídica dos princípios
envolve outros desdobramentos que não podem ser aprofundados aqui.
Sobre o tema, v. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos
princípios constitucionais —
O
princípio da dignidade da pessoa humana
2002.
pios, e em particular da área não nuclear deles. Como se
viu, a partir de seu núcleo, os princípios vão admitir uma
realização mais ou menos ampla, dependendo da concep-
ção valorativa ou política que venha a prevalecer na defini-
ção do seu sentido e das condutas que se considerem ne-
cessárias e exigíveis para realizá-lo. Se é assim, parece evi-
dente que diante de um conflito aparentemente insuperá-
vel entre uma regra (aqui incluindo-se o núcleo dos princí-
pios aos quais se possa atribuir natureza de regra) e a área
não nuclear de um princípio
4 6
a regra deverá ter prefe-
rência.
Nesse mesmo sentido, como já se tornou corrente, é a
conclusão de Ronald Dworkin e Robert A1exy
4 7
, ainda que
a distinção entre princípios e regras por eles proposta não
seja exatamente a que se acaba de descrever. Na concepção
desses autores, as regras têm estrutura biunívoca, aplican-
do-se de acordo com o modelo do tudo ou nada
4 8
. Isto é,
246
Na verdade, como se verá adiante, o conflito se dará entre a regra e
uma norma construída pelo intérprete a partir da área não nuclear do
princípio.
247
Para uma visão crítica da distinção elaborada por Alexy entre
princípios e regras v. ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princípios
2003, p.
35 e ss..
248
DWORKIN, Ronald.
Taking Rights Seriously
1977, pp. 24 a 26:
The difference between legal principies and legal rules is a logical
distinction. Both sets of standards point to particular decisions about legal
obligation in particular circumstances, but they differ in the character of
180
81
dado seu substrato fático típico, as regras só admitem duas
espécies de situação: ou são válidas é incidem ou não inci-
dem por inválidas
4 9 . Juridicamente, uma regra vale ou não
vale. Não se admitem gradações.
Ao contrário das regras, os princípios determinam qu
e
algo seja realizado na maior medida possível, admitindo
senvolvendo esse critério de distinção, Alexy chama as re-
gras de comandos de definição e os princípios, de coman-
dos de otimização
5
. Por isso mesmo, na hipótese de coli-
são, as regras terão preferência sobre os
princípios
5
Seja como for, a repercussão para o processo pondera-
tivo de tudo o que se acaba de descrever é simples: tendo-
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uma aplicação mais ou menos ampla de acordo com as pos-
sibilidades físicas e jurídicas existentes. Esses limites jurí-
dicos, que podem restringir a otimização de um princípio,
são (i) regras que o excepcionam em algum ponto e (ii)
outros princípios opostos que procuram igualmente maxi-
mizar-se, daí a necessidade eventual de ponderá-los"°. D
e _
the direction they give. Rules are applicable in an ai -or-nothing fashion.
If the facts a rule stipulates are given, then either the mie is valid, in
which case the answer it supplies must be accepted, or it is not, in which
case it contributes nothing to the decision. (...) Of course, a mie may have
exceptions (...) However, an accurate statement of the mie would take
this exception into account, and any that did not would be incomplete.
(...) But this is not the way the sample principies in the quotations
operate. Even those which look most like rules do not set out legal
consequences that follow automatically when the conditions provided
are met. (...) This first difference between mies and principies entails
another. Principies have a dimension that mies do not — the dimension
of weight or importance. When principies intersect (...), one who must
resolve the conflict has to take into account the relative weight of each."
249 ALEXY, Robert.
Teoria de los derechos fundamentales,
1997, p. 88.
V. também BARROSO, Luís Roberto.
Interpretação e aplicação da
Constituição,
2003.
250 ALEXY, Robert.
Derechos, razonamiento jurídico e discurso
racional,
Revista Isonomia n° 1, 1994, p. 41: "Los derechos que se basan
en regias son derechos definitivos. Los principios son normas de un tipo
completamente distinto. Estos ordenan optimizar. Como tales, son
normas que ordenan que algo debe hacerse en la mayor medida fáctica y
juridicamente posible. Las posibilidades jurídicas, además de depender
de regias, están esencial mente determinadas por otros principios
opuestos, hecho que implica que los principios pueden y deben ser
182
se em conta a estrutura dos enunciados normativos, as re-
gras não são concebidas para serem ponderadas, pois a pon-
deração significará no mais das vezes sua não aplicação, a
negativa de sua vigência. Em geral, não é possível aplicar
mais ou menos uma regram; ou seus efeitos determinados
verificam-se ou não. Com
os princípios, tudo é diferente
ponderados. Los derechos que se basan en principios son derechos
prima
facie. .
Confira-se sobre o tema: SCHOLLER, Heinrich. O
principio da
proporcionalidade no direito constitucional e administrativo da
Alemanha,
Revista Interesse Público n° 2 1999 p. 93 e ss.
SARMENTO, Daniel. "Os princípios constitucionais e a ponderação de
bens". In: TORRES, Ricardo Lobo (organizador).
Teoria dos direitos
fundamentais,
1999, p. 35 e ss..
251 ALEXY, Robert.
Teoria de los derechos fundamentales,
1997, p. 86.
Boa parte da doutrina brasileira tem trabalhado com esse critério
distintivo. V. STUMM, Raquel Denize.
Principio da proporcionalidade
no direito constitucional brasileiro,
1995, p. 42; e PIMENTA, Patilo
Roberto Lyrio.
Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais
programáticas,
1999, p. 121 e ss.
252 Em sentido diverso, GRAU, Eros Roberto.
Ensaio e discurso sobre a
interpretação e aplicação do direito,
2002, p. 174 e ss., pois na concepção
do autor não há antinomia entre princípios e regras, mas apenas entre
princípios.
253 A
afirmação
não deve ser compreendida de forma rígida, já que
também as regras estão submetidas à interpretação e, muitas vezes, será
possível fixar um sentido mais ou menos amplo para a regra, e até mesmo
evitar colisões com outros enunciados por meio de técnicas
herme nêuticas convencionais O ponto
será retomado nos tópicos
seguintes.
183
(lembrando sempre que, ao se falar de princípios, é preciso
distinguir seu núcleo, que na verdade tem natureza de re-
gra, e sua área não nuclear, que tem natureza de princípio
propriamente dito). O princípio pode ser, como referido
por Alexy, não só mais ou menos intensamente adimplido,
mas também adimplido de formas variadas. Admite-se
b Revendo as diferentes funções de princípios e regras
A diferença estrutural de princípios e regras descrita no
tópico anterior não serve apenas de deleite para os teóricos
e nem constitui mero capricho do legislador, que poderá
escolher, em cada caso, uma fórmula ou outra (regra ou
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aqui, logicamente, compressões recíprocas, nos termos da
ponderação
5
.
Esse é, portanto, o fundamento lógico para o primeiro
parâmetro preferencial proposto para a ponderação o de
que as regras têm preferência sobre os princípios
5 5
, já que
a estrutura daquelas não é adequada, logicamente, para so-
frer ponderações. A preferência das regras na hipótese de-
corre também de outro fundamento, intimamente relacio-
nado com este primeiro, mas de natureza substancial. Ele
será o tema do próximo tópico.
254 Como a distinção entre regras e princípios, para Alexy, encontra-se
na sua forma de aplicação, ao defrontar-se com o problema da colisão de
direitos fundamentais o autor sustenta que apenas uma teoria que
visualize os direitos fundamentais como princípios é capaz de
solucioná-lo. V. ALEXY, Robert.
Colisão de direitos fundamentais e
realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático,
Revista de Direito Administrativo n° 217, 1999, p. 79: A teoria dos
princípios é capaz não só de estruturar racionalmente a solução de colisões
de direitos fundamentais. Ela tem ainda uma outra qualidade que, para os
problemas teórico-constitucionais que devem aqui ser considerados, é de
grande significado. Ela possibilita um meio-termo entre vinculação e
flexibilidade. A teoria das regras conhece somente a alternativa: validez
ou não-validez. . Uma distinção estrutural entre as espécies normativas
(regra e princípio) e também a percepção de suas diferentes funções não
admitem a simplicidade da solução de Alexy.
255 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 332 e ss..
princípio) para veicular suas intenções. Há funções e pro-
pósitos substanciais associados a essas diferentes estrutu-
ras; na realidade, funções gerais do sistema jurídico como
um todo e funções particulares, próprias da ordem consti-
tucional 5 6 .
Há amplo consenso de que a ordem jurídica é uma fun-
ção de dois valores principais interdependentes: de um
lado, a segurança, a previsibilidade e a estabilidade das rela-
ções sociais e, de outro, a justiça
5
'. Ambos contribuem
direta ou indiretamente para o bem-estar humano, para a
proteção e promoção de sua dignidade e para a criação de
condições que permitam o seu pleno desenvolvimento.
Um sistema que supervaloriza a segurança pode tornar-se
iníquo e desconectar-se das legítimas expectativas de justi-
ça. Por outro lado, uma ordem jurídica que despreza a se-
gurança acaba por instituir um ambiente de imprevisão e
incerteza que dificulta as relações sociais e o desenvolvi-
mento pessoal dos indivíduos. Não há novidade neste
par-
ticular.
Além disso, quanto maior for a possibilidade, autoriza-
256 Vale observar que, no caso da atividade legislativa, a opção entre
princípio ou regra pode estar relacionada também com a maior ou menor
concretização que se pretende atribuir a algum dispositivo constitucional.
Nesse ponto, uma disciplina infraconstitucional insuficiente pode
inclusive ser objeto de controle de constitucionalide por omissão parcial.
257 LARENZ, Karl. Derecho justo,
1985, p. 42 e ss.
184
85
da pelo sistema, de realizar justiça no caso concreto, maior
liberdade será conferida ao aplicador, crescendo na mesma
proporção o risco de arbítrio e a ameaça para a isonomia, já
que mais facilmente se produzirão julgamentos desiguais
para casos idênticos. Por outro lado, negar ao intérprete
qualquer espaço de adaptação ao caso pode inviabilizar sua
atuação, em especial diante de realidades intensamente
pios são espécies normativas que se ligam de modo mais
direto à idéia de justiça ou, ao menos, são instrumentos
mais capazes de produzir justiça no caso concreto.
Assim, como esquema geral, é possível dizer que a es-
trutura das regras facilita a realização do valor
segurança
ao passo que os princípios oferecem melhores condições
para que a
justiça
possa ser alcançada. Esse modelo é natu-
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mutáveis como as contemporâneas, em que é simplesmen-
te impossível regular as novas questões no mesmo ritmo
em que elas surgem e são levadas ao Judiciário. Em suma: a
harmonia de um sistema jurídico reside no equilíbrio efi-
ciente entre segurança e justiça.
Princípios e regras desempenham cada qual um papel
diferenciado, porém da maior importância para manter
esse equilíbrio. Com efeito, é possível identificar uma rela-
ção, no âmbito do sistema romano-germânico ocidental,
entre a segurança, a estabilidade e a previsibilidade e as
regras jurídicas. Isso porque, na medida em que veiculam
efeitos determinados, pretendidos pelo legislador de forma
específica, as regras contribuem para a maior previsibilida-
de do sistema jurídico
8 .
A justiça, por sua vez, depende em geral de disposições
mais flexíveis, à maneira dos princípios, que permitam uma
adaptação mais livre às infinitas possibilidades do caso con-
creto e que sejam capazes de conferir ao intérprete liberda-
de de adaptar o sentido geral do efeito pretendido, muitas
vezes impreciso e indeterminado, às peculiaridades da hi-
pótese examinada . Nesse contexto, portanto, os princí-
258 Nos sistemas de
common law
ao lado das hoje cada vez mais
freqüentes leis positivas, muitas das quais empregando regras. a
estabilidade e a segurança decorrem também da regra do precedente
judicial.
259 Inclusive contribuindo para a interpretação das próprias regras.
186
ralmente simplificador, já que há princípios que propug-
nam exatamente, dentre outros, o valor segurança — como
o princípio da legalidade—, da mesma forma que inúmeras
regras são, na verdade, a cristalização de soluções requeri-
das por exigências de justiça. Tudo isso, porém, não afasta
a utilidade do modelo para esclarecer uma parcela da reali-
dade.
Ora, se as regras respondem pela segurança e os princí-
pios pela justiça, conclui-se que, quanto mais regras houver
no sistema, mais seguro, isto é, mais previsível, mais estável
ele será; porém, mais dificilmente ele será capaz de adap-
tar-se a situações novas. Por outro lado, quanto mais prin-
cípios existirem, maior será o seu grau de flexibilidade e
sua capacidade de acomodar e solucionar situações impre-
vistas. No mesmo passo, porém, também crescerão a inse-
gurança, em decorrência da imprevisibilidade das soluções
aventadas, e a falta de uniformidade de tais soluções, com
prejuízos evidentes para a isonomia. Repete-se, portanto, o
que parece bastante óbvio: uma quantidade equilibrada e
apropriada de princípios e regras produzirá um sistema ju-
rídico ideal, no qual haverá segurança e justiça suficientes.
Naturalmente, o equilíbrio do sistema jurídico não de-
pende apenas da existência adequada de princípios e re-
gras; é preciso também que eles funcionem e sejam mani-
pulados pelos operadores jurídicos dentro de suas caracte-
rísticas próprias. Isto significa, portanto, que, como padrão
geral, as regras não foram concebidas para serem pondera-
187
das. Com
efeito, a ponderação corriqueira de regras fragili-
zaria a própria estrutura do Estado de direito; pouco vale-
riam as decisões do Poder Legislativo se cada aplicação de
um enunciado normativo se transformasse em um novo
processo legislativo, no qual o aplicador passasse a avaliar,
novamente, todas as conveniências e interesses envolvido
s
na questão, bem como todos os princípios pertinentes
2 6°
condições para o desenvolvimento do pluralismo político,
de modo que o povo, em cada momento histórico, possa
fazer as escolhas que entender por bem2 €
Esse equilíbrio — consenso mínimo
versus
pluralismo
político — guarda uma relação muito próxima com a estru-
tura de princípios e regras observada acima. As regras cons-
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para, ao fim, definir o comportamento desejável. A situa-
ção oposta se coloca quando não se reconhece aos princí-
pios capacidade de produzir qualquer efeito, o que acarreta
acentuado desequilíbrio em detrimento dos elementos de
justiça. Afora essa relação geral entre princípios e justiça e
entre regras e estabilidade/segurança, comum a todo o sis-
tema jurídico, é possível visualizar outra relação de nature-
za substancial, mais específica, própria do ambiente consti-
tucional.
Uma Constituição rígida e democrática procura reali-
zar ao menos dois propósitos gerais: (i) estabelecer deter-
minados consensos mínimos e colocá-los a salvo (ou prote-
gê-los) das deliberações majoritárias; e (ii) preservar as
260 HAGE, Jaap C.
Reasoning with Rules
1997, pp. 170 e 171: Rules
of law are often the result of a legislative decision making process, in
which a number of reasons, based on policies, goals, values, interests,
principies etc. are weighed to achieve a balanced result. In many of the
cases to which these rules of law can be applied, the underlying goals,
principies etc. would also be relevant for the legal consequences of the
case, had their application not been excluded by the applicability of the
legal rule. The reasons generated by the rule replace the reasons
generated by the goals and principies that underlie that mie. The role of
the goals and principies was confined to their influence on the drafting of
the mie. That is why I called the reasons, generated by a
tule replacing
reasons.
Similarly, the legal mie can be said to replace its underlying goals
and principies. (...) This means that if a mie replaces a principie, the
applicability of the mie to a case excludes the application of the principie
to this case.
188
titucionais — aí incluído, lembre-se, o núcleo dos princí-
pios — respondem em geral pelas decisões associadas
àquele consenso mínimo
2 6 2
. Através delas, o poder consti-
tuinte procura estabelecer desde logo condutas determina-
das, específicas. Os princípios, diversamente, estabelecem
fins gerais a serem alcançados que, para além de seu nú-
cleo, poderão ser preenchidos de sentido e delineados sob
formas diversas em função das diferentes concepções do
intérprete.
Em uma democracia, é natural que apenas um sentido
mínimo de determinado princípio seja definido constitu-
cionalmente — e, portanto, seja oponível a qualquer grupo
que venha a exercer o poder político —; o restante da ex-
tensão possível do princípio deverá ser preenchido pela de-
liberação majoritária, em função da convicção das maiorias
em cada momento político: e nesse ponto ter-se-á, em es-
pecial, as regras infraconstitucionais. Isto é: esse espaço de
expansão do princípio fica reservado, pela Carta, à defini-
ção pelos meios próprios da deliberação democrática em
um ambiente de pluralismo político. Em suma: caberá ao
Legislativo e ao Executivo, no exercício de suas competên-
261
MELLO, Cláudio Ari.
Democracia constitucional e direitos
fundamentais
2004.
262
Fica a ressalva de que em Constituições compromissorias e
elaboradas em um ambiente sujeito a pressões corporativas não é
incomum encontrarem-se regras que em nada se relacionam com a idéia
de consenso mínimo exposta no texto.
189
cias constitucionais, formularem as opções que darão con-
teúdo aos princípios para além de seu núcleo '.
O reflexo do que se acaba de expor sobre o estudo da
ponderação reforça o parâmetro proposto inicialmente: as
regras (constitucionais e infraconstitucionais) devem ter
preferência sobre os princípios. Isto é: em uma situação de
conflito inevitável, a regra deve ser preservada e o princípio
ses efeitos ou, ainda, que o Legislativo e/ou o Executivo
estejam livres para formular quaisquer opções sob o pre-
texto de estarem disciplinando a área não nuclear de um
princípio constitucional. Como se sabe, aos princípios, em
toda a sua extensão, se reconhecem as modalidades de efi-
cácia interpretativa, negativa e, quando seja o caso, vedati-
va do retrocesso 6 . Também não está afastado o conheci-
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comprimido, e não o oposto.
Ao se afastar uma regra sob o fundamento de que ela se
oporia a alguma conduta derivada da área não nuclear de
um princípio, incorre-se em um conjunto de distorções.
Em primeiro lugar, caso se trate de uma regra infraconsti-
tucional, o intérprete estará conferindo à sua concepção
pessoal acerca do melhor desenvolvimento do princípio
maior importância do que à concepção majoritária, apurada
pelos Órgãos legitimados para tanto. A situação é ainda mais
grave se a regra envolvida consta da Constituição. Nesse
caso, o intérprete estará afastando a incidência de uma re-
gra elaborada pelo poder constituinte originário e que,
como padrão, veicula consensos básicos do Estado organi-
zado pela Constituição. Por fim, como a solução do caso
baseou-se na percepção individual do intérprete, muito
freqüentemente ela não se repetirá em circunstâncias idên-
ticas, ensejando violações do princípio da isonomia.
O que se acaba de expor não significa que a área não
nuclear dos princípios não pretenda produzir efeito algum
e que nenhuma conduta possa ser exigida para realizar es-
263
Naturalmente que o que se acaba de descrever produz uma
dificuldade que será preciso enfrentar: trata-se de definir, em relação a
cada princípio ao qual a distinção seja aplicável, o que corresponde ao
núcleo, e portanto tem natureza de regra, e o que diz respeito à sua
áre
não nuclear, em relação à qual vale o que se expôs acima acerca da
estrutura dos princípios.
190
264 Por eficácia negativa se designa a possibilidade de exigir que atos e
decisões contrárias aos efeitos pretendidos pelo princípio (isto é: que se
encontrem fora do campo de atuação legítimo traçado por ele) sejam
considerados inválidos. A vedação do retrocesso é
uma aplicação
especific
da eficácia negativa às hipóteses em que a revogação das
disposições que regulamentam o exercício de direitos fundamentais
torna-os inaplicáveis, configurando uma ação inconstitucional. Com
fundamento na eficácia interpretativa por sua vez, é possível exigir que,
dentre as interpretações possíveis dos enunciados, o Judiciário adote
aquela que melhor contribui para a realização dos princípios. V. sobre o
tema geral da eficácia jurídica dos princípios, MIRANDA, Jorge.
Manual
de direito constitucional vol.
11, 1990, p. 220 e ss.; BIDART CAMPOS,
German J La interpretacion y el control constitucionales eu la
juriscliccion constitucional 1987, p. 238 e ss.; SILVA, José Afonso da.
Aplicabilidade das normas constitucionais
1998; BARROSO, Luís
Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas 2003, p.
113 e ss.; e BARCELLOS, Ana Paula de. A
eficácia jurídica dos princípios
constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana
2002, p.
66 e ss.. Sobre a vedação do retrocesso, em particular, v. VIEIRA DE
ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição
portuguesa de
1976, 1998, pp. 307 e 308; SILVA, José Afonso da.
Aplicabilidade das normas constitucionais
1998, p. 158 e ss.; SARLET,
Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica:
dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de
retrocesso social no direito constitucional brasileiro . In:
ROCHA,
Carmen Lúcia Antunes (organizadora).
Constituição e segurança
jurídica.- direito adquirido ato jurídico perfeito e coisa julgada — estudos
em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence
2004, pp. 85 a 135;
MENDONÇA, José Vicente Santos de.
Vedação do retrocesso: o que é e
como perder o medo
Revista da Associação dos Procuradores do Novo
Estado do Rio de Janeiro, vol. XII — Direitos Fundamentais, 2004, pp.
191
mento, já consolidado, de que a interpretação das regras
(constitucionais e infraconstitucionais) deve ser informada
pelos princípios. Lembre-se, porém, que o objeto deste es-
tudo — a técnica de ponderação — só entra em cena quan-
do o conflito normativo não pode ser superado por nenhum
desses recursos da teoria constitucional moderna.
Na verdade, retomando a imagem dos princípios como
Em suma: seja porque essa é a conseqüência natural das
diferenças estruturais entre princípios e regras, seja por-
que, considerando o contexto constitucional, as duas espé-
cies de enunciados desempenham funções diferentes, o
primeiro parâmetro que deve orientara ponderação é o de
que as regras devem ter preferência em face dos princípios.
Assim, diante de um conflito insuperável entre regra e
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círculos concêntricos, que ocupam grandes áreas, porém
de maneira difusa e com pouca densidade (com exceção de
seu próprio núcleo), as regras podem ser visualizadas corno
pontos de alta densidade espalhados por toda essa superfí-
cie. Os princípios, para além de seu núcleo, estabelecem as
fronteiras de um largo campo de atuação possível, dentro
de cujos limites as opções políticas podem ser consideradas
legítimas. As regras correspondem exatamente a decisões
políticas específicas, de efeitos determinados, já tomadas
no interior de tais fronteiras2 6 5
205 a 236; e BAPTISTA, Felipe Derbli de Carvalho.
A Constituição de
1988 e o princípio da proibição do retrocesso social: uma investigação dos
limites à atividade legislativa
ainda mimeografada, 2004.
265 LEITE, George Salomão e LEITE, Glauco Salomão. A abertura da
Constituição em face dos princípios constitucionais . In: SALOMÃO,
George (organizador).
Dos princípios constitucionais. Considerações em
torno das nonnas principiológicas da Constituição
2003, p. 159: A
Constituição, em razão de sua incompletude, permanece aberta ao
tempo. Por esta razão, na maior parte das vezes traça apenas as diretrizes,
os fundamentos das matérias objeto de regulamentação
normativo-constitucional, deixando o papel de integração/concretização
nas mãos do legislador e dos aplicadores do Direito. A Constituição não
estabelece nem determina a total ordenação da unidade política, senão
limita-se apenas a consignar em seu corpo os princípios setores de uma
determinada coletividade. (...) Entretanto, esta abertura e flexibilidade
constitucional só se tornam possíveis em razão da presença dos princípios
na Constituição. O elevado teor de abstração e a intensa carga axiológica
fazem com que a Constituição acompanhe a dinâmica social sem,
contudo, cair em desuso.
192
princípio que demande a ponderação dos enunciados em
choque, a regra constitucional (aqui incluído
repita-se, o
núcleo dos princípios) deve ser preservada e o princípio,
comprimido.
O funcionamento desse parâmetro, aplicado a um con-
flito entre um princípio constitucional e uma regra infra-
constitucional, pode ser observado na Ação Direta de In-
constitucionalidade n°223, julgada pelo Supremo Tribunal
Federal. As características do caso eram as seguintes. No
pacote jurídico que acompanhou o Plano Collor foi editada
a Medida Provisória n° 173, de 18.03.1990, que vedava a
concessão de liminar em mandados de segurança e em a-
ções ordinárias e cautelares decorrentes de um conjunto de
10 (dez) outras medidas provisórias2 5 6
, bem como proibia a
execução das sentenças proferidas em tais ações antes de
seu trânsito em julgado. A Ação Direta de Inconstituciona-
lidade n° 223
foi proposta para o fim de ver declarada a
inconstitucionalidade da MP n° 173/1990 por afronta, ge-
266 As 10 (dez) medidas provisórias (151, 154, 158, 160, 161, 162, 164,
165, 167 e 168) versavam sobre assuntos variados: extinção de entidades
da Administração Pública, criação de nova sistemática para reajustes de
preços e salários em geral, isenção ou redução do imposto de importação,
legislação tributaria em vários pontos (imposto sobre operações
f i nance i ras e i mpos t o
de renda principalmente), dentre outros temas.
267 STF AD1n 223 MC/DF Rel. Min. Paulo Brossard DJU
29.06.1990.
193
nericamente, aos princípios do acesso à justiça e da inafas-
tabilidade do controle judicial.
Por maioria, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal
Federal indeferiu a liminar solicitada na medida cautelar
requerida juntamente com a ação direta de inconstitucio-
nalidade, manifestando o entendimento de que, ao menos
em juízo sumário, a MP n° 173/1990 seria constitucional.
Na verdade, a leitura dos votos proferidos na ocasião
revela que as discussões travadas no STF por conta da
ADIN n° 223 tiveram três frentes principais: na primeira
delas, discutiu-se propriamente o conflito entre a MP n°
173/1990 e o princípio constitucional do acesso à Justiça;
na segunda frente, vários votos preferiram examinar o pro-
blema sob o ponto de vista técnico-processual no que dizia
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Nada obstante, a ementa do acórdão registra um comentá-
rio incomum: a decisão que se acabava de tomar no STF
não impedia que qualquer juiz, diante de um caso concre-
to, considerasse a norma inconstitucional
8
268 Esta é a parte mais relevante da ementa: Ação direta de
inconstitucionalidade contra a Medida Provisória 173, de 18.3.90, que
veda a concessão de 'medida liminar em mandado de segurança e em
ações ordinárias e cautelares decorrentes das medidas provisórias
números 151, 154, 158, 160, 162, 165, 167 e I68': indeferimento do
pedido de suspensão cautelar da vigência do diploma impugnado: razões
dos votos vencedores. Sentido da inovadora alusão constitucional à
plenitude da garantia a jurisdição contra a ameaça a direito: ênfase a
função preventiva de jurisdição, na qual se insere a função cautelar e,
quando necessário, o poder de cautela liminar. Implicações da plenitude
da jurisdição cautelar, enquanto instrumento de proteção ao processo e
de salvaguarda da plenitude das funções do Poder Judiciário.
Admissibilidade, não obstante, de condições e limitações legais ao poder
cautelar do juiz. A tutela cautelar e o risco do constrangimento
precipitado a direitos da parte contrária, com violação da garantia do
devido processo legal. Conseqüente necessidade de controle da
razoabilidade das leis restritivas ao poder cautelar. Antecedentes
legislativos de vedação de liminares de determinado conteúdo. Critério
de razoabilidade das restrições, a partir do caráter essencialmente
provisório de todo provimento cautelar, liminar ou não. Generalidade,
diversidade e imprecisão de limites do âmbito de vedação de liminar da
MP 173, que, se lhe podem vir, a final, a comprometer a validade,
dificultam demarcar, em tese, no juizo de delibação sobrei) pálido de sUja
suspensão cautelar, até onde são razoáveis as proibiçõeS'néli imposta&
enquanto contenção ao abuso do poder cautelar, e onde se inicia,
inversamente, o abuso das limitações e a conseqüente afronta à plenitude
respeito ao cabimento da liminar na hipótese; e um terceiro
e interessante debate se travou acerca da posição política
do STF. Vários Ministros questionaram, considerando o
regime democrático e os limites do papel do STF, a perti-
nência de uma decisão capaz de por em risco plano de re-
cuperação econômica que contava com amplo apoio popu-
lar e que seria de imediato submetido ao Congresso Nacio-
nal. De toda sorte, para os fins deste estudo apenas a pri-
meira das discussões é pertinente.
Os Ministros Paulo Brossard, relator do feito, Celso de
Mello e Sepúlveda Pertence foram os que de forma mais
direta enfrentaram a questão do conflito entre a MP n°
173/1990 e o princípio constitucional do acesso à Justiça,
embora tenham chegado a conclusões diversas. O Ministro
Paulo Brossard deferiu a liminar em parte, para considerar
inconstitucional a restrição imposta pela MP no caso de
mandados de segurança. O Ministro Celso de Mello a defe-
riu completamente, por entender inconstitucional como
um todo a medida. O Ministro Sepúlveda Pertence, por
sua vez, indeferiu a liminar, no que acabou sendo acompa-
nhado pela maioria, ainda que por razões diversas.
da jurisdição e ao Poder Judiciário. Indeferimento da suspensão liminar
da MP 173, que não prejudica, segundo o relator do acórdão, o exame
judicial em cada caso concreto da constitucionalidade, incluída a
razoabilidade, da aplicação da norma proibitiva da liminar.
Considerações, em diversos votos, dos riscos da suspensão cautelar da
medida impugnada.
195
194
A argumentação do Ministro Paulo Brossard pode ser
resumida da seguinte forma. Para o Ministro, a proibição
de liminares em abstrato não seria inconstitucional, tanto
assim que outras disposições, jamais consideradas inconsti-
tucionais pelo STF, já previam essa possibilidade. Em algu-
mas circunstâncias, no entanto, essa restrição poderia se
tornar grave a ponto de impedir o acesso do cidadão ao
O Ministro Celso de Mello, diversamente, deferiu inte-
gralmente a liminar requerida por entender que a lei não
poderia impor restrições à concessão de liminares, já que o
poder de conferi-las é necessário para que o Estado possa
adimplir sua obrigação de prestar tutela jurisdicional °.
período relativamente longo e que se pode tornar excessivamente longo,
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Poder Judiciário: nessas hipóteses, tais restrições seriam
inválidas e não poderiam ser admitidas.
