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Bechara, Thiago Sogayar. Memória cultural. Uma abordagem sobre tradição e modernidade, centrada nas décadas de 1950 e 1960 com base na vida e na obra do compositor brasileiro Luiz Carlos Paraná (1932-1970). / Thiago Sogayar Bechara. São Paulo, s.n., 2011. 95 p. Monografia (Especialização) Fundação Armando Alvares Penteado. Departamento de Pós-Graduação (Lato Sensu) Jornalismo Cultural. Orientadores: Edilamar Galvão e Camilo D´Angelo Braz 1. Música brasileira 2. Historiografia 3. Memória cultural 4. Luiz Carlos Paraná

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Bechara, Thiago Sogayar.

Memória cultural. Uma abordagem sobre tradição e modernidade, centrada nas

décadas de 1950 e 1960 com base na vida e na obra do compositor brasileiro Luiz

Carlos Paraná (1932-1970). / Thiago Sogayar Bechara. São Paulo, s.n., 2011. 95 p.

Monografia (Especialização) – Fundação Armando Alvares Penteado. Departamento

de Pós-Graduação (Lato Sensu) – Jornalismo Cultural.

Orientadores: Edilamar Galvão e Camilo D´Angelo Braz

1. Música brasileira 2. Historiografia 3. Memória cultural 4. Luiz Carlos Paraná

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Thiago Sogayar Bechara

MEMÓRIA CULTURAL:

UMA ABORDAGEM SOBRE TRADIÇÃO E MODERNIDADE, CENTRADA NAS

DÉCADAS DE 1950 E 1960 COM BASE NA VIDA E NA OBRA DO COMPOSITOR

BRASILEIRO LUIZ CARLOS PARANÁ (1932-1970)

Monografia apresentada ao curso de Pós-

Graduação lato sensu (especialização) em

Jornalismo Cultural, da Fundação Armando

Alvares Penteado – FAAP, como exigência parcial

para obtenção de certificado de conclusão de

curso.

( ) Recomendamos exposição na Biblioteca

( ) Não recomendamos exposição na Biblioteca

Nota: ____________________________________

São Paulo, ______ de _________________ de ____/_____/_______

Professor (a)

Professor (a)

Professor (a)

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Este trabalho é dedicado:

Aos meus pais, Jaime e Giselle;

Aos meus avós Bechara, Elda, Jorge e Delva;

À minha tia Cida e meu bisavô Salomão;

À cidade de Ribeirão Claro; e

Ao Luiz Carlos Paraná (1932-1970)

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Agradecimentos

Aos meus pais, Jaime e Giselle, com todo meu amor devolvido em dobro,

pela confiança, pelo incentivo e por todos os ensinamentos.

À Giovanna, pelas leituras cuidadosas, por seus conselhos verdadeiros e seu

olhar de doçura que tanto me deu forças para prosseguir.

À Edilamar Galvão, pelos primeiros e valiosos direcionamentos a partir dos

quais este trabalho delineou-se em minha mente e meu coração.

Ao Camilo D´Angelo Braz que, tão generosamente, partilhou suas referências

comigo em todo o processo; a ele, um agradecimento especial impossível de ser

escrito.

Ao primo-filósofo ribeirão clarense Oswaldo Giacoia Junior, por sua atenção e

disponibilidade sempre tão respeitosas, ao apontar caminhos indispensáveis.

Ao Celso Favareto, pelas sugestões metodológicas que redefiniram

decisivamente o enfoque do estudo.

Ao querido amigo, ator e dramaturgo (ribeirão clarense!), Ivam Cabral, por sua

confiança e generosidade para comigo.

A todos aqueles que se envolveram e participaram deste processo de alguma

forma, nutrindo-me de incentivos e acreditando no valor de uma pesquisa como

esta.

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Carlos Paraná deixou saudade e quem o conheceu sempre lembra dele, daquele jeito tranquilo de falar, daquela genialidade ao compor. Numa de suas músicas ele disse: “Queria que nunca fosse

preciso esquecer”. Meu caro Carlos Paraná, nós não o esquecemos. Deus o tenha!

Ubiratan Lustosa

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Resumo

Bechara, Thiago Sogayar. Memória cultural: Uma abordagem sobre tradição e modernidade, centrada nas décadas de 1950 e 1960 com base na vida e na obra do compositor brasileiro Luiz Carlos Paraná (1932-1970). São Paulo, 2011. 95 pp. Monografia (Especialização). Departamento de Pós-Graduação – Jornalismo Cultural. Fundação Armando Álvares Penteado. Este trabalho concentra-se na produção musical do cantor e compositor ribeirão clarense Luiz Carlos Paraná (1932-1970). Para tanto, partiu-se da premissa de que este artista, inscrito no repertório da música popular brasileira na década de 1960, com duas canções hoje clássicas - "De Amor ou paz" e "Maria, Carnaval e Cinzas" -, sofreu um processo sistemático de esquecimento. Para avaliar as bases desse fenômeno, procurou-se fundamentação nas posições de Paul Ricoeur e Maurice Halbwachs, seguido de autores que tratam da história da música popular brasileira, caso de Zuza Homem de Mello e Ruy Castro, entre outros. Adicionalmente, para melhor compreensão dos temas propostos, o trabalho resgatou aspectos significativos da vida deste compositor, que serviram de alicerce para explicitar a evidente propensão do artista à afirmação da tradição, em meio a uma década de transformações na música popular. Com isto, a intenção foi a de interromper o período de ostracismo e incluir Luiz Carlos Paraná na pauta dos compositores que merecem atenção para uma mais acurada avaliação da sua produção musical.

Palavras-chave: Memória cultural. Esquecimento. Biografia. Música brasileira. Luiz Carlos Paraná. Jogral. Ribeirão Claro. Historiografia. Formação da cultura brasileira. Tradição. Modernidade. Resgate. Preservação.

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Abstract

Bechara, Thiago Sogayar. Cultural memory: An approach towards tradition and modernity focused on the 1950s and 1960s, based on Brazilian composer Luiz Carlos Paraná’s life and work (1932-1970). São Paulo, 2011. 95 pp. Monograph (Specialization). Post-graduation Department - Cultural Journalism. Fundação Armando Álvares Penteado. This essay is focused on the musical production of singer and composer Luiz Carlos Paraná (1932-1970), who came from Ribeirão Claro. It is based on the premise that this artist, who in the 1960s imprinted into the Brazilian popular music repertoire two now classic songs - "De Amor ou Paz" and "Maria, Carnaval e Cinzas" - , has been systematically forgotten. To evaluate the basis of this obliviousness, foundations were sought in Paul Ricoeur and Maurice Halbwachs, as well as authors that have addressed the history of Brazilian popular music, such as Zuza Homem de Mello and Ruy Castro, among others. In addition, for a better understanding of this obliviousness, this essay has restored significant aspects of the composer's life, which served as the bedrocks to make explicit the artist’s evide nt tendency to affirm tradition, midst a decade of transformations in popular music. Therefore, the intention of this piece is to interrupt this period of oblivion and include Luiz Carlo Paraná on the list of composers deserving attention for a more accurate evaluation of their musical production.

Keywords: Cultural memory. Obliviousness. Biography. Brazilian music. Luiz Carlos Paraná. Jogral. Ribeirão Claro. Historiography. Brazilian culture formation. Tradition. Modernity. Rescue. Preservation.

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SUMÁRIO

Introdução................................................................................................................09

1 As condições da memória...................................................................................14

1.1 A memória histórica.............................................................................................20

1.2 A biografia e a memória......................................................................................24

2 Um olhar analítico de intenção biográfica.........................................................28

2.1 Incursão comparativa nas temáticas..................................................................35

2.2 As paródias políticas e uma análise estética......................................................42

3 A cultura da Metrópole: tradição e modernidade............................................50

Conclusão: último canto.......................................................................................64

Referências............................................................................................................69

Anexos

1 O mundo do caipira (Antonio Candido)...............................................................78

2 Programa do show “Homens verdes da noite”....................................................83

3 Lista de imagens e documentos..........................................................................85

4 CD - Coletânea Luiz Carlos Paraná.....................................................................95

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INTRODUÇÃO

Lavrador, eu sou dos grandes Cantador, sou dos pequenos (...)

(“Último canto”, Luiz Carlos Paraná e Adauto Santos)

Este trabalho concentrou-se na produção musical do compositor paranaense

Luiz Carlos Paraná, nascido na cidade de Ribeirão Claro. Meu foco central foi o de

avaliar elementos relacionados ao esquecimento a que ele foi submetido, tanto nos

conteúdos do ambiente midiático, quanto nas referências e menções alusivas à

música popular, não obstante o destaque alcançado por ele na década de 1960,

dada sua autoria de algumas das principais canções incluídas no repertório de

grandes cantores, ou mesmo por associar seu nome ao d´O Jogral, muito mais do

que uma simples casa noturna criada por ele - um espaço de encontros e

apresentações de artistas que assumiriam grande importância no projeto de

transformação da música popular em breve.

A escolha deste tema deveu-se a dois aspectos: o primeiro deles, de ordem

particular, refere-se a um conhecimento prévio deste compositor por referências

pessoais, uma vez que possuo laços familiares com sua cidade, onde passei grande

parte de minha infância. Além do mais, apesar de não terem mantido relações de

amizade, meus pais, tios e avós tiveram a oportunidade de conhecer Carlos Paraná

e seus pais, o que, de certa forma, inscreveu em mim um interesse específico pela

busca de mais elementos desta obra, bem como do modo como ela se inseriu na

música popular.

O segundo aspecto refere-se à tentativa de refletir sobre este compositor,

tendo como contraponto a oposição entre a memória e o esquecimento e, como

consequência, tratar da problemática da tradição e da modernização, coisa que o

projeto apontava como um possível caminho analítico para se entender o

esquecimento sistemático de algumas figuras representativas do passado.

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Motivada pela perspectiva de compreender uma época de grande riqueza

cultural, à luz de uma personagem quase esquecida nos tempos de hoje, minha

investigação para a realização deste trabalho partiu da revisão do material

bibliográfico disponível sobre o contexto da época e, especificamente, sobre Carlos

Paraná (que há, embora em bem menor quantidade e de forma pulverizada, em

bibliografias pertinentes a outros temas).

Para tanto, alguns autores tiveram destaque na hora de iluminar o caminho a

ser trilhado. Alguns deles, como Helvio Borelli, Osvaldinho da Cuíca e Marcus

Pereira, trouxeram à tona o contexto da noite paulistana nas décadas de interesse

desta pesquisa. Outros, como Sérgio Cabral, Ruy Castro, Rosa Nepomuceno e Zuza

Homem de Mello, esclareceram percursos históricos singrados pelo cancioneiro

popular no País, de modo mais amplo. Sem Ubiratan Lustosa, ainda, grande parte

da memória radiofônica do Paraná perder-se-ia (ele clareou, ainda, o momento da

chegada de Carlos Paraná em Curitiba, no início de sua carreira artística); e

François Dosse, por sua vez, abordou em seu “O desafio biográfico: escrever uma

vida” (2009), o mérito específico das reflexões acerca do gênero biográfico, tratado

aqui como uma das possíveis ferramentas de construção da memória.

Por meio desses autores, pôde-se adentrar aspectos e características

peculiares da época, relativas, claro, às questões culturais que indicam novas linhas

de pesquisa, fornecendo nomes a ser entrevistados, veículos midiáticos a ser

consultados, ou mesmo ampliando esta bibliografia com dados complementares.

A metodologia de pesquisa, portanto, esteve fundamentalmente ancorada

num tripé que parece ter tido equivalência entre suas partes. Foram elas, a já citada

pesquisa bibliográfica referente ao tema ou ao contexto que o circunda; o trabalho

de campo que compreende as entrevistas com pessoas que conheceram Luiz

Carlos Paraná e estiveram presentes em sua vida e na criação de seu O Jogral,

como amigos, parentes, artistas, namoradas, garçons, porteiros, etc; e, por fim, a

consulta à documentação que deu conta de reconstituir grande parte da vida do

compositor, na busca de que esses dados indicassem caminhos esclarecedores

para a compreensão de sua formação artística e estética, bem como da época que

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aqui se busca analisar (certidão de nascimento, atestado de óbito – de irmãos e

pais, inclusive -, registros de imóveis, carteiras profissionais, bilhetes amorosos,

fotografias autografadas, formal de partilha, boletins escolares, registro de Primeira

Comunhão, partituras impressas, artigos de jornal, artigos científicos, revistas,

documentários musicais, etc.).1

Entre os autores aqui citados, talvez Marcus Pereira seja o que mais se

aproximou de Carlos Paraná. Seu livro sobre a história de O Jogral - talvez o único

dedicado exclusivamente a este tema - constituiu imprescindível fonte de

informações, as quais apenas ele, que conviveu tão de perto com o compositor e foi

sócio minoritário do bar, poderia deter.

A importância dos demais autores está no fato de que nos fornecem, em sua

maioria, os ambientes vivenciados pelo compositor, as possíveis e prováveis

influências por ele recebidas, dentre outros dados que facilitam a compreensão do

cenário em que a personagem se desenvolve – tendo como respaldo as

confirmações obtidas por seus familiares e amigos.

Autores como Mário de Andrade, Glauco Barsalini, Renato Ortiz, Antonio

Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Maurice Halbwachs, Paul Ricoeur e Jacques

Le Goff foram igualmente fundamentais para o esclarecimento das questões

relativas à música, à memória e ao esquecimento, tratadas na esfera da cultura, no

recorte histórico e da hermenêutica.

Assim, trataremos o tema proposto em capítulos definidos dentro da

seguinte estrutura: na primeira parte, intitulada “As condições da memória”,

abordaremos a temática da memória e do esquecimento, definidos por ações sociais

estimuladas e introjetadas pela mídia ou pelos meios de comunicação, mas nunca

1 É importante mencionar que nem toda a documentação coletada serviu diretamente à análise das

questões pretendidas por este trabalho. No entanto, foi por meio desta gama aparentemente excessiva que se pôde mergulhar de forma íntima no universo pessoal e profissional do compositor, aproximação indispensável para se compreender sua personalidade e, consequentemente, minimizar as chances de se incorrer em erro quando das reflexões de ordem mais subjetiva, igualmente necessárias.

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espontâneas. São, neste sentido, propícias à preservação de certos fatos, assim

como ao soterramento de outros.

No segundo capítulo, “Um olhar analítico de intenção biográfica”,

apresentaremos aspectos biográficos de Luiz Carlos Paraná, uma vez que a história

pessoal do compositor oferece elementos relevantes para o entendimento da sua

postura, mais afeita ao comportamento reservado, e de suas posições, sejam em

verso ou em estilos musicais. Incluímos, também, a fundação de seu bar O Jogral,

procurando destacar neste recorte, aspectos contrastantes da personalidade do

artista, ao conviver com a tradição da música popular, com o acalorado debate

político em um país que convivia com uma ditadura militar e com novas tendências,

representadas pelo movimento tropicalista, assim como pela Jovem Guarda.

O enfoque da terceira parte estará posto sobre o contexto histórico das

principais etapas de sua vida, sem nos esgueirarmos, contudo, de um breve

panorama das décadas anteriores e também da dita “cultura da Metrópole”. O termo

foi generosamente sugerido pelo filósofo e pesquisador Celso Favareto, enfocando,

assim, os aspectos modernizadores de São Paulo nas décadas de 1950 e 1960, em

menção específica à Galeria Metrópole, onde nasceu a casa noturna de Carlos

Paraná.

Perceber que tipo de cidade era São Paulo nesta época, bem como quais os

principais fatos culturais que nela se desenrolam neste momento, emoldura melhor o

modo como o autor inseriu-se neste período de transição e refletiu isso em sua obra

e seus ideais para todo o País. Usarei, para melhor evidenciar tais relações, letras

de músicas de sua autoria e mesmo aspectos breves de sua composição melódica.

Desta forma, pontua-se com mais nitidez o atrito nele existente entre o

tradicional e o moderno. Daí o capítulo chamar-se “A cultura da Metrópole: tradição

e modernidade”. Este será o momento em que a experiência interiorana de Paraná

consagrará o choque com um novo Brasil; choque que ele já vinha sofrendo nos

anos passados em Curitiba e no Rio de Janeiro, antes de aportar em São Paulo.

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Em “Conclusão: último canto” buscou-se, por fim, a ligação entre os

elementos expostos nos capítulos anteriores. A reunião dos aspectos tratados,

estabelecida de modo a, dela, obter-se relações originais no universo da canção

popular brasileira, abre caminho para uma possível resultante argumentativa que

procura coroar os temas gerais aqui explorados sobre memória e esquecimento.

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1 AS CONDIÇÕES DA MEMÓRIA

O que lembro, tenho Guimarães Rosa

“Se o que vemos hoje toma lugar no quadro de referências de nossas

lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptam ao conjunto de

nossas percepções do presente” (HALBWACHS, 2006, p. 29.). É partindo desta

noção de interação existente em nosso processo de rememorar, em que as

lembranças servem ao mesmo tempo de reservatório e plataforma para a seleção do

que será apreendido, que o sociólogo francês Maurice Halbwachs (1877-1945) em

“Memória coletiva”, inicia sua discussão acerca do tema. É na linha formulada por

ele, que este trabalho tem início, ao buscar noções centrais que norteiem a temática,

aplicada à realidade social brasileira.

Assim sendo, vale o destaque de que trata inicialmente Halbwachs; o de que

tanto mais intenso apresenta-se o sentimento de se reviver determinado fato, quanto

mais possibilidades de compartilhamento daquela lembrança com outrem houver.

Noutras palavras, o papel concreto do testemunho revela-se sempre fundamental

para se reforçar ou enfraquecer a memória de determinado evento, tendo em vista,

contudo, a noção abstraída de que o primeiro testemunho acionado no

reconhecimento de qualquer coisa é sempre o nosso, em particular. Tal ideia

relaciona-se de forma justa às posições de Paul Ricoeur, quando o filósofo francês

postula que lembrar-se de algo é sempre, e de imediato, lembrar-se de si mesmo

(RICOEUR, 2007).

No entanto – e não obstante a alusão feita à importância do testemunho de

outros indivíduos neste processo de ordem aparentemente abstrata -, Halbwachs

pontua também outro modo de entender a questão; o de que, mesmo que

vivenciada por apenas um indivíduo, sua memória de um fato será, em última

análise, coletiva. Isto porque referências advindas de origens as mais diversas são

necessariamente chamadas em causa subjetivamente para que se efetive o

processo de rememoração, seja de eventos, locais, pessoas.

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Isto acontece porque jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem. (...). Suponhamos que eu passeie sozinho. Será que se poderá dizer que deste passeio guardarei apenas lembranças minhas? (...) Passando diante de Westminster, pensei no que me havia dito meu amigo historiador [por exemplo] (ou, o que dá no mesmo, no que li sobre a abadia em alguma história). (...) Outras pessoas tiveram essas lembranças em comum comigo. Mais do que isso, elas me ajudam a recordá-las (...) (HALBWACHS, 2006, p. 30 e 31)

Entretanto, isto não “garantiria” o reconhecimento das mesmas lembranças

por essas outras pessoas mencionadas, evidentemente. E, ainda que vivenciadas

em conjunto de fato, essas experiências seriam representações nas memórias das

pessoas por meio de imagens e sensações distintas entre si - daí a grande ameaça

de confusão entre memória e imaginação, ambas “associadoras” de ideias por meio

“desse tornar-se imagem da lembrança [, o que compromete] a ambição de

fidelidade na qual se resume a função veritativa da memória” (RICOEUR, 2007, p.

26).

Distintos níveis de intensidade de envolvimento com a lembrança de algo,

retoma Halbwachs, geram para cada membro do grupo que detém esta memória,

um modo outro e particular de vinculação, fruto de incontáveis variantes.

Será que por isso a memória individual, diante da memória coletiva, é uma condição necessária e suficiente da recordação e do reconhecimento das lembranças? De modo algum, pois se esta primeira lembrança foi suprimida, se não nos é mais possível reencontrá-la, é porque há muito tempo não fazemos parte do grupo na memória do qual ela se mantinha. Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos de contato entre uma e outras para que a lembrança que nos fazem recordar venha a ser reconstruída sobre uma base comum (HALBWACHS, 2006, p. 39)

Segundo o autor, a memória individual se preserva e recria ao longo do

tempo como parte integrante de uma memória coletiva, isto é, de algo em comum

que fez e continua fazendo parte de uma mesma sociedade ou grupo. Todavia,

como se verá melhor adiante, todo grupo é finito e uma memória coletiva não se

preserva senão até o término da vida de seu último membro. Tudo o mais, então,

será fruto de histórias deixadas em registro e retransmitidas - nunca de um processo

legítimo de lembrança pessoal.

