BATISTA - Cardápio da morte

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BATISTA, Nilo. Cardápio da morte. Revista CHRONOS. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2006, p. 81-90. CARDÁPIO DA MORTE Tragicomédia em uma cena, para uso em laboratórios de Política e Criminologia, duas ciências a cada dia mais afins Dramatis personae: 1. Exequiel Burundanga, deputado-constituinte. 2. Brocardo Latino, assessor jurídico. CENA ÚNICA Brasília, em alguma noite da primavera de 1987, na véspera da apresentação do projeto de lei do deputado Exequiel Burundanga sobre a pena de morte. Entra em seu gabinete, carregado de livros, o assessor jurídico Brocardo Latino. EB Ora, muito bem, Dr. Brocardo. Resolveu o problema? BL Não, deputado, não resolvi. Estudei a quaestio facti e estou meio confuso. Aliás, quanto mais estudava, mais me confundia. EB Não entra na minha cabeça que um aspecto tão secundário como este a forma de execução possa retardar a apresentação de nosso projeto de lei. O fundamental é a morte, em sua elevada abstração teórica. Matou, morreu. Morte lá, morte cá. Nada mais saudavelmente lógico. Agora, como se vai matar, como se vai morrer, que importância tem isso? BL Não é tão simples assim, deputado Burundanga. Veja o levantamento que fiz, nesta folha de papel. É uma espécie de cardápio da morte, uma summa divisio: aí estão arroladas todas as formas contemporâneas e execução da pena capital, no mundo ocidental e no mundo comunista. EB Perfeitamente dispensável o segundo grupo. Nosso eleitorado quer a pena de morte no e para o ocidente. A propósito, onde o senhor colocou o Japão? BL Japão é ocidental.

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BATISTA, Nilo. Cardápio da morte. Revista CHRONOS. Rio de Janeiro: UNIRIO,

2006, p. 81-90.

CARDÁPIO DA MORTE

Tragicomédia em uma cena, para uso em laboratórios de Política e Criminologia,

duas ciências a cada dia mais afins

Dramatis personae: 1. Exequiel Burundanga, deputado-constituinte. 2. Brocardo

Latino, assessor jurídico.

CENA ÚNICA

Brasília, em alguma noite da primavera de 1987, na véspera da apresentação do

projeto de lei do deputado Exequiel Burundanga sobre a pena de morte. Entra em

seu gabinete, carregado de livros, o assessor jurídico Brocardo Latino.

EB – Ora, muito bem, Dr. Brocardo. Resolveu o problema?

BL – Não, deputado, não resolvi. Estudei a quaestio facti e estou meio confuso.

Aliás, quanto mais estudava, mais me confundia.

EB – Não entra na minha cabeça que um aspecto tão secundário como este – a

forma de execução – possa retardar a apresentação de nosso projeto de lei. O

fundamental é a morte, em sua elevada abstração teórica. Matou, morreu. Morte lá,

morte cá. Nada mais saudavelmente lógico. Agora, como se vai matar, como se vai

morrer, que importância tem isso?

BL – Não é tão simples assim, deputado Burundanga. Veja o levantamento que fiz,

nesta folha de papel. É uma espécie de cardápio da morte, uma summa divisio: aí

estão arroladas todas as formas contemporâneas e execução da pena capital, no

mundo ocidental e no mundo comunista.

EB – Perfeitamente dispensável o segundo grupo. Nosso eleitorado quer a pena de

morte no e para o ocidente. A propósito, onde o senhor colocou o Japão?

BL – Japão é ocidental.

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EB – Claro. Mas, diga-me uma coisa: os comunistas não são contra a pena de

morte?