A MP, a juízo do Ministro Relator, era excessivamente
ampla e geral nas restrições que impunha, podendo chegar
a bloquear a atuação do Poder Judiciário na reparação de
lesões e ameaças de lesões. Na tentativa de distinguir as
situações — restrições aceitáveis do acesso à Justiça e
restrições inaceitáveis — o Ministro Brossard criou um pa-
râmetro. A MP havia impedido a concessão de liminares e
a execução provisória de decisões em ações ordinárias, cau-
telares e mandados de segurança; porém, afirmou o Minis-
tro, o mandado de segurança é em si mesmo um direito
individual tutelado pela Constituição de modo que, em
relação a ele, não se poderia admitir qualquer espécie de
restrição em tese
9
269 Confiram-se alguns trechos de seu voto: Em determinadas
situações, porém, a lei veda a sua concessão. De modo que, in abstracto,
a proibição de liminares não chega a constituir novidade e tem sido
admitida. (fls. 05)
(...) No caso vertente, o que chama desde logo a atenção é a
amplitude e generalidade da medida, que envolve nada menos de dez
medidas provisórias, com mais de uma centena de dispositivos, bem
como sua extensão. De chofre, por via unilateral e imperatória,
sumariamente se proíbe a concessão de liminares, bem como a execução
de sentença sem trânsito em julgado, em mandados de segurança, em
ações ordinárias e em ações cautelares, decorrentes das dez medidas
provisórias, que enumera. Desse modo, a missão reparadora de lesões de
direitos, inerente ao Poder Judiciário, fica bloqueada e durante um
196
não se pode dar a reparação judicial, ainda que a lesão seja insigne e o
direito liquido e certo. (fls. 09)
(...) Em relação a algumas normas, a irreparabilidade do dano é
menos clara ou mais hipotética; da medida provisória 151, por exemplo.
Em relação a outras, porém, qualquer procrastinação significaria o
abandono do cidadão ao arbítrio da autoridade, sem que se pudesse
levantar o escudo protetor da lei maior na defesa do seu direito,
condenado por medidas de duvidosa constitucionalidade ou de
transparente inconstitucionalidade. (fls. 10/11)
(...) Buscando um critério objetivo e seguro, quer me parecer que na
medida em que se tratar de direito individual ferido ou ameacado de
lesão para cuja proteção eficaz a própria Constituição outorga, também
como direito individual o mandado de segurança, não pode este ser
tolhido; o mandado de segurança, na sua expressão tradicional, é um
direito individual em si mesmo, tanto mais valioso quando, muitas vezes,
é o mais apropriado e eficaz instrumento de defesa de outros direitos
individuais exatamente pela possibilidade de proteção liminar. De modo
que, permitir sua paralisia, ainda que parcial e limitada, importaria em
atingir, em maior ou menor grau, além do próprio mandado de segurança,
outros direitos individuais, solenemente assegurados na Constituição.
(fls. 11) (sublinhado no original)
27 A linha de pensamento do Ministro pode ser facilmente
compreendida pelo exame dos seguintes trechos de seu voto: Essa
correlação, que se traduz no binômio direito subjetivo ao processo /
obrigação estatal de efetivação da tutela jurisdicional, não pode ser
unilateralmente rompida pelo Poder Público, sob pena de configurar, o
ato de sua inobservância, uma frontal ofensa ao dogma do judicial review.
(fls. 02)
(...) A proteção jurisdicional imediata, dispensável a situações
jurídicas expostas a lesão atual ou potencial, não pode ser inviabilizada por
ato
normativo de caráter infraconstitucional que, vedando o exercício
liminar da tutela jurisdicional cautelar pelo Estado, enseja a aniquilação
197
O Ministro Sepálveda Pertence, por sua vez, partiu do
mesmo pressuposto lógico usado pelo Ministro Brossard.
Também para ele não se trata de considerar inconstituci
o-
nal toda e qualquer restrição feita à concessão de liminares,
mesmo porque o princípio do devido processo legal poderá
recomendar alguma limitação nesse sentido. Entretanto,
não seria possível em abstrato saber em que momento essa
A questão discutida pelos Ministros pode afinal ser des-
priori a toda e qualquer restrição que se faça à concessão de liminar, é
impossível, no cipoal, de medidas provisórias que se subtraíram ao
deferimento de tais cautelares initio litis, distinguir, em tese e
só assim
poderemos decidir neste processo—, até onde as restrições são razoáveis,
até onde são elas contenções, não ao uso regular, mas ao abuso do poder
cautelar, e onde se inicia, inversamente, o abuso das limitações e a
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restrição deixa de ser adequada e necessária e afeta essen-
cialmente o princípio do acesso à Justiça. Apenas diante do
caso concreto será possível aferir essa inconstitucionalida-
de. Por essa razão, o Ministro decidiu indeferir a liminar
pleiteada, ressalvando, porém, que cada juiz poderá, diante
de um caso concreto, declarar a inconstitucionalidade da
norma incidentalmente. O Ministro Relator, embora venci-
do, fez constar essa ressalva na parte final da ementa do
acórdão ' .
do próprio direito material. O princípio da inafastabilidade do controle
jurisdicional representa, pelo seu caráter global e abrangente,
instrumento de defesa do direito à ação de conhecimento, do direito à
ação de execução e do direito à ação cautelar. Particularizar qualquer
dessas situações e, em conseqüência, excluí-Ia da tutela constitucional
significaria, em última análise, repudiar conquista de inegável valor
político-jurídico. (fls. 08/09)
Voto, assim, tendo presentes as razões expostas, pela concessão
integral da liminar postulada. (fls. 10)
271 Confira-se a reprodução do pensamento do Ministro Pertence sobre
a questão: De tal modo, Senhor Presidente, que o que choca, realmente,
na Medida Provisória 173 são a generalidade e a imprecisão. Não se trata,
apenas, de proteger leis de emergências. Repito: se fez uma reforma, que
eu não tenho como avaliar neste momento, as suas repercussões, uma
reforma diversificada da Legislação Tributária Federal e até se chegou ao
Direito Privado, ao Direito Cambial. (...) Mas, Senhor Presidente, essa
generalidade e essa imprecisão, que a meu ver, podem vir a condenar, no
mérito, a validez desta medida provisória, dificultam, sobremaneira agora,
esse juízo sobre a suspensão liminar dos seus efeitos, nesta ação direta.
Para quem, como eu, acentuou que não aceita veto peremptório, veto a
conseqüente afronta à jurisdição legítima do Poder Judiciário. (fls.
10)
(...) Por isso, Senhor Presidente, depois de longa reflexão, a
conclusão a que cheguei, data venia dos dois magníficos votos
precedentes, é que a solução adequada às graves preocupações que
manifestei — solidarizando-me nesse ponto com as idéias já manifestadas
pelos dois eminentes Pares — não está na suspensão cautelar da eficácia,
em tese, da medida provisória. O caso, a meu ver, faz eloqüente a extrema
fertilidade desta inédita simbiose institucional que a evolução
constitucional brasileira produziu, gradativamente, sem um plano
preconcebido, que acaba, a partir da Emenda Constitucional 16, a acoplar
o velho sistema difuso americano de controle da constitucionalidade ao
novo sistema europeu de controle direto e concentrado. Mostrei as
dificuldades que vejo na suspensão cautelar da eficácia da própria lei em
tese. (fls. 11)
(...) O que vejo, aqui, embora entendendo não ser de bom aviso,
naquela medida de discricionariedade que há na grave decisão a tomar, da
suspensão cautelar, em tese, é que a simbiose institucional a que me
referi, dos dois sistemas de controle da constitucionalidade da lei,
permite não deixar ao desamparo ninguém que precise de medida liminar
em caso onde — segundo as premissas que tentei desenvolver e melhor do
que eu desenvolveram os Ministros Paulo Brossard e Celso de Mello — a
vedação da liminar, por que desarrazoada, por que incompatível com o
art. 5', XXXV, por que ofensiva do âmbito de jurisdição do Poder
Judiciário, se mostra inconstitucional. Assim, creio que a solução estará
no manejo do sistema difuso, porque nele, em cada caso concreto,
nenhuma medida provisória pode subtrair ao juiz da causa um exame da
constitucionalidade, inclusive sob o prisma da razoabilidade, das
restrições impostas ao seu poder cautelar, para, se entender abusiva essa
restrição, se a entender inconstitucional, conceder a liminar, deixando de
dar aplicação, no caso concreto, à medida provisória, na medida em que,
em relação àquele caso, a julgue inconstitucional, porque abusiva. (fls.
12)
198
199
crita da seguinte forma: uma regra de natureza infraconsti-
tucional encontra-se em aparente colisão com um princípio
constitucional — o princípio do acesso à Justiça ou da ina-
fastabilidade do controle judicial. Para o Ministro Celso de
Mello trata-se de um caso simples de inconstitucional ida-
de: para ele há de fato uma colisão total entre a regra e o
princípio constitucional de modo que a primeira será na-
pios constitucionais: no primeiro caso o choque poderá se
dar com o núcleo do princípio; no segundo com a área não
uclear do princípio. Para essas duas situações de conflito
potencial já se pode apresentar soluções padronizadas:
quando a regra infraconstitucional viola o núcleo essencial
do princípio constitucional haverá simples inconstituciona-
lidade da regra e não ponderação. No segundo quando a
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turalmente inválida. Não há novidade neste ponto. Para os
Ministros Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence no entan-
to a situação é diversa. Ambos reconhecem que a regra cria
iestrições ao princípio. Entretanto algumas dessas restri-
ções serão aceitáveis e legítimas; outras ao contrário afe-
tarão tão gravemente o acesso à Justiça que não podem ser
consideradas válidas Ou seja: uma regra poderá valida-
mente restringir o princípio até um determinado ponto
mas não além dele.
De certa forma a conclusão dos dois Ministros decorre da
circunstância registrada acima de que muitos princípios
são compostos por duas áreas de sentido: um núcleo onde
se situam seus efeitos essenciais e uma área não nuclear
como a coroa de dois círculos concêntricos para onde o
princípio se expande quase indefinidamente dependendo
das concepções individuais acerca do tema. Caso a restri-
ção produzida por uma regra incida nessa área de expansão
não haverá invalidade ao passo que se a restrição disser
respeito ao núcleo do princípio haverá inconstitucionalida-
de. O interessante no caso examinado pelo STF é que as
diferentes normas produzindo diversos níveis de restrição
do princípio constitucional terão como origem o mesmo
enunciado normativo o mesmo dispositivo legal: a
MP
n°
173/1990.
O precedente examinado ilustra duas possibilidades
em que regras estarão entrando em confronto com princí-
oposição se passa entre a regra e a área não nuclear de um
princípio em geral a regra permanecerá sendo considerada
válida na qualidade de opção legítima do legislador demo-
cráticom e nesse ponto se realiza o primeiro parâmetro
descrito acima: as regras têm preferência sobre os prin-
cípios.
VIII.2. É possível ponderar regras?
a Modalidades de conflitos envolvendo regras
A despeito de toda a fundamentação do parâmetro que
se acaba de expor a experiência tem demonstrado que esse
modelo adotado de forma pura se mostra muitas vezes
insuficiente diante de casos concretos. Ou seja há hipóte-
ses em que a regra perfeitamente válida em tese e perti-
nente no caso parece desencadear um conflito insustentá-
vel com outros enunciados normativos. Como resolver esse
conflito? Parte da doutrina sustenta que nesses casos tam-
272 Salvo por natural se a opção do legislador for tão incompatível com
os efeitos pretendidos pelo princípio que esteja fora inclusive de sua área
não nuclear Nessa hipótese a regra será inválida por conta da eficácia
negativa reconhecida aos princípios.
201
00
bém a regra deve ser ponderada. Será? 7 3
Como exposto
acima, a lógica da ponderação está associada à estrutura dos
princípios, de modo que é possível ponderá-los sem que
isso produza a sua não aplicação absoluta
7 4
. Em outras pa-
273 Na verdade, essa parece ser a posição dos autores que concebem a
ponderação (i) em sentido amplo (pela qual todos os tipos de argumentos,
lavras, a ponderação pode conduzir a uma compressão recí-
proca entre os princípios envolvidos (suas áreas não nuclea-
res), que prosseguem sendo aplicados e respeitados como
válidos, ainda que em intensidades diversas. Mas o que di-
zer das regras?
É verdade que, por vezes, elementos contidos na pró-
pria estrutura da regra conferem ao intérprete certa liber-
dade na definição de seu sentido. O exemplo mais evidente
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jurídicos e não jurídicos, são levados em consideração) e (ii) como uma
atividade inerente a qualquer interpretação jurídica (vide Capítulo I).
Para eles, as regras poderiam ser superadas mediante um processo de
ponderação de razões: se há mais razões para a aplicação da regra, ela deve
prevalecer; se, ao contrário, há mais razões para sua não incidência, não se
deve aplicá-la. As normas que decorrem das regras, portanto, teriam um
caráter apenas preliminar, já que poderiam ser afastadas por razões
contrárias, cabendo ao julgador, em cada caso concreto, fazer essa
avaliação. Nesse sentido, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios
2003,
pp. 45 e 46: As regras também podem ter seu conteúdo preliminar de
sentido superado por razões contrárias, mediante um processo de
ponderação de razões. Ademais, isso ocorre nas hipóteses de relação entre
a regra e suas exceções. A exceção pode estar prevista no próprio
ordenamento jurídico, hipótese em que o aplicador deverá, mediante
ponderação de razões, decidir se há mais razões para a aplicação da
hipótese normativa da regra ou, ao contrário, para a de sua exceção. (...) E
a exceção pode não estar prevista no ordenamento jurídico, situação em
que o aplicador avaliará a importância das razões contrárias à aplicação da
regra, sopesando os argumentos favoráveis e os argumentos contrários à
criação de uma exceção diante do caso concreto. (...) O importante é que
o processo mediante o qual
as exceções
são constituídas também é um
processo de valoração de razões; em função da existência de uma razão
contrária que supera axiologicamente a razão que fundamenta a própria
regra, decide-se criar uma exceção. Trata-se do mesmo processo de
valoração de argumentos e contra-argumentos — isto é, de ponderação. .
V. sobre o tema HAGE, Jaap C.
Reasoning with Rules 1997
p. 113 e ss..
Como se verá no texto, não se está de acordo com essa posição, ao menos
não na abrangência sugerida.
274 Mesmo os autores que sustentam a possibilidade genérica da
ponderação de regras reconhecem que se trata de um mecanismo
excepcional, urna vez que a ponderação se aplica mais propriamente aos
princípios. V. PECZENIK, Aleksander. On
Law and Reason
1989, p. 81:
202
dessa situação é o das regras que empregam conceitos jurí-
dicos indeterminados ou cláusulas de indeterminação de
outra natureza — como mulher honesta , relevante inte-
resse social , dentre outros. Nessas hipóteses, o aparente
conflito da regra com outras disposições poderá ser supera-
do dependendo do sentido que se atribua ao conceito nela
contido
5 .
Weighing in the law also concerns both principies and rules. All socially
established legal norms, expressed in statutes, precedents etc., have a
merely prima facie character. The step from prima facie legal mies to the
ali-things-considered legal (and moral) obligations, claims etc. involves
evaluative interpretation, that is, weighing and balancing. For that reason,
one may doubt whether the distinction between rules and principies is
important. To answer this question, one must evaluate the following
differences between rules and principles. (The list of differences has been
elaborated in cooperation with Aulis Aamio). 1. Unlike a principie, the
rule in question may be obeyed or not. There are no degrees of obedience.
The rule does not claim to be obeyed as much as possible. h rather claims
to be obeyed in so many cases as possible. (...) In routine ('easy') cases,
one ought to follow socially established legal rules without any necessity
of weighing and balancing. An act of weighing and balancing is then
necessary only in order to ascertain whether the case under adjudication
is an easy one or not. Only if the case is not easy but 'hard', must one
perform a value-laden legal reasoning, that is, an act of weighing and
balancing. On the other hand, no cases of application of principies are
easy. (grifos no original)
275 No HC 73662/MG (Rel. MM. Marco Aurélio, DJU 20.09.1996), já
referido, o aparente conflito normativo foi resolvido por esse mecanismo.
203
Nada obstante, quando não for esse o caso, é difícil
conceber a aplicação mais ou menos intensa de determina-
da regra. E a submissão de uma regra ao processo de ponde-
ração poderá ter como resultado final a sua não aplicação
no caso específico. Isto é: a ponderação de regras poderá
acarretar a ruptura do sistema do Estado de direito, já que
o intérprete simplesmente deixaria de aplicar uma regra
Em caso que obteve pouca repercussão na imprensa, a
2
a Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade,
sendo relator do feito o Ministro Marco Aurélio, decidiu
trancar ação penal proposta com fundamento no art. 1° do
Decreto-lei n° 201/1967
, contra ex-prefeita, por contra-
tação sem realização de concurso público. A hipótese pode
ser resumida nos seguintes termos'.
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válida em abstrato e que seria pertinente no caso concreto.
Como lidar com essa espécie de dificuldade?
Na verdade, é importante distinguir duas modalidade
s
bastante diferentes de situações que envolvem regras e re-
lativamente às quais parece ser necessário empregar a pon-
deração. A
primeira
delas, e por certo a mais freqüente, se
dá quando a incidência da regra no caso produz uma injus-
tiça tão grave que parece intolerável. Por conta do sentido
relativamente indeterminado da idéia de justiça, é comum
que o intérprete perceba e descreva o problema como um
conflito da regra com princípios como os da razoabilidade,
proporcionalidade e até o da dignidade humana, e acabe
deixando de aplicar a regra alegando que procedeu a uma
ponderação. Um exemplo ajudará o entendimento.
A 2' Turma do STF dividiu-se entre conceder ou não a ordem a rapaz que
havia mantido relações sexuais com menor de 14 anos por conta das
circunstâncias do caso, que indicavam que a relação havia sido consentida
pela moça. A decisão da maioria, pela concessão da ordem, fundou-se em
uma reinterpretação da expressão presunção de violência
contida nos
arts. 213 e 224,
a
do Código Penal, que foi compreendida na hipótese
como consagrando uma presunção relativa, e não absoluta.
276 Embora não haja necessidade de aprofundar a discussão nesta sede,
vale registrar que razoabilidade e proporcionalidade não são expressões
tecnicamente fungíveis, como a doutrina contemporânea tem procurado
destacar. V. sobre o tema, ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princípios
2003, p. 94 e ss.; e SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o
razoável
Revista dos Tribunais n° 798, 2002, pp. 23 a 50.
204
O Município de São José de Coroa Grande, Pernambu-
co, contratou sem concurso público, por um período de
cerca de 9 (nove) meses (12 de abril de 1992 a 28 de
janeiro de 1993), um gari. Posteriormente, o gari veio a
ingressar na justiça trabalhista para ver reconhecida uma
série de direitos e o Município, em sua defesa, alegou a
nulidade da relação por ausência de concurso público. O
Juízo trabalhista acolheu a alegação, julgou improcedente a
reclamação trabalhista e determinou a remessa de peças ao
Ministério Público, para que este promovesse a responsabi-
lização da autoridade responsável pela contratação direta.
A ação penal foi então proposta contra a ex-prefeita. O
habeas corpus
foi impetrado contra o acórdão do Superior
277 Decreto-Lei n°201/1967: Art.1 — São crimes de responsabilidade
dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário,
independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
(...) XIII — Nomear, admitir ou designar servidor, contra expressa
disposição de lei.
(...) § I° Os crimes definidos neste artigo são de ordem pública,
punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e
os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos.
§ 2° A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste
artigo acarreta a perda do cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos,
para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem
prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou
particular.
278 STF, Rel. Min. Marco Aurélio, HC 770034/PE, DJU 11.09.98.
205
Tribunal de Justiça que confirmou o recebimento da de-
núncia contra a ex-Prefeita.
A 2' Turma do Supremo Tribunal Federal, em votação
unânime, concedeu a ordem de
habeas corpus
determinan-
do o trancamento da ação penal por falta de justa causa.
Não foi suscitada, nem mesmo pela impetrante (ao menos
ao que consta do relatório), qualquer discussão sobre os
fatos: realmente houve a contratação direta do gari, sem
ção da regra. Em resumo, a incidência da regra no caso
produzia um resultado tão injusto, que ela foi afastada.
Note-se que em ponto algum se questionou a validade do
art. 1° do Decreto-lei n°201/1967, a estatura constitucio-
nal da exigência do concurso público ou a ilicitude de sua
não observância. Apenas se considerou que, naquele caso, a
conseqüência indicada pelo enunciado era grave demais.
O problema da injustiça grave que decorre da incidên-
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concurso público, pelo período referido. Em seu relatório,
o
Ministro Marco Aurélio reproduz afirmação do impetran-
te de que a ex-Prefeita sequer conhecia o gari, mas nenhum
dos votos fez qualquer consideração sobre esse ponto.
A conclusão dos Ministros para o caso foi, textualmen-
te, a seguinte:
insignificância jurídica do ato apontado
como delituoso gerando falta de justa causa para a ação
penal.
Para fundamentar sua conclusão, o acórdão invoca
genericamente os princípios constitucionais da razoabilida-
de e da proporcionalidade e o princípio da insignificância
ou da bagatela, considerando-se que
o evento isolado não
tem nenhuma significação no contexto jurídico da vida de
uma pessoa jurídica de direito público .
Uma última ordem de argumentação adotada no julga-
mento tem natureza pragmática: Não se coaduna com os
interesses maiores da sociedade acionar-se o Judiciário, mo-
vimentando-o, no que já por demais sobrecarregado, tendo
presente situação concreta que nenhum prejuízo trouxe para
o
bem protegido pelo Decreto-lei n° 201/67. .
O acórdão
afirma ainda que o evento não teria causado prejuízo para a
Municipalidade.
Da leitura do acórdão resta bastante claro que os Minis-
tros simplesmente não estavam dispostos a atribuir uma
conseqüência tão grave, como uma ação e uma possível
condenação penais, a um evento tão sem importância real,
embora a hipótese se enquadrasse perfeitamente na descri-
cia de uma regra é relativamente fácil de apreender, ainda
que difícil de solucionar. Embora as regras tratem, em ge-
ral, de condutas, sem maiores considerações sobre o propó-
sito para que foram concebidas, essas condutas estão indi-
retamente associadas, por evidente, a fins e a valores que
buscam realizar. Daí por que se visualiza nas regras
razões
entrincheiradas 9 .
Com essa expressão se pretende trans-
mitir a idéia de que as regras estão ligadas a razões ° últi-
279 A expressão ( razões entrincheiradas ) é de Humberto Ávila. O
autor, tratando sobre a possibilidade de ponderação de regras, faz o
seguinte registro: ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princípios, 2003, p. 58:
é preciso ponderar a razão geradora da regra com as razões substanciais
para o seu não cumprimento, diante de determinadas circunstâncias, com
base na finalidade da própria regra ou em outros princípios. Para fazê-lo,
porém, é preciso uma fundamentação que possa superar a importância
das razões de autoridade que suportam o cumprimento incondicional da
regra. . Para uma abordagem geral sobre problemas envolvendo a
interpretação de regras, v. SUNSTEIN, Cass R.
Problems with Rules,
California Law Review n°83, 1995, pp. 953 a 1023.
280 Para uma abordagem mais profunda do conceito de razão na
argumentação jurídica, v. HAGE, Jaap C. Reasoning with Rides, 1997, p.
45: Reasons are facts that derive their status of reasons from a mental
disposition that a belief in the reason causes a belief in the conclusion of
the reason. This means that reasons are on the one hand facts, and
therefore part of the world, and on the other hand mind-dependent. The
causal connection in the mind that forms the basis for the existence of
reasons is dispositional. The belief in the presence of a reason need not
always cause a belief in the conclusion of this reason. If a dispositional
207
206
mas que lhes deram origem, mas a discussão sobre elas está
a priori bloqueada por uma espécie de trincheira. Essa trin-
cheira pode ser descrita como a necessidade de segurança
jurídica e de previsibilidade das relações no âmbito do Es-
tado de direito, que levam o legislador exatamente a insti-
tuir determinada providência sob a forma de regra. Não é
difícil perceber que o sistema seria muitas vezes mais inse-
guro se a cada incidência de uma regra se reabrisse o debate
adequado sacrificar o indivíduo afetado pelo caso concreto
no altar do aprimoramento das instituições político-jurí-
dicas
Ou seja: além dos fins específicos para os quais a con-
duta determinada pela regra pretende contribuir, a simples
observância de seu enunciado realiza outros fins essenciais
ao sistema jurídico, dentre os quais o da segurança e da
previsibilidade 8 . Isso torna o debate sobre a ponderação
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acerca de seus fins e de sua justiça ou injustiça e sua aplica-
ção pudesse ser afastada.
A observância fiel das regras, ainda que elas possam
gerar incidências injustas ocasionais, é um meio de fortale-
cer o respeito institucional pela ordem jurídica. Parece evi-
dente que a flexibilização corriqueira do disposto pelas re-
gras fragiliza a estrutura do Estado de direito, além de favo-
recer o exercício de autoridades arbitrárias e voluntaristas.
Com efeito, se cada aplicador puder afastar uma regra por-
que a considera injusta no caso concreto, pouco valor terão
as regras e o ofício do legislador
8
' . Por outro lado, será
connection between beliefs is to give rise to reasons, this connection must
both be known and it must be approved of. If the causal connection
between the belief in a reason and the belief in the conclusion of this
reason is incidentally interrupted, there are three
the
interruption is the consequence of belief in the presence of an
exclusionary reason; 2. the interruption is the consequence of the belief
in the presence of a reason against the conclusion; 3. the interruption is a
case of irrationality.
281 HECK, Luís Afonso. Regras, princípios jurídicos e sua estrutura no
pensamento de Robert Alexy .
In:
LEITE, George Salomão
(organizador).
Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das
normas principiológicas da Constituição
2003, p. 65: Quem quer inserir
uma exceção carrega uma carga argumentativa, que se refere não só a isto,
que Sua resolução deve ser melhor que a prevista pela regra, mas também
a isto, que ela deve ser tanto melhor que se justifique um desvio de algo
determinado autorizadamente. Isso é um fundamento para isto, que
208
de regras consideravelmente mais complexo, já que não se
trata apenas de uma disputa entre os efeitos pretendidos
pela regra e pelos outros enunciados normativos aparente-
mente em colisão. Mais que isso, cuida-se de uma erupção
da tensão permanente que perpassa o sistema jurídico en-
tre a realização da justiça no caso concreto e o aperfeiçoa-
mento institucional do Estado de direito.
Esse conflito pode ser ilustrado com um exemplo. A
Constituição de 1988 prevê, de forma clara, que serão
inadmissíveis no processo as provas obtidas ilicitamentem.
Boa parte da doutrina: 8 4
e da jurisprudência, e essa é a
posição do Supremo Tribunal Federal, entendem que em
nenhuma hipótese se poderá flexibilizar a regra constitu-
regras têm um caráter
prima facie
essencialmente mais forte que
princípios. As regras formam, em virtude dessa qualidade, a parte dura do
ordenamento jurídico. Quanto mais peso é atribuído ao princípio da
vinculação no determinado autorizadamente e quanto mais é fixado por
regras, tanto mais duro é o ordenamento jurídico.
282 NOVAIS, Jorge Reis .
As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constiuição
2003, pp. 348 e 349.
283 CF : Art. 5°. (...) LVI — são inadmissíveis, no processo, as provas
obtidas por meios ilícitos.
284 Para uma discussão mais ampla sobre o tema, v. GRINOVER, Ada
Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio
Magalhães.
As nulidades no processo penal
1998.
209
cional
8
. E isso não apenas porque a regra não admite essa
possibilidade, mas também porque seria catastrófico para a
construção do respeito aos direitos fundamentais, obra ain-
da em curso no âmbito das estruturas de investigação cri-
minal, a possibilidade de se validar uma prova obtida ilici-
tamente. Alguns autores, porém, como o ilustre Professor
José Carlos Barbosa Moreira
8 6
, tendo em conta outros ele-
mentos, entendem diversamente e admitem alguma espé-
como fins da República'ss, o constituinte tornou difícil a
convivência de decisões gravemente injustas dentro do sis-
tema
8 9
.
Como equilibrar essas necessidades? No próximo tópi-
co serão propostas três formas de lidar com o problema das
incidências injustas de regras. Antecipando o que será ex-
posto, é possível dizer, de forma simples, que, (i) em qual-
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cie de flexibilização da regra constitucional diante de casos
excepcionais.
Há ainda um outro aspecto a considerar. Se a aplicação
da regra, embora válida em tese, gera uma situação de grave
injustiça no caso concreto
8 7
, as opções políticas formula-
das pelo constituinte de 1988 oferecem de fato amplo su-
porte àquele que procure uma fórmula para superar a situa-
ção de injustiça. Ao consagrar,
e.g.
a justiça, geral e social,
285 Essa é também a posição de parte da doutrina portuguesa em relação
a dispositivo similar contido naquela Carta. V. NOVAIS, Jorge Reis.
As
restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constiuição
2003, pp. 374 a 375: Por exemplo, quando a nossa
Constituição prescreve a nulidade de todas as provas obtidas mediante
abusiva intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou
nas telecomunicações (art. 32, n° 8) a essa disposição subjaz uma óbvia
ponderação de bens. (...) Portanto, as proibições ou imposições decididas
pelo legislador constituinte como resultado de juizos próprios de
ponderação de bens são para levar a sério; por mais que tais resultados lhes
desagradem ou pareçam absurdos, não podem, em consequência,
legislador ordinário, Administração e poder judicial ignorá-los ou
substituí-los pelas suas próprias valorações.