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É sabido que “(...) a História se ocupa do que ficou documentado, e a

documentação se refere geralmente à vida das camadas dominantes” (CANDIDO,

2003, p. 23). Isto é: da documentação da memória coletiva de um grupo bastante

específico, que possui sua ideologia - crenças e um conjunto particular de

interesses, sejam estes políticos, econômicos, afetivos e que, claro, servem de filtro

para o mundo (e, neste sentido, como “critério de seleção” psíquica e documental

dos eventos a serem retidos ao longo do tempo e retransmitidos, por meio de

incontáveis formas narrativas).

O ato narrativo, aliás, é visto por autores como o historiador francês Jacques

Le Goff, como um dos principais traços, por sua vez, do ato mnemônico. É neste

gesto, relativo à rememoração, que a própria linguagem como produto social recria e

redimensiona o fato ou objeto ausente, que se narra, conforme encontramos em seu

livro “História e memória” (2003). Daí o aparecimento da escrita ser considerado pelo

historiador como decisivo no processo de transformação da memória coletiva.

“Histórias, culturas e memórias são produzidas e armazenadas para vencer

de modo brando, a irremediável questão do descarnamento humano”, explicou Maria

Lucia Santaella2. “A cultura só evolui ao passo que preserva a memória do passado

e, neste sentido, a implantação do código alfabético pelos gregos, por exemplo, é

fundamental”.

“Inúmeros documentos mesopotâmicos do I milênio a.C. [aliás] contém a inscrição: ‘Para que não se esqueça!’, revelando uma concepção de História. Para eles, a palavra escrita deveria preservar uma lembrança segura do passado. Os escribas elegiam, assim, alguns fatos históricos como sendo dignos de memória e, portanto, de registro histórico escrito” (POZZER, 2004, p. 87 e 88)

“Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores [, aliás, dos]

mecanismos de manipulação” (LE GOFF, 2003, p. 422) do que é registrado nas

2 Doutora em Teoria Literária e Livre-Docente em Ciências da Comunicação, Maria Lucia Santaella

Braga concedeu uma entrevista para este estudo no dia 3 de julho de 2011.

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memórias coletivas - precisamente por advirem do processo de luta pelo poder e,

portanto, pelo controle do que se tornará História.

Cada grupo social busca, de fato, “persuadir” seus membros, visando à

produção em cada um, de um sentimento de originalidade e autoria sobre as

inferências, associações, considerações ou emoções que, na verdade, “nos foram

inspiradas pelo nosso grupo”, tamanha a noção de harmonia que se estabelece para

que vibremos em uníssono no coletivo. “Quantas vezes expressamos, com uma

convicção que parece muito pessoal, reflexões tiradas de um jornal, de um livro ou

de uma conversa!” (HALBWACHS, 2006, p. 64).

Não é exagero realçarmos, ainda, que em primeiro plano no processo de

preservação coletiva de um fato, sobrenadam sempre lembranças de experiências

comuns à maioria dos integrantes de um grupo. Contudo, acerca do tema,

Halbwachs é preciso ao fornecer o contraponto fundamental de que

se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo. Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado, diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influências que são todas de natureza social (HALBWACHS, 2006, p. 69, grifo do autor)

O conceito de memória, apesar de aludir originalmente ao ramo da

psicologia, da psicofisiologia, da neurofisiologia, da biologia e mesmo da psiquiatria

– sobretudo quando das questões do esquecimento (em que a amnésia se

caracteriza como a principal perturbação da memória) -, faz também com que tal

caráter fisiológico aponte metafórica e concretamente para os dados relativos à

memória histórica e social.

“A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos

em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas” (LE GOFF, 2003, p. 419).

Por meio delas, atualizam-se dados passados ou representados pelo homem como

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passados, tornando-as ferramenta na noção de aprendizagem, se evocada no

universo da educação, por exemplo. A memória intervém, contudo, não apenas na

ordenação de vestígios como numa releitura desses vestígios.

Quando uma lembrança é contada, escreve o sociólogo e antropólogo

brasileiro Renato Ortiz em “A moderna tradição brasileira”, “sabemos que a memória

se atualiza sempre a partir de um ponto do presente” (ORTIZ, 1994, p. 78) e que,

portanto, a memória “constrói o ‘real’, muito mais do que o resgata” (SEIXAS, 2004,

p. 51). Assim, pode-se refletir que o presente e suas demandas socialmente

estruturadas é que determinam quais memórias serão evocadas no futuro para a

validação da condição do momento em que foram construídas:

Os relatos de vida [por exemplo] estão sempre contaminados pelas vivências posteriores ao fato relatado, e vêm carregados de um significado, de uma avaliação que se faz tendo como centro o momento da rememorização (ORTIZ, 1994, p. 78)

Segundo o historiador francês Pierre Nora (1984) citado por Seixas (2004), a

memória coletiva – enquanto tradição vivida -, no entanto, é também construída, por

sua vez, pela memória histórica – reconstrução intelectual. Trata-se, portanto, de um

processo mútuo em que uma alimenta a outra ao longo dos tempos, ainda que não

se confundam de nenhuma maneira. Isso porque Nora sugere que, para o

historiador, há a necessidade da distinção entre a memória validada no presente e a

memória que será investigada no processo da pesquisa histórica. Em si, essa

posição de Nora sugere, antes, os cuidados para o processo da história não ser

cooptado pelo clamor e pelas tônicas do presente.

Antes, porém, de nos aprofundarmos no conceito de memória histórica para

a melhor compreensão de sua relação com a memória coletiva, um retorno à Idade

Média – período primordialmente estudado por Le Goff – ajudar-nos-á a resgatar,

para efeito de registro, as origens da terminologia: inicialmente mémoire, “surgida

desde os primeiros monumentos da língua, no século XI. No século XIII, é

acrescentada mémorial (que diz respeito (...) a contas financeiras), e em 1320,

mémoire, no masculino” (LE GOFF, 2003, p 455), no sentido de um dossiê

administrativo.

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Os anos 1400 testemunham o surgimento de mémorable, quando do

“apogeu das artes memoriae” e da renovação de uma literatura tradicionalista, até

que em 1552 surgem os mémoires.

O século XVIII cria, em 1726, o termo mémorialiste e, em 1777, memorandum, derivado do latim através do inglês. Memória jornalística e diplomática: é a entrada em cena da opinião pública, nacional e internacional, que constrói também a sua própria memória. Na primeira metade do século XIX, presencia-se um conjunto massivo de criações verbais: amnésie, introduzido em 1803 pela ciência médica, mnémonique (1800), mnémotechnie (1823), mnémotechnique (1836) e mémorisation, criados em 1847 pelos pedagogos suíços, conjunto de termos que testemunha os progressos do ensino e da pedagogia; finalmente, aide-mémoire que, em 1853, mostra que a vida cotidiana foi penetrada pela necessidade de memória. Finalmente, em 1907 o pedante mémoriser parece resumir a influência adquirida pela memória em expansão (LE GOFF, 2003, p 455)

A memória eletrônica faz parte, aliás, desta verdadeira revolução da

memória que marcou o desenvolvimento do século XX, sobretudo após a década de

1950, no contexto do pós-guerra. Foi durante o conflito mundial cessado em 1945

que apareceram grandes máquinas de calcular. Elas integram um processo de

aceleração da história – em particular da história técnica e científica iniciada em

1860 – e, neste sentido, da “longa história da memória automática” (LE GOFF, 2003,

p. 462), que desaguaria em território brasileiro, na veloz implantação da Internet a

partir de meados da década de 1990, e no desenvolvimento de ferramentas a ela

ligadas posteriormente, como o buscador Google – que nada mais desempenha que

um papel de prolongação externa e ampliada da memória humana, conforme

evidenciou Maria Lucia Santaella, em nossa já citada entrevista.

A noção de memória como faculdade intelectual ligada ao conhecimento,

“alimentou [entretanto] toda a tradição platônica e neoplatônica que, por sua vez,

fecundou a Idade Média, de onde, a partir da importância da concepção agostiniana

da memória, influenciou toda a cultura racionalista” (SEIXAS, 2004, p. 39),

encontrada posteriormente.

A adequação entre memória e história possui, portanto, raízes sólidas e longas. (...) Recentemente, a partir da década de 80, a historiografia (...) toma consciência de que a relação memória-história é mais uma relação de conflito e oposição do que de complementaridade, ao mesmo tempo – aqui se inscreve a novidade da crítica – em que coloca a história como

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senhora da memória, produtora de memórias. (SEIXAS, 2004, p. 39, grifo do autor)

Retrospectivamente: vimos que memória individual e coletiva se

interpenetram sem perder de vista seus limites próprios; que do mesmo modo que a

memória individual pode se apoiar na coletiva ao visar à confirmação ou

especificação de lembranças ou então o preenchimento de alguma lacuna, também

a memória coletiva contém as individuais sem que se confundam, de maneira que

“se às vezes determinadas lembranças individuais também a invadem, estas mudam

de aparência a partir do momento em que são substituídas em um conjunto que não

é mais uma consciência pessoal” (HALBWACHS, 2006, p. 72).

Entretanto, tendo em vista a questão do testemunho, é também por meio

dele que se dá esse outro modo de rememoração ligado às noções de história. Mas

não por meio dele tido como relato externo que outras pessoas façam de fatos dos

quais também nós fizemos parte de algum modo – e que compõe, junto ao nosso

próprio relato, portanto, uma expressão da assim chamada memória coletiva.

1.1 A memória histórica

Tratemos, com base neste outro modo de rememoração supracitado, dos

testemunhos registrados de gerações anteriores e da chamada memória histórica.

Há fatos que ocupam lugar de destaque na memória de uma nação, sem ter sido por

ela toda vivenciados - considerada a passagem do tempo como impeditivo para que

tantas gerações experimentem as mesmas vivências e, assim, possam compartilhar

de uma memória coletiva perene, digamos. Se há fatos dos quais só se tem notícia

por meio de jornais, livros, testemunhos de quem deles participou e/ou documentos

de ordens as mais variadas, conforme mencionado, “quando os evoco, sou obrigado

a me remeter inteiramente à memória dos outros” (HALBWACHS, 2006, p. 72),

gerando o que Maurice Halbwachs chamou de uma memória de empréstimo.

Assim, o autor faz a distinção entre dois tipos contrastantes de memória, que

podem ser chamadas de interna e externa, pessoal e social, ou, mais exatamente,

autobiográfica e histórica.

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A primeira receberia ajuda da outra, já que afinal de contas a história de nossa vida faz parte da história geral. A segunda, naturalmente, seria bem mais extensa do que a primeira. Por outro lado, ela só representaria para nós o passado sob uma forma resumida e esquemática, ao passo que a memória da nossa vida nos apresentaria dele um panorama bem mais contínuo e mais denso (HALBWACHS, 2006, p. 73)

O que postula Halbwachs é a identificação da memória coletiva como um

atividade “natural, espontânea, desinteressada e seletiva (...), ao contrário da

história, que constitui um processo interessado, político e, portanto, manipulador”

(SEIXAS, 2004, p. 40). Pierre Nora (1984) citado por Le Goff (2003) complementa,

por sua vez, que este tipo de lembrança existente no “vivido dos grupos” opõe-se a

priori quase termo a termo à memória histórica. O que ficou do passado para estes

grupos, ou o que eles na realidade fizeram de seu passado coletivo extingue-se com

seus integrantes. Só a partir daí, desta decomposição ou apagamento da memória

social, é que começa efetivamente o que se chama de História; somente quando os

grupos desaparecem por completo, donde se infere certa inadequação do termo

memória histórica que, como diz Halbwachs, associa duas expressões que se

antagonizam em diversos aspectos, ainda que se compreenda de modo genérico, o

que ela parece querer exprimir.

Enquanto subsiste uma lembrança, é inútil fixa-la por escrito ou pura e simplesmente fixa-la. A necessidade de escrever a história de um período, de uma sociedade e até mesmo de uma pessoa só desperta quando elas já estão bastante distantes no passado para que ainda se tenha por muito tempo a chance de encontrar em volta diversas testemunhas que conservam alguma lembrança (...). Como poderia a história ser uma memória, se há uma interrupção entre a sociedade que lê essa história e os grupos de testemunhas ou atores, outrora, de acontecimentos que nela são relatados? É claro, um dos objetivos da história talvez seja justamente lançar uma ponte entre o passado e o presente, e restabelecer essa continuidade interrompida. Mas como recriar correntes de pensamento coletivo que tomam seu impulso no passado, enquanto só temos influência sobre o presente? (HALBWACHS, 2006, p. 100 e 101)

Atualmente, a Nova História ou História das Idéias busca a criação de rigor

científico, mesmo incluindo elementos novos no processo de pesquisa; tais como os

hábitos e os valores, como pontua Le Goff. Este processo, partindo da memória

coletiva, pode ser considerado uma revolução da memória que “constitui em parte o

seu saber com os instrumentos tradicionais, mas diferentemente concebidos” (LE

GOFF, 2003, p. 467).

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A segunda metade do século XX e a evolução de suas sociedades realçam,

cada vez mais, a importância que a memória coletiva desempenha, integrando as

grandes questões “das sociedades desenvolvidas e (...) em vias de

desenvolvimento, das classes dominantes e (...) dominadas, lutando, todas, pelo

poder ou pela vida” (LE GOFF, 2003, p. 469 e 470). Noutras palavras, as sociedades

cuja memória coletiva se ancora preponderantemente na oralidade são as que

melhor nos permitem distinguir os processos históricos de luta e dominação.

No século XXI, explica Seixas, a humanidade colhe os frutos de um

fenômeno ocorrido nas últimas décadas do século anterior. Qual seja, certa

obsessão comemorativa que nos faz sentir sob a batuta de um “império da memória

(e de seu correlato, o esquecimento)” (SEIXAS, 2004, p. 37 e 38). Entretanto, pontua

Halbwachs, “não é absolutamente por má vontade, antipatia, repulsa ou indiferença

que [uma sociedade] esquece uma quantidade tão grande de fatos e personalidades

antigas” (HALBWACHS, 2006, p. 105), mas por uma razão muito simples; a de que

os grupos sociais detentores de determinadas lembranças desapareceram ou

encontram-se em vias de se dissolverem.

Aliás, é difícil dizer em que momento desapareceu uma lembrança coletiva, e se ela saiu realmente da consciência do grupo, precisamente porque basta que se conserve em uma parte limitada do corpo social para que ali sempre se consiga reencontrá-la (HALBWACHS, 2006, p. 105)

Tal fenômeno relaciona-se de forma íntima com o processo de lembrança e

esquecimento da personagem analisada por este trabalho, sobre quem se tratará no

capítulo seguinte de modo pontual. Isto porque Luiz Carlos Paraná e seu bar O

Jogral caracterizam-se, primordialmente, por gerar em torno de si um grupo social

bastante específico, pequeno, mas talvez por isso mesmo tão frágil no sentido de

que esteve sujeito ao soterramento de sua memória coletiva e documentação

histórica.

Em 2000, retoma Seixas em seu artigo, com a comemoração dos 500 anos

de descobrimento do Brasil, o país passou por uma série de eventos que reavivaram

o fenômeno de caráter obsessivo supracitado, o que aparenta certo paradoxo, dada

nossa fama de nação “sem memória” e carente de manifestações do gênero,

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sobretudo quando se fala em recuperar a história de parcelas excluídas do nosso

povo. Índios, negros, sem-terra e estudantes são exemplos de grupos que

constituem verdadeiramente nossa formação e não participam da escritura de nossa

história oficial com suas memórias coletivas.

Segundo Maria Lucia Santaella, ainda em depoimento para este trabalho, o

Brasil caracteriza-se, de fato, como uma nação que se relaciona levianamente com

sua memória:

Nosso país não tem um passado do qual se orgulhar, dado o tipo de colonização de extração que sofremos (daí não possuirmos grande peso de tradição). Não há respostas peremptórias, mas sim hipóteses, neste aspecto. Nosso passado além de muito recente, é ralo, no sentido de não ter uma memória histórica de engrandecimento. Nós começamos a desabrochar culturalmente a partir do final do século XIX, apenas. E a tradição, em termos gerais, faz parte da constituição da identidade de uma nação. Por isso, para nós essa questão é complicada. Nossa identidade é híbrida, como explica Néstor Garcia Canclini, no livro “Culturas híbridas”. Segundo ele, as culturas contemporâneas são misturas não apenas de diferentes etnias, mas de signos antagônicos que aqui convivem, como erudito/popular, trabalho/lazer. Isso até mais intensamente no Brasil do que na América Latina em geral. É também o que diz Sergio Buarque de Holanda quando trata da interpenetração do público e do privado, em “Raízes do Brasil”. Além disso, se pensarmos que a história é sempre contada pelo ponto de vista das classes dominantes, no Brasil não há também uma classe dominante unificada, com um só ponto de vista. Não há um uníssono ideológico, de modo que até essa documentação também fica fragmentada, além de diversa. Acho até mais importante pensarmos na questão da diversidade, porque ela produz um tipo de visão caleidoscópica da realidade brasileira. Para concluir, há a questão da nossa relação com o tempo, que é experimentado de maneira acelerada, sempre mirando o futuro, sem a vivência do presente necessária para a construção de uma tradição. E, claro, a educação brasileira, que está falida. Não se trata de negarmos nosso passado porque negar dá trabalho, requer primeiro o reconhecimento. Mas é uma característica da constituição da nossa cultura. Somos levianos e negligentes mesmo. A mesma leviandade que, em contrapartida, traz nossa alegria e espontaneidade.

3

Com tais ponderações, a pesquisadora traça um panorama que justifica, em

grande medida, o sentimento de atração e valorização do brasileiro pelo passado

europeu, já que, segundo ela, não temos o nosso, de que nos orgulhar. “Se não nos

engrandecemos com nossa história, não há razão para querermos preservá-la por

meio de documentação”, pontuou. “Com isso, tudo o que nos remete à pobreza, à

3 Considerações de Maria Lucia Santaella, em sua entrevista para este trabalho concedida no dia 3

de julho de 2011.

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colonização, ao artesanato, à música local, é repudiado e associado como inferior.

Valorizamos, assim, o que vem de fora!”.

Para a professora, contudo, esboça-se recentemente no Brasil um

movimento de documentação, constatado também por inúmeros autores, e visto por

Santaella como indício claramente positivo do princípio de reversão dessas

características – “desde que não representem mais uma das modas das quais o

brasileiro é tão adepto”, observa.

A crescente revalorização da memória, tanto na esfera individual como nas práticas sociais ou mesmo no interior da historiografia, o acúmulo de falas de memória, sua operacionalização cada vez mais eficaz, o direito e o dever de memória reivindicados por inúmeros grupos sociais e políticos, convivem com um movimento inverso, que aponta um descaso ou fragilidade teórica realmente instigantes (...). Em uma palavra, muito se fala e se pratica a “memória” histórica – o boom atual da história oral e das biografias e autobiografias é, nesse sentido, bastante expressivo -, mas pouquíssimo se reflete sobre ela. (SEIXAS, 2004, p. 37 e 38)

Desta forma, para além de se trazer à tona dados biográficos ou movimentos

históricos perdidos, bastante proveitoso revela-se o aprofundamento sistematizado

nos processos pelos quais a memória torna-se, neste caso, parte das agendas

futuras. A música popular no Brasil esqueceu Luiz Carlos Paraná por ele não

integrar o “real” em funcionamento, o qual evoca outras memórias. Buscaremos, a

partir de então, uma maior aproximação dessa discussão com o gênero biográfico e

com seu possível papel no contexto atual de resgates historiográficos.

1.2 A biografia e a memória

A biografia constitui-se como um gênero por natureza híbrido, além de

extremamente controverso. Desde a Antiguidade, verificam-se registros de vidas de

personalidades notórias nas sociedades, como reis, imperadores e cientistas. Por

dois mil anos aproximadamente, o gênero sofreu por parte de inúmeros autores,

grande discriminação e uma distinção clara em relação à História, sendo visto

mesmo como representante de uma categoria menor, compósita, problemática e,

não raro, impossível de realizar-se. Isto por transitar tão sem cerimônia entre os

ramos da ciência e das artes, valendo-se de técnicas literárias de construção

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narrativa, tanto quanto de metodologias de pesquisa e recursos científicos de áreas

como a historiografia para a reconstituição de fatos.

