Bemois de silva notas para a eternidade

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Sumário:

Recorte dos jornais O dia (1907) e O Estado (1977) ......................… 02

Justiça ............................................................................................. 04

Depoimento de Inácia ..................................................................... 04

Depoimento de Florentino ............................................................... 05

Da sinfonia essencial interior ........................................................... 06

Depoimento da Flauta ..................................................................... 06

Sobre uma epístola derradeira e seu peculiar efeito ........................ 07

Depoimento do Doutor Fausto ..............………...........…….…...……..... 07

Depoimento de Raimunda …..........………….............................…........ 08

O sopro da Flauta …..….…………………………....................................... 09

Depoimento de Maria Auxiliadora .....................................………..... 09

A ladra de sons ....................… ………………………….....................…...... 10

Depoimento de João da Meia Noite ….......………………….....………….... 10

Depoimento de Dona Quitéria ......................…… ……........…….......... 11

Depoimento de Miguel .................................................................... 12

Minha versão .................................................................................. 13

Depoimento de Mercedes ............................................................... 13

Depoimento de Afrânio ................................................................... 14

Uma [breve] referência biográfica! ……...……………………….................. 15

Indicações da Travessa .................................................................... 15

Para participar da Travessa .............................................................. 17

Ficha Técnica ................................................................................... 19

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Recorte dos jornais O dia (1907) e O Estado (1977)

A nossa sociedade, tão pobre de distrações artísticas, vai ter dentro de poucos dias o prazer de

ouvir um flautista de raro merecimento. Referimo-nos a Patápio Silva, chegado anteontem do

Norte. Apesar de moço ainda, Patápio Silva não é, no nosso acanhado meio musical, um nome

desconhecido; os ecos de seus brilhantes sucessos na Capital Federal e em São Paulo já tinham

percutido entre nós, trazendo-nos vitoriosamente a forma de sua grande e invejável aptidão

musical. (...) Dizem os críticos que a sua flauta, mágica ao sopro duma inspiração superior,

obediente, escrava duma alma sonhadora e afetiva, sabe interpretar, com poderosa maestria, os

mais difíceis e delicados pensamentos musicais.

Jornal O Dia, 14 de abril de 1907.

“Patápio Silva – Tendo falecido hoje às 2 horas da madrugada o festejado flautista brasileiro

Patápio Silva, convidamos a todos para conduzi-lo ao Cemitério Público, devendo o enterro sair do

Hotel do Comércio às 4 ½ da tarde.”

Boletim extraordinário publicado pelo Jornal O dia em 24 de abril de 1907

“Pungentíssima foi a triste nova que, ontem pela manhã, correu por toda a cidade emocionando

deveras o coração da nossa culta sociedade: a morte prematura do jovem e já notabilíssimo

musicista cujo nome laureado andava a passarinhar festivo de boca em boca, num forte hiato de

justa e merecida admiração.”

Jornal O dia em 25 abril 1907

Esmaga-me o coração ver, compreender, sentir que dentro deste horrível caixão desaparece para

sempre na pavorosa escuridão deste poço, o extraordinário talento de um artista cuja divina

inspiração musical já nos acostumamos a considerar uma glória patrícia. (...) Do que foi Patápio

resta-nos apenas, como um sarcasmo do destino, a fina rigidez de um cadáver. Mas a terra

catarinense, que não pôde ouvir os seus gorgeios divinos, saberá guardar e conservar com muito

amor e carinho, os seus despojos queridos, com a saudade eterna do seu nome

Jornal O dia. 25 abril 1907

Florianópolis - Junho de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 04

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Sr. Redator: Com muito interesse, li o artigo do Sr. Abelardo Sousa, na edição deste matutino de

domingo, 17/7, sobre o grande Patápio Silva, aqui falecido em 1907. Assisti, garoto ainda, os

funerais do inditoso músico, acompanhando o féretro até o antigo cemitério público. (...) O Sr. A.

Sousa por educação, por princípios éticos, aliás muito apreciáveis, não fez menção à companheira

do desditoso Patápio. Belíssima mulher de origem paraguaia, parece. Também não venho,

especialmente meter minha colher, mas como dizem os franceses: ‘cherchez la femme’.

O Estado, 3 de agosto de 1977

O Sr. Camejo, em sua carta, usando da expressão ‘cherchez la femme’, parece haver timidamente

tentado aflorar o assunto (morte de Patápio), que não ousou, entretanto, aprofundar, talvez,

entre outros motivos, por não lhe deixarem os seus treze ou quatorze anos de idade, que tinha à

época, discerni-lo com segurança. Falava-se na ocasião que alto funcionário do Estado, chefe de

família com prole numerosa, havia presenteado a bela companheira do grande flautista com uma

jóia valiosíssima (creio que anel) e que essa peça rara havia sido subtraída, pelo próprio

funcionário, de alguém que era nada mais, nada menos, que sua legítima esposa, senhora de

peregrinas virtudes. (...) O escabroso episódio, ‘potin’ do ano, assunto de todas as rodas da nossa

então pacata cidade, teve, alguns meses mais tarde, as honras da letra de forma na ‘Gazeta

Catarinense’, diário que fazia cerrada oposição ao governo local. Se o prezado professor se der ao

trabalho de compulsar as coleções daquele órgão de imprensa, anos de 1907, 1908 ou 1909,

existentes na nossa Biblioteca Pública, certamente ali encontrará, com abundância de

pormenores, a descrição do fato a que me refiro e a citação, com todas as letras, dos nomes nele

envolvidos. O jornal em questão foi, em conseqüência, ocupado e empastelado pelo Governo do

Estado, o que revela a exaltação do momento, mas havendo o seu diretor obtido habeas corpus

do Supremo Tribunal Federal, era de ver-se, dias depois, os pequenos jornaleiros, cada um

acompanhado de uma praça embalada do exército, apregoando a venda avulsa pelas ruas e praças

da Capital!

O Estado, 21 de agosto de 1977.

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Justiça

Quando eu era menino, meus maiores sonhos eram com a música. Eu tive uma professora

de piano, sedutora mulher de negros cabelos, que muito contribuiu a meus desejos infantis e

posteriormente de rapazote atrevido. Seu nome era Selany.