286 BARBOSA MOREIRA, José Carlos.
A Constituição e as provas
ilicitamente obtidas. Revista Forense n°337, 1997, pp. 125 a 134.
287 Note-se que para se chegar a tal conclusão terá sido necessário
percorrer ao menos as duas primeiras etapas da ponderação descritas na
parte anterior do estudo.
288 Preâmbulo, art.
30,1
e 170.
289 Diante dessa espécie de situação, G ünther sustenta que a validade e
a aplicabilidade das disposições normativas formam duas questões
distintas, GONTHER, Klaus. Un
concepto normativo de coherencia para
una teoria de Ia argumentacion jurídica
Revista Doxa n° 17-18, 1995,
pp. 279 e 283: Deseo defender la tesis de que con la fundamentación
imparcial de la validez de una norma pensamos algo diferente a su
aplicación imparcial en un caso particular. Deberia setialarse que a nuestra
comprensión pragmática de una norma válida no pertenece la adecuación
de su aplicación en cualquier caso particular, por lo que tampoco seria
necesaria aquella hipótesis irrealista de que debamos estar en la situación
de prever todas las colisiones pensables de intereses en todo los posibles
casos particulares. (...). De cara a una situación de acción las normas
válidas solo son acplicables prima facie. Este es siempre el caso si las
circunstancias previstas por cilas se dan en una situación de aplicación.
Las circunstancias que se mantienen iguales deben completarse, por
tanto, con una descripción integra de la situación que considere también
las circunstancias variables en cada situación. Dado que esta tarea no la
puede atender ex definitione un discurso de validez, se necesita para elle
un discurso de un tipo especial, ai que en lo sucesivo me referiré como
discurso
de aplicación'. Tan pronto como iniciamos este discurso
debemos ampliar la perspectiva presupuesta con la validez de una norma
a las circunstancias que se mantienen en cada situación. En el discurso de
aplicación las normas válidas tienen tan solo el status de razones prima
facie para la justificación de enunciados normativos particulares tipo
'debes hacer ahora p'. . A despeito da propriedade da distinção, o
imp cto do discurso d v lid de sobre o d plic ção p rece
excessivamente frágil, já que com muita facilidade uma disposição válida
poderá ser considerada inaplicável. O ponto ficará mais claro ao longo do
texto.
211
210
quer caso, a regra deverá ser interpretada de acordo com a
eqüidade; que ii) a regra poderá deixar de ser aplicada na
hipótese de ser possível caracterizar a imprevisão legislati-
va; e que iii) uma determinada norma, produzida pela in-
cidência da regra, poderá ser declarada inconstitucional,
ainda que o enunciado da regra permaneça válido em tese.
Fora dessas hipóteses, isto é, caso afora o uso da eqüidade)
não seja razoável demonstrar a imprevisão legislativa e não
O Supremo Tribunal Federal já examinou alguns casos
similares entre si) em que essa espécie de colisão entre
regras pode ser identificada. Tratava-se de hipótese em que
Estado da Federação não dispunha de recursos para pagar
os precatórios relativos a créditos alimentares, nos termos
do art. 78 do ADCT, e cumprir, ao mesmo tempo, outras
regras constitucionais que exigem investimentos específi-
cos de recursos públicos, como é o caso da obrigação de
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se possa sustentar de maneira consistente a inconstitucio-
nalidade da norma particular, não será legítimo pretender
afastar uma regra a pretexto de ponderá-la.
Cabe ainda identificar, como referido acima, o
segun-
do
tipo de situações nas quais a ponderação estaria envolvi-
da com regras. Esse segundo grupo é bastante excepcional
e congrega aquelas hipóteses em que há uma colisão de
regras, insuperável por qualquer das técnicas tradicionais
da hermenêutica jurídica. Embora pouco freqüentes, esses
casos também exigem a atenção da doutrina e da jurispru-
dência.
Em tais hipóteses, cuida-se na verdade de uma ruptura
do sistema jurídico, pois a antinomia será de tal ordem que
restará ao intérprete apenas escolher qual das regras deverá
ser obedecida e qual delas, desrespeitada. A rigor, sequer
se trata aqui de uma ponderação jurídica ou normativa, mas
sim de uma ponderação de valores ou bens de forma mais
geral. Isso porque, para escolher que regra deve ser aplica-
da, será necessário ascender na escala de abstração e exami-
nar os fins, as razões e os valores que, em última análise,
justificam cada uma das duas regras em confronto as pró-
prias
razões entrincheiradas
referidas acima). De toda for-
ma, nesse ambiente de disputa, será especialmente útil
aplicar não só o raciocínio ponderativo descrito nos capítu-
los anteriores, como também os parâmetros sobre os quais
se tratará nos capítulos seguintes.
aplicar determinados percentuais em prestações de saúde e
educação. Como se sabe, uma das conseqüências possíveis,
tanto do não pagamento dos precatórios, como da não apli-
cação dos percentuais previstos na Carta em prestações de
saúde e educação, é a intervenção federal CF, art. 34, VI
e VII,
e .
A questão que se colocava, portanto, era a de saber se
se deveria autorizar a intervenção, aplicando-se as regras
que disciplinam os precatórios e, indiretamente, determi-
nando o seu pagamento, ao passo que, com o mesmo ato, se
estaria provocando o descumprimento de outras regras
constitucionais. Ao votar em um dos casos, além das regras
específicas em confronto, o Ministro Gilmar Mendes sus-
citou os demais enunciados pertinentes, incluindo princí-
pios, e também outros bens relevantes, como é o caso, a
favor da intervenção, da necessidade de proteção das deci-
sões judiciais e, em sentido oposto, o princípio da autono-
mia dos Estados.
Quanto aos aspectos de fato, a Corte destacou, de um
lado, a boa fé do Estado no caso, que estaria empenhando
seus melhores esforços para solucionar o problema finan-
ceiro. De outro, e o voto do Ministro Gilmar Mendes des-
taca o ponto, a circunstância de que a insuficiência de re-
cursos não seria superada pela simples presença de um in-
terventor. Também ele teria de lidar não apenas com as
limitações financeiras, mas também com as demais regras
212
213
constitucionais que impõem despesas ao Estado de modo
que a intervenção na hipótese restringiria a autonomia do
Estado sem qualquer proveito para o cumprimento da re-
gra pretendida. Na verdade o descumprimento das outras
regras constitucionais envolvendo as aplicações mínima
s
em educação e saúde também ensejam intervenção fede-
ral. Em suma: a providência seria desproporcional.
Nesse contexto a conclusão da Corte foi a de que na
da a proveniente de transferências,
na
manutenção e
desenvolvimento do ensino. A Constituição também pre-
vê, no art. 198, § 2°, a aplicação de recursos mínimos
pelos Estados na área de saúde.
O
descumprimento de
tais obrigações, por óbvio, representaria negativa de efi-
cácia a normas constitucionais, bem como implicaria a
configuração de específica hipótese de intervenção fede-
ral. De fato, o art. 34, VI, alínea 'e', prevê expressamente,
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214
15
medida em que o Estado não esteja atuando dolosamente
com o fim de não pagar suas obrigações — ao contrário
uma vez que seja possível aferir sua boa-fé na gestão dos
recursos públicos — a intervenção não deveria ser autori-
zada por ser desproporcional. Considerou-se ainda que en-
tre a regra que impõe o pagamento dos precatórios e as
regras que determinam o investimento em saúde e educa-
ção estas últimas deveriam ter preferência. Ainda que a
transcrição seja um pouco longa vale reproduzir trecho es-
pecialmente interessante do voto do Ministro Gilmar
Mendes que acabou por conduzir o julgamento:
É evidente a obrigação constitucional quanto aos pre-
catórios relativos a créditos alimentícios, assim como o
regime de exceção de tais créditos, conforme a disciplina
do art. 78 do ADCT. Mas também é inegável, tal como
demonstrado, que o Estado encontra-se sujeito a
u
quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia.
Nesse quadro de conflito, assegurar, de modo irrestrito
e imediato, a eficácia da norma contida no art. 78 do
ADCT, pode representar negativa de eficácia a outras
normas constitucionais. Exemplo bastante ilustrativo é
a obrigação dos Estados no que se refere à educação e à
saúde. Nos termos do art. 212 da Constituição, os Esta-
dos estão obrigados a aplicar vinte e cinco por cento, no
mínimo, da receita resultante de impostos, compreendi-
como hipótese de intervenção, a garantia da observância
da 'aplicação do mínimo exigido da receita resultante
de impostos estaduais, compreendida a proveniente de
transferências, na manutenção e desenvolvimento do en-
sino e nas ações e serviços públicos de saúde'.
Diante de tais circunstâncias, cumpre indagar se a me-
dida extrema da intervenção atende, no caso, às três
máximas parciais da proporcionalidade.
É duvidosa, de imediato, a adequação da medida de
intervenção.
O
eventual interventor, evidentemente, es-
tará sujeito àquelas mesmas limitações factuais e nor-
mativas a que está sujeita a Administração Pública do
Estado. Poderá o interventor, em nome do cumprimento
do art. 78 do ADCT, ignorar as demais obrigações cons-
titucionais do Estado? Evidente que não. Por outro lado,
é inegável que as disponibilidades financeiras do regime
de intervenção não serão muito diferentes das condições
atuais.
Enfim, resta evidente que a intervenção, no caso, sequer
consegue ultrapassar o exame de adequação, o que bas-
taria para demonstrar sua ausência de proporcionali-
dade.
Também é duvidoso que o regime de intervenção seja
necessário, sob o pressuposto de ausência de outro meio
menos gravoso e igualmente eficaz. Manter a condução
da Administração estadual sob o comando de um Go-
vernador democraticamente eleito, com a ressalva de
que esteja o mesmo atuando com boa-fé e com o inequí-
voco propósito de superar o quadro de inadimplência, é
inegavelmente medida menos gravosa que a ruptura n
condução administrativa do Estado (...).
A intervenção não atende, por fim, ao requisito da pro-
porcionalidade em sentido estrito. Nesse plano, é neces-
sário aferir a existência de proporção entre o objetivo
cional da intervenção, somado às circunstâncias já ex-
postas recomendam a precedência condicionada do
princípio da autonomia dos Estados.
(.-.)
Desse modo, enquanto o Estado de São Paulo se manti-
ver diligente na busca de soluções para o cumprimento
integral dos precatórios judiciais, não estarão presentes
os pressupostos para a intervenção federal ora solicita-
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perseguido, qual seja o adimplemento de obrigações de
natureza alimentícia, e o ônus imposto ao atingido que,
no caso, não é apenas o Estado, mas também a própria
sociedade. Não se contesta, por certo, a especial relevân-
cia conferida pelo constituinte aos créditos de natureza
alimentícia. Todavia, é inegável que há inúmeros outros
bens jurídicos de base constitucional que estariam sacri-
ficados na hipótese de uma intervenção pautada por um
objetivo de aplicação literal e irrestrita das normas que
determinam o pagamento imediato daqueles créditos.
.. 3
Estão claros, no caso, os princípios constitucionais
m
situação de confronto. De um lado, em favor da inter-
venção, a proteção constitucional às decisões judiciais, e
de modo indireto, a posição subjetiva de particulares
calcada no direito de precedência dos créditos de natu-
reza alimentícia. De outro lado, a posição do Estado, no
sentido de ver preservada sua prerrogativa constitucio-
nal mais elementar, qual seja a sua autonomia, e, de
modo indireto, o interesse, não limitado ao ente federa-
tivo, de não se ver prejudicada a continuidade da pres-
tação de serviços públicos essenciais, como educação e
saúde.
Assim, a par da evidente ausência de proporcionalidade
da intervenção para o caso em exame, o que bastaria
para afastar aquela medida extrema, o caráter excep-
da. Em sentido inverso, o Estado que assim não proceda
estará sim, ilegitimamente, descumprindo decisão judi-
cial, atitude esta que não encontra amparo na Consti-
tuição. °
A ponderação em casos como o descrito acima é capaz
de orientar a decisão acerca de qual regra deve ser escolhi-
da. Embora essa espécie de situação continue a representar
uma quebra do sistema, o emprego da ponderação ao me-
nos conferirá maior racionalidade à decisão a ser tomada.
De todo modo, não se trata rigorosamente de uma ponde-
290 STF, IF 164/SP, Rel. MM. Gilmar Mendes, DJU 14.11.2003. Na
verdade, o Ministro reproduziu o seu voto proferido na IF 29I5-5/SP. Em
artigo doutrinário, o hoje Ministro Eros Roberto Grau examinou conflito
similar e concluiu em sentido semelhante: GRAU, Eros Roberto.
A
emenda constitucional n° 30/00: pagamento de precatórios judiciais,
Revista de Direito Administrativo n° 229, 2002, p. 98: Assim,
demonstrada ao Poder Judiciário a excepcionalidade expressa na
inexistência de disponibilidades de caixa suficientes para o pagamento
integral dos precatórios — e quero deixar bem claro que a existência de
disponibilidades para tanto apenas poderá ser computada após a reserva
dos recursos financeiros indispensáveis a assegurar a continuidade dos
serviços públicos — demonstrada essa excepcionalidade, dizia, o
pagamento insuficiente das quantias por ele determinadas não ensejará o
seqüestro; no caso, aliás, não haverá mesmo recursos que possam ser
seqüestrados sem violência ao principio da continuidade dos serviços
públicos.
216
217
ração entre as regras, isto é, entre seus enunciados norma-
tivos, mas sim entre o conjunto de razões e valores que se
acomodam atrás desses enunciados.
Antes de prosseguir no exame para investigar os três
subparâmetros propostos relativamente à questão da inci-
dência injusta de regras, convém fazer uma última observa-
ção. Na parte inicial deste capítulo procurou-se demons-
trar que o primeiro parâmetro para a ponderação é aquele
pelo qual as regras têm preferência sobre os princípios (so-
com fundamento nas leis de Newton o homem chegou à
lua e prevê com precisão os movimentos planetários, e ape-
nas por conta das descobertas de Einstein foi possível de-
senvolver a energia nuclear. Einstein
9
passou boa parte de
sua vida em busca de uma teoria geral que harmonizasse as
diferentes leis cientificas, que até hoje não foi descoberta.
Nem por isso suas conclusões perderam importância ou
utilidade. Stephen W. Hawking, eleito para ocupar a cadei-
ra de Isaac Newton em Cambridge, registra essa limitação
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bre a área não nuclear deles, lembre-se). Mais que isso,
sustentou-se que as regras não estão logicamente sujeitas à
ponderação. Nada obstante, o que se acaba de registrar, e
igualmente as três fórmulas que se vai discutir na seqüên-
cia, revela que esse parâmetro sofre algumas limitações. E
é de todo conveniente dispor de humildade intelectual
para reconhecê-lo.
Os esquemas intelectuais e as concepções doutrinárias
são necessários e úteis, na tentativa de ordenar e explicar os
fenômenos, mas não podem ter a pretensão de abarcar toda
a realidade com precisão. Nem mesmo no ambiente das
ciências exatas é possível ambicionar esse resultado. Leis
diferentes e contraditórias convivem na Física moderna, na
medida em que cada urna delas é válida em determinado
ambiente. A lei de gravitação de Newton, por exemplo,
continua válida, ainda que alguns de seus pressupostos con-
trariem os da Teoria da Relatividade ' . Nada obstante,
291 EINSTEIN, Albert.
A teoria da relatividade especial e geral, 1999, p.
87; HAWKING, Stephen W.
Uma breve história do tempo, 1995, pp. 55
a 59; ASIMOV, Isaac.
Gênios da humanidade, vol. 2, 1980, pp. 590 a
592; e HART, Michael H.
As 100 maiores personagens da História,
2001,
pp. 58 e 100 a 103. Para Newton, diversamente do que desenvolveu
Einstein mais tarde, o tempo é absoluto e não relativo, o espaço é plano, e
não curvo, e massa e energia são fenômenos diferentes, e não aspectos
diversos do mesmo fenômeno.
218
nos seguintes termos:
Provou-se que é muito difícil descobrir uma teoria que
descreva todo o universo. Por isso divide-se o problema
em diversas partes e inventam-se inúmeras teorias par-
ciais. Cada uma delas descreve e prevê um número limi-
tado de categorias de observação, relegando os efeitos de
outras quantidades, ou os representando por conjuntos
simples de números. Pode ser que esta abordagem seja
completamente errada. Se tudo no universo, de maneira
fundamental, depende de todo o resto, talvez seja im-
possível atingir uma solução plena através da investiga-
ção das partes isoladas do problema. Ainda assim, foi
esta certamente a forma com que se fez progressos no
passado.
93
Se é assim com a física, com muito maior razão será em
temas jurídicos, cuja matéria-prima são relações sociais,
sempre embebidas de toda a complexidade que caracteriza
o homem
9 4
. Em suma: ainda que os parâmetros gerais aqui
9
Einstein — vida e pensamentos. Clipping,
1997, pp. 26 e 33.
293 HAWK1NG, Stephen
W. Uma breve história do tempo,
1995, pp.
214 e 215.
294 A presença de quebras no sistema é, a rigor, natural. CANARIS,
219
propostos devam conviver com exceções e situações ex-
cepcionais, isso não lhes retira sua consistência e validade.
h Souconandoos conflitos envovendoregras: eqüi-
dade imprevisãoeinvalidadedeincdênca especfic
a
da regra
Como identificado no item anterior, há hipóteses em
que as regras, embora aplicáveis ao caso concreto, geram
se tratou das características e das funções próprias das re-
gras e não há necessidade de reproduzi-los aqui. Afinal, que
legitimidade tem o aplicador para afastar uma decisão dos
órgãos majoritários (isto é: a regra) em favor de sua própria
concepção acerca do que é justo ou injusto, razoável ou
irrazoável? Como já se anunciou, a não ser que a decisão
majoritária seja de tal modo teratológica a ponto de ser
considerada inconstitucional ou, ainda, que seja possível
sustentar que o legislador não cogitou da circunstância con-
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uma solução profundamente injusta e inadequada. Junte-
se a isso o fato, também sublinhado, de que as opções ma-
teriais da Constituição não convivem confortavelment
com a consagração de injustiças graves; princípios como o
da justiça social, da razoabilidade e do próprio Estado de
direito repelem essa possibilidade.
Como então lidar com essa dificuldade? Autorizar am-
plamente a não aplicação das regras, na medida em que
pareçam injustas ou impróprias? Ora, os argumentos que
afastam essa linha de atuação já foram examinados quando
creta em questão, não será possível afastar uma regra a
pretexto de ponderação.
Em suma: afora o uso da eqüidade, que em qualquer
caso respeita as possibilidades semânticas do texto, o intér-
prete apenas poderá deixar de aplicar uma regra por consi-
derá-la injusta se demonstrar uma de duas situações: (i)
que o legislador, ao disciplinar a matéria, não anteviu a
hipótese que agora se apresenta perante o intérprete: im-
previsão; ou (ii) que a incidência do enunciado normativo à
hipótese concreta produz uma norma inconstitucional, de
tal modo que, ainda que o legislador tenha cogitado do caso
concreto, sua avaliação deve ser afastada por incompatível
com a Constituição. Sublinhe-se que tais fórmulas funcio-
nam como exceções ao parâmetro geral da preferência das
regras e, por isso mesmo, fazem recair sobre o intérprete o
ônus argumentativo especialmente reforçado de moti-
vação.
Feita essa introdução geral, vale fazer algumas notas
sobre as três idéias expostas, por meio das quais se poderá
superar o problema das regras injustas e da necessidade de
ponderação dessa espécie normativa: a eqüidade, a impre-
visão legislativa e a invalidade de determinada incidência
de regra em tese válida.
Como já era registrado por Aristóteles, o caso concreto
freqüentemente apresentará particularidades que não fo-
ram previstas de forma geral pelo legislador. Assim, ao apli-
Claus-Wilhelm,
Pensamentosstemáticoeconcetodesstema na cênca
dodreto 1989, pp. 199 e 200; De facto a formação de um sistema
completo numa determinada ordem jurídica permanece sempre um
objectivo não totalmente alcançado. Opõe-se-lhe, invencivelmente, a
natureza do Direito e isso a dois títulos. Por um lado, uma determinada
ordem jurídica positiva não é uma 'ratio scripta, mas sim um conjunto
historicamente formado, criado por pessoas, apresentando como tal, de
modo necessário, contradições e incompletudes, inconciliáveis com o
ideal da unidade interior e da adequação e, assim, com o pensamento
sistemático. Mas por outro, há na própria idéia de Direito um elemento
imanente contrário ao sistema e, designadamente, a chamada 'tendência
individualizadora justiça que contracenando com o pensamento
sistemático — assente na 'tendência generalizadorall — tem como
consequência o surgimento de normas que
priorise opõem à
determinação sistemática. 'Quebras no sistema e 'lacunas no sistema
são, por isso, inevitáveis.
220
221
car um enunciado normativo, o juiz poderá introduzir um
elemento adicional: a
eqüidade
que autoriza adaptar a
conseqüência a ser extraída do enunciado de acordo com as
características próprias do caso. Trata-se, como se tornou
corrente referir, da justiça do juiz ou da justiça do caso
concreto, na expressão clássica do próprio Aristóteles
9
s.
295 ARISTOTELES. Ética a Nicômaco , Livro V.
In: Os pensadores
Nessa função de elemento retificador da justiça rigoro-
samente legal, a eqüidade não tem o poder de afastar de
todo a aplicação de um enunciado normativo pelo fato de
ser inadequado ou injusto
9 . A imagem da régua de
Lesbos
é esclarecedora quanto a esse ponto: o fato de ser maleável
permite que ela se adapte às diferentes reentrâncias das
superfícies, sem, no entanto, deixar de ser ela mesma.
Atualizando a imagem, é possível dizer que o texto de um
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1996, pp. 212 e 213: A razão é que toda lei é de ordem geral, mas não é
possível fazer
um
afirmação universal que seja correta em relação a
certos casos particulares. Nestes casos, então, em que é necessário
estabelecer regras gerais, mas não é possível fazê-lo completamente, a lei
leva em consideração a maioria dos casos, embora não ignore a
possibilidade de falha decorrente desta circunstância e nem por isto a lei
é menos correta, pois a falha não é da lei nem do legislador, e sim da
natureza do caso particular, pois a natureza da conduta é essencialmente
irregular. Quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece em sua
aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o
legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a
omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e
o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão. Por
isto o eqüitativo é justo, e melhor que uma simples espécie de justiça,
embora não seja melhor que a justiça irrestrita (mas é melhor que o erro
oriundo da natureza irrestrita de seus ditames). Então, o eqüitativo é, por
sua natureza, uma correção da lei onde esta é omissa devido à sua
generalidade. De fato, a lei não prevê todas as situações porque é
impossível estabelecer uma lei a propósito de algumas delas, de tal forma
que às vezes se torna necessário recorrer a um decreto. Com
efeito,
quando uma situação é indefinida a regra também tem de ser indefinida,
como acontece com a régua de chumbo usada pelos construtores em
Lesbos; a régua se adapta à forma de pedra e não é rígida, e o decreto se
adapta aos fatos de maneira idêntica. Agora podemos ver claramente a
natureza do eqüitativo, e perceber que ele é justo e melhor que uma
simples espécie de justiça. É igualmente óbvio, diante disto, o que vem a
ser uma pessoa eqüitativa; quem escolhe e pratica atos eqüitativos e não
se atém intransigentemente aos seus direitos, mas se contenta com
receber menos do que lhe caberia, embora a lei esteja do seu lado, é uma
pessoa eqüitativa, e esta disposição é a eqüidade, que é uma espécie de
justiça e não uma disposição da alma diferente.
222
enunciado dificilmente comporta apenas um sentido uní-
voco; o mais comum é que ele descreva um campo de pos-
sibilidades semânticas
9 7 . É dentro desse campo, que pode-
rá ser mais ou menos amplo, mas em qualquer caso não é
ilimitado, que a eqüidade poderá se desenvolver
9 8 .
296 Em outra acepção, Aristóteles admitiria que a eqüidade chegasse a
corrigir o direito legislado, autorizando a não aplicação da regra injusta em
face do caso concreto. V. sobre o ponto, TORRES, Ricardo Lobo.
A
eqüidade no processo administrativo tributário
Revista de Direito da
Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro n° 30, 1976, p. 82 e ss..
De toda sorte, para os fins da proposta desenvolvida neste estudo, apenas
as possibilidades descritas no texto são atribuídas à eqüidade. A não
aplicação de uma regra válida a um caso concreto dependerá da
verificação de uma das duas hipóteses apresentadas na seqüência: a
imprevisão legislativa ou a incidência inconstitucional da regra.
297 LARENZ, Karl.
Metodologia da ciência do direito
1969, p. 369: Se
assim o critério literal na maior parte dos casos não basta como critério
interpretativo precisamente porque ainda permite diversas
interpretações, já contudo o sentido literal possível, isto é, a totalidade
daqueles significados que, segundo a linguagem vulgar, ainda podem estar
ligados à expressão, indica o
limite da interpretação
(em sentido
restrito). ; e BARROSO, Luís Roberto.
Interpretação e aplicação da
Constituição
2003, p. 117 e ss..
298 ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princípios
2003, pp. 94 e 95: A
razoabilidade estrutura a aplicação de outras normas, princípios e regras,
notadamente das regras. Para o autor, uma das manifestações da
razoabilidade confunde-se com a eqüidade.
223
A figura da eqüidade é reconhecida explicitame
n
t
e
pelo direito brasileiro, que inclusive prevê casos específi-
cos em que a questão posta diante do magistrado deverá ser
decidida com fundamento na eqüidade
2 9 9
. Isto é: na incon-
veniência de prever critérios normativos em tese, o próprio
legislador autorizou que a decisão seja tomada, em cada
caso, de acordo com a concepção de justiça do juiz'°. Nada
299 Seguem alguns dispositivos a título de ilustração.
obstante essas previsões, independentemente de autoriza-
ção legislativa particular, o juiz sempre poderá e deverá
empregar a eqüidade em suas decisões, dando ao enuncia-
do o sentido possível que aproxime, da melhor forma, a sua
finalidade das circunstâncias do caso concreto
3 1 . Na maior
parte dos casos, o instrumental empregado pelo intérprete
para esse desiderato são as técnicas convencionais da her-
menêutica jurídica. O elemento sistemático e lógico, as
interpretações extensiva e restritiva, a analogia, a interpre-
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No Novo Código Civil:
Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz
se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da
penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e
a finalidade do negócio.
No Código de Defesa do Consumidor:
Art. 51 — São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas
contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV — estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que
coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade
No Código de Processo Civil:
Art. 127 — O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em
lei.
Na Lei 9.099 de 26/09/1995 (Dispõe sobre os Juizados Especiais
Cíveis e Criminais e dá outras providências):
Art. 25 — O árbitro conduzirá o processo com os mesmos critérios
do Juiz, na forma dos artigos 5 e 6 desta Lei, podendo decidir por
eqüidade.
No Decreto n° 1.979 de 09/08/1996 (Promulga a Convenção
Interamericana sobre Normas Gerais de Direito Internacional Privado,
Concluída em Montevidéu, Uruguai, em 8 de maio de 1979):
Art. 9 — As diversas leis que podem ser competentes para regular
os diferentes aspectos de uma mesma relação jurídica serão aplicadas de
maneira harmônica, procurando-se realizar os fins colimados por cada
uma das referidas legislações. As dificuldades que forem causadas por sua
aplicação simultânea serão resolvidas levando-se em conta as exigências
impostas pela eqüidade no caso concreto.
309 ALVIM, Agostinho.
Da eqüidade
Revista dos Tribunais n° 132,
1941, pp. 3 a 8 (republicada no n°797, 2002, pp. 767 a 770).
224
tação orientada pelos princípios, dentre outras ferramen-
tas, são especialmente úteis nesse particular.
A questão da incidência injusta de regras pode assim,
em parte, ser reconduzida à estrutura geral da eqüidade.
Apenas em parte porque, como já referido, a eqüidade, por
si só, não autoriza o intérprete a negar aplicação a uma
regra. Em muitas ocasiões, no entanto, a eqüidade bastará
para dar solução ao caso. Em boa medida, é possível fazer
uma aproximação do parâmetro da eqüidade
com as técni-
cas relacionadas com a interpretação conforme a Constitui-
ção. Como se sabe, pela
interpretação conforme a Consti-
tuição
o intérprete procura, empregando o instrumental
hermenêutico disponível, afastar as possibilidades de inter-
pretação incompatíveis com a Constituição, respeitando o
limite do texto e suas potencialidades
3 2
. No caso, a eqüi-
dade conduz a uma
interpretação conforme a justiça do caso
301 SERPA LOPES, Miguel Maria de.
Curso de direito civil vol. I 1988
p. 145: Em resumo podem ser fixados os seguintes princípios: a
eqüidade, como função de interpretação da norma, independe de
autorização legal, pois deve ser utilizada para coadjuvar a inteligência do
dispositivo interpretando, de acordo com os dados sociológicos que o
envolverem e a finalidade que tiver .
302 BARROSO, Luís Roberto.
Interpretação e aplicação da C onstituição
2003 p. 185 e ss.; e MENDES Gilmar Ferreira.
Jurisdição
constitucional
1998, p. 268 e ss..
5
concreto
tendo em conta os princípios constitucionai
s
que,
direta ou indiretamente, fundamentam a exigência de jus-
tiça. Ou seja: respeitado o limite do texto e suas possibili-
dades, o intérprete poderá empregar uma
interpretação
conforme a eqüidade
da regra, de modo a evitar a incidênci
a
iníqua.
A segunda forma de lidar com o problema da incidência
injusta de regras é por meio de uma aplicação analógica da
conhecida
s
ente e um provável cenário futuro. Se a despeito do esfor-
ço e previdência das partes a relação jurídica for atingida
por elementos imprevistos que alterem substancialmente o
e
quilíbrio do ajuste, será possível alterar as regras originais
para adequá-las à nova realidade.
A teoria da imprevisão pressupõe, em suma, que as par-
tes teriam pactuado diferentemente se imaginassem os
eventos futuros. Os dois elementos essenciais para sua in-
cidência, portanto, são: (i) a imprevisibilidade do evento
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teoria da imprevisão.