O caráter de “impureza” verificado em tais procedimentos parece ter sido

responsável, em grande medida, pelos olhos que maldisseram a biografia, legando

certo mal-estar acadêmico sobre a estrutura narrativa que tanta aceitação possui

entre seu público leitor. Apesar de bastante antigo e de ter percorrido fases ao longo

da História (em que o ato de escrever vidas marcou-se por diferentes tipos de

paradigmas reguladores – sobretudo do critério adotado sobre a escolha das

personagens), o gênero biográfico tem ganhado maior atenção nas últimas décadas

– sobretudo a partir dos anos 1980, com uma explosão editorial verificada em muitos

países - num processo de revitalização; e seu gradativo aprofundamento acadêmico

tem, inclusive, gerado trabalhos acerca da compreensão do estilo em si, e de

reflexão sobre o fazer biográfico e sua relevância para uma análise mais

aprofundada de determinada época histórica.4

Fala-se, com isso, em uma espécie de retorno da biografia, o que na

realidade caracteriza certa imprecisão, dado o fato de que o gênero nunca deixou

efetivamente de ser produzido e consumido. Pode-se pensar, contudo, que

[os] motivos de interesse atual pela biografia podem ser agrupados em dois eixos interligados: um primeiro que diz respeito aos movimentos da sociedade, e um segundo que se refere à evolução do conhecimento histórico, a partir das influências interdisciplinares. No primeiro eixo destaca-se, além de uma importância inicial da experiência democrática depois da Primeira Guerra Mundial, um reforço enorme do individualismo, constatado por muitos dos autores: cada vez mais o indivíduo tem seu espaço na sociedade e cada vez mais o homem se detém nele mesmo. Também tem seu papel o debate sobre a liberdade do indivíduo e sua relação com a sociedade, por meio da discussão das normas e valores, a partir das desilusões já muito discutidas da crise do marxismo e das utopias. Além de tudo isso, a mídia entretém hoje uma grande fome de imagens e de testemunhos, uma enorme curiosidade sobre a vida dos outros: quer-se “consumir a vida dos outros”, próximos e longínquos. Acho que o grande e recente boom da memória pode-se entender também nessa linha (próxima fundamentalmente à perda de identidade causada pela massificação,

4 Tal explosão, ressalte-se, vive em aparente antagonismo com a amnésia individual de nosso tempo,

como se verá melhor adiante. A eclosão do fenômeno deve-se, ainda, à complementaridade e à

interpenetração dos seis tipos de formações culturais classificados por Maria Lucia Santaella como

culturas oral, escrita, impressa, das massas, das mídias e digitais, as quais propiciam, na evolução de

seus cruzamentos, maiores possibilidades de produção e acesso à documentação histórica.

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midiatização e pela dita globalização atuais) (BORGES, 2004, p. 288 e 289, grifo do autor)

O que Pierre Nora, aliás, identifica em seu artigo “Entre memória e história: a

problemática dos lugares” (1984), é justamente essa relação existente entre o

desejo de memória tão premente da contemporaneidade e a problemática da

mundialização vinculada à cada vez maior atuação da mídia nas sociedades. Com

isso, verifica-se um processo intenso de aceleração do tempo refletido na história e

no dinamismo com que ela passa então a ser registrada, o que se mostra

devastador.

Fatos veiculados pela mídia (e pelas ditas novas mídias) em tempo real,

forjam a sensação de um eterno presente e criam, de certa forma, com tal

aceleração, um novo modo de se fazer e se relacionar com a questão da

documentação histórica – e, consequentemente, de sua preservação, já que a

rapidez de nosso século rema na contramão da preservação e reintegração de

vestígios.

Evidentemente, a construção textual nos mais diversos gêneros vê-se hoje,

por conta disso, diante do desafio de readaptar-se a esta nova realidade. Sobre o

processo de construção narrativa da biografia e seu encadeamento de fatos, vale o

registro do que o jornalista e professor Edvaldo Pereira Lima ajuda a conceituar em

“Páginas ampliadas”, quando traça o panorama mais amplo que tão bem se aplica

ao caso dos textos biográficos, em particular:

Não se trata apenas de armar uma sequência após outra na dimensão temporal e de distribuí-la, como elos de correntes, no espaço. É também uma questão de plantar as ações-chave ao longo do texto, de ancorar a narrativa em pilares localizados de tal sorte que não deixem o teto desabar, para vergonha das paredes nuas. Há também a preocupação com a sequência de conflitos menores, que no seu conjunto somativo estruturam o grande conflito central da obra. (LIMA, 2004, p. 166)

Interpretar uma vida é tarefa que, ademais, abrange problemas de extrema

complexidade. Envolve diretamente elementos constituintes de nossas próprias

vidas e de pessoas próximas a nós, defrontando-nos irreversivelmente com o

processo psicanalítico da projeção, como explicou o historiador francês François

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Dosse em seu livro “O desafio biográfico: escrever uma vida” (2009). Bastante

comum – e até necessária –, a identificação que se estabelece entre biógrafo e

biografado integra o caráter obsessivo que envolve invariavelmente a produção de

uma pesquisa similar.

Assumido de forma consciente e responsável, este mergulho resulta,

sobretudo, em honestidade intelectual e ideológica por parte do autor que, na

verdade, não pode produzir nada além de sua leitura pessoal daquela trajetória e

conjunto de fatos. No moderno paradigma do gênero, aliás, explica Vavy Pacheco

Borges (2004), o biógrafo encontra-se mesmo implicado na relação, sem

julgamentos e, ao mesmo tempo, sem imparcialidade, mas buscando estabelecer as

relações para a compreensão/aceitação/perdão da personagem. “A biografia

histórica”, segundo Le Goff (1999) citado por Borges (2004, p. 297) “é uma das

maneiras mais difíceis de se fazer história”.5

“A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela

está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,

inconsciente de suas deformações sucessivas (...)” (NORA, 1993, p. 9). Neste

sentido:

O historiador que recolhe os testemunhos, documentos e vestígios e forma o arquivo, na maioria das vezes não presenciou os acontecimentos aos quais se volta. Ele é aquele que ouve, que se esforça para tirar do esquecimento a história. É ele ainda aquele que põe as diferentes versões e provas em conflito na discussão pública na busca de estabelecer uma versão verossímil – já que uma versão absolutamente verídica parece impraticável (CAZARIM, 2009, p. 10)

É sobre premissas e parâmetros metodológicos que operem dentro desta

lógica, que as análises por este trabalho propostas daqui por diante ancoram-se, ao

ter como ponto de referência a pesquisa biográfica por este autor produzida, desde

dezembro de 2008. Está nela, a origem dos dados pertinentes à discussão proposta

pelo presente estudo e que comporão o quadro histórico capaz de revelar

mecanismos por meio dos quais a obra de Carlos Paraná desvinculou-se da

memória da música brasileira, ao longo dos anos.

5 Jacques Le Goff, “Introdução”, In: São Luís: biografia. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 29.

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2 UM OLHAR ANALÍTICO DE INTENÇÃO BIOGRÁFICA

A biografia histórica hoje reabilitada não tem por vocação esgotar o absoluto do “eu” de um personagem, como já se quis e ainda se quer. (...) Ela é o melhor meio de mostrar os laços entre passado e presente, memória e projeto, indivíduo e sociedade e de experimentar o tempo como

prova de vida (...)

(P. Lévillain, “Os protagonistas: sobre a biografia”)6

Quem descesse as escadas rolantes do Centro Metropolitano, como

também era chamada a Galeria Metrópole na Avenida São Luís, em São Paulo, e

seguisse (no ano de 1965, ainda sem medo de assaltos ou sequestros) à direita de

seu jardim central, até a última porta dos fundos, poderia entrar sem bater no

primeiro endereço daquele que foi um dos maiores centros de intelectualidade e

resistência cultural do país dos anos 1960 (embora fosse, fisicamente, diga-se, um

dos menores). Foi ali que, com a ajuda de alguns amigos, o cantor noturno Luiz

Carlos, chegado há cinco anos do Rio de Janeiro (onde aportara após uma breve

temporada residindo em Curitiba), pôde finalmente concretizar o sonho de abrir sua

própria casa noturna e encabeçar pessoalmente o projeto de resgate e preservação

da tradicional canção popular brasileira – agora conhecido também como Luiz

Carlos Paraná (como se assumiria juridicamente em 1969, incorporando ao seu, o

nome de seu Estado).

O jovem poeta viveu em sua terra até os 23 anos, aproximadamente.

Nasceu em 15 de maio de 1932, num município do norte paranaense recém-saído

da condição de vilarejo. Antes de chamar-se Ribeirão Claro, assim batizada em

1908, a região onde aportaram os avós de Luiz Carlos - vindos da Itália para

trabalharem nas lavouras de café -, abrigava em si duas vilas, chamadas Espírito

Santo do Itararé e Taquaral. Com a fusão de ambas, devido ao surto de malária que

obrigou a população de Espírito Santo a migrar toda para Taquaral, deu-se o

desenvolvimento de uma população cujos meios de vida eram basicamente rurais.

Com a qualidade deste solo especialmente propício à cafeicultura, dada a

predominância da chamada “terra roxa”, as plantações da região vicejaram e

6 LÉVILLAIN apud BORGES (2004, p. 287), em epígrafe.

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tocaram a sensibilidade do menino, que não deixou de incorporar em sua obra as

marcas profundas que sua vida de roceiro lhe imprimiria na memória e no coração.

Basta uma primeira e descomprometida audição de um de seus maiores sucessos,

“Flor do cafezal”, para se compreender que os versos eternizados pelas vozes de

Cascatinha e Inhana (em 1967)7, contém o espírito de uma realidade bastante cara

ao compositor - e assim o foi até o final precoce de sua vida, aos 38 anos.

Mas a análise comparativa das obras de Carlos Paraná revela uma riqueza

de gêneros que o impede de ser classificado apenas como compositor caipira,

entendendo a terminologia caipira como sintetizadora do aspecto cultural – nunca

etnográfico8 - específico de uma região interiorana do país denominada Paulistânia

pelo historiador Alfredo Ellis Junior - qual seja, basicamente aquela de “influência

histórica paulista” (CANDIDO, 2003, p. 28) ligada aos ciclos bandeirantes do século

XVIII, ao universo rural e ao modo de vida rústico, tradicionalista, relativamente

homogêneo (e não, evidentemente, às acepções pejorativas mal empregadas na

designação jocosa de um tipo concebido preconceituosamente).

Antes, o ribeirão clarense foi um criador que buscou a diversidade e, para

isso, evitou as amarras estéticas ou uma metodologia de trabalho rígida vinculada a

manifestações de culturas particulares, como ele próprio explicou em matéria

jornalística9, na ocasião de sua bem sucedida participação no Festival de Música

Popular Brasileira da TV Record, de 1966. Mencionando o samba “De amor ou paz”

composto em parceria com o sócio e amigo-violeiro Adauto Santos, cuja segunda

colocação logo após “A banda” e “Disparada” deveu-se também à interpretação da

7 Outros tantos nomes da cultura raiz brasileira gravaram a canção, como Inezita Barroso, Rolando

Boldrin e a dupla Pena Branca e Xavantinho, para citar alguns.

8 Sobre essa questão, o professor Antonio Candido em “Parceiros do Rio Bonito” remete-nos ao livro

“Conversas ao pé do fogo” (São Paulo, 1921), de Cornélio Pires, em que a utilização dos termos “caipira branco”, “caipira caboclo”, “caipira preto” ou “caipira mulato” reforçam a distinção entre o modo de ser e o tipo de mestiçagem racial destas pessoas. Vale mencionar, no entanto, ainda segundo Candido, que a maior parte da população tradicional de São Paulo constitui-se de caboclos, isto é, do mestiço “próximo ou remoto” de branco e índio. Ver texto complementar “O mundo do caipira”, de Antonio Candido, nos anexos deste trabalho, página 78. O texto foi produzido como apresentação do LP duplo “Caipira: Raízes e frutos”, lançado pela gravadora Eldorado em 1980, e constitui fundamental fonte de esclarecimentos referentes à formação deste tipo de homem rural de origem essencialmente paulista.

9 Jornal Última Hora, de 14 de outubro de 1966.

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cantora Elza Soares, Carlos Paraná retomou aspectos de sua juventude ao justificar

que vivera, ele próprio, entre bandas e disparadas e que, portanto, lhe parecia

pertinente o empate das obras de Chico Buarque e de Theo de Barros e Geraldo

Vandré – ambas faces de um mesmo universo ligado ao regionalismo.10

A criação de um bar-clube musical onde a proposta fosse o resgate da

tradicional canção brasileira em concomitância com toda a modernidade que a ela

se impunha, leva este trabalho a comprovar o intenso desejo do convívio

harmonioso entre manifestações de diversas origens, por parte de seu criador-

idealizador. A menção às bandas e disparadas de sua infância pode ser

complementada na busca de se encontrar as razões desta personalidade

musicalmente híbrida, quando se desvenda o processo pouco sistemático, apesar

de intenso, da assimilação musical de Luiz Carlos, que resultaria futuramente neste

tipo de direcionamento artístico.

Para que O Jogral resultasse num espaço aberto a homenagens como as

prestadas a Luiz Gonzaga, Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa ou João

Pacífico, ao mesmo tempo em que propiciava, consagrava e bem-via o surgimento

de novos compositores como Caetano, Chico, Jorge Ben e Martinho da Vila, foi

preciso que na década de 1940 e 1950, o compositor ouvisse muito em seu quarto-

paiol discos de artistas mexicanos, argentinos, paraguaios, italianos, franceses e

portugueses cujas imagens pregava, com orgulho, na parte interna da porta de vidro

do armário fino e alto que seus pais, Braz Carlos e Ida Fonteque, mantinham na sala

da pequena casa. Foi necessário também muito tempo ouvindo o grande rádio que

seu Braz pôde enfim adquirir assim que a família deixou de ser meeira de

10

Para o Jornal Última Hora, de 14 de outubro de 1966, Carlos Paraná declarou: “Eu me considero

um compositor fora de série (...). Minhas composições não obedecem a uma linha determinada. Eu já fiz música caipira, moda de viola, guarânia (...) e até tango (...). Cheguei ao samba, à marcha-rancho (...). Continuarei assim, isto é, um compositor espontâneo. Fazendo a música que me vem à cabeça, pois a minha criação não é elaborada. Vem, quando vem a inspiração”. Sobre sua postura perante o movimento de renovação da música popular brasileira, ele responde que “apesar de não estar vinculado a nenhuma corrente”, acredita que o movimento é válido. Ainda mais quando se sente que os compositores jovens estão a cada dia pesquisando mais e utilizando temas, tanto urbanos quanto rurais, que realmente valorizam e engrandecem a música verdadeiramente nacional. Sobre O Jogral, ele reforça: “foi a primeira [casa noturna] a apresentar na noite a viola – a viola sentida que o Adauto Santos toca tão bem quanto o violão. E lá se pode ouvir desde o desafio nordestino, ao fado português, com Adauto dando à viola sonâncias de guitarra lusa. Já, desde muito, eu cultivava o folclore e todas as modalidades de música nacional”

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proprietários rurais e comprou seu pequeno sítio próximo à entrada da cidade de

Ribeirão Claro, por volta de 1948. A geringonça oferecia aos seus ouvintes algumas

opções musicais, por meio das emissoras das redondezas – principalmente de

cidades como a paulista Ourinhos -, e toda uma programação de modas e desafios

bastante apreciados pelo público ribeirão clarense. E mesmo pelo pai de Luiz

Carlos, que além de violeiro fazia duos vocais com o irmão, sem maiores pretensões

artísticas.

Vale destacar, segundo referências fornecidas em entrevistas para este

trabalho por seus irmãos José Carlos e Francisco Carlos, que não era arbitrária a

preferência de Paraná por tangos, guarânias e canções mariachis as quais

igualmente influenciaram sua obra, tendo como representantes desses estilos,

tangos de sua própria autoria, como “Você merece um tango” e “Migalhas”, além de

sua guarânia “Queria”, gravada em 1964 pelo seresteiro Carlos José e registrada no

ano seguinte por Hebe Camargo, que a retomaria com as participações de Zezé di

Camargo e Luciano, em disco de 2001.

A história da canção caipira brasileira registra fases de grande influência das

estéticas musicais dessas culturas, segundo elucida o estudo “Música caipira: da

roça ao rodeio”, de Rosa Nepomuceno (2005). A Argentina exportou o tango, tendo

os próprios brasileiros recriado suas desilusões na força rítmica do estilo portenho. A

guarânia paraguaia, gestada por José Asunción Flores (1904-1972) em 1925, deixou

marcas, por sua vez, na obra de grandes e consagrados artistas regionais como o

foram Cascatinha e Inhana. E a sonoridade mariachi dos cantores mexicanos

inspirou não apenas a música de duplas bastante conhecidas na época, como Pedro

Bento e Zé da Estrada, mas também suas indumentárias, com direito inclusive a

enormes sombreiros. Carlos Paraná compôs a sua “Ainda ontem”, nesta linha.

Desde 1929, por iniciativa do contista, folclorista e poeta dialetal Cornélio

Pires, a cultura caipira era prensada em disco, inicialmente pela Columbia, gravando

canções e causos. Entre 1931 e o início do Estado Novo, em 1937, Getúlio Vargas

proibiu novas plantações de café, após queimar 70 milhões de sacas como

consequência da crise de 1929, que tanto fez decair os índices populacionais de

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Ribeirão Claro, cuja principal economia era a cafeicultura, forçando um enorme fluxo

migratório do campo para as cidades, o que não impediu que no começo da década

de 1950, 63% da população brasileira ainda vivesse na zona rural. Isso ajudou a

manter um diálogo entre os dois universos, mesmo que em Ribeirão,

particularmente, a pecuária tenha assumido a responsabilidade do caixa na cidade.11

O processo de urbanização do Brasil, iniciado nos anos 1930, mas que se estabeleceu efetivamente após 1940, esteve vinculado à industrialização das grandes cidades do sul e sudeste do país, principalmente de São Paulo. (...). A 2ª Guerra Mundial trouxe forte impedimento às importações, estimulando sobremaneira o desenvolvimento da indústria nacional, fazendo com que um gênero de vida urbano moderno se impusesse cada vez mais ao país, coexistindo com um gênero de vida que vem sendo denominado ‘rústico’, que conservou características de épocas passadas, já que nas regiões mais afastadas do interior do país permaneceu a agricultura de subsistência, modelo produtivo desenvolvido pela maioria da população rural até a década de 1960. A mecanização do campo [por exemplo] colaborou na sistemática expulsão dos sitiantes, dos colonos e dos parceiros das terras que ocupavam, forçando-os a buscar novas terras (...). (BARSALINI, 2002, p. 86).

“Nesse ambiente híbrido e próspero, no apogeu dos programas de rádio, a

música sertaneja [termo já consolidado nesse momento] viveu seu período de glória”

(NEPOMUCENO, 2005, p. 143). Com a versatilidade que nossa música raiz seguia

incorporando cada vez mais, somada ao samba que se fortalecia como ritmo

nacional, e ao baião estilizado por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira a partir do

final da década de 1940, tornando-o febre nos salões de dança e nas vitrolas de

todo o país, o Brasil via amalgamar-se toda a riqueza de estilos que até então

vicejavam isoladamente e consagrava seu caráter historicamente miscigenado

devolvendo aos ouvidos de jovens e talentosos aprendizes, a diversidade sonora

que até poucas décadas atrás se encontrava abafada pelos cânones europeus.

Visando uma melhor percepção da questão temporal e do momento cultural de que

se está tratando, ressaltem-se aqui alguns breves paralelos traçados tão somente

como referência. O nascimento de Luiz Carlos Paraná, na chácara Boa Vista,

propriedade de José Bernardo de Faria Neia, deu-se exatos 10 anos depois da

11

Vale lembrarmos que o fortalecimento da pecuária após a crise do café - advinda do crash de 1929

na bolsa de Nova York – está relacionado à diminuição da população ribeirão-clarense devido ao fato de a cultura do café exigir muito mais trabalhadores para manter a lavoura, do que a criação de gado. Com isso, fazendas como a histórica Monte Claro, que até então faziam constar em sua folha de pagamento aproximadamente 300 famílias, tiveram de reduzir drasticamente sua quantidade de funcionários, o que se refletiu em termos gerais na população de todo o município.

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Semana de Arte Moderna de 1922, quando o rompimento deste cânone imposto de

fora já se apresentava com força e poder modernizador capaz de gerar um perfil

nacional de nossa produção cultural.

Considerado por muitos como o principal compositor erudito do país – e,

talvez, um dos maiores representantes da música moderna naquele momento -, o

maestro carioca Heitor Villa-Lobos (1887-1959) foi também motivo de muitas

polêmicas. Em 1922, ele participou da consagrada Semana antes da qual, como

realça Gilberto Mendes (MENDES, 2007, p. 131), o compositor já havia criado uma

importante obra, capaz de romper o rigor e a seriedade herdados da música

europeia (sobretudo portuguesa) que, até então, compunha, junto da ameríndia e da

africana, nosso cenário musical. Uma música que refletia a própria concepção dos

diversos tipos de habitantes do País, isto é, “um povo misturado, porém inda não

amalgamado” (ANDRADE, 1980, p. 180), que tirou sua base técnica das cantigas e

danças importadas e, até então, não assimiladas de um modo próprio - que desse

ao Brasil, uma identidade.