Minha família apreciava a arte e tudo o que a ela fosse relacionado entrava em nossa casa.

Mamãe tivera sete filhos, sendo eu o mais moço de todos. Mas eu não a conheci. Dizem que era

mulher elegante e de poucas palavras. Quando eu tinha apenas alguns meses de vida, ela foi

visitar uma tia minha, deixando-me em casa aos cuidados de uma criada. Já em casa de titia, ela

pediu uma xícara de café. Contam-me que, quando titia voltou para a sala de estar onde tinha

deixado mamãe sozinha, encontrou a mulher com a cabeça caída por sobre o ombro. Encerrava-

se assim sua vida.

Cresci, pois, criado por empregadas e tutores. Minhas irmãs estudavam em colégios

internos, e eu as via muito pouco. Meus irmãos não me davam nem “bom dia”. Na minha

meninice solitária, eram os sons os meus maiores companheiros. Mas eu só tocava o piano, e a

custo de muita dedicação de Selany, a doce jovem de negros cabelos.

Ao longo de minha vida, eu fui aprendendo a apreciar outros instrumentos, mas eu não

tinha ouvido musical. Se tocava alguma coisa, era por ter estudado as partituras e a teoria

musical por horas a fio. Já minha tutora, ah, ela era um anjo! Tocava o violino com a mesma

maestria que tinha ao lidar com o piano.

Mas nada me encantava mais que vê-la tocar a flauta. Quando ela tocava a flauta,

somente para mim, como parecia uma ninfa! Seus lábios róseos encostados no pequeno tubo

prateado eram para mim, o adolescente apaixonado, uma visão capaz de provocar gigantesco

prazer! Ela se balançava, pagã, com os sons, coisa que só se permitia fazer estando a sós comigo,

de modo que em minhas fantasias ela era apaixonada por mim...

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Depoimento de Inácia

Eu não sei não, acho a morte desse Patápio Silva uma coisa muito estranha. Eu sei que

estava tendo um surto de gripe na cidade, a saúde do povo não andava lá essas coisas. Mas veja

bem, o sujeito era da elite, não ia pegar gripe que é coisa do povo. Além disso, tem outra cousa a

rapariga que acompanhava o músico era esculpida pelos deuses. Ouvi boatos que teve sujeito do

alto escalão do governo prometendo largar mulher para ficar com ela, enquanto o pobre coitado

do Patápio tava enfurnado naquele quarto de hotel. Não sei se o senhor entende o que estou

querendo dizer, mas tinha muita gente nessa cidade que ia ficar feliz com a morte do flautista.

Meu sobrinho, que é a pessoa mais santa que conheço nesse mundo, depois do acontecido da

morte do músico ficou dizendo pela casa que a justiça tinha sido feita. Eu acho tudo muito

esquisito.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Doce ilusão. Um dia, Selany se foi. Viajara para alguma outra cidade, para não mais

voltar. Casar-se-ia com o noivo que eu ignorava há anos. Nunca mais ouvi sua flauta. A partir

de então, eu nunca mais toquei nada. Até que um dia meu pai chegou a casa com um bilhete.

Era uma entrada para o concerto do jovem Patápio Silva, estimado flautista.

A menção à flauta trouxe-me a lembrança de Selany e dos anos em que a música foi

renegada de minha vida. A amargura que eu ignorara por anos aflorou em meu coração,

fazendo-me taciturno por dias. Aguardava ansiosamente pelo concerto e, no entanto, eu o

odiava. Só de pensar nas notas, nas músicas... Ele subjugava ambas as coisas!

Queria aquele talento para mim. Queria poder possuir a música como ele a possuía.

Talvez não fosse esse o ponto, talvez fosse uma questão de sentir a música, de seduzi-la, mas

eu não tinha o dom. Patápio Silva tinha. Ele podia sentir o ar se esvaindo do pulmão, soprado

de sua boca, o mesmo ar que, passado o tubo cálido da flauta, se transmutava em notas

golpeantes. Não bastasse o talento, tinha junto de si bela mulher. Bela como o fora Selany.

Certamente todos ali o amavam. Rapazes e moças. Nas ruas, nos dias antecedentes

àquela bela apresentação, as crianças imitavam o ídolo com flautas de mentira – com ou sem o

auxílio de varetas para lhe servirem de apoio imaginativo.

Mas a apresentação não vinha. Foi adiada. E na realidade nunca chegou a acontecer.

Patápio, dizia-se, fora acometido de uma gripe da qual ele não melhorava nunca. Eu desejava

que ele permanecesse doente. Sentia uma satisfação macabra ao imaginá-lo a tossir

violentamente, sem fôlego, sem ar – o mesmo ar que ele transformava em canção. Alguns dias

depois, ele finalmente sucumbiu à doença, falecendo e deixando-nos sem a glória de sua

apresentação. Senti-me culpado pela minha inveja, mas o que eu poderia fazer? Não fora culpa

minha, afinal. Na verdade, eu sentia que a justiça fora feita.

Historieta narrada por Belo-Mar.

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Depoimento de Florentino

Eu sei que o senhor ta vindo aqui falar comigo por que o povo anda falando que o moço,

aquele músico, morreu envenenado. Eu quero dizer que eu não sei de nada sobre isso. Trabalho

aqui na minha vendinha para sustentar meus filhos, e um dos artigos que mais sai é veneno de

rato. O senhor sabe como é o saneamento básico dessa cidade. Eu vendo outros venenos também,

mas o que mais sai é o de rato.

Quanto ao boato de eu ter vendido veneno para tal amante do flautista, não tenho nem

como saber. Não conheci a mulher, sei o que dizem por ai, que ela era um poço de formozura. O

que eu sei dessa história eu ouvi da boca do sobrinho da Dona Inácia, que vivia por essas bandas

reclamando do tal flautista que tava vindo roubar os louros dos músicos locais. O menino tava

revoltado, acho que até ficou feliz com o acontecido.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Da sinfonia essencial interior Pra fora da janela da sala coberta com as muito antigas e descosturadas cortinas vermelho-

sangue, o vento gélido e veloz uiva e parece que canta. Tira da ordem – ou será que coloca? – as

folhas das árvores da rua deserta, e nessa bagunça – ou arrumação – elas cantam com ele. As

pontas dos dedos nicóticos e envelhecidos que seguram o fumo e a bebida tal qual preciosidade,

dos dedos macios que acariciam as epidermes de outrem, dos dedos ressecados e sujos que

buscam comida e conforto e moedas pelos becos escuros daqui... todas elas esfriam.