De forma bastante sim-
ples, a teoria da imprevisão destina-se a reequilibrar rela-
ções atingidas por eventos imprevisíveis e imprevistos pe-
las partes envolvidas. Tanto em ajustes de natureza priva-
da, como em contratos administrativos
, com maior ou
menor liberdade, as partes prevêem as regras que discipli-
narão seu relacionamento tendo em conta um cenário pre-
303 Lei n° 8666/1993:
Art. 57 — § 1
Os prazos de início de etapas de execução, de
conclusão e de entrega admitem prorrogação, mantidas as demais
cláusulas do contrato e assegurada a manutenção de seu equilíbrio
econômico-financeiro, desde que ocorra algum dos seguintes motivos,
devidamente autuados em processo:
II — superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à
vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de
execução do contrato .
Art. 65 — Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados,
com as devidas justificativas, nos seguintes casos: (...)
II — por acordo das partes: (...)
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente
entre os encargos do contratado e a retribuição da Administração para a
justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a
manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na
hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de
conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do
ajustado, ou ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do
príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.
226
futuro e (ii) a alteração substancial que ele provoca no ce-
nário que as partes tinham em mente (em relação ao pre-
sente e ao futuro) quando pactuaram
4
304 PEREIRA, Caio Mário da Silva.
Instituições de direito civil vol. III
1997, p. 100: Admitindo-se que os contratantes, ao celebrarem a avença,
tiveram em vista o ambiente econômico contemporâneo, e previram
razoavelmente para o futuro, o contrato tem de ser cumprido, ainda que
não proporcione às partes o benefício esperado. Mas, se tiver ocorrido
modificação profunda nas condições objetivas coetâneas da execução, em
relação às envolventes da celebração, imprevistas e imprevisíveis em tal
momento e geradoras de onerosidade excessiva para um dos
contratantes, ao mesmo passo que para o outro proporciona lucro
desarrazoado, cabe ao prejudicado insurgir-se e recusar a prestação. Não
o justifica uma apreciação subjetiva do desequilíbrio das prestações,
porém a ocorrência de um acontecimento extraordinário, que tenha
operado a mutação do ambiente objetivo, em tais termos que o
cumprimento do contrato implique em si mesmo e por si só, no
enriquecimento de um e empobrecimento do outro. ; e AZEVEDO,
Alvaro Villaça.
Teoria da imprevisão e revisão judicial nos contratos
Revista dos Tribunais n°733, 1996, p. 109: Em suma, a cláusula rebus
sic stantibus instala-se nos contratos, para prevenir contra a alteração
objetiva, imprevista e imprevisível, das situações, existentes no momento
da contratação, contra a onerosidade excessiva, representada pelo
desequilíbrio prestacional, e contra o enriquecimento de um dos
contratantes, com prejuízo do outro, não previstos no negócio Esse
acontecimento deve ser anormal (...), o que, se previsível, não teria levado
as panes à conclusão do contrato.
227
De certa forma, a mesma lógica se aplica ao processo
legislativo. Também o legislador, ao editar qualquer espé-
e
de enunciado normativo, provê tendo em conta deter-
minadas situações de fato ou padrões de conduta, presen-
tes e futuras, que planeja regular, e nem haveria como ser
diferente. É certo que diversas modificações podem ocor-
rer com o tempo. Algumas vezes, novas realidades se agre-
gam às anteriores, exigindo a mesma disciplina, problema
por ser esquecidas: poucos se socorrem delas e pouquíssi-
mos as aplicamms.
Há, no entanto, uma outra possibilidade, que é a que
mais diretamente interessa aqui. Trata-se da circunstância
de a regra prosseguir perfeitamente válida; porém, ela vem
a incidir sobre uma hipótese particular que é substancial-
mente diversa das situações-tipo para as quais foi planeja-
da. Os elementos de fato que se consideram essenciais para
provocar sua incidência não estão presentes naquele caso,
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que pode ser facilmente resolvido quando o dispositivo
emprega uma fórmula geral em seu enunciadoms. Outra
possibilidade de superação hermenêutica dessa dificuldade
é a chamada interpretação evolutiva, que na verdade con-
siste em uni processo informal de reforma do dispositivo,
pelo qual novos conteúdos são atribuídos ao mesmo texto,
sem modificação do seu teor literal
3 6
.
Há outras situações em que a realidade se altera de tal
forma que a regra prevista torna-se totalmente inconve-
niente e indesejável — não há solução institucional para
esse problema em um Estado de direito de tradição roma-
no-germânica clássica
3 7
. Na prática, é freqüente que essas
regras ingressem em um estado de inércia no qual acabam
305 O art. 159 do Código Civil de 1916, por exemplo, incorporou ao
longo do tempo a indenizabilidade do dano moral. A Constituição
norte-americana, como se sabe, adotou uma linguagem bastante geral
exatamente para preservar sua capacidade de adaptação às mudanças.
306 Sobre a idéia geral de mutação constitucional, v. SILVA, José Afonso
da.
Poder constituinte e poder popular
2000, p. 291 e ss.. Especificamente
sobre a interpretação evolutiva, v. BARROSO, Luis Roberto.
Interpretação e aplicação da Constituição
2003, p. 144 e ss..
307 As coisas se passam de forma diferente no sistema da
common law.
Sobre esse tema, veja-se: CALABRESI, Guido.
A Common Lato for the
Age of Statutes
1982.
embora do ponto de vista lingüístico o enunciado possa ser
aplicado; há uma disparidade quanto aos pressupostos de
fato entre aquele caso específico e as situações em geral às
quais o dispositivo é aplicado comumente. Em suma: a si-
tuação específica não estava nas cogitações razoáveis do
legislador; não foi prevista por ele
3 9
pois, se o tivesse sido,
308 É o que se passa,
e.g.
com o art. 240 do Código Penal, que tipifica
como crime o adultério.
309 HAGE, Jaap C.
Reasoning with Rides
1997, pp. 109, 112 e 117: In
the law, a particularly important category of scope limitations derives
from the phenomenon of rule conflicts. Legal ideology will have it that
rules of law do not conflict. If two rufes seem to conflict, at least one of
them is not applicable. The scopes of conflicting rules are assumed to be
disjoint. This phenomenon can be explainecl if we take into account that
legal mies are meant to identify reasons which replace the original reasons
on which the rufes are based. The necessary weighing of reasons is
considered to be the task of the legislator. The legislator so to speak
oversees ali conflicting goals and principies, and determines for each
possible case what is the outcome of their interaction. This outcome is
'described in the legal rufes that are laid down in legislation. (...)
However, if there still are legally relevant facts that were not taken into
account by the legislator, not even in the sense that they were discarded
as irrelevant, these facts are not excluded by the reasons generated by the
legal rule. A legal decision maker must still take these facts into account
as legal reasons next to the reason identifiedby the legal tule. (...) Still, in
exceptional cases, there may be some reasons that were not taken into
228
29
a solução seria diversan°. Há aqui, como se vê, uma situa-
ção de imprevisibilidade e de substancial diferença entre o
cenário planejado para a aplicação do enunciado e o caso'l
Nesse sentido, a aplicação da idéia de imprevisão de-
pende de ser possível responder positivamente a essas duas
perguntas: (i) é consistente afirmar que o legislador não
imaginou uma situação como a que se apresenta ao aplica
dor? E (ii) há uma disparidade essencial e grave entre as
circunstâncias de fato do caso examinado e as que caracte-
aplicado? Na verdade, caso as duas perguntas acima sejam
respondidas afirmativamente, tudo funciona como se a in-
cidência daquela regra ao caso decorresse apenas de uma
coincidência lingüística, por inexistir, na realidade, disci-
plina jurídica para aquela hipótese. Não havendo enuncia-
do pertinente aplicável —já que o que existe é uma mera
coincidência de signos lingüísticos —, a hipótese será deci-
dida nos termos do art. 4° da Lei de Introdução ao Código
Civil, pelo qual, sendo omissa a lei,
o
juiz
decidirá o caso
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rizam normalmente as hipóteses às quais o enunciado é
account by the legislator, and are therefore not excluded by the
applicability of the legal nde. In that case, there still be reasons not to
apply the rule, and if the rule is not applied, its conclusion does not
follow. É bem de ver que o autor admite a não aplicação de regras em
outras hipóteses além da referida na transcrição e que de certa forma se
equipara à idéia de imprevisão descrita no texto.
310 GRAU, Eros Roberto.
A emenda constitucional n° 30/00: pagamento
de precatórios judiciais,
Revista de Direito Administrativo n°229, 2002,
p. 97: Aristóteles observa que a lei é sempre geral e existem casos em
relação aos quais não é possível estipular-se um enunciado geral que se
aplique com retidão. Nos casos nos quais é necessário limitar-se o
enunciado a generalidades, sendo impossível fazê-lo corretamente, a lei
não torna em consideração senão os casos mais freqüentes, sem ignorar os
erros que isso possa importar. Nem por isso ela é menos correta, porque
a culpa não está na lei, nem no legislador, mas sim na natureza das coisas;
porque, em razão de sua própria essência, a matéria das coisas da ordem
prática reveste-se do caráter de irregularidade. Por isso, quando a lei
expressa uma regra geral e surge algo que se coloca fora dessa formulação
geral, devemos, onde o legislador omitiu a previsão do caso e pecou por
excesso de simplificação, corrigir a omissão e fazer-nos intérpretes do que
o legislador teria dito, ele mesmo, se estivesse presente neste momento e
teria feito constar da lei se conhecesse o caso em questão. O autor faz
uma nota de rodapé ao fim do trecho citado com a seguinte dicção:
Tome-se sob as devidas ressalvas a alusão à vontade ou pensamento do
legislador.
311 PECZENIK, Aleksander. On
Lazy and Reason,
1989, p. 76 e ss..
230
de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais
de direito. .
Em qualquer caso, a não aplicação da regra
nessas circunstâncias exigirá do julgador a demonstração
analítica da presença dos elementos indispensáveis à confi-
guração da imprevisão legislativa'''.
Por fim, haverá uma terceira forma de lidar com o pro-
blema das regras que produzem resultados injustos. Trata-
se da
declaração de inconstitucionalidade da norma
produzida pela incidência da regra sobre uma determi-
nada situação específica.
A distinção entre
enunciado
normativo
e
norma
já foi examinada no Capítulo V e não há
necessidade de retomar as questões ali expostas.
É possível cogitar de situações nas quais um enunciado
normativo, válido em tese e na maior parte de suas incidên-
cias, ao ser confrontado com determinadas circunstâncias
312 PECZENIK, Aleksander. Ora
Law and Reason,
1989, p. 342: 2.
Democracy requires that the courts sufficiently respect statutes, enacted
by the representatives of the people. In hard cases, an extensive and
general justification is a necessary condition for making it clear that the
court has actually fulfilled this requirement; 3. An extensively and
generally justified decision directly fulfils the demand of intersubjective
testability and thus an important principie of rational practical discourse.
In other words, one knows on which grounds one may criticise it.
Testability promotes objectivity of the decision, and thus legal certainty.
231
concretas, produz uma norma inconstitucional. Lembre-se
que, em função da complexidade dos efeitos que preten-
dam produzir e/ou da multiplicidade de circunstâncias de
fato sobre as quais incidem, também as regras podem justi-
ficar diferentes condutas que, por sua vez, vão dar conteú-
do a normas diversas. Cada uma dessas normas opera em
um ambiente fático próprio e poderá ser confrontada com
um conjunto específico de outras incidências normativas,
justificadas por enunciados diversos. Por isso, não é de es-
valores pretendidos pelo autor sejam antecipados pela Fa-
zenda Pública antes de proferida a decisão final.
No segundo caso entram em jogo os enunciados relacio-
nados com o direito à vida e à saúde impertinentes no
primeiro exemplo) e o grave risco de perecimento do direi-
to. Nesse contexto, a norma que se extrai do mesmo enun-
ciado é diversa: ela veda que o juiz autorize a realização de
cirurgia sem a qual o autor poderá vir a falecer. Não é difícil
concluir que essa segunda norma afeta muito mais intensa-
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tranhar que determinadas normas possam ser inconstitu-
cionais em função desse seu contexto particular, a despeito
da validade geral do enunciado do qual derivam. Ilustra-se
com um exemplo.
A possibilidade que se acaba de identificar já foi reco-
nhecida pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn n° 223,
descrita acima, na qual se discutia a validade de disposições
que proibiam a concessão de medidas liminares e antecipa-
ções de tutela em face da Fazenda Pública. A ação direta foi
julgada improcedente, como referido, já que, em tese, a
restrição à concessão de providências de urgência não era
inconstitucional. Admitiu-se, porém, que em circunstân-
cias específicas a incidência daqueles dispositivos poderia
gerar normas inconstitucionais.
É fácil perceber que o mesmo enunciado produzirá nor-
mas diversas e, mais que isso, será confrontado por enun-
ciados diferentes conforme a demanda judicial envolva,
e.g., i)
o reenquadramento de servidores públicos ou ii) o
custeio de cirurgia urgente e indispensável à manutenção
da vida do particular que deveria ter sido realizada pela
rede pública de saúde, mas que, por qualquer razão, não o
foi. No primeiro caso, o direito patrimonial poderá em ge-
ral ser satisfeito adequadamente ao fim da demanda e, por-
tanto, a norma produzida pelo enunciado apenas veda que
mente o núcleo do direito de acesso ao Judiciário do que a
primeira.
Os três mecanismos descritos como aptos a lidar com o
problema dos conflitos normativos envolvendo regras fo-
ram apresentados em ordem crescente de intervenção no
sistema jurídico. No primeiro caso, a injustiça da incidência
da regra pode ser superada dentro dos limites semânticos
do enunciado por meio do uso da eqüidade. No segundo, a
questão é solucionada uma vez que seja consistente susten-
tar que a injustiça aparentemente produzida pela aplica-
ção da regra não foi realmente pretendida nem pela mens
legislatoris e nem pela
mens legis. Trata-se de uma coinci-
dência lingüística que deve ser desconsiderada por conta da
imprevisão legislativa.
Por fim, o terceiro mecanismo enfrenta a hipótese na
qual o legislador de fato proveu para a hipótese, mas a
solução por ele concebida, em determinado caso, torna-se
incompatível com a Constituição. Note-se que as observa-
ções pertinentes ao controle de constitucionalidade das leis
e atos normativos aplicam-se também aqui. O juízo de in-
constitucionalidade é um remédio excepcional que deve
ser reservado para as hipóteses em que há violação evidente
e grave de disposições constitucionais e não como instru-
mento de afirmação das convicções políticas pessoais do
232
233
intérprete'''. E como em qualquer decisão em que se de-
clare a inconstitucionalidade de atos do Poder Público,
cabe ao juiz o dever de fundamentar de forma especial,
mente sólida suas conclusões.
O parâmetro proposto neste capítulo — a preferênci
a
das regras sobre os princípios —, juntamente com suas
cláusulas de exceção identificadas acima, procuram orde-
nar o processo de ponderação tendo em conta a estrutura
dos enunciados normativos em disputa (se regras ou princí-
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pios), independentemente de seu conteúdo. É fácil perce-
ber, contudo, que se dois enunciados de igual estrutura
entrarem em colisão, esse parâmetro terá pouco a dizer ao
intérprete. Assim, além desse parâmetro de natureza es-
trutural, é preciso formular igualmente algum parâmetro
substancial, que leve em consideração o conteúdo dos ele-
mentos normativos e forneça balizas para a ponderação
quando a preferência das regras sobre os princípios, e tudo
o mais que se expôs até aqui, não for capaz de solucionar o
conflito normativo. É sobre esse novo parâmetro que se
passa a tratar.
313 Esse caráter excepcional da declaração de inconstitucionalidade é
uma decorrência lógica da separação de poderes e do principio
democrático, que dão origem à presunção de constitucionalidade dos atos
do Poder Público. V. sobre o ponto BARROSO, Luis Roberto.
Interpretação e aplicação da Constituição
2003, p. 160 e ss..
234
IX. Parâmetro geral 2:
Normas que realizam diretamente
direitos fundamentais dos indivíduos
têm preferência sobre normas
relacionadas apenas indiretamente com
os direitos fundamentais
O segundo parâmetro preferencial a ser proposto neste
estudo pode ser descrito nos seguintes termos: a norma
que de forma direta promova e/ou proteja a dignidade hu-
mana deve ter preferência sobre outra norma que apenas
indiretamente está associada com a proteção ou promoção
da dignidade humana. Promoção e proteção da dignidade
humana, além de apresentarem ampla comunicação com
temas filosõficos'm e históricos
5
, são idéias muito gerais
314 A questão da legitimação ontológica da dignidade humana sempre
será uma questão de metafísica filosófica. V. sobre o tema, BARBOSA,
Ana Paula Costa. A fundamentação do princípio da dignidade humana .
In:
TORRES, Ricardo Lobo (organizador).
Legitimação dos direitos
humanos
2002, pp. 51 a 98; e ALVES, Cleber Francisco. O
princípio
235
merecedoras de um exame próprio, que não poderá ser
desenvolvido aqui. Para os fins deste estudo e do parâme-
tro que se acaba de propor, entretanto, a proteção e a p
ro
moção da dignidade podem ser identificadas com a prote-
ção e a promoção dos direitos fundamentais dos indiví-
duos , bem como de condições materiais necessárias para
seu bem estar mínimo e para o exercício da cidadania .
Há duas observações preliminares a fazer sobre o parâ-
metro enunciado. A primeira se relaciona com o objeto sobre
são os enunciados normativos, como referido. Cabe ao in-
térprete identificar, relativamente a cada enunciado, a sua
estrutura — se regra ou princípio (e se núcleo ou área não
n
uclear de princípio) — e, em decorrência disso, aplicar a
preferência indicada pelo parâmetro. Do ponto de vista das
etapas da ponderação, a preferência das regras sobre os
princípios pode ser empregada já na primeira fase, pois
uma vez que os enunciados em disputa tenham sido identi-
ficados, a preferência já pode ser visualizada
8
.
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o
qual o parâmetro incide e o momento próprio no qual ele
deve ser utilizado. A segunda observação envolve as expres-
sões
diret e
indiret
empregadas para descrevê-lo.
IX.1.0 momento e o objeto do parâmetro
A matéria-prima do primeiro parâmetro discutido nes-
te estudo (o da preferência das regras sobre os princípios)
constituconal da dgndadeda pessoa humana:
O
enfoqueda doutrina
socal da Igrea
2001.
315
O conteúdo da noção de dignidade tem sempre uma dimensão
históricae cultura. V. PINILLA, Ignacio Ara. /nr
transfonnaconesdelos
derechoshumanos 1994;
e MARTINEZ G regorio Peces-Barba:
Derechos
socalesypostivismojurídco 1999.
316
Sobre a relação entre direitos fundamentais e dignidade humana
veja-se, dentre outros, SARLET, Ingo Wolfgang.
A eicáca dosdretos
fundamentais
1998, p. 27 e ss.; e, do mesmo autor,
Digndadeda pessoa
humana da ConstituçãoFederal de1988
2001.
317
A questão das condições materiais necessárias paraasobrevivência o
bemestar mnimo e o exercício da cidadania podemser descritas como
um
mnmoexistencal.
Sobre o tema especifico, v. TORRES Ricardo
Lobo. Os
dretos humanos ea tributação— Imundades eisonoma
1995; e BARCELLOS Ana Paula de.
A eicáca jurídca dosprincpos
constituconais— O
princpoda dgndadeda pessoa humana
2002.
Sobre a evolução dos direitos sociais no Brasil v. GALVÃO Paulo Braga.
Os
dretossocaisnasConstituções
1981.
236
O parâmetro que se acaba de enunciar — preferência
das normas que de forma direta promovem os direitos fun-
damentais — funciona de maneira diversa. Uma vez que
ele propõe uma comparação de natureza substancial entre
o
conteúdo dos elementos normativos, seu objeto de inci-
dência são as normas, e não os enunciados normativos. Já se
demonstrou que um mesmo enunciado pode justificar a
existência de variadas normas, cujo
conteúdo
será diverso
em função das circunstâncias de fato e da confluência de
outros enunciados. Isso significa, portanto, que apenas as
normas autorizam a visualização precisa do conteúdo espe-
cífico dos elementos normativos em cada caso.
Esta observação acerca do objeto sobre o qual deve in-
cidir o parâmetro está diretamente relacionada com a nota
que deve ser feita a propósito do momento próprio de sua
318 Como
já se referiu, adivisão do processo ponderativo emetapas tem
como objetivo ordenar o raciocínio, destacar problemas metodológicos
que devem ser considerados e especialmente induzir o intérprete à
justificação da decisão. Isso não significa que as três fases não se
comuniquem muito ao revés, mesmo porque esse movimento de ir e vir
entre premissas e resultados possíveis é próprio da
atividade
hermenêutica.
No caso, por exemplo, dos parâmetros envolvendo a
ponderação de regras, descritos acima eqüidade, imprevisão e
inconstitucionaidade concreta), esse contato entre as diferentes etapas
será arigor indispensável.
237
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na face lateral dos prédios que distem menos de 1,5 m de
outras construções. O proprietário de um apartamento
nessa situação, porém, a despeito das regras, abre uma ja-
nela. Questionado, o indivíduo alega que é alérgico e preci-
sa de mais ventilação na sua residência; sustenta ainda que
a providência é necessária para a promoção de sua saúde
corolário direto da dignidade humana, de modo que as rei
gras municipais e do Código Civil não devem prevalecer na
hipótese.
A
mesma estrutura de raciocínio exposta no exemplo
Ora, se o parâmetro material fosse empregado logo de
início, antes de levar-se em conta a diferente estrutura dos
enunciados normativos, praticamente nenhum outro dis-
positivo resistiria quando confrontado com a dignidade,
ainda que a pretensão apenas pudesse ser justificada com
base em uma concepção particular do princípio e especial-
mente distanciada de seu conteúdo nuclear. Por essa razão,
o parâmetro material deve ser usado apenas quando há de
fato um conflito insuperável entre
normas
não resolvido
pelas técnicas tradicionais, nem pelo primeiro parâmetro.
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anterior aplica-se aqui. O argumento do proprietário do
imóvel parece descrever um conflito entre a dignidade hu-
mana (em sua área não nuclear) e as regras em questão e, se
fosse o caso de aplicar o parâmetro material isoladamente,
seria possível cogitar da prevalência da dignidade na hipó-
tese. Esse, entretanto, e por evidente, não é o caso. Tam-
bém aqui, o suposto conflito seria facilmente superado
pelo primeiro parâmetro, que cuida da estrutura dos enun-
ciados, a saber: a preferência das regras sobre os princípios.
Note-se, portanto, que o parâmetro material não será
empregado sem que antes a hipótese tenha sido submetida
ao crivo do primeiro parâmetro. E isso porque, em decor-
rência do conteúdo relativamente indeterminado dos prin-
cípios, a maior parte das pretensões individuais pode ser
reconduzida em última análise à idéia,
e.g.
de dignidade, e
cada um será capaz de atribuir ao princípio o sentido que
lhe pareça melhor.
§ 1° As janelas cuja visão não incida sobre a linha divisória, bem como
as perpendiculares, não poderão ser abertas a menos de setenta e cinco
centímetros.
§ 2° As disposições deste artigo não abrangem as aberturas para luz
ou ventilação, não maiores de dez centímetros de largura sobre vinte de
comprimento e construídas a mais de dois metros de altura de cada piso.
Cabe agora fazer uma última observação da maior impor-
tância, acerca das idéias de realização
direta
ou indireta
da
dignidade humana contidas na descrição do parâmetro.
O sistema jurídico não é feito apenas de princípios,
quanto à estruturam, e nem apenas de enunciados que de
forma direta promovem a dignidade humana, assim enten-
didos aqueles que cuidam de direitos de forma ampla. Há
uma série de outros enunciados que se ocupam de delinear
estruturas e instituições da maior relevância e que, de for-
322 CANOTILHO, J. J. Gomes.
Direito Constitucional e teoria da
Constituição 1998, p. 1088: Um modelo ou sistema constituído
exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de
limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa
exaustiva e completa — legalismo — do mundo e da vida, fixando, em
termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas.
Conseguir-se-ia um 'sistema de segurança', mas não haveria qualquer
espaço livre para a complementação e desenvolvimento de um sistema,
como o constitucional, que é necessariamente aberto. (...) O modelo ou
sistema baseado exclusivamente em princípios levar nos ia a
consequências também inaceitáveis. A indeterminação, a inexistência de
regras precisas, a coexistência de princípios conflituantes, a dependência
do 'possível' fáctico e jurídico, só poderiam conduzir a um sistema falho
de segurança jurídica e tendencialmente incapaz de reduzir a
complexidade do próprio sistema.
240
41
ma indireta, também estão relacionadas com o bem estar
humano. É fácil demonstrar o ponto.
A separação de poderes, por exemplo, é historicame
n
t
e
a melhor técnica de organização do exercício do poder
po-
lítico
e seu propósito último sempre foi conter o abuso e a
arbitrariedade daqueles que exercem o poder, como forma
de proteger os direitos dos indivíduos
. O mesmo se diga
da legalidade e dos orçamentos, dentre vários outros exem-
plos: ambos são, ao mesmo tempo, instrumentos de afir-
mação democrática da vontade da maioria e formas de con-
Mais que isso, já não se admite a idéia, sedutora em
outros tempos, de um ditador bom ; aquele que, livre das
formalidades próprias à democracia — como legalidade,
previsão orçamentária, negociações com o Congresso, etc.
—, pudesse empregar seu poder de forma direta e eficien-
te, sem dispersão de energia, em favor da promoção e pro-
teção da dignidade das pessoas.
E não é apenas a Constituição de 1988 que rejeita as
soluções messiânicas e consagra a democracia institucional;
também do ponto de vista filosófico e histórico a opção por
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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trolar a autoridade, submetendo-a à vontade geral. No
mesmo sentido, as chamadas garantias institucionais exis-
tem, em última análise, para assegurar o bem das pes-
soas
4 . Direitos não propriamente individuais, como a li-
berdade de imprensa, desempenham função similar: eles
garantem condições para o exercício do pluralismo políti-
co, da liberdade de expressão e do controle social das ações
do Poder Público '.
323
BARCELLOS, Ana Paula de.
eparação
de Poderes. Maioria
Democrática e Legitimidade do Controle de Constitucionalidade
evista
Trimestral de Direito Público n° 32, 2000, p. 184 e ss..
324
V. sobre o tema BONAVIDES Paulo. Curso
de direito
constitucional
1999, p. 490 e ss.; e TORRES, Ricardo Lobo. Os
direitos
fundamentais e o Tribunal de Contas
Revista do Tribunal de Contas do
Estado do Rio de Janeiro n° 23, 1992, p. 55 e ss..
325
FARIAS, Edilsom Pereira de.
Colisão de direitos — a honra a
intimidade a vida privada e a imagem
versus a liberdade de expressão e
informação
2000, pp. 166 e 167: Se a liberdade de expressão e
informação, nos seus primórdios, estava ligada à dimensão individualista
da manifestação livre do pensamento e da opinião, viabilizando a critica
política contra o ancienrégime
a evolução daquela liberdade operada pelo
direito/dever à informação, especialmente com o reconhecimento do
direito ao público de estar suficientemente e corretamente informado;
àquela dimensão individualista-liberal foi acrescida uma outra dimensão
de natureza coletiva: a de que a liberdade de expressão e informação
242
uma
ditadura esclarecida
não é mais admissivel. Do ponto
de vista filosófico, essa possibilidade traz consigo a idéia
intolerável de que os homens não são iguais, não são capa-
zes de governar-se e dependem de um Rei-Sábio-Ditador
que os conduza. Historicamente, a fórmula já mostrou ser
mal sucedida inúmeras vezes. Em suma: o fim último atri-
buído ao Estado, de promover e proteger a dignidade hu-
mana, não é alcançado apenas através de providências dire-
tas, mas também por meio de instituições que, indireta-
mente, contribuem para esse mesmo objetivo.
Essa observação tem duas conseqüências principais. A
primeira está associada ao registro feito acima. Não se pode
aplicar isoladamente o parâmetro material na fase inicial da
ponderação, antes da incidência da preferência das regras
sobre os princípios, sob pena de destruírem-se todas as
estruturas e instituições que, ainda que indiretamente, são
indispensáveis para assegurar a dignidade humana. Como é
fácil perceber, empregando apenas o parâmetro material,
bastaria formular um conflito entre as regras que dão corpo
contribui para a formação da opinião pública pluralista — esta cada vez
mais essencial para o funcionamento dos regimes democráticos, a
despeito dos anátemas eventualmente dirigidos contra a manipulação da
opinião pública.
243
a essas instituições e o princípio da dignidade humana para
que este último prevalecesse, já que a relação entre as
instituições e a dignidade é indireta. Esse problema, no
entanto, pode ser superado na medida em que se tenha o
cuidado de empregar o parâmetro no momento e sobre o
objeto adequados.
Por outro lado, essa observação repercute também so-
bre a aplicação propriamente dita do parâmetro material.
Se há de fato um conflito insuperável,
e.g.
entre duas re-
gras ou, como ocorre com maior freqüência, entre conjun-
decisão entre uma norma que promove
diretamente
a dig-
nidade das pessoas e outra que apenas contribui para esse
fim indiretamente, a primeira deve prevalecer. Há diferen-
tes maneiras de fundamentar o parâmetro que se acaba de
expor. Mas, antes de qualquer outra, é possível visualizar
uma razão lógica bastante simples: se existem fins, e há
meios para alcançá-los, e se, em determinadas circunstân-
cias, os meios conflitam com os próprios fins que buscam
realizar, não se deve privilegiar o meio em detrimento do
fim. Do ponto de vista político-jurídico, há pelo menos três
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tos de elementos normativos que dão origem a diferentes
normas), isto é, se o confronto entre elas não pode ser
solucionado por qualquer técnica tradicional e/ou pela pre-
ferência das regras sobre os princípios, caberá então apurar
qual delas, de forma direta
promove a dignidade do indiví-
duo.