Carlos Paraná vivenciou intimamente a rotina e o modo de vida do homem

rural. O som da água dos rios, do canto de cada tipo de ave, da mata, dos animais,

insetos – a tudo esteve efetivamente sintonizado, interiorizando de um modo todo

particular as informações que sua terra imprimia. Foi também no correr das águas de

ribeirões como o Claro, o Barro Grande, além do rio Itararé12, que o jovem Luiz

Carlos sentiu pela primeira vez o valor dessa pluralidade, como atestam diversos

parentes e amigos, em seus depoimentos para este estudo. Foi também como

defensor ferrenho das matas e dos animais que encontrou sentido em garantir a

preservação de um cancioneiro que frutificava como a natureza de sua infância.

12

Vale mencionar, para efeito de registro histórico, que a região ainda inexplorada da futura Ribeirão

Claro e, portanto, do rio Itararé fez parte da rota de transporte de gado no século XVIII, quando da atuação dos tropeiros na região visando comércio – como alternativa para atividade mineradora – e consequente introdução da pecuária no interior da colônia. Segundo Mary del Priore e Renato Venancio, em “Uma breve história do Brasil” (2010, p. 82), o itinerário de São Paulo para o “continente de Viamão” partia de Sorocaba e atingia as proximidades de Curitiba após rumar para Itapetininga, atravessar o rio Itararé e se dirigir para a região de Ponta Grossa.

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O que se constata é que Paraná, apesar de ter-se permitido influenciar pelos

principais mananciais da canção tradicional no Brasil, entrou também, num futuro

próximo, em contato direto com os prenúncios de uma “revolução” estética musical

e, em seguida, com o elemento de reunião das novas ferramentas modernizadoras -

e as marcas dessa influência revelam-se claras em sua obra, que parece buscar um

equilíbrio sintetizador de ambas as linhas, como sugeriu o maestro Julio Medaglia,

em entrevista para este trabalho.

Apesar de nascido em ambiente rural, e embalado pelas modas de viola, por

toda a influência externa que nossa música caipira assimilou, pela consolidação do

samba e pelo surgimento do baião – todos ritmos e estilos ligados a um modo

particular da tradição popular -, Luiz Carlos Paraná, após dividir um quarto com o

cantor Léo Vaz (Anexo 3: página 94: figura 18) e outros artistas paranaenses na

pensão de dona Dionéia em Botafogo, Rio de Janeiro, migrou para o bairro de

Copacabana, no ano de 1958, onde se viu dormindo ao lado da cama do cantor

baiano João Gilberto, o qual, na mesma semana em que se mudara para a pensão,

gravara com a cantora Elizeth Cardoso no histórico LP “Canção do amor demais”,

tido por muitos como o marco da Bossa Nova, antes mesmo do cultuado “Chega de

saudade”. Este último, Gilberto gravaria em breve, após muitas tentativas visando a

satisfação de seu perfeccionismo, como testemunhou Carlos Paraná. E logo João se

transformaria no mito nacional até hoje cultuado.

Luiz Carlos – amigos que se tornaram – não apenas presenciou o

nascimento de uma das maiores transformações na proposta harmônica de nosso

cancioneiro, conforme atesta em texto-depoimento escrito para o programa de um

espetáculo futuro (Anexo 2 - página 83) -, como permitiu-se nutrir, talvez mesmo

inconscientemente, daquela nova batida e, sobretudo, daquela limpeza interpretativa

- enxuta como jamais se teria podido ouvir pouco antes, num dos incontáveis

sambas-canção que ecoaram pelo Brasil, dramáticos e transbordantes com sua

expressividade visceral, conforme explicou o maestro Medaglia, ainda em conversa

para esta monografia.13

13

Nas palavras de Julio Medaglia: “O Paraná tinha um talento fora do comum, sua música era muito

bonita mesmo. Ele era um fazedor. Então nesse novo caleidoscópio sonoro que surgia bem variado e até antagônico, era possível se ver coisas do gênero. O Paraná está nesse caldeirão, mesmo tendo

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Se Luiz não abriu mão totalmente das opções temáticas daquelas

aboleradas e homéricas dores de cotovelo em sua obra, foi porque talvez sua vida

psíquica andasse imersa numa consciência da tragédia humana – ainda mais na

condição amorosa que tanto lhe era cara, por nem sempre ser bem sucedida, como

atesta o primo Airton Fonteque em seu depoimento ao autor deste trabalho.14 Ou

apenas por mera identificação estética. No entanto, isso não lhe impediu em

definitivo de seguir alguns dos passos que seu moderno companheiro de quarto

passava aos poucos a ensinar a todo o Brasil.

2.1 Incursão comparativa nas temáticas

Luiz não apenas urbanizou melodicamente as canções que criou a partir do

final dos anos 1950, como delas retirou em boa parte o sabor especificamente

regional das temáticas rurais, bucólicas, associadas a um tipo de desenho melódico

característico mesmo da moda de viola – incluídas as segundas vozes que eram

abertas nas poucas gravações que essas obras iniciais (nem sempre de qualidade

uniforme) recebiam dos mesmos mestres que Luiz Carlos ouvia casualmente nas

mudanças de estações – ou mesmo ao vivo, no cine-teatro de sua cidade, onde

artistas como Mazzaropi, Nelson Gonçalves e Cascatinha e Inhana apresentaram-

se, nas décadas de 1950, segundo depoimentos de diversos moradores de Ribeirão

Claro, assim como documentos deixados pelos próprios artistas aos donos do hoje

uma expressão artística mais triste, nostálgica, melancólica, e, nesse sentido, mais próxima dos bolerões de antigamente. Na época da Bossa Nova, claro que ele não teria tanto espaço, muito embora a música dele não fosse assim tão trágica. Na verdade ele fazia uma coisa até um pouco cool, que as pessoas cantavam sem grandes dramaticidades. Era um tipo de músico que não fazia samba de morro, samba de breque, pagode, ou algo assim. Tinha um estilo mais discreto, coloquial, e com isso a música dele não teve aquele caráter alegórico do carnaval, do samba tradicional”.

14 Segundo Airton, “apesar de namorador e até bastante disputado pelas moças da cidade, Luiz

sempre manteve a nostalgia romântica de não ter a pessoa desejada”. Quem foi, ele não revelou nem

ao primo, embora dissesse ser um amor impossível.

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inexistente Cine Teatro Brasil15 - autógrafos preservados pelos herdeiros e

recuperados pela pesquisa deste trabalho.

Uma breve comparação temática de duas letras de sua autoria pode

colaborar com a melhor visualização das transformações aqui apontadas, as quais

são fruto direto do processo modernizador do País, refletido claramente em nosso

cancioneiro. A primeira delas é “Tezouros de minha terra”, aqui grafada com “s” - ao

contrário do registro original da toada no selo do disco 78 rpm em que se encontra

gravada na voz de Léo Vaz; e a segunda, “De amor ou paz”, composta em parceria

com o amigo Adauto Santos, após o início da década de 1960, quando se

conheceram - e defendida por Elza Soares no Festival de Música Popular Brasileira

da Record, em 1966, com o êxito de uma segunda colocação, como mencionamos.

Tesouros de minha terra (Luiz Carlos Paraná)

(gravada em 1958, mas composta em data imprecisa)

Lá no sul da minha terra/ Quando a lua vem da serra

Prateando os pinheirais/ Cada caboclo que canta

Tem a alma na garganta/ Cada qual soluça mais

As canções da minha gente/ Têm um gosto diferente

Um sabor que faz chorar/ E nos cantos do violeiro

Nunca faltam o pinheiro,/ a serrana e o luar

Ai, serrana... serrana dos pinheiras/ Amo a lua, adoro o pinho

Mas é de ti que eu gosto mais! (Estribilho – 2 x)

Minha terra é mãe do pinho/ Lá se alguém vive sozinho

15

Ver anexo nas páginas 92 e 93: Imagens dos autógrafos deixados na década de 1950 por Amácio

Mazzaropi e a dupla Cascatinha e Inhana.

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No seu rancho a meditar/ Vendo o luar se debruça

Sobre a viola e soluça/ Suas trovas a dedilhar

Lá existem três motivos/ Sempre belos, sempre vivos

Para um poeta se inspirar/ É um trio feiticeiro

São três musas/ O pinheiro, a serrana e o luar

Ai, serrana (...) (Estribilho – 2 x)

E...

De amor ou paz (Luiz Carlos Paraná e Adauto Santos)

(Gravada em 1966 por Elza Soares)

Quem anda atrás de amor e paz/ Não anda bem

Porque na vida, o que tem paz/ Amor não tem

Seja o que for, sou mais do amor/ Com paz ou sem

Sei que é demais querer-se paz/ E amor também

Já que se tem que sofrer/ Seja dor só de amor

Já que se tem de morrer/ Seja mais por amor

Vou sempre amar/ Não vou levar a vida em vão

Não hei de ver envelhecer meu coração

Vou sempre ter em vez de paz inquietação

Houvesse paz/ Não haveria esta canção

Observe-se não só a mudança radical de opção temática, mas o modo com

que os diferentes assuntos são abordados. Existe na segunda letra (um samba),

maior elaboração de pensamento (ainda que não se possa chamar de erudição),

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exemplificada pela sofisticação com que o jogo das palavras “amor” e “paz”

acontece – algo que se encontra em consonância com a moderna linguagem

musical recorrente na chamada Era dos Festivais. Enquanto isso, a descrição do

cenário sertanejo presente na toada “Tesouros de minha terra” oferece um rol de

imagens menos abstratas, ainda que não menos buriladas em sua síntese poética,

ao tratar, sobretudo, de um modo de vida, experimentado pelo compositor. Assim,

sentimentos e eventos típicos “lá do sul de minha terra” são descritos, possuindo até

certo grau de informalidade.

Tem-se, também, que a visão bucólica do compositor, exaltando a natureza e

a vida simples na forma idílica, submetida ao ambiente da metrópole, passa a se

deter na oposição “amor e dor”, muito presente na estética da época.

O pouco tempo que Luiz Carlos passou na capital paranaense, logo que se

despediu da pacata Ribeirão Claro (muito provavelmente no segundo semestre de

1955), talvez não tenha sido o suficiente para que se possa considerar o período

como tendo sido propício a uma efetiva influência estética. Mas o tempo ali

transcorrido, por certo que foi muito bem cerzido ao processo de sua maturação

pessoal e artística. Pouco antes, havia abandonado um emprego estável como

agente de estatísticas (Anexo 3: Página 91: Figura 13), trabalhando na prefeitura de

seu município natal – não sem antes ter sido entregador de leite para seu pai e ter

prestado serviços a um escritório de contabilidade da cidade, propriedade de um

homem cujo nome era Paulo Fávaro, conforme lembrou o irmão mais velho de

Paraná, Francisco Carlos, em entrevista para este estudo.

Além disso, a experiência profissional que adquiriu nos estúdios das

principais rádios curitibanas refinava o talento e a autoconfiança do jovem que

aprendera sozinho a pontilhar o violão. O instrumento foi comprado de segunda mão

em sua cidade e precisou ser restaurado para servir aos exercícios que o pequeno

Luiz se impunha. Segundo o radialista curitibano Ubiratan Lustosa (Anexo 3 - página

87: figura 5), foi com seu terno branco que bateu de porta em porta, e sempre ciente

de que viveria em Curitiba uma espécie de estágio que o preparasse para centros

maiores, até porque não havia por lá estúdios para gravação de discos ou uma

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infraestrutura nem sequer semelhante a que ele encontraria na Rádio Nacional

carioca, quando por lá aportasse por volta de fevereiro de 1957, buscando realizar-

se em seu ambiente preferido de trabalho. Não eram os grandes microfones

radiofônicos nem a preocupação com uma possível produção fonográfica, deles

decorrente. Eram as boates, opção que se mostrará reveladora para este estudo.

Quando, já em 1965, pouco mais de um mês antes de seu aniversário de 33

anos, conseguiu abrir seu bar com o capital do namorado de uma amiga sua (o qual

se mostrou disposto a investir no ramo de casas noturnas), Luiz Carlos Paraná já

possuía, senão um tino comercial invejável, ao menos grande experiência cantando

em boates como Sambalanço, Zelão, Music Box, Open Door e Beco. Até a diretor

artístico do renomado Juão Sebastião Bar ele chegou, segundo jornais da época e

livros como “Noites paulistanas: histórias e revelações musicais das décadas de 50

e 60”, de Helvio Borelli (2005).

No dia 29 de março de 1965, às 19 horas, foi marcado o coquetel inaugural

de O Jogral, na Galeria Metrópole. Um espaço acanhado onde inicialmente apenas

Paraná, Adauto Santos e o amigo biólogo-sambista Paulo Vanzolini se assumiam

como opção musical, sem deixar, contudo, de atrair grande público, interessado não

apenas na proposta de resgate do bom samba tradicional, mas nas manifestações

populares como a seresta ou os desafios e repentes caipiras, improvisados pelas

mentes ágeis de seus fundadores. A seresta, melhor conceituada, é uma

manifestação de elite trazida pelos portugueses (...), que nos legou a principal base melódico-harmônica da nossa música e do inabalável gosto por temas passionais. (...). Os imigrantes europeus, acima de tudo, os italianos logo se identificaram com a seresta, que, aliás, tinha um largo histórico de influência da produção operística de sua terra (CUÍCA; DOMINGUIES, 2009, p. 35 e 34)

Era comum que Paraná e outros companheiros de juventude saíssem às

ruas ribeirão clarenses de chão batido - violão em punho e o gogó aquecido - para

cantar e fazer serestas a amigas, namoradas ou simplesmente possíveis paqueras.

Francisco Carlos, o irmão mais velho, na mesma época começou igualmente a

aprender violão e era um dos que tomavam parte com frequência na romântica

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cantoria de rua. Como lembrou ainda o primo-irmão Airton Fonteque, um dos mais

próximos de Luiz Carlos no período mais profícuo de sua infância, entre os anos de

1942 a 1949, embora houvesse serestas feitas por bêbados e vagabundos da

cidade, a “serenata do Luiz era coisa séria, de respeito. Nunca levamos balde

d´água na cabeça!”, orgulhou-se bem humorado, em nossa entrevista. “Cantávamos

para aniversariantes, amigos, não era só coisa para se conquistar uma moça,

mesmo que nesse quesito, ninguém fosse páreo para ele”.

No assunto amoroso, a aparição cênica de Luiz Carlos Paraná em São

Paulo parece não ter deixado para trás a fama que o compositor teve em Ribeirão

Claro. No entanto, o que ele registrou em suas canções dá margem a

questionamentos sobre sua verdadeira realização pessoal, como já foi mencionado.

Obras como “Queria”, “Resignação” e “Vou morrer de amor” comprovam, senão uma

frustração relativa às suas experiências afetivas concretas, ao menos um retrato

simbólico de como este assunto se lhe figurava, baseado, claro, em determinadas

vivências particulares. Vale dizer que, mesmo em meio à boemia e a um ambiente

repleto de belas cantoras, como seria o segundo endereço de O Jogral, no número

de 16 da rua Avanhandava, Carlos Paraná mantinha-se profissional, acolhendo a ala

feminina de seu elenco fixo de cantores como um verdadeiro pai, para usar o termo

da cantora Ana Maria Brandão, em depoimento para esta monografia.

Comparando as obras citadas no parágrafo acima, por sua vez, com letras

de músicas como “Terra dos pinheirais”, “Flor do cafezal”, “Último canto” ou mesmo

a já apresentada “Tesouros de minha terra”, tem-se que esse primeiro grupo de

canções ajuda a delinear o universo idílico-afetivo que teceu a trama artística em

que Carlos Paraná se enredou. Nas primeiras três letras, “Queria”, “Resignação” e

“Vou morrer de amor”, a temática do amor como realização impossível em sua

plenitude mantém os componentes de sua memória afetiva, quando ainda na

adolescência, foi ele diversas vezes proibido de cortejar e namorar moças de sua

cidade, dada sua origem humilde e a fragilidade de sua saúde, abalada desde 1950,

quando da temporada que passou em Curitiba prestando o serviço militar - pois lá

contraiu a febre tifóide que quase o matou ainda mais cedo, segundo Ivone de

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Lorena Neia, sua ex-namorada e musa da histórica “Flor do cafezal”, composta na já

citada Fazenda Monte Claro, em meados da década de 1950.

Nas demais canções, o mesmo sentimento de distanciamento físico remete

o compositor ao olhar nostálgico dessa vez sobre sua terra, e aos elementos da vida

rural vivenciados por ele, os quais, tendo-os Luiz Carlos deixado para trás, tornam-

se conteúdos simbólicos na subconsciência do artista - e referência para se notar

um mundo em pleno apogeu de sua transformação. Parece oportuno pensar que a

importância com que campinas, rios e passarinhos habitam sua obra só se encontra

verdadeiramente dimensionada quando em contraste com a vida que o poeta

escolheu para si, isto é, quando optou viver em centros urbanos maiores, na década

em que São Paulo tornava-se palco da nova música brasileira, assumindo, inclusive,

a “tarefa” de deflagrar para todo o País, uma manifestação restrita, até então, à zona

sul do Rio de Janeiro, que foi a Bossa Nova. Não à toa, cantoras como Alaíde Costa

e Claudette Soares, importantes difusoras do movimento em São Paulo, fizeram de

O Jogral um dos seus principais redutos.

Segundo o recém-falecido cantor curitibano Léo Vaz, em seu valioso

testemunho para este trabalho, cujo argumento se confirma na visão do já citado

radialista Ubiratan Lustosa, Luiz Carlos Paraná possuía consciência e, mais que

isso, o desejo de perseguir o epicentro desse furacão em seu momento decisivo de

transição, que foram os anos 1950 e 1960 no Brasil, tanto em termos políticos,

sociais, comportamentais, quanto artísticos, em todas as suas acepções. A partir

daquele 29 de março de 1965, em que se abriram as portas d´O Jogral, consagrou-

se, portanto, sua postura artística de tendência ao hibridismo. Uma mestiçagem

musical tida, em última análise, como reflexo direto da cultura e do povo brasileiros -

necessária para que sua arte reverberasse de forma poderosa tanto nos ouvidos

mais saudosistas e irreversivelmente platônicos, quanto nos mais modernos e

politizados. Vale ter sempre em vista o fato de que pouco antes do ano de 1968,

seria arrochado em definitivo o processo de fechamento político no Brasil, com o

decreto do sangrento AI-5.

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2.2 As paródias políticas e uma análise estética

É neste contexto, que Luiz Carlos Paraná, sempre em busca da

compensação de sua frágil formação cultural interiorana, pôde dar vazão ao

conhecimento que, assim como o violão, absorveu gradativamente e de forma

autodidata – e isto valia, inclusive, para questões de posicionamento político, como

se verá. O compositor, de fato, não desenvolvera nenhuma erudição intelectual, o

que não o eximiu de tecer, a seu modo, comentários políticos que refletissem sua

procura lúcida pelo melhor entendimento do mundo em que vivia.

E sua principal arma era a música. Ainda que em sua obra “oficial”, estejam

privilegiados aspectos do idílio e do amor, o compositor não se privou de compor

paródias bastante sagazes e bem humoradas, sobre acontecimentos sociais do

contexto, sobretudo os ligados ao regime militar porque o País passava.

O cantor Léo Vaz, em sua entrevista, revelou que, não apenas estas

pequenas e obscuras obras não eram fruto de uma percepção ingênua ou somente

irônica do compositor, como eram levadas tão a sério pelos censores que, não raro,

estes intervinham com detenção, levando Carlos Paraná para alguma delegacia, de

onde só saía, por influência política, dada sua amizade com várias das autoridades

governamentais que frequentavam O Jogral diariamente.

Essa cova em que estás, no São João Batista/

Ainda é bem melhor do que foi prevista

É uma cova grande pro seu porco defunto/

Tem lugar pra outro que devia ir junto

E ao rapaz do jato, a pátria enternecida/

Fica outra vez muito agradecida

Vamos dar um viva ao rapaz do jato/

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Esse é na verdade um herói de fato16

Ou então...

Hoje o povo saiu (lalalaiá)/ Procurando saber

Quem pariu/ A você

Foi a redentora, devemos esclarecer

Sua genitora não teve nada que ver

Domingo no sweepstake/ Você vai para a tribuna

Nesse dia lá na pista/ Vai se abrir uma lacuna

Você gosta de corrida/ Mas não dê muito na vista

Vê se agüenta na tribuna/ Não vai lá correr na pista

Se você encontrar o Jango/ Juscelino ou Lacerda

Faça como eu já fazia/ Mande todo mundo à missa17

Entretanto, compostas muito mais como modo de extravasar sua postura

informalmente, jamais estas paródias receberam maior atenção ou foram

consideradas pelo compositor como um início de postura engajada de sua estilística,

a ponto de ele compor o que era, pela época, considerado canção de protesto.

Prevaleceram em seu trabalho, as duas vertentes principais supracitadas - a do

amor e a da nostalgia por sua terra.

16

Trecho de paródia feita por Luiz Carlos Paraná com a melodia de “Funeral de um lavrador”, de

Chico Buarque para o poema de João Cabral de Melo Neto. O rapaz em questão era o piloto do caça T-33 da FAB (Força Aérea Brasileira) que atingiu a cauda do avião Piper Aztec - PA 23 no qual o já ex-presidente do regime militar Humberto de Alencar Castelo Branco morreu a 18 de julho de 1967, pouco depois de ter deixado o poder – em 15 de março daquele mesmo ano, quando foi sucedido por Artur da Costa e Silva. O fato foi amplamente noticiado, não recebendo esclarecimentos satisfatórios nas investigações empreendidas pelos militares, o que, até hoje, gera polêmicas sobre seus reais interesses de que o caso fosse realmente desvendado. 17

Trecho de paródia feita por Luiz Carlos Paraná com a melodia de “Quem te viu, quem te vê”, de

Chico Buarque de Hollanda. Sweepstake era uma loteria associada à corrida de cavalos. A crítica neste caso era ao segundo presidente do regime militar (entre 1967 e 1969), o marechal Artur da Costa e Silva que adorava apostar em cavalos e era considerado grosso e mal educado. Vale realçar que na curta vida de Luiz Carlos Paraná, Castelo Branco e Costa e Silva foram os dois únicos ditadores que ele viu assumir o comando do País, o que torna ainda mais representativos os dois trechos das paródias resgatados valiosamente pela memória indispensável de Léo Vaz.

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Em algumas de suas canções, aliás, ambas as tendências temáticas

encontram-se mesmo amalgamadas, de modo que a fusão dos elementos ligados à

terra e à saudade de suas origens vai-se gradativamente mesclando com as

desventuras de amor, vividas por Carlos Paraná, concreta ou oniricamente. Dois

exemplos a seguir esclarecem melhor a questão exposta. No entanto, a segunda

canção merecerá, ainda, uma pequena análise, dada sua representatividade e poder

de síntese dos conteúdos emocionais transformados em versos pelo compositor.

Saudade (Luiz Carlos Paraná)

Saudade do meu tempo de criança/ Quando a vida era uma dança

E eu vivia a bailar/ Saudades, quantos anos se passaram

Quantas lágrimas rolaram/ Sem que eu pudesse evitar

Saudade, sei agora muito bem/ Quem não chora por alguém

Sofre e cala em seu penar/ Saudades, por favor tem dó de mim

Não me deixe ser assim/ Qual uma pedra a rolar

Saudade, vivo só e sem carinho/ Sem um gesto pequenino

Que me venha consolar/ Eu que na vida tive amor, felicidade

Hoje só tenho saudade/ Do que não mais vai voltar

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Último canto (Luiz Carlos Paraná e Adauto Santos)

Era um verde só, sem rios/ Sem estradas, só caminhos

Era um céu sem astronautas/ Era um céu de passarinhos

Era um mundo só de fontes/ Só de lagos e de rios

Sem o longe azul dos mares/ Sem tormentas, sem navios

Cheguei tarde nos amores/ Fui menino só, sem primas

Só mais tarde é que fui tê-las/ E eram cordas e eram rimas

Desse tempo eu peço apenas/ Aos senhores da verdade

Permissão pra volta e meia/ Ter um pouco de saudade

Me cansei de andar caminhos/ Onde pouca gente andava

De cruzar com tanta gente/ Que partia e não chegava

Se eu cheguei, não dou conselhos/ Fui platéia de sermões

Não desfilo nem espio/ Criei calo em procissões

Lavradores eu sou dos grandes/ Cantador, sou dos pequenos

Ferramentas tenho muitas/ Pinho e cordas, tenho menos

Afinal eu não me queixo/ Isso até que me consola

Pois a última contenda/ Não se ganha com viola

Luiz Carlos Paraná não fundou nenhuma corrente nem chegou a produzir

uma obra volumosa. Antes, sintetizou diversas linhas adequando-as aos seus

anseios artísticos, deixando uma quantidade de canções documentadas bastante

reduzida: vinte e quatro apenas, embora se saiba que muito do material produzido

ao longo de seus curtos trinta e oito anos tenha se perdido. “Último canto” trata-se

de uma espécie de epitáfio, por ter sido curiosamente sua última canção e,

sobretudo, por ele indicar isto em seu próprio título, mas, principalmente por

conseguir tocar nos pontos essenciais das angústias mais recorrentes em sua vida,

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refletidos em toda obra: a desilusão com as mulheres, a saudade de sua terra, e o

irremediado amor pela música, como meio de expressão e sobrevivência, dada a

beleza que esta conferia às suas dores reais.18

“Era um verde só, sem rios/ sem estradas, só caminhos (...)”, primeiro verso

da canção, que reflete toda a carga emotiva e o rol de intenções da primeira estrofe.

Ele segue um desenho melódico descendente em suas notas, o que, amparado pelo

tom melancólico da base harmônica (criada para Carlos Paraná cantar, mas

registrada por Adauto Santos, dado o falecimento precoce do primeiro compositor

em meio aos processos de gravação) e à imagem quase cinematográfica que o texto

descreve, resulta num sentimento de distanciamento, endossado pelo tempo verbal

proposto. Vale registrar, a imagem descrita assemelha-se iconicamente à paisagem

da propriedade rural em que o compositor nasceu, rodeada de pastagens planas e

regatos, sobretudo os estreitos e rasos Ribeirão Barra Grande e Ribeirão Claro, que

se unem justamente à altura da antiga casa dos pais do compositor.19

“Cheguei tarde nos amores/ fui menino só, sem primas/ só mais tarde é que

fui tê-las/ e eram cordas, e eram rimas”, adentra o terreno mais recorrente em Carlos

Paraná. O descompasso interno com as questões do coração acena com a

esperança de um enamoramento tardio, que no próximo verso é desfeito pela

revelação arquitetada na música, como o único elemento capaz de ser recíproco a

ele, simbolicamente, em seus sentimentos. A sequência melódica de cada um dos

versos igualmente reflete a frustração, pois a nota atingida no último verso

esperançoso (“só mais tarde é que fui tê-las”) trata-se da mais aguda da canção,

coberta pelo acorde Maior, capaz de abrir horizontes positivos na percepção do

ouvinte, para, a seguir, a melodia retornar para sua região mais grave, num

movimento indicador do habitual conformismo panorâmico, implícito no próprio fato

de estas informações estarem sendo expressas em andamento quase arrastado, o

18

Vale frisar que as inferências aqui propostas, ancoradas sobre a pesquisa de campo e a análise

pormenorizada das canções apresentadas, são de cunho autoral e refletem a preocupação do autor deste trabalho de produzir relações e modos de se compreender uma obra sobre a qual até então não há indícios de estudos mais aprofundados.

19 Informação observada in locu pelo autor deste trabalho, em uma de suas viagens a Ribeirão Claro,

durante a qual foi guiado pelo terceiro irmão do compositor - José Carlos - à propriedade onde passaram a maior parte de suas infâncias.

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que se confirma nos últimos versos dessa segunda estrofe, em que o eu lírico

resigna-se com o direito de sentir saudades.

O olhar objetivo e até frio proposto em toda a terceira estrofe, recoloca o

ouvinte na atmosfera limosa que a repetição da melodia parece ter por intenção

suscitar, já que este sentimento complementa, com efeito, a paleta de sensações

que vão impregnando os ouvidos. Parece clara a posição do compositor, que fala de

um púlpito imaginário, onde o que lhe resta é olhar para trás e fazer seu balanço de

vida, já que parece intuir não ter pela frente um futuro largo.

Fica, neste sentido, colocada implicitamente a questão da lembrança, seja

esta do autor com relação a fatos concretos de sua vida ou, em última análise, das

nossas próprias como ouvintes, mesmo que, de forma abstraída, esta lembrança

refira-se a fatos ainda não vivenciados, isto é, remeta-nos a um universo talvez

inexistente na prática, mas do qual todos estamos imbuídos de alguma maneira: a

questão de como enfrentaremos no futuro, nossa própria ausência de perspectiva.

Aplicado especificamente a um caso de análise estética musical, uma referência

filosófica pode complementar a reflexão acerca do tema:

Mas, uma nova questão se coloca: ouça uma música. Como a apreendo? Captando tudo, recordando de tudo, entrando em comunhão total com sua matéria e dizendo assim que o tempo passa, que se trata de uma arte temporal? Considerando o binômio esquecimento e memória, a resposta seria não. Pensemos na caverna (...). Se relativizarmos a concepção de Platão de que conhecer é lembrar do estado anterior ao nascimento, poderemos afirmar que cada mudança ou morte de um estado representa, ao mesmo tempo, o nascimento de outro (SEINCMAN, 2007, p. 204 e 205)

Com isso, Seincman abre a perspectiva para compreendermos a obra de

Carlos Paraná no sentido estrito do que seu conjunto é capaz de vibrar

verdadeiramente, à sensibilidade do ouvinte. Uma primeira audição de “Último

canto”, isto é, o momento de seu conhecimento, traz para o plano concreto o sentido

mais recôndito da alegoria da caverna de Platão, com a sensação real de uma

lembrança de algo que é arquetípico e universal, isto é, presente interiormente na

vida de todos, o que, evidentemente, torna-a atemporal; qual seja, a nítida sensação

de nostalgia tanto das coisas que se foram, quanto das que estão por vir, já que,

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poeticamente, o universo da arte autoriza este tipo de analogia aparentemente

desconexa, sem sentido ou por demais arbitrária.20

Melhor dizendo, o que é resgatado, são elementos presentes no subterrâneo

de nossa memória emotiva e que vêm à tona mediante o estímulo de uma obra que

em todos os seus aspectos funciona como elemento catalisador dessas lembranças

do por vir – já que inclusive o tema da canção aborda, de modo mais amplo, a

questão da nostalgia próxima, neste sentido, do mito do eterno retorno.

“Lavrador, eu sou dos grandes/ cantador, sou dos pequenos/ ferramentas

tenho muitas/ pinho e cordas, tenho menos”. Luiz foi agricultor até os 20 anos.

Trabalhou na roça, sempre como meeiro na propriedade de outras pessoas e, até

que sua família tivesse condições para adquirir o pequeno sítio próximo à cidade,

toda sua infância e adolescência já teriam sido fortemente marcadas pela

consciência da hierarquia naturalmente existente entre o lavrador e o dono das

terras, ainda que se fale numa relação de percentagens, na retirada da produção de

café. O contraponto poético encontra simetria invertida na imagem do cantor popular

capaz de dar voz à sua gente com sua arte, fechando como que numa gestalt, a

idéia de um real semeador – roceiro dos anseios e desilusões, sintetizador intuitivo

de sua gente e do espírito onírico de sua terra, idéias estas que se unem na fusão

dos instrumentos musicais às ferramentas de trabalho diário de um trabalhador rural.

Paraná é visto por músicos, amigos e estudiosos como um compositor

romântico de idéias simples, enxutas e, por este mesmo grau de depuração,

capazes de trazer em seu bojo a possibilidade mais profunda de analogias e

inferências. Habita o terreno do verso popular e não se quer altamente elaborado

intelectualmente, já que tem de atingir a todos, em sua proposta de difusão de

gêneros e preservação da tradição cultural de seu país, o que não significa em

momento algum, simplificações facilitadoras, e sim um maior acuro na busca da

forma essencial. Na frase-semente, na idéia-cerne deste pomar sonoro.

20 Vale mencionar que, segundo o professor e filósofo nietzschiano Oswaldo Giacóia Júnior, em diálogo com o autor deste trabalho: “esta interpretação da Alegoria da Caverna dá ênfase a vividos afetivos universais, como sentimentos e emoções, e não aos conteúdos lógico-cognitivos, como as essências inteligíveis platôncias”.

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Para tanto, identifica-se em sua obra, a limpeza estética proposta pela

Bossa Nova; e, se em suas opções como melodista, Paraná deixa-se guiar mais por

águas paraguaias, argentinas ou mariachis, trazendo para estas temáticas, as

visões de mundo mais próximas das dores de cotovelo das década de 1940 e 1950

bem representadas por ídolos – de quem se tornaria inclusive amigo -, como Dalva

de Oliveira e Maysa, por exemplo -, não esqueceria, por outro lado, seu convívio

com o mestre João Gilberto, nem a força de explosões sonoras como o igualmente

já citado advento do baião, do qual herdaria também a sofisticação harmônica,

assim como um gradual auxílio no clareamento das colorações mais presentes nas

imagens sonoras que produziu. Assim, claro, como a própria temática do regional

(que, se antes de Gonzaga era encontrada em nosso cancioneiro de modo

esporádico e com um caráter ainda indefinido, depois deste, oficializou-se como uma

das linhas possíveis e mais bem aceitas do mercado fonográfico).

“Último canto” traz em sua proposta estética, portanto, muitos desses

elementos. É uma canção de cores que tendem a matizes azulados se fossemos

tratar a questão sob um viés mais subjetivo – o que, curiosamente, compactua com

o que Paraná registra em outra letra (“é azul minha saudade/ minha saudade do sul”,

de “Terra dos pinheirais”), obrigando-nos a desvendar uma certa névoa sonora para

que as palavras possam emergir com sua pureza original (não no sentido da

ingenuidade, mas da ausência de preconceitos e contaminações).

Deste modo, termina a última obra deste compositor, com a sensação física

de se estar saindo de um sonho distante e capaz de conter sentimentos pertinentes

a todos, além de nos envolver, devido a sua aparente dissonância da realidade pós-

moderna que tanto nos impinge atualmente à frenética falta de tempo que peças

musicais como esta nos obrigam ter, para sua mais ampla e real compreensão: a

dos sentidos.

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3 A CULTURA DA METRÓPOLE: TRADIÇÃO E MODERNIDADE

Mas a taba cresceu... Tingueras agressivas, Pra trás! Agora o asfalto anda em Tabatinguera.

Mal se esgueira um pajé entre locomotivas E o forde assusta os manes lentos do Anhanguera.

(“Tabatinguera”, de Mário de Andrade)21

Em decorrência da argumentação anterior, estabelecida entre os conceitos

pertinentes à memória e esquecimento, bem como pela breve análise biográfica de

cunho autoral referente à obra de Luiz Carlos Paraná, neste terceiro capítulo tentar-

se-á abordar as transformações que se manifestam na esfera cultural em que se

observa forte oposição entre a afirmação da tradição e os novos paradigmas

modernizadores da metrópole, assim como a propensão deste compositor aos

temas e ritmos tradicionais, em meio ao atravessamento dos movimentos

modernizadores da música popular, sobretudo nos ambientes da Bossa Nova, do

Tropicalismo e da afirmação do rock brasileiro.

A localização desta oposição entre a tradição e o desenvolvimento tem seu

foco fundador na Semana de Arte Moderna, de 1922, mas irá se manifestar mais

concretamente na passagem da década de 1950 para a de 1960. A presente etapa

deste estudo buscará compreender o ambiente em que Carlos Paraná se insere e

de que modo ele atua neste período. O que estava acontecendo culturalmente em

São Paulo e como sua experiência interiorana convive com o choque com a

modernidade que ele já vinha sofrendo (ainda que menos intensamente) nos anos

de residência em Curitiba e no Rio de Janeiro (1956 a 1959), até chegar à capital

paulista; e de que modo, ainda, o embate entre essas duas tendências tiveram

dentro dele alguma relação com a não preservação de sua memória.

21 SOUZA, Gilda de Mello e (seleção). Melhores poemas de Mário de Andrade, p. 28.

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Como foi visto, a produção de memória numa sociedade corresponde a um

processo claramente circunscrito ao presente. Em outras palavras, é o cruzamento

de fatores e agendamentos do presente, que determina a pauta daquilo o que será

rememorado no futuro. Luiz Carlos Paraná não entrou nesta pauta.

Até a década de 1930, segundo Glauco Barsalini, os elementos rurais

marcaram fortemente as culturas urbanas. Não era de se estranhar, uma vez que a

própria origem das nossas cidades tinha fortes lastros ancorados no campo e

inclusive na produção do café. Carlos Paraná nasceu neste período, num contexto

social, aliás, baseado economicamente na cafeicultura, e viu sua infância e

juventude desenrolarem-se junto da intensificação do processo de modernização

social que se consagraria na década de 1960 – e cujas raízes se encontravam, em

certa medida, no final do século XIX22. Mas agora, com sua casa noturna aberta e

com razoável prestígio no meio artístico e boêmio da cidade, o compositor parecia

tentar compreender a nova lógica das cidades e conviver com as tendências

artísticas dessa metrópole.

Como sabemos, O Jogral foi símbolo cultural de um momento social;

momento este, resultante direto dessa marcha rumo à urbanização de São Paulo, e

cujo processo se vinculou diretamente “ao progresso industrial e consequente

abertura de mercados” (CANDIDO, 2003, p. 207), o que gerou, por sua vez, para o

homem do campo, representado neste caso pela família de Carlos Paraná, uma

invasão de valores alheios à sua cultura. A contrapartida da modernização esteve,

portanto, igualmente presente na vida do compositor e de seus parentes mais

próximos, o que, evidentemente, refletiu-se em sua obra. Sobre como o interiorano

passou a lidar com essa transformação, Antonio Candido registrou:

22

Em “Raízes do Brasil”, Sergio Buarque de Holanda estabelece relações entre o fim do escravismo, em 1888, e o início de uma era modernizadora no País. Vale também notar a coincidência temporal existente entre a gradual redução das “formas tradicionais” de vida e a “diminuição da importância da lavoura do açúcar durante a primeira metade do século [XIX, bem como] sua substituição pela do café” (HOLANDA, 1995, p. 173). Esta, por sua vez, acelerou em definitivo o processo de desenvolvimento das comunicações no País. Principalmente a das vias férreas, atraídas pelas zonas cafeeiras - fenômeno vivido de perto pela região de Ribeirão Claro. A cidade-natal de Carlos Paraná, a partir do início do século XX, beneficiar-se-ia da linha de ferro da Sorocabana que passava pela cidade vizinha de Chavantes e escoava até São Paulo, por meio da Estação Júlio Prestes, sua produção dos pequenos grãos vermelhos que revolucionaram a história econômica do Brasil e do mundo.

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Surgem assim, para o caipira, necessidades novas, que contribuem para criar ou intensificar os vínculos com a vida das cidades, destruindo a sua autonomia e ligando-o estreitamente ao ritmo da economia geral, isto é, da região, do estado e do país, em contraste com a economia particular, centralizada pela vida de bairro e baseada na subsistência. Doravante, ele compra cada vez mais, desde a roupa e os utensílios até alimentos e bugigangas de vário tipo; (...) Por outras palavras, surgem relações compatíveis com a economia moderna, que o vai incorporando à sua esfera (CANDIDO, 2003, p. 207).

Se nos anos 1920, o Brasil dos modernistas passou a receber de poetas,

romancistas, sociólogos e historiadores, trabalhos em torno de seu processo de

formação e desenvolvimento (como Mário de Andrade e Gilberto Freyre), partindo de

uma reflexão em função de nosso povo e seu caráter, a década de 1930, como

mencionado, funcionou como limite para a relação do ufanismo – e,

consequentemente, desta busca pela reconciliação do brasileiro com suas origens –

com a percepção da pujança grandiosa de nossa natureza. Noutras palavras, as

décadas posteriores ao movimento modernista, sobretudo a de 1950, como atesta

Claudio Bojunga, operaram não mais no sentido de buscar nestes elementos, a

compreensão de nossa identidade, mas justamente na consciência de nosso imenso

atraso.

JK não foi o primeiro a compreender isso e, a partir daí, lutar de forma

desmedida contra o derrotismo no Brasil. “O sonho modernizador e industrial (...)

tinha raízes antigas: a grande oportunidade surgira nos anos 50 do século XIX,

quando a Lei Eusébio de Queiroz (1850), proibiu o tráfico” (BOJUNGA, 2010, p. 55)

de escravos. O decreto propiciou a transferência do dinheiro destinado até então

àquela atividade, para outros negócios, mais rendosos, e rapidamente farejados pelo

visionário Irineu Evangelista de Souza, o futuro barão e visconde de Mauá que, em

grande medida, antecipou o movimento do País rumo à sua modernização mais

efetiva.

[Mauá] define seu propósito em 1878: “Reunir os capitais, que se viam repentinamente deslocados do ilícito comércio, e fazê-los convergir a um centro de onde pudessem alimentar as forças produtivas do país, foi o pensamento que me surgiu na mente ao ter certeza de que aquele fato era irrevogável”. O fim das revoltas armadas pacificara o país e abriria o caminho para a era Mauá. O Brasil passa a construir ferrovias e telégrafos, começa a fabricar chapéus, sapatos, rapé, cerveja, sabão. Irineu Evangelista de Souza, o barão de Mauá, é o patrono dos empresários, dos empreiteiros, dos ousados, encarna o sonho de um Brasil pujante e

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próspero como os Estados Unidos. Foi um banqueiro das ferrovias, o empresário da navegação e da inovação tecnológica, das fábricas de manilhas e do cabo submarino (...) (BOJUNGA, 2010, p. 55)

Tudo isso muito antes do salto que a população brasileira daria entre 1940 e

1960, em decorrência justamente da modernização que aumentava a longevidade

das pessoas e diminuía a taxa de mortalidade infantil. De 41.114.000, nossos

índices populacionais subiram para nada menos que 70.799.000 habitantes, como

atesta Barsalini, apesar de a população produtiva continuar sendo

predominantemente rural – proporcionalmente menor em relação aos anos 1950, é

bem verdade.