Em meio a essa canção outonal me vem o som de uma flauta. Vem de longe, de uma terra

onde quase sempre faz calor e onde o vento é cálido. Uma flauta igualmente e quem sabe talvez

tão mágica quanto à de Mozart, que quando escutada era capaz de trocar a cor da alma dos seres

que respiram. Mas há de se notar que a flauta não vem sozinha, porque vem como o vento que

uiva e canta com as folhas: escuta-se o piano, escuta-se o violino. E tudo parece e fica e é tão e tão

harmonioso, afinado e doce, que os ventos todos viram um só, ameno, que só sabe fazer mexer os

cabelos dos apaixonados que sorriem e sonham enquanto a música toca e espalha o cheiro das

flores cinzas que achavam que estavam mortas.

As pontas dos dedos deslizam delicadas sobre cordas e teclas, guiadas por Euterpe, e assim

a canção faz o sol ir dormir, tornando o céu um quadro azul-amarelo-laranja-vermelho. Já cantava

uma gente vestida de palhaço que “a incrível mágica acontece quando os instrumentos musicais

descobrem afinidades humanas entre si no mesmo instante em que os seres humanos descobrem

afinações musicais dentro deles mesmos”.

Cá fora eu danço e guerreio meus dedos com os dedos de um moço que me ama e me

odeia; encho suas orelhas com palavras suaves, enquanto mentalmente desejo sua morte; planejo

filhos gêmeos, seus nomes e suas profissões iguais aos dos gêmeos do livro do bruxo brasileiro,

mas acima disso planejo minha fuga. Uma fuga que vai ser guiada pelo vento, que vai me levar até

a flauta, até o piano, até o violino, e aí então eu sei que minha alma transbordará em coloridos.

Historieta narrada por Raio de Sol

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Depoimento da flauta

Começo esta narrativa dizendo que não sou qualquer flauta, se um instrumento musical -

assim como eu - pudesse receber o grau de objeto sacro, assim o fariam comigo. Sou o mais

importante instrumento de sopro que esse país já viu. Não fosse eu, muito da história musical

brasileira estaria perdida. Fui, em minha época, agraciada com os mais variados predicados;

diziam-me pertencente a uma inspiração superior, chamaram-me mágica, atribuíam a minha

alma os sonhos daqueles que apreciavam meu som. Através de mim, Patápio Silva ficou

conhecido como o mais promissor flautista brasileiro. Há muito me despedi de meu dono, cujo

amor por mim fez com que me levasse para o túmulo. Mas a história percorre caminhos

tortuosos e para meu espanto fui surripiada de meu lugar de repouso. Deixei meu amado dono,

entretanto, pude voltar ao ofício para o qual fui criada: a música.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Sobre uma epístola derradeira e seu peculiar efeito

Tinha dezessete anos, isso já eram meados da década de sessenta, quando nos

mudamos para Florianópolis. À força, minha mãe me arrancou o sonho de ser músico, pois

para ela destino digno era ser advogado. Dizia que se me afastasse do Rio de Janeiro, eu

desistiria. Era o Rio que me inspirava devaneios sonoros, boemias excessivas e onde eu

sonhava que se consagraria o meu futuro sucesso. Mudamo-nos para uma mansão barata que

diziam ser apenas um antigo hotel e fui matriculado – e contrariado – no curso de Direito.

Revoltado pela vida que estava vivendo – acordar, respirar, aprender leis, lembrar de respirar,

dormir - me entreguei ainda mais aos vícios. Bebia e fumava exagerado. Um dia, já passado

quase ano de vida catarina, ao chegar furioso da aula, esvaziei uma garrafa de destilado. A

passos largos e como por instinto, entrei em um dos abandonados cômodos. Bêbado, chutei e

soqueei os velhos móveis a fim de descontar a fúria que me possuía. Quando enfim calmo,

avistei um papel dobrado e preso no fundo de uma gaveta. Ao final da terceira linha de leitura

a sobriedade estava em mim.

“Creio de forma fiel que rara será a leitura deste documento. O que dedicar seu precioso

tempo – se não for, faça-o ser - decifrando meus rabiscos, saberá que me deixei partir. Deixei-

me partir, pois insuportável era a situação de solitário estar. Quisera eu ser tudo que pareço.

Cá estou, numa cama de hotel, sozinho, sem queridos – e existem? – para admirar o que sou (e

não o que faço nem a forma como fiz, pois desses estou farto), jogando pela janela os remédios

curandeiros de minha doença. Estou exausto de precisar sorrir enquanto penso que chorar seria

bom. Uma forma de tirar parte dessa angústia incrustada, quem sabe? Tenho de admitir,

porém, que já não choro. Fadei-me tanto à tristeza que, se há forma de diminuí-la, não ocorre.

Na vida tive muitos aplausos e raras pessoas. Ajudaram-me alguns, sou grato, em minha

carreira, em minha música. Em minha vida, entretanto, nunca. Mulheres, amei muitas e fui de

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Depoimento de Doutor Fausto

Lembro-me bem, aquele fora o caso mais peculiar de minha carreira como médico.

Florianópolis já vinha, há alguns meses, sofrendo de um surto de gripe. Um terço da população

caiu enferma, os hospitais não tinham mais leitos disponíveis, a cidade estava um caos. As

manchetes dos jornais revezavam entre os problemas de saneamento, a preocupação com a

saúde da população e a visita à ilha do ilustre músico brasileiro, Patápio Silva. Eu mesmo já tinha

adquirido os ingressos para o concerto, seria um evento a ser lembrado por gerações. Muito me

espantei quando fui chamado ao Hotel do Comércio para tratar do flautista que estava de cama.