Note-se, portanto, ainda que sob outra perspectiva,
que as diferentes normas que o processo de ponderação
venha a apurar sempre podem, em alguma medida, ser re-
conduzidas à idéia de dignidade humana. O propósito do
parâmetro é conferir preferência àquela que o faz de forma
mais direta. Essa preferência, porém, não se funda em
qualquer espécie de desprezo pelas estruturas que, indire-
tamente, promovem a dignidade das pessoas, mas sim e
apenas na necessidade de decidir entre uma coisa e outra.
Idealmente, as disposições que promovem a dignidade
humana de forma direta como as que cuidam dos direitos
fundamentais, por exemplo) devem conviver de maneira
harmoniosa com aquelas outras que, indiretamente, têm o
mesmo propósito. Entretanto, se esses enunciados geram
normas e elas são, em determinado ambiente, inconciliá-
veis, caberá ao intérprete ponderá-las e decidir qual deverá
ser aplicada e em que medida quando isso seja possível).
Nesse contexto de conflito inexorável e necessidade de
caMinhos diversos que podem ser percorridos para justifi-
car a preferência das normas que diretamente promovem a
dignidade humana sobre aquelas que o fazem apenas de
forma indireta. É sobre eles que se passa a tratar sucinta-
mente no tópico seguinte.
IX.2. Fundamentação: o direito interno e o
internacional e o procedimentalismo
Empregar o conteúdo das normas em disputa como cri-
tério para solucionar conflitos entre elas parece aproximar
o parâmetro proposto da idéia de hierarquia normativa.
Não é disso, porém, que se trata. A proposta de hierarqui-
zação de disposições constitucionais já foi objeto de exame
e crítica Capítulo III) e também já se expôs a natureza
preferencial — e não absoluta — dos parâmetros propostos
neste estudo Capítulo VII). De qualquer modo, não é pos-
sível afastar a necessidade de, em determinadas circunstân-
cias, escolher entre normas que conflitam de forma irreme-
diável
6
. A questão a ser respondida, portanto, pode ser
326 Na verdade, estabelecer relações de prioridade em caráter
prima
facie
entre as normas pode agregar coerência ao sistema, na medida em
244
45
formulada nos seguintes termos: diante de situações dessa
natureza, porque se deve empregar como parâmetro a pre-
ferência das normas que promovem a dignidade humana de
maneira direta?
Há muitas formas de responder a essa indagação e este
estudo se ocupará de três delas de forma bastante objetiva.
As duas primeiras fundamentam o parâmetro a partir de
consensos substantivos: uma, no âmbito do direito interno
e a outra na esfera do direito internacional. Com
efeito, a
Constituição brasileira de 1988 formulou uma opção pre-
como fim máximo do Estado e reconhecer direitos básicos
aos indivíduos.
O terceiro fundamento apresentado adiante para o pa-
râmetro é extraído de um conjunto variado de formulações
teóricas que têm em comum dois elementos. Em primeiro
lugar, a crença de que em uma realidade plural como a
contemporânea não é possível apurar consensos materiais,
nem, conseqüentemente, empregá-los para legitimar deci-
sões que afetem a sociedade política. Se é assim, essa legi-
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ferencial pela dignidade humana, alçando-a a valor central
do sistema jurídico. Na esfera internacional, embora haja
pouco consenso sobre os diferentes meios de promover e
proteger a dignidade humana, há ampla concordância teó-
rica quando se trata de afirmar o bem estar do homem
que permite lidar racionalmente com conflitos aparentemente
insuperáveis. V. PECZENIK, Aleksander. On
Law and Reason
1989,
p.164: Moreover, coherence of some theories depends on priority orders
between reasons. Inter alia priority orders are important when one faces
a collision of principies, e.g., when an individual right collides with the
demand to protect the environment. The relevant question is then, How
to optimalise both principles within the system? This is the question of
creating coherence. The only possible answer is to establish conditional,
more or less general, all-things-considered priority relations and
prima-fade priority orders. This is the case regardless the fact that one
can never establish an unconditional priority arder, applicable to all
thinkable cases of a collision between the principies in question. To
establish a conditional priority arder is the only way to avoid the risk that
the system will be used to justify incoherent decisions. Incoherence
would consist in the fact that though the decisions are logically
compatible, their relation to each other is arbitrary. (grifos no original)
Sobre a possibilidade e até mesmo a necessidade de adotar-se uma certa
hierarquização axiológica no sistema jurídico, v. FREITAS, Juarez.
A
interpretação sistemática do direito
1998; e PASQUALINI, Alexandre.
Hermenêutica e sistema jurídico 1999
p. 109 e ss..
246
timação só poderá decorrer da correção e qualidade dos
procedimentos por meio dos quais tais decisões são apura-
das. De toda sorte, como se verá, a partir de uma lógica
totalmente diversa da empregada nos dois fundamentos
anteriores, também os
procedimentalistas
acabam por con-
cluir que a proteção de direitos básicos do homem é pres-
suposto indispensável para o funcionamento adequado dos
procedimentos por eles propostos. Explica-se melhor cada
uma dessas três idéias.
Do ponto de vista do
direito interno
a Constituição
de 1988
' oferece amplo respaldo à preferência das nor-
mas que promovem diretamente a dignidade humana. O
axioma da unidade da Constituição, que decorre de reco-
nhecer-se a todos os enunciados a mesma hierarquia, é bas-
tante conhecido e não há necessidade de desenvolver aqui
maiores considerações sobre o seu conteúdous. Nada obs-
tante, tornou-se corrente o registro doutrinário de que de-
327 E da mesma forma diversas outras Constituições contemporâneas,
especialmente após a Segunda Guelra Mundial.
328 A igualdade hierárquica entre as normas constitucionais e,
conseqüentemente a necessidade de preservação da unidade
constitucional foi registrada pelo STF de forma peremptória ao rejeitar a
alegação de inconstitucionalidade de normas do ADCT. V. STF, RE
160486/SP, Rel. MM Celso de Mello, DJU 09.06.1995.
247
terminadas disposições desempenham funções diferente
s
ou são dotadas de uma superioridade axiológica quand
o
comparadas com outras. Para registrar apenas um exemplo,
é evidente, e na verdade até intuitivo, que o dispositivo que
trata da isonomia desempenha um papel muito diverso do
atribuído ao art. 236 da Carta de 1988, que cuida dos ser-
viços notariais e de registro.
O próprio texto constitucional identificou, dentre to-
dos os enunciados constitucionais, um grupo que conside-
Na verdade, sem que isso produza uma ruptura do prin-
cípio da unidade, é apenas natural que o conteúdo material
dos enunciados — e
a fortiori
das normas — funcione como
um elemento relevante para a hermenêutica jurídica °. Em
primeiro lugar, porque há muito já se superou a modalida-
de de positivismo que apenas era capaz de lidar com os
invólucros dos enunciados, independentemente daquilo
que eles continham. Mais que isso, quando se trata da
Constituição, a questão do conteúdo das disposições assu-
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rou
fundamentais
ao criar a argüição de descumprime
t
o
de preceito fundamental (ADPF). Já se fez referência a
este ponto. Embora nem a Constituição nem a Lei n°
9.882/1999 (que regulou a argüição) tenham definido
quais são os preceitos considerados fundamentais, a doutri-
na e a jurisprudência têm se ocupado desse mister. E em
todas as listas propostas figuram como fundamentais os
preceitos relacionados com a dignidade humana e com os
direitos fundamentais
9 .
329 Sobre o tema, v. BARROSO, Luís Roberto. O
controle de
constitucionalidade no direito brasileiro — Exposição sistemática da
doutrina e análise critica da jurisprudência
2004, pp. 215 a 248; REGO,
Bruno Noura de Moraes.
Argüição de descumprimento de preceito
fundamental
2003; TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de
preceito fundamental
2001; VELOSO, Zeno.
Controle jurisdicional de
constitucionalidade
1999; BINENBOJM, Gustavo.
A nova jurisdição
constitucional brasileira
2001; MENDES, Gilmar Ferreira.
Argüição de
descumprimento de preceito fundamental e Argüição de descumprimento
de preceito fundamental: demonstração de inexistência de outro meio
eficaz disponíveis em www.iusnavigandi.com.br
acesso em 28.05.2004;
VELLOSO, Carlos Mário da Silva.
A argüição de descumprimento de
preceito fundamental
Fórum Administrativo n° 24/2003; SILVA, José
Afonso
da Comentário de acórdãos
Cadernos de soluções
constitucionais n° I, 2003; CLÈVE, Clemerson Merlin. Algumas
considerações em torno da argüição de descumprimento de preceito
fundamental . In:
SAMPAIO, José Adércio Leite e CRUZ, Álvaro
me importância ainda maior: como já se referiu, uma das
características mais destacadas das Cartas contemporâneas
Ricardo de Souza.
Hermenêutica e jurisdição constitucional
2001; p. 18 a
49; e SARMENTO, Daniel.
Apontamentos sobre a argüição de
descumprimento de preceito fundamental
Revista de Direito
Administrativo n° 224, 2001, pp. 95 a 116, 2001.
330 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Fundamentação e
normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz
do princípio democrático ,
In
TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso
de Albuquerque (organizadores).
Arquivos de direitos humanos vol.
IV,
2002, p. 19: (...) a tendência atual é de se passar a delimitar o campo da
fundamentalidade com base em argumentos materiais, e não meramente
teórico-formais ou positivos. É o que se verifica, p. ex., com a atribuição
de fundamentalidade material a determinados direitos sociais através de
critérios decorrentes do conceito de mínimo existencial. Note-se que esta
tendência específica, de se deslocar o debate do âmbito formal para o
material, é somente uma das manifestações que se incluem em um
cenário contemporâneo mais amplo de ressurgimento do discurso sobre a
fundamentação filosófica dos direitos fundamentais. Aos antigos
argumentos da positividade, se agregam argumentos situados no plano da
fundamentação racional. Nessa linha, pode-se afirmar, p. ex., que as
normas incluídas no âmbito do conceito de direitos fundamentais serão
efetivadas já não só porque gozam de um determinado tipo de
positividade, mas também porque representam verdadeiros critérios de
legitimação do próprio poder criador de positividade. Supera-se, assim, a
velha e já estéril dicotomia entre os planos da fundamentação e da
efetividade.
248
49
é precisamente a decisão de constitucionalizar valores ma-
teriais e opções políticas ' . Ignorar as diferenças que exis-
tem entre os enunciados constitucionais no que diz respei-
331 Sobre a experiência alemã, v. ALEXY, Robert.
El conceptoyla
validez de derecho
1994, p. 159: El ejemplo más importante de una
posición
constitticonalista
lo ofrece la axiología dei Tribunal
Constitucional Federal. (...) la Ley Fundamental contiene en su capitulo
sobre derechos fundamentales, un 'orden objetivo de valores' que, en
tanto Idecisión iusconstitucional fundamental', vale para todos los
to ao seu conteúdo não faria sentido algum diante das esco-
lhas do próprio constituinte originário.
Nesse contexto, a decisão de tomar como critério para
a ponderação a preferência das normas que diretamente
promovem a dignidade humana justifica-se amplamente
com a Carta de 1988. É absolutamente tranqüilo na doutri-
l
3 3
e na jurisprudência que a Constituição fez uma opção
material clara pela centralidade da dignidade humana e,
como conseqüência direta, dos direitos fundamentais
3 3 3
.
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ámbitos dei derecho y del cual reciben 'directrices e impulsos ' la
legislación, la administración y la justicia. La suposición de que, a más de
ias normas de tipo tradicional, ai sistema jurídico pertenecen también
valores que, en tanto valores de range constitucional, ejercen un 'efecto
de irradiación' en todo el derecho ordinario tiene amplias consecuencias.
La Constitución no es ya solo base de autorización y marco dei derecho
ordinario. Con conceptos tales como los de dignidad, libertad e igualdad
y de Estado de derecho, democracia y Estado social, la Constitución
proporciona un contenido substancial ai sistema jurídico. Na mesma
linha, sobre a Carta espanhola, v. SEGADO, Franciso Fernández.
La
teoria jurídca delos derechos fundamentales enla ConstitucónEspaiioa
de1978 yensu interpretacónpor e Tribunal Constituconal
Revista de
Informação Legislativa n° 121, 1994, p. 73 e ss.. Sobre a Carta belga, a
despeito de se tratar de um texto bem mais antigo que os demais aqui
referidos, v. DELPÉRÉE, Francis. O direito à dignidade humana .
In
BARROS Sérgio Resende de e ZILVETI Fernando Aurelio
(coordenadores).
Diretoconstituconal — Estudos emhomenagema
Manoe Gonçalves Ferrera Filho
1999, p. 151 e ss.. Na França, a
dignidade humana é considerada um elemento implícito desde a
Declaração de 1789. Assim tem se manifestado, reiteradamente, o
Consel Constitutionne:
Considérant que le peuble français a, par le
preambule de la Constitution de 1958, proclame solennellement 'son
attachement aux droits de l'homnie et aux principes de la souveraineté
nationale tels qu'ils ont été définis par la Déclaration de 1789, confirmée
et complétée par le preambule de la Constitution de 1946; qu'il ressort,
par ailleurs, do preambule de la Constitution de 1946 que la sauvegarde
de la dignité de la personne humaine contre toute forme d'asservissement
et de dégradation est un principe de valeur constitutionnelle (Décision
n°98408 DC, 22.01.1999).
250
332 V. sobre o tema, na doutrina nacional, SARLET, Ingo Wolfgang.
Dignidadeda pessoa humana edretos fundamentais na Constituição
Federal de1988
2001; SANTOS, Fernando Ferreira dos. O
princpo
constituconal da dgnidadeda pessoa humana
1999; FARIAS, Edilsom
Pereira de.
Coisãodedretos. A honra a intimdade a vda privada ea
imagemversus a liberdadedeexpressãoeinformação
1996; SILVA, José
Afonso da.
dgndadeda pessoa humana comovalor supremoda
democraca
Revista de Direito Administrativo n°212, 1998, pp. 89 a 94;
MENDES, Gilmar Ferreira. Os
dretos fundamentais eseus mútipos
significados na ordemconstituconal
Revista Brasileira de Direito Público
n° 2, 2003, pp. 91 a 104; ROCHA, Carmen Lucia Antunes. O
princpo
da dgnidadeda pessoa humana ea excusãosocal
Revista Interesse
Público n° 4, 1999, p. 23 e ss.; NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O
dretobrasileroeoprincpoda dgnidadeda pessoa humana
Revista de
Direito Administrativo n° 219, 2000, p. 237 e ss.; SANTOS, Marcos
André Couto.
A deimtaçãodeumconteúdopara odreto embusca de
uma renovada teoria geral combasena proteçãoda dgnidadeda pessoa
humana
Revista de Informação Legislativa n° 153, 2002, pp. 163 a 191.
Na doutrina estrangeira, v. ALEXY, Robert.
DiscourseTheoryand
HumanRights
Rodo Juris, vol. 9, n° 1, 1996, pp. 209 a 235.
333 V., dentre muitos, o seguinte acórdão: STF, Ext 633/CH, Rel. Min.
Celso de Mello, DJU 06.04.2001: O fato de o estrangeiro ostentar a
condição jurídica de extraditando não basta para reduzi-lo a um estado de
submissão incompatível com a essencial dignidade que lhe é inerente
como pessoa humana e que lhe confere a titularidade de direitos
fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua insuperável
importância, a garantia do due process of law. Em tema de direito
251
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possibilidade (e a realidade) de inspeções e intervenções,
até mesmo armadas, de organismos internacionais em paí-
ses que desrespeitem normas consideradas fundamentais
pela sociedade internacional, dentre outros exemplos.
Pois bem. Uma das questões responsáveis por boa parte
desse fenômeno foi por certo, e continua a ser, o tema da
proteção dos direitos hurnanos
4
° e o processo de interna-
cionalização dessa preocupação'''. O tema justificou inclu-
sive a criação de uma nova disciplina, o Direito Internacio-
nal dos Direitos Humanos, já introduzida em muitos cursos
universitários
4
. Os principais organismos internacionais
rnultilaterais
4
, de que fazem parte considerável parcela
dos países do mundo, consideram a proteção dos direitos
humanos um de seus objetivos principais e contam com
instrumentos institucionais para realizá-law. Há um nú-
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339
O fenômeno da proliferação das organizações internacionais é
descrito em MELLO, Celso D. de Albuquerque.
Curso de direito
internacional público vol.
I, 2001, p. 573 e ss.. O autor traz alguns
exemplos de organizações internacionais: Organização das Nações Unidas
(ONU), Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização
Mundial do Comércio (OMC), Organização Internacional do Trabalho
(OIT), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização de Aviação
Civil Internacional (OACI), Organização Mundial de Saúde (OMS),
entre outras.
340 A expressão
direitos humanos é
mais freqüente no debate
internacional que direitos fundamentais. Alguns autores, com efeito,
atribuem sentidos diversos às duas expressões. Direitos humanos seria a
expressão reservada ao conjunto de direitos ideais, metafísicos, derivados
da natureza do homem, ao passo que os direitos fundamentais seriam
apenas aqueles reconhecidos por uma ordem jurídica positiva. Por essa
razão a expressão direitos humanos seria a locução mais freqüentemente
empregada na esfera internacional. CANOTILHO, J. J. Gomes.
Direito
constitucional e teoria da constituição
1997, p. 347 e ss..
341 Nessa linha, e mesmo fora da experiência da comunidade européia,
vários países já alteraram suas Constituições para consagrar a
superioridade hierárquica dos tratados internacionais de direitos
humanos sobre o direito interno, como é o caso da Argentina (1994),
Equador (1998) e Venezuela (1999). V. TORRES, Ricardo Lobo.
Direitos humanos e tributação nos países latinos . In: TORRES, Ricardo
Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores).
Arquivos de
direitos humanos vol.
III, 2001, p. 112 e ss.. O Brasil segue caminho
semelhante. A recente Emenda Constitucional n° 45, de 8.12.2004,
introduziu os seguintes parágrafos ao artigo 5' da Carta de 1988:
§ 3° Os tratados e convenções internacionais sobre direitos
254
humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em
dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
equivalentes às emendas constitucionais.
§ 4
0 Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional
a cuja criação tenha manifestado adesão. .
342
CANÇADO TRINDADE Antônio Augusto.
A proteção
internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos
básicos
1991; PIOVESAN, Flávia.
Direitos humanos e o direito
constitucional internacional 2000; BONAVIDES, Paulo. Os direitos
fundamentais e a Globalização . In: LEITE, George Salomão
(organizador).
Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das
normas principiologicas da Constituição 2003 pp. 165 a 179; e
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o princípio da dignidade
humana .
In
LEITE, George Salomão (organizador).
Dos princípios
constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da
Constituição 2003, pp. 193 a 195: Consagra-se, assim, a dignidade
humana como verdadeiro superprincípio a orientar o Direito
Internacional e o Interno. (...) É no valor da dignidade humana que a
ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida
e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. (...) Assim,
seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz do direito
constitucional ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que
unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial
prioridade.
343
Destacam-se, entre outras, a ONU, a OEA e a OMC.
344 O
Conselho Econômico e Social da ONU, por exemplo, conta com
uma Comissão de Direitos Humanos. O ingresso na OMC depende de
uma avaliação, feita pela organização, acerca da observação pelo país dos
direitos humanos.
255
mero enorme de atos internacionais (tratados, declaraçõ
es
etc.) abordando pontos relacionados com a proteção dos
direitos hum nos e pr tic mente tod s s recentes
intervenções patrocinadas por organismos internacionai
s
pretenderam legitimar-se alegando a necessidade de prote-
ção dos direitos das populações locais
4 5
Ou seja: o direito internacional encontra-se comprome-
tido com a dignidade humana e com a proteção dos direitos
humanos. Não é apenas a Constituição brasileira de 1988
Neste ponto, todavia, é preciso fazer uma observação.
Não se pode ignorar que o aparente consenso acerca dos
direitos humanos na esfera internacional enfrenta algumas
dificuldades. A primeira dificuldade está relacionada com
o descompasso entre esses padrões supostamente univer-
sais e a realidade institucional e cultural de muitos países,
especialmente os não ocidentais ou de tradições diversas
das ocidentais
4 7
A segunda, se desenvolve no plano teórico e, alimenta-
da de certa maneira pela primeira, manifesta-se na forma
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que consagra a dignidade humana como fim central do sis-
tema jurídico e do Estado, para o qual todos os demais
elementos devem convergir. Não se trata de uma idiossin-
crasia nacional. Também o direito internacional comparti-
lha dessa mesma opção substantiva 4 6
e, portanto, o parâ-
metro proposto neste capítulo pode contar com fundamen-
tação não apenas no direito interno, mas também no direito
internacional.
345 Seguem alguns exemplos de resoluções do Conselho de Segurança
da ONU que autorizaram a intervenção militar em Estados membros por
razões humanitárias: Resolução n° 688/1991 — Intervenção humanitária
no Iraque em função da repressão aos Curdos; Resolução n° 794/1992 —
Intervenção humanitária na Somália, pois o país estava em estado de
anarquia decorrente da guerra civil entre várias facções; Resolução n
929/1994 — Intervenção humanitária na Ruanda em razão das guerras
étnicas entre tutsis e hutus; Resolução n° 940/1994 — Intervenção
humanitária no Haiti decorrente do golpe de Estado efetuado pelos
militares que levou o pais à guerra civil; Resolução n° 770/1992 —
Intervenção humanitária na Bosnia-Herzegovina em razão da guerra civil
separatista empreendida pelo Estado; Resolução n° 1244/1999 —
Intervenção militar em Kosovo também por razões humanitárias. Os
textos estão disponíveis em http://www.un.org/documents/
. V. sobre o
tema, RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos
humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria
2000.
346 Sobre o tema, v. PIOVESAN, Flávia.
Direitos humanos e o direito
constitucional internacional 2000.
256
de um conjunto de questionamentos: O que significa a lo-
cução
direitos humanos?
De que direitos se está tratando
afinal? A tentativa de universalizar o discurso dos direitos
humanos não seria uma modalidade de imposição e domi-
nação culturais de um produto tipicamente ocidental sobre
culturas totalmente diferentes? O que legitima essa impo-
sição? Ou, pior, o tema dos direitos humanos — até por sua
fluidez — não se prestaria facilmente a operar como urna
justificativa ideológica e moral para um neo-imperialismo
político e econômico ocidental? Esse é o debate que opõe,
de um lado, aqueles que sustentam a universalidade dos
direitos humanos — os universalistas — e os que criticam
esse entendimento — os culturalistas, regionalistas ou rela-
tivistas. Entre esses dois extremos, por evidente, há um
conjunto de posições intermediárias'''.
347 É certo que também muitos países ocidentais não implementam
esses padrões, mas em geral o problema nesses casos não é de oposição
cultural, mas de ineficiência político-administrativa, falta de recursos,
prioridades distorcidas, ou, ainda, de uma concepção específica acerca do
sentido dos direitos humanos em determinadas circunstâncias, dentre
outros fatores. V. MAIA, Antônio Cavalcanti. Direitos humanos e a
teoria do discurso do direito e da democracia .
In
TORRES, Ricardo
Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores).
Arquivos de
direitos humanos vol.
II, 2000, p. 5 e ss..
348 V. WALZER, Michael.
Spheres of Justice —A Defense of Pluralism
257
A questão é complexa, não admite uma resposta sim-
plista e cabe aqui apenas registrá-la. Nada obstante, uma
nota importante deve ser feita. Um exame dos atos inter-
nacionais'
4 9
sobre direitos humanos revela, ao contrário do
que talvez se pudesse imaginar, que entre seus subscritore
não se encontram apenas países ocidentais ou ocidentaliza-
dos'', mas também diversos países africanos e asiáticos, de
tradições culturais totalmente diversas das ocidentais '. É
certo que as formulações dos atos internacionais são muitas
vezes providencialmente genéricas e que o discurso exter-
ses que com a decisão do Estado de implementar o conteú-
do do ato. De todo modo, é sintomático que ainda assim os
governos se sintam compelidos a expressar compromissos
com a dignidade humana e com os direitos humanos.
Não há dúvida de que o debate entre universalismo e
culturalismo, identificado acima, além da relevância filosó-
fica, será vital no momento em que seja necessário delinear
concretamente que direitos devem ser considerados
direi-
tos humanos
e o que pode ser feito para impor seu cumpri-
mento, sobretudo em ambientes de tradição cultural e ins-
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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no dos países não é necessariamente coerente com sua rea-
lidade interna, jurídica, histórica ou cultural. Também se-
ria ingenuidade ignorar que, por vezes, a subscrição de um
ato internacional está mais relacionada com outros interes-
and Equality
1983, p. 9 e ss.; e, do mesmo autor,
Thick and Thin. Moral
Argionent at Home and Abroad
1994, p. 8 e ss..
349
Aí incluídos de tratados a meras declarações. As declarações
veiculam em geral valores de grande relevância e caráter duradouro e têm
ampla influência nas relações internacionais, mas não possuem força
jurídica impositiva imediata. Apenas após serem amplamente
reconhecidas é que são consideradas fontes de direito, como é o caso da
Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Os tratados (e
também as convenções, pactos e protocolos), por outro lado, são firmados
pelas pessoas de Direito Internacional com o objetivo de produzir efeitos
de direito em suas relações mútuas e, em geral, passam a integrar o direito
interno dos países com a ratificação. V. o
Dicionário da Cidadania
disponível em www.dhnet.org.br
(acesso em 12.09.2004).
350
Como, ainda que em parte, Austrália, Nova Zelândia e Israel, dentre
outros.
351
O art. 4° da Carta Geral das Nações Unidas de 1945, por exemplo,
admitiu como países membros, dentre outros, Afeganistão, Azerbaijão,
Albânia, Coréia do Sul, Coréia do Norte, Emirados Árabes, Kuait,
Nigéria, Paquistão, Somália, Tailândia, Uganda, Uzbequistão, Zâmbia e
Zimbábue. Também a Declaração Universal dos Direitos do Homem de
1948 foi assinada por países como o Afeganistão, a China, a Etiópia, o Irã,
o Iraque, o Líbano, o Paquistão e a Tailândia.
titucional diversa da ocidental. Nada obstante isso, no nível
teórico, é possível dizer que há confortável consenso na
esfera internacional acerca da prioridade do homem e do
seu bem estar.
Além disso, o objetivo deste estudo é apresentar uma
proposta operacional de parâmetros para a técnica da pon-
deração dirigida à realidade jurídica ocidental. Desse
modo, o debate universalismo
versus
culturalisrno não im-
pede que se afirme, para os fins aqui em vista, que também
a sociedade internacional compartilha da opção material
pela dignidade humana como valor fundamental da ordem
jurídica, ainda que no plano teórico e talvez em extensão
menor que o direito interno
3 5
. É o que basta para funda-
352 É apenas natural que haja dificuldade na construção de uma teoria
universalmente válida sobre os direitos humanos, já que o direito é
sempre experiência cultural e histórica. Isso não impede, ao contrário,
que se formulem teorias contextualizadas e válidas nesses ambientes. V.
LARENZ, Karl.
Metodologia da ciência do direito
1969, p. 158: A
validade objectiva de qualquer experiência imediata de valores é
indemonstrável. O subjectivismo judicial, por outro lado, harmoniza-se
mal com a exigência de decisões uniformes e com a necessidade de
segurança jurídica. Afigura-se assim que a questão dos critérios de valor
não pode receber resposta satisfatória. A verdade, porém, é que a
experiência demonstra que em matéria de valor é também possível um
258
59
mentar a prioridade das normas que de forma direta pro-
movem a dignidade humana quando em confronto com ou-
tras que estão associadas a esse objetivo apenas de form
a
indireta.
Os dois elementos que se acaba de apresentar — direi-
to interno e internacional — são mais do que suficiente
s
para fundamentar o parâmetro aqui em discussão. Em pri-
meiro lugar, como se acaba de sublinhar, porque o universo
de trabalho deste estudo é o sistema jurídico ocidental, que
comunga, tanto na esfera interna, como internacional, de
sideravelmente a possibilidade de ampliação pelo intérpre-
te do conceito geral de dignidade humana. É certo que
resta o problema de delinear o núcleo dos princípios, que
terão natureza de regra: esse tema será retomado no último
capítulo.
Como referido, os dois fundamentos apresentados até
este ponto para o parâmetro em questão fundam-se em
consensos substanciais, isto é, opções de conteúdo valorati-
vo. Não se pode, no entanto, ignorar a constante crítica
filosófica e política que tem se voltado contra o emprego
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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consensos materiais acerca da dignidade humana e dos di-
reitos fundamentais. Ademais, o risco da indefinição ou de
uma ampliação excessiva do conceito jurídico de proteção
e promoção da dignidade humana — real nas discussões
internacionais —, é bastante reduzido no contexto da pro-
posta deste estudo.
Como já exposto, o primeiro parâmetro a ser emprega-
do no processo ponderativo consagra a preferência das re-
gras sobre os princípios (sua área não nuclear, na verdade).
Assim, no mais das vezes, o segundo parâmetro lidará ape-
nas com disputas envolvendo regras
5
, o que restringe con-
consenso,
e que há portanto critérios de valor que — pelo menos numa
época e numa comunidade cultural determinadas — são reconhecidos de
modo dominante. (...) Se extrairmos desta ordem 'positiva' de valores
princípios jurídicos susceptíveis de fornecer orientação ao legislador e ao
juiz, obteremos uma espécie de
Direito natural relativo,
constituído pelos
valores que são objectos de experência histórica — isto é, que se dão à
consciência do homem na realidade histórica de determinada época.
353 Em tese, o segundo parâmetio poderá ter de lidar com normas
oriundas de um conflito do tipo regra
versus
regra ou do tipo área não
nuclear de princípio
versus
área não nuclear de princípio. Esta segunda
hipótese, bastante incomum, terá lugar quando a questão não seja
regulada por regra alguma. Nesse caso, como já determinava a Lei de
Introdução ao Código Civil, o intérprete terá de recorrer à analogia, ao
costume e aos princípios afinal, ainda que em sua área não nuclear.