No livro “Leituras brasileiras: itinerários no pensamento social e na

literatura”, as autoras Mariza Veloso e Angélica Madeira constituem uma espécie de

estudo do processo de formação da cultura brasileira, como bem define o Ministro

das Relações Exteriores Luiz Felipe Lampreia quando da publicação da obra, em

seu texto de apresentação. O livro demarca claramente, no contexto cultural da

década de 1960, as vertentes ideológicas mais expressivas que estavam se

manifestando e, de certa forma, modificando os rumos da música especificamente: a

conservadora (de um Brasil arcaico); a ideológica (repensando a tradição a partir do

aspecto emancipador da cultura, por meio de instituições como ISEB e CPC, das

quais se tratará a seguir); e, por fim, a corrente da vanguarda (que visa à união das

duas anteriores, caso do movimento tropicalista).

Para que possamos entender o modo como Carlos Paraná permitiu que se

chocassem nele a percepção de sua realidade provinciana com a desta nova cidade

que aos poucos se formava, passemos, a partir de então, a fixar nossa atenção nos

anos 1960 e em seus contrastes com a década anterior, visando o melhor

esclarecimento possível da transição entre os signos de cada período e a

consequente constituição de um cenário propício ao planejamento da preservação

de alguns tipos de memória social, bem como de esquecimentos.

Decorrentes da Segunda Guerra Mundial, registram Mariza Veloso e

Angélica Madeira, o Brasil colheu transformações como a consolidação de seu

parque industrial e a aceleração de seu processo de urbanização, bem como a

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significativa entrada de indústrias e capitais estrangeiros em solo brasileiro. Nas

ciências sociais, as décadas de 1940 e 1950, vivem o início de sua

institucionalização nos centros acadêmicos “de ensino e pesquisa, rompendo com a

tradição ensaística anterior. Duas instituições se destacam (...)” (MADEIRA;

VELOSO, 1999, p. 180). São elas: a Universidade de São Paulo (USP), fundada em

1934; e o carioca Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), de 1955.

Com a primeira, buscava-se a representação da autonomia na pesquisa

acadêmica em relação a outras instâncias de poder, buscando a internacionalização

de seus procedimentos. Intelectuais como Florestan Fernandes encaminharam

estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo e os processos de “dependência”

do Brasil. (MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 180).

Neste cenário, já na década de 1950, e em consonância com essa visão, foi

fundado o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, na criação do qual nos

deteremos mais aprofundadamente:

No segundo semestre de 1954, [o poeta Augusto Frederico] Schmidt

apresentou [JK], na casa de Israel Klabin, a um grupo de intelectuais que

haviam fundado o grupo de Itatiaia, o Instituto Brasileiro de Economia,

Sociologia e Política (IBESP) e que, no ano seguinte, se tornaria o Instituto

Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), ainda sob o governo Café Filho. Os

isebianos se mostravam dispostos a dar sustentação ideológica ao

desenvolvimentismo juscelinista. A partir de meados de dezembro, JK

começou a visitar as organizações do partido em cada estado para garantir

a indicação e legitimar sua candidatura. Prometeu desenvolvimento para o

interior do país, obras públicas, estradas, energia elétrica e combate à seca

(BOJUNGA, 2010, p. 354)

Vinculado à estrutura do Ministério da Educação, o ISEB visava à

elaboração de um modelo de desenvolvimento social, via reflexão de seu grupo de

intelectuais que falavam, por exemplo, em “tradição de carência” aludindo à cultura

colonial como condição de nossa alienação. É partindo dos princípios que Guerreiro

Ramos, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e Nelson Werneck Sodré elaboraram

sobre a força operacional das ideias, que se formula uma “nova modalidade de

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nacionalismo” (MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 181), em busca de independência

cultural e econômica, sendo ambas atreladas e, portanto, partes integrantes de uma

mesma estratégia.

O grupo atua no processo de elaboração do “plano de metas” de JK,

integrado que está em seu ideal desenvolvimentista e, portanto, na inserção do

Brasil num “sistema capitalista internacional” de forma autônoma, o que reflete o

processo de especialização intelectual que o Brasil vivenciou após o Modernismo.

Com isso, a industrialização era vista como possibilidade de saída de uma realidade

agrícola atrasada, rumo ao futuro e à cultura.

Na arte, as décadas de 1950 e 1960 valeram-se dos parâmetros

pesquisados e experimentados pelas vanguardas modernistas, chegando a um

“apuro formal” representado por estéticas como a do Concretismo, do

Construtivismo, da Bossa Nova e do Cinema Novo. O cinema, aliás, foi utilizado

como intensa forma de ação cultural no combate à alienação do País. No entanto, o

ISEB só resistiu até 1964. Três dias após o golpe militar, o instituto foi extinto,

submetido a inquérito policial militar e alguns de seus cientistas sociais foram

investigados e exilados.

Vinculados ao ISEB e à União Nacional dos Estudantes (UNE), e revelando o deslocamento das posições políticas anteriores para outras mais revolucionárias, surgem os Centros Populares de Cultura (CPCs), que se propõem a desenvolver a consciência das massas por meio da arte. Uma produção cultural altamente ideologizada e engajada, que incluía panfletos, poesias, peças de teatro e músicas, pretende cumprir a missão de emancipar politicamente o povo e aproximar os artistas e intelectuais da massa. Outro movimento artístico marcante da época, o Cinema Novo apresenta uma visão crua e sem idealizações, do Brasil e da América Latina, renovando a linguagem cinematográfica em Vidas secas (1964), de Nelson Pereira dos Santos, e Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, para citar apenas dois dos numerosos filmes que tematizaram as contradições mais agudas da realidade brasileira. (MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 181)

23

23

Grandemente influenciados pela Nouvelle Vague, aliás, e por suas propostas estéticas e temáticas,

assim como pelo Neorrealismo em certa medida, esse grupo de jovens brasileiros ávidos de romper radicalmente com o estilo cinematográfico importado de países como os Estados Unidos, encontrou nestas referências sociais e políticas da época o ponto de comunhão exato para a elaboração de uma linguagem própria e totalmente vinculada à tentativa de traçar uma identidade do país, representada, quase como que numa metonímia, pelas questões especificamente nordestinas da época. Estas traziam em seu bojo o potencial revelador de uma estrutura mais ampla, possibilitando por meio da gramática cinematográfica, a criação de um universo onírico capaz de dialogar em todas as épocas históricas do país. Uma das principais obras do Cinema Novo - e da cinematografia brasileira de

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Na música, um capítulo à parte desenrola-se no Brasil do final dos anos

1950, acerca deste processo de modernização, iniciado com nomes tais como

Carlinhos Lyra, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Nara Leão, Newton Mendonça,

Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto. É na onda desenvolvimentista de

JK que a nova batida ao violão, consagrada oficialmente em 1958, encontra eco e

identificação para revolucionar esteticamente, todos os elementos musicais da

tradicional canção brasileira, sejam estes harmônicos, rítmicos, melódicos ou

interpretativos (CASTRO, 1990).

É no processo de depuração e síntese pelo qual não apenas a cultura

brasileira, mas todo o mundo, vinha passando, que o estilo de emissão vocal, por

exemplo, altera-se, e Luiz Carlos Paraná também reflete muito bem esta transição,

estando num estágio intermediário de interpretação, a meio caminho entre Francisco

Alves e João Gilberto – lembrando, ainda, que Carlos Paraná e João Gilberto foram

amigos por dividirem um quarto de pensão em Copacabana, no ano de 1958.

Neste momento é que o Brasil se desvincula de certa obrigação do canto

operístico (muito associado à influência da música europeia e, neste sentido,

distante da atual busca por uma identidade própria), para levar às últimas

consequências, a proposta interpretativa iniciada com Mário Reis, do canto mais

próximo ao linguajar cotidiano. Com João Gilberto, chegou-se ao sussurro quase

falado, como que na busca da real embocadura de nossa gente.

Qual a dicção melhor expressa nosso povo, qual ginga sonora retrata o

andar de nossas mulheres pelas praias; são questões que – mais que “dar voz” à

nação – acabam por articular, ainda que ancorado na realidade cotidiana de um

grupo bastante específico da zona sul carioca, todo um pensamento em torno do

reconhecimento de uma identidade nacional.

todos os tempos -, Deus e o Diabo na terra do sol (1964), do baiano Glauber Rocha, tornou-se referência na temática do cangaço, nome dado a grupos de bandidos que assolaram o nordeste brasileiro entre os séculos XIX e meados dos XX. (COSTA, 2000).

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A questão, aliás, foi ordem do dia, sobretudo ante a percepção do progresso,

quando visto como “ameaça” para as tradições de nosso saber popular. Daí o

folclore ter ganhado, desde 1947, maior representação com a Campanha Nacional

do Folclore vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e dirigida por Renato de

Almeida.

“A partir do início dos anos 1960, as ‘tradições do povo’ deixam de ser tratadas como ‘folclore’ e passam a ser interpretadas como manifestações de ‘cultura popular’. (...) Os artistas e intelectuais da década (...) viam nas fontes populares uma dinâmica cultural forte, capaz de propiciar novas formas de comunicação entre os intelectuais e o ‘povo brasileiro’. (...). Assim como nos anos 1950, cognominados de ‘anos dourados’, tudo era ‘novo’ – Bossa Nova, Cinema Novo -, nos 1960 tudo se tornou ‘popular’ – Centro Popular de Cultura (CPC), música popular brasileira (MPB) -, nos anos 1970, todas as manifestações estéticas que não se identificavam com o status quo, eram denominadas ‘marginais’” (MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 182, 183 e 186)

A virada da década de 1950 para a de 1960 no Brasil, ficou muito marcada,

ainda, por inúmeras manifestações de ordem não apenas cultural, mas política –

num especial amálgama de ambas. Uma delas, o Movimento de Educação de Base

(MEB), tinha em vista a alfabetização e a conscientização por meio das ideias do

pedagogo Paulo Freire, em complemento a outras iniciativas comprometidas com o

resgate de valores do povo, tais como o Movimento de Cultura Popular (MCP).

Mas a partir do golpe de 1964, importantes e radicais transformações

políticas e ideológicas afetaram decisivamente nossa produção cultural e artística.

“Se o movimento militar viera colocar nos eixos um processo de modernização, seus

efeitos ideológicos imediatos encenavam um espetáculo tragicômico de

provincianismo” (GONÇALVES; HOLLANDA, 1982, p. 13), e organizações como os

CPCs, por exemplo, foram então rapidamente desfeitas.

Enquanto a indústria cultural no Brasil “se consolida e a cultura popular

internacional começa a entrar no mercado de forma mais intensa e sistemática”

(MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 184), uma cultura de massas passa a ser veiculada

pela TV, que em 1965 vê nascer a futura potência da Rede Globo – e, com este

novo tipo de formação cultural, o fim definitivo da rígida dicotomia existente entre os

signos do erudito e do popular, dado o caráter heterogêneo das novas linguagens

que passam a incorporar elementos oriundos de searas até então distantes.

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Naquele momento, contudo, era a TV Record quem detinha a hegemonia e

congregava os principais movimentos da nossa música popular, seguindo a linha

direta de shows da televisão americana. A exemplo dos programas apresentados

nos Estados Unidos por Judy Garland ou Frank Sinatra, o brasileiro O Fino da Bossa

era comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Como este, outros tantos produtos

televisivos fizeram enorme sucesso no Brasil dos anos 1960, tais como o programa

Jovem Guarda e os festivais de música popular.

Não se pode aqui, deixar ainda de realçar a ligação de Luiz Carlos Paraná,

direta ou indiretamente, com ambos, já que ele participou dos festivais da Record

nos anos de 1966 e 1967 e teve também uma de suas canções defendidas pelo líder

do movimento que dera nome àquele programa. No primeiro festival, sua canção

“De amor ou paz”, em parceria com Adauto Santos, obteve um segundo lugar,

defendida pela cantora Elza Soares, logo atrás do empate de “A banda” e

“Disparada”. E em 1967, “Maria, carnaval e cinzas” ficou em quinta posição,

interpretada pelo ídolo Roberto Carlos, um dos apresentadores e líder do programa

citado, encabeçado também por Erasmo Carlos e Wanderléa.

Era o início de um discreto reconhecimento midiático para Carlos Paraná,

que possivelmente teria criado nós mais sólidos e capazes de deixar rastros efetivos

de sua obra para a preservação de sua memória num futuro próximo, caso não

tivesse falecido tão precocemente, aos 38 anos. É bem verdade, em contrapartida,

que nem todo esse início de contato com o meio televisivo partiu dele com muita

naturalidade, dada sua clara resistência ao movimento liderado por Roberto Carlos,

por exemplo.

Tanto o fundador, quanto os frequentadores de O Jogral, ligados ao bar

também pelo viés ideológico e sentimental, entendiam a Jovem Guarda como uma

porta aberta para a invasão de estrangeirismos, visto pejorativamente pelo grupo, de

modo que hoje se torna praticamente impossível sabermos, de fato, até onde iria o

intuito de Carlos Paraná em continuar vinculando seu nome ao de qualquer

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movimento de maior visibilidade, mas que lhe escapasse às crenças artísticas

pessoais, estando estas em claro desajuste com a estética vigente.

A própria escolha de Roberto Carlos para interpretar “Maria, carnaval e

cinzas” deu-se, segundo relato deixado em livro pelo publicitário Marcus Pereira

(sócio de Paraná), de maneira bastante gradual, dado o tempo gasto pelos amigos

para convencer o ribeirão clarense de que aquela seria a melhor saída, diante do

fracasso na busca pelo “intérprete ideal” - Sílvio Caldas, um dos ídolos de Paraná.

Além disso, era por opção que a postura do compositor fora a de evitar ambientes

que fugissem de seu círculo de amizades íntimas. O artista parece ter estado

sempre em busca de um universo que reproduzisse o da vida simples e matuta de

sua juventude, o que o mantinha restrito a um grau de exposição menor do que o

que ele poderia, eventualmente, ter assumido.

Pelo Tropicalismo, contudo, não consta que Carlos Paraná nutrisse

proporcional antipatia, como a que lhe inspirava a Jovem Guarda; talvez mesmo,

pelo caráter conciliador do movimento com as formas tradicionais de nossa canção

(mesmo que alegoricamente). Já Chico Buarque, era para o compositor um dos mais

legítimos representantes da canção brasileira moderna, já que assumia como

poucos os elementos sintonizados com a urbanização do País, sem perder de vista

a genética da tradicional seresta, que tão fortemente marcara a juventude interiorana

de Luiz Carlos Paraná. Neste tipo de manifestação, cantam-se temas da tradição

poética antiga e da norma culta. A “função” da música era a de fazer dançar, fazer

lembrar dores de cotovelo ou empreender o sonho. A partir do embate da tradição

com a modernidade, letras como as propostas pela Bossa Nova trazem o signo da

informalidade, da coloquialidade.

Se retomarmos, ainda, os principais traços do contexto social daquela

década, encontraremos, inclusive internacionalmente, um momento de intensa

transformação, cujo reflexo inevitavelmente atingiu a realidade brasileira, pondo

igualmente em cheque, valores artísticos que passavam, rapidamente, a ser

associados com estéticas ultrapassadas. É na década de 1960, que a crise mundial

chega a seu apogeu. Acontecimentos como o assassinato de Kennedy, a Guerra do

Vietnã, a ocupação soviética no leste europeu e as grandes revoluções de costumes

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- explicam Madeira e Veloso -, “provocam uma crise de valores expressa com

grande força nos movimentos de juventude que se expandiram pelo mundo”

(MADEIRA; VELOSO, 1999, p. 183) de forma bastante ampla.

Os anos 1960, não apenas no Brasil, mas no mundo todo, representam um momento muito significativo, quando a juventude começa a encontrar signos de identidade por meio, por exemplo, da contracultura. Isto é, a juventude passa a ocupar um lugar na sociedade, logo após esta virada da década anterior, quando o Brasil deixa suas feições mais rurais – e aqui estamos falando também da mentalidade, que era provinciana – em direção a uma realidade urbana e industrial. São Paulo representou muito bem esta transformação e até hoje concentra uma característica cosmopolita e mais internacionalizada; assim como a música, que parece ter sido o principal índice dessa transição. Os principais compositores eram jovens, o que já estava no conceito da Bossa Nova – que, aliás, veio se nacionalizar em São Paulo. Dessa maneira, todo o cenário cultural se configurou para que a música sintetizasse essa temática da transição entre tradição e modernidade. Ela representava para a juventude daquele momento, justamente essa tendência para o futuro, para o novo. A identidade que se gerou com a produção daqueles compositores trazia um sentimento muito forte de que “isso é nosso”. Não dos velhos, não da outra geração. Claro que havia debates culturais, antagonismos políticos e discussões de várias ordens bastante profundos. Tudo isso era muito importante. Mas a música foi a grande representante dessa passagem. Tanto que a Era dos Festivais, por exemplo, despertava paixões alucinantes. Amores e ódios, passeata contra guitarra elétrica. Por isso soa mais contraditório ainda, que justo no contexto musical, um representante como Carlos Paraná tenha ficado para trás na questão da documentação histórica.

24

Neste contexto, que ficou marcado não propriamente pela negação da

Bossa Nova, mas pela superação de seu exclusivismo, Luiz Carlos Paraná

promoveu em seu O Jogral, uma retomada de cantores e compositores do morro e

da velha guarda, como Clementina de Jesus, Cartola, Carlos Cachaça, Nelson

Cavaquinho, Luiz Gonzaga e Adoniran Barbosa, apesar de ter sido também um

berço bastante acolhedor de novas manifestações – inclusive o samba-rock (que,

como exceção, era executado sem guitarra pelo Trio Mocotó).

Com Caetano e Gil, o “aproveitamento” tropicalista, irônico e alegórico, das

manifestações antigas e modernas do País, dentro da atual lógica de consumo,

produziu, como mencionado antes, um cenário de hibridismo cultural, que dava

abertura para a fusão de autores como Vicente Celestino com arranjos

ultramodernos feitos com guitarra elétrica, adotada também por Roberto Carlos e os

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Considerações de Maria Lucia Santaella, em sua entrevista para este trabalho concedida no dia 3

de julho de 2011.

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artistas da Jovem Guarda, fortemente influenciados pelo rock inglês liderado pelos

Beatles.

Música, cinema, artes plásticas e literatura passaram, com tudo isso, numa

espécie de entrelaçamento, a compor com suas inovações, um reflexo das

mudanças vivenciadas intensamente nestes anos pelo País e pelo mundo. Assim

como o teatro, que teve sua historiografia marcada decisivamente pelas propostas

de rompimento estético de grupos como o Arena e o Oficina, em montagens

históricas como “Eles não usam black-tie” (1958), “Arena conta Zumbi” (1967), e “O

rei da vela” (1967).

Neste momento de efervescência, Luiz Carlos Paraná não foi nem um

completo afirmador da tradição, nem um defensor da vanguarda. Assumiu uma

postura híbrida em sua obra, que refletia, sob esse aspecto, o contexto de

imprecisão pelas novas definições, em que ele estava. Profissionalmente, por não

ser um compositor de grande produção (mas bissexto), nem um intérprete de tanta

proeminência, apesar de seu reconhecido talento, beneficiou-se da abertura de um

estabelecimento comercial que lhe garantiu sustento financeiro e certa projeção,

dada a fama alcançada com a qualidade de sua programação musical. O Jogral foi,

neste sentido, um espaço bastante privilegiado por conseguir congregar em seu

código genético, o conflito do universo urbano, já que aberto à incorporação de

tendências artísticas distintas, apesar de sua vocação tradicional. Este fator da

variedade, aliás, distingue fundamentalmente o próprio conceito do universo da

metrópole. No interior, ao contrário, a convivência com valores e aspectos

heterogêneos faz-se menos tolerante e, por isso, mais bem filtrada.

Para citar novamente o samba “De amor ou paz”, de Carlos Paraná e

Adauto Santos, vale dizer que, no provincianismo, não existe a dicotomia entre

esses dois elementos e nem, portanto, o mal-estar dela decorrente. A percepção

expressa na letra, de que “quem tem paz, amor não tem”, para além do mero

lamento pelos sofrimentos inerentes do amor, está igualmente a consciência trágica

e quase existencialista, típica de valores urbanos, que desmistifica e desconstrói a

chave da exaltação - própria do bucolismo. Neste, dificilmente se deixaria de

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idealizar o amor relacionando-o não apenas à perspectiva da paz, mas à profunda e

eterna felicidade, isto é, duas posturas basicamente antagônicas. Luiz Carlos

Paraná esteve em sintonia com essa transformação de valores, sobretudo porque

além de migrar do interior para a metrópole, ele o fez no período exato em que

ambos alteravam em alguma instância suas lógicas de funcionamento e

compreensão da realidade.

O resultado foi uma obra inicial bastante comprometida com a visão idílica

de elementos bucólicos de sua terra e juventude, bem como a alternância de ponto

de referência, quando deste salto para um olhar artístico em maior consonância com

a lógica citadina. Entretanto, esta transformação evidenciou também um grande

conflito em sua obra, notado em sutilezas de discurso adotadas pelo compositor,

mesmo quando em parceria com outros artistas. Isto porque, ainda que intuindo tais

mudanças sociais e artísticas em seu entorno, o modo como Luiz Carlos Paraná

incorporou esta percepção no subtexto de sua obra conteve, muito particularmente,

a nostalgia pela realidade que em tão pouco tempo ficava para trás – uma das

principais chaves para a compreensão de seu trabalho.

Assim, o que se expressa em suas letras e melodias, reflete um embate

claro da tradição que é trazida para a cidade, tendo como agravante deste choque, o

fato de que neste exato momento histórico, o País passava ainda por um especial

processo de “desrruralização”. Daí a consciência não somente do déficit humano

sentido pelo compositor na capital paulista, mas dos novos valores estéticos que, a

princípio contra sua formação, instituíam-se no ensejo de inúmeros adventos

tecnológicos que desde a década de 1950 se firmavam. Eram estes, representados

por multinacionais, indústrias automobilísticas, linhas branca de eletrodomésticos

(transição do fogão à lenha para o à gás), televisão, dentre outros.

Daí a opção do compositor por formas mais tradicionais e uma postura idílica

(nunca passadista ou reacionária), apesar de seu hibridismo advindo, sobretudo, da

percepção do novo mundo em que ele inevitavelmente entraria de modo ainda mais

intensamente, caso à sua doença ele tivesse sobrevivido. Deste modo, não apenas

o presente de modernização produziu uma instabilidade que compelia à memória

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afetiva da vida simples – sobretudo no eixo identitário, manifestado na cultura -,

como gerou, para Luiz Carlos Paraná, a cisão entre as suas noções de forma

estética ideal e a abertura conceitual do que viria a ser a música no Brasil daqueles

anos em diante.

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CONCLUSÃO: ÚLTIMO CANTO

“Em cada época deve-se fazer a tentativa de arrancar a tradição do campo do conformismo

que está sempre prestes a subjuga-la”

(Walter Benjamin)

Compreender e situar uma personagem, além das configurações da

notoriedade que esta possua, requer a dedicação de grande parte da pesquisa na

busca por aspectos situacionais relacionados com o contexto histórico e social, em

meio aos quais se desenvolveu esta personagem. Nesta monografia, a relevância do

cantor e compositor paranaense Luiz Carlos Paraná (1932-1970) encontra-se

justamente, e de modo particular, no fato de este deflagrar um processo de reflexão

que, há muito, o autor da pesquisa desejava enfrentar, para melhor entender alguns

temas da música, relacionando-os com a condição da memória cultural no País.

Para tanto, optou-se pela subdivisão temática em três eixos básicos, em torno

dos quais girou a discussão: o da memória e alguns mecanismos de seu

funcionamento; o da análise da sua produção musical, relacionados com aspectos

esclarecedores de sua trajetória pessoal; e, por fim, a tentativa de situar esta

produção musical na transição das décadas de 1950 e 1960, na cidade de São

Paulo, o que possibilitou refletir sobre a tradição e a modernidade; ou seja, buscou-

se relacionar aspectos em torno da constatação de que o compositor Luiz Carlos

Paraná posiciona-se como um artista que conhece e vive o presente das

transformações da metrópole, mas assume, em suas músicas, conexões quase que

inevitáveis com a tradição, o que pode estar relacionado ao esquecimento, nos dias

de hoje, da sua produção musical.

Mesmo tendo seu nome associado ao O Jogral e à significação que este

espaço assumiu na cultura paulista, sobretudo pelo fato de os frequentadores serem

os futuros nomes da primeira linha da música popular brasileira, ao se deter nas

letras de canções e no ritmo delas (samba-canção e modinhas), a presença do

embate entre o tradicional e o moderno, desvenda o modo pelo qual Carlos Paraná

obteve um resultado de coabitação de signos aparentemente antagônicos, numa

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tentativa menos consciente - e sem dúvida menos abrangente -, que Caetano e Gil

no Tropicalismo, por exemplo, mas ainda assim, capaz de gerar, dentro de suas

proporções, um movimento de novos e velhos artistas orbitando em torno da sua

figura, por meio de um popularíssimo centro de resgate e, ao mesmo tempo,

lançamento desses talentos que despontavam.

Luiz Carlos Paraná, não obstante o seu já apontado caráter de hibridismo,

assim como o ânimo que definitivamente nutria pelas novas gerações, ora de apreço

por Caetano Veloso, Geraldo Vandré e por Chico Buarque, ora de repúdio à Jovem

Guarda, deixou que sobrenadassem em sua obra, os valores da cultura tradicional

presentes não apenas na abordagem bucólica sobre o sentimento referente às suas

origens rurais, mas igualmente com relação às temáticas do amor, predominantes

em suas escolhas temáticas. Somente esta característica (classificada pelos críticos

de música como “saudosista”), analisada brevemente em mero confronto com o

contexto musical do País na época, já contornaria a ideia de um compositor

anacrônico.

Visto sob um ângulo mais aprofundado, contudo, o fenômeno denuncia por

meio deste aparente desajuste, um conflito interno e existencial bastante coerente,

inclusive, com sua personalidade taciturna, segundo apontaram amigos e parentes.

Tratava-se do principal indício da transformação pela qual o Brasil passava,

presente na obra do compositor, e por meio da qual se incutiu uma interessante

ironia. Isso porque, talvez inconscientemente, com uma canção de feições antigas,

Carlos Paraná acabou sendo um grande comentador de seu presente – mostrando

subliminarmente como nem sempre fora hegemônica a aceitação natural destas

mudanças estruturais, ainda que vistas pela maioria como positivas, porque

associadas à ideia de uma música, assim como o País, mais moderna.

A canção de Luiz Carlos Paraná reflete, deste modo, a transformação

modernizadora pela qual o Brasil passou entre 1950 e 1960, à medida que evidencia

seus conflitos em mudar também. Daí a fundação de uma casa noturna em que

pudesse abrir espaço para artistas que naquele momento já haviam sido esquecidos

ou rapidamente passados ao posto de Velha Guarda, o que não deslegitima em

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momento nenhum o desejo que Paraná possuía de incorporação de novos artistas,

servindo mesmo como berço para muitos dos estilos e ritmos modernos que fariam

sucesso décadas a fio, como o samba-rock do Trio Mocotó, depurado por Jorge

Bem, conforme mencionado no trabalho.

Contudo, Paraná produziu uma música que, apesar de todo seu mérito

artístico reconhecido por intérpretes, estudiosos e compositores, já não era o que se

esperava naquele momento. O novo era a ordem do dia. Até mesmo o Tropicalismo

dificilmente teria existido ou criado as referências intelectuais que se sustentam até

hoje se, aliado ao seu olhar para o passado, não estivesse embutida a inovadora

atitude de mescla, ironia e riqueza de gêneros que o olhar moderno de seus líderes

continha – isto é, trazendo o velho associado ao novo, alegoricamente, em seu

conceito: a inclusão da guitarra elétrica, a grande influência do rock inglês dos

Beatles e a reverência à tradição do baião, da marcha, da música de protesto e da

Bossa Nova.

Luiz Carlos Paraná, neste ambiente de atravessamento midiático da televisão,

das novas celebridades do rock e dos festivais de música, voltou-se para O Jogral

que acabou tornando-se – ainda que não parecesse ser este, o desejo genuíno do

compositor -, um local onde predominava a ideia de nostalgia e saudosismo. Neste

sentido, foi que também se criou uma espécie de família. Era a atuação de certo

senso de pertencimento unindo os artistas que também não se encaixassem

perfeitamente às estéticas do momento, como atesta claramente a cantora Inezita

Barroso, amiga e intérprete de Carlos Paraná, em depoimento para esta pesquisa.

De tal maneira amalgamaram-se esses fenômenos que, com as

características da obra composta pelo artista até aqueles anos 1960, não haveria, de

fato, maiores condições para que este entrasse na agenda dos movimentos culturais

de maior destaque do momento, estando, por assim dizer, à margem de um circuito

tido, a partir de então, como o “oficial”. Talvez, caso não tivesse falecido tão

precocemente, desenvolvesse um trabalho mais sintonizado àquele momento, como

parecia começar a movimentar-se a partir do destaque de suas canções nos

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festivais de 1966 e 1967, pela TV Record. Mas isto são apenas especulações que,

metodologicamente, não nos poderiam conduzir a lugar algum.

O que foi por este trabalho considerado factualmente, é que sua obra,

associada a este dito anacronismo e, claro, à sua postura matuta e resguardada,

não lhe propiciaria condições concretas de ser lembrado, por não ter produzido a

exposição e as marcas que o futuro rastrearia para retomar sua trajetória.

Vimos no primeiro capítulo, aliás, inteiramente dedicado ao delineamento dos

parâmetros que regem a questão da memória, que é o presente que cria a agenda

do que será lembrado do passado. Isto significa que, tanto a preservação de

memórias, quanto a manutenção de determinados fenômenos em total estado de

esquecimento, são ações socialmente planejadas, como sustenta Paul Ricoeur. Luiz

Carlos Paraná não deixou os rastros que aquele novo contexto lhe exigia. Pelo

menos não em termos de mídia e imprensa, pensando a preservação de sua

memória com a possível dimensão da de um dos nomes de relevância da atual MPB

(já que, em menor escala, esteve sempre presente nos jornais).

Hoje, distantes da efervescência das novas estéticas artísticas dos anos

1960, e com a já mencionada onda de biografias e resgate de manifestações

culturais, iniciada a partir de meados da década de 1980, criou-se mais sentido para

a pesquisa historiográfica sobre a obra de artistas como Carlos Paraná, do que

talvez houvesse nos próprios anos em que o compositor ainda vivia. Assim, no

segundo capítulo, tratamos de abordar aspectos biográficos do compositor, para

melhor explicitar sua opção estética, associada à forte influência interiorana.

A produção musical do ribeirão clarense, além de vasta ritmicamente e de

forte intenção lírica na escolha de temas, reflete o estado das coisas no que tange à

transformação histórica do momento em que eram compostas, e só pode,

naturalmente, receber esta abordagem, à luz do distanciamento temporal, o que faz

com que, ironicamente, mesmo escrita com o olhar voltado para o passado, ela só

pudesse ser compreendida em relação ao seu contexto, no futuro. Visto por este

ângulo, o esquecimento e seu consequente distanciamento temporal, acabou

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indiretamente funcionando como a principal chave para a compreensão e, neste

sentido, para o redimensionamento e a ressignificação do autor.

Afinal, a produção de memória histórica em nada ultrapassa os limites da

interpretação dos vestígios e testemunhos, tendo por referência o conjunto de

valores que permeiam o instante em que se tece a análise. Inspirado pelas novas

possibilidades deste olhar, próprias de um presente distante mais de quatro décadas

daquele, foi que este estudo buscou, por meio do caso específico deste compositor

paranaense, a compreensão mais ampla de um viés de nossa formação, bem como

a discussão de uma época-chave em que o País viveu intensamente, a

transformação de aspectos fundamentais de sua realidade.

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REFERÊNCIAS a) Livros

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b) Jornais, revistas PRATT, Van Der. Roteiro da Pauliceia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 jun. 1970. (Recorte sem demais informações). ROCHA, Janaina. O último canto de Adauto Santos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 ago. 1999. Caderno 2. SEM AUTOR. Paraná, Adauto e Elsa foram a surpresa do festival. Última hora, São Paulo, 14 out. 1966. (Recorte sem demais informações).

c) Lista de entrevistados

Aqueles sem os quais o trabalho de reconstituição biográfica simplesmente não existiria:

1. Abigail Mazzetti Carnieli (moradora de Ribeirão e amiga de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.

2. Airton Fonteque (primo de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.

3. Aluízio Falcão (jornalista e amigo de Carlos Paraná) Entrevista por telefone realizada a 30/09/2010.

4. Aldina Soares Barroso (Claudia Moreno) (cantora do Jogral) Entrevista por e-mail respondida a 10/11/2009.

5. Amélia Carlos (irmã de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 29/11/2009.

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6. Amélia Rocha Barroso (Claudia Barroso) (cantora e amiga de Carlos Paraná) Entrevista por e-mail respondida a 26/04/2010.

7. Ana de Oliveira Colioni (moradora de Ribeirão Claro) Conversa informal, s/d.

8. Ana Maria Elyseu Brandão (cantora do Jogral) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada em abril de 2010.

9. Antonio Candido de Mello e Souza (professor e crítico literário) Registro digital (Arquivo pessoal). Conversa realizada a 18/06/2011.

10. Antonio Carlos de Campos (Carlinhos) (porteiro do Jogral) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.

11. Antônio Teodoro de Oliveira (“Toninho da farmácia”, exército) Entrevista por telefone. s/d.

12. Benedita Fonteque (prima de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.

13. Chico Anysio (ator, dramaturgo, humorista e júri do Festival de 1968, da TV Record) Conversa informal. s/d.

14. Claudio Hercílio Araújo (ex-morador de Ribeirão Claro) Entrevista por telefone. s/d.

15. Clélia Chammas (amiga de Carlos Paraná) Conversa informal. s/d.

16. Dinamérico Aguiar (amigo de Marcus Pereira, sócio de Carlos Paraná) Conversa informal. s/d.

17. Domingos Brambilla (morador de Ribeirão Claro e amigo de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.

18. Eduardo Alves de Lima (Proprietário da Fazenda Monte Claro, em Ribeirão Claro, onde Carlos Paraná compôs a famosa canção “Flor do cafezal”) Entrevista pessoal, sem registro. s/d.

19. Egídio Jorge Giacóia (Advogado da família de Carlos Paraná em 1970 e 1971) Conversa informal, s/d.

20. Elza Soares (cantora) Entrevista por telefone. s/d.

21. Eva Néia Lima (amiga de Carlos Paraná) Entrevista por telefone. s/d.

22. Fernanda Marton Ribeiro Soares (viúva de Adauto Santos, cantor, violeiro, amigo e sócio de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 26/10/2009.

23. Francisco Carlos (irmão de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal), s/d.

24. Geraldo Cunha (cantor) Entrevista por telefone, s/d.

25. Inezita Barroso (cantora e pesquisadora musical) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 13/10/2009.

26. Iracema Cirelli Brambilla (moradora da cidade e amiga de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.

27. Ivone de Lorena Néia (ex-namorada de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.

28. João Carlos Gomes (João Parahyba) (o “timbatera” do Trio Mocotó, nascido n´O Jogral)

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Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 10/05/2011. 29. José Aparecido Fonteque (Tuim) (primo de Carlos Paraná)

Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 30. José Carlos (irmão de Carlos Paraná)

Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 31. José Carlos Néia (Juca Néia) (amigo de Carlos Paraná)

Conversa informal. s/d. 32. José Domingos da Silva (cantor, compositor, violonista, poeta e escritor)

Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 33. José Ferreira de Aquino (Zé do Sapo) (morador de Ribeirão Claro)

Conversa informal. s/d. 34. José Nogueira (produtor musical)

Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 35. Julio Medaglia (maestro e crítico musical)

Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 23/10/2009. 36. Lázaro Carlos (irmão de Carlos Paraná)

Entrevista por telefone. s/d. 37. Léo Vaz (cantor e amigo de Carlos Paraná) (In memoriam – falecido a 24 de

fevereiro de 2011) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 24/11/2009.

38. Luiz Fonteque (primo de Carlos Paraná) Conversa informal. s/d.

39. Maria Alice Vergueiro (atriz, filha de Maria Antônia Vergueiro, amiga de Carlos Paraná) Conversa por telefone. s/d.

40. Maria Helena D´Ávila Botelho Lopes (ex-namorada de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.

41. Maria Lucia Santaella Braga (Professora Titular da PUC-SP, Doutora em Teoria Literária e Livre-Docente em Ciências da Comunicação) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 03/07/2011.

42. Maria José (Zita) de Lara Miguel (ex-namorada de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 11/10/2009.

43. Mario Edson (pianista d´O Jogral) Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 13/11/2009.

44. Mario Prata (escritor) Entrevista feita pelo ator Ivam Cabral em 2000 e gentilmente cedida para minha pesquisa. Registro digital (Arquivo pessoal).

45. Mauro Moreton (morador de Ribeirão Claro) Conversa por telefone, s/d.

46. Mazir Maria Araújo de Oliveira (moradora de Ribeirão Claro e amiga de Carlos Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.

47. Nadir Gomes da Cruz (amiga de Carlos Paraná e sua colega de elenco em peça amadora realizada em Ribeirão Claro) Registro digital (Arquivo pessoal), s/d.

48. Ovídio Fabiani (In memoriam - bancário e vereador de Ribeirão Claro, gestão de 1948) Entrevista pessoal, sem registro. s/d.

49. Paulina Marques Cassetari (professora de Carlos Paraná na 4ª e 5ª séries do primário)

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Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 50. Paulo Emílio Vanzolini (biólogo, compositor e amigo de Carlos Paraná)

Registro digital (Arquivo pessoal). Entrevista realizada a 03/10/2009. 51. Pedro Miguel (cantor, seresteiro d´O Jogral)

Registro digital (Arquivo pessoal). s/d. 52. Regina Rahuan (amiga de Carlos Paraná e moradora de Ribeirão Claro)

Conversa informal. s/d. 53. Roberto Luna (cantor)

Conversa informal, s/d. 54. Thereza César Araújo (ex-moradora de Ribeirão Claro)

Entrevista por telefone. s/d. 55. Thereza Néia Nogueira (amiga de Carlos Paraná)

Entrevista por telefone. s/d. 56. Ubiratan Willian Lustosa (Escritor e radialista de Curitiba, amigo de Carlos

Paraná) Registro digital (Arquivo pessoal). s/d.

57. Vera Regina Pinto Coutinho (Vera Coutinho) (cantora d´O Jogral) Entrevista por telefone realizada a 09/08/2010.

58. Zeza Dubock (cantora d´O Jogral) Conversa informal. s/d.

59. Zilá Paladino (amiga de Carlos Paraná e moradora de Ribeirão Claro) Conversa informal. s/d.

d) Lista de demais colaboradores

1. Adriana Augusta do Amaral (auxiliar de enfermagem, funcionária de Ovídio

Fabiani, em Ribeirão Claro) 2. Agnaldo Rayol (cantor, ator e intérprete de Carlos Paraná, confirmou sua

gravação da canção “Em vez de adeus” em 1966) 3. Amanda Brambila da Silva (dados populacionais do município de Ribeirão

Claro) 4. Ana Bernardo (cantora e esposa de Paulo Vanzolini) 5. Andressa Mareca Néia (cartório de registro civil de Ribeirão Claro) 6. Ariel Mário Okopny Júnior (Coronel e chefe da seção de Comunicação Social

do Comando da 5ª Região Militar – 5ª Divisão de Exército – Curitiba) 7. Camilo D´Angelo Braz (orientador de conteúdo desta monografia). 8. Celso Favareto (Filósofo, professor efetivo da Universidade de São Paulo)

Cleide Consulin Pereira (moradora de Ribeirão Claro) 9. Dalva Aguiar (esposa de Dinamérico Aguiar, amigo de Marcus Pereira) Diana

Saad (moradora de Ribeirão Claro) 10. Edilamar Galvão (orientadora de metodologia desta monografia) 11. Edmir Lima (funcionário do banco de dados do jornal Folha de S. Paulo.

Arquivo consultado em 15 de dezembro de 2010). 12. Elias Andreato (ator, diretor e ex office-boy da Discos Marcus Pereira) 13. Emmanoel (Badeco) Barbosa Furtado (ex-integrante do conjunto Os Cariocas,

de Bossa Nova, no Rio de Janeiro) 14. Fernanda de Almeida Prado (psicóloga e agitadora cultural) 15. Fernanda Rocha de Pontes Barbosa (MIS – RJ) 16. Giovanna Crispim Costacurta (interlocutora) 17. Giselle Sogayar Bechara (ex-moradora de Ribeirão Claro)

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18. Guilherme Brenk (morador de Curitiba) 19. Irene Rosso (ex-namorada de Carlos Paraná, no período de 1951 a 1954) 20. Isadora Ribeiro de Mareca (cartório de registro civil de Ribeirão Claro) 21. Ivam Cabral (ator, diretor, dramaturgo, fundador do grupo teatral “Satyros” e

ex-morador de Ribeirão Claro) 22. Jaime Jorge Bechara (ex-morador de Ribeirão Claro) 23. Jorge Sogayar Neto (in memoriam: advogado da família de Carlos Paraná e

ex-morador de Ribeirão Claro) 24. Leonardo Mysock (sebo Jovem Guarda, São Paulo, Mooca, consultado em

maio de 2011) 25. Luiz Antonio de Almeida (MIS – RJ) 26. Marcus Pereira (in memoriam: pelo indispensável e pertinente testemunho

deixado em seu livro sobre O Jogral e Carlos Paraná) 27. Maria Carolina de Andrade (viúva de Marcus Pereira) 28. Maria Helena Borges (Igreja Matriz de Ribeirão Claro) 29. Maria José (Zita) Krainer Rodrigues (moradora de Ribeirão Claro) 30. Mario Cesar Lobo (cartório de imóveis de Ribeirão Claro) 31. Marlucia de Aquino (Grupo Escolar Corrêa de Freitas, de Ribeirão Claro) 32. Neusa Maria Viecelle (Hospital Oswaldo Cruz - SP) 33. Nilu Lebert (Jornalista e biógrafa de Agnaldo Rayol) 34. Odeth Baptista Ravanhol (moradora de Ribeirão Claro) 35. Oswaldo Giacóia Júnior (advogado, filósofo e ex-morador de Ribeirão Claro) 36. Pena Branca (in memoriam: o cantor José Ramiro Sobrinho, falecido a 8 de

fevereiro de 2010, conversou com o autor deste trabalho sobre sua gravação de “Flor do cafezal” em dupla com Xavantinho)

37. Prefeitura Municipal de Ribeirão Claro 38. Roberta Vaz (filha de Léo Vaz) 39. Rolando Boldrin (cantor, ator e compositor; conversou com o autor deste

trabalho sobre sua gravação de “Flor do cafezal”, em duo com o cantor Cascatinha, em 1981)

40. Rosy Sydney Brenk (moradora de Curitiba) 41. Ruy Castro (jornalista, escritor e biógrafo) 42. Sabrina Bueno (Produção de Elza Soares) 43. Sandra Genes Borghi (fotógrafa e interlocutora) 44. Sargento Mache (do 20º BIB de Curitiba) 45. Soraia Fernandes (cartório de imóveis de Ribeirão Claro) 46. Suely Maria Lourenço (filha de dona Nadir Gomes da Cruz) 47. Thais Matarazzo (pesquisadora musical) 48. Yara Rahuam da Silva (moradora de Ribeirão Claro) 49. Yvone Bechara Baggio (moradora de Ribeirão Claro)

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Anexos

1 O Mundo do Caipira

Por Antonio Candido

(texto de apresentação do LP duplo “Caipira: Raízes e frutos”, Eldorado, 1980)

Este disco [Caipira: raízes e frutos] põe o ouvinte no centro de um mundo

cultural peculiar, que está se acabando por aí: o mundo caipira.

A gente que vive na cidade procurou sempre adotar modos de ser, pensar e

agir que lhes pareciam os mais civilizados, os que permitem ver logo que uma

pessoa está acostumada com o que é prescrito de maneira tirânica pelas modas –

moda na roupa, na etiqueta, na escolha dos objetos, na comida, na dança, nos

espetáculos, na gíria. A moda logo passa; por isso a gente da cidade deve e pode

mudar, trocar de objetos e costumes, estar em dia. Como consequência, se entra

em contato com um grupo ou uma pessoa que não mudaram tanto assim; que usam

roupa como a de dez anos atrás e respondem a um cumprimento com certa fórmula

desusada; que não sabem qual é o cantor da moda nem o novo jeito de namorar;

quando entra em contato com gente assim, o citadino diz que ela é caipira, querendo

dizer que é atrasada e, portanto, meio ridícula. Diz, ou dizia; porque hoje a mudança

é tão rápida que o termo está saindo das expressões de todo o dia e serve mais

para designar certas sobrevivências teimosas ou alteradas do passado: música

caipira, festas caipiras, danças caipiras, por exemplo. Que aliás, na maioria das

vezes, conhecemos, não praticadas por caipiras, mas por gente que finge de caipira

e usa a realidade do seu mundo como um produto comercial pitoresco.

Nem podia ser de outro modo, porque o mundo em geral está mudando

depressa demais neste século, e nada pode ficar parado. Hoje, creio que não se

pode falar mais de criatividade cultural no universo do caipira, porque ele quase

acabou. O que há é impulso adquirido, resto, repetição – ou paródia e imitação

deformada, mais ou menos parecida. Este disco é um esforço para fixar o que sobra

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de autêntico no mundo caipira, através da difícil permanência ou da modificação

normal, devida à influência inevitável da cultura das cidades.

Aliás, a cultura do caipira não é nem nunca foi um reino separado, uma

espécie de cultura primitiva independente, como a dos índios. Ela representa a

adaptação do colonizador ao Brasil e, portanto, veio na maior parte de fora, sendo,

sob diversos aspectos, sobrevivência do modo de ser, pensar e agir do português

antigo. Quando um caipira diz “pregunta”, “a mo´que”, “despois”, “vassuncê”, “tchão”

(chão), “dgente” (gente), não está estragando por ignorância a língua portuguesa;

mas apenas conservando antigos modos de falar que se transformaram na mãe-

pátria e aqui. Até o famoso “erre retroflexo”, o “erre de Itur” ou “de Tietêr”, que se

pensou devido à influência do índio, viu-se depois que pode ter vindo de certas

regiões de Portugal. Como veio o desafio, a fogueira de São João, o compadrio, o

jogo do cacete, a dança de São Gonçalo, a Festa do Divino, a maioria das

crendices, esconjuros, hábitos e concepções. Quantas vezes ouvi caipiras

“improvisando” na viola quadras bonitas que anos depois encontrei em coleções de

folclore português! Lá por 1946, creio que num sítio perto de Rio das Pedras, me

senti transfixado pelos versos admiráveis de um deles sobre a pureza de Maria

Virgem, recebendo no seio o Espírito Santo sem a mancha do nosso velho pecado.

Mais tarde, numa coletânea de poesia popular portuguesa, li quase a mesma coisa,

identificando a fonte que o cantador ignorava tanto quanto eu, e com a qual se

comunicava por participar na sequencia de uma longa tradição.

Portanto, é preciso pensar no caipira como um homem que manteve a

herança portuguesa nas suas formas antigas. Mas é preciso também pensar na

transformação que ela sofreu aqui, fazendo do velho homem rural brasileiro, o que

ele é, e não um português na América. “Tabaréu”, “matuto”, “capiau”, “caipira” ou o

que mais haja, ele é produto e ao mesmo tempo agente muito ativo de um grande

processo de diferenciação cultural própria. No Norte, talvez esteja mais perto do

português pela língua e a tradição, apesar da mistura maior com as raças ditas de

cor. No Sul, está mais afastado, mais transformado pela contribuição do índio. Na

extensa gama dos tipos sertanejos brasileiros, poderia ser considerado “caipira” o

homem rural tradicional do Sudoeste e porções do Centro-Oeste, fruto de uma

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adaptação da herança portuguesa, fortemente misturada com o indígena, às

condições físicas e sociais do Mundo Novo.

Na verdade, o caipira é de origem paulista. É produto da transformação do

aventureiro semi-nômade em agricultor precário, na onda dos movimentos de

penetração bandeirante que acabaram no século XVIII e definiram uma extensa

área: São Paulo, parte de Minas e do Paraná, de Goiás e de Mato Grosso, com a

área afim do Rio de Janeiro rural e do Espírito Santo. Foi o que restou de mais típico

daquilo que um historiador grandiloquente mas expressivo chamou de “Paulistânia”.

Nessa linha de formação social e cultural, o caipira se define como um

homem rústico de evolução muito lenta, tendo por fórmula de equilíbrio a fusão

intensa da cultura portuguesa com a aborígene e conservando a fala, os usos, as

técnicas, os cantos, as lendas que a cultura da cidade ia destruindo, alterando

essencialmente ou caricaturando. Não se trata, portanto, de um ser aparte, mas de

um irmão mais lerdo para quem o tempo correu tão devagar que frequentemente

não entra como critério de conhecimento, e que em pleno século XX podia viver, em

parte, como um homem do século XVIII. Quem esteve em contato com ele sabe, por

exemplo, o quanto é impreciso sobre a própria idade e como não consegue por

datas na lembrança, além de não saber o que se passa na sociedade maior, cujos

sinais podem estar ao seu lado sob a forma de jornal que ele não lê, de cinema que

não vê, de rádio que não escuta, de trem que não toma. “Como vai o Imperador?” –

perguntou-me em 1948 o nonagenário Nhô Samuel Antônio de Camargo, nascido no

Rio Feio, atual Porangaba. “Vai bem”, respondi. E ele, com uma dúvida: “Mas não é

mais aquele veião de barba?”. E eu: “Não, agora é outro, chamado Dutra”.

Em compensação, no quadro da sua cultura o caipira pode ser extraordinário.

É capaz, por exemplo, de sentir e conhecer a fundo o mundo natural, usando-o com

uma sabedoria e uma eficácia que nenhum de nós possui. No ano de 1954, na zona

rural de Bofete, eu me atrasei para um encontro com Nhô Roque Lameu, marcado

para as 10 horas. O meu relógio indicava 10:15 e eu comentei que estava

desacertado. “Está pouca coisa”, disse ele, “porque pelo sol deve ser 9 e meia”.

Quando dali a pouco acertei o relógio, vi que estavá adiantado 45 minutos, e que o

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velho caipira não apenas calculara a hora com absoluta exatidão, mas achava que

três quartos de hora não era coisa apreciável, além de não me corrigir, com a

constante polidez do caboclo, lembrando que, ao contrário, eu tinha chegado antes

da hora marcada.

Com o seu perfil adunco, cor bronzeada e barba rala na face magra, Nhô

Roque podia ser um mameluco apurado. Do ancestral português herdara com a

língua e a religião a maioria dos costumes e das crenças; do ancestral índio herdara

a familiaridade com o mato, o faro na caça, a arte das ervas, o ritmo do bate-pé (que

noutros lugares se chama cateretê), a caudalosa eloquência no cururu.

O cururu e a dança da Santa Cruz são dois exemplos muito bons do encontro

das culturas. Parece terem sido elaborados sob influência dos jesuítas, que

aproveitaram as danças indígenas e o gosto do índio pelo discurso e o desafio para

enxertar doutrina cristã. Nada mais caipira do que cururu e dança da Santa Cruz,

que só existem em áreas de forte impregnação originária dos antigos piratininganos.

E nada mais misturado de elementos portugueses e indígenas, como tanta coisa

que observamos nas cantigas, nas histórias, nas técnicas do homem rural pobre e

isolado de velha origem paulista.

Faz muito tempo que não ando pelos lugares isolados do interior, e nem sei

se eles ainda existem como tais depois da multiplicação das estradas e ônibus.

Quando eu andava entre 1943 e 1955 - o caipira ainda era uma realidade cultural

definida, apesar de ser cada vez maior a sua ligação com a cultura urbana,

aceleradamente modernizada. Era espoliado e miserável na absoluta maioria dos

casos, porque com o passar do tempo e do progresso, quem permaneceu caipira foi

a parte da velha população rural sujeita às formas mais drásticas de expropriação

econômica, confinada e quase compelida a ser o que fora, quando a lei do mundo a

levaria a querer uma vida mais aberta e farta, teoricamente possível.

Foi então que o caipira se tornou cada vez mais espetáculo, assunto de

curiosidade e divertimento para o homem da cidade, que, instalado na sua

civilização e querendo ressaltar este privilégio, usava aquele irmão miserável para

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provar como ele tinha prosperado, como era triunfalmente diverso. A vida do caipira

ficou sendo então, para ele próprio, uma privação terrível, porque comparável a

outras situações; e para o citadino, um divertimento que lhe dava a confortável

sensação de haver mudado para algo melhor e mais alto.

A partir daí, o canto e a música caipira sofreram, não as influências normais

e por assim dizer orgânicas que sempre sofreram das suas congêneres cultas; mas

a deformação caricatural e alienante que a desfigura, e que corrompe o gosto médio

como vingança involuntária do espoliado contra o seu espoliador.

A tarefa, portanto, é procurar o que há nele de autêntico. Autêntico não tanto

no sentido impossível do originariamente puro, porque em arte tudo está mudando

sempre; mas no sentido de buscar os produtos que representem o modo de ser e a

técnica poético-musical do caipira como ele foi e como ainda é; não como querem

que ele seja para espetáculo dos outros.

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2 Programa do show “Os homens verdes da noite”

‘O senhor me leve na Rua das Palmeiras, onde canta o sabiá’.

Essa beleza de verso foi dita ao motorista do taxi. Não queríamos ir a lugar

nenhum, queríamos apenas bater um daqueles papos de quando éramos

companheiros de quarto em Copacabana, num apartamento térreo, de fundos, sem

janelas, onde moravam 14 pessoas, inclusive um general reformado com quem João

brigou um dia e disse, no alto da discussão: ‘Vai, vai, velhinho, volta ao quartel, pega

o teu canhão e vem!’.

Entrávamos no taxi. João já era um ídolo (eu continuava a cantar pelos

inferninhos) e não havia mais lugar onde conversar sossegado, mesmo de

madrugada. Às vezes, como um turista qualquer, pedia ao motorista que nos

levasse a uma rua onde houvesse mulheres. Quando já estávamos de papo

engatilhado, o taxi parava:

- Chegamos, olha aí as mulheres.

- Ah, sim!

Estávamos na Boca do Lixo, em frente um edifício com mulheres apinhadas

na porta. Para não decepcionar o motorista, João descia e ia conversar com elas.

Logo voltava, debaixo de palavrões. É que João não reparava onde pisar com sua

poesia. Conversava comigo, com o motorista e com a prostituta no mesmo Tom em

que conversava com Vinícius (desculpe o trocadilho, mas já que saiu, deixa ficar).

Fora parar naquele apartamento de Copacabana, onde ficaria sendo o 14º

inquilino, em busca de um violão emprestado, com o qual gravaria, no dia seguinte,

algumas faixas com Elisete Cardoso, naquele LP antológico. Já começava a fazer

escola, mas ainda não tinha violão e levaria muito tempo para ter um, se é que

agora tem. Um dia, já em São Paulo, veio buscar o meu mais uma vez, para cantar

no programa de entrega dos prêmios CHICO VIOLA. Quando chegou a sua vez,

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apareceu tocando num violão diferente. O meu ele tinha acabado de quebrar na

cabeça do Tito Madi.

Deixa-me contribuir com mais um pedacinho da biografia de João Gilberto. A

gravação de CHEGA DE SAUDADE, o grande marco, devia ser de manhã, o que

prova que os diretores da Odeon pouco sabiam de João. Naquela noite, contra o

hábito, João tentava dormir e não conseguia. Mudava de posição, mudava de cama,

mudava de quarto (os quartos e as camas estavam vazios, todo mundo era músico

noturno) e continuava acordado. Acabou amarrando sobre os olhos, bem apertada,

uma gravata de seda pura, presente de Maysa numa noite em que João devia

acompanhá-la num show e não tinha gravata. Fiquei com pena e troquei-a por uma

das minhas, mais barata (a de seda pura está comigo). João continuava com

insônia. Lá pelas nove da manhã começaram a telefonar do estúdio. Tom já estava

lá, a orquestra reunida, os técnicos a postos, os aparelhos ligados. Faltava só João.

Não iria, não tinha dormido nada, como é que iria gravar? Vieram buscá-lo e

levaram-no meio à força. De tarde voltou com um acetato e tocou-o na vitrolinha da

casa, entusiasmado: ‘O Aloísio [Oliveira] diz que vai ser sucesso, eu vou ficar rico!’.

Não ficou e nem ficará nunca. Nem vai ser preciso

Que têm a ver estas histórias com ‘OS HOMENS VERDES DA NOITE’?

Nada, absolutamente nada. Não existe uma só música de João no show. Acontece

que o material para este folheto já estava atrasadíssimo e eu não estava com um

pingo de vontade de escrever sobre este maldito show, no qual estou jogando tudo o

que ganhei em vários anos de exploração do alcoolismo alheio.

Luiz Carlos Paraná

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3 Lista de imagens e documentos

Figura 1: Casa comprada por Paraná para os pais em 1969, Ribeirão Claro (PR). Acervo pessoal.

Figura 2: Em Curitiba (PR), com Paulina Cassetari, professora primária de C. Paraná. Acervo pessoal

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Figura 3: Em St. Antônio da Platina (PR), com José e Francisco, irmãos de Paraná. Acervo pessoal.

Figura 4: Em Sorocaba (SP), com Amélia, irmã de Carlos Paraná. Acervo pessoal.

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Figura 5: Em Curitiba (PR), com o radialista Ubiratan Lustosa. Acervo pessoal.

Figura 6: Em São Paulo (SP), com o sambista e biólogo Paulo Vanzolini. Acervo pessoal.

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Figura 7: Em São Paulo (SP), com a cantora e folclorista Inezita Barroso. Acervo pessoal.

Figura 8: Ribeirão Claro (PR), com a ex-namorada de Paraná, Ivone Néia. Acervo pessoal.

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Figura 9: Luiz Carlos, anos 1950. Antes de virar Paraná, no grupo Os Sinuelos, Rio de Janeiro.

Acervo José Carlos (irmão).

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Figura 10: Partitura de “Maria, carnaval e cinzas”, 1967, interpretada por Roberto Carlos. Acervo

Amélia Carlos (irmã).

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Figura 11: Foto autografada em 1958. Rio de Janeiro. Acervo Amélia Carlos (irmã).

Figura 12: Em Ribeirão Claro, com a avó, 1970. Acervo Amélia Carlos (irmã).

Figura 13: Certidão de identificação, 1953. Acervo Amélia Carlos.

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Figura 14: Com a cantora Elza Soares, sem data. Acervo Amélia Carlos.

Figura 15: Autógrafo dos cantores Cascatinha e Inhana, de passagem por Ribeirão Claro, 1955.

Acervo Irmãos David.

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Figura 16: Autógrafo de Mazzaropi, de passagem por Ribeirão Claro. Acervo Irmãos David.

Figura 17: Carlos Paraná e Léo Vaz, na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, anos 1950. Acervo Amélia

Carlos.

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Figura 18: Em Curitiba (PR), com o querido amigo e cantor Léo Vaz, 2010. Acervo pessoal.

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4 CD – Coletânea Luiz Carlos Paraná

01 – Flor do cafezal (Luiz Carlos Paraná), com Luiz Carlos Paraná (1970).

02 – Flor do cafezal (L.C.P.), com Cascatinha e Inhana (1967).

03 – Maria, carnaval e cinzas (L.C.P.), com Roberto Carlos (1967).

04 - Maria, carnaval e cinzas (L.C.P.), com L.C.P. (1967).

05 – De amor ou paz (L.C.P. e Adauto Santos), com Adauto Santos (1970).

06 – De amor ou paz (L.C.P. e Adauto Santos), com Martinália e Martinho da Vila

(2002).

07 – Queria (Luiz Carlos Paraná), com Luiz Carlos Paraná (1964).

08 - Queria (Luiz Carlos Paraná), com Hebe Camargo (1965).

09 – Canoa vazia (Luiz Carlos Paraná), com L.C.P. (por volta de 1967).

10 – Canoa vazia (Luiz Carlos Paraná), com Adauto Santos. (1970).

11 – Nem sequer uma rosa (L.C.P. e Victor Rafael), com Emílio Escobar (1970).

12 – Vou morrer de amor (L.C.P.), com L.C.P. (1970).

13 – Resignação (L.C.P.), com L.C.P. (1970).

14 - Resignação (L.C.P.), com Hebe Camargo. (1967).

15 – Quando meu bem voltar (L.C.P. e Walter Santos), com L.C.P. (entre 64 e 67).

16 – Marcha do amor sem esperança (L.C.P. e W. S.), com Emílio Escobar (1970).

17 – Em vez de adeus (L.C.P.), com Agnaldo Rayol (1966).

18 – Se for pra medir saudade (L.C.P.), com L.C.P. (1964).

19 – Se for for pra medir saudade (L.C.P.), com Emílio Escobar (1970).

20 – Você merece um tango (L.C.P.), com Emílio Escobar (1970).

21 – Ainda ontem (L.C.P. e Bolinha), com Belmonte e Amaraí (s/d).

22 – Terra dos pinheirais (L.C.P.), com Nenete e Dorinho (s/d).

23 – Saudade esperança (L.C.P.), com Pedro Bento e Zé da Estrada (s/d).

24 – Caminho verde (C. Larrea, versão L.C.P.), com Léo Vaz e L.C.P (1957).

25 – Último canto (L.C.P. e Adautos Santos), Adauto Santos (1970).