Parecia mais um simples caso de gripe como os outros tantos dos hospitais da capital, receitei a

medicação rotineira já pensando no que concerto seria adiado. Mas ele nunca aconteceu, o caso

só piorava era como se o enfermo se desfizesse de minhas receitas assim que eu deixava o hotel.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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uma que não sou mais. Deixei-me partir por saber que a minha falta não sentirão. Da minha

música, quiçá. De Patápio Silva, não. E essa certeza possuo por saber que ninguém sente

saudade de quem não conhece.”

Florianópolis, 21 de abril de 1907.

Patápio Silva”

Nem ao menos sabia quem era Patápio. Um cantor fracassado, porventura? Para

descobrir a biografia do flautista, tive facilidade. Claro, o Patápio, como você não sabe, essa

gente do Rio de Janeiro não sabe nada, diziam os professores florianopolitanos. Ao passo que

crescia o repudio de cursar Direito, mais me fascinava a história do músico. Flautista, começou

de baixo, resistência do pai sobre ser músico, talentoso, contraiu uma doença inofensiva e se

deixou morrer de solidão – e dessa derradeira parte só sabíamos nós. Quando um dia, ao

acordar, senti que era chegada a hora. O calendário marcava dia 21 de abril de 1977 e minha

mente só marcava a liberdade. Eu tinha um destino, só precisava buscá-lo. Minha felicidade

estava lá, bastava alcançar. Com meu violão na mochila e a carta na mão, na porta ainda passei

pelo porta-retrato que ilustrava a foto de minha mãe. De fato, eu poderia ter avisado que

partiria. Mas já que não desejava o filho artista, eu não seria artificial. O Direito que ela tanto

almejava para mim, agora era meu: o de alçar voo.”

Trecho extraído da auto-biografia de Francisco de Cezaro, músico consagrado mundialmente e

Cezar de seu próprio império, publicada em 2009.

Historieta narrada por Mª Epítoma

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Depoimento de Raimunda

Nunca tinha visto um caso tão triste, fiquei sabendo que esse Patápio era famoso porque

foi um reboliço danado no hotel, uns três dias antes do homem chegar as camareiras todas já

estavam em euforia. Pela balburdia que fizeram eu esperava um homem esnobe e com síndrome

de ídolo. Mas Patápio foi o rapaz mais simples que já vi passar pelo Hotel do Comércio.

Eu fui a encarregada direta do quarto dele, fiquei feliz porque disseram que ele tocava

flauta feito um anjo e eu ia ter a oportunidade de conhecê-lo. Ele era sempre muito simpático,

mas o achei meio abatido. Depois ele ficou doente e eu achei que era por isso. Ele morreu aqui

no hotel, eu tive que limpar o quarto, foi bem triste. Quando reunia as coisas dele encontrei uma

carta que explicava porque ele parecia tão triste. Achei melhor não revelar suas memórias e

escondi a carta, espero que nunca a encontrem.

Depoimento transcrito por [M.B.]

Page 11: Bemois de silva notas para a eternidade

O sopro da Flauta Nessa ilha se conta muita história de pescador, é difícil o sujeito saber o que é verdade o

que não é; mas o que eu vou contar eu vi, ninguém me falou. Eu trabalhava na frente da venda

de Seu Florentino, sujeito simples e trabalhador – aqui no bairro o povo tava tendo muito

problema com rato, e o Seu Florentino se especializou na venda de venenos.

Mas o reboliço maior era o novo acontecimento da cidade, que ia receber um dos

maiores flautistas do Brasil. Era uma falação só do concerto do renomado artista, mas falatório

ainda maior era em torno da mulher do moço. Diz que era bonita que só vendo, eu sou

chegada nesses assuntos de moda e um dia fui até a porta do Hotel do Comércio para ver se

conseguia enxergar a tão falada rapariga, vai que eu tinha sorte e ela estava usando um

vestido maravilhoso do qual eu poderia tirar o modelo. Encontrei com ela e era realmente

bonita, mas o vestido que usava não era lá essas coisas.

Foi por isso, que quando eu vi aquela mulher bonita saindo da vendinha de Seu

Florentino eu sabia que era a falada mulher do Patápio Silva. Achei um pouco estranho, o que

ela tava fazendo por essas bandas? Fui falar com Seu Florindo e ele me disse que a rapariga

tinha comprado um veneno de rato, e mais uns venenos esquisitos. Achei ainda mais estranho,

o Hotel do Comércio é um dos hotéis mais chiques da cidade. Para que ela precisar de veneno

de rato, e mesmo se tivesse rato lá, seria mais lógico deixar o hotel e não comprar veneno.

Uns dias depois o flautista morreu, os médicos não sabiam direito do que ele tinha

morrido. Fui ao enterro do moço porque fiquei curiosa para entender o acontecido. Dei um

jeito de me colocar próxima da rapariga para tentar escutar alguma coisa. Quando alguém se

aproximou e perguntou como tinha acontecido, ela entre as falsas lágrimas disse “foi quando

ele soprou a flauta”. Pronto, eu sabia que ela tinha colocado veneno na flauta dele.

Historieta narrada por Maria Bonita

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Depoimento de Maria Auxiliadora

Essa menina é uma maluca, colocou na cabeça que foi o Patápio foi envenenado pela

esposa, e tudo isso porque ouviu uma conversa minha com a viúva no funeral do falecido. Esse é

o típico exemplo de quem pega o bonde andando e quer sentar na janela. Naquela ocasião a

conversa que eu estava tendo com a viúva não tinha nada com a morte do Patápio. O senhor não

sabe, minha querida amiga que acaba de perder o amado companheiro, também era música. A

pobrezinha não agüentava mais responder as perguntas indiscretas que o povo fazia, e ainda

tinha as insinuações de que ela estava tendo um caso com um funcionário do governo.

Estávamos falando das apresentações de Patápio e de como ela o ajudava na hora das

composições. Falávamos de música, e essa doida agora vem dizer que ouviu confissão de crime

dela no enterro. Faça-me o favor.

Depoimento transcrito por [M.B.]