260
dessa espécie de consenso como fundamento de qualquer
construção teórica ou como elemento de legitimação de
estruturas sociais e jurídicas, não apenas na esfera interna-
cional, mas também no âmbito do direito interno
5
O fundamento desse ceticismo acerca de consensos
materiais repousa, em última análise, na percepção de uma
sociedade (interna e internacional) cada vez mais plural,
dividida por concepções as mais diversas acerca de defini-
ções valorativas (o que é a justiça, o bem ou o belo), ten-
dências políticas e ideológicas, opções pessoais de vida
5 5 ,
dentre tantos outros aspectos. A revisão das grandes ideo-
354 HABERMAS, Jurgen.
Direito e democracia entre facti cidade e
validade, vol.
I, 2003; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza.
Jurisdição
constitucional democrática,
2004, p. 135 e ss.; POZZOLO, Suzanna. Un
constitucionalismo ambíguo .
In
CARBONELL, Miguel (organizador).
Neoconstitucionalismo s),
2003, p. 187 e ss.; e BARBEAIS, Mauro.
Neoconstitucionalismo, democracia e imperialismo de la moral . In:
CARBONELL, Miguel (organizador).
Neoconstitucionalismo s),
2003, p.
259 e ss..
355 V. WALZER, Michael.
Spheres of Justice —A Defense of Pluralism
and Equality,
1983; ALMEIDA, Ricardo. A critica comunitarista ao
liberalismo .
In
TORRES, Ricardo Lobo (coordenador).
Teoria dos
direitos fundamentais,
1999; e CITADINO, Gisele.
Pluralismo, direito e
justiça distributiva — lementos da filosofia constitucional
contemporânea, 1999,
p. 159 e ss..
261
logias do século XX, com a decadência do socialismo histó-
rico e a crise do Estado de bem estar social, agravou ainda
mais esse quadro. De acordo com esses críticos, não é pos-
sível identificar um consenso material compartilhado pelos
diversos grupos dentro da sociedade de modo que, por essa
razão, não é possível empregar tais consensos como funda-
mento legitimador de decisões ou estruturas no âmbito da
sociedade política.
Já que não é viável concluir, sob urna perspectiva co-
mum a todos, que determinada solução é materialmente
boa ou justa, tudo o que se pode pretender é a existência de
tros condicionantes, indivíduos cru um estado original e
sob o véu da ignorância firmam um novo contrato social
sem saber quais serão suas convicções valorativas e ideoló-
gicas na sociedade. O conteúdo do novo contrato social não
pode depender das concepções materiais dos participantes
e nem se justifica com base nelas; sua legitimidade está
fundada na correção do procedimento por meio do qual foi
possível chegar aos princípios propostos pelo autor. E certo
que Rawls não adota um procedimentalismo radical: fixa-
dos esses princípios no momento inicial, as deliberações
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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um procedimento para a tomada de decisões que, por suas
características, ainda que apenas formais, possa legitimar as
decisões que venham a ser apuradas. Ou seja: corno não se
pode controlar o resultado produzido ao final desse proce-
dimento, uma vez que isso exigiria um juízo de natureza
material, os autores, a partir de diferentes pressupostos e
com propósitos igualmente diversos, ocupam-se de discu-
tir modelos procedimentais, suas características, seus pres-
supostos e as condições necessárias para seu desenvolvi-
mento.
Esse elemento
procedimentalista e crítico dos consen-
sos materiais, em maior ou menor intensidade, está
presen-
te
em diferentes construções teóricas contemporâneas.
John Rawls
Uma teoria da justiça e Liberalismo políti-
co 6
emprega o raciocínio procedimental ao discutir prin-
cípios para ordenação da sociedade justa. Na formulação
do autor, esses princípios são concebidos a partir de um
modelo de justiça processual pura
no qual, dentre ou-
para alcançá-lo. Na justiça processual perfeita, há umpadrão
independenteepreciso paradecidir qua o resutado justo, bemcomo uni
procedimento quegaranteaobtenção deta resutado. O autor reconhece
queestasituação é idea, não severificando napráticadeformareevante
Por outro lado, acaracterísticadajustiçaprocessua imperfeitaé que,
emborahaaumcritério independente paradetermnar qua o resultado
correto, não háquaquer processo prático que assegure que ele será
atingido. Por fim ajustiçaprocessua puraaplica-se quando não há
critério independente parao resultado justo, mas existe umprocesso
correto ou equitativo que, devidamente aplicado e respeitado, permte
que o resultado, seaele qua for, seaiguamente correto ou equitativo.
Este é o modelo adotado pelo autor emsua teoria já que, como
conseqüênciadadiversidadeindividua deprojetos econcepções devida
edejustiça Raws entendequenão há umresultado justo
pré-estabelecido e consensua entre os homens. O que asuateoriada
justiçapretende é estabelecer umprocedimento equitativo que conduza
aumresultado, senão justo, ao menos não injusto. V. John Rawls,
Uma
teoria da justiça
1993, p. 86 ess.. V. tambémTORRES, Ricardo Lobo.
A teoria da justiça deRawseopensamentodeesquerda
Revistada
FacudadedeDireto daUERJ n° 5, pp. 157 a175, 1997; BARCELLOS,
AnaPaulade. O mnimo existencia e agumas fundamentações: John
Rawls, Michael Wazer e Robert Alexy . In: TORRES, Ricardo Lobo
(organizador).
Legtimaçãodosdretoshumanos
2002; e SOUZA
NETO, Cláudio Pereirade. Fundamentação e normatividade dos
direitos fundamentas: umareconstrução teóricaà luz do principio
democrático .
MELLO, Celso deAlbuquerqueeTORRES, Ricardo
Lobo (organizadores).
Arquvosdedretoshumanos vo.
IV, 2002, p. 49.
356 RAWLS, John.
Uma teoria da justiça 1993;
e
Liberalismopoítico
1992.
.
357 Rawls confrontatrês noções correlatas: ajustiçaprocessua perfeita
ajustiçaprocessua imperfetaeajustiçaprocessua pura Cadaumadeas
va trabahar comdois elementos: aquaidadedo resultado eo processo
262 263
públicas posteriores (inclusive as relacionadas com o con-
teúdo da Constituição e das leis) estão a eles vinculada
s
para o fim de aplicá-los e desenvolvê-los
5 9 .
A concepção de Jurgen Habermas acerca da razão co-
municativa adota a lógica procedimental de forma muito
mais abrangente
5 9
. Para Habermas, a legitimação do direi-
to nas sociedades contemporâneas deve ser construída a
partir do consenso obtido por meio da comunicação e diá-
logo públicos, e não a partir de argumentos autoritativos ou
consensos materiais prévios °. Sendo assim, a deliberaçã
Essas reflexões de cunho predominantemente filosófi-
co refletem sobre a Teoria do Direito em geral e, em parti-
cular, sobre a Teoria da Constituição. O chamado
constitu-
cionalismo procedimental
trabalha justamente com a idéia
de que as opções de caráter material, valorativo, devem
ficar a cargo da deliberação majoritária em cada momento
histórico
6
, cabendo à Constituição tratar apenas das re-
gras e procedimentos necessários para o funcionamento
das estruturas democráticas
5
. Embora haja nesse caso
toda uma fundamentação democrático-majoritária para a
teoria (que, a rigor, não deixa de ser uma opção material),
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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pública está aberta a qualquer resultado final no que diz
respeito ao seu conteúdo, justificando-se na medida em
que o procedimento seja adequado '.
358 Sobre esse elemento substancialista ou material da teoria de Rawls,
veja-se a bela tese de doutorado de Cláudio Pereira de Souza Neto, ainda
em mimeo,
Teoria constitucional e democracia deliberativa,
2004.
359 Para um exame mais amplo do pensamento de Habermas sobre o
ponto, v. MAIA, Antônio Cavalcanti. Direitos humanos e a teoria do
discurso do direito e da democracia . In: TORRES, Ricardo Lobo e
MELLO, Celso Albuquerque (organizadores).
Arquivos de direitos
humanos, vol.
II, 2000, pp. 3 a 80.
360 HABERMAS, Jurgen.
Direito e democracia entre facticidade e
validade, vol.
I, 2003, p. 154 e ss.; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza.
Jurisdição constitucional democrática,
2004 p. 193 e ss.; e
CANOTILHO J. J. Gomes
Direito constitucional e teoria da
Constituição,
1998, p. 1310 e ss..
361 MAIA, Antônio Cavalcanti. Direitos humanos e a teoria do discurso
do direito e da democracia .
In
TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso
Albuquerque (organizadores).
Arquivos de direitos humanos, vol.
II,
2000, pp. 22 a 27: A ética do discurso pode ser caracterizada como uma
ética da argumentação. (...) Além da ética do discurso apresentar-se como
universalista, cognitivista e deontológica, ela também possui uma
característica formalista (...) Afinal, uma ética formalista deve poder
fornecer um princípio que justificadamene consiga dirimir questões
prático-morais litigiosas por meio de um acordo racional motivado. Por
264
conseguinte, esta característica implica que os conteúdos morais surgirão
da própria vida social, por meio dos embates travados pelos próprios
interessados, os quais, seguindo a moldura argumentativa proposta pela
ética do discurso, podem chegar consensualmente a acertar suas
diferenças. De modo algum o teórico, dentro da perspectiva da ética
comunicativa, assume a posição de quem pode indicar padrões
axiológicos; o que ele sustenta é a inevitabilidade do reconhecimento de
determinadas regras de argumentação provenientes de uma análise
interna das propriedades da comunicação lingüística em geral. A ética do
discurso é um veículo para a reflexão sistemática acerca do problema de
como obter um acordo racionalmente motivado em uma sociedade
pluralista.
362 Veja-se, sob uma perspectiva diversa, SUNSTEIN, Cass R.
Legal
Reasoning and Political Conflict,
1996.
363 ELY, John Hart.
Democracy and Distrust. A Theoty of Judicial
Review,
1980; VIEIRA. Oscar Vilhena.
A Constituição e sua reserva de
justiça,
1999, p. 213 e ss.; BINENBOJM, Gustavo.
A nova jurisdição
constitucional brasileira,
2001, p. 93 e ss.; PIRES, Francisco Lucas.
Legitimidade da justiça constitucional e principio da maioria .
In:
Legitimidade e legitimação da justiça constitucional — Colóquio no 10
aniversário do Tribunal Constitucional,
1995, p. 167 e ss.; e HAGE
SOBRINHO, Jorge.
Democracy and distrust — A Theoly of judicial
review — John Hart Ely: resumo e breves anotações à luz da doutrina
contemporânea sobre interpretação constitucional,
Arquivos do Ministério
da Justiça n°48 (186), 1995, pp. 201 a 225.
265
o constitucionalismo procedimental se funda també
m
no
pressuposto de que, além de indesejável, na verdade seria
inviável contar com consensos materiais permanentes.
Há, no entanto, um aspecto fundamental a ser observa-
do aqui. As diferentes teorias que incorporam elementos
procedimentais, e é o que acontece com os exemplos lista-
dos nos parágrafos anteriores, assumem como pressuposto
a igualdade de todos os indivíduos
6 4
e,
a fortiori
uma pri-
meira característica legitimadora dos diferentes modelos
procedimentais por eles propostos deverá ser seu caráter
democrático
6 5
. Ora, a conseqüência direta desses pressu-
dos os canais de participação popular, por exemplo. E,
igualmente, cada indivíduo deve ter respeitado um conjun-
to básico de direitos fundamentais, sem os quais ele não
terá condições de exercer sua liberdade, de participar cons-
cientemente do processo político democrático e do diálogo
no espaço público
6 6
. Em outras palavras, o sistema de diá-
logo democrático não tem como funcionar de forma mini-
mamente adequada se as pessoas não tiverem condições de
dignidade ou se seus direitos, ao menos em patamares mí-
nimos, não forem respeitados.
Na mesma linha, o constitucionalismo procedimental
reconhece que, além de regras puramente procedimentais
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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postos — a igualdade e o caráter democrático do procedi-
mento — é a necessidade de assegurar a liberdade das pes-
soas para que elas possam participar do procedimento.
E,
para que essa liberdade possa ser exercida em condições
razoáveis, exige-se também um conjunto mínimo de condi-
ções materiais, como educação, alimentação, etc.
Habermas registra exatamente que o funcionamento
adequado de sua proposta exige um conjunto de condições
ou pré-requisitos. É necessário manter livres e desobstruí-
364 AARNIO, Aulis.
Reason andAuthority
1997, p. 217 e ss.; e ALEXY,
Roberto.
Derechos, razonametztojurídicoediscursoraconal.
evista
Isonoinia n° 1, 1994, pp. 48 e 49: Para el argumento que quiero
presentar ahora, solo necesito la idea de libertad e igualdad en los
argumentos, que es la base normativa de la teoria dei discurso. La teoria
del discurso sostiene que una argumentación que excluye o suprime
personas o argumentos — excepto por razones pragmáticas que tienen
que ser justificadas — no es una argumentación racional, y que las
justificaciones que se obtienen de la misma soa defectuosas. (...)Mi tesis
es que el resultado de un discurso racional seria un sistema de derechos
fundamentales que incluya una preferencial
prima facede los derechos
individuales sobre los bienes colectivos.
365 O que, a rigor, não deixa de ser uma opção material de caráter
valorativo.
266
(como a disciplina das eleições e da separação de poderes),
as Constituições também devem tratar da proteção de di-
reitos fundamentais
6 7
. Na verdade, o regime democrático
depende de todos os cidadãos terem assegurado um con-
junto mínimo de direitos que permita sua participação livre
e consciente na formação da vontade majoritária. Note-se
366 HABERMAS, Jurgen.
Diretoedemocraca entrefacticdadee
validade vol.
I, 2003, p. 154 e ss.; MAIA, Antônio Cavalcanti. Direitos
humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia .
In
TORRES,
Ricardo Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores).
Arquvos
dediretos humanos, vol.
II, 2000, p. 58 e ss.; NASCIMENTO, Rogério
Soares do. A Ética do discurso como justificação dos direitos
fundamentais na obra de Jürgen Habermas .
In
TORRES, Ricardo Lobo
(organizador),
Legtimaçãodos diretos humanos,
pp. 451 a 498, 2002;
BINENBOJM, Gustavo.
A nova jurisdiçãoconstituconal brasilera,
2001, p. 47 e ss.; e SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Fundamentação
e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à
luz do principio democrático . In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO,
Celso de Albuquerque (organizadores).
Arquivos dediretos humanos,
vo IV, 2002.
367 BAYÓN, Juan Carlos. Derechos, Democracia y Constitución .
In
CARBONELL, Miguel (organizador).
N eoconstituconalismo s),
2003, p.
225 e ss..
267
que esses direitos deverão ser respeitados quer se faça par-
te da maioria ou não 8
. Se a maioria pudesse violar os direi-
tos da minoria, ela poderia destruir o próprio sistema de-
mocrático, obstruindo os canais de participação e instalan-
do uma ditadura do grupo majoritário naquele momento
histórico
9.
368 Sobre o tema das relações democracia e direitos fundamentais, v.
Landelino Lavilla. Constitucionalidad y legalidad. Jurisdiccion
constitucional y poder legislativo .
In Divsondepoderese
interpretacon— Haca una teoria dela praxia constituconal,
PINA
Por fim, também Rawls reconhece que o funcionamen-
to de seu modelo de justiça processual pura pressupõe logi-
camente a garantia não apenas de liberdades aos indiví-
duos, mas também de condições elementares de existência
material. Com
efeito, o autor registra que, para que o pro-
cedimento decidido pelos indivíduos no estado original
seja verdadeiramente eqüitativo, é necessário que eles te-
nham assegurado um conjunto de direitos, que deve incluir
os direitos de liberdade e condições materiais mínimas
para o exercício dessas liberdades. A falta desse pressupos-
to, o processo deixa de ser eqüitativo, arruinando a lógica
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
http://slidepdf.com/reader/full/barcellos-ana-paula-de-ponderacao-racionalidade-e-atividade-jurisdicionalpdf 145/178
Antonio Lopes (organizador), 1997, pp. 58 a 72; QUADRA, Tomás de la;
PERGOLA Antonio La; GIL Antonio Hernández;
RODRIGUEZ-ZAPATA, Jorge Gustavo; ZAGREBELSKY;
BONIFACIO Francisco P.; DENNINGER Erhardo e HESSE Conrado.
Metodos y criterios de interpretacion de la constitucion .
In
PINA
Antonio Lopes (organizador).
Divsiondepoderes einterpretacon—
Haca una teoria dela praxia constituconal,
1997
p. 134; e SEGADO,
Francisco Femández.
La teoria jurídca delosderechosfundamentalesen
la ConstitucónEsparioa de1978 y ensuinterpreaconpor e Tribunal
Constituconal,
Revista de Informação Legislativa n° 121, 1994, p. 77:
(...) los derechos son, simultaneamente, la conditio sine qua non dei
Estado constitucional democrático.
369 Essa observação é comum a procedimentalistas e substancialistas,
como se vê da observação de um não procedimentalista como
DWORKIN, Ronald.
FreedomsLaw TheMoral Readngo theAmerican
Constitution
1996, pp. 17 e 18: Democracy means govemment subject
to conditions — we might call these the 'democratic' conditions — of
equal status for ali citizens. When majoritarian institutions provide and
respect the democratic conditions, then the veredicts of these
institutions should be accepted by everyone for that reason But when
they do not, or when their provision or respect is defective, there can be
no objection, in the name of democracy, to other procedures that protect
and respect them better. The democratic conditions plainly include, for
example, a requirement that public offices must in principie be open to
members of ali races and groups on equal terms. If some law provided
that only mernbers of one race were eligible for public office, then there
would be no moral cost — no matter for moral regret at ali — if a court
that enjoyed the power to do so under a valid constitution struck down
procedimental concebida pelo autor
°
.
that law as unconstitutional. That would presumably be an occasion on
which the majoritarian premise was flouted, but though this is a matter of
regret according to the majoritarian conception of democracy, it is not
according to the constitutional conception. No mesmo sentido, v.
MARTINEZ, Gregorio Peces-Barba.
Derechossocalesy postivsmo
jurídco
1999, p. 57: El primer argumento pues, para defender su
inclusión en la categoria genérica de los derechos fundamentales, pasa por
este reconocimiento de la conexión de los derechos económicos, sociales
y culturales, con la generalización de los derechos políticos. Su objetivo
era la igualdad a través de la satisfacción de necesidades básicas, sin Ias
cuales muchas personas no podián alcanzar los niveles de humanidad
necesarios para disfrutar de los derechos individuales, civiles y políticos,
para participar en plenitud en la vida política y para disfrutar de sus
beneficios. ; PEREZ LUNG, Antonio Enrique.
Derechoshumanos,
Estadodederechoy Constitucon
1999, p. 227.; e ESPADA, João Carlos.
Diretos socais ecdadana,
1999; e GARCIA, Maria.
Impicaçõesdo
princpoconstituconal da igualdade
Revista de Direito Constitucional e
Internacional n° 31, 2000, p. 109 e ss..
370 RAWLS, John.
Uma teoria da justiça,
1993, p. 221. V. também pp.
81 e 222. Mais eape
cificamente, vale conferir os seguintes trechos de seu
Liberalismopoítico
1992,pp. 32 e 33: En especial, el primer principio,
que abarca los derechos y libertades iguales para todos, bien puede sir
precedido de un principio que anteceda a su formulación, el cual exija que
las necesidades básicas de los ciudadanos sean satisfechas, cuando menos
en la medida en que su satisfacción es necesaria para que los ciudadanos
268
269
Ainda que não se compartilhe inteiramente da posição
descrita acima do ponto de vista filosóficom e, mais que
isso, que ela não produza um impacto tão importante do
ponto de vista operacional no funcionamento do parâmetro
aqui em discussão (já que o estudo ocupa-se de uma pro-
posta jurídica, e não filosófica, destinada a operar em um
sistema constitucional que já fez uma opção material pela
dignidade humana, como é o caso da Carta de 1988), há
aqui um ponto que merece ser sublinhado. Mesmo concep-
ções que operam com categorias essencialmente procedi-
mentais acabam por reconhecer que os direitos fundamen-
Um exemplo do emprego desse parâmetro pode ser
observado na interpretação que significativa parte da dou-
trina — a nosso ver com acerto—confere ao art. 213, § 1°
da Constituição Federal, referente à destinação dos recur-
sos públicos na educação. O dispositivo tem a seguinte dic-
ção:
§
°
Os
recursos de que trata deste artigo poderão ser
destinados abolsas de estudo para o ensino fundamental
e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem
insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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tais terão de ser prioritariamente respeitados, ainda que
sob fundamentos diferentes e provavelmente em extensão
menor do que a pretendida pelos fundamentos materiais
de direito interno e internacional.
Em suma: seja por se tratar de uma opção material cla-
ramente perceptível na Constituição de 1988, seja por de-
correr de um consenso universal, seja pela necessidade de
construir um ambiente no qual procedimentos democráti-
cos e eqüitativos possam funcionar, a prioridade das nor-
mas que diretamente promovem a dignidade — quando em
conflito insuperável com outras cuja relação com o bem
estar individual seja apenas indireta — encontra-se ampla-
mente justificada do ponto de vista jurídico e racional.
entiendan y puedan ejercer fructiferamente esos derechos y esas
libertades. Ciertamente, tal principio precedente debe adoptarse al
aplicar el primer principio. .
371 Para urna crítica às teses procedimentalistas, v. BONAVIDES,
Paulo. A constituição aberta, 1996,
p. 33 e ss. (embora o autor se ocupa
mais especificamente do procedimentalismo sociológico, suas reflexões
podem ser generalizadas ; e STRECK. Lênio Luiz.
Jurisdição
constitucional e hermenêutica. Unia nova crítica do direito,
2004, p. 147
e ss..
e cursos regulares da rede pública na localidade da resi-
dência do educando, ficando o Poder Público obrigado a
investir prioritariamente
na
expansão de sua rede na
localidade.
A leitura imediata do enunciado leva o intérprete à se-
guinte conclusão: não havendo vagas suficientes na rede
pública de ensino, e enquanto o Poder Executivo investe na
sua expansão, caberá ao Legislativo disciplinar a concessão
de bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio
para os que demonstrem insuficiência de recursos. Mas e
se não houver vagas na rede pública e nem lei regulando a
matéria? Poderá o Judiciário, provocado, determinar a con-
cessão de bolsas de estudo?
A resposta de boa parte da doutrina à pergunta que se
acaba de formular é positiva. O conflito normativo no caso
pode ser desenhado, resumidamente, da seguinte forma.
Os princípios da legalidade e da separação de poderes exi-
gem a lei para que as bolsas de estudo sejam concedidas, já
que a decisão envolve dispêndio de recursos públicos, exi-
gência que afinal consta do próprio dispositivo com nature-
za de regra, por meio da locução
na forma da lei.
De outra
parte, os enunciados que consagram o direito fundamental
270 71
à educação — no caso do ensino fundamental claramente
sob a forma de regra — postulam que, de alguma forma, o
indivíduo tenha acesso ao ensino fundamental e médio e
possa usufruir desse direito.
Qual deve ser a escolha então? Atender à regra que
exige lei prevista no dispositivo, e assim manter fora da
escola um indivíduo sem recursos para obter educação for-
mal por outro meio? Ou obedecer à regra constitucional
sobre educação fundamental e admitir a concessão de bol-
sas mesmo na ausência de lei? Qual das duas normas deve
prevalecer?
Em atenção à centralidade constitucional da pessoa hu-
Note-se um aspecto interessante. Na hipótese, não foi
sequer necessário afastar a regra que exigia lei: bastou con-
ferir-lhe uma interpretação capaz de acomodar a preferên-
cia em favor dos direitos do indivíduo. Como registrado ao
tratar da terceira etapa da ponderação, sempre que possível
convém evitar que algum dos enunciados em conflito seja
totalmente esvaziado.
Em resumo do que se expôs até aqui é possível registrar
o seguinte. Os dois parâmetros descritos, neste capítulo e
no anterior, têm natureza geral, isto é, procuram fornecer
ao intérprete preferências racionais e juridicamente consis-
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mana, de sua dignidade e dos direitos fundamentais, diver-
sos autores têm concluído que é preferível restringir par-
cialmente os princípios da legalidade e da separação dos
poderes, que se relacionam indiretamente com o bem estar
do homem no caso, e assesurar ao indivíduo o acesso à
escola a fazer o inverso
7
. E possível cogitar-se, inclusive,
para que a regra ( na forma da lei ) não seja completamen-
te ignorada, que ela se destina apenas ao Executivo, que
não poderá, sem lei, conceder bolsas de estudo em escolas
privadas, ao invés de investir na expansão da rede pública.
O Judiciário, no entanto, não estará limitado por essa res-
trição, mesmo porque, no momento em .que a disputa che-
ga ao Judiciário, isso significa que nem o Poder Executivo
ofereceu vagas na rede pública e nem o Legislativo regula-
mentou a concessão de bolsas.
372 V. BARCELLOS, Ana Paula de.
A eficácia jurídica dos princípios
constitucionais —
O
princípio da dignidade da pessoa humana
2002, p.
260 e ss.; BARROSO, Luis Roberto. O
direito constitucional e a
efetividade de suas normas
2003, p. 114 e ss.; e SANTOS, Marcelo de
Oliveira Fausto Figueiredo. As normas programáticas — Uma análise
político-constitucional
Cadernos de Direito Constitucional e Ciência
Política n° 16, 1996, p. 119 e ss..
tentes para a solução dos conflitos normativos que, por suas
peculiaridades, exijam o emprego da ponderação. A prefe-
rência das regras sobre os princípios orienta o intérprete na
primeira fase da ponderação, quando são identificados os
enunciados relevantes. A preferência das normas que pro-
movem diretamente a dignidade opera na terceira fase,
momento em que as normas propriamente ditas já foram
apuradas
Entre a primeira e a terceira fases da ponderação, po-
rém, há uma etapa intermediária, na qual são identificados
os fatos relevantes, atribuídos pesos aos elementos norma-
tivos e afinal construídas as normas em disputa, que conti-
nua desvinculada de qualquer parâmetro objetivo. Na ver-
dade, a construção de parâmetros ou
standards
capazes de
orientar o intérprete nesse momento depende do estudo
da casuística dos conflitos. Aqui será preciso construir pa-
râmetros específicos para cada tipo de conflito de que se
possa cogitar, seja por meio do levantamento de casos reais,
e nesse sentido o estudo da jurisprudência é da maior im-
portância, seja pela elaboração teórica de conflitos hipoté-
ticos.
Este trabalho não se ocupa de examinar ou propor parâ-
metros para conflitos específicos, já que cada um deles exi-
272
273
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intérprete terá a sua disposição — para sua instrução e tam-
bém para o controle de sua atuação — uma quantidade
importante de parâmetros e preferências abstratas
3 7 4
. A
partir delas será mais fácil visualizar, em cada caso real, os
elementos de fato relevantes e os pesos que devem ser
atribuídos aos diferentes conjuntos normativos ao longo do
processo de ponderação.
É certo que não se pode pretender antecipar por inteiro
as complexidades da vida real para o fim de identifica
r
todas as circunstâncias que podem interferir na aplicação
de um enunciado normativo. Isso seria impossível
3
. En-
tretanto, o fato de não ser viável imaginar parâmetros abso-
lutos ou completos
ali things consideredn
não impede
que se conceba aquilo que é possível para os fins desejados.
A construção dos parâmetros particulares em abstrato pre-
tende fornecer ao aplicador balizas para orientar sua deci-
são, discutidas ampla e previamente pela doutrina, no espa-
ço público'. De toda sorte, como já se registrou, os parâ-
principios constitucionales .
In: CARBONELL,
Miguel (organizador).
Neoconstitucionalismo s),
2003, pp
j
120 e 121: En relación con la
movilidad
de las jerarquizaciones ideales de nuestros principios en
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374 NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição,
2003, pp. 910 e 911: Os
resultados obtidos na
categorização
são, à partida, funcionalment
orientados para a formulação de regras gerais de preferência relativa entre
bens ou de valoração diferenciada de modalidades concretas de exercício
dos direitos fundamentais — regras que resultam de ponderações, mas
que, simultaneamente, permitem a orientação e estruturação de
ponderações futuras. (...) A formulação deste tipo de regras pode, ainda,
desenvolver-se num nível muito mais concreto e capaz de fornecer a
solução dos posteriores casos com dispensa de recurso a ponderações de
caso concreto, na medida em que a máxima previamente fixada, ainda
que formulada com base em anteriores ponderações, estabeleça já uma
relação de prioridade concretizável através de procedimentos de mera
subsunção e só infirmável através da ponderação de novos factores
circunstanciais não considerados na formulação da regra em causa ou
mediante novos resultados de ponderação que conduzam à alteração da
regra anterior. Nessas circunstâncias, a formulação de uma regra funciona
simultaneamente como orientação e quadro das futuras ponderações que
devam ocorrer por força da necessidade de consideração de novos
factores, mas constitui também, enquanto parâmetro substantivo que o
Estado deve observar, um
standard
de controlo das restrições que
venham a ocorrer no contexto abrangido pela regra
375 José Juan Moreso sustenta, otimisticamente, que a construção de
parâmetros pode chegar a reduzir toda a ponderação a subsunção, na
medida em que sempre poderia existir um parâmetro ao qual o caso
concreto se subsume. V. MORES O, José Juan. Conflictos entre
276
conflicto, hay algún grado de indeterminacion en la aplicación de los
principios en conflicto, pero la movilidad no supone la incapacidad de
convertir la ponderación en una operacion de
subsunción.