BL – Não consegui entender isso direito. Lênin várias vezes afirmou que os

comunistas eram adversários da pena de morte, porém excepcionalmente a

admitiam, sob determinadas circunstâncias e enquanto tais circunstâncias

perdurassem. Garantia-se que o governo revolucionário não a conservaria além do

necessário à estabilização do poder. De fato, logo após a guerra, em 1947, aboliram

a pena de morte. Mas em 1950, com a chamada guerra fria, ela retornou para

crimes de espionagem e traição, e foi ampliada para crimes comuns em 1954 e

1961. Esta situação perdura até hoje. Ou não ligam mais para Lênin, ou o poder

ainda não está consolidado lá; tertius non datur.

EB – Não tente compreendê-los. Vamos ao nosso problema: por que é complicado o

jeito de matar?

BL – No direito antigo e intermédio não era. Matava-se como bem se queria. Ad

libtum. Mas hoje é muito diferente. Há um relatório, sempre citado nos livros, de uma

comissão inglesa, chamada Royal Comission on Capital Punishment. De 1949 a

1953, essa comissão estudou a pena de morte. Para ela, a execução da pena

capital exige três requisitos básicos: humanidade, certeza e decência. Por

humanidade, entende-se que a técnica adotada deva matar o padecente sem aflição

e sem dor (ou com perda imediata de consciência), evitando-se longos ritos ou

preparativos. Por certeza, entende-se que a forma de execução deva alcançar direta

e imediatamente a supressão da vida do padecente, sem interrupções ou

dificuldades operativas. Por decência, entende-se que o procedimento deve realizar-

se com dignidade, evitando qualquer violência inútil ou brutalidade contra o

padecente, não lhe mutilando ou deformando o corpo.

EB – Embora os assaltantes e estupradores não concedam a suas vítimas qualquer

dessas considerações, concordo em que o Estado não pode matar como um

assaltante ou um estuprador. Vejamos aqui seu cardápio. Forca. Acho interessante,

e tem tradição entre nós. Funciona bem a forca?

BL – In thesi, sim. A comissão inglesa achava que era a melhor técnica. O verdugo

examina previamente o condenado e calcula, de acordo com seu peso e outras

características, a altura da queda. Com um saco de areia do mesmo peso, testa a

corda. No momento da execução, o padecente tem seus braços atados às costas e

é conduzido à sala própria.

EB – O enforcamento não é público?

BL – Na América, o último enforcamento público em 1831, em Nova Iorque. Na

Inglaterra, em 1868. Depois disso, e enquanto se usou a forca (na Inglaterra, até

1969), as execuções se deram no interior das prisões. Levando à sala própria, que

fica contígua à cela dos condenados, coloca-se em sua cabeça um capuz e passa-

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se a corda em seu pescoço. O laço corrediço era colocado, na Inglaterra, sob a

mandíbula, do lado esquerdo, na América, sob a orelha, também do lado esquerdo.

Trata-se de uma dissidência entre carrascos: a posição submental e a posição

subaural são defendidas por correntes distintas, a primeira perfilhada pelos verdugos

ingleses, a segunda pelos americanos. De qualquer forma, aberto o alçapão, o corpo

cai e o deslocamento violento das vértebras cervicais promove a maceração ou

ruptura da medula. Isso leva à perda imediata da consciência. O coração fica

batendo ainda quase 20 minutos, mas a comissão inglesa garante que se trata de

uma função inteiramente automática.

EB – Não me parece mal, não me parece mal. E é barato. Por que disse, caro doutor

Brocardo, que em tese funciona bem? Na prática porventura funciona mal?

BL – A prática registra vários inconvenientes. Se o verdugo erra o cálculo da queda,

haverá problemas. Se ele erra para menos, não ocorre o deslocamento das

vértebras cervicais, a medula não é atingida, e a morte sobrevém por asfixia. A

morte por asfixia na forca é um espetáculo deprimente. Os antigos verdugos

cavalgavam os padecentes para acelerar a sua morte. Houve caso de o desgraçado

conseguir, aos corcovos, apoiar as pernas nas bordas do alçapão. Mas se o verdugo