Page 12: Bemois de silva notas para a eternidade

A ladra de sons

Pobre mamãe. Ela chorou um bocado, assim como minhas irmãs, mas logo perceberam

que não teriam como me impedir. Sempre fui assim, avoada. Os vizinhos já falavam “- Essa não

volta mais.” Estavam certos. Só voltei para a casa materna em algumas ocasiões especiais

como, por exemplo, o nascimento de Miguel, querido sobrinho. Lá em Minas existe uma

tradição, quase algo folclórico, que diz que se o filho não sai de casa até os 20 anos de idade

ele nunca mais deixará a casa dos pais, e, caso saia antes dos 20 ele nunca mais volta. Ou é 8

ou 80, como costumam dizer os jovens de hoje.

Sempre tive uma enorme sede de aventuras correndo, pulsando, por minhas veias, e

isso era algo que o interior de Minas não podia me proporcionar. Para mim estava claro que eu

precisaria experimentar a capital. Foi assim que cheguei ao Rio de Janeiro em 4 de maio de

1903. Fiz um pouco de tudo para sobreviver aos primeiros anos na cidade maravilhosa:

engraxate, vendedora, cabeleireira, garçonete, guia turística e prostituta. Por mais que não me

orgulhe dessa última é a realidade, e era necessário. Quando não estava trabalhando meus

derradeiros momentos de prazer se davam sob os arcos da Lapa e seus incontáveis botecos.

Mostrei-me uma grande adepta da vida boêmia carioca. A música mexia com meu íntimo,

além é claro, as cervejas. Queria ser cantora, mas logo descobri que não tinha boa voz para

isso.

Certa noite, em um boteco qualquer, conheci um homem, do qual não me recordo o

nome, mas que estava prestes a mudar minha vida. Ele me pagou umas bebidas, indagou o

meu passado, mexeu em meu cabelo. Era muito mais velho do que eu e muito mais feio

também. Falou que tinha acabado de vir de uma apresentação de um fabuloso flautista

chamado “Patápio Silva”. Eu ri, afinal, que nome mais esquisito era aquele?! Ele me falou que

o tal flautista tocava de uma forma mágica, quase que hipnotizante, algo muito próximo a

Taliesin. Ele logo percebeu que eu era apenas uma menina e não fazia idéia do que ele estava

,., Florianópolis - Junho de 2011 Travessa em Três Tempos Ano II N° 04

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Depoimento de João da Meia Noite

O povo me chama assim por que trabalho no turno noturno do cemitério. E antes que me

pergunte eu não tenho medo de espírito não. Tenho medo é de gente viva que já vi cada coisa

estranha acontecer nesse cemitério, e eu não to falando de assombração. Acontece de tudo por

essas bandas, tem casal procurando por lugar exótico para ter um encontro romântico, tem

aquele povo que se veste de preto e acha que é bonito passear de noite no cemitério. Mas o

acontecido mais bizarro que já vi por essas bandas foi o de uma moça – muito bonita e bem

vestida por sinal. A rapariga vivia pelo cemitério, rondando o túmulo de um músico famoso

enterrado ai, acho que era fã do sujeito. Uma noite eu a encontrei enfiada dentro da lápide, não

sei o que ela fazendo lá dentro e também não quis saber, tem cada sujeito estranho nessa vida. E

eu é que não ia ficar sentindo fedor de defunto pra tirar maluco de dentro de túmulo.

Depoimento transcrito por [M.B.]

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Page 13: Bemois de silva notas para a eternidade

falando, então resolveu, por livre e espontânea vontade, me contar a lenda gaulesa de

Taliesin, o grande Bardo. Devo corrigir o que falei agora pouco. Não foi o homem que não me

lembro o nome que mudou minha vida, foi a história que este me contou. O seduzi um pouco

mais, ganhei mais algumas cervejas e fui embora. Nunca mais nos vimos, foi melhor assim. A

partir desse dia resolvi que se não podia cantar, então iria tocar flauta, e mais, iria ser aluna

desse tal flautista com o nome estranho.

Descobri que Patápio morava no Flamengo e que realmente possuía alguns alunos. Fui

falar com ele. Nunca vi maior cara de desprezo do que a que ele fez quando eu expliquei

minha história. Bateu a porta em minha cara. Fiquei com ódio. Nunca mais nos falamos por

mais que eu tenha me tornado sua fã número 1. Eu ia a todas as suas apresentações e comecei

a estudar flauta por conta própria (minha primeira “querida” – é como eu chamo o

instrumento – comprei por uma pechincha dos pivetes de Santa Teresa), mas isso não durou

muito tempo. Em 24 de Abril de 1907 Patápio morreu. Ele tinha 27, eu 16 (quase 17), mas

tinha chegado ao Rio com 13, a mesma idade do mítico Taliesin. Era um sinal do destino.

Estava na hora de alguém substituir um dos únicos homens que realmente me desprezou. Fui

ao seu enterro no mesmo dia e escutei bonitos e comovidos discursos de despedida: coisa fina,

saiu até no jornal do dia seguinte. Jurei que um dia ainda seria uma flautista melhor do que

ele. Meu aniversário é dia 29 de Abril e naquele ano resolvi me dar um presente especial.

No meu aniversário invadi o cemitério onde o lendário músico está sepultado e com um plano

e perícia digna dos melhores ladrões do mundo, usurpei sua sepultura e de lá tirei sua flauta

(que tinha sido enterrada junto com ele). Tenho-a até hoje, é minha “queridíssima”, só a utilizo

em momentos muito raros, dignos de seu ex dono. Passei 70 anos de minha vida achando que

iria ser descoberta e presa por meu crime. Isso nunca aconteceu.