La racionalidad
subsuntiva es, en mi opinión, un presupuesto necesario para la
justificación de todas nuestras decisiones. Es posible, sin embargo, que no
siempre estemos en condiciones de articular consistentemente nuestras
evaluaciones, que nuestras intuiciones sean opacas a la articulacion, y,
claramente, es también posible que no estemos interesados en justificar
algunas de nuestras decisiones (...). Sin embargo, en la medida en que
consigamos aislar un conjunto de propiedades relevantes, estamos en
disposición de ofrecer soluciones para todos los casos, aunque dichas
soluciones puedan ser desafiadas cuanto cuestionamos la adecuacion del
criterio por el cual hemos seleccionado las propiedades relevantes. Ahora,
bien
idealmente
el juez constitucional que aplica principios
constitucionales opera con un conjunto delimitado de propiedades
relevantes que permiten correlacionar de manera unívoca determinados
casos genéricos con sus soluciones normativas. La ponderacion consiste en
la articulacion de ese conjunto de propiedades relevantes, en la
explicitacion de las condiciones de aplicación que previamente eran solo
implícitas. Una vez realizada esta tarea, la aplicación de los principios
consiste en la subsunción de casos individuales en casos genéricos. Si la
aplicación del Derecho consiste en resolver casos individuales mediante
la aplicación de pautas generales, entonces — por razones conceptuales —
no hay aplicación del Derecho sin subsunción.
376 PECZENIK, Aleksander. On
Law and Reason,
1989, p. 76 e ss..
377 Neste ponto, a contribuição dos conceptualistas é da maior
importância. Veja-se, sobre o tema, o Capítulo III.
277
metros abstratos (tanto os gerais, expostos nos capítulos
anteriores, como os particulares, que venham a ser cons-
truídos a partir do roteiro proposto aqui) têm natureza pre-
ferencial e não absoluta? . O intérprete não está impedido
de afastá-los, uma vez que seja capaz de justificar sua opção
satisfatoriamente, tanto do ponto da vinculação ao sistem
a
jurídico, como da racionalidade propriamente dita'''.
Não há fórmula pronta que esclareça como construir
parâmetros para os conflitos específicos, mas um conjunto
de perguntas ou testes e suas respostas podem auxiliar o
interessado nessa tarefa . A proposta que segue descrita
de forma bastante objetiva emprega três grupos de pergun-
promovem os direitos fundamentais dos indivíduos, sobre
aquelas que o fazem apenas de forma indireta), caso isso
seja necessário. O
terceiro grupo
de perguntas procura
identificar circunstâncias que interferem de forma relevan-
te na definição do sentido e propriamente com a aplicação
do enunciado ' .
Começando pelo
primeiro grupo,
é possível formular
resumidamente as perguntas ou testes descritos abaixo.
(i)
O
enunciado examinado tem natureza de princí-
pio ou de regra?
Dessa informação dependerá em boa me-
dida a compreensão do papel do enunciado no sistema jurí-
dico e a apuração de seus efeitos e de sua eficácia jurídica,
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tas com essa finalidade. As perguntas reunidas no
primeiro
grupo
estão relacionadas de forma preponderante com a
estrutura do enunciado normativo e já incorporam as
preocupações do primeiro parâmetro geral (regras prefe-
rem princípios).
O
segundo conjunto
de perguntas está associado ao con-
teúdo material do enunciado: os efeitos que ele pretende
produzir no mundo dos fatos, as condutas necessárias e
exigíveis à realização desses efeitos e, afinal, as prerrogati-
vas que ele confere. As respostas obtidas aqui, dentre ou-
tras utilidades, auxiliarão o intérprete a visualizar o núcleo
dos princípios e a empregar o segundo parâmetro geral pro-
posto acima (preferência das normas que de forma direta
378 Tópico VII.2.
379 Veja sobre os elementos da racionalidade o tópico 1.2.
380 Algumas das idéias para a proposta descrita no texto foram colhidas
em SERNA Pedro e TOLLER Fernando.
La interpretación
constitucional de los derechos fundatnentales. Una alternativa a los
conflictos de derechos,
2000, p. 57 e ss.. As diretrizes sugeridas por
Humberto Ávila para a análise dos princípios serão especialmente úteis no
processo de construção dos parâmetros específicos. V. ÁVILA,
Humberto.
Teoria dos
princípios
2003, p. 73 e ss..
278
especialmente se for necessário aplicar o primeiro parâme-
tro geral (regras preferem princípios — Capítulo VIII).
Nem sempre a distinção será evidente e por vezes classifi-
car um enunciado como regra ou princípio pode envolver
um conjunto intrincado de ações hermeneuticas
8
. De
toda sorte, alguns equívocos podem ser evitados com esse
esforço. Por exemplo, a afirmação generalizante de que
todo direito fundamental é um princípio não é correta na
realidade constitucional brasileira, já que a Carta de 1988
veicula vários direitos sob a forma de regras'.
ii)
Caso se trate de uma regra, há elementos de
indeterntinação em seu enunciado?
Como se viu em vá-
rios exemplos ao longo do texto, elementos de indetermi-
38 Os
testes descritos no texto procuram se adequar ao maior número
possível de tipos de enunciados.
382 V. nota n° 240.
383 É o que acontece
e.g.,
com os seguintes incisos do art. 5 : III —
ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante ; LVI — são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por
meios ilícitos:. É certo que a definição do que exatamente deve ser
considerado como tratamento desumano ou degradante ou do que define
uma prova como ilícita ficará a cargo da doutrina e da jurisprudência.
279
nação contidos nas regras oferecem espaços para argumen-
tação e muitas vezes é possível solucionar conflitos reais ou
•aparentes apenas por meio da definição de sentido dessas
cláusulas
84. É certo que muitas vezes não se vislumbra na
regra, examinada em abstrato, essa espécie de elemento,
que acaba por surgir apenas diante de um caso concreto
85
De todo modo, é útil tentar identificar desde logo essa
característica do enunciado.
iii)
O
enunciado atribui um direito? Define compe-
tências? Fixa metas públicas ou bens coletivos?
Essa dis-
tinção é particularmente relevante quando se esteja diante
ou também por estrangeiros? Jornalistas estrangeiros estão
incluídos entre seus titulares? O estrangeiro que recebeu
asilo político também goza desse direito?' Outro exem-
plo. O direito a não ter sua correspondência pessoal viola-
da, salvo nos termos previstos pela Constituição (CF, art.
5
0
, XII), destina-se apenas a homens livres ou também
àqueles que estejam presos?' O direito à licença materni-
dade é titularizado exclusivamente por gestantes ou tam-
bém por mães adotivas, cujos filhos sejam de tenra ida-
de? '
v) Por fim, se o enunciado atribui um direito, quem
está obrigado a respeitá-lo ou dar-lhe efeito?
O Estado?
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de princípios. Em geral, é mais fácil identificar os efeitos
pretendidos, as condutas necessárias para realizá-los e até
mesmo a área nuclear de princípios que consagram direi-
tos; princípios que estabelecem metas públicas de caráter
geral exigem uma compreensão diferenciada, já que seu
sentido pode depender intensamente de decisões de natu-
reza política e ideológica.
iv) Se o enunciado atribui um direito, quem é seu
titular?
A resposta a essa questão ajuda a definir o espectro
de abrangência do enunciado normativo. Alguns exemplos
demonstram a relevância desse teste. A liberdade de ex-
pressão,
e.g., é um direito titularizado apenas por nacionais
384 Um dos exemplos em que isso aconteceu foi no julgamento do HC
73662/MG. Por maioria, a 2' Turma do STF considerou que a presunção
de violência a que se referia o art. 213 do Código Penal, e que tipificava a
relação sexual mantida com menor de 14 anos como estupro, era relativa,
e não absoluta. Com essa interpretação, concedeu o
habeas corpus
ao
agente que havia de fato mantido relação sexual com moça menor de 14
anos, tendo em conta que, no caso, teria ficado demonstrado que não
ocorreu violência (STF, HC 73662/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU
20.09.1996) .
385 Foi o que aconteceu quando da interpretação do art. 213, § 1°,
da
Constituição, levada a cabo no fim do capítulo anterior.
280
Os particulares? Ambos? Por quais razões? Assim como a
questão anterior, identificar quem será atingido pelo enun-
ciado, não pelos benefícios que outorga, mas pelos deveres
que impõe, ajuda a delinear seu sentido e alcance. O deba-
te sobre a chamada eficácia horizontal dos direitos funda-
mentais ou a eficácia dos direitos fundamentais sobre as
relações privadas tem muito a oferecer neste particular
89
386 O Decreto n° 1570/1937, trata da questão, mas resta saber se ele foi
recepcionado pela Carta de 1988.
387 O STJ, no julgamento do HC 3982/ RJ (Rel. Min. Adhemar Maciel,
DJU 26.02.1996) e do HC 4138 (Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU
27.05.1996), admitiu como prova a gravação, obtida ilicitamente, de
conversas mantidas por presos. Um dos argumentos apresentados pelo
Ministro relator foi o de que a garantia constitucional não protegeria os
presos
388 Essa discussão foi travada pelo STF, já diante de casos concretos, no
RE 197807/RS, Rel. MM Octavio Gallotti, DJU 18.08.2000. O STF
entendeu que o direito tinha como destinatárias apenas as gestantes A Lei
n° 10.421/2002 estendeu o beneficio também às mães adotivas, nos
termos em que disciplina.
389 SARMENTO, Daniel.
Diretos fundamentais ereações privadas
2004; e PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos sobre a
aplicação das normas de direito fundamental nas relações jurídicas entre
281
O recorrente tema que envolve a possibilidade de exigir do
Estado prestações positivas também deverá ser retomado,
em relação a cada enunciado, neste ponto
3 9
- Cabe agora passar ao
segundo grupo
de testes, ligado
s
ao conteúdo propriamente dito dos enunciados. São pro-
postas apenas três perguntas, embora elas possam desdo-
brar-se em outras, na medida em que a investigação se
aprofunde.
(i) Que efeitos o enunciado pretende produzir no
mundo dos fatos?
Essa questão é fundamental para qual-
quer espécie de enunciado, mas sobretudo quando se este-
ja lidando com princípios, até para que seja possível, no
validade derivam da própria ordem jurídica dependem
igualmente dos contornos que essa mesma ordem jurídica
lhes confere. Se, diversamente, os fenômenos têm uma di-
nâmica e existência praticamente independente do Direi-
to, ao incorporá-los, os enunciados apenas reconhecem sua
existência como elementos da realidade, tendo menor es-
paço para alterar seu sentido e configuração
3 9 i
. Assim,
e.g.,
391
NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição,
2003, pp. 162 e 163: De
acordo com esta tipologia, direitos fundamentais como as liberdades
artística ou cientifica, as liberdades de crença ou de consciência são, no
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teste seguinte, identificar seu núcleo, se for o caso. Outras
questões que podem derivar desta estão relacionadas com
o
grau de determinação desses efeitos e com a identificação
do ponto a partir do qual a definição desses efeitos depen-
de da percepção individual do intérprete acerca de elemen-
tos morais, valorativos ou políticos.
Uma outra informação relevante neste ponto está rela-
cionada com a circunstância de os fenômenos que o enun-
ciado pretende disciplinar (i) se formarem no inundo dos
fatos, independentemente do direito (ex. artes, ciências,
crença), (ii) serem, ao contrário, tipicamente jurídicos (ex.
princípio da tipicidade penal), ou (iii) terem natureza mis-
ta, combinando elementos próprios da realidade e elemen-
tos jurídicos (ex. casamento, família).
A relevância dessa classificação está em que os efeitos
de enunciados que envolvem fenômenos cujo surgimento e
particulares . In: BARROSO, Luis Roberto (organizador).
A nova
interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações
privadas, 2003, pp. 119a 192.
390 MASELL1, Marcos. Controle judicial das omissões administra as,
2003.
essencial, determinadas materialmente, ou seja, têm uma dinâmica e
existência praticamente independentes do Direito: respeitam as garantias
de necessidades elementares ou de complexos de acções que não se
fundam no Direito, não recolhem nele os seus elementos estruturais, nem
carecem de regulamentação jurídica no que se refere ao seu núcleo. Com
efeito, a crença, a consciência, a arte e a ciência situam-se numa área
pré-jurídica, não sendo nem criadas nem conformadas pelo Direito;
aquilo que a Constituição faz é, apenas, reconhecer estas estruturas como
manifestações específicas da liberdade humana. Então, o facto de esses
direitos fundamentais serem normalmente consagrados sem reservas não
é a causa mas antes uma consequência da sua não determinabilidade pelo
Direito, sendo a inexistência de reservas, quando muito, um indício da
presença daquela característica estrutural. E a sua natureza de direitos de
determinação puramente material que os torna total ou parcialmente
inacessíveis à conformação do legislador ordinário. Já, por sua vez,
garantias constitucionais como as da
nulla poena sine lege
ou da
no bis in
idem
ou, em geral, as garantias processuais constituem direitos que devem
o
seu surgimento e validade à própria ordem jurídica. Num plano
intermédio situar-se-iam direitos fundamentais, como as garantias da
propriedade, da família, do casamento, da profissão, que apresentam uma
estrutura mista, pois, embora não sejam produzidos juridicamente na sua
totalidade, têm por objecto institutos de direito civil, instituições ou
relações sociais parcialmente determinadas pelo Direito — facto de que,
precisamente, a doutrina das 'garantias institucionais' procurou dar conta
— e, como tal, são mais ou menos acessíveis ou carentes de uma
intervenção do legislador ordinário.
232
83
a liberdade religiosa já dispõe de um conteúdo material ao
ser consagrada pelo dispositivo constitucional, ao passo que
o direito ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço exis-
te apenas nos termos definidos pela própria legislação.
ii) Que outros enunciados estão relacionados com
esse mesmo tema e, portanto, com esses mesmos efeitos?
Como é corrente, os diferentes enunciados normativos
não existem isolada e autonomamente
9
. Eles estão inte-
grados ao sistema jurídico como um todo, dentro do qual se
ligam a outros enunciados, formando subsistemas temáti-
cos que englobam disposições constitucionais e também
infraconstitucionais. Assim,
e.g.,
há um conjunto de enun-
pluralismo político (CF, art. 1°, V) não existe sozinho no
sistema jurídico brasileiro. Ele é acompanhado de uma sé-
rie de outros princípios e regras que disciplinam,
e.g.,
direi-
tos políticos, liberdade de expressão, partidos e eleições,
etc., e também de disposições infraconstitucionais sobre o
assunto. O mesmo se diga,
e.g., do princípio constitucional
que trata da proteção ao meio ambiente (CF, art. 225) e de
muitos outros temas.
iii) Que condutas são necessárias e exigíveis para
realizar os efeitos pretendidos pelo enunciado?
A identificação das condutas necessárias e exigíveis re-
lativamente a cada enunciado é provavelmente a etapa
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ciados constitucionais que tratam do tema educação —
disposições que atribuem competências legislativas e admi-
nistrativas para disciplina do assunto, fixam princípios ge-
rais para o setor e descrevem direitos específicos — e tam-
bém infraconstitucionais (Lei n° 9394/1996 — Lei de Di-
retrizes e Bases da Educação Nacional; Lei n° 942
/
996
— Dispõe sobre o Fundo de manutenção e desenvolvimen-
to e valorização do magistério; Lei n° 9766/1998 — Salá-
rio-educação, dentre outras).
Na hipótese de um conflito aparente com outras
disposições, o intérprete deverá considerar não apenas o
enunciado isoladamente, mas também os demais que com
ele se relacionam, e para isso será fundamental identificar
os elementos desse subsistema temático. Um princípio
constitucional aparentemente bastante genérico como o do
392 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico,
1997
pp. 19 e
20: (...) as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em
um contexto de normas com relações particulares entre si (...) Repetimos
que a norma jurídica era a única perspectiva através da qual o Direito era
estudado (...) Para nos exprimirmos com uma metáfora, considerava-se a
árvore, mas não a floresta.
284
mais complexa de toda a investigação doutrinária. Nada
obstante, ela é simplesmente vital para a construção da
eficácia jurídica dos enunciados, já que é neste momento
que cabe identificar o que pode ou não ser exigido (judi-
cialmente até, se necessário) com fundamento neles
9 .
Cabe aqui uma observação importante. Ao lidar com
princípios, a identificação das condutas
necessárias à reali-
zação dos efeitos do enunciado encontrará muitas vezes o
obstáculo das escolhas de natureza política. Quando exis-
tam várias formas de realizar um efeito pretendido pelo
enunciado, a escolha de uma ou algumas delas nem sempre
poderá ser fundamentada juridicamente. Sempre restam, é
bem de ver, outras formas de conduta que, mesmo indire-
tamente, podem contribuir para sua realização, como, e.g.,
a proibição de ações que produzam efeitos contrários aos
pretendidos pelo enunciado.
Além de apurar as condutas
necessárias, é necessário
qualificar também quais, dentre elas, são
exigíveis,
isto é,
393 V. BARCELLOS, Ana Paula de.
A eficácia jurídica dos princípios
constitucionais — O
princípio da dignidade da pessoa humana,
2002, p.
59 e ss..
285
podem ser de fato exigidas até mesmo pela via judicial.
Novas questões podem se colocar aqui, como os limites
impostos à atuação do Judiciário pela separação de poderes
e as limitações orçamentárias. Como se percebe, a identifi-
cação das condutas necessárias e exigíveis estará freqüente-
mente em contato com o tema, referido inicialmente, do
equilíbrio indispensável entre democracia e Constituição
e, conseqüentemente, dos espaços a serem ocupados por
cada uma das funções estatais (jurisdição, administração e
legislação). Essas dificuldades, porém, precisam ser en-
frentadas para que os enunciados ganhem mais consistên-
cia dogmática 9
.
simples, mas podem surgir outras complexidades. Há
enunciados que ensejam um grande conjunto de condutas,
que devem, tanto quanto possível, ser identificadas. Há
ainda problemas externos ao enunciado, mas que podem
interferir com a sua eficácia, como acontece com os custos
por acaso envolvidos nas condutas necessárias à realização
de seus efeitos
9 6
Por fim, o
terceiro conjunto
de perguntas se ocupa das
circunstâncias específicas que podem envolver a aplicação
do enunciado e lhe agregar especificidades '. Algumas
perguntas úteis nesse contexto são descritas abaixo.
i) Há circunstâncias relevantes que interferem com
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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De forma específica, travam-se neste momento, no
caso dos princípios, ao menos duas discussões: (i) a possibi-
lidade de identificar-se, no princípio, um núcleo de sentido
com natureza de regra, de modo que seja possível atribuir
às condutas contidas nesse núcleo a eficácia positiva ou
simétrica própria das regras (isto é: a exigibilidade direta
de tais condutas); e (ii) a construção de modalidades de
eficácia jurídica alternativas, como a interpretativa, a
nega-
tiv
e a vedativa do retrocesso s, quando não seja possível
atribuir a eficácia positiva ou mesmo em conjunto com ela.
Em matéria de regras, sua eficácia jurídica típica é a
positiva ou simétrica, o que em geral torna a questão mais
394 CLÈVE, Clemerson Merlin. A teoria constitucional e o direito
alternativo .
Irt: Unia vida dedicada ao direito — Homenagem a Carlos
Henrique de Carvalho, o editor dos juristas,
1995, pp. 37 e 38: Mais do
que isso, importa, hoje, para o jurista participante, sujar as mãos com a
lama impregnante da prática jurídica, oferecendo, no campo da
dogmática, novas soluções, novas fórmulas, novas interpretações, novas
construções conceituais. Este é o grande desafio contemporâneo.
395 V. BARCELLOS, Ana Paula de.
A eficácia jurídica dos princípios
constitucionais — O
principio da dignidade da pessoa humana,
2002, p.
61 e ss..
a aplicação do enunciado como condições de modo de
exercício, tempo ou lugar)?
Ao longo dos capítulos anteriores se destacou, em vá-
rios momentos, a importância das circunstâncias de fato
396 GALDINO, Flávio. O custo dos direitos . /Ir TORRES, Ricardo
Lobo (organizador).
Legitimação dos direitos humanos,
2002, pp. 139 a
222.
397 ALEXY, Robert.
Sistema jurídico, principios jurídicos
y razón
práctica,
Revista Doxa n°5, 1988, pp. 145 e 146: El que las colisiones
entre principias deban resolverse mediante ponderación en el caso
concreto, no significa que la solución de la colisión sea solamente
significativa para el caso concreto. Antes bien, pueden establecerse, con
ocasián de la decisión para casos concretos, relaciones de prioridad que
son importantes para la decisión de nuevos casos. (...) Las condiciones de
prioridad establecidas hasta el momento en un sistema jurídico y las regias
que
se corresponden con ellas proporcionan información sobre el peso
relativo de los principios. Sin embargo, a causa de la posibilidad de nuevos
casos con nuevas combinaciones de características, no se puede construir
con su ayuda una teoria que determine para cada caso precisamente una
decisión. Pero de todos modos, abren la posibilidad de un procedimiento
de argumentación que no se daria sin alas. Este procedimiento, desde
luego, debe ser incluido en una teoria completa de la argumentación
jurídica.
286
87
para a interpretação em geral e para a ponderação em par-
ticular. É apenas natural, portanto, que a aplicação dos
enunciados sofra interferência desses elementos fáticos,
levantamento casuístico, e crítico, dessas interferências re-
lativamente a cada enunciado (na verdade, aqui já no pro-
cesso de construção da norma) facilita a identificação dos
conflitos apenas aparentes e, no caso de conflitos reais,
permite a visualização do grau de restrição e das possibili-
dades de acomodação da disputa a que se fez referência nas
segunda e terceira fases da ponderação (Capítulo V)
3 9 8
Alguns exemplos ajudam a ilustrar o ponto.
Do exame da jurisprudência envolvendo o direito a
rior)
4
; e (ii) constar ou não o medicamento solicitado pela
parte da lista padronizada do Ministério da Salide
4 . Esses
400 STJ REsp 353147/DF Rel. Min. Franciulli Netto DJU
18.08.2003: O Sistema Único de Saúde pressupõe a integralidade da
assistência, de forma individual ou coletiva, para atender cada caso em
todos os níveis de complexidade, razão pela qual, comprovada a
necessidade do tratamento no exterior para que seja evitada a cegueira
completa do paciente, deverão ser fornecidos os recursos para tal
empresa. Não se pode conceber que a simples existência de Portaria,
suspendendo os auxílios-financeiros para tratamento no exterior, tenha a
virtude de retirar a eficácia das regras constitucionais sobre o direito
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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prestações de saúde em face do Estado é possível listar dois
elementos de fato freqüentemente indicados pelas deci-
sões judiciais para fundamentar o acolhimento do pedido
do autor da ação: (i) a gravidade da doença; e (ii) a possibi-
lidade (ainda que remota) de eficácia do tratamento
3 9 9
. In-
teressantemente, outras duas circunstâncias fáticas, que
anos atrás eram suscitadas pelos juizes como óbices ao de-
ferimento dos pedidos formulados, têm sido consideradas
irrelevantes em algumas decisões mais recentes: (i) o fato
de o local do tratamento ser ou não no Brasil (várias deci-
sões têm determinado o custeio de tratamentos no exte-
398 NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição
2003, p. 237 e ss.
399 STJ, REsp 509753/DF, Rel. MM. Teori Albino Zavascki, DJU
06.10.2003: Em face do principio constitucional à saúde, deve
prevalecer a possibilidade, ainda que remota, do tratamento a ser
realizado em Cuba, por ser reconhecidamente o pais que, atualmente,
vem conseguindo os melhores resultados no tratamento da retinose
pigmentar. Na verdade, embora a questão de mérito tenha sido
amplamente discutida, e mantido afinal o acórdão recorrido que
consagrava a solução acima, a maioria entendeu que o recurso não deveria
ser conhecido, pois nele se discutia matéria constitucional.
288
fundamental à vida e à saúda . Em sentido oposto, STJ, MS 8895/DF,
Rel. Min. Eliana Calmon, DJU 07.06.2004: 1. Parecer técnico do
Conselho Brasileiro de Oftalmologia desaconselha o tratamento da
'retinose pigmentar' no Centro Internacional de Retinoses Pigmentaria
em Cuba, o que levou o Ministro da Saúde a baixar a Portaria 763,
proibindo o financiamento do tratamento no exterior pelo SUS. 7
Legalidade da proibição, pautada em critérios técnicos e científicos. 3. A
Medicina social não pode desperdiçar recursos com tratamentos
alternativos, sem constatação quanto ao sucesso nos resultados. 4.
Mandado de segurança denegado .
401 STJ, REsp 325337/RJ, Rel. MM. José Delgado, DJU 03.09.2001:3.
É dever constitucional da União, do Estado, do Distrito Federal e dos
Municípios o fornecimento gratuito e imediato de medicamentos para
portadores do vírus HIV e para tratamento da AIDS. 4. Pela
peculiaridade de cada caso e em face da sua urgência, há que se afastar a
delimitação no fornecimento de medicamentos constante na Lei n°
9.313/96. ; e STJ, MS 8740/DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha,
DJU 09.02.2004: Não se pode generalizar a aplicação da norma que veda
ao Estado a concessão de auxílio financeiro para tratamento fora do Pais,
a ponto de abandonar à sua própria sorte aqueles que
comprovadamente, não podem obter, dentro de nossas fronteiras,
tratamento que garanta condições mínimas de sobrevivência digna. Não
havendo no País equipamento terapêutico apropriado ao tratamento da
enfermidade, justifica-se que o Estado disponibilize recursos para a sua
aquisição no exterior, não podendo servir de óbice às pretensões do
doente, necessitado, argumentos fundados em questões burocráticas, de
cunho orçamentário.
289
parâmetros, formulados pela jurisprudência, são adequa-
dos? Ou devem ser acrescidos outros? Seguem mais dois
exemplos.
A liberdade de reunião prevista no inciso XVI do art. 50
da Constituição pode sofrer restrições em função do local
em que se pretende realizar o evento? E do horário? É pos-
sível impor limitações,
e.g.,
quanto ao volume de som que
pode ser utilizado? ' O estudo da jurisprudência que lida
com confrontos entre o princípio da segurança jurídica e
exigências decorrentes da legalidade também fornece um
conjunto de informações interessantes acerca dos elemen-
tos fáticos considerados pertinentes. Ao menos dois po-
ii) Há circunstâncias relevantes que interferem
com a aplicação do enunciado relativamente ao titular
do direito?
Esta questão pode se ligar em alguns casos àquela for-
mulada no primeiro grupo de testes, envolvendo os benefi-
ciários do enunciado normativo. É possível, no entanto, co-
gitar de circunstâncias transitórias que, ainda assim, podem
se tornar relevantes para a aplicação de enunciados. Como
já se referiu, no caso,
e.g.,
do direito à intimidade e à vida
privada, a maior parte dos autores destaca que o fato de o
indivíduo ser uma pessoa pública (no sentido de notória)
ou desconhecida, titular de uma função publica ou não, são
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dem ser encontrados em quase todos os casos: (i) o trans-
curso de longos períodos de tempo entre a consolidação da
situação considerada ilegal e o questionamento de sua vali-
dade
4
; e (ii) a boa-fé da parte que alega em seu favor a
segurança jurídica. Um terceiro elemento, presente em
muitos casos, é o argumento de que a situação, mesmo
ilegal, contribuiu para a realização de algum fim constitu-
cional geral, como,
e.g.,
a promoção da educação404.
402 Como registrado anteriormente, o tema foi examinado pelo STF na
ADIn 1969/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 25.03.2004.
403 No MS 24268/MG, Rel. MM. Gilmar Mendes, j. 15.03.2004, o STF
examinou caso muito interessante no qual esse ponto foi debatido. A
impetrante questionava no mandado de segurança ato do TCU que havia
considerado ilegal e cancelado sua pensão especial, concedida há dezoito
anos, sem ouví-la previamente. O STF anulou o ato do TCU, por violação
ao devido processo legal, mas o voto do Ministro Relator destacou que o
princípio da segurança jurídica igualmente se aplicava na hipótese, tendo
em conta, em primeiro lugar, o longo tempo transcorrido entre o ato e o
seu questionamento (dezoito anos), e também a boa-fé da impetrante.
404 Este último argumento é invocado nas freqüentes disputas
envolvendo alunos transferidos para universidades públicas cuja
transferência é posteriormente considerada inválida. Nesse sentido,
290
elementos que conformam diferentemente a extensão do
direito
. Note-se que estas indagações podem estar per-
feitamente contidas na pergunta anterior. A separação visa
apenas a facilitar a visualização das questões que podem ser
úteis para a construção dos parâmetros.
iii) Há circunstâncias relevantes que interferem
com a aplicação do enunciado relativamente àqueles
que estão obrigados a respeitar os direitos por ele ou-
torgados?
Esta pergunta é também um desdobramento das duas
anteriores. De fato, é possível imaginar exemplos em rela-
ção aos quais esse tema será relevante. Ao lidar como direi-
to de imagem de alguém, um jornalista, cujo propósito é
noticiar um evento, e um publicitário, que planeja produzir
dentre muitos outros, STF, MC 2900/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, j.
08.04.2003, Informativo STF ri' 310; e STJ, MC 4546/MG, Rel. Min.
Luiz Fux, DJU 16.12.2002.
405 BARROSO, Luís Roberto.
Colisão entre liberdade de expressão e
direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação
constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa,
Revista de Direito Administrativo n° 235, 2004, pp. 1 a 36.
291
uma peça comercial, encontram-se em posições bastante
diferentes. O jornalista poderá utilizar a imagem de um
indivíduo para a notícia, dentro de certos limites, sem ne-
cessidade de autorização; o publicitário por certo não po-
derá fazer o mesmo em uma peça publicitária. Outro
exemplo: o princípio constitucional que trata da proteção
do meio ambiente (art. 225) não incide da mesma forma
sobre as pessoas em geral e sobre as populações indígenas
(art. 231).
iv)
Quais as finalidades lógica e histórica associa-
das ao enunciado?
As finalidades lógica e histórica associadas ao enuncia-
que podem ser visualizadas entre diferentes enunciados ou
grupos de enunciados (seja pela experiência, seja pela for-
mulação de hipóteses) e cogitar, considerando os elemen-
tos identificados nas etapas descritas até aqui, como ele
deve ser superado e por quais razões, seja ou não possível
chegar à concordância prática .
