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    Carlo ViganBasaglia com Lacan

    Mental, vol. IV, nm. 6, junho, 2006, pp. 15-26,

    Universidade Presidente Antnio Carlos

    Brasil

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    Mental,

    ISSN (Verso impressa): 1679-4427

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    Universidade Presidente Antnio Carlos

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    ResumoResumoResumoResumoResumo

    No artigo prope-se uma conjuno entre a experincia de Basaglia e oensinamento de Lacan. Enfatiza-se a posio que a dimenso tica dessespensadores souberam dar loucura, imprimindo uma direo comumcapaz de potencializar ambas as teorias.

    Palavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chavePalavras-chave

    Lacan; Basaglia; psicose; reforma psiquitrica; psicanlise.

    Carlo VCarlo VCarlo VCarlo VCarlo Viganiganiganiganigan

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    A reflexo que proponho a da conjuno entre a experincia de

    Basaglia e o ensinamento de Lacan. Apesar de a mim no parecer queesses nunca tenham se encontrado e que, tambm, na obra escrita seriamuito mais rduo encontrar convergncias, todavia me parece que, quantoao que transmitiram, a dimenso tica que souberam dar loucura, huma marca, uma direo comum e capaz de potencializar-se reciproca-mente. Pelo menos esta a minha experincia na qual gostaria de encon-trar as razes.

    A ligao entre as duas obras nos confiada. A quem puder extrair daexperincia basagliana um ensinamento, proponho fix-lo em um aforismaque parafraseia aquilo com o que Lacan ligou a obra de Freud com a deSaussure: se Basaglia tivesse lido Lacan, haveria dito que o fechamento dosmanicmios uma troca de discurso e que o discurso do analista podemotivar a posteriori essa passagem (aquela que Lacan chamou passe).

    uma afirmao difcil de sustentar ao se pensar na feroz oposio basagliana psicanlise. Para faz-la, deverei mostrar como o ensinamento de Lacantraou um sulco essencial no terreno da sade mental.

    1 - A abertura do manicmio1 - A abertura do manicmio1 - A abertura do manicmio1 - A abertura do manicmio1 - A abertura do manicmio

    Somos habituados a pensar a abolio do manicmio como o maiorxito da obra de Basaglia, mas isto acaba por reduzir sua interveno a ummero fato legislativo. Seria como considerar que a contribuio essencialda psicanlise para a cura da doena mental tenha sido a promoo da leide 1989 sobre Ordem das Psicologiase o reconhecimento do psicoterapeuta.Em ambos os casos, a relao entre a reforma do entendimentoe areforma legislativa se prestam a consideraes contraditrias, no momento

    em que a novidade introduzida pela lei tende a fechar propriamente oprincpio nuclear do pensamento que se supe hav-la inspirado.

    Pode-se dizer, de fato, que as novas ordens so criadas jogando forada bacia, junto com a gua suja, tambm o beb: a Medicina fala aberta-mente do discurso do louco, assim como a Psicologia fala do discurso doanalista, isto do seu desejo.

    Vejamos tal questo de acordo com esse efeito de fechamento. Pode-se intuir, facilmente, que essas mudanas em nvel legislativo e, de conse-qncia, da organizao social dos tratamentos, antes mesmo de modifi-car o tratamento da doena mental, introduzem uma rebelio em nvel da

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    clnica. um fenmeno histrico do qual Foucault j havia estudado os

    episdios precedentes, em particular aquele que leva verdadeiramenteao nascimento da clnica, isto , a uma nova e indita visibilidade da-quilo que a doena. A mudana da organizao social encontra, noincio do sculo XIX, na anatomia patolgica, o instrumento cientficopara inventar a forma moderna da doena.

    Para reportar essa estrutura histrica ao nosso caso, parece-me til,tambm, uma outra referncia: a antropologia de Levy-Strauss. Ele nosmostrou como as classificaes sociais e aqui podemos colocar tambma classificao das doenas tendem a persistir mesmo depois que tenhampassado por substanciais mudanas demogrficas. A exemplo, o nome deuma tribo que se extingue vir a designar um subgrupo de outra tribo que,se torna muito maior. Tudo isto para colocar-nos atentos sobre uma apa-rente continuidade entre a abertura do manicmio e as polticas de sade

    mental (com um jogo de palavras podemos dizer: de fechamento de mani-cmio) ou entre psicanlise aplicada sade mental e psicoterapia.