erra para mais, pode a cabeça do padecente ser arrancada. Pelos critérios da

comissão inglesa, na primeira hipótese, falta o requisito da humanity; na segunda,

falta o requisito da decency. Mas não é só isso. São inúmeros os casos de

reanimação de enforcados que a literatura registra. Imagine o coração de um corpo,

no Instituto Médico Legal, voltar a bater! A reação jurídica foi estipular prazos de

permanência do corpo pendurado. Na Inglaterra, em 1969, o prazo era de uma hora,

ex-vi legis. A tecnologia tornou coisas do passado as cordas que rebentavam, mas

esse coração batendo quase 20 minutos continua ensejando muita polêmica. Há

também reações fisiológicas desagradáveis que...

EB – Não. Melhor tentarmos outro caminho.

BL – Devo então desconsiderar o garrote?

EB – Como é o garrote?

BL – Mais ou menos como a forca. São duas argolas de ferro, uma fixa e outra

móvel. Quando o torniquete é acionado, a argola móvel caminha para trás. O

padecente está sentado num banco, e o garrote ajustado num madeiro atrás dele.

Há o deslocamento de vértebras cervicais, como no enforcamento, e asfixia. O corpo

se estorcega espasmodicamente, até que o número de voltas no torniquete consiga

deslocar as vértebras e dilacerar a medula.

EB – Não, não. Vamos por outro caminho. Você aceita um uísque? Estou com a

garganta seca.

BL – Acompanharei. Interessa-lhe a decapitação?

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EB – Usa-se no ocidente cristão?

BL – A guilhotina é o método moderno de decapitação. Tem o grave inconveniente

de mutilar o corpo do padecente, mas foi muito prestigiada. Seu inventor dizia que o

executado não sentiria mais do que uma sensação gelada...

EB – Duas ou três pedras?

BL – ...nas espáduas. Sem gelo, por favor: bebo cowboy quando estou gripado. A

guilhotina é simples. O padecente é colocado, por um mecanismo basculante, em

posição horizontal; seu pescoço é imobilizado por um dispositivo de duas peças

grossas de madeira, cada qual com um semicírculo, chamado lunette; a lâmina tem

sobre si um peso de aproximadamente 40 quilos, ao qual é dado o nome de

mounton; acionado o declic, uma garra que prende o mounton, este e a lâmina,

dotados de carretilhas laterais, caem e promovem a decapitação.

EB – Parece eficiente.

BL – Devo dizer-lhe, deputado, que há inconvenientes. Como a lunette é uma, e os

pescoços múltiplos, o ajudante do carrasco tem que se garantir de que o padecente

não faça movimentos para retrair sua cabeça. Ele segura pelos cabelos e, quando

calvo, pelas orelhas.

Se o padecente se retrai, podem acontecer carnicerias desagradáveis, como no

caso daquele que teve a mandíbula cortada. Esse ajudante usa uma espécie de

máscara, para proteger-se a sangueira que jorra da garganta.

EB – Pelo menos, é um processo de morte imediata.

BL – É que o senhor não conhece as estórias macabras de decapitados. Não me

refiro, é claro, ao rubor de Charlotte Corday, esbofeteada no patíbulo, que tem um ar

de lenda. Mas o relatório do médico Wendt, no início do século XIX, que, junto a

alguns colegas, testou a percepção sensorial da cabeça recém-degolada de um

executado chamado Troer, bem como o relatório semelhante do médico Bearieux,

no início do século XX, que trabalhou sobre a cabeça do executado Larguille, são de

arrepiar. Um decreto de 1904, na Prússia, proibiu que se realizasse “qualquer

espécie de excitação mecânica ou galvânica em qualquer parte do corpo dos

decapitados e em suas cabeças”. Isso tudo pode ser questionado. Mas quem

presenciou a execução de Gorguloff, o assassino do presidente Dourmer, não deve

ter dormido por uns dias. Seu pescoço era muito grosso, impedindo que a lunette se

fechasse completamente; a madeira, fora da posição normal, passou provavelmente

a frear, pelo atrito, a queda da lâmina. Foram sucessivas quedas, cada uma das

quais arrancava um pedaço da cabeça de Gorguloff. Para que os berros inumanos

do padecente cessassem, Rogis, ajudante do verdugo Deiber, deu-lhe um golpe

com uma chave inglesa desacordá-lo.

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EB – Basta, meu caro Dr. Brocardo. Com acidente desses, não me elejo nunca

mais. Vai uma fatia de salaminho? E o que se pode dizer da cadeira elétrica?

BL – Obrigado. A comissão inglesa registrava inconvenientes nos preparativos

longos, uma vez que o condenado tem que ser raspados os cabelos da parte

superior da cabeça e da perna, onde serão fixados os eletrodos, além de ser atado

por diversas correias à cadeira, para não ser projetado pela primeira descarga. Mas

acho que o pior são as queimaduras e as reanimações, durante e depois.

EB – Queimaduras?

BL – Sim. Muitas testemunhas presenciais mencionaram a fumaça que sai do corpo

do padecente, mas todas, absolutamente todas, sentem o cheiro da carne

queimada. E os laudos registram, inúmeras vezes, queimaduras, no rosto ou na

perna. Isso aconteceu com Spenkelink, executado na Flórida em 1979; sua face

estava queimada. A primeira descarga é de mais ou menos 2.000 volts, por uns 6

segundos. Reduz-se para 500 volts por quase um minuto, aplicam-se 1.000 volts por

uns 10 segundos, e após novo minuto de 500 volts vem a última descarga de 2.000

volts, como um coup-de-grâce. A 2.000 volts, a temperatura do cérebro do

padecente vai a 140 Fahrenheit. O pastor Potter, que assistiu à execução de um

criminoso chamado Crowley, fez um relato que se detém muito sobre isso: os suores

profusos, às vezes sangue pela boca e nariz, indicando, ao lado do cheiro, que o

corpo está sendo assado. E – o que é pior – frequentemente é preciso a segunda

descarga, e por vezes a terceira. O médico vai até lá, e o homem está vivo. O

deputado podia passar-me uma torradinha por favor?

EB – Pois não. Mas e se aumentarmos a voltagem?

BL – É claro que se fossem aplicados 10.000 volts, alta tensão, a 100 ampéres, a

morte seria indiscutivelmente imediato. Porém sobraria na cadeira, sic et simpliciter,

um pedaço de carvão. Veja o deputado: para usar os termos da comissão inglesa,

ganharíamos 10 em certainty, mas levaríamos zero em decency. Para não

desfigurar o corpo, haverá o risco da morte aflitiva, e das reanimações.

EB – Reanimações?

BL – A literatura anota diversos casos em que se deu reanimação. Nem deles, ad

exemplum, referido por Von Hentig, o médico legista requisitou o retorno do – não

sei se digo corpo ou réu – à cadeira elétrica, para que voltasse a morrer. Uma lei

nova-iorquina de 1914 determinaria a imediata realização da autópsia, logo que

encerrada a execução, e o motivo era enunciado com louvável sinceridade: “to

prevent any possible chance of the subject ever returning to life”. Veja bem o que

essa lei, na verdade, pedia ao médico de plantão!

EB – Começo a entender suas dificuldades, Dr. Brocardo. Fale-me algo sobre... a

câmara de gás.

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BL – A câmara de gás tem desde logo a vantagem de não apresentar um só caso de

reanimação.

EB – Enfim, uma boa notícia! Aceita uma cigarrilha? Como funciona a coisa?

BL – Obrigado, prefiro o meu Hollywood. A coisa é simples. Uma câmara hermética,

com uma ou duas cadeiras, cujo assento deve ser vazado – tipo palhinha – para não

impedir a ascensão do gás. Sob a cadeira, um recipiente, que será cheio com certa

quantidade de ácido sulfúrico; neste recipiente, no momento da execução, cairão

algumas pastilhas de cianureto de potássio, dando surgimento ao gás cianídrico. Na

cadeira, amarrado pelo pescoço, braços e pernas, o padecente tem um estetoscópio

preso à altura do coração, conectado a um tubo que sai da câmara e permite a um

médico constatar a interrupção dos batimentos. Se o réu colaborar...

EB – Se ele colaborar?

BL – Sim, se o réu colaborar, inspirando fortemente, a perda da consciência é quase

imediata. Sem essa colaboração, tudo é mais lento, e o condenado sofre uma

asfixia.

EB – Quanto tempo demora?

BL – De uns três a 12 minutos. Houve um caso em que um espectador conversou,

pelos sinais dos surdos-mudos, através das janelas de vidro, 4 minutos e meio com

o padecente, em plena execução. Veja este relatório do médico Hamer. O gás

começou a sair às 4:37:30h. O último batimento cardíaco foi às 4,47, mas a

respiração estava convulsiva, espasmódica e irregular desde 4:38. Por exemplo, às

4:41:30 eram 100 batidas; às 4,44, eram 80. Mas só quem percebe isso é o médico,

com seu estetoscópio.

EB – E as testemunhas o que vêem?

BL – Nada excepcionalmente terrível – dentro de nosso tema, naturalmente. A

língua, quando a cabeça pende, costuma sair dos lábios, junto com uma baba.

Como, segundo os autores de Medicina Legal, esse envenenamento produz enjôos,

dor de cabeça, aumento da pressão sanguínea, perda da visão e opressão sobre o

peito, tornando a respiração difícil, como num ataque de asma, não se pode dizer

que a coisa seja isenta de dor. O padecente às vezes não evita transmitir suas

sensações.

EB – Acidentes?

BL – Insignificantes. Um condenado que teve que ser sentado à força, tentou o

suicídio cortando o pescoço com um pedaço de espelho; outro, magrinho, que

conseguiu tirar as mãos e já estava desafivelando as correias, para seu azar – ou

para sua sorte? – ainda não haviam lançado o cianureto, e ele foi reamarrado. Não,

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os inconvenientes maiores não vêm, neste caso de acidentes e sim das conotações

políticas.

EB – Que conotações políticas?

BL – Milhares de pessoas, principalmente judeus, foram exterminadas da forma

mais arbitrária e impiedosa por esse processo. Muitos textos chamam a atenção

para isso.

EB – Veja, caro doutor como, no fundo, no fundo, dessa ou daquela forma, os

judeus realmente intervêm em todas as decisões importantes... Assim fica de fato

muito difícil. Vamos ao fuzilamento. Talvez este seja o caminho, porque o

fuzilamento já existe no direito brasileiro, não é?

BL – Sim, já existe no Código Penal Militar, para crimes militares em tempo de

guerra.

EB – Então, vamos lá. Não me venha dizer que sai sangue; isso eu já sei. O

fuzilamento mata bem e depressa, não é?

BL – Depende muito deputado Burundanga, da pontaria do pelotão. No famoso

fuzilamento do soldado Slovik, em 1945, com um pelotão de 12 homens, nem uma

só das balas acertou no coração. Os projéteis se alojaram entre o pescoço e o

ombro esquerdo, atingindo a parte esquerda do peito, acima e abaixo do coração.

Slovik ficou se debatendo, amarrado ao poste, gemendo, enquanto nova descarga

era preparada. Acontece que, pelo regulamento militar americano, a preparação da

descarga leva uns 15 minutos. Quando ficou pronta, Slovik cessara de debater-se.

Um quarto de hora de intensa hemorragia o matara. Não desanime, deputado; às

vezes a morte é imediata.

EB – Sim?

BL – Na execução de Pedro Martinez, em 1972, o tiro de misericórdia não foi

necessário. À frente do pelotão, por uma fraqueza qualquer – quiçá compreensível –

o condenado caiu de joelhos, e quase todas as balas o atingiram na cabeça.