Comecei a me dedicar como nunca ao estudo do sagrado instrumento. Em meados dos

anos 20, minha aptidão como flautista já era tão reconhecida pelas ruas cariocas que fui

chama

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Depoimento de Dona Quitéria

Não gosto de me alembrar de quando trabalhei na casa da D. Larissa, ela era uma

formosura só, o problema era a flauta dela. A Dona é dada às coisas da música, pois é, ela vivia

com aquela flauta para cima e pra baixo, era raro quando soltava. Nesses momentos que

começava meu tormento, era só a mulher colocar o pé na rua sem a flauta que eu começava a

ouvir o som daquele instrumento tenebroso. Era um moço bonito que fazia aquele som, eu

achava que era parente da patroa aproveitando para tocar enquanto ela tava fora já que a bicha

era ciumenta com aquilo que só vendo. Eu não sou de me meter em briga de família e deixava o

homem tocar em paz, mas a patroa desconfiava que alguém mexia na flauta. Um dia tive de

perguntar qual era o nome dele, quando disse pra patroa que era o Patápio que mexia nas coisas

dela, me chamou de louca falando que ele morrera há mais de 60 anos.

Depoimento transcrito por [M.B.]

Page 14: Bemois de silva notas para a eternidade

chamada para fazer parte do recém formado curso de música da “Universidade do Brasil”

(hoje UFRJ) como professora de Harmonia. Dali em diante não parei mais. Hoje, com meus 87

anos, sou professora aposentada da Universidade de Berlim e na semana que vem estarei em

Londres onde irei auxiliar na regência da orquestra da cidade que irá executar uma péssima

obra de Tchaikovsky, o Lago dos Cisnes. O velho russo bêbado já escreveu melhores

composições, mas as pessoas adoram essa só para poderem ver as bailarinas esbeltas

dançando em seus tutus com suas coxas grossas. Essa peça não merece a presença da

“queridíssima”.

Fiquei sabendo por meio de fontes confiáveis que no Brasil, em Santa Catarina, está

havendo um rebuliço sobre a vida amorosa do mestre Patápio. Que patético! Garanto que isso

irá ser esquecido assim que essa minha biografia for publicada, afinal, estou tratando de fatos

muito mais importantes sobre a vida, ou melhor, a morte de Patápio.

Vocês devem estar se perguntando: agora que revelei meu segredo, irei devolver a

flauta para a família do músico? É evidente que não! Quem quiser ficar com a “queridíssima”

terá que violar minha sepultura assim como eu fiz com Patápio muitos anos atrás. Veja bem,

eu não sou uma má pessoa, mas tenho a convicção de que os músicos geniais, além de muita

dedicação e talento, são feitos de caráter! Beethoven não continuou a tocar e compor, mesmo

surdo, porque tinha talento, mas sim, porque tinha caráter! E é preciso ter muito caráter para

violar um tumulo. Aceitem isso como um pequeno teste, meus futuros aprendizes.

Nunca serei tão boa quando você, mestre Patápio. O saúdo e o desprezo. Descanse em

paz e saiba que a “queridíssima” está em boas mãos.

Larissa Ribeiro de Górgias, Berlim, 30 de Outubro de 1977

Historieta narrada por Posseiro das Palavras

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Depoimento de Miguel

Minha tia sempre foi meio esquisita, vovó conta que ela saiu de casa muito cedo, o que

não era bem visto na época. Ela passou um tempo no Rio de Janeiro e sabe-se lá o que

aconteceu por aquelas bandas. Existem boatos na família, mas eu também não quero saber, por

que afinal de contas não tenho nada com isso. A titia queria ser famosa desde nova, conta que

tentou ser aluna do maior flautista de todas as eras – palavras dela – mas o cara não quis saber

de dar aula para ela. Eu pessoalmente acho que foi aí que ela despirocou de vez, ficou obcecada

pelo sujeito – ela não estava acostumada a ouvir um não. Seguiu o pobre por todo a país, aonde

ele ia ela ia atrás, o seguiu até no enterro. Hoje em dia ela diz que a flauta que ela toca era dele,

que roubou corajosamente de seu túmulo. Duvido muito dessa história, por outro lado, quem

duvida das maluquices da minha tia, corre o risco de ser mais doido que ela.

Depoimento transcrito por [M.B.]

Page 15: Bemois de silva notas para a eternidade

Minha versão

Guadalupe é o meu nome. Sou eu a “mulher de origem paraguaia”, a “mulher do

desditoso Patápio”, como me chamou o jornal na época. Alguns anos se passaram desde a

morte do meu marido e agora sinto que já posso falar sobre o que aconteceu. Naquele

momento a dor era tanta que não pude dizer nada. Deus ter levado meu amor assim, tão de

repente, me pareceu até castigo. Por um tempo achei que merecia isso. Algo deveria ter feito

pra que uma desgraça deste tamanho acontecesse. Pensei muito. Tentava buscar a razão da

minha penitência. Depois, achei que Deus era mesmo um injusto, porque simplesmente não

consegui achar a origem do meu castigo. Ele talvez estivesse só se divertindo com a vidinha da

gente aqui na terra. Agora, cansei de tentar encontrar motivos. Vou apenas vivendo a vida, um

dia de cada vez, na esperança que a dor míngüe.

Resolvi contar a nossa história porque quando tudo aconteceu não fui capaz de dizer

nada. Deixei que as pessoas falassem. De mim. Dele. De nós dois. Falaram o que quiseram. E

na maioria das vezes, não eram verdades. Quiseram até me culpar pela morte. Fui acusada de

adúltera, traidora, interesseira, e tantas coisas mais. Disso tudo, nada me doeu. Porque ele me

conheceu e sabia quem eu era. O que realmente me magoou foi a insinuação de que eu não

era sua esposa. Esposa legítima, perante Deus e a justiça. Quando diziam “mulher do flautista”,

não diziam a esposa, a Sra. Patápio Silva, era simplesmente “a mulher” ou a “companheira”.

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Depoimento de Mercedes

Sou enfermeira desta casa de repouso desde que completei meus estudos. A enfermagem

é um trabalho difícil, a gente acaba convivendo com muita tristeza. Para você ver, a maioria dos

que estão internados aqui não tem mais nem família. Essa moça paraguaia mesmo já faz anos

que está internada, nunca ninguém veio visitá-la. O que eu sei, é que ela era estudante de

música no Paraguai, um prodígio, veio para o Brasil para fazer uma especialização na música de

Patápio Silva. Parece que ela tinha um namorado que a receberia no Rio de Janeiro, mas o rapaz

arrumou outra e deixou a pobrezinha sozinha e sem lugar para ficar. Ela perdeu a cabeça com

isso, e veio para Florianópolis dizendo que era mulher do tal de Patápio. A gente bem sabe que o

sujeito tava acompanhado de uma paraguaia quando esteve por essas bandas, vai ver é por isso

que ela acha que é a dona. Mas isso também já faz muito tempo.