O conjunto de testes descrito acima não é por certo o
único possível nem o mais abrangente que se poderia ima-
ginar e nem tinha ele qualquer dessas pretensões. Seu ob-
jetivo é apenas associar aos parâmetros gerais, descritos ao
408 Alguns conflitos por sua freqüência ou repercussão têm atraído em
8/17/2019 Barcellos, Ana Paula de - Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional.pdf
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do
4 6
contribuem para a identificação das áreas de aplica-
ção do enunciado mais resistentes a qualquer espécie de
restrição e outras mais sensíveis à presença de elementos
normativos em oposição. No caso de enunciados que atri-
buem direitos, as hipóteses de exercício abusivo também
podem ser investigadas nesse mesmo contexto
4 7
. A liber-
dade de expressão e de imprensa,
e.g.,
está historicamente
ligada à manifestação política, ideológica e artística e, nesse
ambiente, dificilmente convive com restrições. Já a publi-
cidade comercial, embora seja também uma manifestação
da liberdade de expressão, poderá admitir limitações mais
intensas.
v)
É possível identificar situações de conflito com
outros enunciados? Como é possível supera-las?
A última pergunta sugerida neste roteiro se beneficia
de todas as conclusões apuradas nas anteriores. Cabe agora,
neste último momento, identificar as situações de conflito
406 Ainda que a definição dessas finalidades possa em si mesmo envolver
alguma controvérsia.
407 BARBOSA MOREIRA José Carlos.
Abusododreto
ADV/COAD
março/ 2003 pp. 16 a 20.
292
particular a atenção da doutrina. Sobre as tensões e limites envolvendo as
liberdades de expressão e informação e outros enunciados
constitucionais vejam-se dentre outros SILVA José Afonso da.
Ordenaçãoconstituconal da cultura
2001 p. 70 e ss.; MENDES Gilmar
Ferreira.
Colisãodediretos fundamentais: liberdadedeexpressãoede
comuncaçãoedretoà honra eà imagem
Revista de Informação
Legislativa n° 122 1994 pp. 297 a 301; CHAVES Antônio
Imprensa
Captaçãoaudovsual. Informática eos dretos da personalidade
Revista
dos Tribunais n° 729 1996 pp. 11 a 42; e LEONCY Léo Ferreira.
Coisãodedretos fundamentais a partir da Le 6.075/ 97—
O dretoà
imagemdos presos vítimas etestemunhas eà liberdadedeexpressãoede
informação
Revista de Direito Constitucional e Internacional n° 37
2001 pp. 274 a 279. Na doutrina estrangeira v. também SUNSTEIN
Cass R.
TeevsionandPublicInterest
California Law Review n° 88
2000 pp. 499 a 564. As discussões envolvendo a garantia constitucional
da propriedade e sua função social também tem sido objeto de exame
doutrinário sobretudo sob a ótica do direito urbanístivo v. SILVA José
Afonso.
Diretourbansticobrasilero
2000 p. 68 e ss.. Sobre as possíveis
oposições entre a garantia do devido processo legal e a efetividade da
prestação jurisdicional v. ZAVASCKI Teori Albino. Os
princpos
constituconais doprocessoesuas limtações
Revista da Escola Superior
da Magistratura do Estado de Santa Catarina vol. 6 1998 pp. 49 a 58.
Acerca da necessária convivência entre os diferentes princípios
constitucionais próprios ao direito tributário v. TORRES Ricardo Lobo.
Legalidadetributária eriscossocais
Revista Dialética de Direito
Tributário n°59 2000 pp. 95 a 112.
293
longo do texto, ferramentas que possam auxiliar a constru-
ção de parâmetros específicos, de tal modo que se possa
fornecer ao aplicador um conjunto amplo e consistente de
st nd rds
metodológicos e materiais capazes de orientá-lo
quando seja necessário empregar a técnica da ponderação.
Conclusões
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À guisa de conclusão, parece útil apresentar um breve
resumo dos objetivos gerais do estudo, por meio dos quais
se poderá ter uma visão de conjunto do trabalho, para, em
seguida, compendiar de forma mais analítica as principais
idéias desenvolvidas ao longo do texto.
A ambição deste estudo foi contribuir para a redução
do voluntarismo no emprego da ponderação e para atingir
esse objetivo duas proposições centrais foram estudadas.
Em primeiro lugar, apresentou-se uma proposta de ordena-
ção metodológica para a técnica da ponderação, com a indi-
cação das etapas a percorrer e dos cuidados de natureza
lógica ou argumentativa a tomar em cada uma delas. Em
segundo lugar, foram propostos dois parâmetros gerais, ca-
pazes de orientar o intérprete na generalidade dos casos em
que a ponderação seja necessária e de utilização seqüencial,
a saber: i) os enunciados com estrutura de regra aqui
incluídos os núcleos de princípios que possam ser descritos
dessa forma) preferem aqueles com estrutura de princípio;
e ii) as normas que promovem diretamente direitos fun-
294
95
damentais dos indivíduos têm preferência sobre normas
relacionadas apenas indiretamente com direitos.
O estudo ocupou-se ainda de dois outros temas ambos
vinculados ao mesmo propósito geral. Ao tratar do primei-
ro parâmetro descrito acima três sub-parâmetros foram
sugeridos para lidar com o problema dos conflitos envol-
vendo regras. Ao fim do estudo além dos dois parâmetros
gerais produziu-se também um catálogo de elementos que
podem auxiliar a construção de parâmetros específicos
destinados a fixar
st nd rds
para a solução de conflitos
normativos particulares.
De forma analítica é possível compendiar as principais
idéias desenvolvidas ao longo do estudo nas proposições
ponderação para a qual os mais diversos argumentos de-
vem ser considerados de modo que toda interpretação en-
volveria sempre ponderação. O objeto deste estudo é mais
restrito mesmo porque a ponderação normativa propria-
mente dita nos termos descritos acima apresenta tama-
nhas especificidades que demanda um exame particular.
3.
As hipóteses de colisão ou tensão entre enunciados
normativos válidos muitas vezes de estatura constitucio-
nal têm se tornado cada vez mais freqüentes por um con-
junto de razões e exigem um estudo próprio. As sociedades
democráticas contemporâneas são cada vez mais plurais e
as diferentes concepções de pessoas e grupos nem sempre
são harmônicas. Do ponto de vista jurídico não só a Cons-
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que se seguem. Na medida do possível elas serão apresen-
tadas na ordem em que os assuntos foram tratados no tex-
to.
1
O termo
ponder ção
não é privativo do Direito. Em
sentido geral ele significa avaliar todas as vantagens e des-
vantagens relacionadas com determinada situação de
modo que toda decisão humana minimamente racional en-
volve algum tipo de ponderação. Não é nesse sentido am-
plíssimo porém que o termo foi empregado neste estudo.
2.
A ponderação aqui estudada pode ser descrita como
a técnica jurídica de solução de conflitos normativos que
envolvem valores ou opções políticas em tensão insuperá-
veis pelas formas hermenêuticas tradicionais. Afastou-se a
idéia de que a ponderação se destinaria a solucionar qual-
quer espécie de conflito normativo já que a maior parte
deles é superado por técnicas convencionais de solução de
antinomias que empregam a lógica subsuntiva. Igualmente
não se incorporou aqui a noção que identifica a ponderação
com a forma própria de aplicação dos princípios já que ela
também poderá ser relevante no tratamento de regras. Por
fim o estudo não adotou uma concepção abrangente
d
296
tituição mas também a ordem infraconstitucional empre-
gam com progressiva intensidade expressões genéricas cujo
conteúdo varia em função de avaliações de natureza valora-
tiva ou política transferindo para o aplicador a definição
precisa de seu sentido.
4.
O processo descrito no item anterior tem ampliado
significativamente o espaço ocupado pela interpretação ju-
rídica na definição do que é afinal o Direito. Junte-se a isso
a ascensão política do Poder Judiciário visualizada por seg-
mentos importantes das sociedades em várias partes do
mundo como espaço de discussão alternativo aos órgãos
eleitos em geral e ao Legislativo em particular. Consideran-
do que cada intérprete carrega sua própria bagagem de pré-
compreensões o cenário para a proliferação de conflitos
normativos encontra-se montado.
5.
Se as exigências de racionalidade e justificação são
próprias a toda interpretação e decisão jurídicas o serão
ainda com maior intensidade nas hipóteses em que se pre-
tenda utilizar a ponderação. Isso porque nesses casos a
legitimidade de uma decisão ou dos critérios adotados para
superar conflitos normativos não decorre de forma eviden-
297
te de enunciados normativos e nem se funda em uma sub-
sunção simples. A racionalidade de uma decisão judicial
está ligada i) à sua capacidade de demonstrar conexão com
o
sistema jurídico e, nas hipóteses em que várias conexões
diferentes são possíveis, ii) à racionalidade propriamente
dita da escolha feita entre essas conexões. A justificação
por sua vez, envolve a prestação de contas e a motivação d;
decisão propriamente dita.
6.
A técnica da ponderação e sua utilização têm sido
objeto de numerosas críticas por parte da doutrina. A téc-
nica seria metodologicamente inconsistente, inexistindo
parâmetros racionais ou um padrão de medida externo ca-
paz de pesar os elementos em conflito. Conseqüentemen-
há conflito, não há necessidade de ponderação. A dificulda-
de consiste exatamente em como determinar o que se en-
contra dentro e o que se encontra fora de tais limites.
9.
O conceptualismo, por sua vez, afirma que o sentido
de cada direito corresponde a um conceito que deve levar
em conta os fins próprios daquele direito, sua história, as
necessidades de convivência social e os demais direitos.
Delineados dessa forma, os conceitos dos diferentes direi-
tos formarão uma unidade harmónica e, assim, eliminado o
conflito entre eles, a ponderação torna-se desnecessária. A
dificuldade, também aqui, está precisamente no processo
de construção do conceito de cada direito.
10.
A hierarquização, diferentemente das propostas an-
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te, a ponderação ensejaria voluntarismos e arbitrariedades,
transformando a aplicação do direito em um novo processo
político no qual se re)avaliam vantagens e desvantagens,
em usurpação das funções próprias dos demais poderes.
Nessa linha, a ponderação é uma ameaça à normatividade
da Constituição e sobretudo aos direitos fundamentais.
7.
As críticas resumidas no item anterior são em boa
parte procedentes e, por isso mesmo, concepções alterna-
tivas à ponderação têm sido propostas pela doutrina, espe-
cialmente quando se trata de lidar com conflitos normati-
vos envolvendo direitos fundamentais. As três principais
opções concebidas, e examinadas neste estudo, são as teo-
rias dos limites imanentes, o conceptualismo e a hierarqui-
zação.
8.
A idéia de limite imanente pode ser descrita nos
seguintes termos: cada direito possui limites lógicos que
decorrem de sua própria estrutura e natureza. Assim, boa
parte dos conflitos envolvendo direitos fundamentais ou
todos eles) não é real, já que o suposto conflito afetaria
uma manifestação do direito que se encontra fora dos limi-
tes imanentes. A conclusão, portanto, seria simples: se não
298
teriores, reconhece que os direitos colidem em determina-
das circunstâncias. Sua idéia para a solução deste proble-
ma, no entanto, consiste na fixação de uma ordem hierár-
quica entre os direitos de tal modo que, diante de um con-
flito entre eles, aquele dotado de maior hierarquia deve
preponderar sobre os demais. A sedutora simplicidade des-
sa fórmula encontra diferentes obstáculos: a necessidade
de manutenção da unidade da Constituição não admite a
hierarquização entre seus enunciados, o fundamento axio-
lógico que justificaria a escala hierárquica é questionável e
o
critério não é capaz de lidar com diferentes manifesta-
ções de um mesmo direito.
11. Os limites imanentes, o conceptualismo e a hierar-
quização ou empregam a ponderação sem explicitá-la,
usando outra denominação, ou apresentam as mesmas es-
pécies de limitações ou oferecem ainda maiores problemas
que os apontados relativamente à técnica da ponderação.
Na verdade, o recurso à ponderação parece realmente in-
dispensável em determinadas hipóteses, o que não afasta a
necessidade — antes a reforça — de aprimorar a técnica,
299
inclusive incorporando idéias desenvolvidas pelos três con-
juntos de teorias que se acaba de referir.
12.Nas últimas décadas, a ponderação tem sido empre-
gada de forma explícita como técnica de decisão jurídica
nas experiências norte-americana e alemã e ambas desen-
volveram formas de neutralizar as limitações e as fragilida-
des da técnica, a despeito das múltiplas diferenças que cer-
cam ouso da ponderação e os resultados por ela produzidos
nos dois países.
13.
Nos Estados Unidos, doutrina e jurisprudência ocu-
pam-se predominantemente de conceber
st nd rds
espe-
cíficos para os diferentes conflitos tendo em conta situa-
ções comumente observadas. As diferentes categorias nas
conflito na hipótese e agrupá-los em função das soluções
que indiquem para o caso.
15. Há dois cuidados centrais a observar nessa primeira
fase do processo de ponderação. Em primeiro lugar, meros
interesses só devem ser admitidos se puderem contar com
o
suporte de algum elemento do sistema jurídico. Em se-
gundo lugar, apenas enunciados — isto é: o conteúdo do
texto dos dispositivos ou a enunciação de princípios ou
regras implícitos no sistema —, e não normas, devem ser
listados nesta primeira fase. A norma, como se sabe, corres-
ponde ao comando específico que dá solução a um caso e é
o
produto final da interpretação jurídica, e bem assim da
ponderação. Embora seja construída a partir de enuncia-
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quais a liberdade de expressão foi subdividida pela juris-
prudência norte-americana é um exemplo dessa espécie de
raciocínio. Na Alemanha, a maior ênfase se concentra na
criação de parâmetros lógicos de caráter geral, cujo objeti-
vo é organizar e controlar o raciocínio jurídico, de que é
exemplo, tão difundido no Brasil, a idéia de proporcionali-
dade. Essas duas formas de conferir à ponderação maior
previsibilidade e racionalidade — isto é:
st nd rds
mate-
riais associados a conflitos específicos e construídos a partir
da observação da casuística e parâmetros gerais de natureza
argumentativa e lógica — ou combinações delas podem ser
especialmente úteis para a experiência brasileira. O estudo
ocupou-se principalmente de conceber parâmetros gerais
não exclusivamente lógicos, mas em certa medida tam-
bém dotados de conteúdo material) e uma estrutura meto-
dologicamente ordenada para a própria técnica da pondera-
ção.
14. De acordo com a proposta de organização sugerida
para a ponderação, o intérprete deve percorrer três etapas
ao empregar a técnica. Na primeira delas lhe cabe identifi-
car todos os enunciados normativos aparentemente em
300
dos, a norma não se confunde com eles, contribuindo para
sua confecção outros elementos, sobretudo as circunstân-
cias de fato do caso concreto, que ainda não foram exami-
fiadas organizadamente nesta primeira etapa da pondera-
ção.
16.
Uma aplicação dessa segunda observação envolve as
hipóteses de confronto entre direitos individuais e enun-
ciados que consagram interesses de natureza coletiva. Não
é incomum que se observe o conflito opondo ao direito
individual isto é, à norma particular) o enunciado sobre
bens coletivos, o que pode desequilibrar o raciocínio crian-
do uma artificial e equivocada preferência em favor do se-
gundo elemento normativo.
17.
Na segunda etapa do processo ponderativo, cabe ao
intérprete examinar as circunstâncias concretas do caso e
suas repercussões sobre os enunciados identificados na fase
anterior. A relevância atribuída aos fatos, algumas vezes
instintivamente, funda-se em geral em elementos jurídicos
ou na experiência cultural da sociedade, ou ainda em uma
mistura desses dois fenômenos, e deve ser justificada. Os
fatos repercutem de duas maneiras principais sobre os gru-
3 1
pos de enunciados identificados na etapa anterior: i) eles
podem atribuir maior ou menor peso a alguns desses gru-
pos; e/ou ii) eles podem esclarecer o grau de restrição que
cada solução norma) possível impõe aos diferentes enun-
ciados envolvidos.
18.
A terceira e última etapa é o momento de decidir
tendo em conta os grupos de enunciados, os fatos relevan-
tes e sua repercussão sobre a hipótese e as diferentes nor-
mas que podem ser construídas para a solução do conflito.
A técnica da ponderação em si não oferece respostas para
as questões de natureza material que se colocam neste mo-
mento. Nada obstante, há três cuidados metodológicos a
observar nesta etapa.
conflitos já identificados pela experiência. A ponderação
em abstrato procura formular modelos de solução pré-fa-
bricados parâmetros gerais e particulares) que deverão ser
empregados pelo aplicador nos casos que se mostrem se-
melhantes. Caso os modelos propostos pela ponderação
em abstrato não sejam inteiramente adequados às particu-
laridades do caso concreto, o intérprete deverá justificar
expressamente essa circunstância e proceder a uma nova
ponderação — a ponderação em concreto —, agora tendo
em conta os elementos específicos da situação real por
isso diz-se que os parâmetros são apenas preferenciais). A
utilidade da distinção consiste especialmente em fomen-
tar, na doutrina, o estudo e a formulação de parâmetros
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19.
Em primeiro lugar, o intérprete deve estar compro-
metido com a capacidade de universalização dos argumen-
tos empregados no processo, que devem ser aceitáveis para
a comunidade em geral, e da decisão propriamente dita,
que deve poder ser generalizada para todas as situações
equivalentes. Em segundo lugar, o intérprete deve escolher
a solução que impõe a menor quantidade de restrição à
maior parte dos elementos normativos em discussão con-
cordância prática), embora essa diretriz deva ser aplicada
em conjunto com
st nd rds
materiais em cada caso. Em
terceiro lugar, quando a disputa envolve direitos funda-
mentais, a decisão que vier a ser apurada no processo de
ponderação não pode traspassar o núcleo de nenhum deles,
entendido aqui não como um núcleo rígido ou absoluto,
mas como o conjunto de parâmetros materiais preferen-
ciais construídos pela doutrina e jurisprudência acerca do
conteúdo essencial dos direitos em questão.
20.
É possível falar de uma ponderação em abstrato ou
preventiva e de uma ponderação em concreto ou real. A
ponderação em abstrato .é a desenvolvida pela dogmática
jurídica considerando a metodologia própria do direito e os
302
que possam servir de norte ao aplicador, reduzindo a subje-
tividade do processo ponderativo.
21.
Ao longo do processo ponderativo o intérprete
pode lançar mão de dois parâmetros gerais: i) os enuncia-
dos com estrutura de regra dentre os quais os núcleos dos
princípios que possam ser descritos dessa forma) têm pre-
ferência sobre aqueles com estrutura de princípios; e ii) as
normas que promovem diretamente os direitos fundamen-
tais dos indivíduos e a dignidade humana têm preferência
sobre aqueles que apenas indiretamente contribuem para
esse resultado.
22.
A preferência das regras sobre os princípios na ver-
dade, sobre a área não nuclear deles) justifica-se com fun-
damento em três razões principais. Em primeiro lugar, as
regras estabelecem desde logo os efeitos que pretendem
produzir no mundo dos fatos e é possível identificar as
condutas necessárias para realizá-los independentemente
de novas decisões de natureza valorativa ou ideológica. Os
princípios, diversamente, descrevem efeitos relativamente
indeterminados cuja compreensão integral depende de
avaliações valorativas) ou, mesmo quando se ocupam de
303
efeitos determinados, a identificação das condutas neces-
sárias para realizá-los pressupõe uma escolha valorativa ou
ideológica. Assim, a não realização dos efeitos das regras
envolve em geral sua violação e, em um Estado de direito,
as regras devem ser obedecidas. O mesmo não ocorre com
os princípios, que admitem logicamente compressões di-
versas na definição de seus efeitos e das condutas próprias
para sua realização. Assim, havendo um conflito entre uma
regra e a área não nuclear de um princípio o primeiro terá
preferência.
23. Em segundo lugar, as regras, por conta de sua pró-
pria estrutura, desempenham um papel específico na or-
dem jurídica ao prover previsibilidade e estabilidade, ao
ral pelas decisões associadas a esse consenso mínimo, ao
passo que os princípios delineiam um campo de atuações
possíveis, dentro de cujos limites as opções políticas po-
dem ser consideradas legítimas. As regras correspondem
exatamente a decisões políticas especificas, de efeitos de-
terminados, já tomadas no interior de tais fronteiras.
25.
Embora o parâmetro geral seja o da preferência das
regras sobre os princípios, há duas situações nas quais as
regras estarão envolvidas com a ponderação de certa forma:
(i) quando a incidência de uma regra produz tamanha injus-
tiça que a torna incompatível com as opções materiais da
Constituição; e (ii) quando há uma colisão insuperável de
regras.
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passo que os princípios garantem abertura e flexibilidade
ao sistema. As regras correspondem ainda a decisões espe-
cíficas dos poderes eleitos, gozando de considerável legiti-
midade democrática. Se os princípios, além de sua função
própria, ocuparem-se de afastar a incidência das regras in-
discriminadamente (sendo que a aplicação da área não nu-
clear dos princípios sempre vem impregnada das concep-
ções valorativas e ou políticas do intérprete), haverá um
incremento da insegurança, em função da imprevisibilida-
de e da falta de uniformidade das decisões, com prejuízos
evidentes para o equilíbrio do sistema, sobretudo no que
diz respeito à isonomia e à legitimidade dessas próprias
decisões.
24.
Há um terceiro fundamento para o parâmetro pro-
posto, uma vez que a questão se coloque no nível constitu-
cional. As constituições contemporâneas procuram realizar
ao menos dois propósitos gerais: estabelecer determinados
consensos mínimos, que devem inclusive ser protegidos da
ação das maiorias, e garantir as condições para o desenvol-
vimento do pluralismo político. As regras constitucionais
(aí incluídos os núcleos dos princípios) respondem em ge-
304
26.
Três parâmetros são capazes de lidar com o proble-
ma das regras injustas sem romper com a racionalidade do
parâmetro geral pelo qual as regras têm preferência sobre
os princípios, a saber: (i) a interpretação conforme a eqüi-
dade das regras; (ii) a caracterização da imprevisão legisla-
tiva; e (iii) a inconstitucionalidade da norma produzida
pela incidência da regra na hipótese concreta.
27.
No caso da colisão insuperável de regras haverá de
fato uma ruptura do sistema, já que alguma delas deixará
de ser observada. A escolha entre elas configura uma espé-
cie de ponderação entre os bens que justificam as regras.
De toda forma, será útil utilizar também nesse processo
decisório a proposta de ordenação da ponderação descrita
acima e os parâmetros jurídicos que se mostrarem perti-
nentes, especialmente o segundo parâmetro geral e os parâ-
metros particulares, examinados na seqüência.
28.
O segundo parâmetro geral proposto neste estudo
pode ser descrito nos seguintes termos: diante de um con-
flito normativo insuperável, a norma que de forma direta
promova e/ou proteja os direitos fundamentais dos indiví-
duos tem preferência sobre aquelas que estejam apenas
305
indiretamente relacionadas com esses direitos. O objeto
deste segundo parâmetro são as normas apuradas ao cabo
da ponderação e ele deverá ser manejado apenas após a
aplicação, se pertinente, do primeiro parâmetro geral.
29.
O segundo parâmetro geral pode ser justificado a
partir de duas perspectivas diversas. Em primeiro lugar, é
possível falar de um consenso material acerca da prioridade
do homem e de seus direitos fundamentais tanto no direito
interno, especialmente após a Constituição de 1988, como
na ordem internacional, ainda que neste último caso o con-
senso possa ser apenas teórico em vários pontos. A opção
pela norma que realize diretamente direitos fundamentais
funda-se, portanto, na aplicação dessa prioridade às hipóte-
desses parâmetros são, por certo, as características próprias
da estrutura de cada enunciado
Trata-se de um princípio?
Regra? Apresenta elementos de indeterminação? Atribui di-
reitos? Define competências? Fixa metas públicas? Se atri-
bui direito, quem é seu titular? Quem está obrigado a res-
peitar tal direito ou dar-lhe efeito?),
o conteúdo de cada
enunciado
Que efeitos ele pretende produzir? Que outros
enunciados guardam relação com o tema? Que condutas são
necessárias e exigíveis para realizar esse efeito?)
e as cir-
cunstâncias que interferem com sua aplicação, inclusive
situações de conflito com outros enunciados.
Ao fim desse resumo das principais idéias desenvolvi-
das ao longo do texto, vale notar alguns aspectos importan-
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ses de conflito normativo.
30.
O parâmetro encontra justificativa também a partir
de uma concepção procedimentalista pela qual a legitimi-
dade das decisões decorre da correção do processo delibe-
rativo, já que não é possível apurar consensos materiais
abrangentes na sociedade plural contemporânea), uma vez
que se adote corno premissa a igualdade dos indivíduos. Se
os indivíduos são iguais, qualquer deliberação pública exi-
girá que a cada participante seja reconhecido um conjunto
básico de direitos sem os quais o procedimento não poderá
funcionar adequadamente. Esse conjunto de direitos mere-
ce proteção prioritária, já que opera como condição para o
próprio procedimento. Nesse sentido, ainda que o conjun-
to de direitos aqui seja menor que o previsto pelo direito
interno, o parâmetro descrito continua a encontrar funda-
mentação consistente.
31.
Além dos dois parâmetros gerais descritos nos itens
anteriores, a redução do subjetivismo no uso da pondera-
ção depende também da existência de parâmetros particu-
lares, construídos em função de conflitos entre enunciados
específicos. Alguns elementos a considerar na construção
306
tes. O modelo sugerido de ordenação para a técnica, embo-
ra não garanta por si só a previsibilidade do resultado, con-
fere maior consistência metodológica à ponderação, com
proveitos evidentes para a redução do subjetivismo. No
momento em que a doutrina indica com maior clareza as
etapas a serem percorridas pelo intérprete e os cuidados a
serem por ele observados nesse percurso, não apenas o apli-
cador do direito estará mais consciente do seu ofício, como
o controle do processo de argumentação e decisão ficará
facilitado.
Ademais, não há dúvida de que i) demonstrar a vincu-
lação das diferentes pretensões e interesses em jogo a
enunciados normativos, ii) justificar a relevância atribuída
aos fatos, iii) empregar exclusivamente argumentos que
possam transitar livremente no espaço público, iv) preser-
var, na medida do possível, a integridade dos enunciados
em conflito, e v) fundamentar a possibilidade de universa-
lização da decisão apurada são exigências que, dentre ou-
tras, contribuem para reduzir o risco de voluntarismos e
arbitrariedades no uso da ponderação.
Associado a esse esforço de organização racional da téc-
307
nica, a formulação de parâmetros, tanto gerais como espe-
cíficos, se destina a orientar as decisões do intérprete, ago-
ra sim, tornando mais previsível o resultado da ponderação.
O caráter preferencial de tais parâmetros decorre de have-
rem sido discutidos publicamente pela doutrina e, por con-
ta de sua fundamentação lógica
jurídica, contarem com a
aceitação geral. O aplicador, por natural, não está rigida-
mente vinculado a eles ou à solução por eles indicada, mas,
ao desconsiderá-los, deverá demonstrar de forma específi-
ca por quais razões os fundamentos que informam o parâ-
metro devem ser afastados no caso concreto.
Há ainda duas observações finais a fazer. A pretensão
deste estudo não foi eliminar o elemento subjetivo das de-
tivamente incorporadas ao cotidiano da interpretação jurí-
dica e da prestação jurisdicional. Este é um ponto impor-
tante. O debate teórico, especialmente no que diz respeito
à argumentação jurídica, pode tornar-se extremamente
complexo, até por conta de seu objeto de estudo, ingres-
sando amplamente no terreno filosófico da justificação do
discurso racional em geral e do jurídico em particular. É
apenas natural e próprio que seja assim.
Nada obstante, é freqüente que, na impossibilidade de
incorporar toda a sofisticação teórica ao dia-a-dia da aplica-
ção do Direito, cuja compreensão, ademais, é por vezes
dificultada por um certo hermetismo lingüístico, os opera-
dores jurídicos simplesmente ignorem ou deixem de lado
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cisões jurídicas, o que seria impossível, mas apenas reduzi
-
1°
°
. Por certo haverá situações em que após aplicação da
ponderação nos termos aqui propostos, juntamente com
todos os parâmetros sugeridos, ainda restará espaço para
avaliações e decisões puramente pessoais. De toda sorte, a
previsibilidade das decisões judiciais é uma garantia pró-
pria do Estado republicano, democrático e de direito e,
tanto quanto seja possível, não deve ser banalizada.
Por fim, o objetivo deste trabalho foi apresentar um
conjunto de propostas operacionais, que pudessem ser efe-
409 GRAU, Eros Roberto. O
direito posto e o direito pressuposto
1989,
p. 33 e ss.; e TRIBE, Laurence H. and DORF, Michael C. On
Reading the
Constitution
1991, pp. 18 e 19: It should not be terribly surprising to
learn that judicial deliberation, like ali legal discussion, cannot be reduced
to scientific processes
o
deduction and induction, although some people
apparently continue to be surprised by this truism. The impossibility of
airtight 'proof' does not, however, translate — as some seem to believ it
does — into such total indeterminacy that
ali
interpretations of the
Constitution are equally acceptable. Nor does it follow that the only way
to judge an interpretation is to ask whether it advances or retards your
vision of the good society. It is possibile to do much better than that.
importantes contribuições desenvolvidas no âmbito da aca-
demia. Assim, o que não deixa de ser irônico, os diferentes
desenvolvimentos teóricos que versam justamente sobre a
interpretação jurídica acabam tendo pouca ou nenhuma re-
percussão na atividade concreta de interpretação e aplica-
ção do Direito.
Parece fundamental, portanto, desenvolver uma outra
linha de estudos que, sem prejuízo do progressivo aprofun-
damento das questões no nível teórico, produza uma co-
municação eficiente entre esses dois mundos. Essa comu-
nicação deve ser capaz de transformar formulações teóricas
em instrumentos operacionais, utilizáveis pelo juiz no dia-
a-dia de sua atividade, ainda que isso imponha, em alguns
momentos, a simplificação de discussões mais complexas.
O presente estudo se insere nesse contexto e pretende fa-
zer essa comunicação, de modo que a realidade da aplica-
ção do Direito, e a vida das pessoas, afinal, possa se benefi-
ciar dos avanços e elaborações da teoria jurídica.
309
08
Referências bibliográficas
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