EB – Mas, afinal, onde se atira? E quantos atiram?

BL – Há diversos sistemas. Pode fuzilar-se disparando à cabeça, ao peito e às

costas – tradicionalmente, essa última modalidade implicava um demérito,

reservando-se a traidores e quejandos. Não vou deter-me sobre o fuzilamento por

disparo na nuca, que teve pouca receptividade no Ocidente – pelo menos, no

Ocidente oficial. O pelotão pode ser de 5, 8, 10 ou 12 homens. Uma norma muito

frequentemente obriga a que uma das armas – sem que se saiba qual – esteja

municiada com disparo de festim.

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EB – Isso me parece engenhoso! Quer dizer: uma das armas tem um cartucho só

com pólvora, sem bala. Todos ficam com o direito de achar que aquela era a sua

arma. Engenhoso!

BL – Infelizmente, dessa gentil fantasia não pode beneficiar-se o comandante do

pelotão, a quem toca o tiro de misericórdia.

EB – Mas esse tiro é a regra ou a exceção?

BL – É a regra. E é feio. Ao descrever os efeitos de uma bala 9 milímetros que

rebentou o crânio de um réu, e fez com que a massa encefálica lhe saltasse sobre

os olhos, Naud disse que parecia “uma couve-flor rosada”. No histórico fuzilamento

do padre Hidalgo, as regras não previam tiro de misericórdia. Após três descargas, o

tenente Armandáriz pediu a dois dos soldados que disparassem com o cano colado

ao peito do padre. Essa pastinha é de salmão?

EB – Hadock. Não, não, acho que o fuzilamento nos traria problemas com os

militares. Não vão querer assumir as funções. Ainda mais se tivermos que fuzilar um

padre; e, alguns padres, o senhor bem sabe, o merecem.

BL – Poderia ficar a cargo da Polícia Militar...

EB – Com aquela pontaria? Imagine as cenas horripilantes, a cada execução. E isso

iria despertar ciúmes em alguns correligionários da Polícia Civil, que nos são muito

fieis. Não, Dr. Brocardo, muita gente nessa história de matar não dá certo. Mais

uísque?

BL – Obrigado, vou ficar só nesse. Tenho contraído gripe com freqüência, e tomei

medicação antibiótica.

EB – E a injeção?

BL – Não, foram cápsulas.

EB – A injeção letal, Dr. Brocardo! A injeção letal!

BL – Esta é que lhe traria problemas, meu deputado, muitos problemas com a classe

médica. Desde a primeira lei, que é de 1977, de Oklahoma, existem esses

problemas. Aliás, ainda em estudos, a Associação Médica Britânica se pronunciara;

“Não se deve esperar de nenhum médico que, no seu exercício profissional,

concorde em tomar parte na morte de um assassino condenado”. Quando houve a

primeira execução por esse processo – em Huntsville, Texas, 1982 – o diretor

médico do presídio teve a seguinte participação: 1º - examinou previamente as veias

do condenado para ver se eram adequadas; 2º - entregou a droga (tiopental sódico)

ao carrasco; 3º - supervisionou a aplicação da injeção; 4º - controlou os batimentos

cardíacos (o que não fugiria às tarefas comuns); 5º - indicou, em determinado

momento, que a injeção deveria continuar alguns minutos. Choveram

manifestações, das associações médicas do Texas e da Americana. O secretário

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geral da Associação Médica Mundial declarou que a morte, cumprida a execução.

Aqui não seria diferente, deputado. Ainda outro dia um médico mineiro chamava

essa forma de execução de “silencioso assassinato farmacológico”.

EB – É fogo. Esses médicos comunistas.

BL – Há uns detalhes que lhe agradará. Parece que em algum dos seis estados

americanos que adotaram a injeção, tomam-se três veias do condenado. Em dois

são inoculadas substâncias inócuas, e só numa droga letal. Como no pelotão de

fuzilamento.

EB – Eu chego a pensar que na votação de certas leis poderia ser introduzido algo

semelhante. De 12 botões de votação, um votaria em branco. O deputado poderia

sempre dizer: não fui eu quem aprovou aquilo. Ou, pelo menos, pensar: talvez não

tenha sido eu.

BL – Deputado, com sua licença, vou me retirar. Estou me sentindo meio febril.

EB – Será a cadeira elétrica, Dr. Brocardo.

BL – A cadeira elétrica?

EB – Sim. Tem uma certa mística, é bem ocidental. A gente torna obrigatório o uso

de um aromatizador de ambientes na sala, para evitar o cheiro de carne assada. E

cobre todo o corpo do condenado, para que a cena não deprimir, com suores

profusos, queimaduras. E qualquer resistência do bandido, tascamos mais mil volts

nele. Poderíamos aproveitar nossa mão-de-obra na área da eletricidade repressiva,

que está ociosa, operando muito abaixo do que demonstrou ser capaz, por exemplo,

nos anos Médici.

BL – Conviria então que o senhor soubesse que criminólogos americanos

identificam a origem da cadeira elétrica numa disputa comercial. Edison queria

eletrificar as cidades americanas com corrente contínua, de baixa tensão, conduzida

por cabos subterrâneos; Westinghouse era partidário da corrente alternada, de alta

tensão, conduzida por cabos aéreos. Em 1888, um operário de Westinghouse

esbarrou num cabo e morreu. Edison não perdeu a oportunidade. Além de divulgar

ao máximo o fato, construiu um aparelho – antepassado direto da cadeira elétrica –

destinado a demonstrar, pela eletrocução de animais, as desvantagens e perigos da

corrente alternada. Um tal Harold P. Brown foi o encarregado da tournée

demonstrativa. Parece que Edison quis levar sua tese a comissão parlamentar. Aí

começaria...

EB – Dr. Brocardo, isso parece história de comunista. O senhor andou lendo demais.

Vamos dormir, que esta reunião foi dura, e o corpo merece descanso.

BL – É verdade. O corpo merece descanso. Boa noite, deputado.

EB – Boa noite.

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(Pano lento)

NOTA PÓSTUMA

O deputado Exequiel (com x mesmo, cognato de exéquias) Burundanga é um

personagem de ficção. Qualquer semelhança com pessoas reais é mera

coincidência. Enquanto personagem, morrerá em 1988, num conto denominado

“Apetite Fatal”, atropelado, ao sair de sua casa para ir comprar um saquinho de

pipocas, por uma viatura policial, em mau estado de conservação, que se deslocava

para atender a um falso alarme de assalto bancário.

O personagem portanto, falece antes de ver realizado seu sonho. Deposto pelo

impeachment das armas vendidas ao Irã, Reagan comparecerá pessoalmente às

exéquias. O cabo PM que dirigia a viatura será absolvido.

Pelo contrário, Brocardo Latino existe realmente. Com o óbito de Exequiel, foi

assessorar um deputado do PMDB, depois Ministro e, em pouco tempo, benquisto

no Planalto viu-se nomeado magistrado de importante corte federal. Tornar-se-ia

famoso em 1989, pelo erudito voto vencedor proferido no processo em que se

discutia a legitimidade de uma operação 63 que o Piauí realizara com bancos sul-

africanos para financiar a implantação de cinco cadeiras elétricas. Viria para

financiar a implantação de cinco cadeiras elétricas a morrer em 1990, de pneumonia.

Suas últimas palavras foram: “factum negantis probatio nulla est”.

Os episódios, personagens, relatórios, depoimentos, normas e referências “técnicas”

sobre execução da pena de morte são todos rigorosamente verdadeiros.

O Cardápio da Morte – Tragicomédia em uma cena para uso em Laboratórios de

Interpretação de Política e Criminologia, duas ciências a cada dia mais afins. IN Batista,

Nilo. Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990.