Depoimento transcrito por [M.B.]

Page 16: Bemois de silva notas para a eternidade

Inventaram coisas sobre o nosso passado, sobre como nos conhecemos e sobre os

lugares de onde ele teria me tirado. Inventaram ainda as histórias que teriam me levado a

matá-lo. Tudo pela promessa de uma jóia, que um tal senhor importante teria me dado. Pois a

verdade é que nunca recebi jóia alguma. Nem mesmo conheci o senhor. A verdade é muito

mais simples do que as pessoas queriam acreditar. E, com certeza, muito mais simples do que

aquilo que o jornal queria publicar.

Então, agora eu conto a minha versão. A única verdadeira sobre quem eu sou e como

começou a nossa vida juntos. Alguns podem ficar decepcionados, não tem a aventura que

imaginavam, nem os detalhes picantes. Sem bordéis, bebida, jogo, fuga. É só uma história de

amor comum, de um casal comum. Aí vai. Sou mesmo Paraguaia e também esposa do flautista

falecido. Nos conhecemos em Assunção há alguns anos. Assisti a um concerto do Patápio e me

apaixonei pela música. Fomos apresentados por um amigo depois da apresentação e me

apaixonei por ele ali mesmo. A conversa toda não durou mais que dez minutos. Elogiei sua

música. Ele elogiou meus olhos. Ele me ofereceu uma bebida. Eu agradeci. Uns segundos em

silêncio. Perguntei se ele ficaria muito tempo na cidade. Ele disse que dependia de mim. E me

perguntou se eu o acompanharia. Intrigada, quis saber para onde. Ele me disse: pela vida.

Historieta narrada por Stra. Mirtilo

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Depoimento de Afrânio

Primeiramente, quero que entendam que a culpa de Guadalupe estar dessa maneira não

é minha. Veja bem, eu nunca lhe prometi amor eterno e a idéia de se mudar para o Rio de

Janeiro foi dela. Nosso relacionamento já não estava lá àquelas coisas e ela decidiu vir para o

Brasil de mala e cuia. Eu dei o maior apoio, pois ela queria se especializar na música do Patápio

Silva, quem ela sempre admirara excessivamente. Mas entendam, não fazia parte do pacote

morarmos juntos, ela tinha conseguido uma bolsa do Instituto Nacional de Música, o que incluía

moradia estudantil. Ela realmente era uma exímia flautista, achei que deveria investir fundo em

sua carreira. Mas ela chegou no Brasil falando em filhos e casamento, eu quase surtei. As coisas

entre nós foram ficando cada vez piores, até que o rompimento foi inevitável. Depois disto ela

entrou numas neuroses de que só Patápio Silva o amava verdadeiramente.

Depoimento transcrito por [M.B.]

Page 17: Bemois de silva notas para a eternidade

Uma [breve] referência Biográfica!

Patápio Silva nasceu em 22 de outubro de 1880 na região noroeste do estado do Rio de

Janeiro. Filho do imigrante português Bruno José da Silva, e de Amélia Amália de Medina e

Silva – que tinha apenas 13 anos. Amélia seria filha de escravos alforriados, consta que os

fazendeiros da região anteciparam à Abolição para evitar a fuga dos escravos e assegurar a

permanência da mão-de-obra.

Dizem os testemunhos familiares que Patápio demonstrou aptidão para música desde

pequeno, tendo fabricado sua primeira flauta aos cinco anos – uma flauta de bambu. Aos seis,

mudou-se com o pai e os dois irmãos mais novos para Cataguases, em Minas Gerais. O motivo

da mudança foi a separação dos pais.

Aos dezesseis saiu de casa, motivado pela resistência do pai ao vê-lo enveredar pela

carreira musical. Comprou uma flauta de chaves, deixou a cidade e passou a tocar em diversas

bandas do interior de Minas e do Rio de Janeiro. Em 1900, aos vinte anos, muda-se

oficialmente para o Rio de Janeiro com o objetivo principal de ingressar no curso de flauta do

INM – Instituto Nacional de Música. Nos primeiros tempos na cidade maravilhosa trabalhou

como tipógrafo na Imprensa Nacional e na Casa da Moema, e também voltou a exercer a

função do pai, barbeiro, depois passou a trabalhar com trupes de teatro.

Em fevereiro de 1901 apresentou-se ao INM para audição. Carregava uma flauta de

madeira de fabricação antiga e grosseira. Seu estado causou riso ao professor que iria assistir

sua audição. Entretanto, após executar algumas músicas de seu repertório e outras indicadas

pelo professor o sentimento deste não era mais de riso e sim de admiração.

Os exames de admissão de Patápio transcorreram de tal forma que este não obteve apenas a

vaga no curso como ingressou direto para o segundo semestre. Enquanto avançava nos

estudos, preparava-se para o seu primeiro recital, que se deu em 15 de fevereiro de 1902. Foi

uma apresentação de alunos e ex-alunos do curso de flauta, no próprio salão do INM. Neste

reci

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Indicações da Travessa:

Além das Cortinas [http://alemdascortinass.blogspot.com/]

A sala dos Medos [http://asaladosmedos.blogspot.com]

Do lado de Dentro [http://hellenrios.blogspot.com/]

Dos arcos ao exílio – escritos em prosa e verso

[http://letrasnoexilio.blogspot.com/]

Page 18: Bemois de silva notas para a eternidade

recital Patápio teve de superar outros desafios além do nervosismo de uma primeira

apresentação. O público musical da época não via com bons olhos a presença de um músico

mestiço no recital; pois sua pele demonstrava sua origem pobre. Apesar das dificuldades e do

preconceito, Patápio contava com o apoio da imprensa que não poupava adjetivos e elogios

para qualificar seu desempenho nos espetáculos e mesmo para descrevê-lo como pessoa.