    Um pequeno sinal de que se est produzindo mudana em clnicapode ser encontrado na substituio do termo doena como incmo-doe a um outro nvel como distrbio de personalidade. A aparentedesmedicalizao revela, subitamente, uma outra face: a do exponencialacrscimo no investimento teraputico do mal-estar social. Pe-se ao ladodos mdicos toda uma srie de outros terapeutas.

    Em outros termos, o adiamento dos processos teraputicos tende aocultar, se no a tornar a enviar no real o intratvel, as mudanas daclnica. Veremos como a obra de Basaglia se aproxima da de Lacan, noque se refere ao esforo de caminhar do outro lado da terapia para tornar

    atual e transmissvel a novidade clnica1

    .

    2 - Antipsiquiatria, antipsicanlise?2 - Antipsiquiatria, antipsicanlise?2 - Antipsiquiatria, antipsicanlise?2 - Antipsiquiatria, antipsicanlise?2 - Antipsiquiatria, antipsicanlise?

    Nos anos 60, o ensinamento e a experimentao de uma gesto psi-quitrica alternativa, iniciada em Gorizia, aglutinou em torno de Basagliaum movimento prprio, verdadeiro e antecipador daquele, legado s1Podemos esquematizar essa obra que reside, essencialmente, em um ensinamento (outros diriam que de natureza epistmica)com um matema: (transmisso). Trata-se de um processo de ressignificao do tratamento, atravsda produo de um novo significante de tratamento, capaz de renovar a transmisso, de produzir uma discusso e umaautoridade (deciso) que renovam a clnica, tornando-a mais adequada ao real em jogo no desejo social. Como em todasignificao se produz um resto, cabe a ns, os alunos, no fazer nele o ncleo de agregao para o fechamento da obra.

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    hipteses de gesto alternativa de uma outra instituio, a Universidade.

    No creio que o efeito de antecipao v ser procurado em uma analogiaqualquer entre a instituio manicomial e a universitria, mas no prpriofato de que, no manicmio, uma experimentao alternativa assim se arti-culasse estreitamente com um ensinamento. O manicmio, escola de vidasocial e de transformaes culturais. Veremos como na Frana, nos mes-mos anos, encontra-se essa particular ligao entre a experimentao deuma gesto alternativa da instituio analtica e o ensinamento de Lacan.Veremos como essa vizinhana estrutural teve um peso que tende a tornar-se histrico, para citar o witz Lacaniano quando falava do emoi de mai.

    O ensinamento de Basaglia tinha, ao menos, duas razes:- a denncia do tratamento dos doentes mentais, que os privava de tododireito humano e os fechava em lugares de excluso social. Tal tratamen-to no s no curava, mas reforava o estado de marginalizao dos

    internados. Essa denncia torna-se um paradigma daquela mais geral dasociedade neocapitalista, se formada sobre o terreno da clnica;- a abertura da psicologia marcada, primeiramente, pela fenomenologiae, depois, pelo existencialismo - as teorias sociolgicas anglo-saxnicasque se demonstravam subversivas psicologia enquanto tal.

    A dimenso social vinha sendo sentida como capaz de revolucionarpara si a concesso da veiculada subjetividade da psiquiatria. Devemosnotar que nesse movimento vem assimilado tudo o que era psico, e apsicanlise foi totalmente envolvida na contestao da psiquiatria, decuja ideologia era considerada a expresso mais refinada.

    Creio que para essa assimilao concorreram dois elementos. De umaparte, a poltica geral (isto , da oficialidade IPA) da psicanlise apontava

    a conquistar para si um posto nas instituies universitrias e de trata-mento, misturando-se com as disciplinas psiquitricas e psicolgicas. Deoutra parte e de conseqncia o alvo da contestao no pode ser,como logicamente deveria ser, a concesso psicolgica inerente psiqui-atria, para o prprio fato de que essa ficava implcita. A psiquiatria2, isto, o receptculo prtico e institucional de todas as teorias psicolgicas,compreendida a psicanlise de Musatti a padre Gemelli.

    Devo precisar rpido que para seguir o meu fio, que aquele daligao, devo novamente remeter o exame da valorizao histrica que2Che cos la psichiatria?, a cura de F. Basaglia, Amministrazione Provinciale de Parma, Parma, 1967; Einaudi, Torino 1973.

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    Basaglia tinha da psicanlise e, depois, dos motivos pelos quais no a

    retinha como aliada til. Fao, pois, a hiptese de que, na Itlia, a obra deBasaglia pode assumir do exterior aquele dever de denunciar desvios eerros da psicanlise que, na Frana, o ensinamento de Lacan tinha inicia- doproclamando do interior a necessidade de retornar a Freud.

    3 - Parania e instituio3 - Parania e instituio3 - Parania e instituio3 - Parania e instituio3 - Parania e instituio

    Em 1969, Lacan, em pleno clima de contestao, vai a Vincenne parafalar aos estudantes e tenta explicar a eles onde a Universidade os esttraindo. Naquele ano est se formalizando a estrutura do vnculo social,que chama de discurso,a partir daquele fundamental o discurso doMestre que se articula como o avesso da psicanlise. Essa oposio a base para se estabelecer o lugar de outros dois discursos: o discurso da

    histrica e o Universitrio. Quatro discursos e no mais; e a passagem deum para o outro consiste em um quarto de giro de quatro elementos(sempre aqueles: S

    1, S

    2, a, S), em quatro posies fixas: o agente, o Outro,

    o produto e a verdade.A perverso contempornea do discurso universitrio ligada sua con-

    taminao com o discurso do Mestre: o saber (S2) posto no lugar de coman-do, fora do seu contexto discursivo, e o caminho sua incorporao com S

    1.

    Essas perverses das estruturas discursivas, produzidas pelo saber dacincia, so caractersticas do capitalismo que age sobre o discurso hu-mano, abolindo a impossibilidade lgica do mesmo discurso, aquela darelao entre produto e verdade. A revoluo que Lacan prope a quefaz o giro dos quatro discursos. Ao repassar para o discurso do analista,pode-se recuperar, tambm para o saber, um lugar que no seja de poder

    e, assim, devolver universidade a capacidade discursiva de produzirsujeitos divididos ao invs de professores3.

    A afirmao de Lacan explcita: o lugar e a funo da psicanlise nosocial so aquelas de boucler, o giro revolucionrio dos discursos. Omatema do discurso serve a Lacan para selar, definitivamente, o fato deque o vnculo social no se baseia sobre a intersubjetividade, mas sobrea mesma estrutura do sujeito. O inconsciente relao com o Outro, dis-curso do Outro, que no se pode reduzir cadeia significante para a qual ovnculo social se estabelece no tempo de recuperao, de gozo da parte do3Le Seminaire XVII. Lenvers de la psychanalyse.Le Seuil, Paris [19--].

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    sujeito: o fato mais ntimo da experincia, a nomeao do objeto origin-

    rio e perdido , ao mesmo tempo, a raiz do vnculo social. Essa lgicarepresenta o fruto maduro do trabalho de Lacan sobre fato psquicofundamental4, a parania, iniciado com a tese de doutorado e que ohavia levado a Freud.

    Naqueles mesmos anos, Basaglia e seu grupo partiam da parania parainterrogar o ponto de unio entre doena mental e contexto social. Comodizia, esses no eram os pontos precedentes corrente do trabalho deLacan sobre parania (em particular o Seminrio III- As psicoses5) e, por-tanto, no puderam adotar a fundamental denncia que Lacan havia feitodo prejuzo psiquitrico. Pode-se resumir da seguinte forma: tudo na clni-ca leva a reter que o perceptumalucinatrio e, em geral, todo fenmenoelementarda psicose no atribuvel a um percipiensque coincida com oEu psicolgico. Ao contrrio, este ltimo deve dar sentido a um perceptum

    completamente alienado para reintegr-lo em um segundo tempo nosistema do Eu e esse , propriamente, o trabalho da parania.

    Naquele momento, na Frana, Lacan havia aderido a um projeto polti-co de crtica da psicologia promovido por Politzer; tanto que a publicaoda sua tese foi assinalada por Paul Nizan como precursora de mudanas notratamento social da doena mental. O trabalho de Basaglia no interrogoua especificidade subjetiva da experincia psictica. Veremos como ser, apartir dessa falta, que toda sua crtica histrica ao tecnicismo psicolgicono conseguir separar-se do nvel puramente estratgico. De resto, a faltade um encontro com a anlise de Lacan foi favorecido pela censura quasetotal. Faz-se exceo para a voz de Fachinelli, que a psicanlise italiana pssobre a obra de Lacan, procura de uma integrao prpria com aquela

    degenerao universitria que Lacan estava denunciando.O grupo de Basaglia no tomou em exame a parania a partir daclnica, de caso a caso, mas a partir da anlise feita por uma certa socio-logia americana. Em particular, Basaglia estudou o escrito de NormanCameronThe paranoid Pseudocommunity6, no qual se afirmava que ocomportamento psictico o de reter em si o resultado ou a manifesta-o de uma desordem na comunicao entre indivduo e sociedade7.

    4J. Lacan, Della psicosi paranoica nei suoi rapporti con la personalit,Einaudi, Torino 1980.5J. Lacan, Il Seminario III. Le psicosi, Einaudi, Torino 1985.6American Journal of Sociology, 46, 1943, pp. 33-38.7Cit. In Franco Basaglia, La maggioranza deviante, Einaudi, Torino 1971, p. 39.

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    Mais precisamente, paranide aquele que, em situao de stress no

    usual impelido a causa da sua insuficiente capacidade de aprendiza-gem social a reaes inadequadas... O paranide organiza simbolica-mente uma pseudocomunidade em cujas funes ele percebe como seuser focalizado8. O psictico seria, pois, qualquer um que reagisse demodo conflitante a essa comunidade imaginada.

    Basaglia utiliza essa anlise de modo bem mais surpreendente: atribuia falsidade dessa comunidade ao vnculo social como tal (como sequase tivesse lido Lacan) e, em conseqncia, coloca em questo o fatode que o indivduo possa ser um dado suficiente ao estudo da para-nia9.Mas trata-se somente de uma intuio no sustentada pela teoria eque, de fato, demonstra no conhecer a crtica lacaniana fenomenologiado percipiens.Aqui no posso encontrar embasamento para tal intuio.Ao contrrio, Basaglia passa a atacar a psicanlise como o saldo maior da

    concesso Kraepelimiana da psicose como condio ou sndrome cons-tituda por sintomas, cuja casualidade vem a ser encontrada na prisoda evoluo psicossexual.

    A denncia do preconceito de um percipiens como sujeito do fen-meno elementar psictico vem, assim, tomar duas estradas opostas ediversamente crticas. Lacan, ao partir da experincia clnica da transfe-rncia, demonstra que a interpretao da alucinao ficou viciada pelaatribuio preconceituosa ao sujeito da conscincia e a reporta a umdficit do significante que organiza a separao do S

    1de S

    2e o ponto do

    fino fio que os conecte posteriormente. Portanto, trata-se da posio dosujeito na linguagem. Basaglia, ao invs, partindo da hiptese sociolgicade uma pseudocomunidade paranica, tende a colocar esse elemento

    cognitivo em um contexto de relaes polticas, a fim de isolar nele aarticulao real no fato de que os outros reagem de modo diferente emseus confrontos, e essa reao, habitualmente, se no sempre, implicauma ao secretamente organizada e um comportamento conspirativono sentido do tudo concreto.10

    Parece-me que o ensinamento que permanece vlido da via basaglianaem nvel da clnica seja aquele que leva a distinguir, a opor conceitual-mente, a patologia aquela que para Lacan do sujeito, tambm na8N. Cameron, cit.9F. Basaglia, Ibid., p. 41.10Id., p. 40.

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    psicose e o sintoma que, quando no chega a ser o parceiro do sujeito,

    o que origina o tratamento do psictico por parte dos outros.

    4 - Uma contradio do pensamento de Basaglia4 - Uma contradio do pensamento de Basaglia4 - Uma contradio do pensamento de Basaglia4 - Uma contradio do pensamento de Basaglia4 - Uma contradio do pensamento de Basaglia

    O ponto de fragilidade do ensinamento de Basaglia, a meu ver, est emuma linha de fratura que se mantm por todo arco de sua vida e que, creio,possa ser suturada com os instrumentos da psicanlise de Lacan. Como Lacan,Basaglia sempre esteve aderido ao seu lado psiquiatra, guiado pela sensibilida-de e pela inteligncia clnica, centradas sobre o sofrimento particular do doen-te. Na teoria, ao contrrio, utilizou o discurso filosfico sem chegar a revert-lopara seu interior. Podemos v-lo na resposta que sempre deu perguntaQuecoisa a loucura?, a qualsempre respondeu em dois nveis, encontrando-se,assim, a necessidade de manter uma certa oscilao entre elas:

    - a misria, a indigncia e a delinqncia, submete a mudana dalinguagem racional da doena.11

    - No sei que coisa seja a loucura. Pode ser tudo e nada. uma condi-o humana.12

    Esta ltima frase de 1979, um ano antes de sua morte. At o fim,manteve essa oscilao para combater, especularmente, a resposta psi-quitrica que diz interrompemos a questo e, no entanto, fala ao lugardo louco. Sua estratgia foi manter a loucura no mbito enigmtico desua dramaticidade; mais precisamente, negar a loucura como produtosocial para poder encontr-la como sofrimento.

    Era uma estratgia; por trs disso estava a idia de que se tratassesomente de uma etapa para a transio para uma sociedade mais justa ehumana. A luta para a liberao dos loucos se unia quela mais geral de

    liberar a sociedade inteira da invaso da lgica do lucro. Para Basaglia,para ser psiquiatra deve-se sair do prprio rol e confrontar-se com osproblemas gerais da sociedade: ou tem o corpo do poder ou tem ocorpo de todos ns13e aquele do louco um corpo que sofre, trao deuma subjetividade que reage e refuta o cerco do qual objeto14.

    Como se v, tal estratgia leva Basaglia a homologar a loucura a um

    11F. Basaglia, Scritti, a cura di F. Ongaro Basaglia, Einaudi, Torino 1981, vol II, p. 430.12F. Basaglia, Conferenze brasiliane, trad. it. A cura di M. Cannone, D. De Salvia, A. Rolle, Centro di Documentazione diPistoia Editrice, Pistoia 1984, p. 28.13Il giardino dei gelsi, intervista a cura di E. Venturini, Einaudi, Torino 1979, p. 225.14F. Gasaglia, Scritti, cit., p. 429.

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    sintoma neurtico, a uma mensagem decifrvel, em que a decifrao ser

    um trabalho de transmisso entre o que se pode considerar produto dointernamento e isto que o de reter-se o ncleo da originria doena. Comoveremos, o trabalho de Basaglia se prende de frente a essa segunda parte.

    Poder-se-ia reassumir o projeto como Foucault +otimismo da prti-ca: liberamos o silncio do corpo como inexprimvel e irracional e traz-mo-lo na sociedade. E ser a sociedade a transformar-se, a acolher oirracional como componente normal da vida social.

    A falta daquela sutura ou, para melhor dizer, de uma operao de torointerna da linguagem que o ato de falar da loucura, sem acercaro louco,leva Basaglia a confiar s na prtica. A necessidade de uma nova cinciaede uma nova teoriase insere naquilo que impropriamente vem definidocomo vazio ideolgico e que, na realidade, o momento feliz no qual sepoderia comear a afrontar os problemas de modo diferente.15 exatamen-

    te essa operao que Lacan pde completar a partir do inconsciente Freudiano:no discurso do analista esse vazio colocado na funo, sem preench-la,como base estrutural que cava no Outro do saber um objeto causa de dese-jo. O desejo do analista vem do princpio de uma prtica que, ao mesmotempo, renova a teoria do sujeito e da loucura.

    Isso nos leva a encontrar um ponto de aplicao na frase:Eu creioque a histria do homem seja um pouco a batalha entre o seu ser e o seucorpo: o homem, encarcerado no seu corpo, busca na substncia viverem uma relao dialtica entre o seu ser e o seu invlucro.16 a dialticaque preside a subjetivao e que Lacan, no Seminrio XI,formaliza comoalienao - separao -, centrando-a sobre a perda do gozo, introduzidapela alienao e sobre seu reconhecimento como mais-gozar (objeto a)

    na separao. Basaglia, ao invs, deve confiar a superao dessa dialticaa uma tica social:no pode ser que um corpo socialmente e realmenteinserido17, entretanto o sistema produtivo que identifica corpo sociale corpo econmico.18Ainda assim, comentando a foto de Che morto:Tenta-se integrar o seu corpo morto no sistema que Che Guevara morto ou vivo continua a negar, e ns no queremos ser as testemu-nhas mudas deste segundo assassinato.19

    15Id., p. 472.16F. Basaglia, Il giardino dei gelsi, cit., p. 224.17Ibid., p. 225.18F. Basaglia, Scritti, cit., p. 427.19Ibid., vol I, p. 466.

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    Em sntese, Basaglia intui que para derrubar o prevalecimento do

    discurso cientfico e a sua importncia de universalizao deva-se oporao real tratado da cincia, aquele da contingncia. Este porm, no vemformalizado como o real da clnica e fica, assim, confiado a uma tica quetende simplesmente a neg-lo ou talvez a sublim-lo. uma tica que oleva a formular duas imposies:1 dar ateno ao particular, trabalhar sobre o que especfico da pr-pria situao institucional, conhecer e responder as necessidades reais dousurio, individualizando, junto a ele, para restituir-lhe a subjetividade.Isso o leva a considerar que o principal obstculo seja a frustrao: otrabalho em um hospital psiquitrico em transformao no , pois, torevolucionrio.20Por isto ocorre:2 sair do especfico da psiquiatria para atacar a lgica do estado burgu-s: [...] aquilo que ns temos afrontado um problema mais vasto que

    se alarga a todos os setores, o problema do qual toda a gente fala,aquele da prpria liberao.21

    5 - Tcnicos ou intelectuais?5 - Tcnicos ou intelectuais?5 - Tcnicos ou intelectuais?5 - Tcnicos ou intelectuais?5 - Tcnicos ou intelectuais?

    A necessidade de fazer calar todos os discursos da psiquiatria deixouBasaglia privado de um discurso que fundasse a tica do operador: agen-te de uma revoluo ou de uma vanguarda?

    A tica de Basaglia pode ser lida como uma tica do sacrifcio; ele falade renncia, de uma escolha de autodestruio nossa, pessoal, ao serviodos internados.22Isso que nos impede de considerar essa autodestruiocomo figura do desejo a constatao de que, no passar do universal aoparticular, o operador encontra nela a frustrao. Trata-se de uma passa-

    gem hipotizada como movimento subterrneo, tenaz, mas infinita; umarevoluo silenciosa atravs da qual a sociedade retornaria loucura.

    Mais realisticamente, Lacan no nos prope um retorno da sociedade loucura, a partir do momento em que esta j a contm definitivamen-te como normalidade23 mas um retorno do gozo, preso no crculosuperegico do capitalismo, ao desejo do sujeito. A anlise no o20F. Basaglia, Crimini di pace, Einaudi, Torino 1975, p. 67.21La nave che affonda, intervista a cura di S. Taverna, Savelli, Roma 1978, p. 88.22 Ibid., p. 146.23No Seminrio R.S.I., Lacan reverte a conveno na qual a normalidade para a psicanlise seria a neurose e diz que nada mais caracterstico da normalidade, do comum, se no a autonomia dos trs registros (Real, Simblico e Imaginrio). Aloucura , de fato, a ausncia do seu anodamento.

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    atravessamento das iluses por meio das quais o gozo se pe como

    causa do desejo, a fim de que se produza um desejo que , ao invs,desejo de saber. o quanto se pode contrapor tcnica.Nessas condies, parece-me que seja promissor que o ataque ao

    particular e a fidelidade clnica que Basaglia nos ensinou se encontrecom a tica da psicanlise, assim como Lacan a redescobriu, para nonaufragar na moral do sacrifcio ou da suportabilidade da frustrao. Paraconcluir, queria passar, em resenha, os motivos da oposio basagliana psicanlise e, com base neles, examinar essa hiptese de trabalho.

    A psicanlise que Basaglia concebe era aproximada ao problema dadoena mental luz da via aberta por Jaspers (vide H. Hey). Essa seaplicava s relaes de compreensopara deixar cincia o fenmenopsquico fundamental, o ncleo orgnico da doena. Lacan, rapidamen-te, refutou, com veemncia, a iluso desse dualismo e props novamente

    a hiptese de uma cincia que inclusse o inconsciente. Basaglia simples-mente refutou o compromisso maniqueista como cincia burguesa.

    Em conseqncia daquele compromisso, a psicanlise operava umauto circuito entre o doente e o terapeuta (privatizao do conflito), aoinvs de colocar a subjetividade em um circuito muito mais amplo, intro-duzindo o lugar do Outro como descentramento da relao intersubjetiva.

    Em sntese, na refutao da psicanlise havia motivao do tipo histrico. Aestratgia basagliana se opunha quela que seguiam os psicanalistas no Laca-nianos que entravam nos hospitais psiquitricos paralisando neles os proces-sos de mudana, aumentando os sistemas de aliana e reforando a corporaodos psiquiatras.24Por isso se constatava que, em nvel poltico, o ingresso dasteorias psicanalticas permitiam modernizar e, depois, estreitar a instituio

    manicomial. A experincia francesa do setor era avaliada dessa forma.Hoje estamos em um novo tempo, e trata-se de colocar prova odispositivo do discurso analtico como herdeiro daquele uso foucaultianodo senso histrico25que encontramos na obra de Basaglia.

    Pode-se dizer, em concluso, que proponho um Lacan que interpreta odesejo de Basaglia, repropondo a loucura como limite da liberdade humana.26

    24Interveno de G. Gallio, in Follia e paradosso, Edizioni e, Trieste 1995, p. 146.25Uso parodstico, destruidor da realidade, dissociativo, destruidor de identidade, sacrifical, destruidor de verdade. Repensaro discurso do Mestre como o avesso da psicanlise leva realidade de um sujeito dividido, ao desejo do analista comoruptura da identidade profissional, verdade como causa e no mais como saber.26[...] o ser do homem no s no pode ser compreendido sem a loucura, mas no seria o ser do homem se no tivesseem si a loucura como limite da sua liberdade. J. Lacan. Scritti, Einaudi, Torino 1974, p. 170.

    Basagliacom Lacan

    Mental - ano IV - n. 6 - Barbacena- jun. 2006 - p. 15-26

  • 8/12/2019 Basaglia Com Lacan

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    AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

    The article proposes a conjunction between the Basaglias experienceand the Lacans teaching. The text emphasizes the ethical dimension thatthese thinkers gave to the madness question and shows a commondirection that potentizes the both theories.

    Key wordsKey wordsKey wordsKey wordsKey words

    Lacan; Basaglia; psychosis; psychiatric reform; psychoanalysis.

    Basaglia with Lacan

    Traduo: Roseli Cordeiro PereiraReviso: Helder Rodrigues Pereira

    Artigo recebido em: 10/3/2006Aprovado para publicao em: 30/3/2006

    Carlo Vigan

    Mental - ano IV - n. 6 - Barbacena- jun. 2006 - p. 15-26