Os avanços tecnológicos fizeram com que o flautista fosse um dos pioneiros da indústria

fonográfica brasileira. As gravações ficaram com problemas técnicos devido às limitações da

época, porém, tiveram excelente repercussão entre seus contemporâneos. Graças ao disco o

nome de Patápio ficou conhecido de norte a sul do país.

Concluiu seu curso de flauta em 1903 e em 1904 ganhou a premiação máxima no

“concurso a prêmio”, que se tratava de uma apresentação aberta aos alunos e ex-alunos do

INM a uma banca de professores do instituto. O prêmio seria uma flauta de prata doada ao

INM por uma dama da alta sociedade carioca.

Com diploma de músico na mão e o nome cada vez mais conhecido, Patápio decidiu

voltar aos tempos em que viajava de cidade em cidade, mas desta vez como concertista solo. O

sucesso era cada vez maior e em 1905 o flautista teve seu primeiro concerto na cidade de São

Paulo; apresentar-se na capital paulista era o caminho natural para qualquer músico que

alcançasse o sucesso.

Patápio estava sempre preocupado em tornar seu trabalho mais conhecido, e uma de

suas primeiras providências em São Paulo foi tirar uma bela foto para ser distribuída aos

jornais das cidades por onde passaria. Enquanto se consolidava como concertista, começava a

planejar uma viagem à Europa para aperfeiçoar seus estudos. Sua dificuldade maior foi juntar

o dinheiro para a viagem. Com esse objetivo lançou-se às excursões pelo interior de São Paulo

e de Minas Gerais. E em 1907, dirigiu-se para o sul do país. Sua primeira apresentação seria em

Curitiba, e depois seguiria para Florianópolis.

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Indicações da Travessa:

'Let them eat cake', she says [ http://likemarieantoinette.blogspot.com/ ]

Luccas Neves Strangler [http://luccasneves.blogspot.com/ ]

não sei, só sei que foi assim... [http://travessaemtrestempos.blogspot.com/]

Trilhos Perenes [http://trilhosevaporados.blogspot.com/]

Page 19: Bemois de silva notas para a eternidade

Chegou à ilha no dia 12 de abril, com apresentação marcada para o dia 18 no Clube 12

de Agosto. Hospedou-se no Hotel do Comércio localizado na Rua Altino Correia (atual

Conselheiro Mafra). Chegado o dia da apresentação, dia 18 de abril, o público foi surpreendido

com a notícia de que o espetáculo seria adiado em detrimento do artista ter sido acometido

por um repentino mal-estar que o deixara de cama. Naquele tempo o litoral catarinense estava

sendo fortemente atingido pela gripe, análise dos jornais da época mostra a forte preocupação

com a saúde pública.

O concerto foi remarcado para o dia 20, e depois para o dia 21, até ser postergado sem

previsão de data. O quadro de Patápio se agrava e o médico responsável não conseguia chegar

a um diagnóstico, buscou auxílio de colegas e o flautista chegou a ser observado por uma junta

de cinco médicos. Os esforços, entretanto, não deram resultado e às duas da manhã de 24 de

abril de 1907, Patápio Silva morreu no quarto do hotel, aos 26 anos.

Ainda tinha-se dúvida acerca de sua causa mortis a qual foi registrada como “gripe

adinâmica”, um diagnóstico genérico. As homenagens ao artista e cerimônia fúnebre foram

feitas ainda em Florianópolis contando com o apoio da cidade.

Por se tratar de uma morte inesperada, causada por uma doença fulminante e

misteriosa deu-se origem a especulações de que Patápio Silva tinha sido envenenado no bocal

da própria flauta, por alto funcionário do Estado o qual teria se apaixonado pela moça que

acompanhava o flautista. Outras versões também surgiram, nenhuma foi comprovada.

Texto escrito por Taiane Santi Martins

___________________________________________________________________________________

Referências sobre o autor retiradas de: OLIVEIRA, Mauricio de Lima. UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

Programa de Pós-Graduação em História. . Patápio Silva, o sopro da arte : trajetória de um flautista mulato no início do

século XX. Florianópolis, SC, 2007. viii, 155 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de

Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-graduação em Historia

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Para participar da Travessa:

Atenção o edital de chamada de textos para a 5ª edição da Travessa em Três Tempos

será aberto no dia 30 de junho e terá como tema “fotografia”.

Os interessados deverão fazer o download do edital de chamada no site:

www.wix.com/revistatravessa/travessaemtrestempos, os textos deverão ser enviados

para o endereço [email protected] dentro das normas e do prazo indicados

no edital.

Page 20: Bemois de silva notas para a eternidade

Ficha Técnica:

Atenção! As historietas, depoimentos e nomes contidos nesse exemplar são todos fictícios.

Documento Base:

Recortes dos jornais O dia (1907) e O Estado (1977), retirados da

dissertação de mestrado: Patápio Silva, o sopro da arte:

Trajetória de um flautista mulato no início do século XX de

Maurício de Lima Oliveira.

Textos de Redatores:

Taiane Santi Martins

Autores Convidados:

Ana Terra de Leon

Iulla Portillo

Nathália Henrich

Tainah Maria de Souza Lunge

Mateus Cavalcanti Melo

Capa:

Foto: Mariana Rotili

Arte e design: Taiane Santi Martins

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Page 21: Bemois de silva notas para a eternidade

Edição e Diagramação:

Taiane Santi Martins

Revisão:

Fabiane Gabriela Lubian Marques

Hellen Martins Rios

Taiane Santi Martins

Idealização:

Taiane Santi Martins

Equipe Travessa em Três Tempos:

Fabiane Gabriela Lubian Marques

Hellen Martins Rios

Luccas Neves Stangler

Mariana Rotili

Taiane Santi Martins

Apoio e Orientação:

Prof° Márcia Ramos de Oliveira

Laboratório de Imagem e Som – LIS

Endereço para contato:

[email protected]

http://revistatravessaemtrestempos.blogspot.com

www.wix.com/revistatravessa/travessaemtrestempos

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Idealização:

Taiane Santi Martins

Apoio: