Benefício Assistencial: Temas Polêmicos

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B ENEFÍCIO ASSISTENCIAL – L EI N . 8.742/93 Temas Polêmicos

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Benefício assistencial – lei n. 8.742/93Temas Polêmicos

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Marco aurélio Serau Junior JoSé ricardo caetano coSta

coordenadoreS

Benefício assistencial – lei n. 8.742/93Temas polêmicos

Alexandre TrichesAna Maria Correa Isquierdo

Bruno TakahashiCamila Bibiana Freitas BaraldiDenis Renato dos Santos Cruz

Fabio Luiz dos PassosFlávio Roberto Batista

Jair Soares JúniorJosé Carlos Francisco

José Ricardo Caetano Costa

Karina Carla Lopes GarciaLuma Cavaleiro de Macêdo Scaff

Marco Aurélio Serau Jr.Miguel Horvath Júnior

Sérgio Henrique SalvadorSilvio Marques GarciaTáli Pires de Almeida

Tatiana Chang WaldmanTheodoro Vicente Agostinho

Wagner Balera

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Janeiro, 2015

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Benefício assistencial : Lei n. 8.742/93 : temas polêmicos / Marco Aurélio Serau Junior, José Ricardo Caetano Costa . -- São Paulo : LTr, 2015.

Vários autores.

Bibliografia.

1. Assistência social - Brasil 2. Direitos sociais 3. Poder Judiciário 4. Seguridade social - Brasil I. Serau Junior, Marco Aurélio. II. Costa, José Ricardo Caetano.

14-12873 CDU-34:368.4(81)(094.56)

Índice para catálogo sistemático:

1. Brasil : Previdência social e assistencial : Benefícios : Leis comentadas :

Direito previdenciário 34:368.4(81)(094.56)

Versão impressa - LTr 5149.1 - ISBN 978-85-361-3208-2Versão digital - LTr 8565.2 - ISBN 978-85-361-8259-9

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Sumário

ApresentAção – Antonio Rodrigues de Freitas Jr. ............................................................................ 7

prefácio – José Antônio Savaris ............................................................................................... 9

introdução .......................................................................................................................................... 11

Parte IteorIa Geral

o Limbo dA proteção sociAL: entre A AssistênciA e A previdênciA ................................ 15

Fabio Luiz dos Passos

umA contribuição Ao estudo dA AssistênciA sociAL à pessoA com deficiênciA: trAbALho e eficiênciA no modo de produção cApitAListA ............................................... 24

Flávio Roberto Batista

A infLuênciA do Argumento econômico sobre o Jurídico nA ApLicAção do direito à AssistênciA sociAL ......................................................................................................................... 32

Jair Soares Júnior

As poLíticAs púbLicAs, o Ativismo JudiciAL e A AssistênciA sociAL ................................. 43

Miguel Horvath Júnior

A AssistênciA sociAL e o benefício de prestAção continuAdA: umA reALidAde A ser AprimorAdA ................................................................................................................................... 49

Theodoro Vicente Agostinho e Sérgio Henrique Salvador

A importânciA dA AssistênciA sociAL nA constituição federAL como instrumen-to sociAL ............................................................................................................................................... 52

Wagner Balera

Parte IIrequIsItos Para ConCessão e asPeCtos ProCessuaIs

processo AdministrAtivo pArA fins de concessão de benefício AssistenciAL ......... 61

Alexandre Triches

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6 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Marco Aurélio Serau Junior e José Ricardo Caetano Costa (coordenadores)|

O DireitO a ter DireitOs: Os DireitOs sOciais assistenciais a partir DO ativismO juDicial .................................................................................................................................................. 69

Ana Maria Correa Isquierdo e José Ricardo Caetano Costa

especificiDaDes Da cOisa julgaDa na cOncessãO DO BenefíciO assistencial ........... 76

Bruno Takahashi e Karina Carla Lopes Garcia

justiça sOcial e manutençãO DO BenefíciO assistencial Da lei n. 8.742/1993 nO ÓBitO DO titular ................................................................................................................................ 87

José Carlos Francisco

perícia BiOpsicOssOcial: O BOm exemplO que vem Da lei Orgânica Da assistência sOcial ..................................................................................................................................................... 94

José Ricardo Caetano Costa e Marco Aurélio Serau Jr.

BenefíciO assistencial e BenefíciOs previDenciáriOs: Diferenças e aprOximações .. 106

Silvio Marques Garcia

O DireitO DOs imigrantes aO BenefíciO De prestaçãO cOntinuaDa: uma questãO De ciDaDania ........................................................................................................................................ 116

Tatiana Chang Waldman, Camila Bibiana Freitas Baraldi e Táli Pires de Almeida

Parte IIIFInancIamento e custeIo da assIstêncIa socIal

assistência sOcial: Breve estuDO sOBre Os gastOs cOm prOteçãO sOcial Básica e prOteçãO sOcial especial nOs municípiOs De sãO paulO e De Belém .............................. 129

Luma Cavaleiro de Macêdo Scaff

Parte IVasPectos crImInaIs

a assistência sOcial e O crime De aDvOcacia aDministrativa: uma interpretaçãO necessária ............................................................................................................................................ 139

Denis Renato dos Santos Cruz

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apresentação

Antonio Rodrigues de Freitas Jr.(1)

Os trabalhos aqui reunidos, mercê da feliz iniciativa e da competente organização dos professores Marco Aurélio Serau Jr. e José Ricardo Caetano Costa, vêm completar uma grande lacuna na literatura jurídica brasileira.

Se por um lado existem muitas obras devotadas aos temas capitais da previdência social – algumas delas, por sinal, de autoria de ilustres juristas também presentes nesta coletânea – de outro, os problemas da assistência social por algum motivo parecem não suscitar a mesma atenção.

Muitos fatores podem explicar a parcimônia com que o olhar do jurista tem-se voltado ao campo da assistência social. Em meu ver, essa atitude é caudatária do lapso conceitual que subjaz à própria decisão do constituinte de reunir, sob o manto único da seguridade, assistência e previdência.

O binômio, sob o ângulo da doutrina prevalente nos países ocidentais, encerra conceitualmente uma recíproca exclusão. Um típico sistema de seguridade não comportaria a instituição de “benefícios” ou de cobertura pautados por fundamentos retri-butivos, nem tampouco custeados por mecanismos de arrecadação instituídos sob a forma de poupança compulsória; elementos típicos dos sistemas previdenciários. Pela solução idealizada pelo constituinte de 1988, seguridade não seria um sistema de co-bertura de contingências universal e qualitativamente distinto de previdência, mas uma somatória de previdência e assistência.

A solução do Texto de 1988 contrariou os contornos conceituais e distinções que se firmaram no decorrer do século XX a partir de experiências paradigmáticas de outros países. Até então, por seguridade (ou mesmo segurança) social, indicava-se o sistema de cobertura de contingências, ou mais propriamente de seus efeitos sociais, que se destine indistintamente a todos os que, contribuintes ou não, encontrem-se em estado de necessidade; na síntese do Beveridge Report: um sistema promocional e protetor que visa à liberação das necessidades. Por sua vez, por previdência (ou seguro) social designava-se o sistema de cobertura dos efeitos das contingências, resultante de imposição legal de contribuição e benefícios, alicerçado na delimitação do universo subjetivo dos beneficiários por sua qualidade de contribuinte ou seu dependente.

A tentativa do constituinte brasileiro de 1988 de instituir uma solução de compromisso entre dois modelos de proteção social, contemplada no caput do art. 194 da Constituição, acabou produzindo, como seria de se antever, um enfraquecimento para a carga normativa da cobertura endereçada aos não contribuintes, vale dizer: aos mais pobres. E assim porque previdên-cia e assistência encerram modelos não apenas distintos como devotados cada qual a “universos” distintos de destinatários.

A assistência social renasce assim, de 1988, como uma espécie de primo-pobre da proteção social(2). Primo-pobre mas de cepa nobre, vale dizer: como ramo da proteção social cuja efetividade permite falar em direitos de assistência revestidos da dignidade de direito fundamental.

(1) Professor Associado do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social, da Faculdade de Direito da USP – Largo de São Francisco, advogado, Procurador Legislativo e Diretor-Executivo da Escola do Parlamento do Município de São Paulo.

(2) Logo após a promulgação da Constituição de 1988 os desconcertos dessa escolha heterodoxa – típica opção de quem não quer optar nem suportar o custo político da opção – foram progressivamente adquirindo crescente visibilidade. Excerto indicativo dessa percepção pude registrar, logo ao início do debate suscitado pelo processo de integração do trabalhador rural, em “Cenários e Perspectivas dos Direitos

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Duas décadas passadas do início da vigência da Lei n. 8.472/93, os debates em curso parecem refletir apropriadamente o engrandecimento da agenda da assistência social, na interface entre políticas públicas de promoção social e direitos funda-mentais.

Se de um lado emergiram temas como o dos limites constitucionais ao critério de remuneração familiar para a aferição “objetiva” da miserabilidade, de outro, a razoável eficácia de políticas promocionais fez emergir, para o eixo das preocupações metodológicas, o problema das “estratégias de reversão” relativamente a beneficiários de programas de “bolsas”.

Sob o ângulo jurídico, particularmente aquele dos direitos fundamentais, os trabalhos aqui reunidos, concebidos a par-tir de distintos pontos observação, dão conta dos principais problemas entreabertos pelas tensões entre o regime da Lei n. 8.472/93 e o alcance da tutela constitucional das promessas do art. 203 da Constituição; em especial daquela constante de seu inciso V.

Afirmam seus organizadores na introdução: “uma obra como essa é fadada à incompletude”. Diria eu um pouco diferente: a incompletude não é da obra, mas dos desafios da assistência social, tão grandiosos num país como o Brasil, marcado pela exclusão social e pela pronunciada desigualdade na distribuição da riqueza.

Nesta obra o leitor encontrará o produto da reflexão e da pesquisa de quase trinta estudiosos, consubstanciadas em quin-ze estudos que tratam de temas que vão dos relevantes problemas da teoria geral da seguridade e assistência, às projeções criminais da advocacia administrativa em pretensões de assistência, passando por competentes trabalhos sobre condições de concessão, aspectos procedimentais, financiamento e custeio.

A atualidade e a profundidade deste material, escrito com elegância e clareza, e robustecido pela renomada experiência prática de seus autores com a agenda da seguridade social, permite concluir ser ele livro de leitura obrigatória para todos os que militam no terreno da assistência social, seja na qualidade de seus gestores e servidores, seja na de advogados, integrantes do Ministério Público, magistrados, e professores universitários;

Leitura também recomendável para os que, quer como pesquisadores quer como cidadãos, tenham interesse nos pro-blemas atuais da assistência social, vistos sob o ângulo não apenas do direito da seguridade, mas também daquele em que seguridade e assistência exibem grandeza de direitos fundamentais.

São Paulo, inverno de 2014.

Sociais para o Campo – A Inserção do Trabalhador Rural na Seguridade”, in Os Direitos Sociais e a Constituição de 1988, Rio de Janeiro: Forense, 1993; p. 69-130. Como vejo, muito desses desconcertos comporiam mais adiante o pano de fundo dos debates do STF na ADI 1.232-1/DF, em torno da constitucionalidade do art. 20. § 3º, da Lei n. 8.742/93.

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prefácio

No âmbito da proteção social, as políticas assistenciais são as que mais dificilmente são percebidas como fundadas em um autêntico direito humano e fundamental.

Por consistirem em ações e prestações não contributivas, os direitos de assistência social carregam o estigma de serem considerados direitos menores, se comparados aos demais direitos de seguridade social e, ainda mais débeis, quando compa-rados aos direitos humanos e fundamentais de primeira dimensão (direitos de liberdade).

Dois passos se mostram importantes para o reconhecimento, a proteção e a efetivação dos direitos assistenciais.

Primeiro, o reconhecimento de sua imposição normativa de dignidade constitucional.

O direito à assistência social encontra-se consagrado constitucionalmente desde que, em 1988, a Constituição da Repú-blica plasmou a seguridade social como nosso modelo de proteção social. Logrou-se evoluir, assim, em termos de proteção social, em relação ao modelo dos seguros sociais, prevalecentes até então.

O modelo dos seguros sociais manifestava o pensamento político de que a proteção social se deveria dar em razão do mé-rito de cada pessoa. Nessa perspectiva, seria justo oferecer proteção social a quem cooperasse para o desenvolvimento social e contribuísse igualmente para um fundo comum a que se acorreria no caso de determinadas eventualidades. Por tal razão, as pessoas protegidas por esse sistema de proteção social eram fundamentalmente os trabalhadores formais e seus familiares.

A adoção de uma tal técnica de proteção social não impedia, reconheça-se, o emprego de uma ou outra política assisten-cial de proteção a pessoas carentes, mas elas não eram compreendidas como um direito reivindicável pelos seus destinatários. Antes, podiam ser discernidas como fruto de contingências socioeconômicas favoráveis que tornavam possível a provisão de prestações mínimas destinadas à habilitação e à integração social dos excluídos da participação social, cultural e econômica. Encontravam-se, tais prestações, como que em um amplo âmbito de discricionariedade dos agentes políticos, correspondendo a uma benesse, um favor quase que imerecido, uma dádiva mais ou menos arbitrária.

Quem sabe se pode afirmar que as ações assistenciais encontravam-se radicadas, menos na solidariedade, mais na compaixão e na benemerência. Isso porque o chamado modelo bismarckiano era fundado em uma noção fraca de solida-riedade, pois simplesmente organizava o pagamento de prêmios pelos trabalhadores por determinado período para que estes tivessem assegurado o direito a um benefício quando da ocorrência dos riscos sociais protegidos. Jogava-se com a aversão aos riscos(1).

Essas considerações de mérito das pessoas, encontradas na base da solidariedade (fraca) dos seguros sociais, não tomavam em conta, porém, suas diferenças de raça, sexo, classe social ou mesmo capacidade para o trabalho ou fatores ambientais.

A Constituição de 1988 apresenta o grande mérito de romper com essa lógica securitária que, por oferecer cobertura apenas às pessoas que, de partida, se apresentavam em condições de se inserir no mercado de trabalho e concorrer para a formação do fundo comum (reduzido campo de proteção), apresentava baixíssimo potencial de redistribuição de renda e riqueza e de inserção social.

É justamente a partir da Constituição da República que o direito à assistência social logra alcançar dignidade constitu-cional fundamental, tal como reiteradamente reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal. Ora, a natureza fundamental do direito à assistência social vincula toda atividade estatal, a qual não é dado, portanto, oferecer-lhe proteção insuficiente (Rcl 4374, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 18.04.2013, DJe 04.09.2013).

Há um segundo passo importante para a efetivação desse direito fundamental social, contudo. Trata-se da compreensão de que, enquanto direito de proteção social e, mais especialmente, proteção da vida humana contra contingências sociais que lhe desafiam a existência digna, apresenta dois autênticos pressupostos de efetividade.

(1) PARIJS, Philippe van. Refonder la solidarité. Paris: Les Éditions Du Cerf, 1999. p. 17-22.

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De um lado, é preciso compreender que a política assistencial detém importante faceta preventiva. Tal como se compreen-de o direito à saúde, o objetivo assistencial centra-se na ideia de prevenção contra os maléficos efeitos da exclusão social. Não se deve esperar que a pessoa ou o grupo familiar, passo a passo, dia após dia, migre da periferia para um estado de absoluta ausência de condições para participação social. Em outras palavras, não se deve condicionar a proteção assistencial à prova de que se encontra definitivamente instalada a carência econômica do grupo familiar(2). Justamente em face da dimensão pre-ventiva da assistência social e da tendência das pessoas vulneráveis terem ainda diminuída sua capacidade produtiva e elevado o espectro de suas necessidades – veja-se o caso dos idosos, por exemplo –, a proteção deve-se dar antes que se verifique um estado de degradação humana. Isso corresponde à essência da ideia da proteção: tanto quanto possível, impedir a ocorrência do dano; tanto quanto possível, atenuar-lhe os efeitos ao máximo, como se jamais houvessem existido.

De outro lado, a política assistencial apresenta a igualdade material como verdadeiro elemento constitutivo. O objetivo da assistência social, enquanto política social, é a de erradicar a miséria, reduzir as desigualdades sociais, propiciar condi-ções para que o indivíduo tenha assegurada a sua existência física e, para além disso, reúna recursos para se desenvolver sua personalidade e participar socialmente. A melhoria da condição socioeconômica é ínsita à política assistencial. Esta não visa apenas prover a seus destinatários a conservação do estado de coisas, a manutenção da pobreza, a perpetuação do estado de semi-exclusão, o “nunca poder mais”, ou a provisão de recursos indispensáveis exclusivamente à sua alimentação. Por ser uma política seletiva, seu potencial de redistribuição de riquezas e renda não pode ser subestimado.

Esses pressupostos para compreensão da assistência social, levantados como que furtivamente neste honroso espaço a mim gentilmente concedido, são apenas algumas dentre as tantas questões que merecem ser refletidas com seriedade pela comunidade jurídica.

Neste contexto, é desnecessário expressar a importância deste esforço coletivo empreendido por profundos conhecedores da problemática político-jurídica assistencial.

Trata-se de obra de peso e que foi escrita por juristas de peso, os quais, com contribuições das mais diversas perspectivas, se orientaram pela compenetração na necessidade de se tornar efetivo o objetivo constitucional fundamental “justiça social” e pelo amálgama que desde há muito representam os estimados Professores Marco Aurélio Serau Junior e José Ricardo Caetano Costa, seus coordenadores.

José Antônio Savaris

(2) E aqui o termo “carência econômica” é propositadamente invocado para contrastar com noção que com ela não se confunde e é muito mais restritiva, qual seja, a da “miserabilidade”. Com efeito, a diretriz constitucional é a de proteção assistencial ao necessitado (CF/88, art. 203). Isso significa dizer que não se deve exigir prova da miséria para a outorga dessa proteção social.

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introdução

Entregamos ao leitor uma empreitada acadêmica bastante relevante: Benefício Assistencial (Lei n. 8.472/93): temas po-lêmicos.

A proposta da obra é a análise da Assistência Social e suas alterações estruturais ao longo destes 20 anos de vigência da Lei n. 8.472/93, especialmente a partir do prisma dos direitos fundamentais.

A Assistência Social não se confunde com o mero assistencialismo, mas é direito fundamental e parte importantíssima da Seguridade Social, conforme previsão do art. 194 da Constituição Federal.

Àqueles que não possuem direito à cobertura previdenciária, pois marginalizados e excluídos do mercado de trabalho formal, ainda sobre a previsão do amparo por meio da Assistência Social, ultima ratio da proteção social prevista na estrutura da Seguridade Social.

Trata-se, pois, de importante elemento de exercício da cidadania. Como tudo aquilo que diz respeito às conquistas sociais, é revestido de problemas e polêmicas, as quais procuramos analisar com profundidade neste trabalho coletivo.

A obra, por seus diversos artigos, permite uma abertura investigativa em relação aos principais temas relativos a este benefício: sua concepção como parte do exercício da cidadania; seus requisitos legais e sua consecução processual, o custeio dessa política pública e até aspectos criminais ligados ao tema.

Uma obra como essa é fadada à incompletude, pois diversos outros aspectos do benefício previsto no art. 203, inciso V, da Constituição Federal, poderiam ser aventados.

Ainda assim compreendemos que uma importante colaboração para a investigação científica desse segmento dos direitos sociais foi produzida, na expectativa menos modesta de uma contribuição para o próprio exercício da cidadania.

Marco aurélio Serau Jr.

JoSé ricardo caetano coSta

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parte iTeoria Geral

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o limBo da proteção social: entre a assistência e a previdência

Fabio Luiz dos Passos(*)

1. introdução

Conforme a redação do artigo 194 da Constituição Fede-ral, a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previ-dência e à assistência social.

A ideia de integração dos três âmbitos de atuação que integram a seguridade social ainda é relativamente nova no Brasil, posto que inaugurado com a Constituição Federal de 1988 e, embora já tenham transcorrido 25 anos desde então, não é de fácil assimilação e compreensão, seja por parte da administração pública, seja por parte do Poder Ju-diciário.

Embora a ideia de seguridade social esteja alicerçada no modelo criado na década de 1940 por Beveridge, ainda é interpretada a partir da ótica bismarckiana de proteção seg-mentada, classista e excludente, característica dos primór-dios da era industrial.

Assim, não é difícil perceber a existência de um hiato de proteção social entre os campos de abrangência da previdên-cia social e da assistência social; um “limbo” no qual o cida-dão fica desassistido pelo Estado, pois não está formalmente integrado à previdência social de modo a obter os benefícios previdenciários, ainda concebidos e interpretados sob um viés bismarckiano, e tampouco se apresenta em condição de miserabilidade que acarrete, nesta mesma interpretação clás-sica, a necessidade da proteção assistencial.

Ademais, se percebe com frequência na atuação judicial uma interpretação do alcance da assistência social desape-gada da realidade econômica e social vivenciada pelo (e no) Estado Brasileiro nestes primórdios do século XXI, e ainda alicerçada na interpretação legal restritiva e na limitada capa-cidade estatal de proteção característica da década de 1990,

resultando em uma aplicação do direito social em contrarie-dade com as disposições constitucionais fundamentais.

Em relação à assistência social, Boschetti (2003, p. 44) informa que

(...) esta política social enfrentou muitas resistências para ser legalmente reconhecida como direito e continua sofrendo enormes resistências na sua implementação como tal, porque ela é uma política em constante con-flito com as formas de organização social do trabalho.

A isto se acresce a visão paternalista e interesses eleitorei-ros sobre a assistência social por parte dos agentes políticos, bem como, a dificuldade de assimilação por parte do próprio cidadão necessitado da proteção social como um direito de cidadania.

2. pobrezA e excLusão sociAL: umA deLimitAção de conceitos(1)

Nas sociedades pré-modernas, antecedentes à Era Indus-trial, a pobreza era reconhecida como um fato natural, algo inerente à vida, que simplesmente ocorria, tal como as secas e as más colheitas (Giddens, 1996, p. 142).

Neste contexto, acidentes, assim como mudanças drás-ticas na condição de vida dos indivíduos, também eram ad-mitidos como ocorrências naturais, que se davam tanto para o bem como para o mal, inexistindo qualquer possibilidade de previsão ou correção, uma vez que provinham da vontade divina ou do destino.

Ocorrências prejudiciais ao indivíduo, em sua condição física ou social, representavam o aspecto negativo do destino, a má sorte ou, literalmente, “des-graça”.

A vinculação da sorte humana aos desígnios divinos jus-tificava o entendimento da pobreza “como algo necessário,

(*) Mestre em Ciência Jurídica; Mestre em direito ambiental e da sustentabilidade. Especialista em direito do trabalho e previdência so-cial Especialista em Processo Civil. Secretário Geral do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário. Professor de direito previdenciário. Advogado.

(1) Este capítulo foi originariamente publicado em PASSOS, Fabio L. dos. Previdência social e sociedade pós-industrial. Ed. Juruá, 2013, com o título 3.2.1 – A evolução do conceito de pobreza.

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16 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Fabio Luiz dos Passos|

ou mesmo um benefício para pessoas carentes, pois seria a efetiva garantia de admissão no Reino de Deus, haja vista a situação de extrema carência e desapego a bens materiais” (Ibrahim, 2011, p. 32). Segundo registra Ibrahim (2011, p. 39), “São Tomás de Aquino [...] não reconhecia quaisquer di-reitos aos pobres, devido à sua posição meritosa, com entrada garantida no Reino de Deus”. Ademais, além de representar uma condição natural, a pobreza por vezes externava caracte-rísticas de punição divina. O auxílio aos pobres não consistia em um critério de justiça social, mas tão somente de carida-de, uma conduta ditada pela moral (Ibrahim, 2011, p. 39), refletindo a generosidade dos indivíduos mais abastados.

Com o iluminismo surge a compreensão das ideias de ris-co e de acidente, intimamente relacionadas. Inicialmente os acidentes estavam associados a ocorrências periódicas que, embora ocasionadas em razão do azar poderiam ser identi-ficadas e catalogadas, posto que, ligados à vida comum, aos grupos populacionais, eram entendidos como provenientes de causa externa.

Tal como informa Ibrahim (2011, p. 36), “na modernida-de, o auxílio aos necessitados deixa de ser visto como mera virtude, tornando-se fundamento da sociedade”.

Neste contexto, a ideia de risco, inerente ao pensamento iluminista, é parte do esforço para controlar o futuro e domi-nar a história no interesse de desenvolver os objetivos huma-nos. O reconhecimento e valorização do risco e a definição de limites de controle, sempre passíveis de adequação, expressa uma situação para a qual o remédio é possível e desejável.

Assim, “a difusão do conceito de seguro social reflete não tanto novas formas de perceber a injustiça social como a importância adquirida pela ideia de que a vida social e eco-nômica pode ser controlada pelos seres humanos” (Giddens, 1996, p. 142).

Já no início do século XVI se encontram proposições tendentes a minimizar a pobreza, no interesse da sociedade, embora ainda com fundamento na obrigação judaico-cristã de prestar caridade.

Johannes Ludovicus Vives, professor em Louvain, França, de origem judia catalã, em 1526, elaborou detalhado plano de renda mínima às populações carentes, denominado De Subven-tione Pauperum, onde mostra a legitimidade da prestação de assistência aos pobres pelos poderes públicos, proveniente de

esmolas dadas de livre vontade. Mas (que) seria mui-to mais eficaz que a assistência privada, por ser mais bem distribuída – entre todos os necessitados e somente eles (Vanderborght, 2006, p. 37).

A partir do final do século XVII, já nos primórdios da revolução industrial, a visão sobre a pobreza se orientou para

o desenvolvimento da riqueza nacional. A pobreza deixou de ser reconhecida como uma condição natural, mas também não se limitava à concepção de carência de recursos. Pobres eram aqueles que não podiam ou não queriam trabalhar. Se-gundo Giddens (1996, p. 140),

a vinculação do pauperismo com a falta de educação moral estava muito clara: ‘trabalho para aqueles que se esforçam, castigo para os que não, e pão para os que não possam’. Por sua vez, a resolução moral se relacionava di-retamente com o bem-estar social; porque [...] a pobreza ‘torna os homens tumultuosos e inquietos’, e combatê-la é ‘um ato de prudência civil e sabedoria política.

Neste contexto, o conceito de pobreza estava claramente relacionado às necessidades da indústria crescente.

Com o desenvolvimento da sociedade industrial, a ideia de pobreza passou a estar vinculada à suficiência de renda para a provisão das necessidades básicas da subsistência, e avaliada estritamente em termos monetários. Como visto na descrição histórica, esta conceituação levou ao desenvolvi-mento das diversas ferramentas de proteção social a partir do final do século XIX, no intuito de evitar que os homens “se encontrem continuamente a braços com os horrores da miséria”. (Leão XIII, 1891 item 51)

Neste sentido, afirma Ibrahim (2011, p. 67), que “a po-breza é definida, sucintamente, como uma acentuada restri-ção no bem-estar, tendo, em regra, significado em termos monetários”. Uma das dificuldades encontradas neste parâ-metro é o de estabelecer critérios objetivos para definir po-breza e assim possibilitar efetivas ações para combatê-la. “A solução tradicional é a criação de linhas de pobreza, as quais, uma vez ultrapassadas, qualificam como pobres aqueles com rendimento e/ou gastos abaixo de determinada fronteira” (Ibrahim, 2011, p. 68). Estas linhas de pobreza são fixadas arbitrariamente e geralmente estão relacionadas à ideia de mínimo existencial.(2)

No início da década de 1980, Rosanvallon (1984, p. 94) já afirmara que a pobreza “não pode ser definida simples-mente, por um critério de rendimento. O isolamento, o local de vida (cidade ou campo) podem aumentar os efeitos do rendimento”. Portanto, a pobreza pode também ser reconhe-cida em relação a “determinados setores, como os pobres em saúde, Previdência Social, etc., mas sem esquecer que a visão mais ampla de bem-estar traduz a possibilidade do indivíduo aderir à vida em sociedade” (Ibrahim, 2011 p. 67).

Daí decorre a ideia de vulnerabilidade social, caracteriza-da pela possibilidade de o indivíduo com renda limítrofe re-gredir em sua condição financeira e/ou social, ultrapassando o limiar da pobreza em um momento futuro.(3)

(2) Segundo BAUMAN, 2013, p. 34, geralmente apontado em termos globais, como abaixo de 2 dólares por dia, o que equivale, ao subsídio europeu médio por vaca.

(3) Conforme registra ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE SEGURIDADE SOCIAL, Perspectivas de Política Social n. 04. Genebra: AISS, 2008. Disponível em <http://www.issa.int/esl/Recursos/Perspectivas-de-Politica-Social>, acesso em 4 maio 2010, p. 2, “Aunque no todos aquellos que trabajan en la economía informal son trabajadores pobres, el número total de trabajadores pobres (aquellos que ganan menos de US$2 al día) en el mundo ha aumentado hasta alcanzar los 1370 millones”.

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17Parte I – Teoria Geral O Limbo da Proteção Social: entre a Assistência e a Previdência |

Rousseau (1753 p. 46) ao elaborar o discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, já afirmara que “é manifestamente contra a lei da natureza, de qualquer manei-ra que a definamos, [...] que um punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falta o neces-sário”. Porém, o mesmo autor reconhecendo a origem destas desigualdades, na própria sociedade, afirmou que

a desigualdade, sendo quase nula no estado de na-tureza, tira a sua força e o seu crescimento do desen-volvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano, tornando-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. (Rous-seau, 1753, p. 46)

Neste sentido, Ibrahim (2011, p. 105) demonstra que a evolução das exigências sociais pode conduzir o indivíduo a pobreza, ao afirmar que

a necessidade de melhor competitividade no merca-do global impõe não só estruturas enxutas e funcionais, mas também mão de obra cada vez mais qualificada, o que gera aumento de desemprego, o qual, por sua vez, demanda maiores gastos no Sistema de Proteção Social, criando uma verdadeira armadilha de pobreza.

A partir deste conceito, a pobreza e a desigualdade são consequências das definições sociais, e legitimadas pela so-ciedade. Neste sentido, Bauman (2013, p. 34), evidencia que

a Tanzânia produz uma renda anual de US$ 2,2 bi-lhões, que divide entre seus 25 milhões de habitantes. O Banco Goldman Sachs ganha US$ 2,6 bilhões por ano, divididos entre 161 acionistas.

Europa e Estados Unidos gastam US$ 17 bilhões por ano com comida para animais, enquanto, segundo espe-cialistas, apenas US$ 19 bilhões seriam necessários para salvar da fome toda a população mundial.

A consequência da distribuição desigual de recursos e possibilidades entre pessoas e grupos sociais, ou mesmo en-tre países, conduz a efeitos nocivos aos indivíduos despro-vidos destas possibilidades, resultando em uma “reação em cadeia da exclusão” (Muller, 2000, p. 27), atingindo a capa-cidade individual de reação. Neste sentido, afirma Friedrich Muller (2000, p. 27-28) que

a depauperação econômica estaria ligada sobretudo a devastadoras desvantagens da formação da personali-dade e da capacitação profissionalizante, da cultura, do grau de informação, do sentimento de justiça e da au-toestima. Resta acrescentar que o enfraquecimento do sentimento da autoestima, a falta de “reconhecimento”, conduz à paralisia das pessoas afetadas enquanto seres políticos: ao padrão de vida excessivamente baixo, ao empobrecimento da família, ao estigma do bairro resi-dencial errado, à comunicação do encerramento da conta

corrente por parte da gerência do banco, à exclusão cres-cente da vida social, cultural e política, ao acirramento da falta de chances de vida. O descenso econômico con-duz rapidamente à depravação sócio-cultural e à apatia política – que quase sempre se acomoda bem aos desíg-nios das esferas dominantes da sociedade.

Com vistas a esta nova conformação social, com uma distribuição de riscos que não observa os padrões da socie-dade industrial, Amartya Sem (2010. p. 36-37) registra que “existem boas razões para que se veja a pobreza como uma privação de capacidades básicas, e não apenas como baixa renda”. Segundo este economista indiano, prêmio Nobel em economia,

A privação de capacidades elementares pode refletir--se em morte prematura, subnutrição significativa (es-pecialmente de crianças), morbidez persistente, analfa-betismo muito disseminado e outras deficiências. [...] A mudança de perspectiva é importante porque nos dá uma visão diferente – e mais diretamente relevante – da pobre-za, não apenas nos países em desenvolvimento, mas tam-bém nas sociedades mais afluentes. (Sen, 2010. p. 36-37)

Esta concepção de pobreza proposta por Amartya Sen é significativamente importante para enfrentar as dificuldades sociais que se apresentam na nova conformação social de-nominada sociedade pós industrial, na qual a distribuição dos riscos sociais e individuais ocorre de maneira bastante diferente daquela vivenciada na era industrial.

Bauman também evidencia a necessidade de superação da identificação da pobreza a partir da simples avaliação de rendimentos, esclarecendo que

‘o fim da sociedade de classes nacional’ [...] não pre-nuncia o ‘fim da desigualdade social’. Precisamos agora estender o tema da desigualdade para além da área equi-vocadamente limitada da renda per capita; ela deve se ampliar até a atração fatal e recíproca entre pobreza e vulnerabilidade social, corrupção, acumulação de peri-gos, assim como humilhação e negação da dignidade; ou seja, até os fatores que moldam as atitudes e a conduta e que são responsáveis pela integração [...] de grupos, fatores que depressa crescem em volume e importância na era da informação globalizada. (Bauman, 2013 p. 3)

Nesta linha de entendimento, a Associação Internacio-nal de Seguridade Social reconhece a exclusão social como “o processo pelo qual os indivíduos perdem a capacidade de participar plenamente em todos os aspectos da sociedade em que vivem e, portanto, ficam expostos a um maior risco de pobreza”. (AISS, 2010 p. 3)

Com o intuito de minimizar estes efeitos da exclusão social, aprimorando os programas de proteção social, para ajustá-los à nova realidade do mercado, novas políticas pú-blicas vêm sendo adotadas por diversos países, especialmente

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aqueles que não se encontram no grupo de países desenvol-vidos, onde a proteção social parece ter atingido o seu auge a partir do modelo tradicional.

3. A concepção de pobrezA e o ALcAnce dA AssistênciA sociAL

Boschetti (2003 p. 44) questiona quais são os atributos e as funções destinados à assistência social em sua confor-mação como direito social em uma sociedade onde “a ordem social tem como base o primado do trabalho”, evidenciando assim a perpetuação de uma interpretação das relações so-ciais e do papel do Estado ainda sob a ótica da sociedade industrial ou, mais especificamente, da sociedade salarial (Boschetti, 2003, p. 64).

Esclarece a referida autora que

(...) o reconhecimento legal da assistência social como direito retoma e mantém uma distinção entre as-sistência e trabalho, entre capazes e incapazes que es-trutura secularmente a organização social. O primado liberal do trabalho ou, mais precisamente, do trabalho assalariado, materializou na história o principio segundo o qual o homem deve manter a si e à sua família com os ganhos de seu trabalho, ou com a venda de sua força de trabalho. Este princípio está de tal forma cristalizado, que a perspectiva e/ou iniciativa de sustentação dos indi-víduos por meio de políticas assistenciais, sejam aquelas de transferência de renda (em geral denominadas progra-mas de renda mínima) ou ações de outra natureza, são profundamente permeadas por debates teóricos tensos, conflituosos e, como não poderia ser diferente, orienta-das por perspectivas políticas e ideológicas antagônicas. Enquanto os liberais ‘aceitam’ políticas assistenciais mí-nimas voltadas para ‘inaptos ao trabalho’ e reconhecem que programas de transferência de renda podem garantir a livre oferta de mão de obra no mercado, autores com perspectiva social defendem a instituição de amplos programas de transferência de renda com o objetivo de proteger a força de trabalho excluída do processo produ-tivo.” (Boschetti, 2003, p. 46)

Assim, o trabalho e a assistência vivem uma histórica e contraditória relação de tensão e atração, mesmo quando re-conhecidos como direitos sociais. Segundo Boschetti (2003, p. 47) a situação de tensão ocorre

(...) porque aqueles que têm o dever de trabalhar, mesmo quando não conseguem trabalho, precisam da assistência, mas não têm direito a ela. O trabalho, assim, obsta a assistência social. E atração porque a ausência de um deles impele o indivíduo para o outro, mesmo que não possa, não deva, ou não tenha direito.

Esta situação é drasticamente excludente, especialmente em uma realidade na qual “o direito à assistência é limitado

e restritivo” (Boschetti, 2003, p. 47) e, embora o trabalho seja reconhecido como direito, não é assegurado a todos. Tal realidade se mostra ainda mais nefasta quando evidenciado que a economia formal por vezes se beneficia desta situação de exclusão.

Não é difícil perceber que esta distinção clara entre as-sistência social e previdência social (proteção social eminen-temente destinada aos incluídos no mercado de trabalho) típica de uma leitura bismarckiana da proteção social não é mais sustentável e tampouco eficiente na sociedade atual, seja porque seus elementos básicos e traços distintivos vêm, gradativamente, desaparecendo ou se confundido, seja por-que esta dualidade absoluta não se mostra eficiente na socie-dade pós industrial contemporânea.

Sobre o primeiro aspecto, Boschetti (2003, p. 63-64) afir-ma, a partir do estudo de Dufourcq, que

(...) a seguridade social fundada na lógica do seguro não passa de um mito, já que: o financiamento das po-líticas que compõem a seguridade social está cada vez menos baseado na contribuição direta de empregados e empregadores e incorporando cada vez mais fontes deri-vadas do orçamento fiscal; os direitos sociais estão cada vez mais baseados na lógica da cidadania e menos no caráter contributivo; o montante dos benefícios está cada vez mais definido em função da renda familiar e das ne-cessidades sociais, e menos na contribuição efetuada; os modelos de gestão estão cada vez mais estatizados e sob o controle dos poderes Legislativo e Executivo e menos sob o controle autônomo dos trabalhadores e emprega-dores.

Em relação ao segundo aspecto, se ressalta a distinção entre a concepção beveridgeana de seguridade social, da qual se originou a tendência adotada pela Constituição Brasileira em 1988, cujo intuito é proteger o cidadão da condição de pobreza, da concepção bismarckiana, cujo intuito é amparar o trabalhador incapacitado de prover o seu sustento a partir do trabalho (assalariado, industrial, masculino). Além de se tratarem de concepções diametralmente opostas, e a segun-da (bismarckiana) não guarda consonância com os ditames constitucionais assumidos pelo Estado Brasileiro em 1988, pois não tem o condão de amenizar a pobreza e reduzir as condições de desigualdade social. Ao contrário, se aplicada restritivamente, pode agravar estas situações, pois não con-templa outras dimensões dos conceitos de pobreza e de desi-gualdade social, além dos limites monetários objetivos.

4. dA distinção restritivA (e uLtrApAssAdA) entre AssistênciA e previdênciA

Na mesma linha de entendimento adotada por Amartya Sen, já apontada no tópico 2, supra, Boschetti (2003, p. 114) afirma que “pobreza e desigualdade, embora intrinsecamente relacionadas, não expressam situações semelhantes” traduzindo

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a interpretação comumente dada pela Administração Pública e pelo Poder Judiciário ao direito constitucional à assistência social, em uma leitura restritiva, afirma que

A pobreza é comumente qualificada e reduzida à au-sência ou insuficiência de renda para satisfação de mí-nimos sociais necessários à sobrevivência. Esta é uma definição simplista e reducionista em dois aspectos: 1) reduz pobreza à ausência ou insuficiência de renda, não considerando outros aspectos necessários à reprodução da vida humana; 2) relaciona o padrão de pobreza ao mínimo necessário à sobrevida. Esta concepção minima-lista leva, por exemplo, ao estabelecimento de ‘linhas de pobreza’ absolutamente vergonhosas e também a uma prática de classificação da pobreza, como ocorre com a renda per capita de um quarto de salário mínimo estabe-lecida na Loas.(Boschetti, 2003, p. 114-115)

A desigualdade social é um fator determinante na ma-nutenção dos níveis de pobreza e legitima a adoção de prá-ticas socialmente excludentes, bem como, obtém vantagens expressivas a partir da realidade de exclusão social, em um claro circulo vicioso que tende a agravar ainda mais a própria realidade de desigualdade social, a ponto de conformar na população excluída uma mentalidade que admite esta distin-ção da sociedade em grupos privilegiados e grupos excluídos.

Novamente citando Boschetti, (2003, p. 114-115) cons-tata-se que

Existem países considerados ‘pobres’, que não apre-sentam altos índices de desigualdade entre a população. Inversamente, existem países tidos como ‘ricos’, que mantêm e agravam desigualdades econômicas e sociais entre classes e grupos sociais. Por outro lado, a melhoria de situações de pobreza não implica, necessária e auto-maticamente, em redução das desigualdades. (...)

A existência e persistência da pobreza estão ligadas (não só, mas de forma determinante) à distribuição da riqueza socialmente produzida. Assim, existem dois gru-pos de países em que predomina a pobreza absoluta: no primeiro, a população é pobre porque a renda nacional, dividida entre sua população, não é capaz de assegurar o mínimo indispensável aos cidadãos, ainda que fosse repartida de forma equânime. No segundo grupo, a ri-queza nacional é suficientemente elevada para garantir condições básicas de vida para todos os cidadãos, mas a distribuição desta riqueza é de tal forma desigual, que convivem e persistem situações de pobreza e também de desigualdades econômicas e sociais.

O Brasil, seguramente, está incluído neste segundo grupo, visto que seu produto interno bruto (...) o coloca entre os 11 países mais ricos do mundo, mas detentor de uma das piores distribuições de renda.”

Corrêa relata que “a desigualdade foi naturalizada no Brasil, pois um terço da população é impedida de acessar di-reitos básicos, situação que relega a esse estrato da sociedade a condição de subcidadãos” (Corrêa. 2013, p. 309).

Ao passo em que o processo histórico de lutas sociais e conquistas de direitos vivenciado na Europa possibilitou a compreensão moral relativa à universalização do princípio de igualdade entre sujeitos, a inexistência deste histórico e o elemento de pessoalidade presente na sociedade brasileira justificariam a presença de injustiças vinculadas à própria noção de dignidade. Corrêa (2013, p. 309-310) registra que

(...) nas sociedades centrais esse processo teria ga-rantido a formação de um habitus primário, o qual é ca-racterizado pelo estabelecimento de um respeito mínimo entre todos os sujeitos de uma determinada sociedade, permitindo que os mesmos possam incorporar em suas pretensões a noção de dignidade. Em contraposição, nos países periféricos não ocorre esse processo, os direitos e a modernização são impulsionadas pelo Estado. Essa situação conforma um habitus precário, que se carac-teriza pela fragmentação, ou seja, não se estabelece na população um respeito entre todos, condicionando uma parte significativa dos sujeitos ao status de inúteis e im-produtivos.

A referida autora esclarece que nas relações intersubjetivas

formamos um olhar sobre nós e o mundo a partir do qual nos justificamos para demandar justiça. Pauta--se aqui, para além da igualdade formal, a consideração dos sujeitos entre si, propondo-se um aprofundamento do horizonte cívico calcado na necessidade de pensar as relações cotidianas – que envolvem desde pais e filhos até o contato entre diferentes profissionais. Ou seja, se as relações se formam, elas precisam estar permeadas pelo reconhecimento cívico, pois, do contrário, quando for possível o desenvolvimento de visões pautadas pela me-ritocracia, as hierarquias se justificarão. (Corrêa, 2013, p. 307)

Porém, é constatado que na sociedade brasileira persiste uma dissonância “entre a forma institucionalizada de justiça, baseada nos princípios constitucionais liberais, e os padrões hierárquicos admitidos na realidade social” (Corrêa, 2013, p. 311), os quais têm no princípio da pessoalidade o filtro da justiça, de modo a possibilitar o intuitivo e permanente julgamento sobre a existência, no parceiro de interação, da substância moral de dignidade. Citando Cardoso de Oliveira Corrêa (2013, p. 311) conclui que “apenas aquelas pessoas nas quais conseguimos identificar a substância moral carac-terística das pessoas dignas mereceriam reconhecimento ple-no e (quase) automático dos direitos de cidadania”.

Esta compreensão intuitiva, que permeia o inconsciente coletivo é refletida na interpretação das políticas públicas de proteção social por parte dos agentes da administração públi-ca, e nas decisões do poder judiciário restringindo o alcance da seguridade social e justificando uma interpretação restri-tiva do texto constitucional.

Partindo do pressuposto de que igualdade, equidade e dignidade são conceitos interligados, a concepção de cida-

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dania “comporta respeito a direitos e consideração à pessoa” (Corrêa, 2013, p. 312). Porém, como no Brasil “não se esta-beleceu um respeito entre os sujeitos que pudesse garantir a inclusão de todos no universo cívico, no qual os direitos subjetivos fossem respeitados e a possibilidade de estima re-cíproca, ou seja, de reconhecimento, fosse efetivada” (Cor-rêa, 2013, p. 312) a noção de cidadania é deficitária, de modo a admitir, em contraposição à referida condição igualitária, a existência de indivíduos dignos e outros indignos.

Para estes últimos as normativas igualitaristas se es-tabeleceriam com limitações, assim, a premissa de uma igualdade prévia não se estabelece (...). Ou seja, se os su-jeitos consideram que algumas pessoas são dignas de um tipo de reconhecimento e outras não, torna-se natural que alguns sejam desqualificados. (Corrêa, 2013, p. 312)

Esta concepção deficitária de cidadania justifica perpe-tuação da ultrapassada compreensão de uma contraposição entre previdência e assistência ou, como já referido, do con-flito entre (não) trabalho e assistência, legitimando e possibi-litando admitir como coerente uma proteção social limitada aos trabalhadores integrados ao sistema produtivo formal, parcialmente complementada pela assistência social aos in-válidos para integrar este mesmo sistema produtivo formal, mas gravemente excludente em relação aos indivíduos que dele não façam parte.

O que agrava esta situação é a exclusão social dos in-divíduos que, embora utilizados pelo sistema produtivo ca-pitalista industrial, não estejam incluídos em seus limites formais. Diversos exemplos evidenciam como atividades efe-tuadas de maneira informal, por trabalhadores normalmente considerados excluídos, alavancam o movimento de acumu-lação do capital, reforçando a dicotomia inclusão/exclusão (Ferraz, 2013, p. 78).

Ferraz exemplifica que na atividade de coleta de mate-rial reciclável, “os catadores estão integrados ao processo de acumulação de capital e (...) a qualificação necessária para esse tipo de atividade está justamente na suposta condição de exclusão” (Ferraz, 2013, p. 78). A autora (Ferraz, 2013, p. 78) justifica esta conclusão citando A. P. Bosi:

(...) a reciclagem no Brasil só tornou-se possível em grande escala quando o recolhimento e a separação dos resíduos se mostraram uma tarefa viável e de baixo custo, isto é, realizável por trabalhadores cuja remune-ração compensasse investimentos de tecnologia para o surgimento do setor de produção de material reciclado. Qualquer que fosse a organização desse tipo de traba-lho, suas taxas de lucro deveriam competir com preços determinados, por exemplo, pelo mercado mundial res-ponsável por derivados de petróleo [...] e pela produção de alumínio e celulose. Neste termos, explica-se por que essa força de trabalho surgiu composta por trabalhadores sem contrato e com uma produtividade que pudesse ser definida pelo pagamento por produção: uma população desancada do mercado de trabalho e sem atributos para

retornar às ocupações formais. [...] Assim, ao contrário do que se pode penar, foi uma força de trabalho numero-sa de catadores que tornou tais tecnologias viáveis para serem empregadas, possibilitando a expansão do negócio da reciclagem no Brasil. (BOSI, 2008, p. 104)

Dois outros exemplos citados pela autora acima referida merecem ser apresentados, por guardar expressiva relevância em relação ao tema central deste trabalho.

O primeiro, relacionado à indústria da beleza. Segundo a autora “os setores populares garantem um mercado relativa-mente estável em virtude da proximidade entre consumidora e revendedora” (Ferraz, 2013, p. 81) o que resulta no reco-nhecimento da eficácia da logística utilizada neste setor. Po-rém, o êxito econômico decorre também “da precarização do trabalho, pois, além do baixo custo da mão de obra, o contra-to entre empregador e revendedora também não garante os direitos do trabalhador (...)” (Ferraz, 2013, p. 81). O estudo no qual se amparou a autora demonstra que “as denominadas ‘consultoras da beleza’ possuem uma renda familiar média de dois salários-mínimos e têm, em geral, baixa escolaridade” (Ferraz, 2013, p. 81). Ao passo em que a informalidade da atividade exclui este grupo de trabalhadoras do direito à pro-teção previdenciária, o referencial de renda média evidencia que também não serão amparadas pela assistência social, in-tegrando assim o grupo de trabalhadores alocados no “limbo da proteção social” e privados do direito à dignidade.

As empresas procuram ‘compensar’ esse baixo in-vestimento distribuindo brindes para as trabalhadoras e oferecendo desconto nas compras de produtos. Dessa forma, além da empresa estar investindo na imagem da marca, por meio da melhora da aparência da vendedora, ela fideliza clientes ao oferecer cotas de descontos e ainda garante uma ampla cobertura do mercado consumidor a um custo relativamente baixo valendo-se do ‘trabalho invisível’ das mulheres que alimentam e movimentam a indústria de cosméticos. (Ferraz, 2013, p. 81-82)

O segundo exemplo está relacionado às “mulheres mo-radoras das periferias urbanas [que (...)] executam o traba-lho doméstico nas residências daqueles que estão ocupados em atividades especializadas e qualificadas” (Ferraz, 2013, p. 82), com baixa formalização da relação de emprego, re-cebendo precária remuneração e vivenciando situações de segregação social e espacial nas residências onde trabalham (e muitas vezes também moram).

Trabalhadores com pouca visibilidade (...) fundamen-tais na manutenção de um estilo de vida dos segmentos médios e superiores da hierarquia social brasileira, que não dispensam a delegação das tarefas cotidianas a pes-soas que lhes servem, privadamente, em troca de pouca remuneração e, quase sempre, sem nenhuma proteção social. (Holzmann, 2006, p. 84).

A exclusão social (e da proteção social) dos trabalhado-res, formais ou informais em favor da evolução do capitalis-

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mo dominante na era pós industrial é evidente, também, nas relações de trabalho “terceirizado” onde a

segregação e desconsideração da dignidade huma-na que a terceirização produz no ambiente de trabalho, onde os ‘terceirizados’ são deslocados do convívio dos demais empregados da reclamada; usam elevadores espe-cíficos; almoçam em refeitório separado ou em horários diversos; não são alvo de qualquer tipo de subordinação, para, como se diz ‘não gerar vínculo’; ou seja, são trata-dos como coisa ou são simplesmente não vistos.” (Souto Maior, 2006)

Claramente se pode perceber, a partir das considerações apresentadas, a existência de uma camada social desampara-da pela proteção social quando as ferramentas de seguridade social são interpretadas a partir da clássica leitura bismarc-kiana.

Como afirma Souto Maior, “os direitos sociais até hoje não foram completamente aplicados porque implicam re-levante mudança no contexto social e são sempre obstados pelos arranjos políticos e econômicos que atuam em sentido contrário” (Souto Maior, 2006).

Porém, há que se ter em mente que há anos estão ocor-rendo gradativas mudanças no cenário nacional que possibi-litam a construção de uma nova interpretação sobre a aplica-ção da seguridade social.

O benefício de prestação continuada de assistência so-cial, conhecido como LOAS ou como BPC, foi instituído pela Lei Orgânica de Assistência Social em 1993, e implementa-do somente a partir de 1996, possibilitando o pagamento de renda em valor igual ao salário mínimo aos indivíduos com renda familiar per capita mensal não superior a 25% do sa-lário mínimo e que apresentassem idade superior a 70 anos, ou deficiência permanente que impossibilitasse a vida inde-pendente.

Naquela época (início dos anos noventa, ou seja, há duas décadas passadas) o Estado Brasileiro iniciava um trabalho de resgate da dignidade que apresentava limitações consoan-tes mais de meio século de um modelo de proteção social ti-picamente bismarckiano e um modelo de atendimento social claramente clientelista, característico dos anos 80, limitado a doações de leite e cestas básicas conforme interesses políticos clientelistas.(4)

A realidade vivenciada pelo Estado nos primórdios da existência da Lei Orgânica da Assistência Social justificava o entendimento que ainda hoje é constantemente identificado em decisões judiciais que não percebem a evolução da so-

ciedade e do Estado Brasileiro, aduzindo que o Estado deve concentrar esforços em resgatar as pessoas em condição mais extremadas de miserabilidade, deixando aquelas que estavam “apenas” em condições precárias relegadas à própria sorte.

É importante perceber que aquela realidade mudou significativamente, e o Estado brasileiro tem proposto a criação de políticas públicas de proteção social em novos patamares, cuja implementação é dificultada por uma inter-pretação restritiva e retrógrada.

Neste sentido se podem destacar alguns indicativos desta evolução para novos patamares de proteção social que, apa-rentemente, têm passado despercebidos.

Em 2003, com o Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741), a idade mínima para ter acesso ao beneficio de prestação con-tinuada da assistência social foi reduzida para 65 anos, am-pliando expressivamente o rol de pessoas amparadas pela proteção social. A mesma lei evidencia a superação daquela situação inicial em que o atendimento social era destinado apenas às camadas sociais em condição de extrema pobreza, ao elevar o critério de renda per capita para o acesso aos bene-fícios de assistência social aos idosos para ½ salário mínimo, ao desconsiderar a renda de igual valor paga ao cônjuge tam-bém idoso para a concessão deste mesmo benefício.

Também em 2003 foi instituído o auxílio reabilitação psicossocial às pessoas acometidas de transtornos mentais egressas de internações, por meio da Lei n. 10.708/03. O art. 3º, II da referida Lei estabelece como requisito para a obten-ção desta renda que “II – a situação clínica e social do pa-ciente não justifique a permanência em ambiente hospitalar, indique tecnicamente a possibilidade de inclusão em progra-ma de reintegração social e a necessidade de auxílio finan-ceiro”. Ao não estabelecer um critério objetivo de renda, mas sim o critério subjetivo de que a situação social do paciente justifique a necessidade de auxílio financeiro, o Estado no-vamente demonstra, com clareza solar, a adoção de um novo patamar de proteção social, evidenciando que a restrição da proteção de assistência social à parcela da população em si-tuação de extrema pobreza já fora superada.

A superação daquele alcance restrito da assistência social também é evidenciada com a Lei n. 12.435/2011, por meio da qual o benefício de prestação continuada da Assistência Social foi estendido também para pessoas que não possuam deficiência permanente, passando a contemplar aquelas com deficiência temporária de longo prazo, novamente em clara extensão da proteção social.

É possível constatar também a evolução da assistência social no Brasil atendendo também a população que não

(4) “A Constituinte manda incorporar aos recursos previdenciários a arrecadação do FINSOCIAL, retirando recursos da merenda escolar, da distribuição gratuita de leite, dos programas habitacionais para pessoas de baixa renda; e do financiamento ao pequeno produtor rural. Estes pro-gramas terão que serdrasticamente reduzidos, cancelados, e será uma tragédia porque atingem os que mais precisam...” (Trecho do discurso do Sr. Presidente da República José Sarney, proferido em 27 de julho de 1988 em cadeia nacional de rádio e televisão, evidenciando a interpretação paternalista/assistencialista que até então estava arraigada na cultura brasileira ao criticar a implementação da Seguridade Social e, a partir dela, de um programa ativo de Assistência Social no Brasil!) in Carvalho Filho, 2008, p. 10.

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está em situação de extrema pobreza, com a criação do PRONATEC (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Téc-nico e ao Emprego) com a Lei n. 12.513/2011, que destina recursos à capacitação da população em condição de risco social. Além da destinação de recursos para o financiamento destes programas de capacitação, a referida Lei traz previsão de transferência de renda com as Bolsas-Formação Estudante e Trabalhador (art. 4º, IV). Em junho de 2013 este programa federal de assistência social teve o seu rol de beneficiários ampliado por meio da Lei n. 12.816/2013.

Não há como negar que este programa governamental de atendimento e qualificação à população em condição de risco já contempla muito mais do que apenas aqueles indivíduos em condição de extrema miséria. Claramente atende a po-pulação desempregada e beneficiária de seguro-desemprego, sem dúvidas, está em patamar social muito superior àquele no qual fora focada a assistência social nos primórdios da década de 1990.

Também o programa bolsa família, que originalmente vi-sava atender às camadas da população que se encontravam em situação de extrema miséria já teve seu leque de bene-ficiários ampliado, como demonstra a Lei n. 12.817/2013. Também evidencia a evolução da proteção assistencial a instituição do programa de financiamento criado pela Lei n. 12.868/2013, que destinou oito bilhões de reais para possibi-litar aos beneficiários do programa assistencial “minha casa, minha vida” a compra de bens duráveis para melhoria de sua condição de vida doméstica.

Não há dúvidas de que ao destinar tamanho montante de recursos para possibilitar à população de baixa renda a aquisição de liquidificador, geladeiras, televisão, telefones e outros eletrodomésticos, fica claro que o campo de atuação da Assistência Federal ultrapassou em muito o foco na popu-lação em condição de extrema pobreza.

Convém recordar ainda que em 2004 foi publicada a Lei 10.835/04, que instituiu no Brasil a Renda Básica de Cida-dania, que se constitui “no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição so-cioeconômica, receberem, anualmente, um benefício mone-tário.”

Embora tal renda ainda não tenha sido implementada, é evidente que um país que institui o direito de todos os cidadãos, nacionais e estrangeiros residentes, a uma renda pecuniária, independente de sua condição socioeconômica, bem como, que tem condições de “doar estoques públicos de alimentos, para assistência humanitária internacional” (Lei n. 12.429/2011) e “efetuar doações a iniciativas internacio-nais de auxílio ao desenvolvimento” (Lei n. 12.413/2011), já superou em muito aquele cenário de atenção social exclu-sivamente para as camadas sociais em condição de extrema pobreza e que nega o direito à proteção social e à dignidade aos indivíduos que integram o espectro social imediatamen-te superior, caracterizado como o “limbo de proteção social entre a previdência e a assistência”.

5. concLusão

Apesar da necessidade de respeito aos limites de inter-venção entre os Poderes do Estado em suas atribuições recí-procas, esta limitação não pode importar na desconsideração do Poder Judiciário a respeito da evolução social e econômica do Estado brasileiro das duas décadas e meia transcorridas desde a publicação do texto constitucional.

Evolução esta que autoriza novas leituras a respeito dos direitos sociais fundamentais estabelecidos no artigo 6º da Carta Constitucional e detalhados nos artigos 194 a 204 do mesmo texto constitucional, em consonância com os funda-mentos da República Brasileira de cidadania (CF/88, art. 1º, II) e dignidade humana (CF/88, art. 1º, III), que alicerçam a construção do Estado brasileiro cuja meta fundamental é a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais (CF/88, art. 3º, III).

Os objetivos do Estado brasileiro, estabelecidos no art. 3º da Constituição Federal somente poderão ser atingidos plenamente a partir de uma nova leitura dos direitos sociais, que supere a clássica distinção entre previdência e assistên-cia social, bem como, que supere a tradicional interpretação restritiva do alcance da assistência social.

A existência de uma expressiva parcela da população brasileira no limbo de proteção social mencionado neste texto evidencia a ineficiência da interpretação tradicional sobre seguridade social e tem como consequência o alcance de um resultado contrário ao objetivo estabelecido no texto constitucional conduzindo, não à redução das desigualdades sociais, mas ao seu agravamento.

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uma contriBuição ao estudo da assistência social à pessoa com deficiência: traBalho e

eficiência no modo de produção capitalista

Flávio Roberto Batista(*)

1. introdução

Desde 1988, com a edição da nova Constituição brasi-leira, a assistência social encontra-se, por força de seu art. 194(1), organicamente articulada à saúde e à previdência so-cial para formar o sistema de seguridade social. Esta, por sua vez, revela-se, a partir da própria organização do texto cons-titucional, como a mais importante dimensão daquilo que o constituinte denominou ordem social, não definida no texto, mas identificada no art. 193 a partir de seus fundamentos: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.

Decorre daí que a assistência social, como parte integran-te da seguridade social e, por conseguinte, da ordem social, também deve, inescapavelmente, observar a determinação de que tenha por base o primado do trabalho. Essa informação é bastante contraintuitiva, já que o destinatário mais corriquei-ro da assistência social é justamente aquele que esteja por qualquer motivo impossibilitado de trabalhar, ou de qual-quer modo excluído do mercado de trabalho. Apesar disso, ela transparece em diversas passagens do próprio texto cons-titucional, que revelam, inclusive, o significado de tomar por base o primado do trabalho. Confira-se, a respeito, o texto do art. 203 da Constituição:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;

iii – a promoção da integração ao mercado de tra-balho;

iv – a habilitação e reabilitação das pessoas porta-doras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria ma-nutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei (destaques inexistentes no original).

Perceba-se que os dois primeiros objetivos confirmam a intuição mais corriqueira perante a assistência social, ao enumerar grupos sociais que, imediatamente tomados, es-tão completamente alheios ao mundo do trabalho. Por ou-tro lado, os dois objetivos seguintes deixam clara, em uma previsão geral e outra especificamente orientada às pessoas com deficiência(2), a disposição de integrar os destinatários

(*) Mestre e doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade de São Paulo. Professor Doutor do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Professor da Escola Paulista de Direito Social. Autor da obra Crítica da tecnologia dos direitos sociais, publicada pelo selo Outras Expressões, e de diversos artigos jurídicos.

(1) Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

(2) Uma nota terminológica faz-se necessária. Embora a Constituição utilize a expressão “pessoas portadoras de deficiência”, mostrando, de modo bastante avançado para sua época, a superação da antiga expressão “deficiente”, rejeitada nos meios políticos e acadêmicos por diminuir a pessoa com deficiência em sua própria condição de ser humano, o correto, atualmente, é o uso da expressão “pessoa com de-ficiência”, plasmada no mais recente documento internacional sobre o tema, a Convenção de Nova Iorque sobre os direitos das pessoas com deficiência, adotada pela ONU em 2007. Neste artigo será utilizada, sempre, esta última expressão.

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25Parte I – Teoria Geral Uma contribuição ao estudo da assistência social à pessoa com deficiência|

da assistência social ao mercado de trabalho e, consequente-mente, aos ditames do modo de produção capitalista. O in-ciso IV supracitado inclusive sugere uma vinculação entre a habilitação e a reabilitação das pessoas com deficiência para o mercado de trabalho e sua integração à vida comunitária, de-monstrando a obediência do sistema de assistência social ao comando constitucional que determina que tenha por base o primado do trabalho(3).

Do que se expôs até aqui fica evidenciada a necessidade, para uma boa leitura do sistema de assistência social, parti-cularmente da assistência social à pessoa com deficiência, de uma profunda compreensão sobre o significado da submis-são do sistema de assistência social aos ditames do primado do trabalho. Para atingir tal compreensão, é imperioso fixar o próprio entendimento da expressão primado do trabalho e, principalmente, as consequências de sua adoção no texto constitucional; percorrer a discussão sobre o significado do par de contrários eficiência/deficiência, notadamente a partir de seu emprego no modo de produção capitalista; examinar as possibilidades de inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho e na vida comunitária; e, por fim, enca-minhando-se para um ponto de vista mais prático, examinar a transformação do conceito de deficiência veiculado pela Lei n. 8.742/93 a partir de uma comparação entre sua redação original e o texto vigente depois da incorporação legislativa das disposições da Convenção de Nova Iorque sobre os direitos das pessoas com deficiência, empreendida, nesse particular, pelas Leis n. 12.435/11 e 12.470/11(4). Estes são, sucinta-mente, os objetivos deste ensaio e o caminho planejado para atingi-los. O texto foi planejado como uma única linha de raciocínio. Sua divisão em seções presta-se apenas a facilitar a organização da leitura.

2. o significAdo do primAdo do trAbALho como bAse dA ordem sociAL

Como já referido, a ideia de primado do trabalho aparece como base da ordem social por força do art. 193 da Consti-

tuição. Também há referências ao mesmo conceito no texto constitucional em seu art. 1º, IV, que estabelece que são fun-damentos da República “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, e ainda no caput do art. 170, o qual dispõe que a ordem econômica é “fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”. Assim sendo, é possível afirmar que, no Brasil, por força de sua Constituição, a ordem políti-ca – a República –, a ordem econômica e a ordem social têm como fundamento o trabalho, que aparece ora sob a forma de primado do trabalho, ora sob sua forma variante de valor social do trabalho. O texto constitucional, entretanto, em ne-nhum momento esclarece o significado de todo esse apreço pelo trabalho.

Fica claro da leitura dos dispositivos mencionados, prin-cipalmente tendo em vista sua localização em partes do texto mais abstratas e conceituais, destinadas a iluminar a leitura dos dispositivos mais concretos, que veiculam ordens espe-cíficas, que o conceito de primado do trabalho(5) é, por assim dizer, extrajurídico, isto é, dá conta de uma realidade ante-rior e externa ao direito e que, em razão de sua positivação constitucional, desencadeia consequências jurídicas. Com o prosseguimento do raciocínio ficará claro que, na verdade, o direito não poderia deixar de tomar o primado do trabalho como fundamento das ordens política, social e econômica. Entenda-se bem: a realidade extrajurídica do primado do tra-balho desencadearia consequências sobre o direito ainda que o constituinte nada tivesse disposto a respeito. É o que se pretende tratar nesta seção.

É evidente que afirmar que o primado do trabalho desencadeia consequências sobre o direito não significa que a partir de sua compreensão se possam derivar soluções técnico-jurídicas para problemas práticos do cotidiano da operação do direito. A ressalva é importante porque certa corrente de autores que se debruçam sobre o fenômeno jurídico, particularmente no campo dos direitos humanos, procura, de forma até bastante ingênua, derivar diretamente a positivação de determinados direitos fundamentais a partir do primado do trabalho, chegando a invocar, para tanto, o materialismo histórico-dialético como método(6).

(3) A determinação é reiterada pela Lei n. 8.742/93, em seu art. 2º.

(4) Embora a aludida Convenção tenha sido aprovada pelo Decreto Legislativo n. 186/08 e promulgada pelo Decreto n. 6.949/09, sua in-corporação à legislação de regência da assistência social, especificamente para fins de concessão do amparo social à pessoa com deficiência, deu-se apenas em 2011, com as leis acima referidas. É certo que já havia, então, julgados que determinavam a aplicação do texto interna-cional aos casos de concessão do benefício assistencial, amparados em sua adoção pelo direito brasileiro – destaque-se que este texto foi o primeiro e, até a redação deste artigo, único texto internacional a ser incorporado com força de emenda constitucional, nos termos definidos no art. 5º, § 3º, da Constituição, mas sua inclusão da Lei Orgânica de Assistência Social sepultou qualquer polêmica que pudesse existir.

(5) O texto deste ensaio persistirá valendo-se da expressão “primado do trabalho” em razão de ter sido a escolhida pelo texto constitucional para abordar o tema no contexto relevante para o tratamento jurídico da assistência social. Não se olvide, entretanto, que essa discussão é travada na sociologia, na filosofia e, incipientemente, no próprio direito, com o nome de “centralidade do trabalho”. Esta última, aliás, foi eleita para nomear o grupo de pesquisa integrado pelo autor junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Direitos humanos, centralidade do trabalho e marxismo) e o grupo de pesquisa que coordenou na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, instituição a que era anteriormente vinculado (Centralidade do trabalho: sentido e importância na atualidade).

(6) Um exemplo notável pode ser colhido em ESCRIVÃO FILHO, 2011, 91-111. Neste artigo, o autor se esforça por derivar o direito ao trabalho, positivado no art. 6º da Constituição, da ontologia do trabalho identificada por György Lukács como constitutiva do ser social humano.

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26 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Flávio Roberto Batista|

Deve-se destacar que o uso do materialismo histórico--dialético, tomado como chave de compreensão do direito, somente pode ter objetivos científicos e críticos(7), jamais almejando qualquer tipo de construção propositiva dogmá-tica. Em outros termos, os primeiros parágrafos desta seção pretendem transmitir a ideia de que a eleição do materialis-mo histórico-dialético como método neste ensaio significa que o primado do trabalho será investigado a partir de uma compreensão crítica do sistema jurídico de assistência so-cial, e não de um ponto de vista dogmático. Ainda assim, a ciência do direito materialista histórico-dialética não pode descurar da dogmática jurídica, devendo, ao contrário, constituir-se em crítica da dogmática jurídica, à semelhança da crítica da economia política empreendida pelo fundador deste método, Karl Marx, conforme foi proposto por Eugeny Pasukanis(8).

É por essa razão que, sem temor de qualquer incoerência, este ensaio será encerrado pelo tratamento crítico das diversas redações da Lei n. 8.742/93. Perceba-se a diferença gritan-te entre formular, a partir de ponderações científicas tendo como método o materialismo histórico-dialético, uma crítica da dogmática jurídica e, de outro lado, derivar soluções téc-nicas dogmáticas das mesmas ponderações científicas.

Esclarecidas as questões metodológicas, é indispensável ingressar em terreno bastante pantanoso, mas, justamente por isso, pleno de possibilidades científicas: o conceito de trabalho.

Não é difícil encontrar o tratamento do conceito de tra-balho na literatura jurídica. Praticamente todos os manuais e cursos de direito do trabalho esforçam-se por defini-lo. É raro, entretanto, encontrar autores que forneçam uma defi-nição de trabalho. Com efeito, dois caracteres são bastante comuns neste tratamento: a observação de que o conceito de trabalho varia conforme seja retratado pela filosofia, pela economia ou pelo direito (BARROS, 2009, 55); e a feição his-tórica dada ao conceito de trabalho, isto é, o reconhecimento de que as várias épocas históricas interpretaram de manei-ra diferente o mesmo fenômeno (SOUTO MAIOR, 2011, 29-42). É fundamental perceber que não se tratam apenas de diversas interpretações diferentes ao longo da história. Ao contrário, é o próprio trabalho que, por ser histórico, muda de constituição com a sucessão dos diversos modos

de produção. Aliás, na interpretação materialista histórico--dialética, é o trabalho, com sua historicidade, que constitui o ser social humano em sua também presente característica de idêntica historicidade:

O primeiro ato histórico desses indivíduos, pelo qual eles se diferenciam dos animais, é não o fato de pensar, mas sim o de começar a produzir seus meios de vida. (...). Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, pas-so que é condicionado por sua organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material (destaques do original em MARX; ENGELS, 2007, 87).

Eis aí, portanto, a elaboração mais fundamental do ma-terialismo histórico-dialético sobre o trabalho: trata-se da produção, pelos seres humanos(9), de seus próprios meios de vida e, consequentemente, de sua própria vida material. Daí a percepção de que, com as sucessivas transformações dos modos de produção, transforma-se também o fenômeno do trabalho e, consequentemente, as interpretações que os seres humanos formulam sobre ele ao produzir sua própria vida material no processo produtivo de seus meios de vida. O que conduz à já clássica elaboração de Karl Marx e Friedrich En-gels no mesmo estudo acima referido: “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciên-cia” (MARX; ENGELS, 2007, 84).

Em suma, as interpretações sobre o trabalho variaram ao longo da história porque foram determinadas pelas próprias transformações do trabalho, que é inerentemente histórico. É nessa última característica que deve ser buscado o sentido de se colocar o primado do trabalho como fundamento das or-dens política, social e econômica na Constituição brasileira.

Não faltam, na literatura jurídica brasileira, autores que sustentam a adoção, pela Constituição de 1988, do capita-lismo(10). Eros Grau o afirma explicitamente, amparado nas ideias de José Afonso da Silva, quando pontifica que

(...) a Constituição é capitalista, mas a liberdade ape-nas é admitida enquanto exercida no interesse da jus-tiça social e confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado (GRAU, 2004, 174-175).

(7) Ciência e crítica, na perspectiva do materialismo histórico-dialético, são ideias tão próximas que se tornam quase sinônimos. A obser-vação fica, entretanto, apenas indicada, em razão da impossibilidade de aprofundar o tema nos estreitos limites do ensaio.

(8) O tema destes parágrafos foi abordado com profundidade na tese de doutoramento do autor, mais tarde adaptada para publicação em livro (BATISTA, 2013, 149-192). Embora o tema seja diretamente abordado nas páginas mencionadas, é recomendável aos que se interes-sarem pela questão metodológica a leitura do capítulo anterior, que circunscreve epistemologicamente o materialismo histórico-dialético. Para a fonte da ideia segundo a qual a ciência, no campo do direito, consiste na crítica da dogmática jurídica, ver PASUKANIS, 1989, 29.

(9) Embora as traduções das obras de Marx normalmente utilizem a expressão homens, aqui é feita opção por substituí-la por seres humanos sempre que não se tratar de citação literal, prestigiando uma opção menos inadequada a partir de uma perspectiva de opressão de gênero.

(10) A esse respeito, Eros Grau, que se dedica a sumariar as mais relevantes contribuições da literatura jurídica ao tratamento da ordem econômica na Constituição de 1988, identifica referências ao capitalismo ou ao regime de mercado nas contribuições de Geraldo Vidigal, Miguel Reale, Washington Peluso Albino de Souza, Tércio Sampaio Ferraz Junior e José Afonso da Silva (GRAU, 2004, 174-175).

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27Parte I – Teoria Geral Uma contribuição ao estudo da assistência social à pessoa com deficiência|

Ora, reconhecido o fato de que a Constituição brasileira é capitalista – o que decorre, aliás, da postulação fundamental do valor social do trabalho e da livre iniciativa – não haveria outra escolha senão conferir prioridade ao valor do trabalho humano. A sociedade capitalista é organizada em torno do valor ou, mais especificamente, em torno da contínua valo-rização do valor(11), de sua reprodução indefinida. E o valor possui, historicamente, uma única forma de determinação de sua substância e dimensão:

Deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. (...). O que essas coisas ainda representam é apenas que em sua produção foi despendida força de trabalho humano, foi acumulado trabalho humano. Como cristalizações dessa substância social comum a todas elas, são elas valores – valores mer-cantis (MARX, 1996, 167-168).

A Constituição de 1988, portanto, não carrega qual-quer inovação ou dirigismo normativo ao estabelecer o pri-mado do trabalho como base da ordem social. Ela se limita a positivar juridicamente aquilo que a economia política já ha-via há muito identificado na base da organização de qualquer sociedade no modo de produção capitalista: o valor de troca possui como substância o dispêndio de trabalho humano, que também permite quantificá-lo a partir de sua duração, sendo que o âmago do capitalismo encontra-se em valorizar continuamente o valor a partir da reiteração dos ciclos de produção de mercadorias.

3. eficiênciA e deficiênciA no modo de produção cApitAListA

É fundamental recordar, nesse passo, que a definição de trabalho como produção dos meios de vida e da própria vida material pelos seres humanos, dada a historicidade do fenômeno, desencadeará como consequência que o trabalho assumirá características peculiares diversas conforme a configuração do modo de produção dominante na sociedade em cada época determinada. Essa percepção é importante para inviabilizar a interpretação idealizante – contrária, por-tanto ao método materialista histórico-dialético – segundo a qual o trabalho teria um conceito a-histórico e eterno, con-sistente no intercâmbio do ser humano com a natureza, que poderia levar, no limite, à desmedida ampliação da abrangên-cia do conceito, com a indevida inclusão nele de atividades fisiológicas como comer ou respirar.

O trabalho assume uma configuração própria no modo de produção capitalista, ligada à determinação da substância e da grandeza do valor das mercadorias. O trabalho no capi-talismo tem como mais evidente dimensão, por isso, aquela que recebeu o nome de trabalho abstrato. O trabalho é rele-vante no modo de produção capitalista como puro e simples dispêndio de energia humana, o que permite sua igualação, comparação e captura pelo sistema de mercadorias. É sua ca-racterística de trabalho abstrato que permitirá à força de tra-balho ser socialmente assimilada à condição de mercadoria, o que se encontra na base da economia política do modo de produção capitalista.

Consideremos agora o resíduo dos produtos do traba-lho. Não restou deles a não ser a mesma objetividade fan-tasmagórica, uma simples gelatina de trabalho humano indiferenciado, isto é, do dispêndio de força de trabalho humano, sem consideração pela forma como foi despen-dida. (...). Portanto, um valor de uso ou bem possui va-lor, apenas, porque nele está objetivado ou materializado trabalho humano abstrato. Como medir então a grande-za de seu valor? Por meio do quantum nele contido da “substância constituidora do valor”, o trabalho. A pró-pria quantidade de trabalho é medida pelo seu tempo de duração, e o tempo de trabalho possui, por sua vez, sua unidade de medida nas determinadas frações do tempo, como hora, dia etc. (MARX, 1996, 168).

Foi Pasukanis quem identificou de maneira brilhante a interferência da determinação da força de trabalho como mercadoria no direito. Se a sociedade capitalista é baseada na troca de mercadorias e elas, evidentemente, não podem levar a si próprias ao mercado, é necessária a interferência huma-na para sua ocorrência. Daí porque o direito, ao estabelecer sua categoria mais básica, o sujeito de direito, que tem como suporte físico a pessoa humana, transporta a ela duas carac-terísticas fundamentais que estão, em verdade, contidas na própria mercadoria em razão de sua irrestrita comparabilida-de: a liberdade e a igualdade. A condição de sujeito de direito, portanto, é uma fetichização da condição de proprietário de mercadorias (PASUKANIS, 1989, 85-86).

Na sociedade capitalista, entretanto, não basta ser sujeito de direito. A ancoragem da sociedade capitalista na valoriza-ção do valor tem como consequência que uma determinada troca de mercadorias assume o protagonismo social perante as demais: a troca da mercadoria força de trabalho por salário. E, dado o fato de que a mercadoria força de trabalho, assim como a categoria jurídica sujeito de direito, tem como subs-

(11) A expressão valorização do valor é marxiana e consta, justamente, da explanação acerca da transformação de dinheiro em capital. O dinheiro, por si só, é apenas um meio de troca e não é imediatamente considerado capital. Para tornar-se capital, deve estar inserido numa específica relação social de produção, característica do modo de produção capitalista, na qual ele é usado para reproduzir a si próprio por meio da manutenção contínua do processo produtivo. Confira-se: “A circulação simples de mercadorias – a venda para a compra – serve de meio para um objetivo final que está fora da circulação, a aproriação de valores de uso, a satisfação de necessidades. A circulação do dinheiro como capital é, pelo contrário, uma finalidade em si mesma, pois a valorização do valor só existe dentro desse movimento sempre renovado. Por isso o movimento do capital é insaciável” (MARX, 1996, 272).

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28 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Flávio Roberto Batista|

trato material o ser humano, cada pessoa assume, perante o direito no modo de produção capitalista, a dupla condição de sujeito de direito e objeto de direito, um proprietário de sua própria energia humana como mercadoria que leva ao mer-cado de trocas. Foi Edelman quem primeiro notou esse fenô-meno, ao investigar a dupla apropriação do direito de ima-gem da pessoa fotografada (EDELMAN, 1976, especialmente p. 91-93), o que o levou a prosseguir seus estudos a partir do direito do trabalho, em que, de forma genial, identificou analogamente a mesma situação de atribuição a uma única pessoa da dupla condição de suporte físico concomitante de um sujeito e um objeto de direito (EDELMAN, 1978).

Se a troca da mercadoria força de trabalho por salário as-sume o papel de troca fundamental da sociedade capitalista, o melhor ser humano, perante o direito de tal sociedade, será aquele que se adequar perfeitamente ao seu duplo papel de suporte da categoria sujeito de direito e da mercadoria for-ça de trabalho, o objeto de direito por excelência no direito do modo de produção capitalista. Essa percepção demanda, ainda, algumas precisões adicionais acerca da qualificação da mercadoria força de trabalho como prestação de trabalho abstrato, que conduzirão diretamente ao tema desta seção, acerca da ideia de eficiência e deficiência. É o próprio Marx quem adverte:

Se o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho despendido durante a sua pro-dução, poderia parecer que quanto mais preguiçoso ou inábil seja um homem, tanto maior o valor de sua mer-cadoria, pois mais tempo ele necessita para terminá-la. O trabalho, entretanto, o qual constitui a substância dos valores, é trabalho humano igual, dispêndio da mesma força de trabalho do homem. A força conjunta de traba-lho da sociedade, que se apresenta nos valores do mundo das mercadorias, vale aqui como uma única e a mesma força de trabalho do homem, não obstante ela ser com-posta de inúmeras forças de trabalho individuais. Cada uma dessas forças de trabalho individuais é a mesma for-ça de trabalho do homem como a outra, à medida que possui o caráter de uma força média de trabalho social, e opera como tal força de trabalho socialmente média, contanto que na produção de uma mercadoria não con-suma mais que o trabalho em média necessário ou tempo de trabalho socialmente necessário. Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas de pro-dução socialmente normais, e com o grau social médio de habilidade e de intensidade de trabalho (MARX, 1996, 168-169).

Em outras palavras, a caracterização do trabalho abstrato já carrega em si a ideia de normalidade, que é, aliás, não à toa,

ínsita ao direito, transparecendo inclusive em elaborações positivistas mais sofisticadas (BATISTA, 2013, 149-152). A mercadoria força de trabalho constitui-se enquanto tal a par-tir de uma quantidade normal, ou socialmente necessária, de trabalho abstrato fornecido pelo trabalhador. O trabalhador, portanto, somente se adequará aos pressupostos da produção capitalista na medida em que seja capaz de fornecer a quan-tidade normal de trabalho abstrato em uma relação de troca por salário. Sua eficiência está ligada à sua normalidade, em perspectiva socialmente comparativa, relativamente ao for-necimento de trabalho abstrato.

Perceba-se, entretanto, que o fornecimento de trabalho abstrato não é uma característica acidental da colocação do ser humano perante o direito no capitalismo. Ao contrário, participa de sua própria constituição enquanto pessoa pe-rante o direito, ou seja, sua constituição enquanto sujeito de direito. O sujeito de direito surge primariamente como um proprietário de si mesmo enquanto força de trabalho.

Some-se a isso o fato de que a sociabilidade no modo de produção capitalista é mediada pelo direito. Com efeito, a afirmação da sociedade burguesa enquanto tal, sua autocom-preensão, é baseada na naturalização dos direitos humanos, isto é, na atribuição às pessoas de direitos inatos, derivados da sua própria condição de ser humano, tendo por núcleo principal, justamente, as características que o sujeito de direito toma de empréstimo da mercadoria: a liberdade e a igualdade.

Em um contexto de sociabilidade mediada pelo direito, em que a colocação do ser humano como pessoa depende de sua dupla constituição enquanto sujeito e objeto de di-reito, estar impedido de fornecer trabalho abstrato mediante salário ou estar apto para fornecê-lo em quantidade inferior à normal significa ter alguma forma de deficiência, aqui co-locada como o contrário de eficiência(12), segundo os padrões do modo de produção capitalista. Assim, a pessoa com defi-ciência é, na ótica da sociedade capitalista compreendida em sua profundeza essencial, menos pessoa que as demais. Daí a excludente nomenclatura deficiente, utilizada na linguagem técnica jurídica até poucos anos atrás e ainda hoje comum no linguajar coloquial. A deficiência, perante o capitalismo, atinge o âmago da condição de pessoa enquanto tal.

Perceba-se, assim, que a exclusão da pessoa com deficiên-cia na sociedade capitalista não carrega nenhum aspecto mo-ral ou valorativo. Não se trata de uma escolha, mas de uma imposição da economia política das relações sociais de pro-dução capitalistas. Essa a razão pela qual a exclusão da pessoa com deficiência causa desconforto quando confrontada com cada indivíduo em particular – levando, inclusive, a luta pela inclusão dessas pessoas – mas persiste sendo de tão difícil enfrentamento no mundo empresarial.

(12) O modo dialético de pensar trabalha, sempre com pares de conceitos contraditórios. Não se trata, entretanto, de qualquer contradição, mas de contradições determinadas, em que os contrários estão indissociavelmente unidos e são reciprocamente definidos. Nestes termos, é impossível compreender a ideia de deficiência sem investigar o que se deve entender por eficiência no modo de produção capitalista.

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29Parte I – Teoria Geral Uma contribuição ao estudo da assistência social à pessoa com deficiência|

Colocando de outro modo a questão, qualquer aspecto, por assim dizer, própria e exclusivamente humano, ou seja, que não pertença à esfera da reprodução do valor, será irre-levante para a qualificação da pessoa como útil e proveitosa para a vida comunitária na sociedade capitalista. Daí a dispo-sição constitucional, também carregada de preconceito, que liga a integração à vida comunitária da pessoa com deficiên-cia à integração ao mercado de trabalho.

4. As possibiLidAdes de incLusão dA pessoA com deficiênciA no mercAdo de trAbALho e nA vidA comunitáriA

Diante de tudo que foi até aqui desenvolvido, é certo que a sociedade capitalista contemporânea somente é capaz de integrar a pessoa com deficiência à vida comunitária por meio de sua inserção no mercado de trabalho. Essa é a ra-zão pela qual a Constituição elege a integração ao mercado de trabalho como objetivo da assistência social, prestando-a como finalidade em si mesma apenas em casos de impossi-bilidade absoluta de fornecimento de trabalho abstrato por parte da pessoa.

A integração da pessoa com deficiência ao mercado de trabalho é, muitas vezes, uma ficção. É de se observar, antes de tudo, que, inadequadas à lógica do fornecimento médio de trabalho abstrato, as pessoas com deficiência tem sua aceita-ção imposta aos empregadores pela legislação, de modo a bus-car corrigir, com normas de conteúdo humanitário, o funcio-namento de um mercado de trabalho que descarta qualquer indivíduo – não apenas as pessoas com deficiência – que for-neça menos trabalho abstrato que a média da população. Nes-se sentido, a disposição do art. 93 da Lei n. 8.213/91 impõe a contratação de pessoas com deficiência por parte de empresas de médio e grande porte e sua permanência no emprego:

Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais emprega-dos está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habili-tadas, na seguinte proporção:

I – até 200 empregados: 2%;

II – de 201 a 500: 3%;

III – de 501 a 1.000: 4%;

IV – de 1.001 em diante: 5%.

§ 1º A dispensa de trabalhador reabilitado ou de de-ficiente habilitado ao final de contrato por prazo deter-minado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no

contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante.

É evidente que o mercado de trabalho não aceita pas-sivamente tais disposições. É conhecida a polêmica acerca da impossibilidade de cumprimento da cota por ausência de pessoas com deficiência aptas às vagas oferecidas, conduta muitas vezes chancelada pelo próprio Poder Judiciário tra-balhista que deveria, ao menos em teoria, zelar pela boa apli-cação do ordenamento jurídico, com base, por incrível que pareça, no senso comum dos administradores de empresas e em reportagens jornalísticas, como se pode notar do excerto do seguinte julgado:

Há, no entanto, muitas matérias veiculadas em jor-nais e revistas de circulação nacional sobre a “caça aos portadores de deficiência física”, fenômeno produzido pelas autuações impostas pela fiscalização das Delegacias Regionais do Trabalho, bem como artigos de especialistas em administração de empresas sobre a questão da “falta de portadores de deficiência para atender às vagas exis-tentes no mercado de trabalho”, todas no sentido de que não é mesmo fácil encontrar hoje portadores de deficiên-cia que estejam aptos a ocupar as vagas que estão à sua disposição.(13)

Não sendo aptas a fornecer a mesma quantidade de tra-balho abstrato que uma pessoa sem deficiência, às pessoas com deficiência são normalmente oferecidas vagas de empre-go que tenham por objeto a prestação do chamado trabalho complexo, intelectualizado e especializado (MARX, 1996, 314-315), que não e caracteriza pelo puro e simples dispên-dio de energia humana, mas exige qualificação e formação. E aí, como em todo o restante da população, é muito mais difícil encontrar trabalhadores aptos a desempenhar esse tipo de função. O funcionamento do modo de produção encontra uma forma, referendada pela estrutura estatal, de manter a exclusão da pessoa com deficiência mesmo dentro do sistema que deveria protegê-la(14).

No modo de produção capitalista, a integração à vida so-cial fora do mercado de trabalho pode acontecer de apenas mais uma maneira: na condição de consumidor de mercado-rias. O funcionamento ideal do sistema coloca como consu-midores de mercadorias os próprios participantes do processo produtivo, trabalhadores e proprietários de meios de produ-ção. O assim chamado estado de bem-estar social está basea-do na percepção, advinda da crise de superprodução que se encontrava por trás da quebra da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, de que seria necessário incluir no modo de produção capitalista, como consumidores, as pessoas que se encontravam alijadas do processo produtivo de mercadorias.

(13) TRT. Processo n. 006.2007.023.02.00-1, Relatora Desembargadora Rita Maria Silvestre. Interessante observar ainda que o Tribunal Superior do Trabalho, decidindo a questão em grau de recurso, manteve o acórdão sob o argumento de que, sendo um tribunal de unifor-mização jurídica, não poderia voltar a discutir questão probatória, entendendo, assim, que as mencionadas “muitas matérias” constituam questão atinente ao conjunto probatório dos autos.

(14) Os próprios militantes dos direitos das pessoas com deficiência passaram, com o tempo a curvar-se a tais determinações e focar sua produção acadêmica na qualificação das pessoas com deficiência para enfretamento da funil seletivo do mercado de trabalho. A esse respei-to, a interessantíssima pesquisa de CEZAR, 2012.

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30 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Flávio Roberto Batista|

Daí a maior participação do estado na economia, patrocinan-do a ampliação dos níveis de emprego e a distribuição de be-nefícios sociais, expandindo o mercado consumidor.

Em outras palavras, dada a impossibilidade, derivada da gravidade da deficiência ou, como visto, de uma imposição do empresariado, de acesso ao mercado de trabalho, a inser-ção da vida comunitária é buscada a partir do fornecimento de recursos para que a pessoa com deficiência participe do mercado de consumo, auxiliando a realizar o valor plasmado nas mercadorias.

Já foi investigado alhures (BATISTA, 2013, 251-258) como a assistência social apresenta uma assimilação incom-pleta pela forma jurídica, submetida à lógica de equivalência subjacente à troca de mercadorias, desencadeando o surgi-mento de um sistema assistencial baseado em contraparti-das morais, como atuação em frentes de trabalho, frequência escolar, submissão a procedimentos de saúde, entre outros – as chamadas políticas de workfare, learnfare e similares. Trata-se de problema que acompanha todo e qualquer siste-ma de assistência social e decorre de características inerentes ao fenômeno jurídico. Porém, especificamente no tocante à assistência social à pessoa com deficiência, sua integração à vida comunitária não depende apenas de acesso ao consu-mo, como vislumbrado pelo direito a partir de sua inserção no modo de produção capitalista. É necessário muito mais do que isso para ultrapassar as barreiras que impedem que uma pessoa com deficiência tenha a mesma relevância social que qualquer outra. E isso transcende o limitado horizonte do mercado de trabalho e de consumo, envolvendo questões ligadas à condição humana. Isso leva a pesquisa ao seu ponto culminante, em que se verificará as consequências das ideias até aqui expostas no tratamento dispensado pelo sistema de assistência social às pessoas com deficiência.

5. A trAnsformAção do conceito de deficiênciA veicuLAdo peLA Lei n. 8.742/93 – à guisA de concLusão

Dando concretude aos comandos constitucionais dos in-cisos III, IV e V do art. 203, dispunha a redação original da lei orgânica de assistência social:

Art. 20. (...).

§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, a pessoa portado-ra de deficiência é aquela incapacitada para a vida independen-te e para o trabalho.

Como se vê, a legislação incorporou a ideia de incapaci-dade para o trabalho no conceito de pessoa com deficiência, na linha do que foi desenvolvido nas seções anteriores acerca da eficiência e deficiência no modo de produção capitalista. O dispositivo, entretanto, criava margem a uma discussão que perdurou por muitos anos: o conteúdo da expressão in-capacitada para a vida independente.

É imperioso destacar que o termo incapacidade é utilizado no direito brasileiro em dois sentidos bastante diversos. De um lado, na lei civil, a incapacidade está ligada à menoridade civil, isto é, à impossibilidade da prática autônoma de negócios jurídicos. É claro que, além da regra geral, etária, também são considerados civilmente incapazes os que, por enfermidade ou deficiência mental(15), não tiverem o neces-sário discernimento para a prática dos atos da vida civil e os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade; além de, de forma relativa, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; os excepcionais, sem desenvolvi-mento mental completo; e os pródigos. De outro lado, na lei previdenciária, a incapacidade está ligada à impossibilidade de exercício da atividade laborativa habitual.

Observado que a legislação previdenciária trata a inca-pacidade como incapacidade para o trabalho, conceito já in-corporado à lei orgânica de assistência social paralelamente à incapacidade para a vida independente, fica claro que esta não se resume àquela. Cumpre, então, ponderar se a incapa-cidade para a vida independente na legislação assistencial é sinônimo de incapacidade civil ou se configura um terceiro conceito. É fácil perceber que a incapacidade para a vida in-dependente – lembrando que ela se insere no contexto da definição de deficiência – não é assimilável à incapacidade civil. Com efeito, há diversos civilmente incapazes que noto-riamente não têm qualquer tipo de deficiência, como ocorre com os pródigos. De outro lado, há pessoas que claramente possuem deficiências, como as motoras ou sensoriais, mas estão plenamente aptas a manifestar sua vontade em atos da vida civil. Portanto, a incapacidade para a vida independente da legislação assistencial somente pode ser uma ideia diversa das outras duas, demandando interpretação particularizada.

A jurisprudência consolidou-se no sentido de am-pliar a abrangência da incapacidade para a vida independen-te, como se depreende do seguinte excerto de acórdão do Superior Tribunal de Justiça:

O laudo pericial que atesta a incapacidade para a vida laboral e a capacidade para a vida independente, pelo simples fato da pessoa não necessitar da ajuda de outros para se alimentar, fazer sua higiene ou se vestir, não pode obstar a percepção do benefício, pois, se esta fosse a con-ceituação de vida independente, o benefício de prestação continuada só seria devido aos portadores de deficiência tal, que suprimisse a capacidade de locomoção do indi-víduo – o que não parece ser o intuito do legislador.(16)

Este entendimento sempre foi objeto de descontenta-mento por parte dos movimentos de defesa dos direitos das pessoas com deficiência, por vulgarizar o conceito de defi-ciência. Ora, se não se pode interpretar a incapacidade para a vida independente como a impossibilidade de locomoção e de cuidados pessoais, praticamente toda incapacidade la-boral seria enquadrada como deficiência. Este inconformis-

(15) Assim impropriamente denominadas na legislação civil. Hoje, prefere-se adotar o termo deficiência intelectual.

(16) STJ. REsp 360202. Relator Ministro Gilson Dipp.

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31Parte I – Teoria Geral Uma contribuição ao estudo da assistência social à pessoa com deficiência|

mo, entretanto, embora justificável na aparência, peca por não corresponder à realidade essencial que subjaz ao modo de produção capitalista. Com efeito, conforme detalhado acima, a negação determinada de deficiência é a eficiência, consistente no fornecimento da quantidade normal de tra-balho abstrato por parte de uma pessoa. Qualquer pertur-bação nesse fornecimento normal colocará mesmo a pessoa como uma pessoa com deficiência perante o funcionamento do ciclo produtivo. A disposição legal, com todos os seus defeitos de formulação, havia alcançado uma hermenêutica que pacificava o tema justamente por fazer corresponder a solução jurídica ao que apontavam as demandas estruturais das relações sociais de produção.

Como noticiado acima, entretanto, em 2007 o Brasil veio a assinar a Convenção de Nova Iorque sobre os direitos das pessoas com deficiência. Mais tarde, em 2008, o documento internacional foi incorporado ao direito interno seguindo os trâmites do art. 5º, § 3º, da Constituição, adquirindo valor jurídico de emenda constitucional. Com isso, tornou-se ne-cessário adequar a legislação às suas disposições, e a lei orgâ-nica de assistência social foi alterada pelas Leis ns. 12.435/11 e 12.470/11, estando, atualmente, assim redigida:

Art. 20. (...).

§ 2º. Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pes-soa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de con-dições com as demais pessoas.

A atual disposição legal confronta a relação social de pro-dução que a fundamenta. Se é certo que o substrato pessoal da deficiência permanece aparentemente o mesmo, afinal, toda incapacidade laboral há de ser derivada de um impedi-mento físico, mental, intelectual ou sensorial, também não se pode olvidar que nem toda pessoa que tenha tais impedi-mentos estará incapaz para exercer atividade laborativa. O conceito de deficiência foi, nesse sentido, alargado. A cons-tatação fica ainda mais evidente levando-se em conta que, ao definir a deficiência como modalidade de incapacidade laboral, como fazia o texto anterior, restringe-se a interação entre as condições peculiares da pessoa e seu entorno à pos-sibilidade de ingresso no mercado de trabalho; enquanto no novo texto a existência da deficiência, no que tange à inte-gração da pessoa ao seu entorno social, depende da interação dos impedimentos da pessoa com diversas barreiras, as quais não só impedem o trabalho da pessoa com deficiência, mas de qualquer modo obstruem sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

Colocada a questão de outro modo, a nova disposição legal busca tratar de problema diverso do colocado até en-tão. Com efeito, a incapacidade laboral e a impossibilidade de sustento esgotam as esferas de atuação da pessoa que inte-ressam ao modo de produção capitalista. Ao buscar atuar em qualquer barreira que obstrua a participação social plena e efetiva, a disposição normativa vocaliza o desejo de abordar a questão da deficiência para além do mercado de trabalho e do

consumo de mercadorias. Busca tratar do tema sob o aspecto da vida humana da pessoa com deficiência como totalidade. Busca revalorizar o ser humano para além da redução que este sofre ao ser juridicamente capturado como sujeito de direito.

A intenção é absolutamente louvável. Não se pode olvidar, entretanto, que os textos legislativos são idealizações e, mais importante que isso, não são neles que se travam os conflitos sociais. Resta, assim, aguardar que os fatos revelem quais as demandas que serão desencadeadas pela abertura do concei-to empreendida pela nova redação e, principalmente, como se comportarão os agentes estatais perante tais demandas. A assistência social pode desempenhar um papel importante de desestabilização interna da ordem do modo de produção (BA-TISTA, 2013, 260-265), provocando perturbações que criem oportunidade de ação política. É na resposta estatal às de-mandas de pessoas com deficiência que almejam algo mais que a simples inserção no mercado de trabalho e de consumo que está a arena da batalha na qual se decidirá se a assistência social à pessoa com deficiência poderá representar mais uma brecha para a transformação social ou se será reabsorvida pela lógica das vigentes relações sociais de produção.

Nesse processo, a sociedade fará uma importante opção para o tratamento da pessoa com deficiência: ela poderá ser valorizada como ser humano integral, independentemente de sua possibilidade de fornecimento normal de trabalho abstrato, ou permanecer relegada ao ostracismo da exclusão do mercado de trabalho e da insuficiente inclusão no merca-do de consumo, presa aos estreitos limites do modo de pro-dução capitalista.

bibLiogrAfiA

BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 5. ed. São Paulo, LTr, 2009.

BATISTA, Flávio Roberto. Crítica da tecnologia dos direitos sociais. São Paulo: Dobra/Outras expressões, 2013.

CEZAR, Kátia Regina. Pessoas com deficiência intelectual: Inclusão trabalhista – Lei de Cotas. São Paulo: LTr, 2012.

EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia: elementos para uma teoria marxista do direito. Coimbra: Centelha, 1976.

______. La légalisation de la classe ouvrière. Paris: Christian Bour-gois, 1978.

ESCRIVÃO FILHO, Antonio. Sobre o trabalho e os direitos humanos. O Direito Alternativo, v. 1, n. 1, Franca: UNESP, 2011, p. 91-111.

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

MARX, Karl. O Capital. Livro I. Tomo I. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

_____; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

PASUKANIS, Eugeny Bronislanovich. A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Curso de direito do trabalho. V. 1. São Paulo: LTr, 2011.

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a influência do argumento econômico soBre o Jurídico na aplicação do direito à assistência social

Jair Soares Júnior(*)

1. notAs introdutÓriAs

Nesta obra buscaremos discutir a influência exercida no Direito pelas teorias econômicas que servem de embasamen-to para as ideologias tendentes a reduzir as conquistas do Estado social, com enfoque no direito à Assistência Social.

O discurso hegemônico do “mercado” defende a busca pela austeridade econômica, mesmo que isso traga como consequência a diminuição dos direitos sociais já conquista-dos ou, até mesmo, o retrocesso das políticas públicas desti-nadas ao cumprimento dos deveres de proteção social(1)

Sob esse norte será promovida uma reflexão acerca do discurso economicista – que defende a redução dos direitos sociais – e sobre sua influência na aplicação do Direito à As-sistência Social.

Para tal desiderato, serão feitos, no primeiro tópico, apontamentos acerca da teoria consequencialista-utilitarista e a sua influência na aplicação do Direito. A diretriz de bus-car a maior felicidade para o maior número – sustentada pela

moral utilitarista – é co-relacionada com a análise econômica do Direito (AED) em sua vertente de maximização da riqueza como finalidade útil que, sob essa perspectiva, deveria guiar o intérprete e o aplicador do Direito.

Serão discutidas, ainda, as repercussões, na aplicação dos Direitos de proteção social, das crises econômicas, somado ao suposto estado de exceção permanente vivido pelo Estado social nas crises globais.

Partindo da concepção de Seguridade Social(2) como di-reito fundamental social, enfocando, portanto, seus caracte-res de fundamentalidade formal e material determinada pela Constituição Federal (CF/88)(3), dicutiremos a justificação moral desse direito(4) como razão primeira para classificá-lo como fundamental.

A concepção que prega a observância dos direitos fun-damentais como elemento de fundamentação moral da le-gitimação do Estado exerce forte ligação com a “chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos”(5), ra-

(*) Defensor Público Federal de Categoria Especial, com atuação perante o STJ. Mestre em Ciência Jurídica – Univali/SC. Secretário Nacio-nal de Atuação Itinerante da Defensoria Pública-Geral da União. Professor e palestrante na Escola Superior da Defensoria Pública da União (ESDPU) e em outras Instituições de Ensino. Disponível em: <http://lattes.cnpq.br/4725217702418969>.

(1) “Para o presente estudo, a noção de proteção social corresponde aos mecanismos institucionais que são articulados para reduzir e supe-rar os riscos sociais, assegurando, de modo universal, segurança econômica contra as circunstâncias inevitáveis que afetam a subsistência e o bem-estar dos indivíduos e de suas famílias. Essa noção aproxima-se, portanto, da principal política de proteção social consagrada cons-titucionalmente, a seguridade social (CF/88, art. 194).” (SAVARIS, José Antonio. Princípio da primazia do acertamento judicial da relação jurídica de proteção social. Revista NEJ – Eletrônica, v. 17, n. 3, p. 419-437, set./dez. 2012. Disponível em: <www.univali.br/periodicos>. Acesso em: 17 maio 2013. p. 421-422).

(2) A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a asse-gurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.

(3) SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 74-78.

(4) Nesse sentido: CRUZ, Paulo Márcio. Fundamentos históricos, políticos e jurídicos da seguridade social. In: SAVARIS, José Antonio; ROCHA, Daniel Machado da (Orgs.). Curso de especialização em direito previdenciário: direito previdenciário constitucional. Curitiba: Juruá, 2005. v. 1. p. 11-88, especificamente da p. 63-67. No mesmo sentido: SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Economia e seguridade social: análise econômica do direito – seguridade social. Curitiba: Juruá, 2010. Especificamente da p. 40-45.

(5) PIOVESAN, Flávia. Direitos sociais: proteção internacional e perspectivas do constitucionalismo latino-americano. In: SAVARIS, José Antonio; STRAPAZZON, Carlos Luiz (Coords.). Direitos fundamentais da pessoa humana: um diálogo latino-americano. Curitiba: Alteridade, 2012. p. 223-247. p. 226.

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33Parte I – Teoria Geral Uma contribuição ao estudo da assistência social à pessoa com deficiência|

zão pela qual trataremos de forma detalhada do tema indivi-sibilidade dos direitos fundamentais em um tópico específico da obra.

A noção de Constituição dirigente e as críticas a esse mo-delo de Constitução serão abordadas em tópico próprio.

Por fim, procuraremos, nas considerações finais, respon-der à seguinte indagação: qual o espaço para o consequen-cialismo-economicista na aplicação dos Direitos de Proteção Social e qual é a influência disso na aplicação do direito à Assistência Social?

2. A teoriA consequenciAListA- -utiLitAristA e o pArAdigmA econômico de ApLicAção do direito

A teoria utilitarista influenciou a jurisprudência e as teo-rias de aplicação do Direito buscando romper com a concep-ção puramente formal do Direito, segundo a qual o valor e a moral deveriam ser vistos como aspectos alheiros à com-preensão da ciência pura do Direito.

Em síntese, pode-se dizer que

o consequencialismo é uma doutrina moral, segundo a qual o ato correto em uma dada situação é aquela que produz o melhor resultado geral, julgado como tal por um ponto de vista impessoal que concede igual peso aos interesses de cada um. A reflexão moral consequencialis-ta tem como versão mais familiar o utilitarismo, o qual, em sua forma clássica, diz que o melhor estado dentre as combinações possíveis é o que contém o melhor balanço líquido agregado de prazer humano, felicidade ou satis-fação, isto é, aquele que maximiza utilidades totais ou médias. (SAVARIS, 2012. p. 97-98).

Busca-se, assim, pela concepção utilitarista de aplicação do Direito, percebê-lo como um instrumento do que seja so-cialmente útil. Nessa perspectiva, pode-se dizer que “o direi-to se torna, na escola utilitarista, o instrumento da política e da economia; técnica de controle social instaurada a fim de obter a maximização dos prazeres ou o incremento da potên-cia coletiva do grupo”(6).

Segundo adverte Savaris “a ideia atrativa do utilitarismo é, sem dúvida, a importância da promoção do bem-estar por

várias formas”(7). Contudo, diante dessa conjuntura, não é difícil perceber a grande influência que as crises econômi-cas (nacionais ou internacionais) exercem sobre os critérios decisórios dos juízes em questões que envolvam a efetivação dos direitos econômicos, sociais e culturais.

A busca da Administração Pública por uma eficiência(8) voltada quase que exclusivamente para a maximização da saúde financeira do Estado(9), numa perspectiva conceitual consequencialista de cunho utilitarista, ganha força em um cenário de – supostas – crises econômicas e orçamentárias a que estão submetidos, quase que de forma permanente, os países de capitalismo periférico.

Como bem ilustrado por Bercovicci

A periferia vive em um estado de exceção econômico permanente, contrapondo-se à normalidade do centro. Nos Estados periféricos há o convívio do decisionismo de emergência para salvar os mercados com o funciona-mento dos poderes constitucionais, bem como a subordi-nação do Estado ao mercado, com a adaptação do direito interno às necessidades do capital financeiro, exigindo cada vez mais flexibilidade para reduzir as possibilidades de interferência da soberania popular. A razão de merca-do passa a ser a nova razão de Estado. (BERCOVICCI, 2007. p. 63-64).

Nessa esteira, o pensamento político-ideológico centra-do na lógica liberal capitalista defende o desmantelamento da rede de proteção social como a única alternativa viável para combater o estado permanente de crises econômicas, mesmo que tal alternativa acabe ocasionando a violação dos mais básicos direitos fundamentais de índole social, como o direito fundamental à Assistência Social.

Conforme adverte Morais da Rosa

A magnitude das questões econômicas no mundo atual implica o estabelecimento de novas relações entre campos até então complementares. Direito e Economia, como campos autônomos, sempre dialogaram desde seus pressupostos e características, especificamente nos pon-tos em que havia demanda recíproca. Entretanto, atual-mente, a situação se modificou. Não só por demandas mais regulares, mas fundamentalmente porque há uma inescondível proeminência economicista em face do dis-curso jurídico. (ROSA, 2012, p. 135).

(6) VILLEY, Michel. Filosofia do direito: definições e fins do direito; os meios do direito. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 250.

(7) SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. Curitiba: Juruá, 2008. p. 102.

(8) Acerca da resignificação do termo “eficiência” em face da condicionante econômica neoliberal, leciona Morais da Rosa que “Esse sig-nificante tomado do campo da Administração ganhou, no Direito, um sentido colonizado e aferido pelo critério mercadológico e custo/benefício. Cria-se, assim, um novo princípio jurídico: o do melhor interesse do mercado. O Direito passa a ser um meio para atendimento do fim superior do crescimento econômico.” (ROSA, Alexandre Morais da. Constitucionalismo garantista: notas lógicas. In: FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam (Orgs.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 133-146, especificamente na p. 137).

(9) SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. Curitiba: Juruá, 2008. p. 100.

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34 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Jair Soares Júnior|

Nesse cenário “o Direito foi transformado em instrumen-to econômico diante da mundialização do neoliberalismo”(10), concebendo-se, pois, o aplicador do Direito como mero ser autômato que possui o único desiderato de reafirmar, através do Direito, as escolhas econômicas do governo, mesmo que essas escolhas signifiquem desprezar os interesses mais fun-damentais da pessoa humana.

Nessa esteira

(...) o pensamento jurídico é chamado – na perspec-tiva da racionalidade instrumental – a preparar ou defi-nir, por meio do Direito, “as soluções socialmente mais convenientes” ou “finalístico-programaticamente mais oportunas ou úteis e instrumentalmente adequadas ou eficazes” e não “as soluções axiológico-normativamente válidas e normativamente fundadas”. (SAVARIS, 2012, p. 106).

Sob essa perspectiva, os direitos fundamentais sociais deixam de ser efetivados sob a justificativa de argumentos de ordem utilitarista e econômica, pois, a negativa de um di-reito que, em tese, demandaria a disponibilização de maiores recursos econômicos por parte do Estado – como no caso da Assistência Social – significaria, em última análise, econo-mia aos cofres públicos, servindo, portanto, aos interesses da maior parte da população.

Em outras palavras, de acordo com a ética consequen-cialista-utilitarista, o aplicador do Direito somente poderia se desvencilhar da concepção mecânica(11) de aplicação do Direito, voltada à mera subsunção silogística do fato à norma, quando essa flexibilização pudesse favorecer a satisfação das expectativas do maior número, mesmo que isso acarretasse a negativa da efetivação de pretensões sociais fundamentais dos indivíduos.

Contudo, sob esse prisma, há evidente negação da funda-mentação moral que justifica a própria existência dos direi-tos econômicos, sociais e culturais (DESC), haja vista que o

reconhecimento desses direitos pressupõe a afirmação do ser humano como valor em si.

Tendo em vista a importância desse fundamento moral para a justificação dos direitos sociais, passaremos a discutir, no próximo tópico, as razões pelas quais pode ser defendida uma motivação de índole moral para a existência de direitos sociais como a Assistência Social.

3. A fundAmentAção morAL dos direitos sociAis

A fundamentação moral dos direitos fundamentais ad-vém do reconhecimento histórico do ser humano como fim em si(12), portanto, partindo-se da noção de igualdade humana fundamental, não se pode conceber o ser humano como um meio para a realização de projetos econômicos ou políticos.

Não é por outra razão que a filosofia kantiana assevera que “seres racionais estão todos submetidos a esta lei que manda que cada um deles jamais // se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meios, mas sempre simultaneamen-te como fins em si.”(13)

A legitimação dos governos e a legitimação do próprio Estado pressupõe e condiciona uma vinculação do governo e do Estado com a concretização dos direitos que permitam ao ser humano, independentemente da sorte que lhe foi reserva-da ao nascer, construir o seu projeto de vida.(14)

Compreender qual a fundamentação moral dos direitos fundamentais em geral – e mais especificamente dos direitos fundamentais sociais – representa a adequada concepção da responsabilidade coletiva e o abandono da visão estreita im-posta pela ética deontológica de moralidade.

Na lição de Álvaro de Vita, constitui-se um erro centra-lizar a atenção apenas na relevância política de uma ética deontológica para o progresso moral da humanidade, pois

(10) ROSA, Alexandre Morais da. Constitucionalismo garantista: notas lógicas. In: FERRAJOLI, Luigi; STRECK, Lenio Luiz; TRINDADE, André Karam (Orgs.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advo-gado, 2012. p. 133-146, especificamente na p. 135.

(11) “Com relação ao processo de aplicação do Direito, a denominada concepção mecânica da função jurisdicional propunha um modelo segundo o qual os sujeitos encarregados de realizar a tarefa de aplicação desenvolviam um trabalho de conhecimento reduzido a uma série de operações lógicas.” (SAVARIS, José Antonio. Uma teoria da decisão judicial da previdência social: contributo para superação da prática utilitarista. Florianópolis: Conceito Editorial, 2011. p. 79).

(12) O imperativo prático de Kant resume bem essa ideia se ser humano como fim em si mesmo, nas palavras de Kant: “O imperativo prático será pois o seguinte: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca // simplesmente como meio.” (KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. In: PENSADORES: Kant (II). Tradução de Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 69).

(13) KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica dos costumes. In: PENSADORES: Kant (II). Tradução de Paulo Quintela. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 76.

(14) Nesse sentido, Marco Aurélio Serau Junior, amparado pela filosofia kantiana, assevera que “a partir dessas premissas, alude Kant que o princípio primeiro de toda ética consiste em que o ser humano existe como um fim em si mesmo, e não, como um meio, do qual esta ou aquela vontade possa valer-se.”(SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Seguridade social como direito fundamental social. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011. p. 72).

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35Parte I – Teoria Geral Uma contribuição ao estudo da assistência social à pessoa com deficiência|

A relevância política de uma ética deontológica é li-mitada. Ela serve de fundamento a uma intervenção esta-tal circunscrita a converter em normas de cumprimento obrigatório os deveres morais passíveis de positivação legal. (VITA, 2008, p. 24).

Nessa esteira, conclui o cientista político que

Não há dúvida de que a disseminação de uma atitude de indignação e de repulsa morais por condutas dessa natureza e, quando possível, ações institucionais que objetivem impedir que ocorram constituem uma parte importante do que devemos contar como “progresso moral”. Mas isso não é o suficiente. (...) Quem é respon-sável, neste país, pela existência de pobreza absoluta e fome endêmica, de crianças que são obrigadas a trabalhar em vez de frequentar a escola e de trabalhadores rurais desesperados em virtude de lhes ser vedado o acesso a seu meio de vida? Para lidar com esses casos, os critérios de responsabilização e de intencionalidades adotados pelo deontologista para caracterizar uma dada conduta como uma violação de direitos podem ser mantidos, com a condição de que os interpretemos de uma forma co-letiva. Se há um arranjo institucional alternativo sob o qual esses danos poderiam ser evitados ou pelo menos mitigados, então se pode dizer que somos positiva e cole-tivamente responsáveis por causá-los se nada fazemos ou se não fazemos o suficiente para passar do status quo para esse arranjo alternativo. (VITA, 2008, p. 24-25).

A banalização do sofrimento humano, somado ao apego positivista que defende a neutralidade axiológica e o emprego da metodologia própria das ciências exatas para a resolução de questões sociais, fazem do operador do Direito, muitas vezes, um mero reprodutor da injustiça produzida por uma sociedade desigual.

Na perspectiva dos direitos fundamentais sociais, essa ausência de responsabilização coletiva diante do estabeleci-mento de quadros sociais injustos será agravada pela

adesão à causa economicista, que separa a adversida-de da injustiça, não resultaria, como se costuma crer, da mera resignação ou da constatação de impotência diante de um processo que nos transcende, mas funciona tam-bém como uma defesa contra a consciência dolorosa da própria cumplicidade, da própria colaboração e da pró-

pria responsabilidade no agravamento da adversidade social. (DEJOURS, 1999, p. 21).

Nessa ordem de ideias, a legitimação de determinado Es-tado ou governo estará diretamente relacionada com o efe-tivo comprometimento desse Estado – e da sociedade que o compõe – com os arranjos institucionais que permitam a consolidação de meios alternativos, visando possibilitar a distribuição mais equânime de encargos e benefícios sociais entre todas as camadas inseridas na sociedade.

A concepção que prega a observância dos direitos fun-damentais como elemento de fundamentação moral da le-gitimação do Estado exerce grande ligação com a “chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos”(15), ra-zão pela qual trataremos de forma mais detalhada do tema in-divisibilidade dos direitos fundamentais no próximo tópico.

4. A indivisibiLidAde dos direitos fundAmentAis

O desenvolvimento da doutrina dos direitos fundamen-tais superou a aparente dicotomia entre, de um lado, direitos civis e políticos e, de outro lado, direitos econômicos, sociais e culturais(16), compreendendo os direitos humanos – na esfe-ra jusnaturalista-universalista(17) – e os direitos fundamentais – na esfera interna positivada(18) – em seu aspecto indivisível, interdependente e interrelacionado.

A principal consequência histórica dessa divisão teórica dicotômica dos direitos fundamentais é a baixa concretização dos direitos econômicos, sociais e culturais, transformando--os em verdadeiros direitos de segunda categoria, sob a argu-mentação de que, por serem direitos de índole prestacional e por refletirem em custos financeiros para o Estado, algo que supostamente não ocorreria para a concretização dos direitos civis e políticos, estariam, aqueles direitos, sujeitos a uma efetivação progressiva e sempre dependente do orçamento destinado para a implantação de políticas públicas.

Contudo, fato é que não há absolutamente direito algum que esteja completamente livre de aplicação de recursos fi-nanceiros para serem efetivados, não havendo, portanto, direitos economicamente neutros, pois, até mesmo os direi-tos tradicionalmente vinculados à obrigações negativas, tais como o devido processo legal, o direito de casar-se, o direito

(15) PIOVESAN, Flávia. Direitos sociais: proteção internacional e perspectivas do constitucionalismo latino-americano. In: SAVARIS, José Antonio; STRAPAZZON, Carlos Luiz (Coords.). Direitos fundamentais da pessoa humana: um diálogo latino-americano. Curitiba: Alteridade, 2012. p. 223-247.

(16) MEIRELLES TEIXEIRA, J. H. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Conceito, 2011. p. 422-425.

(17) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 393.

(18) SARLET, Ingo Wolfgand; FIGUEIREDO, Mariana Filchtier. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproxi-mações. In: SARLET, Ingo Wolfgand; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 11-53, especificamente na p. 13. Também nesse sentido ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 12-45.

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36 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Jair Soares Júnior|

de associação, o direito de não ser submetido a tortura, o direito de votar e de ser votado e o direito de propriedade, pressupõe a criação e a manutenção, por parte do Estado, de instituições encarregadas de proteger, fiscalizar e garantir o respeito de tais direitos(19).

Não é por outro motivo que se afirma que

Os direitos são custosos porque os remédios o são. A imposição de leis é custosa, sobretudo se há de ser uni-forme e justa; já os direitos legais são vazios se não exis-te uma força que os faça cumprir. Dito de outro modo, quase todos os direitos implicam um dever correlato e os deveres somente se tomam a sério quando seu descum-primento é castigado pelo poder público com recurso do erário público. (HOLMES, SUSTEIN, 2000, p. 64).

Em síntese, inevitável a dependência de recursos finan-ceiros a que estão sujeitas todas as espécies de direitos (posi-tivos ou negativos) para se tornarem exigíveis.

Na visão de Luigi Ferrajoli, a debilidade política a que, nos últimos vinte anos, estão imersos os direitos sociais – não obstante a proclamação desses direitos em todas as car-tas constitucionais e internacionais do século XX – é fruto, também, de uma debilidade teórica que não vislumbra esse catálogo de interesses sociais como direitos propriamente ditos, algo severamente criticado pelo jurista italiano, ao defender que

Os argumentos para sustentar este singular desco-nhecimento do direito positivo vigente, não por casua-lidade articulado por politólogos mais que por juristas, são sempre os mesmos: que esses direitos correspondem, antes que proibições de lesão, obrigações de prestação positiva, cuja satisfação não consiste em um não fazer mas sim em um fazer, enquanto tal não formalizável nem universalizável, e cuja violação, pelo contrário, não con-siste em atos ou comportamentos sancionáveis ou anu-láveis senão em simples omissões, que não resultariam nem coercitíveis nem justiciáveis. (FERRAJOLI, Prólogo. In: ABRAMOVICH; COURTIS, 2002, p. 9).

Parte dessa chamada debilidade teórica a que se refere Ferrajoli seria decorrência da “tradição jurídica liberal, pou-co interessada pela tutela dos direitos sociais, nunca elabo-rou em plano teórico um garantismo social comparável ao garantismo liberal disposto para os direitos de propriedade e de liberdade.”(20)

A tese de que os direitos civis e políticos exigiriam ape-nas abstenções por parte do Estado e, dessa forma, não da-

mandariam recursos públicos, indicando a aplicabilidade imediata e exigibilidade direta, não suporta, entretanto, uma análise mais aprofundada.

É inegável que os direitos políticos, por exemplo, para serem plenamente exercidos, dependem de fortes investimentos do Estado, tanto para garantir a liberdade de manifestação dos diferentes projetos ideológicos de governo dos candidatos envolvidos no sufrágio, como também para assegurar a observância da vontade popular manifestada através dos votos(21).

Nessa linha de raciocínio, difícil o estabelecimento de distinção rígida entre obrigações unicamente positivas ou negativas, uma vez que o mesmo direito pode ser concreti-zado pelo Estado através de mais de uma conduta, de forma positiva e negativa, por meio de uma ação e também de uma omissão.

A comunicação entre os chamados direitos civis e políti-cos e entre os direitos econômicos, sociais e culturais refor-çam a unidade existente entre esses direitos, trazendo, ainda, a noção de universalidade e de interdependência entre os di-reitos fundamentais.

Diante dessa unicidade existente entre os direitos fun-damentais, Piovesan afasta a tese propagada pela doutrina liberal-burguesa que apregoa a ausência de exigibilidade e de justiciabilidade dos direitos sociais, econômicos e culturais, afirmando que

Além disso, em face da indivisibilidade dos direitos humanos, há de ser definitivamente afastada a equivoca-da noção de que uma classe de direitos (a dos direitos ci-vis e políticos) merece inteiro reconhecimento e respeito, enquanto outra classe de direitos (a dos direitos sociais, econômicos e culturais), ao revés, não merece qualquer observância. (PIOVESAN, 2012, p. 229).

Os tratados internacionais de direitos humanos são expressões iniludíveis da superação da corrente teórica que dividia os direitos humanos em direitos de prestações ne-gativas e de prestações positivas do Estado, colocando estas obrigações como simples declarações de boas intenções, sem nenhuma exigibilidade, ao contrário dos denominados direi-tos à prestações negativas, constituídos pelos direitos civis e políticos.

Nesse sentido, imperioso trazer à colação a Declara-ção e Programa de Ação de Viena, feita na Conferência Mun-dial sobre os Direitos do Homem, realizada entre 14 e 25 de junho do ano de 1993, que, em seu § 5º, dispõe:

(19) Nesse sentido é a lição de Courtis e Abramovich: ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Trotta, 2002. p. 23.

(20) FERRAJOLI, Luigi. Prólogo. In: ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Trotta, 2002. p. 14 (tradução nossa).

(21) De acordo com notícia informada no sítio do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), as eleições de 2010 custariam cerca de 450 milhões de reais. Disponível em: <http://www.tse.gov.br/sadAdmAgencia/noticiaSearch.do?acao=get&id=1354481>. Acesso em: 25 mar. 2013.

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Todos os Direitos do homem são universais, indivi-síveis, interdependentes e interrelacionados. A comu-nidade internacional tem de considerar globalmente os Direitos do homem, de forma justa e equitativa e com igual ênfase. Embora se devam ter sempre presente o sig-nificado das especificidades nacionais e regionais e os antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas polí-tico, económico e cultural, promover e proteger todos os Direitos do homem e liberdades fundamentais.

Essa concepção de indivisibilidade dos direitos funda-mentais como pressuposto para a democracia pode ser per-cebida na medida que

Há autores que indicam que o desmonte do Estado social (simbolizado na privatização e mercantilização de direitos sociais como educação, previdência social e saú-de) e a redução do tamanho do Estado é um primeiro passo para o desmantelamento da própria democracia. (SERAU JUNIOR, 2011. p. 95).

Resta-nos evidente, pois, o aspecto indivisível, inter-dependente e interrelacionado de todos os direitos funda-mentais, estejam eles contidos no rol dos direitos civis ou políticos – normalmente vinculados às liberdades clássicas – ou naquele plexo de direitos econômicos, sociais e cultu-rais – mais afetos aos direitos de igualdade –, haja vista que o exercício da liberdade real depende da concretização da igualdade material entre todos os componentes da sociedade.

O fortalecimento da doutrina internacional e dos diplo-mas internacionais de direitos humanos à concepção de indi-visibilidade e de universalidade dos direitos fundamentais se deve, em parte, à consagração do formato das Constituições do século XX que buscou traçar os fins e os objetivos do Es-tado e da sociedade, incluindo aspectos de desenvolvimento econômico, social e cultural.

Essa noção de Constituição que busca dar uma “direção” aos programas do Estado, chamada de Constituição dirigen-

te, está vivendo um período de esmaecimento em virtude de críticas à uma suposta interferência do Poder Judiciário em funções que seriam afetas aos Poderes Legislativo e Execu-tivo, consistente na realização dos direitos de índole social consagrados no texto constitucional.

Essas críticas à Constitução dirigente serão melhor abor-dadas no próximo tópico.

5. direitos fundAmentAis sociAis e constituição dirigente

Parte das críticas que se dirigem às chamadas Constitui-ções dirigentes vertem-se no sentido da suposta incompatibi-lidade entre Estado de Direito e Estado Social, entendido este como produto final das Constituições dirigentes. Segundo ar-gumentam esses críticos, a construção do Estado Social deve se dar no âmbito administrativo, não podendo ser alçado em nível constitucional.(22)

A argumentação de suposta incompatibilidade entre Es-tado de Direito e Estado Social não se sustenta, exceto se tomada por um viés ideológico nitidamente liberal. Não há nenhuma incongruência na imposição de normas constitu-cionais que prevejam não apenas as limitações que o Esta-do deve observar nas esferas civis e políticas dos cidadãos, como também imponham a esse Estado obrigações de cunho econômico, social e cultural como forma de concretizar os programas, fins, tarefas e ordens contidos no próprio texto constitucional.(23)

O argumento da necessidade de disponibilização orça-mentária para a efetivação das diretivas constitucionais de caráter econômico, social ou cultural fundamenta parte do discurso reacionário contrário à noção de Constituição di-rigente.(24)

Essas críticas partem do pressuposto de que a Constitui-ção deve se moldar ao orçamento público(25) e não, como pare-ce ser o correto, da premissa de que é a peça orçamentária que

(22) BERCOVICCI, Gilberto. A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 36, n. 142, p. 35-52, abr./jun. 1999. p. 36.

(23) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra Editora, 1982. p. 165.

(24) Essas críticas à noção de Constituição diligente desconsideram, entretanto, o efeito reverso trazido pela Constituição diligente inverti-da. Nesse sentido, argumenta-se que “a constituição dirigente das políticas econômicas e dos direitos sociais é entendida como prejudicial aos interesses do país, causadora última das crises econômicas, do déficit público e da ‘ingovernabilidade’. Já a constituição dirigente in-vertida, isto é, a constituição dirigente das políticas neoliberais de ajuste fiscal é vista como algo positivo para a credibilidade e a confiança do país junto ao sistema financeiro internacional. Esta, a constituição dirigente invertida, é, pelo visto, a verdadeira constituição dirigente, aquela que vincula toda a política do Estado brasileiro a uma única política econômica: a da tutela estatal da renda financeira do capital, à garantia da acumulação de riqueza privada (BERCOVICI; MASSONETTO, 2006, p. 57-77).” (BERCOVICI, Gilberto. Política econômica e direito econômico. Revista Pensar. Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 562-588, jul./dez. 2011. p. 580-581.).

(25) Importante fazer referência à ideia de “orçamento programa” em substituição ao orçamento clássico, uma vez que “o Estado social traz ínsitas em sua ideologia as ideias de finalidade e de programação. A pretensa estabilidade objetivada no ideal clássico de orçamento, portanto, não mais se coaduna com a realidade da Constituição brasileira. Mais do que uma peça meramente financeira, o orçamento, na atualidade, pode ser encarado como um programa de governo, no qual são consignadas suas diretivas de conduta, o que lhe reserva caráter nitidamente político.” (CANELA JUNIOR, Osvaldo. O orçamento e a “reserva do possível”: dimensionamento no controle judicial de po-lítica públicas. In: SARLET, Ingo Wolfgand; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 225-236, especialmente na p. 231).

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deve prever de forma prioritária os programas, fins e tarefas elegidas pela própria Constituição como prioritárias.

Nesse sentido, a prolixidade e a riqueza de detalhes da Constituição não se deve ao acaso

Nada disso! Ela se fez inusitadamente recamada de dispositivos para detalhar as coisas e assim revestir-se da força de governar o próprio governo e a sociedade. che-gando ao requinte de incluir no título devotado ao “di-reitos e garantias fundamentais” situações jurídicas ativas que já correspondem àquela noção de “mínimo existencial”, de modo a sobrepujar a própria cláusula fi-nanceira da reserva do possível. (BRITTO, 2010, p. 98).

Dessa forma, os programas de governo de quem esteja circunstancialmente exercendo o Poder Executivo devem se amoldar ao modelo de Estado de Bem-Estar e não o contrá-rio, pois

A Constituição do Brasil, de 1988, define, como re-sultará demonstrado ao final desta minha exposição, um modelo econômico de bem-estar. Esse modelo, desenha-do desde o disposto nos seus arts. 1º e 3º, até o quanto enunciado no seu art. 170, não pode ser ignorado pelo Poder Executivo, cuja vinculação pelas definições cons-titucionais de caráter conformador e impositivo é óbvia.

Assim, os programas de governo deste e daquele Presidentes da República é que devem ser adaptadas à Constituição, e não o inverso, como se tem pretendido. A incompatibilidade entre qualquer deles e o modelo econômico por ela defendido consubstancia situação de inconstitucionalidade, institucional e/ou normativa. (GRAU, 2003, p. 37).

Nessa perspectiva, o Poder Judiciário, de forma extraor-dinária, exercendo sua função de Poder contramajoritá-rio, tem o dever, quando provocado, de fazer prevalecer a vontade atemporal e transgeracional disposta no corpo da Constituição. Essa manifestação contramajoritária de Poder prevalecerá mesmo quando estiver em oposição à vontade de quem esteja à frente dos Poderes Legislativo e Executivo que, ordinariamente, são os legitimados para a formulação e para a execução de políticas públicas na esfera de direitos econômicos, sociais e culturais.

Sem embargo, a formulação de uma hermenêutica que promova a efetivação dos direitos econômicos, sociais e cul-

turais não elimina – ao contrário, exige – a necessidade de formulação de estratégias no campo da política para essa efe-tivação.

6. considerAções finAis

6.1 qual o espaço para o consequencialismo na aplicação dos direitos de proteção social e qual é a influência disso na aplicação do direito à Assistência social?

Embora seja inegável a aparente plausibilidade da teoria consequencialismo-utilitarista, fulcrada na maximização do prazer e no combate do sofrimento, tal teoria não atende aos ditames da justiça como equitativa, razão pela qual as ideias lançadas pelos moralistas utilitários foram duramente criti-cadas por John Rawls em sua obra “Uma Teoria da Justiça”.

Resta indagar

Se é possível se compreender que o ideal utilitarista é o de igualdade de bem-estar a partir de uma noção de imparcialidade moral, que problemas tão estruturais su-postamente apresenta este projeto ético para que tenha sido tão abalado pela escrita de Rawls – que, de sua vez, buscava justamente produzir uma teoria da justiça que representasse uma alternativa ao pensamento utilitário em geral? No que tanto se distancia o utilitarismo, em qualquer de suas versões, do liberalismo com igualdade, da teoria da “justiça como equidade”? (SAVARIS, 2008, p. 104).

As reservas feitas por Rawls contra a ética utilitarista não derivam propriamente da atenção deferida às consequências dos atos(26), mas sim em razão da precedência, nessa “aritmé-tica moral”(27), do bem sobre o justo.

A rejeição à moral utilitarista deriva, pela lente de Rawls, do fato de que “o utilitarismo não leva a sério a distinção entre pessoas”(28), ou seja, o utilitarismo descon-sidera que cada um tenha uma vida sua para levar, distinta de todas as demais, essa é a razão pela qual não se justifi-ca sacrificar os interesses mais fundamentais de algumas pessoas em benefício do total maior de utilidade que se-ria alcançado (ou da utilidade média que seria realizada). (VITA, 2000, p. 49).

(26) “o consequencialismo é uma decorrência necessária de entender a justiça como a ‘virtude primeira das instituições sociais’.” (VITA, Álvaro de. Justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: Unesp, 2000. p. 49).

(27) “O projeto ético do utilitarismo clássico tinha a pretensão de obedecer à exigência de objetividade e exatidão, e atribuía ao moralista e ao legislador a ideal tarefa da contabilidade moral, uma racional avaliação do custo-benefício das regras morais e das políticas públicas, em termos de prazer ou dor. A famosa concepção benthaniana de “aritmética moral” é extraída da ênfase dada por Beccaria à importância de um sistema racional de legislação penal que faça distinções das dimensões da punição, como intensidade, duração, certeza e proximidade.” (SAVARIS, José Antonio. Uma teoria da decisão judicial da previdência social: contributo para superação da prática utilitarista. Florianópolis: Conceito Editorial, 2011. p. 39-40).

(28) RAWLS, John. A theory of justice. apud SAVARIS, José Antonio. Uma teoria da decisão judicial da previdência social: contributo para superação da prática utilitarista. Florianópolis: Conceito Editorial, 2011. p. 48.

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Por outro lado, a ausência de reflexão acerca da justiça distributiva, demonstrada na teoria utilitarista, resulta que “a justiça da maximização do bem não se preocupa diretamente com a questão da desigualdade e, assim, poderia ser razoavel-mente rejeitada pelo indivíduo representativo das posições sociais menos favorecidas.”(29)

Os critérios de que se servem o utilitarismo estão sujeitos a críticas, pois

os indivíduos suficientemente felizes podem compen-sar o desespero de outros. Assim, permitiria a defesa uti-litarista da tortura de uma criança na frente de milhões de espectadores suficientemente sádicos ou a morte de um indivíduo se o custo de mantê-lo fosse superior àquilo que ele pudesse produzir. (BOLLMANN, 2009, p. 98).

Para enfrentar essas críticas “o utilitarismo tende a res-ponder às objeções afirmando que as leis da sociedade e da natureza humana excluem as hipóteses que venham a ser ofensivas aos nossos juízos ponderados”(30); contudo, deter-minadas circunstâncias, como a existência de uma – supos-ta – crise econômica globalizada poderia servir, facilmente, de desculpa para reduzir o âmbito de aplicação de direitos fundamentais sociais – como a Assistência Social – em nome de um interesse da “sociedade”, muito embora a redução de direitos sociais possa causar considerável prejuízo para boa parte dessa mesma “sociedade”, a qual restaria prejudicada pela decisão política baseada por critérios utilitaristas.

Os critérios adotados pela teoria da justiça como equida-de demonstram o erro de aceitar “o sacrifício dos projetos de vida de algumas pessoas para aumentar a satisfação de ou-tras”(31), derivando desse fato a constatação de que “os mora-listas utilitários cedo ou tarde teriam de considerar aceitável (nos termos da moralidade utilitarista) a violação de direitos de algumas ou mesmo de muitas pessoas em nome de consi-derações de natureza agregativa.”(32)

Impossível deixar de notar a identidade de postulados do consequencialismo-utilitarista e da Análise Econômica do Direito (AED)(33), haja vista que a “teoria econômica do direito, tanto quanto o utilitarismo, percebe na atribuição de benefícios e na imposição de sanções um mecanismo hábil a maximizar uma consequência desejada.”(34)

Destarte

ainda que Posner se esforce para distinguir a teoria ética utilitarista da abordagem econômica do Direito, a metodologia empregada com vistas à maximização da eficiência econômica, sugere, ao contrário do que ele próprio sustenta, que o conceito ético central do uti-litarismo – utilidade – foi apenas substituído pelo de eficiência – maximização da riqueza. (SAVARIS, 2011, p. 108).

O problema de aceitar os critérios de que se servem as vertentes da ética utilitarista que apregoam a maximização do prazer e a precedência do “bem sobre o justo”, bem como a abordagem econômica do Direito e sua ênfase na maximi-zação da riqueza, está em desconsiderar o ser humano como valor em si, tomando como finalidade última do Direito e do Estado a eficiência econômica em detrimento da realização da justiça social.

Como pondera Dworkin

Podemos argumentar (como fizeram alguns autores) que a lei será economicamente mais eficiente se os juízes forem autorizados a levar em conta o impacto econômico de suas decisões; isso, porém, não responderá à questão de saber se é justo que eles procedam assim, ou se po-demos considerar critérios econômicos como parte do direito existente, ou se decisões com base no impacto econômico tem, por essa razão, um maior ou menor peso moral. (DWORKIN, 2010, p. 11).

(29) SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. Curitiba: Juruá, 2008. p. 108.

(30) RAWLS, John apud SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. Curitiba: Juruá, 2008. p. 111.

(31) SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. Curitiba: Juruá, 2008. p. 106. No mesmo sentido: SAVARIS, José Antonio. Uma teoria da decisão judicial da previdência social: contributo para superação da prática utilitarista. Florianópolis: Conceito Editorial, 2011. p. 48.

(32) VITA, Álvaro de. Justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: Unesp, 2000. p. 49.

(33) Comentando as visões de Dworkin sobre a igualdade e o argumento econômico utilitarista, Sthephen Guest assevera que “Na verdade, seu ataque [de Dworkin] à chamada escola de Chicago de direito e economia (Chicago school of law and economics), cuja forma mais articu-lada é a de Posner, é um ataque baseado, como seria de se esperar, no princípio abstrato de igualdade e dirigido contra uma forma altamente ilimitada de utilitarismo.” Sob essa premissa, destaca aquele autor, “Consequentemente, os juristas econômicos da escola de Chicago usam um critério alternativo, o de maximização de riqueza (ou critério Kaldor-Hicks). Ele mede o bem-estar através da riqueza (fazendo o Tio Patinhas um homem feliz) e não se importa se alguém é ou não deixado em pior situação. Este critério afirma que uma decisão, ou política, é maximizadora de riqueza se a quantidade de riqueza criada pela decisão for suficiente para compensar os que ficam com menos riqueza após a decisão. Não há nenhuma exigência de que aqueles que perderam riqueza no processo sejam compensados. É uma simples análise de custo/benefício.” GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Tradução de Luís Carlos Borges. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. (Coleção Teoria e Filosofia do Direito). p. 225-226.

(34) SAVARIS, José Antonio. Uma teoria da decisão judicial da previdência social: contributo para superação da prática utilitarista. Florianó-polis: Conceito Editorial, 2011. p. 107.

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40 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Jair Soares Júnior|

Importante frisar que

Reconhecido esse viés metodológico individualista, constata-se a problematicidade de se utilizar esse tipo de abordagem (AED) para qualquer tema de direitos funda-mentais sociais, tal como a Seguridade Social, transcen-dentes que são, por essência, dessa realidade egoística. Os direitos fundamentais sociais, independentemente da definição que se lhes dê, possuem natureza e perspecti-va socializante; são fenômenos, por sua natureza, social. (SERAU JUNIOR, 2010, p. 59).

A realização dos direitos de proteção social não pode ig-norar a questão da escassez de recursos públicos para a satis-fação das necessidades; contudo, a abordagem utilitarista e economicista do Direito – na linha defendida pelo adeptos da AED – subverte a lógica da ordem social, priorizando o fator econômico em detrimento do humano, introduzindo uma ló-gica de mercado que, em última análise, retira a dignidade da pessoa humana do epicentro do ordenamento jurídico(35) que passa a gravidar em torno das condicionantes econômicas de aplicação do Direito.

Portanto, o consequencialismo possível – e desejável – em se tratando de aplicação dos direitos fundamentais econômi-cos, sociais e culturais – como a Assistência Social – é aquele que se orienta de acordo com os fundamentos axiológicos-normativos determinantes do sistema jurídico, haja vista que

De uma parte, emerge a ideia de que o Direito é apli-cado/realizado no – e de acordo com o – caso, de modo a fazer alcançar a justiça para o problema concreto. De ou-tra parte, sustenta-se que é também fundamental para a aplicação judicial do Direito que se considerem os resul-tados reais ou externos da decisão, mas somente aqueles que confirmem os fundamentos morais que justificam e alicerçam o sistema jurídico de proteção social. (SAVA-RIS, 2012, p. 112-113).

O discurso que prega a eliminação de benefícios pagos pelo Estado e a entrega da proteção social ao livre mercado, busca deslegitimar a atuação do Estado na proteção social com base em argumentos como: i) a ineficiência e a incompe-tência do Estado para gerir os recursos públicos; ii) a corrup-ção e as fraudes supostamente inerentes ao sistema Estatal;

iii) o crescimento exagerado da máquina Estatal que exigiria cada vez mais tributos a serem pagos pelo “setor produtivo” (iniciativa privada), diminuindo, assim, sua competitivida-de; iv) o incentivo ao “ócio” das parcelas desfavorecidas da população supostamente promovida por esse modelo de Es-tado “assistencialista”.

O Estado concebido sob o modelo neoliberal, segundo o discurso contrário à ampliação da rede de proteção social, se-ria, nessa perspectiva, mais eficiente e enxuto, promovendo “justiça social” ao ponto em que os indivíduos mais prepara-dos se destacariam e os menos preparados seriam eliminados, numa concepção própria do darwinismo social.(36)

Ocorre que essa noção de Estado mínimo acaba por ne-gar a concepção de ser humano como valor supremo e finali-dade principal do Estado. Não se pode pensar o Estado com a lógica das grandes corporações empresariais multinacionais, na qual vige a regra da maximização dos lucros e do corte das despesas até o limite máximo possível.

Nesse sentido, interessante anotar a visão de Malla Pol-lack a respeito do tratamento dos direitos sociais nos Estados Unidos:

No rico Estados Unidos, a teoria dos direitos nega-tivos (que confia no mercado desregulamentado para prover as necessidades das pessoas) resultou numa anor-malmente grande porcentagem da população ser mal ser-vida. Baixo índice de votação e altas taxas de encarcera-mento podem estar relacionadas com a desilusão com as prioridades do governo.

Nos Estados Unidos, a teoria dos direitos negativos possibilita um ciclo que se autoperpetua de proteção dos ricos e de poderosas propriedades privadas as expensas de todos os outros. O ciclo pode ser quebrado (ao menos na teoria), mas as estatísticas dos Estados Unidos atual demostram como (sem direitos positivos), mesmo um grande “bolo” pode não incluir fatias justas para os mais necessitados. (POLLACK, 2008, p. 388).

O Estado não foi feito para dar lucro, mas sim para criar as condições que possibilitem o desenvolvimento do projeto de vida que seus integrantes entendam valiosos(37),

(35) “Perante as experiências históricas de aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocí-dios étnico) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Nesse sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios.” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 225).

(36) O darwinismo social é uma teoria que toma como inspiração as pesquisas de Charles Darwin que, através de sua teoria da evolução das espécies, apontava a diversidade das espécies vivas pelo processo de seleção natural dos seres mais aptos. Um dos principais expoentes do darwinismo social foi o filósofo inglês Herbert Spencer que, no início do século XIX, defendia a “sobrevivência do mais apto”, como forma de explicar a divisão da sociedade em classes. Suas principais obras foram: Estática Social, Sistema de Filosofia Sintética, O Indivíduo Contra o Estado e A Educação Intelectual, Moral e Física. (ESPINA, Alvaro. El darwinismo social: de Spencer e Bagerot. Revista Española de Investigaciones Sociológicas (REIS), n. 110, p. 189-199, abr./jun. 2005. Disponível em: <http://pendientedemigracion.ucm.es/centros/cont/descargas/documento6172.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2013.).

(37) Segundo sustenta Malla Pollack “Para um humanista, governos existem para ajudar pessoas. Mesmo as entidades que usam pessoas como meros meios querem que suas ‘pessoas-ferramentas’ se sintam apreciadas, Pessoas apreciadas cooperam ativamente – diminuindo os

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41Parte I – Teoria Geral Uma contribuição ao estudo da assistência social à pessoa com deficiência|

reduzindo, para tal, as barreiras que impossibilitam o exer-cício da liberdade real.

O discurso que defende a entrega da proteção social aos cuidados do mercado é falacioso. Não há nenhuma evidência de que o mercado seja realmente mais probo ou mais justo do que o Estado, pelo contrário, a recente crise econômica de 2008 (bolha imobiliária estadunidense) mostrou como a ausência de regulamentação Estatal no mercado pode ser arriscada.

Ademais, a crença – tomada através de uma análise me-ramente econômica – de que o aumento do “bolo” disponível para a distribuição traria benefícios a todos(38) é claramente equivocada, uma vez que “externalidades positivas não são a consequência automática dos lucros nos negócios”(39).

Da mesma maneira é falaciosa a argumentação de que o mercado seria mais competente para administrar o sistema de proteção social, pois, como já foi frisado, a lógica do mercado (maximização dos lucros e corte linear de despesas) é contra-ditória ao sistema de proteção social (guiada pelos princípio da universalidade de cobertura e do atendimento – art. 194, parágrafo único, inciso I, da CF/88).

A economia de recursos não deve ser um fim em si; ou-trossim, a correta aplicação dos recursos públicos é uma prá-tica que interessa a todos.

De tal arte, a eficiência, se entendida como prática admi-nistrativa que busque a otimização da utilização das receitas públicas e o redução das despesas supérfluas ou desneces-sárias, é uma medida que vai ao encontro de uma melhor proteção social.

Por outro lado, a eficiência, vista pela lente da teoria uti-litarista, na qual o cálculo moral de custo-benefício banaliza o sofrimento do ser humano, não parece ser a melhor postura para um Estado que pretenda eliminar a exclusão social e implantar uma rede de proteção social.

Essa leitura do princípio da eficiência como sinônimo de economia de dinheiro parece gozar de mais prestígio em uma conjuntura de crise financeira permanente e de apelos – especialmente das classes mais privilegiadas da sociedade

– por uma austeridade nos gastos públicos e pelo desmante-lamento do welfare state.

A Administração Pública, responsável pela implementa-ção de políticas públicas que visam à proteção social, não pode ser alheia ao sofrimento do ser humano. Há que se man-ter o foco na missão do sistema de proteção social do Estado brasileiro – no qual a Assistência Social ocupa posição de destaque.

Em suma, a eficiência e a boa administração pública de-verão promover a redução de gastos tanto quanto possível, desde que não haja prejuízo ao ser humano em situação de vulnerabilidade, sob pena de haver uma inversão do princí-pio da eficiência, entendendo como tutelada não a pessoal em situação de risco social, mas sim a própria administração que gerencia o sistema de seguridade social.(40)

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custos com supervisão e execução. O pior caso é aquele em que a maioria da população de um país se sente desapreciada (ou pior) pelo governo e fisicamente se revoltam. Empresário concordam que guerras civis não são eficientes. Por estas razões, tomadores de decisões políticas, sem evidências empíricas bem centradas, deveriam escolher a regra a qual sinaliza sua preocupação com os cidadãos individuais. Nós não apenas sabemos que isso é um meio eficiente de se estimular comportamento socialmente desejável, deveríamos reconhecer que é um digno fim em si mesmo.” (POLLACK, Malla. O alto custo de não se ter direitos positivos, uma perspectiva dos Estados Unidos. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 363-389, especificamente na p. 376-377).

(38) POLLACK, Malla. O alto custo de não se ter direitos positivos, uma perspectiva dos Estados Unidos. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 363-389, especificamente na p. 367.

(39) POLLACK, Malla. O alto custo de não se ter direitos positivos, uma perspectiva dos Estados Unidos. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Orgs.). Direitos fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 363-389, especificamente na p. 366.

(40) “O agente público está obrigado a sacrificar o mínimo para preservar o máximo dos direitos fundamentais.” (FREITAS, Juarez. Discri-cionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 66).

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42 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Jair Soares Júnior|

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Page 43: Benefício Assistencial: Temas Polêmicos

as políticas púBlicas, o ativismo Judicial e a assistência social

Miguel Horvath Júnior(*)

Para que possamos refletir sobre políticas públicas, ati-vismo judicial e assistência social preliminarmente é inte-ressante analisarmos as áreas de interseção entre as diversas áreas de conhecimento. Para falarmos de assistência social enquanto prestação de seguridade social é mister analisar o conceito de políticas públicas. A seguridade enquanto políti-ca pública deve ser entendida como um método de economia coletiva. E em assim sendo, a comunidade é chamada a fazer um pacto técnico econômico em que a solidariedade social é o fiel da balança. A solidariedade social consiste na contribui-ção da maioria em benefício da minoria (HORVATH, 2012). Para se extrair o conteúdo e limites das normas jurídicas de proteção social é mister que se entenda e conheça as políticas públicas, suas finalidades, destinatários e limites, bem como a forma como vem sendo instrumentalizada a proteção social pelo Poder Judiciário.

A assistência social é instrumento de transformação so-cial. Tendo como missão a promoção da integração e a inclu-são do assistido na vida comunitária.

Determina o art. 1º da Lei n. 8.742/93: A assistência so-cial, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Segu-ridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de ini-ciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.

A assistência social, portanto, é a forma de proteção so-cial que possui as seguintes características: atua após a ins-talação do estado de necessidade social, possui natureza não contributiva. É dever do Estado, que atuará de forma sub-sidiária à proteção previdenciária e em relação àqueles que possam garantir a sua subsistência mínima vital.

A assistência social visa a proteção do indivíduo que não pode, por si só ou com a ajuda de seus familiares, obter seus sustento. Tem como objetivos principais a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhi-ce (idade avançada), amparo às crianças e adolescentes ca-rentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e reabilitação de pessoas com deficiência e a

promoção de sua integração à vida comunitária; a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

A assistência social pressupõe uma não acumulação de meios e cobertura de necessidades. O indivíduo deve reque-rer e provar o seu estado de necessidade social. A proteção social assistencial visa a garantia e manutenção da dignidade da pessoa humana.

Por sua vez devemos entender políticas públicas como opções do Estado para a efetivação dos interesses da cole-tividade protegidos juridicamente, com o uso dos recursos públicos.

Destacamos que a assistência social é financiada pelas receitas gerais tributárias (financiamento indireto nos termos do art. 195 da Constituição da República Federativa do Bra-sil). Recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195 da CF, além de outras fontes (art. 204 da CF). O financiamento dos benefícios, serviços, programas e projetos estabelecidos pela Lei n. 8.742/93 far-se-á com os recursos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, das demais contribuições sociais previstas no art. 195 da CF, além daqueles que compõem o Fundo Nacional de Assistência So-cial (FNAS). Cabe ao órgão da Administração Pública res-ponsável pela coordenação da Política de Assistência Social nas 3 (três) esferas de governo gerir o Fundo de Assistência Social, sob orientação e controle dos respectivos Conselhos de Assistência Social. O financiamento da assistência social no Suas deve ser efetuado mediante cofinanciamento dos 3 (três) entes federados, devendo os recursos alocados nos fundos de assistência social ser voltados à operacionalização, prestação, aprimoramento e viabilização dos serviços, pro-gramas, projetos e benefícios desta política.

O papel de interação entre políticas públicas e direito ganha relevo dentro de um Estado alicerçado na forma de Bem-Estar Social. Em um Estado de Bem-Estar Social as normas jurídicas passam a ter grande relevo, uma vez que

(*) Procurador Federal. Professor da PUC-SP. Autor da obra Direito Previdenciário. 10. ed. Ed. Quartier Latin, 2014 dentre outras.

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44 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Miguel Horvath Júnior|

transformam-se em instrumentos de efetivação dos objetivos públicos (políticas públicas). Para se extrair o conteúdo e os limites das normas jurídicas de proteção social é mister que se entenda e conheça as políticas públicas, suas finalidades, destinatários e limites.

No Brasil, o entendimento e o conhecimento das polí-ticas públicas, ligadas inexoravelmente ao direito adminis-trativo, ainda tem como foco principal a atuação de cunho negativo, voltado à compreensão dos limites da discriciona-riedade, ou seja, na discussão do que pode ou não pode ser feito pela Administração Pública. Enquanto deveria ter seu foco na coordenação das ações de Estado. Visando a efetiva-ção das políticas públicas de maneira coordenada, harmônica e mais eficaz.

Por conta disso, no Brasil, observa-se o fenômeno da “ju-dicialização” das políticas públicas que de maneira sintética buscará estabelecer limites da intervenção do poder judiciário na construção e execução das políticas públicas. Dentro des-te fenômeno é possível observar duas correntes, a primeira adotando uma posição e visão ativista entendendo que cabe ao poder judiciário interferir, remodelar e criar políticas pú-blicas. A segunda corrente adotando uma posição garantista entendendo que cabe ao poder judiciário limitar-se ao con-trole formal (e não material) dos atos dos gestores públicos.

A adesão a uma das correntes é expressa nas decisões ju-diciais, notadamente nas decisões dos Tribunais Superiores.

A assistência social enquanto instrumento de efetivação de política pública e econômica impõe alguns desafios e im-passes em especial, no tocante ao nível de cobertura e qual o nível aceitável para que se efetiva a proteção assistencial sem que haja solapamento ou prejuízo às políticas de previdên-cia social. Posto que, há de haver diferença entre o nível de cobertura assistencial e previdenciária. O estabelecimento de tais níveis e limites é fundamental para desestimular a ideia do não trabalho ou a ideia de que é melhor viver sem traba-lhar. Lembrando sempre que toda generalização é perigosa. Nesta medida a assistência social deve ser instrumento de desenvolvimento de capacidades de tal forma que os destina-tários da assistência social possam reassumir o comando de seu destino após serem capacitados. Passando a ser arquiteto de seus próprios destinos.

O combate à pobreza é um dos baluartes da democracia. A democracia é uma esfera governamental que ajuda o país a tomar decisão no sentido coletivo de combate à pobreza para ajudar a melhorar as condições de um povo em favor da melhoria em termos de saúde, educação e bem-estar social. (BOBBIO, 1986)

No tocante ao padrão de renda é mister refletirmos sobre a metodologia para estabelecimento de padrão mínimo de renda. Destacamos que a as medidas de pobreza adquirem importância capital para a definição do nível de proteção so-cial e quais os grupos preferenciais a serem alcançados. O atual conceito de pobre evoluiu ao longo dos tempos, hoje o conceito mais usual é que pobre é a pessoa que não tem como suprir suas necessidades nutricionais, que está privado

de acesso à renda, ao trabalho, à habitação e à saúde. Lem-brando que a pobreza ainda pode ser classificada com estru-tural (a pessoa nasceu e vai morrer pobre) ou conjuntural (a pessoa se encontra nesta situação por um infortúnio, uma circunstância adversa da vida).

A grande questão enfrentada pelo gestor das políticas pú-blicas é estabelecer o limite da proteção de forma que atenda às exigências jurídicas e limites técnicos. O limite técnico pode ser entendido como o nível de sobrevivência ( mínimo vital) individual e ou familiar. E o limite jurídico é a digni-dade da pessoa humana. A pobreza pode ser definida como uma privação das capacidades básicas de um indivíduo e não apenas como uma renda inferior a um patamar pré-estabele-cido. Por “capacidade” entendem-se as combinações alter-nativas de funcionamentos de possível realização. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos ou a liberdade para ter estilos de vida diversos. Por exemplo, uma pessoa abastada que faz jejum por sua livre e espontânea vontade pode ter a mesma realização de funcionamento que uma pessoa pobre forçada a passar fome extrema. Porém, a primeira pessoa possui um “conjunto capacitário” diferente do da segunda. A primeira pode escolher comer bem e ser bem nutrida de um modo impossível para a segunda. (SEN, 2000).

A pobreza pode ser mensurada de várias formas, a saber: Medida absoluta, medida relativa e medida subjetiva. Com a medida absoluta de pobreza se busca determinar a estimativa das necessidades básicas e a alocação de recursos capazes de satisfazê-las. A grande questão é a determinação da quantida-de de recurso necessário para a garantia de uma vida decente (dignidade da pessoa humana), bem como a variação subje-tiva de necessidades entre pessoas e entre países e regiões do mundo. A grande questão na adoção desta medida de pobreza diz respeito ao estabelecimento do limite de pobreza 1/3 do salário mínimo? Ou por que não metade do salário mínimo?

A medida relativa de pobreza por sua vez parte do pres-suposto de que pobre é o que não tem renda suficiente para atingir o padrão de vida corrente de determinado sociedade. Nesses termos, considerando a renda crescente dos países por mais que se aumenta a renda de quem está na base do substrato social, sempre haverá pobres.

A medida subjetiva estabelece que para estabelecimento da linha de pobreza há de se pesquisar as necessidades bási-cas consideradas diretamente em seu próprio grupo.

No Brasil com a edição da LOAS – Lei Orgânica de Assis-tência Social – adotou-se a medida absoluta estabelecendo--se padrões fixos para o nível mínimo de atendimento das necessidades básicas para os destinatários do Benefício de Prestação Continuada. Adotando-se outro referencial para a atuação assistencial visando atender aos que se encontram abaixo da linha de pobreza . Tem se adotado o padrão de po-breza indexando-o ao salário mínimo (mínimo existencial), partindo-se do pressuposto que o salário mínimo representa o mínimo existencial.

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45Parte I – Teoria Geral As Políticas Públicas, o Ativismo Judicial e a Assistência Social |

No lançamento do estudo de investimentos para o fim da pobreza da ONU durante a Assembleia Geral em 2013, o Brasil foi apontado como um dos países que vem conse-guindo diminuir as desigualdades sociais, permitindo uma forte redução da pobreza e da miséria, sendo um importan-te exemplo para o resto do mundo. O Brasil, em 2013, foi um dos destaques do relatório da organização internacional Iniciativas para o Desenvolvimento (Development Initiatives, no original, em inglês), que reconheceu o programa Bolsa Família como um dos importantes instrumentos utilizados pelo Brasil para diminuir a pobreza em 40%, ampliar o acesso à alimentação a 52% dos domicílios e reduzir a mortalidade infantil. Isto com um baixo custo, de acordo com o estudo. “O orçamento de R$ 24 bilhões [do Bolsa Família] represen-ta menos de 1% do orçamento federal de 2013, enquanto o investimento era 0,46% da renda nacional em 2012.” Brasil e China são reconhecidos no relatório por sua estratégia de investimento social para promover o desenvolvimento sus-tentável. De acordo com o documento, os recursos governa-mentais cresceram rapidamente nos dois países, chegando a US$ 4 mil (cerca de R$ 9,2 mil) por pessoa no Brasil e a US$ 1,76 mil (pouco mais de R$ 4 mil) por pessoa na China. O Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal foi citado como uma iniciativa importante para o sucesso na decisão de investimentos sociais pelo grande volume de in-formações armazenadas, que permitem uma boa focalização dos programas.(1)

Nesta área de interseção vamos refletir um pouco acer-ca da recente decisão do STF nos Recursos Extraordinários ns. 567.985/MT e 580.963/PR sobre o critério econômico para acesso ao benefício de prestação continuada de natu-reza assistencial. Pautados pela reflexão do papel do Judi-ciário frente às políticas públicas e os direitos fundamen-tais sociais.

Uma das condições sob a ótica política para a aprovação da seguridade social nas discussões que antecederam a apro-vação do texto constitucional de 1988 foi a da limitação do critério econômico para acesso às prestações de assistência social.

Reza o art. 203 da Constituição Federal:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela neces-sitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescên-cia e à velhice;

II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de de-ficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não

possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la pro-vida por sua família, conforme dispuser a lei.

A assistência social somente foi regulamentada pela Lei n. 8.742/93 que nos arts. 20 e parágrafos e 21 regulamenta infraconstitucionalmente o benefício assistencial previsto no art. 203 da Constituição Federal.

Assim dispõe a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS):

Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. (Redação dada pela Lei n. 12.435, de 2011)

§ 1º para os efeitos do disposto no caput, a família é com-posta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto. (redação dada pela Lei n. 12.435, de 2011). conceito de “família assistencial”.

§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se: (Re-dação dada pela Lei n. 12.435, de 2011)

I – pessoa com deficiência: aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pes-soas; (Redação dada pela Lei n. 12.435, de 2011)

II – impedimentos de longo prazo: aqueles que incapacitam a pessoa com deficiência para a vida independente e para o tra-balho pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos. (Redação dada pela Lei n. 12.435, de 2011)

§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pes-soa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (Redação dada pela Lei n. 12.470, de 2011)

§ 3º considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capi-ta seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo. (Redação dada pela Lei n. 12.435, de 2011) – critério de aferição da necessidade econômica ou hipossuficiência.

§ 4º O benefício de que trata este artigo não pode ser acumula-do pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguri-dade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória. (Redação dada pela Lei n. 12.435, de 2011)

§ 5º A condição de acolhimento em instituições de longa per-manência não prejudica o direito do idoso ou da pessoa com deficiência ao benefício de prestação continuada. (Redação dada pela Lei n. 12.435, de 2011)

(1) Ações do governo brasileiro nos últimos 10 anos reduziram as desigualdades sociais no País. Portal Brasil. Publicado: 23 set. 2013 20h19. Última modificação: 18 out. 2013 19h11

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46 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Miguel Horvath Júnior|

§ 6º A concessão do benefício ficará sujeita à avaliação da defi-ciência e do grau de incapacidade, composta por avaliação mé-dica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por as-sistentes sociais do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). (Redação dada pela Lei n. 12.435, de 2011)

§ 6º A concessão do benefício ficará sujeita à avaliação da defi-ciência e do grau de impedimento de que trata o § 2º, composta por avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do Instituto Nacional de Seguro Social – INSS. (Redação dada pela Lei n. 12.470, de 2011)

§ 7º Na hipótese de não existirem serviços no município de residência do beneficiário, fica assegurado, na forma prevista em regulamento, o seu encaminhamento ao município mais próximo que contar com tal estrutura. (Incluído pela Lei n. 9.720, de 30.11.1998)

§ 8º A renda familiar mensal a que se refere o § 3º deverá ser declarada pelo requerente ou seu representante legal, sujei-tando-se aos demais procedimentos previstos no regulamento para o deferimento do pedido.(Incluído pela Lei n. 9.720, de 30.11.1998)

§ 9º A remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz não será considerada para fins do cálculo a que se refere o § 3º deste artigo. (Incluído pela Lei n. 12.470, de 2011)

§ 10. Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2º deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mí-nimo de 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei n. 12.470, de 2011)

Art. 21. O benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condi-ções que lhe deram origem. (Vide Lei n. 9.720, de 30.11.1998)

§ 1º O pagamento do benefício cessa no momento em que forem superadas as condições referidas no caput, ou em caso de morte do beneficiário.

§ 2º O benefício será cancelado quando se constatar irregularidade na sua concessão ou utilização.

§ 3º O desenvolvimento das capacidades cognitivas, motoras ou educacionais e a realização de atividades não remuneradas de habilitação e reabilitação, entre outras, não constituem mo-tivo de suspensão ou cessação do benefício da pessoa com de-ficiência. (Incluído pela Lei n. 12.435, de 2011)

§ 4º A cessação do benefício de prestação continuada conce-dido à pessoa com deficiência, inclusive em razão do seu in-gresso no mercado de trabalho, não impede nova concessão do benefício, desde que atendidos os requisitos definidos em regulamento. (Incluído pela Lei n. 12.435, de 2011)

§ 4º A cessação do benefício de prestação continuada conce-dido à pessoa com deficiência não impede nova concessão do benefício, desde que atendidos os requisitos definidos em regu-lamento. (Redação dada pela Lei n. 12.470, de 2011)

Art. 21-A. O benefício de prestação continuada será suspenso pelo órgão concedente quando a pessoa com deficiência exer-cer atividade remunerada, inclusive na condição de microem-preendedor individual. (Incluído pela Lei n. 12.470, de 2011)

§ 1º Extinta a relação trabalhista ou a atividade empreendedora de que trata o caput deste artigo e, quando for o caso, encerrado o prazo de pagamento do seguro-desemprego e não tendo o beneficiário adquirido direito a qualquer benefício previden-ciário, poderá ser requerida a continuidade do pagamento do

benefício suspenso, sem necessidade de realização de perícia médica ou reavaliação da deficiência e do grau de incapacidade para esse fim, respeitado o período de revisão previsto no caput do art. 21. (Incluído pela Lei n. 12.470, de 2011)

§ 2º A contratação de pessoa com deficiência como aprendiz não acarreta a suspensão do benefício de prestação continua-da, limitado a 2 (dois) anos o recebimento concomitante da remuneração e do benefício. (Incluído pela Lei n. 12.470, de 2011)

O benefício de prestação continuada (BPC) substituiu a prestação denominada Renda Mensal Vitalícia, nos termos do art. 37 da Lei n. 8.742/93 e passou a ser requerido efe-tivamente a partir de 1º.1.1996. O critério de necessidade econômica ou da aferição da hipossuficiência é determina-do no § 3º onde de forma expressa a lei estabelece como critério objetivo para aferição, o grupo familiar não ter renda superior a ¼ do salário mínimo per capita. Desde o primeiro momento o critério de aferição da necessidade econômica foi questionado. Por intermédio da ADI n. 1.232/DF o Supre-mo Tribunal Federal manifestara-se no sentido de entender constitucional tal critério, já que a constituição delegara ao legislador infraconstitucional a competência para estabeleci-mento do tal critério.

Até a edição da Lei n. 12.470/2011 a legislação determi-nara a aplicação do conceito de “família previdenciária” (de-pendentes estabelecidos no art. 16 da Lei n. 8.213/91) como grupo no qual se iriam observar o critério econômico. Após a edição da Lei n. 12.470/2011 houve alteração do § 1º do art. 20 da LOAS que inseriu o conceito de “família assistencial”. Tal mudança em que pese traga um ampliação da composição familiar, se justifica na medida em que se mostra mais pró-ximo e compatível com a realidade da composição do grupo familiar brasileiro na atualidade. A Lei n. 12.435/2011 mo-dificou o conceito de família para efeitos de concessão de prestação assistencial. Para efeito de concessão de prestação de assistência social a família é a composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um de-les, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.

A ADI n. 1.232/DF decidira pela constitucionalidade da limitação objetiva dos beneficiários contida no § 3º do art. 20 da LOAS segundo o qual, na aferição da hipossuficiência financeira para fins de obtenção do benefício de prestação continuada, considera-se como incapaz de prover a própria subsistência apenas o integrante do grupo familiar cuja renda seja inferior a ¼ do salário mínimo. Tal Ação Direta de In-constitucionalidade (ADI) enquanto instrumento de contro-le concentrado de constitucionalidade, transitou em julgado no sentido de afirmar a constitucionalidade do critério obje-tivo, afastando a aplicação do critério subjetivo de que para aferição da renda poder-se-ia abater do total dos rendimen-tos do grupo familiar as despesa com medicamentos, saúde, habitação, educação e outros, projetando efeito gerais (erga omnes) e vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciá-rio e da Administração Pública Brasileira .

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47Parte I – Teoria Geral As Políticas Públicas, o Ativismo Judicial e a Assistência Social |

Não podemos deixar de manifestar nossa surpresa, e por que não dizer espanto, com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos Recursos Extraordinários 567.985/MT e 580.963/PR no qual o Plenário, por maioria, negou provi-mento aos recursos extraordinários interpostos pelo INSS em que se discutia o critério de cálculo utilizado com o intuito de aferir-se a renda mensal familiar per capita para fins de concessão do benefício assistencial ao idoso e à pessoa com deficiência. Nesta decisão o STF declarou a inconstituciona-lidade incidenter tantum do § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/93 e do parágrafo único do art. 34 da Lei n. 10.741/2003 (Esta-tuto do Idoso). Verifica-se claramente a adoção do critério da “inconstitucionalidade circunstancial”.

Na “inconstitucionalidade circunstancial” busca-se dian-te de uma lei formalmente constitucional, identificar que, circunstancialmente, a sua aplicação caracterizaria uma in-constitucionalidade, que poderíamos chamar de axiológica” (PEDRO LENZA: 2013).

Destacou o Ministro Gilmar Mendes ser possível a mu-dança da alteração do paradigma da decisão do STF, porque houve o esvaziamento da decisão tomada na ADI 1.232/DF. Ainda segundo o Min. Celso de Mello, conquanto excepcio-nal a medida, seria legítima a possibilidade de intervenção jurisdicional dos juízes e tribunais na conformação de deter-minadas políticas públicas, quando o próprio Estado deixas-se de adimplir suas obrigações constitucionais, sem que isso pudesse configurar transgressão ao postulado da separação de Poderes.

Ocorre que entendemos que no caso em testilha, não te-mos situação de inadimplemento de obrigações constitucio-nais, mas do estabelecimento de limites para acesso e verifi-cação da condição de necessitado economicamente (critério de hipossuficiência econômica) que cabe ao Legislativo fixar. Por sua vez, destacamos a opinião do Ministro Teori Zavascki no sentido de que a norma em comento teria sido declarada constitucional em controle concentrado e que juízo contrário dependeria da caracterização de pressuposto de inconstitu-cionalidade superveniente, inocorrente na espécie. Em que pese se tenha proposto modulação dos efeitos da decisão no sentido de que os preceitos impugnados tivessem validade até 31.12.2015 não se obteve o quórum de 2/3 para seu esta-belecimento. Sendo assim, temos uma situação que gera inse-gurança jurídica no tocante ao preenchimento ou não do cri-tério econômico para aferição da hipossuficiência econômica para concessão do benefício de prestação continuada. Como restou apreciada a questão, hoje temos um vazio legislativo sobre a aferição da hipossuficiência econômica do beneficiá-rio das prestações assistenciais. Insegurança jurídica que se espraia no campo de aplicação do próprio Poder Judiciário bem como no ambiente administrativo.

Neste aspecto reflito sobre a questão do ativismo judicial e da distinção do Estado Democrático e do Estado de Direito e efetivação das políticas públicas. Buscar-se-á refletir sobre o papel e os limites do Poder Judiciário (função judiciária) diante do fenômeno denominado ativismo judicial diante da recente decisão em matéria assistencial.

Por ativismo judicial devemos entender a forma como parte dos integrantes do Poder Judiciário entende a atual fun-ção jurisdicional. Não mais, como apenas aplicador e chan-celador do direito positivo, mas como parte integrante do núcleo de formação do direito. Destacamos que não há con-senso sequer com a terminologia do neologismo “ativismo judicial”, muito menos quanto aos seus limites.

Um dos problemas do ativismo judicial diz respeito ao estabelecimento do limite da atuação do Poder Judiciário, posto que mesmo entre os seus adeptos, há consenso que o fenômeno deve ser aceito com temperamentos, uma vez que a atividade judicial não é atividade exata, mecânica: “na medida em que lhes cabe atribuir sentido a expressões vagas, fluidas e indeterminadas, como dignidade da pessoa huma-na, direito de privacidade ou boa-fé objetiva, tornam-se, em muitas situações, coparticipante do processo de criação do direito” (BARROSO: 2012).

Ocorre que ser coparticipante da criação do direito não sig-nifica necessariamente, estabelecer e determinar os parâmetros das políticas públicas. A declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum do § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/93 e do parágrafo único do art. 34 da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) gera uma situação de insegurança jurídica no tocante ao preenchimento ou não do critério econômico para aferição da hipossuficiência econômica para concessão do benefício de prestação continuada. Como restou apreciada a questão, hoje temos um vazio legislativo sobre a aferição da hipossuficiência econômica do beneficiário das prestações assistenciais. Insegu-rança jurídica que se espraia no campo de aplicação do próprio Poder Judiciário bem como no ambiente administrativo.

As novas funções assumidas pelo Poder Judiciário de-correntes do ativismo judicial provoca uma fissura no siste-ma de repartição dos poderes provocando ou dando início a uma crise entre os poderes, ainda que potencial. Além de não permitir que se faça uma diferença quanto aos níveis de ren-da entre proteção assistencial e previdenciária. “A jurisdição constitucional opera na interface da legislação e aplicação do direito, direito e política. Aí reside um perigo não insignifi-cante de decisões políticas em uma roupagem com forma de justiça” (GRIMM: 2006).

Finalizo mencionando o fato de que, por conta da de-cisão do STF, o Legislativo há de agir para fazer aprovar lei que estabeleça com urgência o novo critério para aferição do requisito de hipossuficiência, capaz de autorizar a conces-são do benefício de prestação continuada. Permitindo que haja diferenciação entre os níveis de cobertura assistencial e previdenciária. Notadamente em um país em que boa parte da população economicamente ativa recebe entre 1 salário mínimo e na melhor projeção até 2 salários mínimos. O es-tabelecimento de tais níveis e limites é fundamental para de-sestimular a ideia do não trabalho ou a ideia de que é melhor viver sem trabalhar. Lembrando sempre que toda generali-zação é perigosa. Nesta medida a assistência social deve ser instrumento de desenvolvimento de capacidades de tal forma que os destinatários da assistência social possam reassumir o comando de seu destino após serem capacitados. Passando a ser arquiteto de seus próprios destinos.

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48 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Miguel Horvath Júnior|

bibLiogrAfiA

BARROSO, Luís. Ano do STF: judicialização, ativismo e legitimida-de democrática, Disponível em: <http://www.conjur.com.br>. Acesso: 3 de maio de 2012.

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma defesa das Regras do Jogo. 2. ed. Paz e terra: São Paulo. 1986.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

SEN, Amartya K. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Com-panhia das Letras, 2000.

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a assistência social e o Benefício de prestação continuada: uma realidade a ser aprimorada

Theodoro Vicente Agostinho(*)

Sérgio Henrique Salvador(**)

A temática ora em reflexão, de vital importância social, inclusive, trata-se de uma sólida e necessária baliza de toda uma estrutura coletiva.

Com efeito, falar da Assistência Social, é o mesmo que aferir vigas de todo um sistema jurídico, político, econômico e social por excelência.

E tal fato, ou melhor, esse modelo, foi o idealizado pelo Poder Constituinte Orginário, que elegeu a Assistência Social dentro de um planejamento eminentemente protetivo.

Por proteção social, o ideal maior de um Estado que pri-ma pela previsibilidade normativa de direitos sociais, inego-ciáveis, supremos e fundamentais.

Logo, para tanto, visando concretizar esse fim, nosso sis-tema normativo arquitetou um arcabouço protetivo.

A este prisma, de resguardo e tutela desses direitos, como valores e pilastras fundamentais de qualquer sociedade or-ganizada, o Professor Celso Barroso Leite, já apontava nesta direção, especificamente, no tocante a um almejado plano protetivo:

“(...) a proteção social tem como objetivo básico ga-rantir ao ser humano a capacidade de consumo, a satisfa-ção de suas necessidades essenciais, que não se esgotam na simples subsistência”.(1)

Também, Maria Helena Diniz qualifica este direito social regulado constitucionalmente como:

“Complexo de normas que têm por finalidade atin-gir o bem comum, auxiliando as pessoas físicas, que

dependem do produto de seu trabalho para garantir a subsistência própria e de sua família, a satisfazerem con-venientemente suas necessidades vitais e a terem acesso à propriedade privada”.(2)

Assim, evidente e salutar que uma sociedade civil poli-ticamente organizada, prescinde de ferramentas específicas para alcançar este bem-estar social, o que foi engendrado em nossa vigente Carta Constitucional.

No tempo, a proteção social dos indivíduos alcançou di-versos níveis, desde as melhorais das condições de trabalho, até chegarmos em um mínimo existencial.

Hodiernamente, toda a nossa ideia de proteção atual-mente bem orquestrada, tem por ponto de partida a tutela assistencial, ocorrida, por exemplo, como socorros públicos na Santa Casa da cidade de Santos.

Fortemente influenciado pelo sistema europeu de prote-ção a classe trabalhadora, a tutela previdenciária passa então a ser desenhada por leis específicas no país, contudo, sem se afastar também de ideários sociais.

Tendo como modelo o alemão, preconizado por Otto Von Bismark, nosso sistema previdenciário ganha um norte especí-fico, mas é com o modelo inglês, que um sistema específico de proteção coletiva ganha vez e voz, passando assim a condensar políticas de previdência e também de assistência social.

Aqui, o surgimento da Seguridade Social.

Esse sistema, inserido em nossa dimensão constitucio-nal, ganhando corpo jurídico próprio, orçamento específico, topografia jurídica singular e uma destacada e relevantíssima

(*) Mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP. Especialista em Direito Previdenciário pela EPD/SP. Membro Integrante da Comissão de Seguridade Social da OAB/SP. Coordenador e Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Previdenciário do Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Escritor. Professor do IBEP/SP. Advogado em São Paulo.

(**) Especialista em Direito Previdenciário pela EPD/SP e em Processo Civil pela PUC-SP. Ex-Presidente da Comissão de Assuntos Previ-denciários da 23ª Subseção da OAB/MG. Professor do IBEP/SP e do Curso de Direito da FEPI – Centro Universitário de Itajubá. Escritor. Sócio do Escritório Advocacia Especializada Trabalhista & Previdenciária. Escritor. Advogado em Minas Gerais.

(1) LEITE, Celso Barroso. Previdência Social: Atualidades e Tendências. 1. ed. São Paulo: LTr, 1973. p. 83.

(2) DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva.

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50 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Theodoro Vicente Agostinho e Sérgio Henrique Salvador|

valoração na sociedade, a abarcou de uma só vez, uma trí-plice estrutura, quer seja, Previdência, Saúde e Assistência Social, tal qual regulados no art. 194 da Lei das Leis.

Por sua vez, como não poderia deixar de ser, abalizada doutrina, também explicita com singular maestria este orga-nismo constitucional de proteção, senão vejamos conforme lição de Wagner Balera e Fábio Lopes Vilela Berbel respecti-vamente:

“O sistema securitário social consagra a proteção do indivíduo contra possíveis riscos que possam surgir, seja através da saúde, da assistência social e da previdência social”;(3)

“Desta forma, pode-se dizer, em princípio, que Siste-ma de Seguridade Social é o conjunto de regras e princí-pios estruturalmente alocados, com escopo de realizar a Seguridade Social que, a partir de uma visão meramente política, seria a proteção plena do indivíduo frente aos infortúnios da vida capazes de levá-lo à indigência, ou seja, a proteção social da infelicidade individual”.(4)

Evidente que qualquer ideário constitucional prescinde de mecanismos diversos que viabilizem sua concretude, para que não sejam somente conquistas abstratas, sem densidade factível alguma.

É que valores, princípios, conquistas, axiomas, enfim, o fundamentalmente eleito precisa ser protegido, edificado, evoluído e também exercido.

Nesse contexto, a evolução da Assistência Social, como participante viva do sistema de seguridade social e constitu-cional por excelência.

É bem verdade que as pretéritas Constituições não conferiram o atual e estruturado tratamento para esse ramo protetivo, sendo a vigente Carta Constitucional o ápice do modelo também assistencial de proteção.

Lado outro, um sistema normativo específico, como tam-bém uma estruturação política, são necessárias para essa al-mejada concretude constitucional.

E isso ocorreu no cenário pátrio.

Com efeito, a Lei n. 8.472/93 foi um grande e importante marco dentro da Assistência Social.

Passados 20 anos de sua edição, a questão que se coloca é: concretizamos esse ideário constitucional de proteção as-sistencial???

Pensamos que ainda não, mas temos um caminho traçado.

É que aludida legislação ainda continua em profunda e importante evolução social, sendo aprimorada, interpretada, complementada, enfim, tudo a bem perseguir seus ideais.

Dentro do seu contexto, sabido e consabido que traz consigo importantes aspectos de políticas assistenciais, con-

tudo, o que ora nos interessa é aferir a evolução do benefício assistencial trazido em seu bojo

Por primeiro, cabe registrar que certamente, faltaria algo na sua essência, se inexistisse a previsão de benefícios a seus assistidos.

Como sabido trata-se de um benefício naturalmente as-sistencial, vale dizer, sem qualquer conotação previdenciária, apesar de atualmente ser gerido pelo INSS, a autarquia gesto-ra do Regime Geral de Previdência.

A bem da verdade, deveria ser mantido e gerido por de-partamentos sociais dentro dos Municípios, mas, por ques-tões outras, essa alternativa ainda se vê impossível no País.

Por assim dizer e para que o indivíduo necessitado e que deva ser assistido por um programa estatal, acabou a Pre-vidência Social por realizar esta proteção direta, ainda que atipicamente.

O denominado BPC, ou seja benefício de proteção conti-nuada, trata-se de um autêntico auxílio governamental social, longe de ser enquadrado como uma prestação previdenciária, já que não é convertido em pensão por morte, tampouco é também adimplido como o abono, equivalente ao 13º salário.

Logo, evidente que não se trata de uma prestação previ-denciária, mas sim, de uma prestação governamental assis-tencial.

Especificamente, é entregue aqueles necessitados idosos, acima de 60 anos e sem renda alguma, ou, que a renda fami-liar não ultrapasse a ¼ do salário-mínimo per capita, como também aqueles que são incapacitados para todos os atos da vida civil, seja, laborativa e também da vida independente.

Esse o painel objetivo da legislação em comento, no to-cante a um auxílio financeiro e periódico.

Oportuno ressaltar que este benefício assistencial, de muita praticidade diária, carrega em seu contexto um ema-ranhado e eternas discussões jurídicas, capazes de invocar a intervenção do Excelso Tribunal Federal.

A bem da verdade, uma questão merece registro, foi a previsão legalista de que assim, o necessitado, sem renda alguma, seja pela idade ou por problemas outros de saúde, exercerá cidadania e terá resguardado a dignidade da pessoa humana, tal qual preservados no início das disposições cons-titucionais.

A questão que se coloca é: acertou a legislação nesse sentido?

Ora, o benefício assistencial é de apenas um salário mí-nimo.

Também, que pode ser revisado periodicamente e mais, impede que o necessitado aufira algum empréstimo bancário, como também, não há extensão para o abono anual, sem falar da ausência de sua conversão em pensão.

(3) BALERA, Wagner. Sistema de Seguridade Social. 5. ed. São Paulo: LTr, 2009.

(4) BERBEL, Fabio Lopes Vilela. Teoria Geral da Previdência Social. 1. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

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51Parte I – Teoria Geral A Assistência Social e o Benefício de Prestação Continuada: uma realidade a ser aprimorada|

Evidente que não podemos usar do modelo previdenciá-rio em seu contexto, mas, deveríamos de forma analógica, já que Previdência e Assistência, são co-ligadas, na Seguridade Social constitucional.

Assistir é atender, socorrer um necessitado e conferir--lhe, no mínimo, uma dignidade não só jurídica, mas social, existencial.

Ademais, a legislação sofreu mudanças, ainda necessi-tando outras diversas.

Questão interessante é a que pertine a renda, vale dizer, qual seria, essa, a líquida ou a bruta?

Se pensarmos em um contexto real e factível, o que chega nas mãos do trabalhador é a renda bruta e não a líquida.

E mais, o que se entende por grupo familiar?

Colocarmos esta realidade a todas as pessoais que re-sidem debaixo do mesmo teto, seria o juridicamente mais plausível?

Por exemplo, um casal de idosos, que vivam com al-guns sobrinhos, todos maiores, com renda, mas que estes idosos prescindem de tratamento médico e medicamentos específicos???

Os sobrinhos seriam os responsáveis ou dependentes dos mesmos?

Pensamos que não.

Logo, a legislação atualmente objetiva ilimitadamente uma situação que deveria ser limitada, mas subjetivamente.

Um simples estudo social da Assistência Social da re-gião, Prefeitura, enfim, daria mais certeza e equilíbrio a esta situação.

Lado outro, o parâmetro objetivo de ¼ se mostra como taxativo ou objetivo?

As Cortes judiciárias já um bom tempo entendem que não, senão vejamos:

“JEFs. TNU. Previdenciário. Benefício assistencial. LOAS. Re-quisitos. Situação de miserabilidade. Renda mensal per capita. Critério objetivo. Outros meios de comprovação. Possibilidade. O critério objetivo de aferição da renda mensal previsto no § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993 (que determina a existência ou não da miserabilidade a partir da renda per capita) não é absoluto e não exclui a possibilidade de o julgador, ao analisar o caso concreto, lançar mão de outros elementos probatórios que confirmem ou não a condição de miserabilidade do

solicitante e de sua família. Com esta decisão, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU) estabeleceu um parâmetro para que os elementos concretos do processo sejam reexaminados pela Turma Recursal do Amazonas a partir desse entendimento. No caso em análise, a segurada procurou a TNU depois que a Turma Recursal do Amazonas negou o benefício assistencial à deficiente, diante da ausência do requisito objetivo do benefício pleiteado (a miserabilidade), considerando que a renda per capita apurada no decorrer do processo foi superior a 1/4 do salário mínimo. Entretanto, na Turma Nacional, a relatora do processo, Juíza Fed. MARISA CUCIO, deu um rumo diferente à história. Para ela, a renda per capita da parte autora ser ou não superior a 1/4 do salário mínimo não é determinante. “É entendimento esposado pela TNU e pelo STJ que, no caso concreto, o magistrado poderá se valer de outros meios para aferição da miserabilidade da parte autora, não sendo, desta feita um critério absoluto”, destacou. (Proc. 0001332-54.2011.4.01.3200)”.(5)

E outras diversas discussões não param por aqui.

Por exemplo, se um membro da família já recebe um be-nefício assistencial, por qual motivo, é computado com renda a excluir a participação do outro, na mesma pretensão?

Também, quando algum do grupo já aufere uma presta-ção previdenciária, mas no mínimo legal, por qual razão tal percebimento é óbice ao pretendente do benefício assisten-cial, se o valor equivalente ao mínimo legal, não representa em nada, a buscada dignidade humana???

Contudo, não devemos esquecer sua grande importân-cia em singularmente estruturar um idéario constitucional assistencial, visando a tutelar aqueles sujeitos que devem ser abrigados.

Assim, como ocorreu com o advento do Estatuto do Ido-so, outros diplomas legais ainda virão e afetarão diretamente as pilastras da assistência social, de modo a provocar uma necessária e nova interpretação social, para que necessitados não sejam, excluídos, pela restrição da lei.

Neste sentido, com o passar dos anos, a assistência social caminhou para o crescimento, de maneira a abrigar, refugiar seus destinatários, ao invés de limitar o acesso.

Porém, longe estamos deste norte, mas, devemos reco-nhecer que o caminho existe e precisará sempre ser percor-rido, para atingir o mais próximo do desejável, já que sem o contexto da proteção social, nenhum sistema estatal subsiste e se justifica.

(5) http://www.ibdp.org.br/noticias2.asp?id=1266

Page 52: Benefício Assistencial: Temas Polêmicos

a importância da assistência social na constituição federal como instrumento social

Wagner Balera(*)

1. perspectivA constitucionAL

O percurso histórico da assistência social, a seu modo, permitiu que fossem geradas, naturalmente, as bases da Ordem Social Constitucional no que concerne ao tema em estudo.

A convocação da Assembleia Nacional Constituinte se concretizava com a Mensagem encaminhada ao Congresso Nacional, em 1985.

Decisão política fundamental definira que os represen-tantes do povo fossem eleitos para elaborar a Constituição e, cumprida essa tarefa, passassem a operar como instância legislativa ordinária.(1)

É bem verdade que, previamente, o Presidente JOSÉ SARNEY criara a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, presidida por AFONSO ARINOS, que elaborou o chamado Anteprojeto Constitucional.(2)

Os membros do Congresso Constituinte pouco se va-leram dessa peça, mas o Título IV do Anteprojeto erigiu as bases da Ordem Social que, a seu tempo, seria esmiuçada nos trabalhos das comissões temáticas, notadamente aque-la que se voltou para os temas da seguridade social e da família.

O Anteprojeto cuida de maneira ainda bastante modesta do tema da assistência social. Mas, ao incorporar o conceito de seguridade social cria os fundamentos que permitiriam o futuro desenvolvimento do tema em nível normativo.

Assim dispunha o comando:

Art. 347 – É garantida, na forma estabelecida em lei, seguridade social, mediante planos de seguro social, com a contribuição da União e, conforme os casos, das empresas e dos segurados:

....................................................................................

IV – para os serviços sociais, segundo as necessidades da pessoa e da família;

Definia, ainda de modo genérico, pois, o serviço social e os seus principais destinatários: a pessoa e a família.

Em outro preceito eram fincadas as linhas gerais do que viriam a ser os planos de assistência social.

Assim comandava o art. 371:

DAS TUTELAS ESPECIAIS

Art. 371 – É assegurada a assistência à maternidade, à infância, à adolescência, aos idosos e aos deficientes.

Art., 372 – Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios pro-mover a criação de uma rede nacional de assistência materno--infantil, de uma rede nacional de creches e de infraestrutura de apoio à família, sem, prejuízo do disposto no inciso XII, do art. 343.

Art. 373 – Os menores, particularmente os órfãos e os aban-donados, sem prejuízo da responsabilidade civil e penal dos pais que os abandonarem, terão direito a especial proteção da sociedade e do Estado, contra todas as formas de discrimi-nação e opressão, com total amparo, alimentação, educação e saúde.

Art. 374 – Os adolescentes gozam de proteção especial para a efetivação dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, tais como acesso ao ensino, à cultura e ao trabalho; formação e pro-moção profissional, educação física e desporto; aproveitamento do tempo livre.

Art. 375 – Os idosos têm direito a segurança econômica e a condições de moradia e convívio familiar ou comunitário que evitem e superem o isolamento ou a marginalização social.

Art. 376 – É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica, particularmente mediante:

(*) Professor Titular da PUC-SP. Autor de inúmeras obras na área.

(1) Cf. Emenda Constitucional n. 26, de 27.11.1985, publicada no Diário Oficial de 28 de novembro de 1985.

(2) Publicado, em Suplemento Especial, no Diário Oficial da União do dia 26 de setembro de 1986. Vide o teor em <http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/AfonsoArinos.pdf>.

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53Parte I – Teoria Geral A Importância da Assistência Social na Constituição Federal como Instrumento Social |

I – educação especial e gratuita;

II – assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do País;

III – proibição de discriminação, inclusive quanto à admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salários;

IV – possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos.

Verifica-se, destarte, que as bases essenciais dos traba-lhos a serem desenvolvidos pela assistência social, assim como seus destinatários específicos, já vinham delineados desde logo pelo primeiro esboço da Constituição que se esta-va a preparar naquele momento histórico.

Instalada a Assembleia Nacional Constituinte, nos ter-mos da Emenda Constitucional n. 26, no dia 1º de fevereiro de 1987, os respectivos trabalhos foram organizados pelo cri-tério temático.

No tema que nos ocupa, o assunto foi tratado pela Co-missão da Ordem Social que foi dirigida pelo então Senador Almir Gabriel.

A matéria da assistência social, remetida para a Comissão de Sistematização que, como instância colegial prévia, prepa-rava o projeto a ser apreciado pelo Plenário da Constituinte, já vinha catalogada formalmente no bojo da Seguridade So-cial. Eis os termos do comando

Art. 333 – A seguridade social compreende um conjunto inte-grado de ações, voltado para assegurar os direitos sociais rela-tivos à saúde, previdência e assistência social.

O constituinte foi técnico e preciso, como se vê. Bem definiu como direitos sociais constitucionais os três compo-nentes da seguridade social. Bem ordenou em sistema essa tríplice realidade.

Já se esboçava, por conseguinte, a base da Ordem Social constitucional.

O Plenário, aos 22 de setembro de 1988, aprova o texto definitivo da Lei Magna, e a Constituição Cidadã, como a designaria o Presidente da Constituinte, Deputado Ulisses Guimarães é promulgada aos 5 de outubro de 1988.

O preceituário relativo ao tema em estudo produz, de pronto, duas inovações de vulto: qualifica a assistência social como direito social e, além disso, confere à inclusão social o status de programa constitucional.

A modelação normativa da assistência social, como se percebeu desde os trabalhos constituintes, firmava o com-promisso básico com a inclusão social.

Tratava-se, pois, de identificar o estado de necessidade presente na comunidade dos necessitados (ou desampara-dos, consoante o termo utilizado pelo art. 6º da Lei Suprema)

e de programar as medidas a serem utilizadas para que tal estado de coisas fosse transformado em definitivo.

É bem por essa razão que a Lei das Leis ousou lançar, dentre os objetivos da República, a tarefa de erradicar a pobreza e a marginalização (art. 3º, III), algo que não demanda tão somente a criação de programas sociais.

A seguridade social há de tomar a dianteira, claro, mas a tarefa deve ser assumida por toda a sociedade.

A seguridade social capitaneará, decerto, as iniciativas em favor dos pobres e dos marginalizados, que terão sucesso se forem complementadas por outras tantas iniciativas lide-radas por entidades beneficentes de assistência social.

A missão da seguridade social, como a define ALMANSA PASTOR, é suficientemente ampla. É ela:

“El instrumento estatal específico protector de nece-sidades sociales, individuales y colectivas, a cuya pro-tección preventiva, reparadora y recuperadora, tienen derecho los individuos, en la extensión, límites y condi-ciones que las normas dispongan, según su organización financiera.”(3)

As tarefas assistenciais da seguridade social não consis-tem, porém, única e exclusivamente no socorro dos pobres. Mais exigente é a diretriz constitucional: erradicar a pobreza e a marginalização.

Portanto, a coletividade deverá assumir a inclusão como proposta e como atitude diante do mal gigante da exclusão social.

Trata-se de verdadeira convocação de todos para a imen-sa tarefa social que o Brasil está devendo a milhões e milhões de pessoas.

Eis a razão pela qual se pode afirmar, com PERSIANI, o efeito irradiador da seguridade social como instrumento de ação governamental. Diz o mestre que esse ideário é capaz de

“... influenzarre non solo la previdenza sociale, ma in genere ogni attivitá pubblica a scopo sociale.”(4)

A estratégia protetiva da seguridade social está baseada no superior princípio da universalidade da cobertura e do atendimento (art. 194, parágrafo único, I, da Constituição) e, por essa razão, todo o esforço do sistema da seguridade social deve consistir na subsunção, à sua rede de proteção, das mais diversas formas de agir que a comunidade, ao longo da história, concretiza em favor dos necessitados.

A proteção social, em sua modalidade assistencial, ad-quire significado mais específico, no interior desse universo normativo quando, ao identificar a situação de necessidade, o aparelho protetor é capaz, de pronto, de movimentar seu

(3) PASTOR, José Manuel Almansa. Derecho de La Seguridad Social, cit., p. 81.

(4) PERSIANI, Mattia. Lezioni di Diritto della Previdenza Sociale. Padova: CEDAM, 1981. p. 35.

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54 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Wagner Balera|

ferramental jurídico em favor do necessitado, sobretudo por intermédio das prestações.

É difícil, desde logo, identificar as inumeráveis situações de necessidade que demandarão o agir da assistência social.

A perspectiva econômica, para só ficarmos em um as-pecto, se debate em uma discussão sem fim a respeito da identificação da chamada linha da pobreza extrema. Perfi-lam-se diversos pontos de vista sem que se chegue a conclu-são taxativa.(5)

Força reconhecer que, sob a perspectiva jurídica, o con-ceito de pobreza extrema só pode ser obtido a partir do crité-rio jurídico supremo: o da norma jurídica.(6)

Indagar a respeito da comunidade protegida, na seara da seguridade social, é buscar resposta para a qualidade jurídica dos fatos da pobreza e da marginalização que, de fenômenos multifacetários que são por natureza, devem merecer quali-ficação normativa para que a respectiva tipicidade permita a subsunção daqueles que se encontram em situação de neces-sidade num dos programas de proteção social engendrados pela comunidade protetora.

A investigação sobre as causas da pobreza e da margi-nalização é de ser efetuada por diversos setores do conheci-mento.

Entretanto, o escopo da seguridade social não consiste na abordagem das causas dessa grave questão social. Importa, sobretudo, atuar sobre as consequências que delas derivam: as situações de necessidade configuradas pelo desamparo e pela exclusão.

Na decisiva atitude que, em sede de reforma constitucio-nal, o Poder Legislativo houve por bem concretizar, está con-figurado o pressuposto para que os programas assistenciais venham a dar resultado.

Com efeito, a criação do Fundo de Combate e Erradica-ção da Pobreza pela Emenda Constitucional n. 31, de 2000, conferiu a base financeira indispensável a dar suporte aos programas assistenciais de inclusão social.(7)

Doravante, as prestações de seguridade social em favor da população pobre podem contar com certa garantia finan-ceira apta a permitir, mediante atuação concertada e racional dos poderes públicos, que haja continuidade nos programas.

Os planos e programas assistenciais, força reconhecer, situam-se na realidade atual como medidas emergenciais

– talvez tenha sido essa a razão que inspirou a perspectiva provisória de que se dotou inicialmente o Fundo de Com-bate acima referido – aptas a pôr remédio às contingências da pobreza.

A questão estrutural, no entanto, depende de medidas e perspectivas mais amplas, sobretudo do processo econômico do desenvolvimento.

Os preceitos constitucionais que cuidam da matéria, ao definirem o perfil da assistência social, selecionam as diver-sas frentes de trabalho nas quais o setor irá atuar.

Assim se acha redigido o art. 203, da Constituição:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela neces-sitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescên-cia e à velhice;

II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de de-ficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la pro-vida por sua família, conforme dispuser a lei.

Depreende-se, para logo, que o cardápio enunciado se-gue, em suas linhas gerais, a proposta de inclusão social de que já tratara o projeto da Constituição.

O constituinte já define e identifica o universo protetivo da assistência social.

A fenomenologia da pobreza e da marginalização, a partir de então, aponta os sujeitos que por ela são atingidos e, por conseguinte, aqueles que deverão ser os destinatários do agir da assistência social.

A questão social se mostra, nesse particular, com bem delineados contornos.

O mérito da Constituição, nesse particular, é indiscutível.

Não apenas identificou os riscos – situemos a esfera da assistência social como igualmente apta a enfrentar riscos so-ciais, na esteira aliás da tradição inaugurada pelo Plano Beve-ridge que, dentre os males gigantes a serem combatidos pela

(5) Só para citar três recentes definidores. Os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio qualificam como extremamente pobres os que percebem o equivalente a U$ 1,25 per capita dia. O programa Bolsa-Família, carro-chefe das iniciativas sociais do Governo brasileiro define o valor de R$ 70,00 reais para a renda familiar per capita mensal e o programa do benefício LOAS situa a renda familiar per capita em até um quarto do salário-mínimo.

(6) Afirma Kelsen que: “A ciência jurídica procura apreender o seu objeto “juridicamente”, isto é, do ponto de vista do Direito. Apreender algo juridicamente não pode porém significar senão apreender algo como Direito, o que quer dizer: como uma norma jurídica, ou conteúdo de uma norma jurídica, como determinado através de uma norma jurídica” (Teoria Pura do Direito. 3. ed. Tradução de João Baptista Machado, Armênio Amado – Editor, Sucessor, 1974, p. 109).

(7) As Emendas Constitucionais n. 42, de 2003, e 67, de 2010, prorrogaram por prazo indeterminado a existência de tal fundo social.

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55Parte I – Teoria Geral A Importância da Assistência Social na Constituição Federal como Instrumento Social |

seguridade social, situa a sujidade, como trata de engendrar medidas e programas que associam o combate à pobreza ao fomento do desenvolvimento.

Importa verificar, agora, dentro da perspectiva histórica, se os vinte anos de vigência da Lei Orgânica da Assistência Social, bem e adequadamente concretizaram o ideário trace-jado pelo constituinte.

2. perspectivA LegAL

Com efeito, o deputado Raimundo Bezerra apresenta o Projeto de Lei n. 3.099/89 que, posteriormente, em 17 de setembro de 1990, fora integralmente vetado pelo então pre-sidente Fernando Collor de Mello, sob a afirmação de que a nação não dispunha de recursos para o pagamento dos bene-fícios previstos, alegando que seus princípios são contrários a uma Assistência Social responsável.

A partir da apresentação do Projeto de Lei n. 3.099, de 1989, se iniciava a configuração do marco legal da assistência social brasileira.

Numa brutal afronta à Constituição, o Governo COL-LOR vetou integralmente a lei então aprovada, sob a alegação de falta de recursos financeiros para o pagamento das presta-ções assistenciais então criadas.

Nova iniciativa foi tomada com a formal apresentação do Projeto de Lei n. 4.100, de 1993, pelo Poder Executivo.

A articulação política intensa, de bastidores, permitiu que o projeto já chegasse com as discussões bem avançadas ao Parlamento.

Por essa razão, o processo legislativo, sob regime de ur-gência, tramitou com celeridade e culminou, em pouco mais de dois meses, com a promulgação da Lei.

Corria o mês de dezembro de 1993.

Nesse mesmo ano o Presidente ITAMAR FRANCO toma-ra importante iniciativa ao constituir o Conselho Nacional de Segurança Alimentar.(8)

Era convocada, no ano de 1994, a I Conferência Nacio-nal de Segurança Alimentar que, adequadamente, fixou três objetivos:

A) ampliar as condições de acesso à alimentação e reduzir o seu peso no orçamento familiar;

B) assegurar saúde, nutrição e alimentação a grupos populacionais determinados;

C) assegurar a qualidade biológica, sanitária, nutri-cional e tecnológica dos alimentos e seu aproveitamento, estimulando práticas alimentares e estilos de vida sau-dáveis.

No entanto, num golpe brutal nesse ainda embrionário processo de construção do modelo assistencial brasileiro – que, naturalmente, tinha que começar pelo problema nú-mero um, do combate à fome, então agitado como exigên-cia do impressionante movimento liderado pelo sociólogo HERBERT DE SOUZA – o presidente CARDOSO extinguiu o CONSEA e criou um programa totalmente à revelia da LOAS, o Comunidade Solidária.

Em verdadeiro revival do assistencialismo e do primeiro--damismo(9), o Comunidade Solidária recebia recursos sem qualquer controle social, e configurava uma política descabi-da e desordenada.(10)

O período de mandato do presidente CARDOSO coinci-diu com o da realização da I Conferência Nacional da Assis-tência Social, em 1995.

Mas, a essa mais alta instância democrática de gestão do sistema de seguridade, em sua vertente assistencial, o Poder Executivo não deu ouvidos e não tratou de prover o setor dos recursos indispensáveis a fazer cumprir os objetivos da LOAS.

É bem verdade que a criação do Conselho Nacional de Assistência Social, o CNAS, fruto da reordenação do antigo Conselho Nacional do Serviço Social, representou o primeiro passo na caminhada histórica da efetivação da LOAS.

Com efeito, já na concretização do objetivo constitucio-nal do caráter democrático e descentralizado da seguridade social (Constituição, art. 194, parágrafo único, inciso VII) su-punha-se que seriam erigidas as instâncias de deliberação ge-nérica – as Conferências – e específicas – os Conselhos – aptos a formular as políticas e a controlar as ações do setor, como também acertadamente determina o art. 204 da Lei Magna.(11)

(8) Decreto n. 807, de 1993

(9) O primeiro-damismo tivera início com a criação da LBA – Legião Brasileira de Assistência, um dos bastiões da assistência social até o advento da Constituição de 1988. A LBA seria presidida pela primeira-dama do país, DARCY SARMANHO VARGAS e esse modelo fez es-cola... A primeira-dama é a “mãe” dos pobres e dos marginalizados. Como bem o qualifica ALDAISA SPOSATI: “O “primeiro-damismo” é a institucionalização do assistencialismo na figura da mulher do governante(...) In: Núcleo de Seguridade e Assistência Social da PUC-SP. Texto “ Assistência x Assistencialismo x Assistência Social. junho/1994.

(10) RAICHELIS, R. Esfera Pública e Conselhos de Assistência Social – caminhos da construção democrática. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

(11) Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

I) descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;

II) participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.

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2.1. o benefício de prestação continuada

A efetiva implantação da LOAS irá ocorrer, de modo con-creto, com a disciplina formal da primeira das respectivas prestações, o Benefício de Prestação Continuada, por inter-médio do Decreto n. 1.744, de dezembro de 1995.(12)

Pode-se dizer, até mesmo, que será esse o marco ani-versário da LOAS. Até então, as medidas concretas diziam mais respeito à estruturação formal da estrutura – ela mes-ma sujeita a percalços e a vacilações – do que ao efetivo cumprimento dos deveres constitucionais do sistema de assistência social.

Dispõe, com efeito, o art. 203, V, da Constituição de 1988 que incumbe à assistência social proporcionar

V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la pro-vida por sua família, conforme dispuser a lei.

Eis, portanto, o primeiro dos benefícios da assistência social constitucional, o assim chamado Beneficio LOAS.

A primeira polêmica suscitada pelo benefício foi o da respectiva limitação, nos termos do art. 20, § 3º, da LOAS, que somente considerava elegível ao benefício aqueles cuja renda mensal bruta familiar, dividida pelo número de seus integrantes fosse inferior a um quarto do salário mínimo.(13)

Portanto, a primeira experiência da LOAS foi bem su-cedida.

Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento So-cial e Combate à Fome eram concedidos, em março de 2012 (último registro disponível), três milhões e seiscentos mil be-nefícios, sendo 1,9 milhões as pessoas com deficiência e 1,7 milhões os idosos contemplados pela prestação.(14)

2.2. os benefícios eventuais

A Resolução n. 39, de 2010, do Conselho Nacional de Assistência Social demonstra, documentalmente, que não foram dados nem mesmo os primeiros passos para a concre-tização desse direito dos beneficiários.

A LOAS definira, em seu art. 22 que

Art. 22. Entendem-se por benefícios eventuais aqueles que vi-sam ao pagamento de auxílio por natalidade ou morte às famí-lias cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.

§ 1º A concessão e o valor dos benefícios de que trata este arti-go serão regulamentados pelos Conselhos de Assistência Social dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, mediante critérios e prazos definidos pelo Conselho Nacional de Assis-tência Social (CNAS).

§ 2º Poderão ser estabelecidos outros benefícios eventuais para atender necessidades advindas de situações de vulnerabilidade temporária, com prioridade para a criança, a família, o idoso, a pessoa portadora de deficiência, a gestante, a nutriz e nos casos de calamidade pública.

§ 3º O Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), ouvi-das as respectivas representações de Estados e Municípios dele participantes, poderá propor, na medida das disponibilidades orçamentárias das três esferas de governo, a instituição de be-nefícios subsidiários no valor de até 25% (vinte e cinco por cento) do salário mínimo para cada criança de até 6 (seis) anos de idade, nos termos da renda mensal familiar estabelecida no caput.

Tratava-se, concretamente, de conceder prestações pecu-niárias nas situações de natalidade e de morte aos beneficiá-rios da assistência social.

Ou, dito por outras palavras, de conceder aquilo que a previdência social antigamente outorgava sob as denomina-ções de auxílio-natalidade e auxílio-funeral aos beneficiários do RGPS.

Conquanto tenham sido objeto de regulamentação, por força do estabelecido no Decreto n. 6.307, de 2007, tais pres-tações jamais foram concedidas.

A Lei n. 12. 435, de 2011, tornando ainda mais vaga a configuração jurídica das prestações – o que dizer da expres-são “integram organicamente as garantias do SUAS”? – assim dispõe sobre o tema:

Art. 22. Entendem-se por benefícios eventuais as provisões suplementares e provisórias que integram organicamente as garantias do Suas e são prestadas aos cidadãos e às famílias em virtude de nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade pública.

§ 1º A concessão e o valor dos benefícios de que trata este artigo serão definidos pelos Estados, Distrito Federal e Municípios e previstos nas respectivas leis orçamentárias anuais, com base em critérios e prazos definidos pelos respectivos Conselhos de Assistência Social.

§ 2º O CNAS, ouvidas as respectivas representações de Estados e Municípios dele participantes, poderá propor, na medida das disponibilidades orçamentárias das 3 (três) esferas de governo, a instituição de benefícios subsidiários no valor de até 25%

(12) O atual Regulamento é o Decreto n. 6.214, de 2007.

(13) Na RECLAMAÇÃO 4.374, de que foi relator o Min. GILMAR MENDES, o Pleno do Supremo Tribunal Federal, em decisão de 18 de abril de 2013, revendo posição anterior, manteve o decidido pela linha jurisdicional especial e considerou inconstitucional a referida res-trição. <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4439489>.

(14) Idosos. <http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/beneficiosassistenciais/bpc>.

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57Parte I – Teoria Geral A Importância da Assistência Social na Constituição Federal como Instrumento Social |

(vinte e cinco por cento) do salário-mínimo para cada criança de até 6 (seis) anos de idade.

Qual é o grave perigo da disciplina estampada na Lei n. 12.435?

É precisamente, o jargão estampado no parágrafo por último transcrito: “na medida das disponibilidades orçamentá-rias das 3 (três) esferas de governo”.

Vale lembrar que, nos termos da Lei Orgânica da Previ-dência Social, a assistência social seria prestada desde que houvesse recursos financeiros.

Trata-se, evidentemente, de desqualificação de direito constitucional social.

Se houver dinheiro, há direito à prestação. Se não houver dinheiro, paciência.

Os romanos criaram, a seu tempo, uma estranhável ca-tegoria jurídica: o quase-direito. É, pouco mais ou menos, disso que se trata.

2.3. os programas de Assistência social

A LOAS estabeleceu o respectivo campo de ação em três frentes de trabalho: a das prestações pecuniárias (que com-preendem o BPC e os benefícios eventuais) a dos programas de assistência social e, finalmente, a dos projetos de enfren-tamento da pobreza.

Assim definira a Lei os programas de assistência social:

Art. 24. Os programas de assistência social compreendem ações integradas e complementares com objetivos, tempo e área de abrangência definidos para qualificar, incentivar e melhorar os benefícios e os serviços assistenciais.

§ 1º Os programas de que trata este artigo serão definidos pe-los respectivos Conselhos de Assistência Social, obedecidos os objetivos e princípios que regem esta lei, com prioridade para a inserção profissional e social.

A parte final do preceito permite que se afirme que so-mente um dos programas cumpre, integralmente, esse pro-pósito. Trata-se do programa nacional de inclusão de jovens.

Criado pela Lei n. 11.129, de 2005, modificada pela Lei n. 11.692, de 2008, o Projovem é, de fato, uma ferramenta de inclusão social. Seu fundamento constitucional é o inciso III do art. 203, da Carta Magna.

Sendo projeto estratégico de inclusão social, incumbe à assistência social promover a inclusão.

Força reconhecer, porém, que os dois programas mais abrangentes e conhecidos – o Bolsa-Família e o Brasil sem Miséria –, estão desenganadamente revestidos do vetusto perfil assistencialista que vem caracterizando, desde sempre, o agir da assistência social no Brasil.

2.4. os projetos de enfrentamento da pobreza

O último dos campos de ação preordenados pela LOAS é o dos projetos de enfrentamento da pobreza.

Assim se acha grafado o comando normativo:

Art. 25. Os projetos de enfrentamento da pobreza compreen-dem a instituição de investimento econômico-social nos gru-pos populares, buscando subsidiar, financeira e tecnicamente, iniciativas que lhes garantam meios, capacidade produtiva e de gestão para melhoria das condições gerais de subsistência, ele-vação do padrão da qualidade de vida, a preservação do meio--ambiente e sua organização social.

Art. 26. O incentivo a projetos de enfrentamento da pobreza assentar-se-á em mecanismos de articulação e de participação de diferentes áreas governamentais e em sistema de coopera-ção entre organismos governamentais, não governamentais e da sociedade civil.

É difuso o teor e o espectro de tais projetos.

Sua difusão tem se dado, sobretudo, a partir de iniciati-vas pontuais às quais falta certa organicidade.

Os projetos que, mais concretamente, repercutem no meio social são aqueles que buscam a inclusão de grupos bem definidos: as crianças, de que é exemplo o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil; os idosos, cuja atenção está sob os cuidados da Rede Nacional de Proteção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, integrada ao SUS e ao SUAS e as pessoas com deficiência, do último dos campos de ação preordenados pela LOAS é o dos projetos de enfrentamento da pobreza.

Verifica-se que, também sob esse aspecto, o cardápio das ações sociais em perspectiva assistencial obedece, em linhas gerais, ao primeiro desenho do tema, tal como configurado nos debates constituintes e concretizado no projeto da Cons-tituição.

3. concLusão

Forçoso reconhecer que, nestes vinte anos de promulga-ção da LOAS, são significativos os avanços nos marcos nor-mativos da assistência social e mesmo notáveis os esforços em prol da consolidação dos programas que esse setor da seguridade social está chamado a concretizar.

Com a formal fixação, por meio da Resolução n. 145, de 2004, do Conselho Nacional de Assistência Social, de uma Política Nacional de Assistência Social, já se impôs ao Estado e aos governantes certo padrão conceitual de atuação, para além das meras manipulações politiqueiras e assistencialistas que, desgraçadamente, sempre afetaram o bom desempenho do setor.

Ademais, a concretização das duas Normas Operacio-nais Básicas (a primeira fora aprovada pela Resolução n. 130, de julho de 2005 e a segunda pela Resolução n. 33, de dezembro de 2012, ambas do CNAS) revela que o setor caminha, celeremente, para a concretização do respectivo perfil institucional.

Tomemos como dado conceitual a noção de experiência jurídica cunhada por REALE, para quem:

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“É inerente, pois, à noção de experiência jurídica o conceito de ordenação, de medida, de regra ou norma, no duplo apontado aspecto, de salvaguarda do particular enquanto concomitante salvaguarda do todo.(15)

À luz desse critério, pode-se dizer que a LOAS como dado de experiência concreta da normatividade, além de ter

cuidado do particular – concreta efetividade dos benefícios, serviços, programas e projetos – também cuidou de salva-guardar o todo, mantendo o setor devidamente integrado ao sistema da seguridade social.

É, a seu modo, um marco histórico cujos vinte anos merecem registro e reflexão.

(15) REALE, Miguel. O direito como experiência. São Paulo: Saraiva, 1968. p. 119.

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parte iiRequisitos para Concessão e Aspectos Processuais

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processo administrativo para fins de concessão de Benefício assistencial

Alexandre Triches(*)

1. introdução e JustificAtivA

O presente artigo consiste, em síntese, numa abordagem acerca do processo administrativo para fins de análise do direito a percepção de Benefício de Prestação Continuada, previsto no art. 20 da Lei n. 8.742/93 – denominado de Be-nefício Assistencial. Trata-se de benefício oriundo da regula-mentação do art. 203 da Constituição Federal, que prevê o subsistema Assistência Social, espécie do gênero Sistema de Seguridade Social.

Pretende-se com o presente artigo analisar a referida mo-dalidade de processo, definindo natureza jurídica, regime ju-rídico e a dinâmica processual.

A modalidade processual que será abordada é conceitua-da como um conjunto de atos administrativos, praticados no âmbito da autarquia Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, que objetivam verificar e instrumentalizar o ato de concessão ou não do Benefício Assistencial.

Justifica-se a eleição do temadiante da relevância do processo administrativo, em especial diante do fato de que o público eleito para a concessão do benefício pertence a im-portante extrato populacional, composto de idosos e pessoas em condições de vulnerabilidade.

2. do regime Jurídico do benefício AssistenciAL previsto no Art. 20 dA Lei n. 8.742/93

A Constituição Federal de 1988 garante a assistência por meio de benefícios e serviços em seu art. 203, incisos I a V, sendo que o inciso V prevê o pagamento do benefício assistencial. Regulamentando a Constituição Federal a Lei Orgânica da Assistência Social regula a concessão de bene-fícios eventuais em seu art. 22: “as provisões suplementares e provisórias que integram organicamente as garantias do SUAS e são prestadas aos cidadãos e às famílias em virtude

de nascimento, morte, situações de vulnerabilidade tempo-rária e de calamidade pública”.

Os benefícios eventuais não se confundem com o Bene-fícios de Prestação Continuada previsto no art. 20 da Lei n. 8.742/93: “O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que compro-vem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família”.

Trata-se de direito da pessoa com incapacidade de lon-go prazo para a vida e ao idoso com 65 anos ou mais, e que não possuam meios de prover a própria manutenção ou tê-la provida por sua família.

O conceito de pobreza referido deve ser auferido com base na família do postulante ao benefício, conceito este tra-zido pelo § 1º do art. 20 da Lei n. 8.742/93: aquela composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutela-dos, desde que vivam sob o mesmo teto. Verifica-se que o critério adotado é o da composição familiar.

É bastante discutível o critério legal da composição fami-liar para preenchimento do requisito socioeconômico, uma vez que familiares que não possuem relação com o postulante do benefício são considerados pertencentes ao grupo familiar muitas vezes de forma indevida.

A interpretação que deve ser dada ao §1 do art. 20 da Lei n. 8.742/93 é aquela que se restringe a analisar o caso con-creto, observando o art. 16 da Lei n. 8.213/91, que trata dos dependentes previdenciários.

A respeito do conceito de deficiente, prevê o § 2º do art. 20 da Lei n. 8.742/91: considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em intera-ção com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com

(*) Advogado. Presidente da Comissão de Seguridade Social da OAB/RS. Mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP.

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62 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Alexandre Triches|

as demais pessoas. Neste ponto o legislador permitiu subs-tanciais modificações na metodologia a ser utilizada nas ava-liações médicas e sociais.

O benefício assistencial não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória, conforme pre-coniza o § 4º, do art. 20 da Lei n. 8.742/93, bem como a da remuneração advinda de contrato de aprendizagem no caso da pessoa com deficiência.

A proibição de cumulação não atende aos princípios cons-titucionais vinculados ao benefício, uma vez que o benefício assistencial possui requisitos objetivos delimitados na legisla-ção e somente através da avaliação social poderá ser verificado o enquadramento legal. Caso possua o Requerente outro bene-fício, e este não esteja sendo suficiente para seu sustento deve lhe ser facultado comprovar o direito ao benefício.

Quanto à cessação do pagamento, ela poderá ocorrer em três momentos: 1 – quando superadas as condições que de-ram ensejo à concessão; 2 – no caso de morte do beneficiário; e, 3 – quando se constatar irregularidade na sua concessão ou utilização. Além disso o benefício deverá ser revisto a cada dois anos, para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem.

Quanto ao requisito da incapacidade de provimento da manutenção da pessoa com deficiência ou idosa, os critérios estão definidos no § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/91: consi-derar-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com de-ficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

Entende-se que o critério objetivo de renda definido pelo legislador dificulta o acesso ao direito porque não pode ser visto de maneira absoluta. O critério objetivo da renda foi estabelecido para facilitar a aferição do direito, não poden-do servir de empecilho à análise desta condição por outros meios.

Dependendo das peculiaridades do caso a renda familiar per capita pode ser igual ou superior a ¼ do salário mínimo e a família do requerente não possuir condições de prover o seu sustento, estando assim evidenciada a condição de hipos-suficiência econômica.

O teto fixado pela legislação deve ser considerado como apenas um dos elementos a serem observados para a aferição

da miserabilidade, havendo outros meios de provas a serem observados. Considerar de forma absoluta o critério adota-do afronta o texto constitucional. CAETANO COSTA pensa do mesmo modo, inclusive nos seus aspectos teóricos, senão vejamos:

Trata-se de uma clara afronta ao princípio do retro-cesso legal, tendo em vista que o benefício da Renda Mensal Vitalícia, que o antecedera, tinha critérios mais benefícios, em se tratando da renda mensal para a sua concessão.(1)

Não é a toa que os tribunais(2) já há bastante tempo vem afastando o critério objetivo previsto no § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/93. Todavia, lamentavelmente sabe-se que no âmbi-to administrativo deverá o servidor cumprir a legislação, e esta mantém em seu conteúdo critério objetivo.

A legislação vem a definir o que é impedimento de lon-go prazo no § 10, quando refere aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos. Cumpre consignar a importância da superação de visões simplistas de que o be-nefício assistencial se restringe a deficientes físicos e mentais, excluindo-se da cobertura a incapacidade para o trabalho ou para os atos da vida independente.

3. dA nAturezA JurídicA do processo AdministrAtivo pArA fins de concessão ou não de benefício AssistenciAL

Objetivando tratar da natureza jurídica do processo ad-ministrativo para fins de concessão de um benefício assisten-cial, cumpre localizá-lo na legislação. O Processo Adminis-trativo normatizado pela Lei Federal n. 9.784, de 29.1.1999 é denominado de geral. É geral porque há outras legislações aplicáveis a processos administrativos, ditas especiais, nor-malmente instituídas no âmbito estadual.

As normas do Processo Administrativo geral são também aplicáveis aos procedimentos próprios dos processos espe-ciais, de forma subsidiária. É o que se verifica no art. 69 da Lei n. 9.784/99, quando dispõe:

“Art. 69. Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei.”

(1) COSTA, José Ricardo Caetano. Construção e efetivação do benefício de prestação continuada da LOAS: uma análise crítica da assistência social no Brasil e a perspectiva de sua efetivação através da construção jurisprudencial. In: SERAU JÚNIOR, Marco Aurélio (Org.). Comen-tários à Jurisprudência Previdenciária do STF. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2013, v., p. 78-95.

(2) STF já declarou incosntitucional o critério legal ao definir na Reclamação (RCL) 4.374, no mesmo sentido do entendimento já firmado pelo Plenário na sessão de ontem, quando a Corte julgou inconstitucionais os dois dispositivos ao analisar os Recursos Extraordinários (REs) 567985 e 580963, ambos com repercussão geral. Porém, o Plenário não pronunciou a nulidade das regras. O ministro Gilmar Mendes propôs a fixação de prazo para que o Congresso Nacional elaborasse nova regulamentação sobre a matéria, mantendo-se a validade das regras atuais até o dia 31 de dezembro de 2015, mas essa proposta não alcançou a adesão de dois terços dos ministros (quórum para mo-dulação). Apenas cinco ministros se posicionaram pela modulação dos efeitos da decisão (Gilmar Mendes, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Celso de Mello).

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63Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Processo Administrativo para Fins de Concessão de Benefício Assistencial |

Muito ampla é a classificação do Processo Administra-tivo, podendo ser classificado como processos tributários, disciplinares, previdenciários, e outros processos adminis-trativos inonimados. Veja-se alguns exemplos elucidativos: a realização de um vestibular por uma universidade pública, um concurso de seleção externa para a contratação de pes-soas para atuarem na Administração Pública, o rito próprio para que seja válido o lançamento de um tributo, as normas e a sequência dos atos entre o pedido e a outorga de águas ou de um licenciamento ambiental, nos órgãos de trânsito, para a emissão de uma permissão para dirigir, uma carteira nacional de habilitação ou uma segunda via de um desses do-cumentos, dentre outros infindáveis exemplos de processos administrativos. Convive-se com relações processuais, com o poder público, diariamente.

Quando o órgão integra a Administração Pública federal, os processos são regidos pela Lei n. 9.784/99. Se pertencentes à esfera estadual ou municipal, as leis do processo adminis-trativo dessas unidades é que regerão os procedimentos.

Apesar da pouca rentabilidade prática e científica do esforço de classificação de modalidades de Processo Ad-ministrativo, algumas demarcações são importantes para se compreender a natureza jurídica da modalidade proces-sual abordada. Primeiramente, que o processo administra-tivo para fins de concessão de benefício assistencial possui natureza jurídica de processo de outorga, é natureza não litigiosa, uma vez que e não se apresenta conflito de inte-resses.

O que há é o desempenho da função administrativa, que visa regular o procedimento para aferição do direito ao Benefício de Prestação Continuada previsto no art. 20 da Lei n. 8.742/93.

Possui natureza gratuita e previdenciária de benefício. Isto porque possui todas as características relacionadas ao processo previdenciário, como objeto que reclama interesse para além da Previdência social, mas inserido no contexto do Direito Previdenciário, visto este como a ciência que se pro-põe a estudar o Direito da Seguridade Social. Portanto, será denominada a modalidade processual abordada como Proces-so Administrativo Previdenciário de Benefício Assistencial.

4. dinâmicA do processo AdministrAtivo previdenciário de benefício AssistenciAL

4.1. da instauração

A instauração do processo administrativo Previdenciário de Benefício Assistencial deverá se dar junto ao Instituto Na-cional do Seguro Social – INSS.

Os canais remotos de atendimentos estão distribuídos por meio da Internet (<http://www.previdencia.gov.br>) e da Central 135. Para realizar o agendamento eletrônico o usuário deverá ter em mãos o número de inscrição na Previ-dência Social; o número do PIS/Pasep (para empregado com

carteira assinada); o número do NIT (para os contribuintes individuais e domésticos); o CNPJ ou CPF do empregador; o número do CPF do interessado para benefício assistencial; o número do benefício (se estiver recebendo benefício).

Vale destacar que a maioria das necessidades num proces-so de benefício assistencial tem que ser feita pessoalmente na Agência da Previdência Social. É importante ressaltar, ainda, que o segurado tem direito a fixação da Data de Entrada do Requerimento – DER na data da solicitação do agendamento.

O processo é concedido ou indeferido no atendimento e o pretendente é informado da decisão. Caso haja no proces-so algum documento que enseje dúvidas será emitida carta de exigências e agendado nova data para finalização do pro-cesso. Mediante o não comparecimento na data agendada o processo deverá ser concluído, sendo consignado o não cum-primento da exigência administrativa.

Por ocasião do requerimento administrativo deverá ser apresentado o Número de Identificação do Trabalhador – NIT (PIS/Pasep) ou número de inscrição; Documento de Identi-ficação; Cadastro de Pessoa Física – CPF; Certidão de Nas-cimento ou Casamento; Certidão de Óbito do(a) esposo(a) falecido(a), se for o caso; Comprovante de Residência; Com-provante de rendimentos dos membros do grupo familiar; Do-cumentos pessoais dos membros do grupo familiar (Identida-de ou certidão de nascimento quando menor, CPF, Número do PIS/Pasep/NIT); Tutela, no caso de menores de 18 anos filhos de pais falecidos ou desaparecidos ou que tenham sido destituídos do poder familiar. No caso de representação legal, deverá ser apresentado Cadastro de pessoa Física – CPF; Do-cumento de Identificação; Termos de Tutela ou curatela, se for o caso.

4.2. da instrução

É na instrução processual que são colhidas as provas das mais diversas naturezas: testemunhas, documentais e peri-ciais. O art. 29 da Lei n. 9.784/99 assim descreve:

“Art. 29. As atividades destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão realiza-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo, sem prejuízo do direito dos interessados de propor atuações pro-batórias.”

Todos os meios de prova são válidos no processo admi-nistrativo para fins de concessão de benefício assistencial quando se destinem a esclarecer a existência do direito ao recebimento do benefício, salvo se a lei exigir forma deter-minada. Por óbvio, entretanto, que esta afirmação tem que ser vista com temperamento, uma vez que a administração pública segue o princípio da legalidade, e os meios de prova e procedimentos probatórios devem ser aqueles previstos na legislação.

São três os principais procedimentos probatórios no pro-cesso administrativo previdenciário de Benefício Assisten-cial: justificação administrativa, pesquisa externa e perícia

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64 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Alexandre Triches|

médica. Nos três casos, a importância de sua utilização no processo administrativo significa o exercício do direito de prova.

A justificação administrativa é o procedimento destinado a suprir a falta de documento, ou fazer prova de fato ou cir-cunstância de interesse do beneficiário perante o INSS. Prevê o art. 596 da Instrução Normativa INSS n. 45/2010 que a Justificação Administrativa – JA é o procedimento destina-do a suprir a falta de documento ou fazer prova de fato ou circunstância de interesse do beneficiário perante o INSS. A justificação administrativa no Instituição Nacional do Seguro Social – INSS será útil para produção de prova oral, visando comprovar preenchimento de requisito relacionado a ques-tão socioeconômica e médica do postulante ao benefício. As-sim, é possível a apresentação de testemunhas e a oitiva do requerente para produção de provas.

Atualmente a prática processual não tem autorizado a justificação administrativa na instrução do processo admi-nistrativo previdenciário de Benefício Assistencial. Todavia, torna-se importante seja facultado ao pretendente do benefí-cio a produção de prova oral, tanto no que tange a sua con-dição de miserabilidade, assim como na questão médica, a qual, muitas vezes não pode ficar limitada a análise clínica, mas também em seus aspectos sociais.

Não será admitida a justificação administrativa quando o fato a comprovar exigir registro público de casamento, ida-de ou de óbito, ou de qualquer ato jurídico para o qual a lei prescreva forma especial, conforme art. 597 da Instrução Normativa INSS n. 45/2010.

A prova de exclusão de membro de grupo familiar des-tina-se a eliminar do computo da renda do grupo familiar membro que não se encontra enquadrado nesta condição. Neste ponto também ganha relevância a utilização da Jus-tificação Administrativa como meio de prova para eliminar do computo da renda familiar membro que não participe da família.

Importante a consideração acerca da necessidade de iní-cio de prova material para que seja autorizado o processa-mento da justificação administrativa. No que tange a prova médica, documentos médicos certamente servirão para tal desiderato. Na questão socioeconômica, extratos bancários e demais documentos. Conforme prevê o art. 599 da Ins-trução Normativa INSS n. 45/2010 será dispensado o início de prova material quando houver ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, caracterizados pela verifica-ção de ocorrência notória, tais como incêndio, inundação ou desmoronamento, que tenha atingido a empresa na qual o segurado alegue ter trabalhado, devendo ser comprovada mediante registro da ocorrência policial feito em época pró-pria ou apresentação de documentos contemporâneos dos fatos, e verificada a correlação entre a atividade da empresa e a profissão do segurado.

O procedimento será processado, segundo art. 604 da Instrução Normativa INSS n. 45/2010 por servidor especial-mente designado pelo gerente da Agência da Previdência So-

cial ou chefe de benefícios desta, devendo a escolha recair em funcionários que possuam habilidade para a tomada de depoi-mentos e declarações e que tenham conhecimento da matéria objeto da justificação administrativa.

As testemunhas indicadas pelo interessado, em número não inferior a três nem superior a seis, deverão ser ouvidas separadamente, de modo que o depoimento de uma nunca seja presenciado ou ouvido por outra. E a homologação da Justificação quanto à forma, é de competência de quem a processou, devendo este fazer relatório sucinto dos fatos co-lhidos, mencionando sua impressão a respeito da idoneidade das testemunhas e opinando conclusivamente sobre a prova produzida, de forma a confirmar ou não os fatos alegados, não sendo de sua competência analisar o início de prova ma-terial apresentado.

O procedimento de pesquisa externa compreende as atividades externas exercidas pelo servidor do INSS, previa-mente designado para atuar nas empresas, nos órgãos públi-cos ou em relação aos contribuintes em geral e beneficiários.

O procedimento tem diversos objetivos, constantes no art. 618 da IN n. 45/2010: “Art. 618. Entende-se por Pesqui-sa Externa, as atividades externas exercidas pelo servidor do INSS, previamente designado para atuar nas empresas, nos órgãos públicos ou em relação aos contribuintes em geral e beneficiários, que tem por objetivo: I – a verificação da vera-cidade dos documentos apresentados pelos requerentes, bem como a busca pelos órgãos do INSS de informações úteis à apreciação do requerimento formulado à Administração; II – a conferência e o incremento dos dados constantes dos sistemas, dos programas e dos cadastros informatizados; III – a realização de visitas necessárias ao desempenho das ati-vidades de Serviço Social, perícias médicas, de habilitação, de reabilitação profissional e o acompanhamento da execu-ção dos contratos com as unidades pagadoras pelo Serviço de Acompanhamento ao Atendimento Bancário – SAAB, ou para a adoção de medidas, realizada por servidor previamen-te designado; IV- o atendimento de programas revisionais de benefícios previdenciários e de benefícios assistenciais previstos em legislação; e V – o atendimento das solicita-ções da PFE junto ao INSS e demais órgãos de execução da Procuradoria Geral Federal e do Poder Judiciário para coleta de informações úteis à defesa do INSS.”

No presente caso ganha relevância como meio externo de prova, em especial mediante visitas no local de residência do requerente, ou em análise das condições socioeconômi-cas, com oitiva de vizinhos e familiares. Além disso, torna-se relevante esse meio probatório para realização de avaliações médicas naqueles casos de incapacidade social.

A perícia médica é uma atividade realizada no INSS para verificação médica. É de competência exclusiva de um mé-dico concursado e treinado internamente, que deve possuir conhecimentos de legislação previdenciária. É uma especia-lidade médica reconhecida pelo Conselho Federal de Medici-na, fazendo parte da especialidade de “Perícia Médica e Me-

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65Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Processo Administrativo para Fins de Concessão de Benefício Assistencial |

dicina Legal”, que abrange outros tipos de perícias além da perícia previdenciária, tais como a perícia criminal de lesões corporais.

A relação entre o médico e o segurado difere da relação médico-paciente, pois a sua atividade se limita a diagnosticar os sintomas apresentados e emitir parecer acerca de sua ca-pacidade de trabalho, relacionando-a sem qualquer apresen-tação de tratamento da doença. Ao fim do exame, o médico--perito preenche o laudo de perícia médica, atualmente de forma informatizada, e o seu parecer passa a fazer parte do processo administrativo.

O impulsionamento de ofício deve ser observado no âm-bito do processo administrativo previdenciário de benefício assistencial. Isto porque, em que pese a iniciativa da instaura-ção do processo, salvo exceções, é do beneficiário, através da formalização do requerimento administrativo. Deve-se partir do princípio de que ao realizar o requerimento o adminis-trado o requerente é o credor de uma solução, ainda que as atitudes que intermedeiam a iniciativa e a conclusão estejam a cargo da Administração Pública. Também não pode dei-xar de ser referido que a Administração pode oficialmente utilizar-se de seus meios para a efetivação de direitos dos ad-ministrados, tais como os bancos de dados a que a autarquia possui acesso.

No que tange aos requisitos legais para a concessão do benefício, prevê o § 6 do art. 20 da Lei n. 8.742/93:

§ 6º A concessão do benefício ficará sujeita à avaliação da defi-ciência e do grau de impedimento de que trata o § 2º, composta por avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do Instituto Nacional de Seguro Social – INSS.

Portanto, duas espécies de provas devem ser produzidas: prova pericial médica, para fins de constatação do preenchi-mento do requisito deficiência, e prova social, através de pe-rícia social, que deve ser realizada por Assistente Social.

Neste ponto, não podemos deixar de referir que a produ-ção de provas no processo administrativo é deficitária. Isto porque a avaliação social é realizada por servidores públicos sem especialidade em Serviço Social.

A prova deve necessariamente ser realizada por Assis-tente Social, cabendo ao assistente social enquanto agente social, assessorar na elaboração das políticas sociais em todos os níveis.

A forma prevista pela legislação para aferição do re-quisito social encontra amparo no § 8º do art. 20 da Lei n. 8.742/93: § 8º A renda familiar mensal a que se refere o

§ 3º deverá ser declarada pelo requerente ou seu representan-te legal, sujeitando-se aos demais procedimentos previstos no regulamento para o deferimento do pedido.

Não é possível que toda a avaliação social seja deposita-da em formulários unilaterais e objetivos que não retratam a realidade do pretende ao benefício.

É possível que a parte apresente certidões e declarações úteis para comprovação de preenchimento de requisitos so-cioeconômicos. A certidão é afirmação feita por escrito, obje-tivando comprovar ato. A Certidão difere do atestado e da de-claração por comprovar fatos ou atos permanentes, enquanto os últimos dizem respeito a fatos e atos transitórios.

A declaração é a afirmação verbal ou escrita, declaratória da existência ou não de um direito ou de um fato em relação a algo ou alguém, não importando se é favorável ou não. É redigida da mesma forma que o atestado.

Quanto à prova médico-pericial deverá ser realizada pelo departamento de periciais médicas, ficando o médico perito com a incumbência de analisar o preenchimento dos requisi-tos eleição do benefício.

O laudo médico é documento de suma importância para a comprovação do direito a diversos benefícios previden-ciários, tais como benefícios por incapacidade, pensões por morte para filho ou irmão maior inválido, auxílio-acidente, salário-maternidade, dentre outras situações que possam re-querer parecer médico especializado.

As informações básicas que o laudo deve possuir são: o diagnóstico; as consequências que o problema acarreta na saú-de do trabalhador; indicação expressa da existência de incapa-cidade ou limitação de voltar a trabalhar; o tempo de repouso estimado para a recuperação. Senão for possível determinar quanto tempo será necessário se afastar, deverá consignar que não será possível determinar o tempo de afastamento; o registro dos dados de maneira legível; a identificação do médico, com assinatura e carimbo ou o número de registro no Conselho Regional de Medicina.

O Conselho Federal de Medicina já tratou de regular o assunto no âmbito nacional por meio da Resolução n. 1.851/2008. Já o art. 1º da Resolução n. 1.658/2008 estabele-ce que o “atestado médico é parte integrante do ato médico, sendo seu fornecimento direito inalienável do paciente, não podendo importar em qualquer majoração de honorários”.

O conceito de incapacidade e de deficiência sofreu uma significativa alteração a partir do ano de 2001 quando a Or-ganização Mundial da Saúde (OMS) emitiu a Classificação In-ternacional de Funcionalidades, incapacidade e saúde (Cif).(3)

(3) A CIF de 2001 é uma revisão da Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Limitações (ICIDH), publicada pela OMS em 1980, de forma experimental. A CIF atual é fruto de cinco anos de trabalho, reunindo vários países, inclusive com uma participação efetiva do Brasil, vindo a ser aprovada pela 54ª Assembleia Mundial de Saúde, em maio de 2001. “A CIF é útil para uma ampla gama de aplicações diferentes, por exemplo, previdência social, avaliação do gerenciamento da assistência à saúde e estudos de população em níveis local, nacional e internacional. Oferece uma estrutura conceitual para as informações aplicáveis à assistência médica individual, incluindo prevenção, promoção da saúde e melhoria da participação, removendo ou mitigando os obstáculos sociais e estimulando a provisão de suportes e facilitadores sociais. Ela também é útil para o estudo dos sistemas de assistência médica, tanto em termos de avaliação como de formulação de políticas públicas.” (CIF-2011).

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66 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Alexandre Triches|

A avaliação médica da deficiência e do grau de incapaci-dade considerará as deficiências nas funções e nas estruturas do corpo, e a avaliação social considerará os fatores ambien-tais, sociais e pessoais, e ambas considerarão a limitação do desempenho de atividades e a restrição da participação so-cial, segundo suas especialidades.

Fruto desta Convenção, o qual o Brasil referendou, é o Decreto n. 6.564/08 o qual alterou significativamente o cri-tério biomédico até então utilizado para verificação da de-ficiência, prevista na Lei Orgânica de Assistência Social. A avaliação da deficiência e do grau de incapacidade passa a ser composta da avaliação médica e social. O Instituto Na-cional do Seguro Social – INSS através da Portaria Conjun-ta n. 1/2010 instituiu os instrumentos para a avaliação da deficiência e do grau de incapacidade dos pretendentes ao Benefício de Prestação Continuada com base na convenção internacional.

No mesmo sentido, a Instrução Normativa n. 45, de 6 de agosto de 2010, trouxe na Seção VII, Subseção I, que trata “Do Serviço Social”, vários dispositivos que convergem para uma avaliação para além dos aspectos médicos, senão vejamos:

“§ 4º A avaliação social em conjunto com a avaliação médica da pessoa com deficiência, consiste num instrumento destinado à caracterização da deficiência e do grau de incapacidade, e considerará os fatores ambientais, sociais, pessoais, a limitação do desempenho de atividades e a restrição da participação social dos requerentes do Benefício de Prestação Continuada da pessoa portadora de deficiência”.

No caso de Benefício de Prestação Continuada a pessoa idosa está dispensada de produzir prova pericial médica, bas-tando apenas a comprovação da condição de idoso, através do critério cronológico.

4.3. da decisão

Os atos administrativos praticados no curso do processo envolvem uma verdadeira relação dialética entre o interessa-do e a administração, culminando coma conclusão do quanto foi produzido no processo através da sua decisão.

Naquelas circunstâncias em que o pretendente apresenta documentação incompleta, ou que apresenta documentação que comprove o direito a mais de uma prestação previden-ciária, deverá o servidor orientar o segurado quanto a que melhor atenda ao bem-estar do beneficiário.

Este é o comando contido no Enunciado n. 5 do JR/CRPS: “A Previdência Social deve conceder o melhor benefí-cio a que o segurado fizer jus, cabendo ao servidor orientá-lo nesse sentido.”

A transcrição do enunciado acima é importante para es-clarecer que quando se fala em entrega da melhor prestação, está se referindo ao dever do servidor cientificar ao segurado quanto as possibilidades que este possui, notadamente a que lhe é mais benéfica. Todavia, a decisão quanto ao benefício é de inteira responsabilidade do segurado.

Se por ocasião do atendimento, sem prejuízo da formali-zação do processo, estiverem satisfeitos os requisitos legais, será imediatamente reconhecido o direito. E, se por ocasião do despacho, for verificado que na data de entrada do reque-rimento o segurado não satisfazia os requisitos para a conces-são do benefício, mas que os completou em momento poste-rior, será dispensada nova habilitação, com a reafirmação da data de entrada do requerimento – DER.

Concluída a instrução do processo, a decisão deve ser proferida no prazo de 30 dias, salvo prorrogação por igual período devidamente motivada nos termos do art. 49 da Lei n. 9.784/99. O prazo referido não pode ser confundido com o prazo de 45 dias previsto no § 5º do art. 41-A da lei n. 8.213/91, o qual é relacionado ao primeiro pagamento do benefício.

Apesar de não haver a previsão de consequência para a administração no caso da inatividade formal, a Administra-ção Pública tem o dever de decidir, pois além de expressar uma condução regular da atividade administrativa, evita o surgimento ou agravamento dos danos advindos com a de-mora injustificável do processo administrativo.

Naquelas situações em que a administração pública dei-xa transcorrer o prazo previsto sem emitir decisão, tem-se como possível a aceitação da tese do silêncio administrativo, equiparando o silêncio a denegação do pedido formulado pelo administrado.

A demora injustificada na análise do pedido adminis-trativo de concessão de benefício afronta diversos direitos constitucionais, tais como aqueles previstos na letra a, inciso XXXVIII e LXXVIII, do art. 5º da CF/88.

Assim, transcorrido o prazo legal que a autarquia possui para analisar o processo, sem ter emitido uma decisão, tem--se a aplicação do silêncio administrativo, considerando-se denegado o requerimento formulado.

Na fase decisória cabe ao órgão competente enfrentar a questão proposta, analisando-a diante de todas as provas pro-duzidas para ao final concluir por meio da decisão.

Nos moldes do preceituado no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal de 1988 as decisões deverão ser moti-vadas, o que significa que o órgão decisório deverá detalhar as razões e os motivos pelos quais decidir. No mesmo senti-do prevê o art. 50 da Lei n. 9.784/99, quando prevê que os atos administrativos deverão ser motivados. A fundamenta-ção deve ser clara e explícita de maneira que o seu conteúdo seja inteligível e suas conclusões facilmente deduzidas do texto.

4.4. da fase recursal e de cumprimento

Das decisões do Instituto Nacional do Seguro Social, nos processo de interesse dos beneficiários da Lei n. 8.742/93 ca-berá recurso para Conselho de Recursos da Previdência So-cial. É o que dispõe o caput do art. 126 da Lei n. 8.213/91: das decisões do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS

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67Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Processo Administrativo para Fins de Concessão de Benefício Assistencial |

nos processos de interesse dos beneficiários e dos contribuin-tes da Seguridade Social caberá recurso para o Conselho de Recursos da Previdência Social – CRPS. As normas relativas a organização administrativa do Conselho de Recursos da Previdência Social – CRPS encontram-se na Portaria MPS n. 548/11.

A competência para julgar o recurso administrativo é de uma das 29 (vinte e nove) Juntas de Recursos, que têm com-petência para julgar, em primeira instância, os recursos inter-postos contra as decisões prolatadas pelos órgãos regionais da autarquia, em matéria de interesse de seus beneficiários. Ademais, existem ainda 4 (quatro) Câmaras de Julgamento, com sede em Brasília, com a competência para julgar, em segunda instância, os recursos interpostos contra as decisões proferidas pelas Juntas de Recursos que infringirem lei, regu-lamento, enunciado ou ato normativo ministerial.

A estrutura conta ainda com o Conselho Pleno, com a competência para uniformizar a jurisprudência mediante enunciados, podendo ter outras competências definidas no Regimento Interno. Quanto à composição dos órgãos é pre-sidido por representante do Governo, com notório conhe-cimento da legislação, nomeado pelo Ministro de Estado da Previdência Social, cabendo-lhe dirigir os serviços adminis-trativos do órgão e definir o número de sessões mensais, que não poderá ser inferior a dez, de acordo com o volume de processos em andamento.

Por sua vez, as Juntas e as Câmaras, presididas por re-presentante do Governo, são compostas por quatro mem-bros denominados conselheiros, nomeados pelo Ministro de Estado da Previdência e Assistência Social, sendo dois representantes do Governo, um das empresas e um dos tra-balhadores. O mandato dos membros é de dois anos, per-mitida a recondução.

O prazo recursal é de 30 (trinta) dias contados da data da ciência da decisão. O protocolo do recurso deverá ser efe-tuado diretamente nas agências da Previdência Social, prefe-rencialmente no mesmo órgão que proferiu a decisão sobre o benefício, ou por meio do agendamento eletrônico.

As razões de recurso devem ser apresentadas e acompa-nhadas dos documentos que comprovem as alegações formu-ladas. Expirado o prazo de trinta dias para contrarrazões os autos serão imediatamente encaminhados para julgamento hipótese em que serão considerados como contrarrazões os motivos do indeferimento inicial. O órgão de origem prestará nos autos informação fundamentada quanto à data da inter-posição do recurso, não podendo recusar o recebimento ou obstar-lhe o seguimento do recurso ao órgão julgador com base nessa circunstância.

Após ser recebido no órgão julgador, o processo é distri-buído a um relator que tem a responsabilidade de analisar e relatar o processo. Após a inclusão em pauta dos autos será julgado pelo colegiado.

No caso de processos que envolvem matéria médica, são analisados, também, pela assessoria técnica médica do CRPS. A assessoria técnica médica analisa a documentação

que consta do processo, tais como: atestados, exames com-plementares, laudos e pareceres médicos.

Uma vez proferida a decisão pela Junta de Recurso, cabe-rá outro recurso, agora denominado de “especial”. Sobre tal recurso cabem 02 (duas) considerações: a) O próprio Insti-tuto Nacional do Seguro Social – INSS tem legitimidade para interpor recurso especial, caso não se conforme com a deci-são proferida em segundo grau; e b) O Regimento Interno do Conselho de Recursos da Previdência Social, conforme Portaria n. 548/11 do Ministério da Previdência Social es-tabelece um conjunto de matérias que seja da competência exclusiva das Juntas Recursais, de maneira que, no que toca a estes casos, as suas decisões serão irrecorríveis. Quanto aos efeitos em que serão recebidos os recursos, podem ser no efeito suspensivo ou devolutivo.

Se durante o curso do julgamento do recurso for verifica-da a existência de ação judicial com objeto idêntico à matéria discutida na esfera administrativa, será reconhecida a renún-cia ao direito de recorrer e a desistência do recurso interpos-to. Trata-se de medida de suma importância, pois se evitam que sejam proferidas decisões conflitantes entre a instância administrativa e judicial.

O julgamento é aberto ao público, e poderá o segurado, proferir solicitação prévia de sustentação oral no próprio for-mulário de recurso ao protocolá-lo na agência da Previdência Social ou apresentar o pedido no órgão julgador para que seja juntado ao processo. Dessa forma receberá uma comunicação com informação da data, hora e local do julgamento, onde poderá somente assistir ou realizar sustentação oral ou apre-sentar alegações finais em forma de memoriais.

Quando um órgão julgador está com um volume de processos muito acima da capacidade de sua composição de julgamento, o Presidente do colegiado, por meio de provi-mento, redistribui os processos de um órgão julgador para outro que possua um quantitativo menor, de modo que possa garantir o julgamento de forma mais rápida.

Caberão embargos quando existir no acórdão obscuri-dade, ambiguidade ou contradição entre a decisão e os seus fundamentos, ou quando for omitido ponto sobre o qual de-veria pronunciar-se o órgão julgador. Serão interpostos pelas partes do processo, mediante petição fundamentada, dirigida ao Presidente da unidade julgadora, no prazo de trinta dias, contados da ciência do acórdão. A interposição dos embargos interromperá o prazo para cumprimento do acórdão, sendo restituído todo o prazo de trinta dias após a sua solução, sal-vo na hipótese de embargos manifestamente protelatórios.

A uniformização, em tese, da jurisprudência adminis-trativa previdenciária poderá ser suscitada para encerrar di-vergência jurisprudencial administrativa ou para consolidar jurisprudência reiterada no âmbito do colegiado, mediante a edição de enunciados. Tal questão é de extrema importância, pois gera o caráter vinculante da interpretação do direito. A emissão de enunciados, em qualquer hipótese, dependerá da aprovação da maioria simples dos membros do Conselho Pleno.

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68 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Alexandre Triches|

Quanto ao cumprimento da decisão, cabe a agência da Previdência Social responsável pelo processo, no prazo de 30 dias.

concLusão

O objetivo do presente artigo foi abordar o Processo Administrativo para fins de concessão ou não de Benefício Assistencial. O interesse na escolha do tema residiu na preo-cupação em promover estudo sobre importante temática re-lacionada a proteção social no âmbito do subsistema Assis-tência Social.

A cobertura dos eventos sociais do Benefício Assistencial é de fundamental importância para a instrumentalização da garantia do bem-estar e da justiça social, valores perseguidos pelo legislador dentro da ordem social constitucional.

O artigo iniciou com a verificação do regime jurídico do processo abordado, sua natureza jurídica, e com a definição de seu conceito, sua classificação e princípios que lhe são subjacentes. Concluiu-se pela definição da natureza jurídica do processo abordado como modalidade de processo admi-nistrativo previdenciário de benefício.

A visão do processo, calcada na lógica do ato adminis-trativo, em sua forma unilateral encontra-se ultrapassada pela visão procedimental que a Constituição Federal de 1988 trouxe, por meio do devido processo legal administrativo.

Também restou abordado a dinâmica do processo admi-nistrativo, por meio de suas cinco fases: inicial, instrutória, decisória, recursal e de cumprimento.

Quanto à fase instrutória foi dada ênfase na questão ati-nente ao impulsionamento de ofício do processo, o qual não desobriga o segurado de promover o requerimento adminis-

trativo. Abordaram-se também os principais meios de prova e procedimentos probatórios.

Na fase decisória foi referido acerca do dever da admi-nistração de entregar a melhor prestação ao segurado, res-saltando que este dever é apenas de orientação ao segurado quanto às possibilidades que o assistem, cabendo a decisão final ao beneficiário. Ainda, tratou-se acerca do prazo para que a autarquia decida o processo e os efeitos que o não cum-primento do prazo gera. Quanto à fase recursal, foram descri-tas as principais características do Conselho de Recursos da Previdência Social – CRPS.

referênciAs bibLiográficAs

BALERA, Wagner. Noções preliminares de direito previdenciário. São Paulo. Quartier Latin. 2004.

COSTA, José Ricardo Caetano. A Quebra de Paradigma na Perícia Médica: da concepção biomédica à concepção biopsicossocial. Revista de Previdência Social, 2013, v. 392, p. 591-610.

COSTA, José Ricardo Caetano. Construção e efetivação do benefício de prestação continuada da LOAS: uma análise crítica da assis-tência social no Brasil e a perspectiva de sua efetivação através da construção jurisprudencial. In: Marco Aurélio Serau Júnior. (Org.). Comentários à Jurisprudência Previdenciária do STF. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2013, v., p. 78-95.

Instrução Normativa INSS/PRES N. 45, de 06 de agosto de 2010.

Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999.

Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993.

Portaria MPS n. 548, de 13 de setembro de 2011.

Resolução CFM n. 1.658, de 13 de fevereiro de 2002.

Resolução CFM n. 1.851, de 18 de agosto de 2008.

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o direito a ter direitos: os direitos sociais assistenciais a partir do ativismo Judicial

Ana Maria Correa Isquierdo(*)

José Ricardo Caetano Costa(**)

introdução

Podemos afirmar, inicialmente, que a Assistência Social no Brasil esteve intimamente ligada à concepção de beneficência, benesse, esmola, amparo, entre outros tantos adjetivos.

Quiçá por isso podemos compreender porque foram as atividades beneficentes as responsáveis pela distribuição dos auxílios aos mais necessitados, papel este exercido, inicial-mente, pelas Primeiras-Damas que assumiram as Presidên-cias das LBA’s. Assim como podemos compreender um certo sentimento piegas herdado de uma concepção de Assistência Social atrelada à Igreja Católica, cuja missão era distribuir be-nesses, conformando uma ideia de misericórdia, compaixão e compadecimento para com os mais pobres.

Não há dúvidas que a Constituição Federal de 1988 que-bra esse paradigma, concebendo a Assistência Social como parte integrante da Seguridade Social (art. 194 da CF/88), o que vale dizer, em outras palavras, que está, juntamente com a Previdência e a Saúde, são espécies do gênero Seguridade Social.

Parece-nos que isso não é pouco, rompendo com a lógica acima referida. Trata-se, agora, de conceber e inserir os direi-tos assistenciais no catálogo dos direitos sociais, enquanto direitos fundamentais.

De outro modo, para efetivar e otimizar os direitos so-ciais assistenciais, dando eficácia a estes direitos, é necessário que se faça cumprir a Constituição, seja pela via legislativa ou pela iniciativa do executivo, seja pela ação proativa do Judiciário.

A questão do único benefício de prestação continuada (BPC) da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei n. 9.874/93)

é emblemática para exemplificar o que aqui pretendemos de-senvolver. Vejamos. A CF/88 assegurou, em seu art. 203, V, o benefício de um salário mínimo às pessoas portadoras de deficiências e aos idosos (atualmente com 65 anos ou mais). Registre-se que a CF/88 foi promulgada à 5.10.88 e a Lei da Assistência Social somente veio a lume em 1993 (Lei n. 8.742/93), e seu único benefício pecuniário foi implantado a partir de 1996, com um déficit de oito anos.

Esse longo percurso, entre a vigência da CF/88 e da pro-mulgação da LOAS, demonstra a má vontade e falta de inte-resse em cumprir o preceito Constitucional, conforme vere-mos no percurso do presente trabalho.

Interessa-nos refletir, neste passo, os critérios utilizados pela administração do seguro social (INSS), no que respeita aos critérios da deficiência e da renda familiar como autori-zativas, respectivamente, para concessão do BPC por incapa-cidade ou por idade.

Por fim, interessa-nos ainda investigar qual está sendo o papel do Judiciário na apreciação dos casos concretos e nas decisões dele emanadas, mormente quando a eficácia e concretização dos preceitos constitucionais relacionados à Assistência Social, encontram guarida pela posição proativa e criadora deste.

1. gênese e LegAdo dos direitos sociAis AssistenciAis

Na nossa compreensão a “Poor Law”, denominada “Lei dos Pobres”, ocorrida no berço da Revolução Industrial, a Inglaterra, em 1601, passa a definir um marco do que hoje concebemos como Direitos Assistenciais.

(*) Pós-Graduada em Direito de Família e Sucessões (ULBRA/RS), Pós-Graduação em Direito do Trabalho e Previdenciário (FACULDADES ATLÂNTICO SUL/PELOTAS), Advogada Previdenciarista.

(**) Professor da Faculdade de Direito da FURG, Mestre em Direito pela UNISINOS e Doutor em Serviço Social na PUC-RS. Pós-Doutor e Educação Ambiental PPGDEA/FURG.

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70 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Ana Maria Correa Isquierdo e José Ricardo Caetano Costa|

Para fazer essa análise nos centramos basicamente na obra de Karl Polanyi, denominada “A grande transforma-ção”, cujo título próprio sugere a dimensão desse período como marco divisor de uma época.

Neste passo, tentaremos analisar os dois momentos que marcaram os direitos sociais assistenciais no mundo ociden-tal: A Poor Law de 1601 e a Poor Law Reform, de 1834. Ain-da nesse contexto, busca-se analisar a Speenhamland (1795 a 1834), sendo esta, segundo Polanyi (2000), as origens de nossa época.

Este primeiro marco dos Direitos Assistenciais, trazido pela Lei dos Pobres ou lei elisabetana, como restou conheci-do, somente pode ser compreendido dentro do contexto do capitalismo inicial, representando pela Revolução Industrial (Inglaterra, fins do século XVIII). Isso porque o capitalis-mo trouxe mudanças brutais no modo de vida das pessoas: a nova ordem capitalista subverteu as relações pessoais e sociais desta época. O capitalismo que ia se configurando passou a gerar inúmeros problemas sociais à nova classe tra-balhadora que se configurada: fome, doenças, precarização entre outros.

É nesse contexto que foi editada a Lei dos Pobres de 1601, como uma tentativa de amenizar a questão social que se apresentava. Segundo esta lei, revogada a partir de 1834 pela Nova Lei dos Pobres, a Assistência Social tinha uma configuração de política privada, ligada às paróquias. Consistia, pois, na arrecadação das paróquias de impostos e taxas para subsidiar os pobres e necessitados. Este sistema concedia auxílios pecuniários aos inválidos (crianças, idosos e deficientes) e aos pobres considerados válidos, em troca do subsídio, buscava trabalho a esse contingente cada vez mais crescente, diante dos efeitos deletérios da Revolução Industrial. A mendicância, por sua vez, “era severamente pu-nida e a vagabundagem era uma ofensa capital em caso de reincidência” (POLANYI, 2000, p. 98).

Ainda na Poor Law de 1601, foram organizadas as de-nominadas “casas de trabalho”, as Workhouses, embrionárias dos asilos. A Assistência era localizada por região, o que pas-sou a criar um problema pela mobilidade dos necessitados que buscavam as paróquias com melhores condições econô-micas. Essa prática ficou proibida a partir do Act of Settlement (Ato de Domicílio), de 1662, que “proibia às paróquias de se livrarem dos seus pobres, obrigando esses mesmos pobres a não se mudarem de domicílio” (ROSANVALLON, 1984, p. 112). Por outro lado, essa lei entrava em choque e em con-tradição com a necessidade trazida pelo capitalismo nesse período, qual seja, a de uma mão de obra abundante, móvel e flexível, cuja exigência de um mercado supostamente livre e autorregulável preconizava.

Parece-nos que Marschall resume bem esse momento emblemático dos Direitos Sociais Assistenciais quando afir-ma que a Lei dos Pobres elisabetana pode ser compreendi-da como “um item num amplo programa de planejamento econômico, cujo objetivo geral não era criar uma mudança essencial”, segundo aponta, ela foi um “meio de aliviar a po-breza e suprimir a vadiagem” (MARSHALL, 1967, p. 71).

Na “Poor Law” de 1834, segundo Marshall, os direitos sociais passaram de existir e seus antigos usuários passaram a ser tratados como indigentes (MARSHALL, 1967, p. 72). Percebe-se, segundo as análises de Marshall, autor este que estudou, assim como Polanyi, profundamente esse período histórico, que esta concepção trazida por esta segunda Lei dos Pobres passou a delinear o que modernamente conce-beu-se como Assistência Social.

Com efeito, segundo esta Lei, as reivindicações poderiam ser atendidas somente se os seus usuários deixassem de ser cidadãos, o que equivale dizer que “tinha ‘direito’ à Assistên-cia quem renunciasse absolutamente a quaisquer direitos.” (SCHONS, 1999, p. 73).

Esta mudança trazida pela nova “Poor Law”, de 1834, somente pode ser entendida se compreendido o processo de movimento dialético do capitalismo emergente com a Revolução Industrial que se desencadeava. Não havia como conciliar os interesses do livre mercado com um sistema in-tervencionista, como o existente na primeira Lei dos Pobres. É necessário, neste novo momento histórico, o livre movi-mento dos trabalhadores em potencial, com a criação de uma nova classe trabalhadora. É justamente por isso que Polanyi afirma que a Speenhamland (1795 a 1834, quando a nova “Poor Law” revogou a primeira Lei), designa o fim de uma época e o começo de outra.

Selma Maria Schons faz uma análise digna de nota e des-taque, em relação a essas duas Leis dos Pobres. Vejamos:

“Enfim, esse período mostra-nos ainda como um me-canismo de Assistência esteve presente no retardamento do mento do processo como um todo, processo esse que, logicamente, a partir da economia de mercado, estava por se afirmar. Por outro lado, mostra-nos também como a lei da Assistência aos pobres de 1601 – basicamente uma Assistência de vizinhos e ‘paroquial’ (Work houses) e a mendicância é passível, de punição – é retomada na Nova Lei dos Pobres de 1834, embora já sob o prisma de uma Assistência Pública, limitando-se aos que abdicaram de quaisquer outros direitos. A Assistência desse período que tem o estigma de ser para aqueles que desistiram de lutar, ou seja, é uma Assistência para doentes, velhos e/ou para preguiçosos.” (SCHONS, 1999, p. 74)

Por ser, acreditamos, nesse contexto que nascem os direi-tos sociais Assistenciais, é que acreditamos ser imprescindí-vel essas reflexões, que sobremaneira norteiam estes direitos na modernidade.

2. AssistênciA sociAL e AssistenciALismo no brAsiL

A Assistência Social no Brasil sempre esteve atrelada a uma concepção de benesse e de assistencialismo, não de Di-reito Social, quiçá pelo legado trazido pelas Leis dos Pobres, conforme visto no item anterior. Tanto é que o nascedouro dos auxílios aos pobres, no Brasil, esteve vinculado, histori-camente, com a filantropia religiosa, num primeiro momento,

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71Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais O Direito a Ter Direitos: os direitos sociais assistenciais a partir do ativismo judicial|

e aos cuidados de instituições públicas, mas com gestão pri-vada, como é o caso da LBA.

Como efeito, “a LBA tem origem na mobilização do tra-balho civil, feminino e de elite, em apoio ao esforço nacional representado pela entrada do Brasil na II Guerra Mundial, através da prestação de serviços assistenciais às famílias dos convocados.” (SPOSATI; FALÇÃO; FLEURY, 1989, p. 63)

A gestão da LBA era privatista porque seu cargo maior geralmente era ocupado pelas primeiras-damas, não havendo nenhum critério técnico para definir as prioridades e a gestão dos recursos.

Se o Estado brasileiro, até 1920, não intervinha nas re-lações de trabalho e, igualmente, nos Direitos Sociais em geral, a partir de 1930, com Vargas, o Estado entra em con-flito com a oligarquia liberal, apontando novas perspectivas (MENDONÇA, 2009, p. 133-134). Ocorre que, ao inverso da perspectiva marshalliana, os direitos sociais, no Brasil, antecedem aos direitos políticos. Nesse sentido, portanto, é que compreende-se a denominada “cidadania regulada” ou tutelada pelo Estado. A herança varguista, com efeito, é prova dessa constatação(1).

Por outro lado, ampla parcela da população, represen-tada pelos trabalhadores rurais, autônomos, empregados do-mésticos, desempregados e subempregados, permaneceram alijados de qualquer proteção social (COSTA, 2010).

Nesse sentido, podemos afirmar que, no Brasil, os Di-reitos Sociais como um todo estão vinculados às classes so-ciais determinadas: foi desse modo quando da criação das Caixas de Aposentadorias (CAP’s), na década de 20, busca-vam “proteger uma das categorias mais mobilizadas, a dos ferroviários” (COHN, 1980, p. 20), enquanto os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP’s), que as sucederam, na década seguinte, também eram organizações por categorias profissionais (COSTA, 2011, p. 34).

Muito embora tenhamos, com a Lei Orgânica da Previ-dência Social (LOPS), de 1960, algum avanço em termos de unificação dos direitos sociais, mediante a unificação dos seis maiores Institutos então vigentes, ainda assim restaram ex-cluídos os trabalhadores rurais, os domésticos e os trabalha-dores na informalidade.(2)

Com efeito, se os Direitos Sociais relativos à Previdência Social foram concedidos, no Estado brasileiro, aos trabalhado-res formalmente reconhecidos profissionalmente – não sendo a esmo que a instituição da Carteira de Trabalho servia como

um passaporte para a obtenção destes direitos, no caso da As-sistência Social a condição é diferente: “para os excluídos do processo, foi reservado o espaço da filantropia da assistência social para ajudá-los a sobreviver à miséria” (MENDONÇA, 2009, p. 178). A Assistência Social, nesse viés, “segue um ca-minho marginal, descentralizado, mediante a articulação do Estado com a filantropia privada responsável pelos despossuí-dos dos atributos da cidadania.” (MENDONÇA, idem, ibidem).

Essa concepção de Direito Social, conforme analisada, deverá ter outro rumo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, fruto de longo embate entre as forças sociais que a conceberam.

3. A AssistênciA sociAL enquAnto direito fundAmentAL A pArtir dA cf/88

Elevada como uma das pilastras da Seguridade Social pela Constituição Federal de 1988, juntamente com a Saúde e Pre-vidência, a Assistência Social passa a ser compreendida como direito fundamental. Se trata, portanto, de significativo avanço no sentido de conceber os direitos sociais assistenciais como direitos os quais os sujeitos políticos, desprovidos dos deno-minados mínimos sociais, possuem a prerrogativa de disporem de um salário mínimo do qual possam garantir um mínimo de dignidade em meio ao capitalismo selvagem em que vivemos.

Observamos, por outro lado, que não basta a CF/88 ter assegurado esse direito. Prova disso é o fato de a LOAS ter sido promulgada somente em 1993, praticamente cinco anos após a promulgação da CF/88, e seu único benefício de prestação continuada somente passar a viger a partir de 1996.

Como se não bastasse, o critério da renda mensal “per capita” inferior a 1/4 do SM legal, conforme exposto no art. 20, § 3º, bem como os critérios de deficiência, expostos no art. 20, § 2º, ambos da Lei n. 8.742/93, passaram a restringir mais ainda a possibilidade da concessão destes direitos.

São estas as questões que passamos a examinar no item subsequente.

4. critérios pArA cArActerizAção dos beneficiários do bpc dA LoAs: misériA, pobrezA e necessidAde

Pela redação dada ao art. 203, da CF/88, a Assistência So-cial será prestada a quem dela necessitar. O critério utilizado pelo legislador constituinte é o da necessidade.

(1) Esta herança varguista é singular para demonstrar essa regulação dos movimentos sociais: sindicatos tutelados e atrelados ao governo; verticalização das políticas sociais; normatização e regulação dos conflitos através do Judiciário, por intermédio da Justiça do Trabalho; enfim, regulação das relações sociais com alienação da classe trabalhadora em um capitalismo industrial ainda incipiente, mas que precisava dessa estrutura para se desenvolver.

(2) Frise-se que, no caso dos trabalhadores rurais, a extensão dos direitos sociais a essa gama imensa de trabalhadores, que representava a maior parcela da força de trabalho ativa em 1960, as oligarquias rurais não permitiram a participação dos rurícolas nesses direitos sociais. (COUTO, 2006, p. 113). Na verdade esse processo de exclusão, em relação aos trabalhadores do campo, foi amenizado somente com a Carta Maior de 1988. Isso porque, até abril de 1991, os aposentados rurais ainda permaneciam recebendo a metade do salário mínimo e as pensionistas, desses trabalhadores, recebiam somente 30% do SM em seus proventos.

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72 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Ana Maria Correa Isquierdo e José Ricardo Caetano Costa|

O INSS, órgão gestor do seguro social, que realiza a tria-gem, concessão, manutenção e pagamento do Benefício As-sistencial, passou a exigir como requisito social a miserabili-dade como requisito para a concessão deste benefício.

A Autarquia Previdenciária interpreta literalmente o dis-posto no § 3º da Lei n. 8.742/93 que assim refere: “considera--se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiên-cia ou idosa a família cuja renda per capita seja inferior a 1/4 do salário mínimo.”

A distância que separa os conceitos de “necessidade” e os da “miserabilidade” é por demais gritante. Se é correto afirmarmos que todo o miserável é necessitado, a recíproca nem sempre é verdadeira. Isso porque, segundo critério utili-zado por Márcio Pochmann, miserável é aquele que percebe menos que 25% do salário mínimo como renda per capita (PORCHMANN, 2012, p. 22-24)

Não podemos crer que a política de assistência social no Brasil possa considerar somente como beneficiário do Bene-fício Assistencial quem está abaixo da linha da pobreza, tra-duzindo, aqueles que estão na miséria absoluta.

Aceitar esse referencial é ferir de morte o direito social assistencial consagrado no art. 203, da Constituição Fede-ral de 1988, que assim preconiza: “a Assistência Social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social...” Isso porque “a Cons-tituição fala em necessidade, mas não exige um estado de miséria para a concessão deste benefício” (SAVARIS, 2009, p. 319).

Esse critério nefasto que elege a miséria como requisito para a concessão do benefício assistencial reforça a concep-ção, historicamente constatada, de que a assistência social deve ser concebida como auxílio aos miseráveis. O mesmo fato explica porque a Assistência Social foi a última das polí-ticas do gênero seguridade social a ser regulamentada.

Prova disso são os dados que traduzem, no ano de 2011, um total de 155.725 benefícios requeridos, por idade, ha-vendo somente a concessão de 64.136, menos da metade dos requeridos.

Podemos constatar, nesse sentido, que “há um genera-lizado desconhecimento da política de assistência social no Brasil. Guarda-se ainda o conceito presente no senso comum de que ela é benevolência da sociedade civil solidarista ou do Estado para com os pobres.” (SPOSATI; FALCÃO; FLEURY, 2006, p. 122).

Para constatarmos o surrealismo do critério da renda per capita utilizado como parâmetro na concessão adminis-trativo/burocrática do BPC da LOAS basta imaginarmos um exemplo que é bem comum: uma família de quatro pessoas, dentre as quais um é portador de deficiência, cuja renda única provem do trabalho de outro componente do grupo familiar, sendo que este percebe um salário mínimo como fruto de seu labor. A concessão do BPC, sob o ponto de vista administrativo, resta indeferido sob o argumento de que a renda familiar ultrapassa ao critério restritivo previsto na Lei n. 8.742/93.

Ninguém duvida, pois, que esta família encontra-se em estado de vulnerabilidade social, estando abaixo da linha da pobreza, conforme critério já acenado.

A luta para que o BPC da Assistência Social passe a in-tegrar o rol dos direitos a que os cidadãos, até mesmo para que alcancem essa condição fática, perpassa pela análise do critério ora utilizado pelo INSS.

No julgamento da ADIn n. 1.232 o STF teve a oportu-nidade histórica de reparar o equívoco no que respeita esse critério da renda per capita, quedando-se omisso.

Na verdade o STF recusou-se de apreciar a constitucio-nalidade ou não do critério previsto na Lei n. 8.742/93, ale-gando que cabe à legislação ordinária fixar quais serão os cri-térios da política assistencial. As fundamentações dos votos do Ministro Gilmar Mendes e da Ministra Ellen Gracie, por sua vez, levantam como fundamento a incapacidade do Esta-do para arcar com os custos de eventual elevação do número de beneficiários do BPC da LOAS.

Em contrapartida, em outros julgamentos que se segui-ram, a Corte Máxima readequou seu posicionamento no sentido de alargar o critério da renda familiar utilizada pela burocracia estatal.

Vejamos:

RECURSO. Extraordinário. Benefício de Prestação Continua-da. Art. 203, V, da CF/88. Critério objetivo para concessão de benefício. Art. 20,§ 3º, da Lei n. 8.742/93 c.c. art. 34, pará-grafo único, da Lei n. 10.741/2003. Violação ao entendimen-to adotado no julgamento da ADI n. 1.322/DF. Inexistência. Recurso extraordinário não provido. Não contraria o enten-dimento adotado pela Corte no julgamento da ADI n. 1.232/DF, a dedução da renda proveniente de benefício recebido por outro membro da entidade familiar (art. 34, parágrafo úni-co, do Estatuto do Idoso), para fins de aferição do critério objetivo previsto no art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93 (renda familiar mensal per capita inferior a 1/4 do salário-mínimo). (RE 561936/Pr. – Relator Min. Cezar Peluso – 2ª Turma. DJE – 083 de 9.5.2008).

O Judiciário, por seu turno, além de excluir a renda de outro BPC da LOAS e, por analogia, de outro benefício que algum membro da unidade familiar perceba, também passou a utilizar como patamar de renda “per capita” meio salário mínimo.

A explicação desse valor repousa no fato de que os pro-gramas sociais, especialmente os de transferência de renda, a exemplo do “auxílio-gás”, aqueles oriundos do “fome zero”, do “bolsa-família”, fixarem como patamar o meio salário mí-nimo vigente.

Desse modo, enquanto a legislação ordinária não garan-tir a satisfação dos mínimos sociais através do direito social fundamental do benefício assistencial, o critério do meio sa-lário mínimo acaba balizando as decisões judiciais, em notó-rio avanço na efetivação deste direito.

Na verdade, podemos vindicar o seguinte critério: se os percipientes em potencial ao Benefício Assistencial da Lei Or-

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73Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais O Direito a Ter Direitos: os direitos sociais assistenciais a partir do ativismo judicial|

gânica da Assistência Social tiverem uma renda familiar infe-rior ao ¼ do SM, fazem jus a este benefício automaticamente, sem que seja necessário laudo ou parecer socioeconômico. A prova é objetiva.

Caso contrário, se a renda for superior a esse patamar, deve ser analisado caso a caso, pois somente a realidade concreta poderá apontar se há ou não a necessidade do be-nefício para atender aos mínimos sociais existenciais dos cidadãos.

5. controvérsiAs sobre A deficiênciA: o desAstroso sistemA periciAL previdenciário e suA incompetênciA nA Aferição dA deficiênciA

A caracterização de “deficiência”, constante no art. 20, § 2º, da Lei n. 8.742/93, reporta essa condição àqueles que pos-suem incapacidade para o trabalho e para a vida independen-te. No seu art. 1º, do Estatuto das Pessoas Portadoras de De-ficiência, o qual o Brasil é signatário (Decreto Legislativo n. 186/08), é considerado deficiente aqueles que “têm impedi-mento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”

À luz desse Estatuto, que tem o “status” de Emenda Constitucional, deve ser repensado totalmente o conceito de deficiência que até então vem pautando as políticas sociais previdenciárias.

De outro modo, deve ser também analisado o burocrático e ineficiente sistema pericial a cargo do INSS, responsável pela triagem dos pretendentes ao Benefício Assistencial da Lei Orgânica da Assistência Social.

Como é sabido, além de não contar com um corpo de pe-ritos detentores dos saberes nas mais diversas especialidades do conhecimento da medicina, a exemplo dos médicos psi-quiatras que raramente transitam pelos corredores sombrios do Instituto Nacional do Seguro Social, a formação dos peri-tos não se coadunam com o espírito trazido pelo benefício de prestação continuada da Lei Orgânica da Assistência Social.

Ora, o médico perito, quando analisa os casos concre-tos, possui seus referencias pautados na incapacidade labo-ral dos segurados, ou seja, com a perspectiva do “mundo do trabalho”.(3)

Não é isso, absolutamente, que deve nortear o Benefício Assistencial. Este tem outra natureza, totalmente diversa dos benefícios previdenciários de natureza contributiva.

Dessa equação resulta o desastre das perícias realizadas pelo INSS. Prova disso são os dados objetivos que encon-tramos em pesquisa dos benefícios requeridos e concedidos referentes ao ano de 2011. Segundo aponta os dados do INSS,

de um total de 430.959 requerimentos de portadores de defi-ciências, somente 286.973 foram concedidos. Analisando os motivos desses indeferimentos veremos que a principal causa é o não preenchimento do requisito “incapacidade para o tra-balho e para a vida independente”, representando um total de 117.041 benefícios indeferidos nessa rubrica.

Outro dado significativo que extraímos dos dados obti-dos do INSS é a quantidade dos benefícios aglomerados no tópico “renda familiar”, correspondendo a 26.023 daqueles segurados cuja família é considerada “capaz de se manter”, mais 36.452 cuja renda “per capita” foi igual ou superior a 1/4 do Salário Mínimo. Somados, teremos a quantia de 62.475. O número de pessoas que possuem deficiência temporária (quiçá duradoura?), também é revelador, com um total de 55.590 benefícios indeferidos.

Frise-se que, embora tenham provado o exigente critério de deficiência, praticamente 36 mil pessoas ficaram sem este importante benefício, decorrente da renda familiar.

Outra questão importante é a não consideração dos crité-rios relacionados à incapacidade para o trabalho e para a vida independente quando se tratar de menor de idade (de zero a 16 anos). Isso porque resta presumida a incapacidade dos menores, não havendo que se falar em prova de incapacidade laboral. O próprio INSS já regulamentou essa questão por meio da Orientação Interna INSS/Dirben n. 61/02.

Com efeito, parece-nos que somente um trabalho inter-disciplinar, que envolva os mais diversos profissionais (psi-cólogos, médicos, assistentes sociais, entre outros), poderá responder aos critérios de necessidade ao BPC da LOAS, tal como consta na CF/88, seja sob o ponto de vista da deficiên-cia, seja em relação aos benefícios por idade.

6. o conceito de “fAmíLiA” nA perspectivA do benefício AssistenciAL

O conceito de família considerado para fins de conces-são do Benefício Assistencial não poderia ser mais restritivo. Isso porque, segundo preceitua a Lei n. 9.720/98, é adotado o mesmo rol constante no art. 16 da Lei n. 8.213/91, qual seja os cônjuges, companheiros, filhos menores ou inválidos, pais dependentes e irmãos menores ou inválidos.

Mais uma vez um critério previdenciário norteia as po-líticas assistenciais. O resultado dessa equação é o desastre, com a perda da finalidade deste benefício.

Primeiramente, insta observarmos que todos os demais programas assistenciais e de transferência de renda esboçam um conceito diferente de família. Vejamos alguns deles:

a) BOLSA FAMÍLIA = programa de transferência de renda destinado às famílias carentes, instituído pela Lei n. 10.836/04, cujo conceito de família pode ser compreendido como a unidade nuclear de pessoas

(3) Para uma análise mais detida do sistema pericial ver COSTA, 2013, especialmente o anexo referente à Perícia Biopsicossocial.

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74 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Ana Maria Correa Isquierdo e José Ricardo Caetano Costa|

com vínculos de parentesco ou de afinidade, que vivam sob o mesmo teto, configurando-se em um núcleo doméstico que sobrevive da renda de seus participantes.

b) BOLSA ESCOLA = instituído pela Lei n. 10.219/01, destina-se igualmente às famílias carentes, buscando manter as crianças na escola. Neste caso, similar ao primeiro grupo citado, entende como família a uni-dade nuclear de indivíduos, parentes ou agregados, que formem o grupo doméstico e vivam sob o mes-mo teto, cuja economia resulta do trabalho de todos.

c) BOLSA ALIMENTAÇÃO = programa que visa o com-plemento da renda familiar, promovendo as condi-ções de saúde das gestantes. Neste caso, família é a unidade nuclear formada por pais e filhos, seja com laços de parentescos ou por afinidade, que vivem sob o mesmo teto, nos mesmos termos dos dois primei-ros programas.

Disso resulta que a denominada “parentabilidade socioafe-tiva” resta prejudicada quando, nas classes menos favoreci-das economicamente, é bastante comum os complexos e di-ferenciados núcleos familiares. Nestes, encontramos as mais variadas combinações socioafetivas e de laços parentais: um sobrinho deficiente, um menor agregado, outro enteado, os dois avós e um filho maior de idade, todos vivendo sob um mesmo teto em regime de mútuo auxílio.

Quando da apreciação dos critérios para concessão do Benefício Assistencial, tomando como exemplo o caso con-creto acima descrito, quando dois dos componentes do gru-po percebem um salário mínimo cada, o sobrinho deficiente não terá direito ao BPC da LOAS, muito embora esteja sobe-jamente provada a deficiência.

Na lição de Simone Barbisan Fortes, “não se podem des-considerar outros parentes, como, por exemplo, filhos maio-res e netos, e mesmo pessoas não vinculadas por consan-guinidade ou afinidade, cuja parentalidade é dada a partir da afetividade o grupo, pois evidentemente fazem parte da família.” (FORTES, 2009, p. 274-275).

concLusões

De todo o exposto podemos concluir que o Benefício As-sistencial, ainda caldatário de um sistema assistencialista e paternalista, que considerava a política de assistência social como uma “esmola” resultante de um cínico solidarismo so-cial, ou das pecúnias populistas emanadas do Estado, ainda não é, efetivamente, tratado enquanto um Direito Funda-mental Social.

A Assistência Social no Brasil compreende como seus signatários aqueles que abdicam da cidadania e de seus ou-tros direitos, ao contrário do que seria o seu papel fundante: promover a cidadania mediante a inclusão social dos porta-dores desse direito.

São inúmeros os exemplos que podemos citar para ilus-trar e comprovar essa constatação.

Esse processo de inversão de princípios, como vimos, já começa mal quando a Previdência Social foi designada para realizar a triagem, a manutenção e o pagamento deste im-portante benefício social. A começar pela ótica com que os peritos avaliam o conceito de deficiência, cujo paradigma é o “mundo do trabalho”, critério este totalmente imprestável para os fins colimados da Assistência Social enquanto políti-ca institucional para promoção e integração dos portadores de alguma deficiência. Seja, também, quando avalia os cri-térios de renda ou de família, cujos conceitos previdenciá-rios são igualmente deletérios em se aplicando à Assistência Social, v.g. o conceito de família exposto no art. 16, da Lei de Benefícios da Previdência Social (Lei n. 8.213/91). Os re-sultados dessa lógica perversa não poderia ser diferente e os dados indicativos apresentados neste trabalho de pesquisa confirmam essa realidade.

Entre tantos outros exemplos que poderíamos citar, salta aos olhos aqueles casos que atingem milhares de deficientes que tentam uma colocação ou recolocação no mercado de trabalho. O dilema é sempre presente, em se tratando dos direitos sociais: caso consigam emprego formal, ocupan-do, inclusive, as quotas destinadas aos deficientes, deixam de preencher os requisitos autorizativos para os benefícios assistenciais. Caso já tenham trabalhado com a Carteira de Trabalho assinada e percam seus empregos, o que é bastante comum, seus pedidos posteriores esbarram na desconfiança da Previdência Social de que não preenchem mais os requisi-tos da invalidez, uma vez que já trabalharam. Essa dinâmica, que comprova a tese de que os percipientes dos benefícios assistenciais devem abdicar dos demais direitos, conduz a um resultado catastrófico: os portadores de deficiência, por medo de perderem ou não conseguirem seus benefícios, dei-xam de trabalhar na formalidade.

Contraentendemos que os Direitos Assistenciais, espe-cialmente em se tratando do único benefício de prestação continuada constante na Lei Orgânica da Assistência Social, devem ser um benefício de passagem. O que vale dizer que eles não podem ter um fim em si mesmo. Por contraditó-rio que pareça, a Assistência Social deveria ter como fim o seu próprio desaparecimento. Deveriam, os percipientes dos benefícios assistenciais, não se contentarem com os auxílios percebido, mas serem incentivados a sair da condição de as-sistidos. Seus benefícios deveriam caminhar para uma extin-ção e não para a perpetuação.

Por outro lado, como conciliar estes propósitos quando os portadores desses Direitos são desmotivados a elevarem seus direitos de cidadania, de procurarem uma melhor con-dição de vida, vez que devem provar a miserabilidade e nela permanecerem para fazer jus aos benefícios assistenciais.

Na verdade existe pouca articulação da Assistência Social com os demais direitos sociais, políticos e culturais. Prova disso é o fato de os percepientes do Benefício Assistencial da Lei Orgânica da Assistência Social não poderem contribuir para a Previdência Social, sob pena de, o fazendo, terem seus benefícios automaticamente suspensos.

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75Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais O Direito a Ter Direitos: os direitos sociais assistenciais a partir do ativismo judicial|

Ora, nesta perspectiva que vislumbramos deveria haver um incentivo aos portadores dos Direitos Assistenciais em participarem dos planos de Previdência Social. O que vale di-zer, em outras palavras, que se seus percipientes passarem da condição de assistidos a contribuintes da Previdência Social, sua condição resta alterada: passam a ser segurados do siste-ma previdenciário, em caso de falecimento seus dependentes percebem a pensão por morte (vez que o benefício da Lei Or-gânica da Assistência Social é pessoalíssimo, intransferível), passando a gozar de vários direitos os quais não possuem enquanto perceberem os benefícios assistenciais. É justamen-te neste sentido que propomos a concepção de benefício de passagem, de modo que o fim último, como dissemos, do benefício assistencial deveria ser a sua própria morte.

referênciAs

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especificidades da coisa Julgada na concessão do Benefício assistencial

Bruno Takahashi(*)

Karina Carla Lopes Garcia(**)

introdução

A assistência social, dentro do tripé da seguridade social, é o ramo voltado ao atendimento da parcela mais carente da população, normalmente não abrangida pela cobertura pre-videnciária contributiva. Atua no sentido de proporcionar condições mínimas de subsistência aos mais necessitados, tendo dentre seus objetivos “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”(1).

A concessão do referido benefício assistencial, não raro, dá-se judicialmente, contexto em que as peculiaridades de tal lide devem ser consideradas na dinâmica processual. Su-perada a fase em que o direito processual, na ânsia de ter sua autonomia científica reconhecida, acabou afastando-se do direito material, nos dias atuais se ressalta a importância do processo como um instrumento que deve ter em consi-deração não apenas o direito material a ser tutelado, mas a própria realidade social em que está inserido(2).

Neste contexto, o que se pretende analisar nesta obra são as modulações exercidas sobre o processo civil geral pe-las especificidades da lide assistencial, sobretudo diante da provisoriedade inerente aos seus requisitos, além da contro-vérsia em torno da interpretação legal e jurisprudencial dos

mesmos. Especificamente, o foco da análise será o instituto processual da coisa julgada, contrapondo sua natural pre-tensão de definitividade frente a dois pontos principais: a) provisoriedade do benefício assistencial; b) possibilidade de relativização após a evolução da interpretação constitucional acerca dos requisitos legais do benefício. Ao final, buscar-se-á delimitar os limites da revisão bienal prevista pela legislação, bem como de eventual relativização da coisa julgada diante da nova jurisprudência constitucional.

1. benefício AssistenciAL. espécies e requisitos

O benefício assistencial, nos moldes da previsão consti-tucional do art. 203, inciso V, possui duas espécies: o devido ao portador de deficiência física e o devido ao idoso. Como requisito comum tem-se a chamada miserabilidade, ou seja, a impossibilidade de prover a própria subsistência ou de tê-la provida pela família.

A definição legal dos conceitos “deficiência”, “idoso”, “miserabilidade” e mesmo de “família”, todos para fins de concessão ou não do referido benefício, coube, precipuamen-te, ao art. 20 da Lei n. 8.742/1993.

Deficiente foi definido como aquele portador de “im-pedimentos de longo prazo de natureza física, mental, inte-

(*) Mestrando em Direito Processual pela USP. Juiz Federal Substituto.

(**) Advogada da União.

(1) Constituição Federal, art. 203, V.

(2) Revendo posição anterior, adota-se aqui visão mais abrangente de instrumentalidade, que considera que não se deve buscar a adequação das respostas do direito processual apenas na perspectiva do direito material, mas da realidade social em que esse direito está inserido e que é muito mais complexa do que aquilo que é regulamentado pelo ordenamento estatal. Tal visão mais ampla é chamada por Carlos Alberto de Salles (2011, p. 13-27) de instrumentalidade metodológica.

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77Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Especificidades da Coisa Julgada na Concessão do Benefício Assistencial|

lectual ou sensorial” capazes de “obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (§ 2º), estabelecendo-se que “longo pra-zo” corresponderia a um “mínimo de 2 (dois) anos” (§ 10). Idoso, por sua vez, decidiu-se que seria a pessoa com 65 anos ou mais (caput).

Quanto à miserabilidade, fixou-se que estaria configu-rada no caso da renda per capita da família inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo (§ 3º), determinando-se que, para fins de concessão do benefício assistencial, família seria “composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto” (§ 1º). Reper-cutindo no conceito de miserabilidade tem-se, ainda, a exclu-são, para fins de cálculo da renda familiar, dos rendimentos do deficiente aprendiz (§ 9º), bem como dos valores referen-tes a benefício assistencial já percebido por idoso membro da família, na forma do parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003).

1.1. provisoriedade de seus requisitos e revisão bienal

Da rápida exposição acerca dos requisitos legais para concessão do benefício assistencial infere-se que são situa-ções nitidamente temporárias. A incapacidade, dependendo de sua natureza, pode regredir ou se agravar, assim como podem variar a situação econômica da família ou o próprio quadro familiar.

Pois bem. Tal situação justifica a previsão legal contida no art. 21 da Lei n. 8.742/1993, no sentido de se realiza-rem revisões bienais “para avaliação da continuidade das condições” que autorizaram anteriormente a concessão do benefício.

1.2. concessão judicial e peculiaridades do regime probatório

Em que pese haja quem defenda o contrário, o enten-dimento que se adota vai no sentido de que o interesse de agir para se requerer judicialmente o benefício assistencial, salvo exceções voltadas a resguardar o direito material em risco, surge somente com o indeferimento administrativo da pretensão, uma vez que não parece ser possível caracterizar a lide se o INSS sequer teve a possibilidade de aceitar ou recu-sar previamente o pedido formulado(3).

Outro aspecto relevante do prévio indeferimento admi-nistrativo, apesar de menos lembrado, é sua função de ele-mento delimitador da controvérsia, já que cabe ao Judiciário exercer o poder de revisão dos atos administrativos. Por con-sequência, fica delimitado o objeto da prova, o que repercute, ainda, nos limites da coisa julgada.

Com exceção do requisito etário, cuja comprovação dá-se de forma simples, os demais requisitos envolvidos na conces-são do benefício assistencial possuem aspectos probatórios relevantes que não podem ser desconsiderados. Com rela-ção à incapacidade, é notória a importância da prova técnica, em especial, a perícia produzida por médico de confiança do juízo, muito embora exames médicos, atestados e laudos de médicos particulares também sejam considerados. A misera-bilidade, por sua vez, diante da flexibilização jurisprudencial do conceito legal da renda per capita até ¼ do salário mínimo, passou a poder ser demonstrada pelos mais variados meios de prova. Nos dois casos a produção da prova se mostra mais complexa, exigindo uma atuação mais presente do juiz, so-bretudo diante da “hipossuficiência econômica e informacio-nal” da parte autora em processos dessa natureza, além do desequilíbrio entre as partes, muito bem delineados por José Antônio Savaris (2010, p. 62-63):

O autor é presumivelmente hipossuficiente. É uma hipossuficiência econômica e informacional, assim con-siderada a insuficiência de conhecimento acerca de seus direitos e deveres. Uma vez que o autor se encontra em juízo buscando prestação de natureza alimentar, presu-me-se destituído de recursos para garantir sua subsis-tência. (...) Na ação em que se pretende o benefício de prestação continuada de assistência social, a presunção de fragilidade econômica, salvo temeridade na demanda, não é passível de ser infirmada, visto que o próprio di-reito material é destinado apenas ao que necessita (CF, art. 203, caput) e não tem condições de prover sua sub-sistência ou de tê-la provida por sua família (CF/88, art. 203, V).

(...)

Se o autor da demanda é presumivelmente hipossufi-ciente, por sua vez o réu é uma entidade pública, o Esta-do em sentido amplo. Se o primeiro não detém conheci-mento pleno acerca de seus direitos, o último dispõe de todas as informações que poderiam conduzir à concessão da prestação previdenciária pretendida.

Neste contexto, compete ao juiz zelar pela adequada pro-dução probatória, no melhor viés do processo colaborativo

(3) A favor de tal posicionamento, cabe destacar a Súmula 2 das Turmas Recursais do Rio Grande do Sul (“Tratando-se de concessão de prestações previdenciárias, é imprescindível o prévio requerimento administrativo, que deve ser comprovado pela Carta de Indeferimento ou pelo protocolo fornecido pela Administração (no caso de demora injustificável). No caso de cancelamento de prestações previdenciárias, ou de ações de reajustamento, o exame das questões ventiladas prescinde da via administrativa”) e o Enunciado n. 77 do FONAJEF (“O ajuizamento da ação de concessão de benefício da seguridade social reclama prévio requerimento administrativo”).

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78 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Bruno Takahashi e Karina Carla Lopes Garcia|

delineado por Daniel Mitidiero (2007), segundo o qual “a colaboração impõe uma postura dialogal e aberta ao órgão ju-risdicional, comprometida mais com o desiderato de acudir--se ao justo no processo do que ao prestígio do fetichismo da forma pela forma”.

Insta salientar ainda que a qualidade da prova deve ser analisada de acordo com a contexto social existente. Nos ca-sos de benefícios assistenciais, há uma notória discrepância entre o nível de informações dos autores e do INSS, decor-rente tanto do conhecimento das especificadas da lei como, muitas vezes, do próprio grau de instrução. Tal dificuldade informacional deve ser ponderada pelo juiz na apreciação das provas, não fazendo exigências fora da realidade.

Como bem salientado por Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2009, p. 208):

a convicção judicial não pode ter pretensão a uniformi-dade, como se o juiz pudesse formar a sua convicção sem olhar para o caso concreto. Ao juiz é indispensável consi-derar as circunstâncias do caso concreto que revelam di-ficuldades na produção da prova (...) a convicção judicial não pode ser pensada como algo que diz respeito apenas ao direito processual, compreendido na sua tentativa de isolamento em face do direito material. Para que os di-reitos possam ser adequadamente tutelados, a convicção do juiz não pode deixar de considerar as diferenças entre as várias situações de direito material.

É essa relação entre a prova produzida, a dificuldade in-formacional do autor e as especificidades do benefício assis-tencial que permite uma associação direta entre coisa julgada e fato provado.

2. coisA JuLgAdA mAteriAL. espécies

Conforme dispõe o art. 467 do Código de Processo Ci-vil, “denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”

Em regra, surge independentemente do resultado da causa (pro et contra), mas também pode observar o regime secundum eventum litis, configurando-se somente diante de um determinado resultado, ou, ainda, secundum eventum pro-bationes, ocorrendo somente quando houver esgotamento de prova. Neste último regime, a improcedência por falta de provas não faz coisa julgada material, sendo defendida por

José Antonio Savaris (2010, p. 90-92) sua aplicação no âmbi-to das lides previdenciárias e que pode ser estendido ao caso do benefício assistencial(4).

2.1. coisa julgada secundum eventum probationes nas lides assistenciais

Para iniciar tal estudo, é importante salientar que uma preliminar de coisa julgada somente existe quando se está diante de uma ação idêntica à outra anteriormente ajui-zada, ou seja, que tenha as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir (art. 301, § 2º, do CPC). Assim sendo, se a deficiência incapacitante alegada em uma ação for diversa de outra, está-se diante de duas causas de pedir diver-sas, a ensejar duas ações diferentes. Isso porque há dois fatos jurídicos distintos, que embora possam gerar o mesmo efeito jurídico, guardam uma autonomia, salvo, evidentemente, no caso em que a incapacidade somente decorre da reunião de deficiências e não de uma única isoladamente. Sobre este as-pecto, cabe citar a lição de Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2007, p. 639-640) no sentido de que:

(...) pode suceder que diversos ‘grupos’ de fatos jurídi-cos permitam a realização do mesmo efeito jurídico; neste caso, cada um dos conjuntos de fatos jurídicos – capazes de, autonomamente, resultar no efeito em questão – de-verá ser considerado como uma causa de pedir autônoma, capaz de individualizar uma ação isolada. Nesse caso, ainda que o pedido seja um só, a existência de pluralida-de de causas de pedir revelarão a possibilidade também de pluralidade de ações.

Os mesmos autores salientam que isso irá ocorrer ainda que haja alteração apenas da causa de pedir próxima ou ape-nas da remota, salientando que:

O que se quer dizer é que a criação de outra causa de pedir não exige que se narre, na nova demanda, funda-mento relativo a fatos absolutamente desvinculados dos que foram alegados na primeira ação. Basta que sejam apresentadas modificações fáticas capazes de apontar para um fundamento distinto.

(...)

De tudo o que restou até aqui exposto, fica evidente que a extensão objetiva da coisa julgada limita-se à parte dispositiva da sentença, tornando imutável o seu efeito declaratório. Todavia, dimensiona-se esta imutabilidade pelo exame dos três elementos que identificam a ação,

(4) Embora, como salientado inicialmente, a assistência social se inclua no tripé da seguridade social, não se confundindo assim com o ramo da previdência social, alguns aspectos processuais relativos ao benefício assistencial da Lei n. 8.742/1993 são muito próximos ao das lides previdenciárias. De fato, os traços gerais da pretensão são tão próximos dos demais casos em face do INSS que comumente estão inseridos no que se convencionou chamar Direito Processual Previdenciário. Conforme José Antonio Savaris (2009, p. 387):” (...) quando se fala em processo previdenciário ou competência jurisdicional previdenciária, a análise do benefício assistencial é abrangida, porque os elementos da lide são essencialmente os mesmos: autor da demanda hipossuficiente em termos econômicos e informacionais, direito material de natureza alimentar correspondendo a um direito fundamental, e a autarquia previdenciária no polo passivo”.

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79Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Especificidades da Coisa Julgada na Concessão do Benefício Assistencial|

ou seja, pela observação das partes, do pedido e da causa de pedir. Modificado algum destes elementos, estar-se--á evidentemente diante de uma nova ação, para a qual nenhuma relevância possui a existência de coisa julgada na demanda anterior.

Frise-se que a mera alteração de parcela da causa de pedir (ou seja, de um de seus elementos), importa em outra ação, uma vez que daí surgirá a modificação evidente da causa de pedir e, por consequência, da ação.

Logo, ainda que as limitações sobrevenham na mesma época, o indivíduo pode ingressar com duas ações, alegando primeiramente uma deficiência e, posteriormente, uma se-gunda, sem que com isso incida na coisa julgada.

No entanto, acredita-se que tal entendimento não pode ser radical ao ponto de permitir que um único indeferimento administrativo leve a duas ações judiciais. Se o objetivo da ação judicial é corrigir o ato de indeferimento administrati-vo, é evidente que em juízo a análise de ser de todas as de-ficiências anteriormente apresentadas perante o INSS, pois, como visto, o indeferimento é que traça os limites da contro-vérsia. Nada impediria, entretanto, que fosse alegada uma de-ficiência administrativamente e, indeferido o benefício, fosse posteriormente postulado novo pedido administrativo em relação a uma outra moléstia incapacitante, pois a base fática seria alterada e daria ensejo a duas ações judiciais distintas.

De outro lado, caso tenha havido judicialmente a pro-dução de provas em relação à deficiência não alegada, sobre esta moléstia também incidirá os efeitos da coisa julgada. Isso porque a coisa julgada, em demandas relativas a benefícios por incapacidade, o que abrange o benefício assistencial ao menos em uma de suas modalidades, está intimamente rela-cionada à prova produzida em juízo. A partir do momento em que há produção de prova acerca de determinada incapa-cidade, incide os efeitos da coisa julgada. Significa dizer que não basta a alegação da deficiência incapacitante feita pelo autor na sua petição inicial. É necessário que tal deficiência seja analisada pelo juízo a partir do conjunto de prova car-reado aos autos. Se não houver tal análise, mesmo que a par-te não oponha Embargos Declaratórios em face da decisão, não haverá coisa julgada, pois, em última análise, não houve apreciação judicial.

Em sentido inverso, caso seja produzida prova pericial em relação à deficiência diversa da alegada administrativa-mente, tal moléstia pode ser considerada pelo juízo como fato superveniente, a interferir no julgamento da causa, apli-cando-se o art. 462 do CPC por analogia. Evidentemente, a dispensa do prévio indeferimento administrativo somente poderá ser relativizada quando houver boa-fé da parte au-tora e a situação do caso concreto indicar tal solução como recomendável. Ressalte-se ainda que, nessa hipótese, o INSS somente terá ciência da deficiência a partir do próprio lau-do produzido por médico nomeado pelo juízo. Desse modo,

justifica-se que a data de início do benefício seja fixada a partir da juntada do laudo pericial aos autos.

Tal perspectiva baseia-se na ideia de coisa julgada se-gundo a prova nos autos, conceito que José Antonio Savaris (2010, p. 87) chega a identificar com o próprio conceito de “coisa julgada previdenciária” e que se estende ao benefício assistencial(5).

Há, assim, uma revisão do próprio conceito de causa de pedir. A causa de pedir é tradicionalmente definida como as razões fáticas e jurídicas que justificam o pedido, dividindo--se em causa de pedir remota (fato em si) e em causa de pedir próxima (repercussão jurídica do fato) (Theodoro Jr; 2001, p. 59). No entanto, nas lides envolvendo benefícios por in-capacidade, a causa de pedir deixa de ser o que é alegado pelo autor e passa ser mais diretamente associada ao que é objeto de prova. Dessa forma, há uma associação direta entre prova e causa de pedir, o que se traduz em uma coisa julgada segundo a prova dos autos (secundum eventum probationis).

Sobre esse aspecto, é certo que o art. 474 do Código de Processo Civil estabelece que: “Passada em julgado a senten-ça de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao aco-lhimento como à rejeição do pedido”. Seria, assim, a consa-gração da eficácia preclusiva da coisa julgada ou do chamado “julgamento implícito”. No entanto, é de se salientar que o próprio alcance do conteúdo de tal dispositivo não é tão am-plo quanto possa parecer.

De fato, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Are-nhart (2007, p. 647-651) questionam quais seriam os temas não deduzidos que ficam acobertados pela previsão do art. 474, presumindo-se que tenham sido alegados e rechaçados. Para tanto partem do seguinte exemplo: sendo rejeitado o pedido em ação de despejo promovida sob o fundamento de danos ao imóvel, poderia ser ajuizada nova demanda com base no não pagamento dos aluguéis? Como se tratam de duas causas de pedir distintas (danos no imóvel e não paga-mento de aluguéis), a resposta é positiva. Por isso, tais auto-res afirmam que “apenas a questões relativas à mesma causa de pedir ficam preclusas em função da incidência da previsão do art. 474. Todas as demais são livremente dedutíveis em demanda posterior”.

Em outros termos:

A ideia do ‘julgamento implícito’, por consequência, (considerados evidentemente os elementos que identifi-cam a ação) abrange somente as questões cujo exame cons-titui premissa necessária para a conclusão a que se chega no processo.

(...)

Em síntese, pois, é necessário fixar a seguinte conclu-são: a preclusão, capaz de operar em razão do art. 474 do Código de Processo Civil, diz respeito apenas às questões

(5) Vide justificativa para essa extensão na nota anterior, supra.

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concernentes à mesma causa de pedir. Somente as questões internas à causa determinadas, relativas à ação proposta – e, portanto, referentes às mesmas partes, ao mesmo pedido e à mesma causa de pedir – é que serão apenhadas por esse efeito preclusivo, de forma a torná-las não dedutíveis em demanda diversa. Qualquer outra questão, não pertencente àquela específica ação, ainda que relacionada indiretamente a ela – porque correspondente a outra causa de pedir pas-sível de gerar o mesmo pedido, ou porque concernente à pretensão de outra parte sobre o mesmo objeto etc. – não pode ficar sujeita a essa eficácia preclusiva.

Desse modo, há uma limitação da eficácia preclusiva da coisa julgada em relação à causa de pedir de determinado pro-cesso. Sendo a base fática a mesma, uma vez produzida a prova pericial pertinente, incide a eficácia preclusiva da coisa julgada.

Como já aventado anteriormente, não se nega que essa postura leva em consideração as peculiaridades que envol-vem o benefício assistencial, seguindo-se, assim, a lição de José Antonio Savaris (2010, p. 87):

A coisa julgada não deve significar uma técnica for-midável de se ocultar a fome e a insegurança social para debaixo do tapete da forma processual, em nome da se-gurança jurídica. Tudo o que acontece, afinal, seria ‘ape-nas processual, mesmo que seus efeitos sejam desastro-sos para a vida real’.

Aproxima-se, então, a noção de causa de pedir com a de fato que foi objeto de prova, de maneira a se impedirem preclusões que tolheriam o próprio direito material de indi-víduos em detrimento da realização da justiça.

Em síntese, a coisa julgada nas ações relativas ao benefí-cio assistencial da Lei n. 8.742/1993 abrange uma determina-da situação fática que foi objeto de prova. Em consequência, somente haverá possibilidade de nova ação caso alterada essa situação fática. E, dentro da linha de raciocínio exposta, a modificação pode ocorrer em duas circunstâncias: a alteração fática futura e a alteração fática decorrente de situação fática passada não verificada anteriormente.

2.2. cláusula rebus sic standibus da coisa julgada nas relações continuadas

Em regra, o instituto da coisa julgada exerce efeitos sobre situações pretéritas, solucionando conflitos já ocorridos. Ex-

cepcionalmente, no entanto, seus efeitos podem se projetar também para o futuro, como nos casos de relações perma-nentes ou sucessivas, situação em que sua força passa a ter implicitamente a cláusula rebus sic standibus.

Pois bem. A concessão do benefício assistencial, dado seu caráter notadamente provisório, encontra-se dentro da referida exceção, não podendo o estudo da coisa julgada des-curar dos reflexos desse fato na pretensão de definitividade do referido instituto.

2.2.1. Alteração fática futura. Limites da revisão dos benefícios concedidos judicialmente

Segundo José Antonio Savaris (2010, 75), o “juiz previ-denciário concede o benefício nos termos em que ele é devido por lei, isto é concede definitivamente um benefício provisó-rio”. Trata-se, assim, de uma relação continuativa, pois tan-to uma deficiência que não gerava limitações consideráveis na vida da pessoa, implicando a improcedência de pedido anterior pode vir a ser incapacitante, como uma incapacida-de pode vir a ser tratada e curada, gerando legitimamente a cessação do benefício concedido, ainda que judicialmente. Da mesma forma, uma situação econômica pode piorar, ge-rando uma miserabilidade até então inexistente, como pode melhorar, retirando determinado indivíduo da condição de miserável para fins de concessão do benefício assistencial. Vale a aplicação, portanto, do disposto no inciso I do art. 471 do CPC(6).

Assim sendo, em se referindo a uma alteração fática ocorrida posteriormente a demanda judicial já transitada em julgado, não há maiores dificuldades do ponto de vista doutrinário. De fato, tratando-se de alteração superveniente dos fatos, há nova causa de pedir, não abrangida pela coisa julgada anterior(7).

Se a demanda anterior foi julgada improcedente, nada impede que o autor formule novo pedido administrativo e, caso indeferido, ingresse com nova demanda, cabendo tanto ao INSS como, em caso de negativa, ao Judiciário, atestar se houve alteração dos fatos.

Da mesma forma, se a demanda anterior foi julgada pro-cedente, permite-se que haja convocação para nova análise administrativa, nos termos do art. 21 da Lei n. 8.742/1993, que dispõe que o benefício assistencial “deve ser revisto a

(6) “Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo:

I) se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;”

(7) Com bem salientado por Marinoni e Arenhart (2007, 645-646) “a imutabilidade da coisa julgada protege a declaração judicial apenas enquanto as circunstâncias (fáticas e jurídicas) da causa permanecerem as mesmas, inseridas que estão na causa de pedir da ação”. A seguir, explicitam melhor o seu pensamento da seguinte forma: “A sentença espelha os fatos e o direito que serviram como seus fundamentos de maneira que, alterados os fatos ou o direito, modificada estará a causa de pedir, e por consequência a ação. Em outros termos: a alteração das circunstâncias de fato constitui alteração da causa de pedir, formando outra (nova) ação e abrindo ensejo a outra (nova) coisa julgada. Assim, quando são alteradas as circunstâncias de fato, será formada outra (nova) coisa julgada, que deverá conviver em harmonia com a coisa julgada respeitante às circunstâncias anteriores”. No mesmo sentido: Marinoni (2008, p. 139).

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cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condi-ções que lhe deram origem”.(8)

Não se trata aqui de improvável revisão administrativa de decisão judicial transitada em julgado. O que se pretende é consolidar a ideia de que, na medida em que o benefício assistencial tem nítido caráter transitório, uma vez alterada a situação fática, altera-se a causa de pedir e, com isso, não mais prevalece a coisa julgada firmada no processo judicial. Desse modo, a coisa julgada somente prevalece se a situação permanecer a mesma. Alterada a situação fática que foi de-terminante para o resultado, tem-se uma nova causa de pedir no caso de novo indeferimento administrativo. No entanto, o raciocínio inverso também é válido, ou seja, permanecendo inalterada a situação fática, não há que se cogitar de nova causa de pedir a ensejar novo pedido administrativo ou ju-dicial.

Nesse último caso incidem tanto o efeito negativo como o positivo da coisa julgada (Marinoni; Arenhart: 2007, p. 638). Desse modo, impede-se que o tema decidido venha ser novamente objeto de decisão judicial de mérito (efeito nega-tivo), bem como há uma vinculação dos juízes e agentes ad-ministrativos em relação à declaração proferida e transitada em julgado no processo anterior.

É importante salientar ainda que tais efeitos também estão presentes no caso em que o processo é julgado procedente, concedendo o benefício assistencial ao autor. Especialmente em decorrência do efeito positivo da coisa julgada, o médico perito do INSS não pode, em perícia posterior, cancelar o benefício concedido judicialmente sem que evidencie que houve uma alteração na situação fática. O mesmo ocorre em relação à análise do requisito da miserabilidade: diante de uma realidade socioeconômica idêntica já considerada em juízo, não pode haver revisão administrativa. Em outros termos, não se pode cancelar o benefício com

base exclusivamente na interpretação técnica diversa em relação a uma mesma moléstia ou a uma mesma realidade socioeconômica. Inalterada a situação fática, prevalece a coisa julgada anterior(9).

Neste contexto, nota-se a importância de orientação jurí-dica aos médicos peritos, assistentes sociais e agentes admi-nistrativos do INSS para que possam distinguir quais foram os limites da coisa julgada ou mesmo de provimento provisó-rio em anterior processo judicial, no que se mostra relevante o papel a ser exercido pela Procuradoria Federal responsável.

Por isso é louvável a existência da Orientação Interna Conjunta/INSS/PFE/DIRBEN n. 76, de 18 de setembro de 2003, que foi editada em conjunto pelo então Procurador Chefe e o Diretor de Benefícios do INSS, com objetivo justa-mente de regulamentar a revisão administrativa de benefícios concedidos judicialmente, incluindo tanto os benefícios pre-videnciários por incapacidade como o benefício assistencial da Lei n. 8.742/1993, ao menos na modalidade devida ao deficiente(10).

Em que pese haver necessidade de atualização, referida Ordem Interna tem o grande mérito de evitar que o médico perito do INSS decida, por si só, que pode haver a cessação do benefício, exigindo a participação da Procuradoria Fede-ral Especializada para aferição da mudança da situação fática, ou seja, para considerar os efeitos de anterior coisa julgada.

Assim é que, nos termos do art. 7º, “ao realizar o exame médico pericial o Médico-Perito/supervisor médico pericial deverá preencher todos os campos do Laudo Médico Pericial – LMP, Revisão de Benefícios Judiciais, partes 1 e 2”, ou seja, deverá preencher laudo específico, “com letra legível, sem rasuras e sem abreviaturas, emitindo parecer técnico funda-mentado sobre a capacidade laborativa e atividade exercida pelo examinado”. Com isso se pretende evitar laudos peri-

(8) No âmbito dos benefícios previdenciários, o art. 71 da Lei n. 8.212/1991 é explícito quanto à possibilidade de revisão administrativa de benefício concedido judicialmente: “Art. 71. O Instituto Nacional do Seguro Social-INSS deverá rever os benefícios, inclusive os concedidos por acidente do trabalho, ainda que concedidos judicialmente, para avaliar a persistência, atenuação ou agravamento da incapacidade para o trabalho alegada como causa para a sua concessão” (g.n.).

(9) É nesse aspecto que Luiz Guilherme Marinoni (2008, p. 146) alerta que, “diante das relações continuativas, há circunstâncias que se alteram (elementos temporários) e circunstâncias que se mantêm (elementos perenes ou estáveis)”.

(10) Sobre esse aspecto são esclarecedores os considerandos da OI 76/03: “considerando o disposto no art. 11, da Lei n. 10.666, de 08 de maio de 2003, e no art. 71 da Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991, no § 4º do art. 96, e no § 5º do art. 198, da Instrução Normativa n. 84, de 17 de dezembro de 2002; considerando que, dentre os benefícios por incapacidade e deficiência, um grande número é constituído por concessões feitas em cumprimento de decisões judiciais, sendo que a respectiva manutenção não recebe revisão e controle supervenientes; considerando que a decisão judicial, ao determinar a concessão de benefício por incapacidade, baseia-se no preenchimento, pelo interes-sado, dos requisitos da espécie, e, principalmente, na existência de incapacidade para o trabalho ou na deficiência da pessoa, no caso de amparo assistencial; considerando que a incapacidade para o trabalho não é definitiva, podendo sobrevir a cessação, o agravamento ou a persistência da incapacidade, assim como da deficiência; considerando que, verificada a cessação da incapacidade ou da deficiência, por avaliação médico pericial, tem-se o afastamento de um dos requisitos básicos da concessão e manutenção do benefício, impondo-se o impe-rativo legal da sua cessação; considerando que a Lei n. 8.212/91, em seu art. 71, determina que o INSS deverá rever os benefícios, inclusive os concedidos por acidente do trabalho, ainda que concedidos judicialmente, para avaliar a persistência, a atenuação ou o agravamento da incapacidade para o trabalho, alegada como causa para a sua concessão; considerando que o benefício de prestação continuada, concedido à Pessoa Portadora de Deficiência, deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem (arts. 20 e 21 da Lei n. 8.742/93); considerando a necessidade de exercitarem-se controles e rotinas visando agilizar e uniformizar a revisão dos benefícios concedidos em cumprimento de decisões judiciais;(...)”

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ciais por demais sintéticos, cheios de abreviaturas e ininte-ligíveis, facilitando, desse modo, a compreensão do Procu-rador Federal responsável pela análise do caso e do próprio segurado.

Nos termos do art. 8º, após o exame, o médico do INSS poderá concluir pela subsistência da incapacidade (inciso I) ou pela recuperação do segurado (inciso II). No entanto, nessa segunda hipótese, não poderá simplesmente deter-minar a cessação do benefício, pois, por se tratar de con-cessão judicial, deve antes haver uma discussão acerca dos limites da coisa julgada, conforme já exposto acima. Dessa forma, entendendo pela cessação da incapacidade, deve--se inicialmente notificar o beneficiário para que “se não concordar com a conclusão da perícia, apresentar defesa, provas ou documentos que dispuser, no prazo de dez dias” (alínea a). Decorrido o prazo para resposta ou caso a de-fesa apresentada seja considerada insuficiente para alterar a conclusão, o processo administrativo, “instruído com o Laudo Pericial e a Conclusão da Perícia Médica, será enca-minhado, pela Divisão/Serviço de Benefícios, à Procurado-ria local” (alínea b).

Se a Procuradoria local constatar que, de fato, houve al-teração na situação fática a ensejar a cessação do benefício, procederá da seguinte forma: a) se a decisão judicial já tran-sitou em julgado, “devolverá o processo à Divisão/Serviço de Benefícios, para que esta proceda a cessação do benefício e dê conhecimento da decisão ao segurado” (alínea e); b) se a decisão judicial que determinou a implantação de benefício tenha sido proferido em sede de provimento judicial provi-sório (liminar, tutela antecipada, cautelar etc.), “requererá ao juízo competente a revogação da decisão, com fundamento na alteração dos fatos, conforme o Laudo Medido Pericial e a Conclusão da Perícia Médica, que serão anexados ao pedido” (alínea c) e, nesse caso, o “benefício somente será suspenso após decisão judicial que acolha o pedido do INSS, ou que, por qualquer outra razão, revogue a decisão provisória” (alí-nea d).

Por outro lado, caso constate que houve falha na con-dução do procedimento ou de que não houve alteração da situação fática que ensejou a concessão do benefício, “o pro-cesso, contendo manifestação fundamentada da Procurado-ria local, será devolvido à Divisão/Serviço de Benefícios, para correção da falha identificada ou para nova análise, se for o caso” (alínea f).

Dessa forma, exigindo-se a participação da Procurado-ria Federal Especializada do INSS para que haja cessação de benefício concedido judicialmente, evita-se que a questão da alteração da situação fática passe despercebida, pois haverá análise do corpo jurídico da Autarquia, ou seja, do mesmo

órgão responsável pela atuação no processo judicial que en-sejou a concessão do benefício. Outrossim, tratando-se de normativo interno, descabe ao INSS recusar o cumprimen-to de uma norma sua, podendo ser judicialmente instado a tanto.

No entanto, outra ordem de discussões surge quando se trata de uma situação pretérita não analisada em anterior pro-cesso judicial.

2.2.2. Situação pretérita não verificada

A análise da situação pretérita não verificada em relação aos limites da coisa julgada segue a linha de raciocínio já ex-posta acima, defendendo-se uma aproximação entre a causa de pedir e o objeto de prova, ensejando assim a formação de uma coisa julgada segundo a prova dos autos. Nesse con-texto, o art. 474 do Código de Processo Civil deve ser lido em consonância com o art. 468 do mesmo diploma legal, limitando-se a coisa julgada às questões que foram objeto de decisão.

Cabe acrescentar apenas que tal posicionamento, embo-ra sob uma roupagem diversa, é acolhido pela jurisprudência pátria.

De fato, o Superior Tribunal de Justiça já relativizou o conceito de documento novo para fins de possibilitar o ajui-zamento de ação rescisória com fundamento no inciso VII do art. 485 do CPC nos casos em que o documento já existia quando do ajuizamento de demanda anterior, tendo em vista, sobretudo, a peculiar situação do trabalhador rural(11). Nesse sentido, por exemplo:

AÇÃO RESCISÓRIA. PREVIDENCIÁRIO. DOCUMENTO NOVO. APOSENTADORIA POR IDADE. TRABALHADOR RURAL. PROVA MATERIAL. EXISTÊNCIA.

I – Esta Seção, considerando as condições desiguais vivencia-das pelo trabalhador rural e adotando a solução pro misero, entende que a prova, ainda que preexistente à propositura da ação, deve ser considerada para efeitos do art. 485 VII, do CPC. Precedentes.

II – Certidão de nascimento do filho da autora, em que o cônju-ge desta está qualificado como lavrador, é apta à comprovação da condição de rurícola para efeitos previdenciários.

Ação rescisória procedente.

(AR 3.520/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SE-ÇÃO, julgado em 27.2.2008, DJe 30.6.2008)

AÇÃO RESCISÓRIA. DOCUMENTO NOVO E ERRO DE FATO. ARTS. 485, VI e 487, I, DO CPC. RURÍCOLA. DIFI-CULDADE DE OBTENÇÃO NA ÉPOCA PRÓPRIA. SOLU-ÇÃO PRO MISERO.

1. Segundo entendimento pretoriano – REsp 15.007/RJ – do-cumento novo referido no inciso VI, do art. 485, do Código de

(11) O que, dentro da mesma linha de pensamento, não impede que haja emprego da mesma interpretação quando se verifica uma desi-gualdade no caso concreto entre o autor da demanda originária e o INSS, ainda que não se trate de trabalhador rural.

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Processo Civil, é, “em princípio, o já existente quando da de-cisão rescindenda, ignorado pelo interessado ou de impossível obtenção à época da utilização no processo, apresentando-se bastante para alterar o resultado da causa”.

2. no caso específico do rurícola em virtude de suas desiguais e até mesmo desumanas condições de vida e de cultura, auto-riza-se inferir, dado os percalços encontrados na busca, não obstante a existência do documento quando do ajuizamento da ação, cujo julgado ora se rescinde, a ausência de desídia ou negligência. pode-se – ainda – sem margem de erro, concluir que sua existência era ignorada até mesmo em função das adversas condições de cultura.

3. A certidão de casamento, atestando a profissão do marido da autora como sendo a de lavrador, não levada em consideração pelo acórdão rescindendo, caracteriza a existência de erro de fato, capaz de autorizar a rescisão do julgado, erigindo-se em início razoável de prova material da atividade rurícola. Prece-dente desta Corte.

4. Matéria previdenciária. Compreensão ampla. Solução pro misero.

5. Rescisória procedente. (AR 843/SP, Rel. Min. Fernando Gon-çalves, DJU 04-12-2000) (g.n.)

Da mesma forma, o Tribunal Regional da 4ª Região pos-sui decisões em que se considera a prova material como pré--condição da própria admissibilidade da lide, extinguindo-se o processo sem julgamento de mérito quando a prova se mos-trar insuficiente. Para tanto, parte-se da ideia de que a prova material é documento essencial que deve instruir a petição inicial, sob pena de indeferimento (art. 283 c/c 295, VI, e 267, I, todos do CPC) e extinção do processo sem julgamento de mérito. Assim, exemplificativamente:

PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. PRELIMINAR DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA JUIZ. AFASTADA. REGIME DE EXCEÇÃO. AVERBAÇÃO DE TEMPO DE SERVIÇO. GARIMPEIRO. PROVA DOCUMEN-TAL FRÁGIL. AUSÊNCIA DE INÍCIO DE PROVA MATERIAL. PROVA TESTEMUNHAL. IMPOSSIBILIDADE. EXTINÇÃO DO PROCESSO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. 1. O prin-cípio da identidade física do magistrado não é violado quando a decisão é prolatada por outro juiz que não aquele que presi-diu a audiência, atendendo ao regime de exceção determinado pelo Tribunal competente. 2. A inscrição como garimpeiro, junto ao órgão respectivo, não é suficiente para caracterizar a efetiva exploração da atividade econômica no garimpo. 3. Sen-do frágil a prova documental, não é possível o reconhecimento do tempo de serviço apenas com base na prova testemunhal (art. 55, § 3º, da Lei n. 8.213/91). 4. A ausência de início de prova material enseja a extinção do processo sem julgamen-

to do mérito (art. 267, inciso i, do cpc), uma vez que o princípio de prova material, no caso, é pré-condição para a própria admissibilidade da lide (art. 283 c/c art. 295, inciso vi, do cpc). A isso se soma o fato de o direito previdenciário não admitir a preclusão do direito ao benefício por falta de provas, sendo sempre possível, uma vez renovadas estas, a sua concessão e, por via de consequência, também a aver-bação de tempo de serviço. 5. Apelação prejudicada. (TRF4, AC 2000.04.01.121383-8, Quinta Turma, Relator Luiz Carlos Cervi, DJ 17.12.2003) (g.n.)

No entanto, entende-se que, partindo da ideia de coisa julgada limitada à prova dos autos, não há necessidade de rescisão do julgado anterior, uma vez que formado com base em outras provas. Da mesma maneira, é desnecessário recorrer-se à alteração do conceito de extinção do processo sem julgamento de mérito, pois o que houve anteriormen-te foi, de fato, um julgamento de mérito, mas limitado às provas então trazidas, sem abranger as apresentadas poste-riormente(12).

Desse modo, compatibiliza-se a noção da coisa julgada com as dificuldades inerentes à realidade brasileira, em que o grau de conhecimento dos indivíduos em geral em relação à legislação que envolve o benefício assistencial é escasso. Ignorar tal realidade, ao entendimento de que o autor de-veria apresentar todos os possíveis argumentos e documen-tos quando do primeiro requerimento administrativo, seria criar um formalismo que obsta a própria efetividade da tu-tela jurisdicional(13).

2.3. evolução da jurisprudência do stf quanto ao critério legal de miserabilidade e coisa julgada

Como já mencionado acima, o inciso V do art. 203 da Constituição Federal remeteu à legislação infraconstitucio-nal a regulamentação do benefício assistencial, tendo o art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742/1993 definido miserabilidade utili-zando o seguinte critério objetivo: renda familiar mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.

A instituição pela lei de critério rigorosamente objetivo gerou questionamentos judiciais sustentando sua inconstitu-cionalidade, tendo, no entanto, o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle concentrado-abstrato, manifestando-se pela constitucionalidade do referido dispositivo legal:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. IMPUGNA DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL QUE ESTABELECE O CRITÉRIO PARA RE-CEBER O BENEFÍCIO DO INCISO V DO ART. 203, DA CF.

(12) Relativizando tal possibilidade de extinção sem julgamento de mérito, indaga José Antonio Savaris (2009, p.89): “Mas se o juiz se lança à tarefa de valoração da prova, não estaria ele examinando o mérito para, depois de concluir pela ausência ou insuficiência de prova material, extinguir o feito sem julgamento do mérito?”.

(13) É evidente, de outro lado, que caso seja constatado que tal desigualdade não subsiste, tendo havido uma omissão dolosa do autor na apresentação das provas no processo anterior, prevalece a coisa julgada, com a possibilidade inclusive de aplicação de penalidades pela deslealdade processual.

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84 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Bruno Takahashi e Karina Carla Lopes Garcia|

INEXISTE A RESTRIÇÃO ALEGADA EM FACE AO PRÓPRIO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL QUE REPORTA À LEI PARA FIXAR OS CRITÉRIOS DE GARANTIA DO BENEFÍCIO DE SALÁRIO MÍNIMO À PESSOA PORTADORA DE DEFI-CIÊNCIA FÍSICA E AO IDOSO. ESTA LEI TRAZ HIPÓTESE OBJETIVA DE PRESTAÇÃO ASSISTENCIAL DO ESTADO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

(ADI 1232, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 27.8.1998, DJ 01-06-2001 P-00075 EMENT VOL-02033-01 P-00095)

A decisão deu-se por maioria, prevalecendo a tese de que o critério legal foi instituído conforme autorização da própria Constituição e teve o mérito de dar aplicabilidade a ela. Os votos vencidos foram do Relator Ilmar Galvão e do Ministro Néri da Silveira, que acolhiam o parecer do Procurador-Ge-ral da República no sentido de dar interpretação conforme a Constituição ao dispositivo, definindo que o critério legal apenas instituía uma presunção juris et de jure de miserabi-lidade, não excluindo, no entanto, outros meios de prova da insuficiência de recursos.

Em que pese a tese ministerial não tenha sido a vencedo-ra no julgamento da ADI, o fato é que, na prática, os juízes acabaram de certa forma acolhendo-a, flexibilizando a análi-se da miserabilidade ao conjugar outros elementos ao critério legal da renda familiar per capita, o que levou ao ajuizamento de várias reclamações do INSS sustentando desrespeito à de-cisão da corte constitucional acerca da constitucionalidade do dispositivo.

Tal situação, conjugada a outras modificações sociais e políticas, tais como a evolução dos programas de inclusão social, os quais, por vezes, adotavam critérios diversos para definir a situação de miserabilidade, fez com que o Supremo Tribunal Federal enfrentasse novamente em 2013 a questão da constitucionalidade do referido dispositivo legal no âmbito de dois Recursos Extraordinários: RE n. 567985 e RE 580963.

Como a própria ementa de ambos os recursos revela, a Corte Constitucional concluiu ter ocorrido um “processo de inconstitucionalização” dos critérios contidos art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742/1993, os quais não mais permitiam, na prática, apurar as situações de pobreza, fazendo-se alusão ao princípio da proibição da concretização deficitária(14).

Neste contexto, surge a seguinte indagação: as partes que tiveram seus benefícios assistenciais negados no passado por decisões fundamentadas no teor da ADI n. 1.232 poderiam atualmente insurgirem-se contra tais decisões, mesmo quan-do já acobertadas pela coisa julgada material?

Muito se discute sobre a possibilidade e os mecanismos hábeis a atacar a denominada “coisa julgada inconstitucio-nal”, ou como mais tecnicamente define Eduardo Talamini (2005, p. 404), a “sentença inconstitucional revestida de coi-sa julgada”. Referido autor muito bem resume a problemáti-ca presente na questão, aduzindo que “cumprirá definir se é possível ponderar valores envolvidos no caso concreto para afastar a imutabilidade da sentença ou se essa ponderação é uma atribuição exclusiva do legislador ao criar instrumentos de revisão da coisa julgada” (2005, p. 402).

Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Arenhart (2007, p. 668) ponderam que a “coisa julgada material é atributo in-dispensável ao Estado Democrático de Direito e à efetividade do direito fundamental de acesso ao Poder Judiciário”, de-fendendo a tese de que “se a definitividade inerente à coisa julgada pode, em alguns casos, produzir situações indesejá-veis ao próprio sistema, não é correto imaginar que, em razão disso, ela simplesmente possa ser desconsiderada”.

A despeito da tese adotada acerca da “relativização da coisa julgada”, tema que renderia sozinho longas pondera-ções, o fato peculiar às decisões acerca da miserabilidade em benefício assistencial é que elas tinham respaldo em decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de controle abstrato--concentrado. Assim sendo, tem-se que a matéria é de cunho constitucional. O § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993 foi analisado à luz do art. 203, V, da Constituição Federal.

Dispõe o enunciado da Súmula n. 343 do STF que “não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

Desse modo, seria de se pensar que a modificação na interpretação do requisito do § 3º do art. 20 não permitiria nova análise de casos já transitados em julgado. Ocorre que o próprio STF possui jurisprudência firme no sentido de que tal enunciado não se aplica quando a matéria versada for de cunho constitucional(15), como é o caso em questão. De fato, o próprio Supremo fez alusão a um processo de inconstituciona-lização, indicando que ao tempo da ADI n. 1.232 o critério le-gal era, de fato, constitucional, muito embora não mais o seja.

Uma resposta ao problema merece cautela e aqui se pre-tende fazer breves considerações apenas em caráter explora-tório. Para tanto, devem ser distinguidas algumas situações.

Em primeiro lugar, se houve alteração da situação fáti-ca, como, por exemplo, modificação na situação financeira do núcleo familiar da parte autora, há possibilidade de novo julgamento ou mesmo de revisão administrativa. Assim, se um dos filhos do autor não mais reside com ele e deixou de

(14) RE n. 567.985, voto do Ministro Marco Aurélio.

(15) Dentre outros, destaque-se a ementa do seguinte julgado: “Agravo regimental no agravo de instrumento. Súmula n. 343/STF. Inaplica-bilidade. Precedentes. 1. A jurisprudência desta Corte está consolidada no sentido da inaplicabilidade da Súmula n. 343 quando a matéria versada nos autos for de cunho constitucional, mesmo que a decisão objeto da rescisória tenha sido fundamentada em interpretação contro-vertida ou anterior à orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal. 2. Agravo regimental não provido.” (AI 703485 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 11.12.2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-027 DIVULG 07.02.2013 PUBLIC 08.02.2013).

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85Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Especificidades da Coisa Julgada na Concessão do Benefício Assistencial|

contribuir para o sustento do núcleo, é possível que haja a configuração de uma miserabilidade até então inexistente. Parte-se aqui da ideia desenvolvida no decorrer do trabalho, e especialmente no item 2.2.1, no sentido de que a alteração fática futura permite nova decisão, uma vez que não abran-gida por coisa julgada.

Do mesmo modo, se determinado elemento não foi con-siderado em decisão judicial anterior, como, por exemplo, não se notou a existência de ganho adicional por parte de outro programa assistencial, é possível nova análise sem ne-cessidade de rescisão do julgado anterior. Trata-se de situa-ção pretérita não verificada, valendo o que foi exposto no item 2.2.2.

No entanto, se a situação fática permanece a mesma, ou seja, se não houve alteração fática futura e nem situação pre-térita não considerada, entende-se, ao menos nessa análise exploratória, que não é possível simplesmente ignorar a exis-tência de coisa julgada.

Isso não impede, porém, que seja aventada a possibilida-de de rescisão do julgado no tocante a requisito da miserabi-lidade. Ou seja, admite-se a existência de coisa julgada, mas cogita-se que cabe a rescisão do julgado. Isso porque, diante da nova interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao §3º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993, ficou patente que o requisito da renda familiar per capita inferior a 1/4 (um quar-to) do salário-mínimo não é absoluta. Tratando-se de matéria constitucional, não incide o enunciado da Súmula n. 343 do STF. Desse modo, caberia, em princípio, a rescisão do julgado por ofensa literal a disposição de lei, nos termos do art. 485, V, do Código de Processo Civil.

concLusão

Esta obra pretendeu analisar como o processo relativo ao benefício assistencial da Lei n. 8.742/1993 sofre alteração em decorrência de sua própria natureza. Assim sendo, ressaltou--se o caráter provisório dos requisitos para a concessão do referido benefício, bem como as peculiaridades da lide e as implicações disso nos limites da coisa julgada.

Após tal percurso, enumeram-se as seguintes conclusões:

a) partindo-se do pressuposto de que, de ordinário, o Judiciário deve exercer primordialmente a função de revisor dos atos administrativos, o prévio indeferi-mento administrativo tem a importante função de delimitar a controvérsia posta em juízo, estabelecen-do o que será objeto de prova;

b) delimitada a controvérsia, a coisa julgada no bene-fício assistencial é limitada de acordo com a prova dos autos (secundum eventum probationis), traçando uma aproximação entre os conceitos de fato alegado e fato provado, bem como procedendo a uma revisão do conceito de causa de pedir;

c) da mesma forma, o estudo da coisa julgada não pode descurar do nítido caráter transitório do benefício assistencial, evidenciando que surge uma nova cau-

sa de pedir sempre que houver uma alteração futu-ra dos fatos, como ocorre com o agravamento ou a melhora de eventual capacidade ou da situação de miserabilidade. Nesse aspecto, admite-se inclusive a cessação administrativa de benefícios concedidos judicialmente, desde que respeitado o procedimento adequado para tanto, ou seja, com participação do segurado e parecer da Procuradoria Federal do INSS.

d) diante de seu caráter transitório, se, em relação ao requisito da miserabilidade, houve alteração fáti-ca futura ou situação pretérita não considerada, é possível novo julgamento, uma vez que não haveria coisa julgada anterior. Todavia, se a situação fática permanece, não é possível simplesmente ignorar a existência de coisa julgada.

e) a conclusão anterior não impede que seja aventada a possibilidade de rescisão do julgado no tocante a requisito da miserabilidade por ofensa literal a dis-posição de lei (art. 485, V, do CPC) diante da nova interpretação constitucional do STF do §3º do artigo 20 da Lei n. 8.742/93, uma vez que não incidiria o enunciado da Súmula 343 do STF na hipótese.

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Page 87: Benefício Assistencial: Temas Polêmicos

Justiça social e manutenção do Benefício assistencial da lei n. 8.742/1993 no ÓBito do titular

José Carlos Francisco(*)

obJetivo

Os objetivos deste estudo são, primeiro, criticar a posi-ção normativa e a orientação judicial dominante que, com base no art. 21, § 1º, da Lei n. 8.742/1993, determinam a cessação automática do pagamento do benefício assistencial de prestação continuada em caso de morte do seu titular, e, segundo, formular propostas de solução alternativa.

Para o desenvolvimento deste estudo, inicialmente faremos descrição do cenário jurídico mostrando a marcha do Estado de Direito na proteção estatal da miséria econômica, destacando políticas públicas no Estado Liberal e no Estado Social e De-mocrático, enfatizando a busca de justiça social e o combate à miséria na Constituição de 1988 e na Lei n. 8.742/1993.(1)

Na sequência, associaremos o cenário jurídico ao cenário sociológico que descreveremos visando construir propostas de solução para a cessação imediata do benefício assistencial. Assim, mesmo reconhecendo a natureza personalíssima da prestação pecuniária da Lei n. 8.742/1993, apresentaremos como propostas jurídicas a manutenção temporária desse be-nefício em favor do cônjuge ou de dependentes do falecido (seguida de diligente análise do cumprimento dos requisitos da Lei n. 8.742/1993 por parte dos novos beneficiários), ou a concessão de pensão por morte para os casos nos quais o falecido tinha condições de obter o benefício previdenciário

aposentadoria por idade ou por invalidez ao tempo em que foi concedido o benefício assistencial.

Dentro do recorte temático deste estudo, não nos detere-mos em outras controvérsias relacionadas à interpretação da Lei n. 8.742/1993.(2)

i. cenário Jurídico: mArchA nA proteção estAtAL dA misériA econômicA

É lugar comum afirmar que a marcha histórica das sociedades e das atividades do Estado na ordem socioeconômica tem avanços e retrocessos, sobretudo na afirmação e na concretização dos direitos fundamentais, a respeito do que Norberto Bobbio constata uma evolução em séculos de luta e de sofrimento, na eterna contenda entre novas liberdades e velhos poderes.(3) A partir dos valores que foram lançados pelo Iluminismo, Thomas Fleiner-Gerster lembra que havia um entusiasmo com o papel do Estado depois da Revolução Francesa de 1789 e das conquistas nacionalistas do séc. XIX, embora essa postura confiante tenha se arrefecido ao longo das décadas que se sucederam, tendo em vista as trágicas ex-periências com as práticas estatais do nazismo, e dos Khmer Vermelhos do Cambodja, dentre outras totalitárias.(4)

(*) Professor da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie/SP, Diretor do Centro de Estudos da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul – AJUFESP, Diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais – IBEC, Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo – USP, Pós-Doutor pela Université de Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), e Juiz Federal na 3ª Região.

(1) Dentro da delimitação temática deste estudo, evitamos análises sobre controvérsias a respeito de critérios e classificações de classes econômicas, de modo que empregados o termo “miseráveis” para identificar aqueles que não têm fonte de renda ou patrimônio suficientes para prover suas necessidades mínimas. Por isso, cuidamos essencialmente da camada da população que tem renda per capita inferior a um salário mínimo mensal.

(2) Houve e ainda há muitas controvérsias a respeito da interpretação das disposições da Lei n. 8.742/1993, inclusive com recentes decisões do E.STF reconhecendo a inconstitucionalidade do critério de renda per capita inferior a um quarto do salário mínimo como requisito para a concessão do benefício de prestação continuada. Contudo, a partir da delimitação temática deste estudo, focamos na concessão de pensão por morte concedida ao cônjuge ou dependentes do falecido beneficiário da prestação pecuniária da Lei n. 8.742/1993.

(3) BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 05.

(4) FLEINER-GERSTER, Thomas, colab. de HÄNNI, Peter. Teoria Geral do Estado, trad. Marlene Holzhausen, revisão técnica de Flávia Portela Purschel, São Paulo: Martins Fontes, 2006, na apresentação de seu livro.

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88 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos José Carlos Francisco|

Por outro lado, é também verdade que acertos e erros fa-zem parte do processo amadurecimento e de desenvolvimen-to, motivo pelo qual concordamos com Pablo Lucas Verdú no sentido de que a ideia de Estado de Direito é uma con-quista derivada da luta de novas ideias contra estruturas de poder contrárias, do Estado Liberal de Direito (opondo-se ao Ancien Régime), do Estado Social de Direito (combatendo o individualismo e Estado Abstencionista) e do Estado Demo-crático de Direito (enfrentando as estruturas sociopolíticas com resquícios do individualismo, neocapitalismo opressor e sistema de privilégios).(5)

O significado de Estado de Direito não é unívoco, por certo. Luigi Ferrajioli salienta dois significados para Esta-do de Direito: 1º) sentido amplo, fraco ou formal, em face do qual os poderes públicos são conferidos e exercidos nas formas e nos procedimentos previstos em lei, o Estado Le-gislativo de Direito; 2º) sentido estrito, forte ou substancial, no qual os poderes públicos estão igualmente sujeitos à lei, na forma e no conteúdo de seus exercícios, mas também es-tão vinculados aos princípios substanciais estabelecidos pela Constituição, o Estado Constitucional de Direito.(6)

Se não há um sentido único para Estado de Direito, a redução arriscada dos significados ao menos conduz à ideia de que se trata de uma qualidade do Estado que se orienta por princípios e regras jurídicas (elaboradas, compreendidas e aplicadas segundo parâmetros democráticos) que subordi-nam a todos (inclusive a quem as elabora) com o propósito de identificar e efetivar direitos, garantias e deveres funda-mentais.

O significado de Estado de Direito se torna ainda mais complexo na medida em que é dinâmico, pois se contextuali-za com a evolução das experiências da sociedade e do Estado. De todo modo, nas modalidades mais conhecidas de Estado de Direito (classificadas quanto à concepção do indivíduo e ao papel do Estado na promoção dos direitos, deveres e garantias fundamentais) sempre houve preocupação com o combate à miséria econômica e da pobreza que assolavam parte (sempre expressiva) da população.

1. combAte à misériA no estAdo de direito LiberAL e no estAdo democrático de direito

Desafortunados foram protegidos na Antiguidade e na Idade Média por atos de caridade ou como dever religioso, e, na Idade Moderna, o modelo do Estado de Direito Liberal (ou Estado Legislativo de Direito) trouxe pálidas proteções aos miseráveis e pobres. Experimentado basicamente entre

o século XVIII e início do século XX, o Estado Liberal se firmava pela crença no individualismo e na harmonia natu-ral (especialmente do mercado, na concepção do liberalismo econômico), em face da qual o poder público tinha funções restritas à garantia da ordem pública e da segurança, com poucas funções sociais.

Se é verdade que esse modelo liberal apresentou resulta-dos positivos (como a valorização das liberdades), de outro lado mostrou aspectos negativos que se revelaram em várias crises sociais e econômicas (sendo o exemplo mais relevante a crise que se seguiu à “quebra” da bolsa de valores de New York em 1929, período denominado de “grande depressão” e que se alastrou por praticamente todos os países do mundo ocidental). Esses ciclos econômicos ou flutuações conjun-turais geravam prejuízos a grande parte dos segmentos eco-nômicos, de parte do empresariado (que via seus empreen-dimentos fracassarem) até e em especial aos trabalhadores empregados (que perdiam seus empregos nas fases de reces-são e, sobretudo, na depressão).

Contudo, mesmo durante o período liberal, a miséria e a pobreza foram combatidas por políticas públicas (ainda que modestas e nem sempre eficazes). O papel do Estado como responsável por políticas sociais dessa natureza tem mar-cos já na Poor Law (Lei dos Pobres) inglesa de 19.12.1601, amparando-se na obrigação do socorro aos necessitados, na assistência pelo trabalho, em taxa cobrada para o socorro aos pobres (poor tax) e na responsabilidade das paróquias pela assistência de socorros e de trabalho. A Poor Law foi remo-delada pela Poor Law Amendment Act of 1834 (ou New Poor Law) que trouxe esquema único de benefícios e criou apare-lho centralizado para a sua administração e corpo de inspeto-res para observar a sua aplicação, e seguida de várias medidas como a assistência à velhice e aos acidentados no trabalho em 1907, e o sistema compulsório de contribuições sociais de 1911. Em França, o art. 21 da Constituição de 1793 pre-viu o socorro dos desafortunados como dívida sagrada, e o estímulo à concessão de trabalho e de meios de subsistência em casos de impossibilidade de trabalhar, enquanto o art. 22 cuidou do direito à instrução para permitir o progresso, no que foi seguido pelos direitos sociais da Constituição de 1848, e da criação de assistência à velhice em 1898. Várias medidas sociais foram empregadas na Alemanha na segunda metade do século XIX, sob o governo de Otto von Bismarck que, embora conservador, imprimiu, p. ex., lei de acidentes de trabalho e seguro de doença, acidente ou invalidez.

Vários fatores (dentre eles as flutuações conjunturais na área socioeconômica, a ampliação do direito de voto em eleições e a Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII) geraram importante mudança na compreensão das responsa-

(5) VERDÚ, Pablo Lucas. A luta pelo Estado de Direito. Trad. Agassiz Almeida Filho, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2007. Sobre a evolução do antigo regime para o Estado de Direito e sobre desenvolvimento para o Estado Democrático de Direito, FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999;

(6) FERRAJOLI, Luigi. Estado de Direito entre o passado e o futuro, in Estado de Direito: história, teoria, crítica. COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (orgs.), trad. Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 418 a 464.

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89Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Justiça Social e Manutenção do Benefício Assistencial da Lei n. 8.742/1993 no Óbito do Titular|

bilidades e funções socioeconômicas da sociedade e do Esta-do no início do Século XX. A sequência de eventos jurídicos que marca a passagem do Estado Liberal para o Estado Social está associada com a Constituição Mexicana de 1917 (que, em seu art. 123, trouxe direitos trabalhistas como modali-dade de direitos fundamentais), seguida pela Constituição alemã de Weimar de 1919 que, sob a influência da criação da Organização Internacional do Trabalho também em 1919, regulou a jornada de trabalho (inclusive a noturna), cuidou do desemprego e da proteção da maternidade, assim como idade mínima para admissão no trabalho e a responsabilidade do Estado prover a subsistência do cidadão caso não hou-vesse condições de trabalho, dentre outros temas. Nos EUA, apesar de o Judiciário americano ter rejeitado legislação do Estado de New York que regulamentava o trabalho em pada-rias (Lochner v. New York, em 1905), o Presidente Franklin Roosevelt edita o Social Security Act em 1935, com normas sobre seguro-desemprego, asistência e aposentadorias. Em 1941, a Inglaterra conhecia o plano de William Henry Beve-ridge (Plano Beveridge), que, partindo da ideia de que cabia ao Estado regulamentar, garantir e atuar de forma positiva na área socioeconômica, foram adotadas medidas como a unifi-cação dos seguros sociais, a igualdade de proteção e o custeio tripartite (trabalhador, empregador e Estado), dentre outras medidas que marcam o Welfare State britânico. Há também uma marcha para a afirmação desses direitos por sistemas internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU de 1948, seguida por vários outros docu-mentos de organizações internacionais globais e regionais.

Ocorre que algumas experiências desses Estados Sociais do início do século XX foram marcadas pelo terror. O Nacio-nal Socialismo do período nazista na Alemanha deu o tom de uma leitura fanática em favor de um suposto regime de supe-rioridade racial do povo alemão em detrimento de partes de seu próprio povo (especialmente de origem judaica), o que também tinha contornos de ódio por razões de desigualdade econômica. Por isso, nas décadas de 1950 e seguintes foram desenvolvidas várias concepções de ordem socioeconômica que, em apertada síntese, fizeram predominar a concepção de Estado Democrático e Social, ou de Estado Constitucional de Direito, sedimentando a ideia de que esse novo modelo não se satisfazia como legitimações meramente formais de Estado e de Direito, uma vez que buscaram a afirmação da legitimidade material da atuação da sociedade e do Estado para a concretização da justiça social.(7)

O significado de Estado Social e Democrático e de Esta-do Democrático de Direito apresenta, também, divergências conceituais, mas uma das concepções mais importantes foi dada pelo espanhol Elías Díaz, segundo o qual esse modelo

representa a convergência do socialismo com a democracia, ou seja, pela passagem do neocapitalismo ao socialismo nos países de democracia liberal, caracterizando um socialismo flexível com a superação do individualismo, e realizado pela intervenção estatal e pela atenção preferencial aos direitos sociais. Para Elías Díaz, o Estado Democrático legítimo se dá com o império da lei (expressão da vontade geral), com a di-visão dos poderes, com legalidade da administração (atuação segundo a lei e suficiente controle judicial) e com a efetiva realização material de direitos e liberdades fundamentais.(8)

Embora reconheçamos as diversidades de concepções, vemos como sinônimos os conceitos de Estado Democráti-co e Social de Direito e de Estado Democrático de Direito, representando organização do complexo do poder em tor-no das instituições públicas (administrativas, políticas e ju-diciais) que exercem o monopólio legal e legítimo da força física sob a égide da cidadania democrática, vinculando-se à plena garantia das liberdades e dos direitos individuais e sociais de acordo com o sentido de bem comum em determi-nado território. Mas o traço marcante desse modelo é a busca da realização concreta da justiça social (igualdade material) e da soberania popular, compreendendo a integralidade dos direitos humanos, o que naturalmente passa pelo combate à miséria e à pobreza.

2. AproximAção do significAdo de JustiçA sociAL

Como o significado de Estado Democrático de Direito está diretamente associado à noção de justiça social (conceito jurídico indeterminado), é necessário atribuir maior densi-dade a essa ideia central, tarefa da doutrina e da jurisprudên-cia e, sobretudo do Constituinte e do Legislador.

Thomas Fleiner-Gerster cuida dos critérios de divisão de tarefas entre sociedade e Estado, afirmando que o Estado deve intervir quando dependências conduzem a consequên-cias que não são mais compatíveis com a dignidade humana, e quando os valores fundamentais que amparam a ordem social e a ordem estatal estiverem em jogo. Prossegue o au-tor afirmando que a atribuição das tarefas aos entes estatais deve observar a subsidiariedade, de modo que a sociedade deve cumprir uma parte da tarefa, e conclui afirmando que os critérios materiais de justiça a serem observados para ação estatal (todos ainda respeitados) se revelam os seguintes: a) a cada um a proteção de seus direitos (proteção da propriedade e da liberdade, direito sucessório, direito dos contratos, e di-reito das coisas etc.); b) a cada um segundo seu desempenho (livre concorrência, etc.); c) a cada um segundo suas neces-

(7) Como exemplos citamos o Estado de Direito Democrático e Social do art. 28, I, da Lei Fundamental de Bonn de 1949 (mantida na Alemanha unificada), o Estado Democrático e Social do art. 2º da Constituição francesa de 1958 e o Estado Social e Democrático de Direito do art. 1º da Constituição espanhola de 1978.

(8) DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y Sociedad Democratica. 8. ed. Madrid: Taurus, 1986, p. 31 e sgs. Do mesmo autor, Legitimidad-legalidad em el socialismo democrático. Madrid: Civitas, 1978, e De la maldad estatal y la soberania popular. Madrid: Editorial Debate, 1984, todos cuidando da legitimidade e da atuação do Estado.

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90 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos José Carlos Francisco|

sidades (seguridade social e mínimo indispensável, limites à penhora de bens, garantia de salário mínimo, férias, ensino primário gratuito etc.). Fleiner-Gerster finaliza suas ideias apresentando critérios formais de justiça a serem observados pelo Estado (todos ainda aplicáveis), que também servem à legalidade (produção de leis por critérios racionais).(9)

Já John Rawls afirma, a partir de uma postura intuicio-nista, apresenta conceito de justiça social segundo o qual existe um conjunto irredutível de princípios que devem ser pesados e comparados buscando equilíbrio do que é mais justo, acreditando que os princípios essenciais de justiça estão consolidados no ideal das liberdades e no combate às desigualdades. Segundo sua teoria, na hipotética posição original de escolha e sob o véu da ignorância, negociado-res escolhem como princípios de justiça: 1º) Liberdade: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoais (a liber-dade deve ser máxima); 2º) Diferença: desigualdades sociais e econômicas devem evitar discriminações e devem estar dis-postas de modo que seja razoável esperar que se estabeleçam em benefício de todos, e estejam vinculadas a cargos e posi-ções acessíveis a todos.(10)

Tanto Thomas Fleiner-Gerster quanto John Rawls reve-lam o imperativo da justiça social combater as desigualdades dando a cada um segundo suas necessidades, um mínimo indispensável à sobrevivência em favor dos miseráveis em sentido econômico, ideia que nos parece plasmada no senti-do de Estado Democrático de Direito (ou Estado de Direito Democrático e Social).(11)

Nesse contexto emerge a ideia de solidariedade como indispensável à noção de justiça social construída pelos sis-temas jurídicos. Mas a prática solidária não pode ficar na dependência apenas de consciência social em tema tão re-levante para a sociedade contemporânea, de modo que há a importante participação do sistema jurídico tanto para dar impulso à solidariedade e quanto, sobretudo, para planejar e executar políticas públicas visando à realização concreta da justiça social e, especialmente, combate à miséria econômica.

3. estAdo de direito brAsiLeiro e combAte à misériA

No Brasil, a sequência histórica da responsabilidade esta-tal por direitos, garantias e deveres em temas sociais tem ori-gens já no art. 179, XXXI, da Carta Imperial de 1824, cuidan-do das garantias de socorros públicos, seguida pelo art. 75 da

Constituição de 1891 dispondo sobre aposentadorias (embo-ra restritas a funcionários públicos em caso de invalidez no serviço da nação). O Decreto Legislativo n. 3.724/1919 trou-xe medidas de proteção ao trabalhador em caso de acidente laboral (impondo ônus ao empregador para custear o seguro para fins de assistência médica e indenização).

Uns dos marcos mais importantes na evolução em favor de políticas estatais sociais é o Decreto n. 4.682/1923, refe-rida a Eloy Chaves (Deputado Federal à época) cuidando de benefícios a trabalhadores associados às caixas de aposen-tadorias e pensões. Essas políticas foram remodeladas pelo governo de Getúlio Vargas com a criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), abrigados pelo art. 121, da Constituição de 1934 (que também cuidou de assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante e custeio da previdência), e também pelo art. 137 da Carta de 1937 (pre-vendo diversas espécies de benefícios). Em 1942 foi criada a Legião Brasileira de Assistência (LBV), cujo objetivo inicial de auxílio às famílias dos soldados da 2ª Grande Guerra foi suplantado pelas políticas assistenciais às famílias de quais-quer necessitados, até ser extinta na década de 1990 por Fer-nando Henrique Cardoso após crises relacionadas à suposta corrupção no governo de Fernando Collor.

Em 1946, a Constituição trouxe diversas medidas sociais (p. ex., art. 157), e, durante sua vigência, foi editada a Lei Orgânica da Previdência Social do trabalhador urbano (Lei n. 3.807/1960) e criado o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) em 1963, seguida pela unificação dos IAPs com a criação do INPS e do INAMPS em 1966, manti-dos na carta de 1967, durante a qual a Lei Complementar n. 11/1971 trouxe benefícios aos trabalhadores rurais.

4. constituição de 1988 e A Lei n. 8.742/1993

O sistema constitucional de 1988 trouxe o mais amplo rol de direitos, deveres e garantias fundamentais compara-tivamente aos ordenamentos constitucionais anteriores. Do Preâmbulo do ordenamento, passando pelos princípios e objetivos fundamentais do Título I até as regras indicadas nos Título II e VIII, há diversas previsões concernentes à rea-lização concreta de aspectos indispensáveis à realização da natureza humana e à vida em sociedade com matizes de direi-tos sociais (com destaque para os sistemas de previdência e de assistência social, particularmente no combate à miséria). No plano infraconstitucional, há consistente adensamento da justiça social com inúmeras leis, decretos e demais atos normativos construindo e executando políticas públicas com

(9) FLEINER-GERSTER, Thomas, colab. de HÄNNI, Peter. Teoria Geral do Estado, trad. Marlene Holzhausen, revisão técnica de Flávia Portela Purschel, São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 633 e seguintes.

(10) RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Jussara Simões, revisão Álvaro de Vita, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

(11) Concordamos com Thomas Fleiner-Gerster (Teoria Geral do Estado, trad. Marlene Holzhausen, revisão técnica de Flávia Portela Purschel, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 644) quando afirma que o discurso de Rawls será retórica vazia se desacompanhada da res-ponsabilidade e da solidariedade da parte dos indivíduos, dos governantes e dos servidores.

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91Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Justiça Social e Manutenção do Benefício Assistencial da Lei n. 8.742/1993 no Óbito do Titular|

conteúdo social e combate à miséria e à pobreza, dentre elas a Lei n. 8.213/1991.

Dentro desse cenário jurídico está o art. 203, V, da Cons-tituição, garantindo um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê--la provida por sua família, conforme dispuser a lei. Embora existam previsões anteriores no sistema jurídico brasileiro prevendo auxílio pecuniário às pessoas enquadradas como miseráveis (p. ex., art. 139 da Lei n. 8.213/1991 cuidando de renda mensal vitalícia), o art. 203, V, da Constituição de 1988 ganhou sua conformação atual com o benefício assistencial de prestação continuada descrito na Lei n. 8.742/1993.

Na marcha histórica sólida do sistema jurídico no senti-do de políticas públicas que combatem a miséria, a prestação continuada estabelecida pela Lei n. 8.742/1993 é tida como um benefício assistencial personalíssimo destinado ao ser humano miserável e sem condições próprias ou familiares de ter provido o seu sustento. Dentro das coloquiais catego-rias ou classificações da população quanto à propriedade e renda, os miseráveis encontram-se na camada em situação de maior penúria econômica, não se confundindo com a po-pulação pobre, população de classe média ou população de classe alta.

É verdade que os benefícios previdenciários são em regra substitutivos do trabalho do beneficiário e, por isso, em regra é contributivo da parte do trabalhador ou de seu eventual empregador. Já a prestação da Lei n. 8.742/1993 não é de-pendente de anterior trabalho ou de contribuição da parte de seu beneficiário, sendo custeada de modo solidário (por toda sociedade e pelo Estado) uma vez que foi concebida como benefício assistencial para população carente.

Mesmo que sem ser substitutiva do trabalho, por óbvio que o benefício da Lei n. 8.742/1993 traz ínsita a noção de impossibilidade de trabalho por parte do titular da prestação pecuniária, ou por idade avançada ou por invalidez. Também é nítido que o salário mínimo pago ao titular do benefício da Lei n. 8.742/1993 acaba também atendendo às necessidades dos membros que compõem o núcleo familiar, seja porque o beneficiário dessa prestação assistencial muitas vezes está inserido num núcleo familiar (que em regra se auxilia), seja porque o requisito da miserabilidade para a concessão da prestação da Lei n. 8.742/1993 depende da análise da pro-priedade e da renda de todo o núcleo familiar no qual o idoso ou incapaz está inserido. Não bastasse, a própria proposta constitucional do salário mínimo visa justamente atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família (com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuá-rio, higiene, transporte e previdência social, conforme art. 7º, IV, da Constituição de 1988).

Assim, embora personalíssimo, o benefício da Lei n. 8.742/1993 atende às necessidades do titular impossibilita-do para o trabalho (em razão da idade ou de incapacidade) e dos membros que compõem o núcleo familiar, a quem o titular do benefício em regra auxiliaria se tivesse condição de trabalho.

Por certo que os comandos normativos de leis tais como a Lei n. 8.742/1993 devem ser interpretados buscando sua máxima efetividade, uma vez que vão ao encontro das ne-cessidades primárias indispensáveis ao ser humano e à vida em sociedade.

Contudo, o art. 21, § 1º, da Lei n. 8.742/1993, prevê que o pagamento do benefício cessa no momento em que forem superadas as condições exigidas, ou em caso de morte do beneficiário. A partir dessa redação normativa e tendo em vista se tratar de benefício com caráter personalíssimo, a ju-risprudência brasileira se firmou no sentido de que a pres-tação pecuniária prevista na Lei n. 8.742/1993 não pode ser transferida aos herdeiros em caso de óbito, tampouco gera o direito à percepção do benefício de pensão por morte.

Em nosso entendimento, essa a impossibilidade de trans-ferência ao cônjuge ou dependentes e a vedação absoluta de concessão de pensão por morte se choca com toda a marcha histórica no sentido de políticas públicas de combate à mi-séria, ainda mais quando se verifica o cenário sociológico no qual essas mortes se dão no seio das famílias nas quais estão os beneficiários da prestação da Lei n. 8.742/1993.

ii. cenário socioLÓgico: As dores e A misériA

Dentro dos padrões culturais ocidentalizados vividos predominantemente na realidade brasileira contemporânea, a morte de um familiar em regra é cercada de dor emocional, independentemente da camada de renda na qual estão inse-ridos aqueles que sofrem. Também em condições normais, as dificuldades financeiras prejudicam o acesso à educação e à profissionalização, de tal modo que dentre os miseráveis es-tão aqueles menos qualificados para obter melhores padrões de trabalho e de renda, levando à clara suposição da neces-sidade de auxílio de toda pessoa que compõe um núcleo fa-miliar para que as necessidades primárias sejam satisfeitas.

Somados esses pressupostos, é claro que o núcleo fami-liar enfrentará graves dificuldades no caso de falecimento do beneficiário da prestação da Lei n. 8.742/1993 (idoso ou de incapaz), dada a mútua assistência de todo grupo familiar. Assim, pessoas que em regra sofrem dor emocional profunda pela perda de um ente querido, sem mobilidade ou alternati-vas de trabalho ou econômicas, ficam subitamente privadas do auxílio pecuniário que o Estado pagava ao falecido.

Em razão da cessação automática do benefício assisten-cial por óbito do titular, é claro que o cônjuge e/ou o depen-dente poderão se socorrer do sistema de seguridade para, em nome próprio, pleitear o pagamento da prestação pecuniária personalíssima prevista na Lei n. 8.742/1993, mas é evidente que a concessão desse novo benefício pecuniário exige aná-lise quanto ao cumprimento dos requisitos legais, o que leva tempo. Mesmo que fossem cumpridos os prazos previstos para a Administração Pública ordinariamente conceder bene-fícios dessa natureza (em média 45 dias contados da data da entrada do requerimento), é bastante provável que, durante

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92 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos José Carlos Francisco|

todo esse intervalo, o cônjuge ou os dependentes do falecido beneficiário ficarão privados das condições mínimas de so-brevivência, já que é fácil supor que esse núcleo familiar não tem reservas financeiras.

Possivelmente imaginando situação semelhante à morte de um titular de benefício previdenciário (que ordinariamen-te gera pensão por morte), é possível presumir que o cônjuge e os dependentes do falecido somente irão tardiamente des-cobrir que deverão fazer novo requerimento para a conces-são de prestação prevista na Lei n. 8.742/1993, já decorridas semanas do falecimento do titular da prestação assistencial. Então, essas pessoas miseráveis, sem mobilidade econômica, sem maiores dotes culturais e educacionais e também sem reservas financeiras, terão de se encaminhar aos balcões do sistema de seguridade para reiniciar todo o processo de con-cessão de um benefício que já vinha sendo pago sob a presun-ção de estar de acordo com a lei. Durante todo esse processo de reanálise, sujeitos a idas e vindas em agências do INSS, esses seres humanos ficarão privados de prestação pecuniária mínima imprescindível para o atendimento de suas necessi-dades primárias.

iii. propostAs de soLução JurídicA

Compreendemos as concepções teóricas de William Henry Beveridge (Plano Beveridge) que inspiraram o siste-ma jurídico de seguridade brasileira, separando previdência social (substitutiva do trabalho) de políticas assistenciais so-ciais destinadas à população carente, assim como reconhece-mos a necessidade de condução das contas públicas segundo padrões orçamentários consistentes. Contudo, esses modelos teóricos e formais não podem se sobrepor às cores tristes da realidade, sobretudo quando elas revelam os traços da dor e da miséria do ser humano.

Não estamos sustentando neste estudo o pagamento ir-restrito de benefício assistencial ou pensão por morte previ-denciária ao cônjuge ou aos dependentes do falecido que re-cebia a prestação pecuniária da Lei n. 8.742/1993. É claro que os imperativos democráticos da isonomia e do cumprimento da legislação somente legitimam o pagamento de montantes pecuniários pelo Estado se cumpridos os requisitos estabele-cidos para tanto. Nossa crítica se faz com relação à suspensão automática desses pagamentos em caso de óbito do benefi-ciário, pois não nos parece correto privar o cônjuge e os de-pendentes do falecido diante do cenário jurídico e do cenário sociológico nos quais está inserida a prestação pecuniária da Lei n. 8.742/1993.

Acreditamos que há expressiva quantidade de casos nos quais o cônjuge do falecido terá direito à prestação pecu-niária da Lei n. 8.742/1993, mesmo que o art. 34, parágrafo único, da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), permita que cada um dos cônjuges receba um benefício assistencial previsto na Lei Orgânica da Assistência Social.

Diante disso, não nos parece correta a predominante interpretação dada atualmente para as disposições da Lei n.

8.742/1993 que resultam na imediata cessação do pagamento do benefício de prestação continuada em caso de óbito do titular. Por todo o exposto, em razão da redação do art. 21, § 1º, da Lei n. 8.742/1993, a primeira conclusão leva à incons-titucionalidade da parte final desse preceito, mais precisa-mente da expressão “em caso de morte do beneficiário”, o que leva à manutenção temporária do benefício assistencial em favor do cônjuge ou dos dependentes do falecido (conforme indicado em bancos de dados organizados também para esse propósito, tal como se faz com benefícios previdenciários). A manutenção automática do benefício da Lei n. 8.742/1993 vai ao encontro também da necessidade de imprimir eficiên-cia na Administração Pública (art. 37 da Constituição), con-ciliando essa exigência com respeito aos direitos da popula-ção carente.

Em vista da necessidade de normatização dos critérios de verificação das condições para que o benefício assisten-cial seja pago mesmo após o óbito do titular (vale dizer, se o cônjuge ou se algum dependente faz jus à prestação da Lei n. 8.742/1993), em decorrência dessa declaração de incons-titucionalidade, cabe ao Legislador Ordinário (ou ao titular de competência administrativa, já que não se trata de matéria reservada à lei) editar ato normativo para que seja prevista a maneira e o prazo confiado à Administração Pública para rea-lizar essa verificação (particularmente novo estudo socioeco-nômico), sob pena de ser aplicada (na pior das hipóteses) a regra bienal prevista no art. 21, caput, da Lei n. 8.742/1993.

Outro caminho já está sendo objeto de interpretação construtiva pelo Poder Judiciário. Em face de pedidos de pensão por morte formulados em razão do falecimento de be-neficiários das prestações da Lei n. 8.742/1993, vários prece-dentes judiciais concedem pensão por morte sem reconhecer a inconstitucionalidade do art. 21, § 1º, da Lei n. 8.742/1993, mas sim analisando se o falecido tinha condições de receber aposentadoria por idade ou por invalidez (ambos nos termos da legislação previdenciária de regência) ao tempo em que lhe foi concedido o benefício de amparo, renda mensal vita-lícia ou a prestação assistencial da Lei n. 8.742/1993. Assim, mesmo que na ação judicial tenha sido pedido pensão por morte em razão do óbito do beneficiário assistencial da Lei n. 8.742/1993, decisões judiciais flexibilizam a leitura pro-cessual para compreender a possibilidade de reconhecer o di-reito originário do falecido ao recebimento de benefício pre-videnciário (aposentadoria por idade ou por invalidez) para então conceder ao cônjuge ou a seus dependentes a pensão previdenciária por morte (atualmente nos termos da Lei n. 8.213/1991).

A propósito da existência de elementos para a concessão de aposentadoria por idade ao tempo da implantação do be-nefício da Lei n. 8.742/1993, são ilustrativos vários julgados dos Excelentíssimos membros da 10ª Turma do E.TRF da 3ª Região. Também firmamos essas ideias em alguns julgamen-tos no E.TRF da 3ª Região, na AC 00379164420084039999, AC – APELAÇÃO CÍVEL – 1336374, rel. Juiz Convoca-do Carlos Francisco, Nona Turma, v.u., e-DJF3 Judicial 1, 29.7.2010, p. 1.045:

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93Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Justiça Social e Manutenção do Benefício Assistencial da Lei n. 8.742/1993 no Óbito do Titular|

“PROCESSO CIVIL. PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MOR-TE. TRABALHADOR RURAL. INÍCIO DE PROVA MATERIAL E PROVA TESTEMUNHAL DO TRABALHO RURAL DO DE CUJUS. QUALIDADE DE SEGURADO. DEPENDÊNCIA ECO-NÔMICA PRESUMIDA. REQUISITOS PRESENTES. 1. No caso dos autos, o fato de o de cujus ter recebido o benefício de ampa-ro social para pessoa idosa não impede a concessão de pensão por morte aos seus dependentes, pois restou demonstrado que o extinto, na realidade, fazia jus ao recebimento de aposentadoria por idade, na ocasião da concessão de benefício assistencial. 2. Ainda há que se acrescentar os objetivos materiais que marcam o sistema de seguridade social do Estado Democrático de Direito implantado pela ordem constitucional de 1988. Numa postura interpretativa positivista pura, seria viável a argumentação de que o benefício de prestação continuada de que trata a Lei n. 8.742/1993 não permitiria o pagamento de pensão por morte, daí porque o parceiro ou cônjuge teria que propor ação própria para, sendo o caso, ele também receber o benefício da mesma Lei n. 8.742/1993, mas a gravidade da interrupção de paga-mentos de verbas pelo sistema de seguridade (Previdência/As-sistência), tal como acima exposto, reforça a flexibilidade da interpretação dada na decisão recorrida. É devido, portanto, o benefício de pensão por morte. 3. Agravo legal desprovido.”

No mesmo sentindo, sobre a existência de requisitos para a concessão de aposentadoria por invalidez quando da implantação do benefício da Lei n. 8.742/1993, no mesmo E.TRF da 3ª Região, a AC 00099533220064039999, AC – APELAÇÃO CÍVEL – 1098051, rel. Juiz Convocado Carlos Francisco, Sétima Turma, v.u., e-DJF3 Judicial 1, 11.4.2011, p. 579:

“PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE DE CÔNJUGE. RURÍCOLA. FUNGIBILIDADE DE AMPARO E APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. PRESENÇA DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS À CONCESSÃO DO BENEFÍCIO. NÃO PROVIMENTO DA APELAÇÃO E DO RECURSO ADESIVO. I. É pacífico na jurisprudência que de amparo social ou LOAS não deriva a obrigação do paga-mento de pensão por morte, o que se justifica por vários argumentos formais e orçamentários. II. Entretanto, é juridicamente sustentável conceder tal pensão em casos nos quais havia a possibilidade de concessão de auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez àqueles que receberam LOAS. Ou seja, havendo fungibilidade no tocante à concessão de bene-fícios previdenciários e da prestação assistencial de que trata a Lei n. 8.742/1993, é possível o reconhecimento do direito ao pagamento da pensão, não derivada do LOAS mas do

auxílio-doença ou da aposentadoria por invalidez que poderia ter sido implantada ao falecido. III. Incapacidade laborativa demonstrada pelo Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS), que relata a concessão amparo social a portador de deficiência, deixando o segurado de trabalhar por incapacidade laboral posterior à filiação. IV. Cumprimento da carência demonstrado pelo exercício de emprego rural sem registro em carteira. V. Manutenção da qualidade desegurado em decorrên-cia da superveniência de doença incapacitante, constatada na perícia que fundamentou a concessão do benefício assistencial. VI. Dependência econômica demonstrada pelas certidões de casamento e de óbito, confirmadas por prova oral. VII. Pensão por morte devida a partir da data da citação, acrescida de cor-reção monetária e juros. VIII. Sucumbência parcial mantida. IX. Não provimento da apelação do réu e do recurso adesivo da autora.”

concLusão

Pelo exposto, parece-nos inconstitucional a cessação au-tomática do pagamento do benefício assistencial de presta-ção continuada em caso de morte do seu titular, atualmente escorada no art. 21, § 1º, parte final, da Lei n. 8.742/1993 e firmada pela orientação jurisprudencial dominante.

Acreditamos na obrigatoriedade da manutenção tempo-rária do benefício assistencial ou da concessão de pensão por morte previdenciária ao cônjuge ou aos dependentes do fale-cido que recebia a prestação pecuniária da Lei n. 8.742/1993. É claro que a manutenção do benefício assistencial ou a con-cessão da pensão por morte previdenciária não deve ser irres-trita, de modo que os imperativos democráticos da isonomia e do cumprimento da legislação somente legitimarão o paga-mento de montantes pecuniários pelo Estado se cumpridos os requisitos estabelecidos para tanto.

Nossa crítica com relação à suspensão automática desses pagamentos em caso de óbito do beneficiário foi construída a partir do cenário jurídico e do cenário sociológico nos quais está inserida a prestação pecuniária da Lei n. 8.742/1993, e também pela convicção quanto à expressiva quantidade de casos nos quais o cônjuge do falecido terá direito à presta-ção pecuniária da Lei n. 8.742/1993, mesmo que o art. 34, parágrafo único, da Lei n. 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), permita que cada um dos cônjuges receba um benefício assis-tencial previsto na Lei Orgânica da Assistência Social.

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perícia Biopsicossocial: o Bom exemplo que vem da lei orgânica da assistência social

José Ricardo Caetano Costa(*)

Marco Aurelio Serau Jr.(**)

introdução

Passados vinte anos de vigência da Lei Orgânica da As-sistência Social já possível fazermos alguns balanços e lan-çarmos algumas constatações. As críticas são muitas, mas é necessário que seja ressaltado um ponto extremamente sig-nificativo em prol da Assistência Social: a avaliação conjunta pericial, envolvendo médicos e Assistentes Sociais na dinâ-mica da concessão/manutenção do único benefício de pres-tação continuada constante na Lei n. 8.742/93.

Trata-se da perícia biopsicossocial, procedimento no qual os médicos lançam seus laudos específicos dentro de suas habilidades e os Assistentes Sociais avaliam os demais aspectos que indicam a incapacidade duradoura (acima de dois anos), dos candidatos à concessão do BPC da LOAS. Estes últimos critérios, por sua vez, podem ser a grosso modo traduzidos como sociais, econômicos, psicológicos, atitudinais e ambientais. Somente os Assistentes Sociais, como veremos, podem emitir estes pareceres e laudos so-ciais.

A introdução deste novo modelo pericial, portanto, ocor-reu a partir de dois documentos fundamentais: a um, a Inter-national Classification of Functioning, Disability and Health, denominada em Português por C.I.F (Classificação Interna-cional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde), de maio de 2001 e, a dois, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, ratificado pelo Brasil

por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 09.07.2008 e pro-mulgadas pelo Decreto n. 6.949, de 25.08.2009).

Julgamos que este novo modelo pericial deva ser ressal-tado como positivo, por sua vez, diante da necessidade da adoção desta sistemática quando da concessão dos demais benefícios constantes no RGPS, mormente em se tratando dos auxílios-doenças e aposentadorias por invalidez.

A abordagem que faremos dessa questão nos próximos cin-co tópicos leva em consideração, como premissa implícita a ideia de que o direito à assistência social, em particular o direito ao BPC é direito fundamental material, posto que ligado neces-sariamente à dignidade da pessoa humana (SERAU JR., 2009).

1. o significAdo dA períciA médicA

Foi partindo do pressuposto que o Magistrado não co-nhece toda a matéria ou realidade que lhe é apresentada, diante do caso concreto que se descortina à sua frente, foi cunhado o art. 145 do CPC, possibilitando ao Juiz a escolha de um expert que lhe auxiliará nessa compreensão.

Muito embora seja cediço que o Magistrado não fica ads-trito ao laudo apresentado pelos peritos (art. 436 do CPC), a perícia é de suma importância para a formação de sua con-vicção e posterior tomada de decisão.

Podemos afirmar, portanto, que “Perícia é a pesquisa, o exame, a verificação, para mostrar o fato, quando não há meio de prova documental para tanto. Por suas habilidades e co-

(*) Mestre em Desenvolvimento Social (UCPel), Mestre em Direito Público (UNISINOS), Doutor em Serviço Social (PUCRS) e Pós-Doutor em Educação Ambiental (PPGEA/FURG). Coordenador e Pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Seguridade Social – CEPESS. Pesquisador do CEJE – Centro de Estudos Jurídico-Econômicos (FURG). Membro da Comissão de Previdência Social da OAB/RS. Professor de Direito Previdenciário na Faculdade de Direito (FADIR/FURG) e Professor Colaborador do Mestrado em Direito e Justiça Social (FADIR/FURG). Advogado Previdenciarista

(**) Mestre e Doutorando em D. Humanos (USP). Especialista em D. Constitucional (ESDC) e em D. Humanos (USP). Professor univer-sitário e de diversos curso de pós-graduação: LEGALE, EPDS, ESDC, FADI. Autor de diversos artigos jurídicos publicados no Brasil e no exterior, assim como das obras: Curso de Processo Judicial Previdenciário; Recursos Especiais Repetitivos no STJ; Seguridade Social como direito fundamental material e Economia e Seguridade Social – análise econômica do Direito: Seguridade Social

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95Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Perícia Biopsicossocial: o bom exemplo que vem da lei orgânica da assistência social |

nhecimentos, o perito tem condições de esclarecer os fatos ou o assunto, com o objetivo de propiciar uma solução justa e verdadeira da contenda” (SILVA, 1990, p. 352).

Em obra coletiva organizada por José Antonio Savaris (2011), de leitura obrigatória a toda à comunidade que lida com as questões periciais, o eminente jurista assevera que o perito, além de deter os conhecimentos técnicos e específicos da medicina, deve “ter ciência de que sua manifestação não terá sentido se desprezar o universo social e a história de vida da pessoa examinada” (SAVARIS, 2001, p. 9), somente assim, continua, “identificar as reais condições que uma pes-soa tem de desempenhar uma atividade profissional digna e que não lhe custe o agravamento do seu quadro de saúde.” (idem, ibidem).

A prova pericial, por sua vez, “é o meio (de prova) empregado nos casos em que o esclarecimento do fato pro-bando depende de conhecimentos técnicos ou científicos es-pecíficos ou ainda habilidade ou experiência diferenciada.” (FERREIRA, 2012, p. 230)

Em se tratando das ações que buscam a concessão de benefícios em que a incapacidade/invalidez/deficiência dos autores/segurados, através dos auxílios-doenças (comuns e acidentários), aposentadorias por invalidez (idem) e dos auxílios-acidentes, ou dos benefícios assistenciais, a Perícia Médica Judicial passou a ser determinante na tomada de po-sição do Juízo.

Este procedimento, relativo à Perícia Médica, ganhou novos contornos nas ações em que os peritos médicos passa-ram a ser designados como auxiliares do Juízo. Podemos afir-mar que eles se empoderaram e suas conclusões passaram a ser determinantes no binônimo procedência/ improcedência.

Para compreender esse apoderamento, buscamos em Annie Thébaud-Mony, pesquisadora francesa, ancoragem na percepção que teve da França e de outros países europeus, alegando que

“...a história da saúde ocupacional é muito desconhe-cida. Até o fim do século XIX, ela é principalmente uma questão de lutas, individuais e coletivas, dos trabalhado-res para ‘não morrer no trabalho’. Por um lado, o desen-volvimento dos saberes médicos, clínico e epidemiológi-co sobre os efeitos patogênicos do trabalho de soluções

técnicas de prevenção vai retirar a saúde ocupacional da mão dos trabalhadores para colocá-la na mão dos peritos que se referem a um saber técnico que os empregadores mesmos contribuirão a criar.” (THÉBAUD-MONY, 2005, p. 94-95).

Segundo esta mesma autora, a subjetividade e a expe-riência dos trabalhadores, nesse contexto, são totalmente desprezadas, impondo-se o que denominou de “ditadura das estatísticas: o que não se pode medir não existe.” (THÉ-BAUD-MONY, 2005, p. 94).

Dentre nós, a Perícia Médica foi construída calcada em números, análises quantitativas e etiológicas, como se o que interessasse fossem somente os corpos e as articulações dos músculos dos trabalhadores/segurados. Se o corpo apresenta problemas, é caso de incapacidade para o trabalho.

Veremos, adiante, quais as consequências desta compreen-são, até então vigente, seja na perícia administrativa, seja na judicial, apresentando alternativa que supere essa concepção que não consegue mais dar conta da realidade atual(1).

2. A contribuição dA cif/2001 dA oms e A convenção internAcionAL dAs pessoAs portAdorAs de deficiênciAs, dA onu, de 2007(2)

No rumo que estamos seguindo já é possível dizer que o ato pericial não pode se esgotar somente na avaliação das funções e estruturas do corpo. Estas, diga-se, são facilmente avaliáveis por meio de uma perícia médica.

Ocorre que o conceito de incapacidade e de deficiência sofreu uma significativa alteração no último decênio, notada-mente a partir de 2001 quando a Organização Mundial da Saú-de (OMS) emitiu a CLASSIFICAÇÃO INTERNACIONAL DE FUNCIONALIDADE, INCAPACIDADE E SAÚDE (CIF).(3)

O fundamento desta classificação, que deve ser vista con-juntamente com a CID-10, vez que esta fornece um modelo etiológico das condições de saúde, repousa na fixação dos critérios de avaliação fundados em dois domínios: funções e estruturas do corpo e atividades e participação (CIF-CJ, 2011, p. 35)(4).

(1) Citamos, por exemplo, as novas síndromes trazidas pelo processo de reestruturação produtiva, tais como a Síndrome do Pânico, de Burnout, bem como as lesões por esforços repetitivos, todos oriundo da nova organização do trabalho. A perícia médica tradicionalmente realizada, seja na esfera administrativa ou na judicial, não serve mais para dar conta deste novo momento histórico, mormente quando o trabalho interdisciplinar vem apontando o acerto de uma análise mais holística.

(2) Utilizaremos, para designar estes dois documentos, tornando a leitura mais palatável, as seguintes abreviaturas: para a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, usaremos a expressão CIF-2001, mantendo o ano de 2011 para as citações, vez que retirado da publicação brasileira. Para a Convenção Internacional das Pessoas Portadoras de Deficiências usaremos simplesmente Conven-ção...2007, data esta em que foi aprovada em Nova Iorque, EUA.

(3) A CIF de 2001 é uma revisão da Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Limitações (ICIDH), publicada pela OMS em 1980, de forma experimental. A CIF atual é fruto de cinco anos de trabalho, reunindo vários países, inclusive com uma participação efetiva do Brasil, vindo a ser aprovada pela 54ª Assembleia Mundial de Saúde, em maio de 2001.

(4) Esclarecemos que iremos utilizar a versão da CIF publicada pela Universidade de São Paulo, cujo título é Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – Versão para Crianças e Jovens, em conjunto com a Organização Pan-americana da Saúde e Or-

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96 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos José Ricardo Caetano Costa e Marco Aurélio Serau Jr.|

Quiçá o maior mérito da CIF-2001 é ter agregado ou-tros elementos, relacionados ao estado de saúde, dando ou-tro enfoque ao que se denomina de incapacidade e deficiên-cia. Como registra a CIF-2011, “duas pessoas com a mesma doença podem ter níveis diferentes de funcionamento, e duas pessoas com o mesmo nível de funcionamento não têm neces-sariamente a mesma condição de saúde.” (CIF-2011, p. 35).

Vejamos os domínios da saúde e os relacionados à saúde, a partir da perspectiva do corpo, do indivíduo e da sociedade:

“(1) Funções e estruturas do Corpo e (2) Atividades e participação. Como uma classificação, a CIF agrupa siste-maticamente diferentes domínios de uma pessoa em uma determinada condição de saúde (e. g., o que uma pessoa com uma doença ou transtorno faz ou pode fazer). Fun-cionalidade é um termo que abrange todas as funções do corpo, atividades e participação; de maneira similar, inca-pacidade é um termo que abrange deficiências, limitação de atividades ou restrição na participação. A CIF também relaciona os fatores ambientais que interagem com todos estes construtos.” (CIF-2011, p. 35).

Por esta razão é que aconselha o uso conjunto da CID-10 com o modelo construído a partir das condições ambientais e de participação dos indivíduos(5). O eixo se desloca da doen-ça para analisar a saúde. O que vale dizer que para sabermos se um indivíduo é incapaz é necessário que tenhamos uma visão etiológica associada ao estado de saúde: “A CIF trans-formou-se, de uma classificação de ‘consequência da doença’ (versão de 1980) em uma classificação dos ‘componentes da saúde’.” (CIF-2011).

No que refere à sua aplicação na Previdência Social, na Saúde e na formulação de políticas públicas resta afirmado que

“A CIF é útil para uma ampla gama de aplicações di-ferentes, por exemplo, previdência social, avaliação do gerenciamento da assistência à saúde e estudos de popu-lação em níveis local, nacional e internacional. Oferece uma estrutura conceitual para as informações aplicáveis à assistência médica individual, incluindo prevenção, promoção da saúde e melhoria da participação, remo-vendo ou mitigando os obstáculos sociais e estimulando a provisão de suportes e facilitadores sociais. Ela também é útil para o estudo dos sistemas de assistência médica, tanto em termos de avaliação como de formulação de políticas públicas.” (CIF-2011, p. 38).

A CIF propõe a análise da incapacidade e da funcionali-dade através de uma interação dinâmica de diversos fatores, como já acenamos. Nos Fatores Contextuais encontramos os fatores ambientais e pessoais, sendo que estes últimos in-teragem com todos os componentes da funcionalidade e da incapacidade. Vale relembrar, pela importância que assumem nesta concepção, os conceitos de incapacidade e de funcio-nalidade: no termo incapacidade estão presentes as deficiên-cias, limitações de atividades ou restrições na participação, enquanto no termo funcionalidade estão presentes todas as funções do corpo, atividades e participação.

Podemos extrair da CIF-2001 os seguintes componentes e definições:

1) funções do corpo = são as funções fisiológicas dos sistemas do corpo.

São classificadas em:

1.1) Funções Mentais = tais como as funções da consciência, orientação, funções intelectuais, psicossociais, interpessoais, as ligadas à perso-nalidade, às energias e aos impulsos, às funções do sono, bem como as funções da memória, da atenção, da percepção, do pensamento, as cog-nitivas em geral, as psicomotoras, entre outras.

1.2) Funções Sensoriais e Dor = visão, às relaciona-das ao olho e demais estruturas adjacentes, as funções auditivas, vestibulares, gustativa, olfa-tiva, proprioceptiva, tátil e as sensoriais relacio-nadas à temperatura e a outros estímulos. Inclui também as relacionadas a sensação de dor e ou-tras funções sensoriais não especificadas.

1.3) Funções da Voz e da Fala = funções da voz, da articulação, da fluência e ritmo da fala, da vo-calização e outras funções não especificadas.

1.4) Funções dos Sistemas Cardiovascular, Hema-tológico, Imunológico e Respiratório: A) Car-diovascular: as funções do coração, dos vasos sanguíneos, da pressão sanguínea e outras não especificadas. B) Hematológico e Imunológico = as funções do sistema hematológico e imuno-lógico. C) Respiratório = funções respiratórias e do sistema respiratório, bem como dos mús-culos respiratórios.

1.5) Funções dos Sistemas Digestivo, Metabólico e Endócrino = ingestão, digestão, assimilação,

ganização Mundial da Saúde, publicado pela EDUSP. Para fins de citação utilizaremos somente (CIF-2011). Pode ser consultada, na página <www.scielo.br/pdf/rbepid/v8n2/11.pdf‎>, uma versão completa da CIF em Português.

(5) “A CIF pertence à família de classificações internacionais da OMS, cujo membro mais conhecido é a CID-10 (Classificação Estatística Internacional das Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde – Décima Revisão). A CID-10 fornece uma estrutura de base etiológica para a classificação, através de diagnósticos de doenças, de perturbações e de outras condições de saúde. Em contrapartida, a CIF classifica a funcionalidade e a incapacidade associadas às condições de saúde. A CID-10 e a CIF são, portanto,complementares e os utilizadores são incentivados a usá-las em conjunto no sentido de se obter uma visão mais ampla e significativa do estado de saúde dos indivíduos e das populações. A informação sobre mortalidade (fornecida pela CID-10) e a informação sobre saúde e sobre as consequências na saúde (for-necidas pela CIF) podem ser conjugadas em medidas sintéticas sobre a saúde da população.” (CIF-2001).

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defecação, as funções de manutenção do peso, as funções do equilíbrio hídrico, mineral e ele-trolítico, das glândulas endócrinas, de manu-tenção do crescimento, as termorreguladoras, entre outras.

1.6) Funções Geniturinárias e Reprodutivas = fun-ções urinárias, sexuais, menstruação, procria-ção, as associadas às funções reprodutivas e genitais, entre outras.

1.7) Funções Neuromusculoesqueléticas e Relacio-nadas ao Movimento = em relação à mobilida-de e estabilidade das articulações, as relacio-nadas à mobilidade óssea e das articulações dos ossos, aquelas relacionadas à força e ao tônus muscular, bem como à resistência mus-cular, além das relacionadas ao reflexo motor, dos movimentos voluntários e involuntários, às funções dos movimentos espontâneos, da marcha, dos músculos e das funções neuro-musculoesqueléticas.

1.8) Funções de Pele e Estruturas Relacionadas = relacionadas à proteção da pele, às funções re-paradoras da pele, relacionadas à sensação e outras funções da pele, bem como das funções dos pelos, unhas, entre outras funções especi-ficadas ou não especificadas.

2) estruturAs do corpo = são as partes anatômi-cas do corpo, sendo composto de:

2.1) Estruturas do Sistema Nervoso: estruturas rela-cionadas ao cérebro, à medula espinal, menin-ges, sistema nervoso simpático e parassimpático.

2.2) Olho, Ouvido e Estruturas Relacionadas: estru-tura da cavidade ocular, ao do globo ocular, ao ouvido externo e ao ouvido médio e interno.

2.3) Estruturas Relacionadas à Voz e à Fala: estru-tura do nariz, boca, faringe, e as relacionadas à voz e à fala.

2.4) Estruturas do Sistema Cardiovascular, Imuno-lógico e Respiratório: relacionadas ao sistema cardiovascular, imunológico e respiratório.

2.5) Estruturas do Sistema Digestivo, Metabólico e Endócrino: referente a estrutura das glândulas salivares, esôfago, estômago, intestino, pân-creas, fígado, vesícula, ductos biliares e as re-lativas às glândulas endócrinas.

2.6) Estruturas do Sistema Geniturinário e Repro-dutivo: relacionadas ao sistema urinário, repro-dutivo e assoalho pélvico.

2.7) Estruturas Relacionada ao Movimento: relati-vas ao movimento da cabeça e do pescoço, da região do ombro, da extremidade superior e in-ferior, da região pélvica, do tronco e as estrutu-ras muscoloesqueléticas adicionais relacionada ao movimento.

2.8) Estruturas Relacionadas a Pele: da pele propria-mente dita, das glândulas da pele, das unhas e dos pelos.

3) AtividAdes e pArticipAção = a primeira é a execução de uma tarefa ou ação por um indivíduo, enquanto a segunda é o envolvimento em situações de vida diária. Podem ser:

3.1) Aprendizagem e Aplicação do Conhecimento: observar, ouvir, percepções e experiências in-tencionais, imitar, adquirir informações, lin-guagem, ensaiar, adquirir conceitos, aprender a ler, escrever e a calcular, assim como as rela-cionadas à aquisição de habilidades e ao apren-dizado básico. Incluem-se, também, a concen-tração e a atenção, o pensamento, a leitura, a escrita, a tomada de decisões e resolução de contas e de problemas, bem como a aplicação do conhecimento adquirido.

3.2) Tarefas e Demandas Gerais: realização de uma única ou várias tarefas, realização da rotina diá-ria, as referentes ao gerenciamento do próprio comportamento, como lidar com o estresse e como realizar as tarefas e demandas gerais.

3.3) Comunicação: relacionadas à mensagens orais, não verbais, na linguagem de sinais conven-cionais, nas mensagens escritas, na fala, na pré-conversa, no cantar, na produção de men-sagens na linguagem formal dos sinais, no escrever mensagens e na comunicação e pro-dução. Aplica-se igualmente na conversação, discussão e na utilização de dispositivos e téc-nicas de comunicação.

3.4) Mobilidade: as relacionadas à mudança da posição, manutenção básica do corpo, levan-tar e carregar objetos, mover objetos com as extremidades inferiores, uso fino da mão, uso da mão e do braço, uso fino do pé e carregar, mover e manusear objetos. Incluem também o andar, o deslocar-se (sozinho ou usando equi-pamentos), o andar e o mover-se, além da uti-lização de transporte, dirigir, montar animais para o transporte e o deslocar-se utilizando transporte.

3.5) Cuidado Pessoal: lavar-se, cuidado das partes do corpo, os cuidados relacionados aos proces-sos de excreção, o vestir-se, o comer, o beber, o cuidar da própria saúde, da segurança e os cuidados pessoais.

3.6) Vida Doméstica: aquisição de um lugar para morar, realização das tarefas domésticas, o cui-dado dos objetos da casa e a ajuda aos outros.

3.7) Relações e Interações Interpessoais: interações interpessoais básicas e complexas, as relações com os estranhos, as relações formais, familiares, intimas e as relações interpessoais particulares.

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3.8) Áreas Principais da Vida: pode ser dividida em três áreas, para melhor estudo didático. A) Educação: referente a educação informal, pré--escolar, escolar, treinamento profissional, edu-cação superior e vida escolar e atividades a ela relacionadas. B) Trabalho e Emprego: estágios, conseguir, manter e sair de um emprego, tra-balho remunerado e não remunerado. C) Vida Econômica: transações econômicas básicas e complexas, autossuficiência econômica, vida econômica, envolvimento em jogo ou brinca-deira e outras áreas principais da vida.

3.9) Vida Comunitária, Social e Cívica: envolve a vida comunitária, a recreação e o lazer, a reli-gião e a espiritualidade, os direitos humanos, a vida política e a cidadania.

4) fAtores AmbientAis = compõem o ambiente fí-sico, social e atitudinal, no qual as pessoas vivem e conduzem suas vidas. São:

4.1) Produtos e Tecnologia: produtos ou substân-cias para consumo pessoal, produtos e tec-nologia para uso pessoal na vida diária, para mobilidade e transporte pessoal em ambiente internos e externos, para a comunicação, edu-cação, trabalho, para atividades culturais, re-creativas e esportivas, para a prática religiosa e a vida espiritual, bem como produtos e tec-nologia usados em projeto, arquitetura e cons-trução de edifícios públicos e privados, assim como os relacionados ao uso e à exploração do solo e os bens.

4.2) Ambiente Natural e Mudanças Ambientais Fei-tas pelo Homem: envolvendo a geografia física, a população, a flora e fauna, o clima, os de-sastres naturais e aqueles causados pela ação humana, a luz, as mudanças relacionadas ao tempo, o som, a vibração e a qualidade do ar.

4.3) Apoio e Relacionamentos: relacionados à famí-lia imediata e a família ampliada, aos amigos, conhecidos, companheiros, colegas, vizinhos e demais membros da comunidade, as relaciona-das às pessoas em posição de autoridade e às em posição de subordinação, aos cuidadores e assistentes pessoais, aos estranhos, aos animais domesticados, aos profissionais da saúde e ou-tros profissionais relacionados.

4.4) Atitudes: individuais e de membro da família imediata e aos outros membros da família com-plexa, aquelas relacionadas às atitudes indivi-duais dos amigo, conhecidos, companheiros, colegas, vizinhos e demais membros da comu-nidade. As atitudes individuais de pessoas em posição de autoridade e em posições de subor-dinação, aos cuidadores e assistentes pessoais, aos estranhos, aos profissionais da saúde, as

atitudes sociais e as relacionadas às normas, práticas e ideologias sociais.

4.5) Serviços, Sistemas e Políticas: para a produção de bens de consumo, de arquitetura e constru-ção, de planejamento de espaços abertos, de habitação, relacionadas aos serviços públicos, as de comunicação, transporte, proteção civil, políticas legais, políticas de associações e orga-nizações, dos meios de comunicação, políticas econômicas, da previdência social, de suporte social geral, as políticas de saúde, de educação e treinamento, de trabalho e emprego, do siste-ma político, entre outras políticas e serviços.

A partir dessa compreensão conceitual veremos que a CIF restou dividida em duas partes, com dois componentes cada. Vejamos:

pArte 1 – Funcionalidade e Incapacidade, que se divi-dem em Funções e Estruturas do Corpo e Atividades e Par-ticipação.

pArte 2 – Fatores Contextuais, os quais se dividem em Fatores Ambientais e Fatores Sociais.

A questão que está colocada, e a própria CIF-2011 traz isso à tona (p. 48), é o confronto entre o “modelo médico” e o “modelo social”. Segundo o primeiro sistema, até hoje reinante entre nós, “a incapacidade é um problema da pessoa, causado diretamente pela doença, trauma ou outro estado de saúde, que requer assistência médica fornecida através de tratamento individual por profissionais. Os cuidados em relação à cura ou a adaptação do indivíduo e a mudança de comportamento.”

Na outra perspectiva, representado pela segunda concep-ção, que passou a se denominar “biopsicossocial”, justamen-te por agregar a perspectiva biológica, individual e social, encontramos a incapacidade focada em outras bases. Ela é um problema criado socialmente, não sendo “um atributo de um indivíduo, mas sim um conjunto complexo de condições, muitas das quais criadas pelo ambiente social. Assim, o en-frentamento do problema requer ação social e é responsabili-dade coletiva da sociedade fazer as modificações ambientais necessárias... (...) a incapacidade é uma questão política.” (CIF-2011, p. 48-49).

A própria CIF, no Anexo 4, cita várias variantes da defi-ciência e limitação da capacidade dos indivíduos. O objetivo destes exemplos é demonstrar que o fato de o cidadão pos-suir uma deficiência ou patologia não o torna, automatica-mente, incapaz para o trabalho ou para a vida social. Procura demonstrar como o meio ambiente é fundamental para a ca-racterização de determinada incapacidade.

Os exemplos de pessoas que possuem alguma deficiência merecem uma reflexão, por confluir com os propósitos desta obra. Segundo a CIF-2001, um indivíduo que é tetraplégico pode não ser contratado por uma empresa que não dispõe de equipamento apropriado ao portador da deficiência, ou seja, o local de trabalho não oferece as condições necessárias para o desenvolvimento do trabalho. Outro mesmo individuo, que

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possui a mesma deficiência (tetraplegia), é capaz de realizar o trabalho na empresa mas, devido ao fato de utilizar cadeira de rodas e a empresa não possuir acessibilidade para o uso do equipamento. Outro indivíduo, com a mesma patologia, pode utilizar cadeiras de roda, a empresa oferecer as condi-ções necessárias (acessibilidade, software com comando de voz etc.), mas pode apresentar problemas de desempenho nos domínios das interações interpessoais com colegas de trabalho, de modo que esse problema de socialização no lo-cal de trabalho pode impedir o acesso a oportunidades na empresa.

Sintetizando, todos os indivíduos possuem problemas no domínio do trabalho devido à interação de diferentes fatores ambientais com sua condição de saúde ou deficiência (CIF-2011, p. 250).

No Anexo 5, da CIF, encontramos uma breve, mas pro-fícua, análise das pessoas com incapacidades. Resumindo, diante dos fins propostos neste trabalho, a CIF não se apre-senta como uma forma de classificação de pessoas. Trata-se de uma classificação das características de saúde das pessoas, dentro de um contexto em que considera as questões indivi-duais e os impactos ambientais. Essa lógica, portanto, muda completamente o entendimento do que entendemos por in-capacidade, na acepção tradicional vigente. Exemplo: segun-do a CIF não existe pessoa mentalmente incapacitada, mas sim com problema de aprendizado.

A CIF teve o devido cuidado de não rotular sistematica-mente as pessoas, de modo que as categorias são neutras, jus-tamente para evitar a depreciação, o estigma e as conotações inadequadas (CIF-2011, p. 252).

Para reforçar a tese da mudança de paradigma, até agora esposada, entendemos ser importante uma análise em outro documento internacional, qual seja a Convenção Internacio-nal sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Segundo esta Convenção, a incapacidade/deficiência, “é um conceito em evolução e que resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente, que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas” (conforme exposto pela Convenção Inter-nacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 09.07.2008 e promulgadas pelo Decreto n. 6.949, de 25.08.2009).

Segundo ainda esta Convenção Internacional, as pessoas portadoras de deficiência “são aquelas que têm impedimen-tos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, as quais, em interação com diversas barreiras, po-dem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

Os reflexos desta Convenção...2007, a partir de sua ra-tificação pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 9.7.08 e promulgadas pelo Decreto n. 6.949, de 25.08.09),

se fez sentir pela nova redação dada ao art. 20, da Lei n. 8.742/93, pela Lei n. 12.435/11), que alterou a concepção de deficiência, conforme disposto em seu § 2º e 10º, desse mesmo dispositivo. Vejamos:

§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pes-soa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de con-dições com as demais pessoas.

§ 10. Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2º deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mí-nimo de 2 (dois) anos.

Se, por um lado, é lamentável que o Brasil fixou um prazo de dois anos para a configuração da incapacidade temporária, vez que acreditamos reduzir alguns direitos diante deste tem-po, por outro dá importante avanço no sentido de não consi-derar somente a incapacidade total e permanente (a invalidez ou a deficiência, somente), como configuradoras do direito ao benefício assistencial previsto na LOAS de 1993.

A 1ª Turma Recursal dos JEF do Paraná, por meio de julgado em que foi relator o Dr. José Antônio Savaris, bem como a TNU, ambos em julgados do ano de 2010, antecipan-do esta posição adotada pela República brasileira, já tinham antecipado a posição no mesmo sentido constante da Con-venção...2007. Citemos estes julgados pela importância:

BENEFÍCIO ASSISTENCIAL À PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA. INCAPACIDADE TOTAL E TEMPORÁRIA. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO. A incapacidade total e temporária enseja a concessão de benefício assistencial à pessoa portadora de deficiência, cabendo ao INSS revisá-lo periodica-mente. (Recurso de Sentença Cível n. 2009.70.53.003387-7/PR, 1ª Turma Recursal do Paraná/JEF da 4ª Região, Rel. José Antônio Savaris. j. 2.6.2010, unânime).

PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO NACIONAL. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. INCAPACIDADE TEMPORÁRIA. POSSIBI-LIDADE. INCIDENTE CONHECIDO E PROVIDO EM PAR-TE. 1. Trata-se de ação em que se objetiva a concessão de benefício assistencial. 2. A sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido, para determinar a concessão de benefí-cio assistencial em favor do autor. 3. O acórdão da 2ª Turma Recursal do Rio Grande do Sul deu provimento ao recurso do INSS, para julgar improcedente o pedido, tendo em vista que o laudo pericial concluiu pela incapacidade temporária do autor, sendo necessário, para concessão do benefício, que esta fosse definitiva. 4. A parte autora interpôs Pedido de Uni-formização, tempestivo, ao fundamento de que a incapacidade temporária também viabiliza o deferimento do benefício em tela, conforme já decidido por esta Turma Nacional de Uni-formização, no PEDILEF 200770500108659, apontado como paradigma. 5. O Pedido de Uniformização, tempestivo, não foi admitido pela Juíza Federal Presidente da 2ª Turma Re-cursal. Encaminhados os autos a esta Turma Nacional, foram os mesmos distribuídos a este relator para melhor análise. 6. É de se conhecer do presente Pedido de Uniformização ten-

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do em vista que o acórdão recorrido afasta a possibilidade de concessão de benefício assistencial em caso de incapacidade temporária, ao passo que o paradigma afirma que não se exige, para concessão deste benefício, que a incapacidade seja perma-nente. 7. No mérito, é de se dar parcial provimento ao Pedido de Uniformização. Com efeito, a jurisprudência dominante neste colegiado caminha no sentido de que a transitoriedade da incapacidade não impede a concessão do benefício assis-tencial. Precedentes: PEDILEF 200770530028472, Relator(a) JUIZ FEDERAL MANOEL ROLIM CAMPBELL PENNA, DOU 8.2.2011 e PEDILEF 200770500108659, Relator(a) JUIZ FE-DERAL OTÁVIO HENRIQUE MARTINS PORT, DJ 11.3.2010. 8. Em sendo assim, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao pre-sente Pedido de Uniformização para fixar a premissa de que a transitoriedade da incapacidade não impede a concessão de benefício assistencial, e determinar seja o presente processo enviado ao juízo de origem para que seja proferido novo jul-gamento, nos termos da sua Questão de Ordem 20. (PEDILEF n. 200871520013314, TNU, Rel. Paulo Ricardo Arena Filho. j. 29.3.2012, DOU 20.4.2012).

3. A pArticipAção dos Assistentes sociAis nAs poLíticAs previdenciáriAs

O Serviço Social sempre esteve ligado às políticas sociais, como um todo, e aos direitos previdenciários em particular, especialmente a partir da constituição das Caixas de Aposen-tadorias e Pensões (1930) e dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (a partir de 1933).

Esse embricamento, como todas as questões que envol-vem as políticas sociais, não é pacífico ou linear, eis que “os primeiros Assistentes Sociais – especialmente aqueles do nú-cleo de São Paulo – constantemente explicitam uma aguda desconfiança em relação ao seguro e previdência estatais”(6). Pairava sempre uma desconfiança da utilização do trabalho dos AS numa perspectiva de manobra por parte do Estado, seja para mitigar os ânimos das classes trabalhadoras, seja para legitimar as políticas do Estado – especialmente o esta-donovista.

De outro lado, mesmo que em alguns IAP’s já apresen-tassem no rol de seus benefícios a assistência social, incor-porando em seus quadros técnico-administrativos AS(7), data de 1942 a primeira experiência de implantação do Serviço Social na estrutura do Seguro Social. A Portaria n. 25, de 1943, lavrada pelo Conselho Nacional do Trabalho, cria a

Seção de Estudos e Assistência Social, cuja tarefa de direção foi reservada a Luis Carlos Mancini, formado pela primeira turma da Escola de Serviço Social de São Paulo.(8)

Esta Seção de Estudos e Assistência Social tinha por in-cumbência pesquisar o modo e o meio de vida dos segurados, sendo que, fruto dessa pesquisa, deveria aportar os métodos e técnicas protetivas utilizadas no Seguro Social.(9)

As pesquisas realizadas neste período lançam luzes e olhares sobre questões ainda não resolvidas no ínsito da Previdência Social. Citamos algumas delas, que, a nosso ver, merecem ser investigadas hodiernamente: a) aplicação dos modelos importados sem nenhuma reflexão crítica; b) dis-tanciamento das políticas sociais previdenciárias dos seus signatários; c) desconhecimento, dos segurados e seus de-pendentes, de seus direitos previdenciários e, d) humaniza-ção do Seguro Social, face à frieza e rigidez de sua estrutura burocrática.

Note-se que os Assistentes Sociais tiveram, no segundo quartel da década de 40, do século passado, uma participação especial junto à elaboração do Seguro Social. Foi neste perío-do a I Semana de Previdência e Assistência Social, realizado pelo Instituto de Direito Social, em 1944 e, um ano após, a tentativa de Vargas na uniformização dos benefícios e unifi-cação dos serviços por meio do Instituto de Serviços Sociais do Brasil – ISSB(10).

O adensamento da participação dos AS na estrutura po-lítico-administrativa da Previdência Social ocorre a partir de 1945, quando o próprio Ministério do Trabalho, através de Portaria Ministerial, cria cursos intensivos de Serviço Social para os funcionários das CAP’s e dos IAP’s(11) (Iamamoto e Carvalho, 2006). Até esta data, a participação dos Assistentes Sociais restringia-se a algumas dessas Instituições, normal-mente para atender nos conjuntos residenciais (especialmen-te dos IAPI’s) que surgiam no Brasil.

De outro lado, é importante sinalizar para a mudança dos desígnios da Previdência Social a partir de 1950. Vejamos a tese adotada por Amélia Cohn:

“A nosso ver, a questão dos vínculos econômicos da previdência social, no caso brasileiro, reside em que até então ela estava mais voltada para investimentos em áreas estratégicas para o projeto de industrializante, enquanto que, sobretudo a partir da segunda metade da década de

(6) IAMAMOTO, Marilda e CARVALHO, Raul de. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil – Esboço de uma interpretação histórico--metodológica. São Paulo: Editora Cortez, 2006. p. 293.

(7) COHN, Amélia. Previdência Social e Processo Político no Brasil. São Paulo: Ed. Moderna, 1980. p. 75.

(8) IAMAMOTO e CARVALHO, Ibidem. p. 193.

(9) Idem, Ibidem, p. 295.

(10) O que ocorreu através do Decreto n. 7.526, de 07 de maio de 1945. Com a deposição de Getúlio Vargas, em 29 de outubro daquele mesmo ano, não se efetivou esta importante tentativa. O ISSB, por sua importância, foi embrião da LOPS de 1960, deixando um legado significativo em nosso sistema. (Cf. BOSCHETTI, Ivanete. Seguridade Social e Trabalho..., 2006, p. 36).

(11) IAMAMOTO e CARVALHO. Op. cit.

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50, pelo próprio estágio de desenvolvimento industrial do país, ela se vê forçada a voltar-se para a preservação da capacidade produtiva da força de trabalho empregada bem como da sua reprodução.”(12)

O aumento da demanda, em torno dos serviços sociais (seja atinentes à previdência stricto sensu, seja em relação aos serviços e a própria assistência) sugeria um maior in-vestimento no aparato técnico-burocrático-administrativo. Decorre daí a importância da participação dos AS na gestão e organização das políticas públicas de previdência social, pois desde o seu nascedouro os AS tinham a desconfiança de que a “frieza”da burocracia terminasse por reinar dentro do sis-tema(13).

Se, por um lado, os governantes e as classes dirigentes tivessem por intuito, mesmo que veladamente, utilizar o Serviço Social e os AS para apaziguar o conflito entre capi-tal e trabalho, neste período de industrialização em nosso país, por outro houve um despertar da consciência crítica de grande parte destes agentes, de modo a auxiliar a população usuária na busca de seus direitos.

A Matriz-94 fornece três etapas nesta caminhada da par-ticipação do SS na Previdência Social, antes obviamente da fase constitucional trazida pela CF/88. Vejamos:

a) Primeiramente o Serviço Social teve sua atuação marcada com o discurso de humanização das gran-des máquinas burocráticas, momento em que ocor-reu a legitimação profissional a partir da unificação dos IAPs em 1966;

b) O segundo momento deu-se com o Plano Básico de Ação – PBA, de 1972, cujo fim do Serviço Social era dar respostas à situação socioeconômica permeada pelo desenvolvimentismo no período de ditadura militar;

c) Terceiro deu-se com a criação do Sistema Nacional de Previdência Social – SINPAS, uma vez que os Cen-tros de Serviço Social foram extintos, com a exclu-são dos Assistentes Sociais no ínsito da Previdência Social. Curiosamente, delineando a política institu-cional da época, os serviços que antes pertenciam ao Serviço Social foram deslocados para a LBA, com cunho eminentemente assistencialista.

A Matriz de 1994, por sua vez, não foi somente um mero documento protocolar ou um manual de boas intenções. Este documento aponta para uma práxis revolucionária, vez que quebra o paradigma vigente deste o Plano Básico de Ação (1978). Vejamos excertos da própria Matriz-94:

“Após 15 (quinze) anos de exercício de um modelo com matriz teórico-metodológica funcionalista – Plano Básico de Ação-PBA-1978, sem nenhuma alteração ao longo destes anos, o presente Paradigma reflete a vonta-de política de reversão pela reconstrução do fazer profis-sional do Serviço social (...).

“Assim é que os assistentes sociais do Instituto Na-cional do Seguro Social – INSS, constituindo-se como su-jeitos históricos, repensam sua prática e a reconstroem, contribuindo para garantir um novo estatuto de cidada-nia da população usuária, ao posicionar-se não como me-ras peças burocráticas da Instituição, mas construtores de uma proposta histórica.” (MATRIZ, 1994)

“Assim, a ação prioritária do Serviço Social está vol-tada para assegurar o direito, quer pelo acesso aos be-nefícios e serviços previdenciários, quer na contribuição para a formação de uma consciência de proteção ao tra-balho com a responsabilidade do Poder Público.” (MA-TRIZ, 1994)

“Nesse aspecto, entende-se que o Novo Paradigma do Serviço Social está no compromisso de ruptura com o modelo tradicional, na construção e reconstrução per-manente teórico-metodológica da prática, visando efe-tivá-la no jogo das forças sociais presentes.” (MATRIZ, 1994)

Esse novo paradigma, por sua vez, exposto na MA-TRIZ-94, torna-se fundamental no conjunto da categoria profissional, pois fornece um outro referencial do que seja direito social e previdência social, compreendendo esta como direito dos trabalhadores:

“Assim, o paradigma emergente em discussão desde 1991, surge como contraposição à matriz funcionalista/ajustadora que durante anos orientou a prática dos as-sistentes sociais da Previdência Social, e, nesse sentido, vai travar o embate com as forças institucionais conser-vadoras e caminhar na direção de uma prática renovada, construída a partir de uma apreensão crítica da reali-dade. Para tal, o novo paradigma vai apoiar-se no mé-todo crítico dialético, apresentando como fundamento novas bases teóricas, estratégicas, éticas e legais para a ação profissional, sendo orientado por uma concepção de Previdência Social, como direito dos trabalhadores.” (YAZBEK, 2007, p. 116-117)

Não restam dúvidas, portanto, da importância da parti-cipação dos AS na organização e gestão das políticas públicas previdenciárias. Quiçá tenhamos um déficit, atualmente, da-

(12) COHN, Amélia. Op. cit., p. 139-140.

(13) Essa desconfiança, ao que tudo indica, tinha uma razão de existir. Isso porque, em toda e qualquer pesquisa séria que se faça envol-vendo os usuários (segurados e dependentes) e o INSS, na atualidade, o ponto negativo que sempre aparece é o atendimento: precário, inadequado, sem considerar as particularidades de cada região etc.

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102 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos José Ricardo Caetano Costa e Marco Aurélio Serau Jr.|

quela crítica inicial feita pelos AS na desconfiança para com o sistema previdenciário. E não se trata, somente, de uma participação formal dentro do espaço institucional.

A Constituição Federal de 1988, fruto do embate ideo-lógico-político e da correlação das forças sociais vigentes historicamente naquele momento, após longos vinte anos de ditadura militar, assegurou a garantia destes direitos sociais.

Julgamos interessante a citação literal do art. 88, da Lei n. 8.213/91, pois fornece subsídios para as práticas e interven-ções dos AS junto às políticas previdenciárias.

Art. 88 – Compete ao Serviço Social esclarecer aos beneficiários seus direitos sociais e os meios de exercê-los e estabelecer con-juntamente com eles o processo de solução dos problemas que emergirem da sua relação com a Previdência Social, tanto no âmbito interno da instituição como na dinâmica da sociedade.

§ 1º. Será dada prioridade aos segurados em benefício por in-capacidade temporária e atenção especial aos aposentados e pensionistas.

§ 2º. Para assegurar o efetivo atendimento dos usuários serão utilizados intervenção técnica, assistência de natureza jurídica, ajuda material, recursos sociais, intercâmbio com empresas e pesquisa social, inclusive mediante celebração de convênios, acordos e contratos.

§ 3º. O Serviço Social terá como diretriz a participação do be-neficiário na implementação e no fortalecimento da política previdenciária, em articulação com as associações e entidades de classe.

§ 4º. O Serviço Social, considerando a universalização da Pre-vidência Social, prestará assessoramento técnico aos Estados e Municípios na elaboração e implantação de suas propostas de trabalho.

A riqueza deste art. 88 não pode passar desapercebida pelo conjunto da categoria profissional, mormente quando a Previdência Social tem sido o alvo predileto das reformas neoliberalizantes(14).

Primeiramente, restou consignado que o AS deverá escla-recer e intervir em prol dos segurados face à Previdência So-cial enquanto Instituição (às vezes “fria”, como observavam os primeiros AS que atuaram em seu nascedouro). E nesse trabalho não há imparcialidade, eis que terão, por dever e obrigação constitucional (além de ética, pelo próprio Código Profissional), orientar corretamente os segurados e seus de-pendentes no que diz respeito aos seus direitos enquanto tal.

A prioridade, dentro da vasta clientela, deve recair so-bre os incapacitados temporariamente, o que deve ser tra-duzido por aqueles segurados que pretendem habilitar-se ao auxílio-doença previdenciário. Por ironia ou desgraça é justamente o Setor Pericial que faz a triagem deste benefício o mais problemático: seja pela falta de peritos no INSS, pela

precariedade das condições de trabalho (em virtude dos exa-mes complementares solicitados esbarram na morosidade do SUS), pela ausência de médicos especialistas, especialmente em áreas como psiquiatria, oftalmologia e outras, enfim, pela carência de uma política adequada para esse setor.

Desconhecemos, por outro lado, a participação de AS no setor pericial, vindo o AS, normalmente, mais a apaziguar o resultado negativo em explicações infindáveis aos segurados do que efetivamente participar do processo de avaliação da capacidade laboral dos segurados(15).

O Serviço Social é conclamado, inclusive, a participar da montagem das diretrizes previdenciárias, seja com o as-sessoramento técnico, seja na elaboração de pareceres e pes-quisas. Além se sua fundamental participação na gestão das políticas previdenciárias, os Assistentes Sociais possuem um potencial, ainda pouco explorado, quando contribuem como peritos auxiliares do Juízo, como veremos detalhadamente adiante.

Colacionamos, abaixo, quadro didático organizado por SILVA (2007), em que consta a participação da AS na OS desde os Institutos de Aposentadoria e Pensão, em 1940, até a Matriz Teórico-Metodológica de 1994.

1942 – Primeira experiência oficial de implantação do Ser-viço Social; Seção de Estudos e Assistência social no IAPC.

1944 – Instituição do Serviço Social na Previdência Pública – Portaria n. 25 do CNT – Conselho Nacional do Trabalho.

1944 – Autorização para implantação de Serviços sociais nos IAPs e CAPs – Portaria n. 52 do CNT – Conselho Na-cional do Trabalho.

1945 – Organização de cursos intensivos de Serviço Social para funcionários dos IAPs e CAPs – Portaria do DNPS/MT.

1948 – Adoção do Serviço Social nas instituições de previ-dência: assistência complementar – Ofício Circular n. 250/DNPS.

1948 – Oficialização do Serviço Social no IAPC de São Paulo.

1950 – Seções ou turmas de Serviço Social nas Delega-cias Regionais dos IAPs – Institutos de Aposentadoria e Pensões.

1960 – Definição do Serviço Social como assistência com-plementar – LOPS.

1965 – Concepção do Serviço como assistência comple-mentar.

1972 – Plano Básico de Ação do Serviço Social – Resolução INPS n. 401.4.

1976 – Assistência Complementar por meio do Serviço So-cial – Art. 71 da Consolidação das Leis da Previdência Social – CLPS.

(14) Não esqueçamos que houve manifesta tentativa, por parte dos neoliberais, em retirar o art. 88 da LBPS, o que não foi possível somente porque “a resistência dos assistentes sociais previdenciários envolveu várias entidades da categoria, impediu a supressão desse espaço sócio--ocupacional e, em decorrência, do art. 88, da Lei n. 8.213/91, que disciplina o Serviço Social na Previdência.” (ABRAMIDES, 2007, p. 13).

(15) À exceção dos benefícios assistenciais, quando da concessão do BPC da LOAS, como veremos adiante.

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1978 – Plano Básico de Ação do Serviço Social – Resolução INPS n. 064.2.

1991 – Competência do Serviço Social: esclarecimento quanto aos direitos sociais e meios de exercê-los; ações intra e extra-institucionais – Art. 88 da Lei n. 9.213, de 24/7/91.

1994 – Matriz teórico-metodológica do Serviço Social na Previdência Social.

4. A necessidAde dA formAção dos Assistentes sociAis pArA AtuArem como peritos sociAis

A história da participação dos Assistentes Sociais no âm-bito do Judiciário, especialmente na denominada Justiça da Infância e da Juventude, é prenúncio do que buscamos na atualidade. Seguindo os passos de FÁVERO (2010), vere-mos que no final de 1927 os Assistentes Sociais já estavam atuando como “comissários de vigilância”, tendo em suas atribuições a investigação dos menores, seus pais, tutores ou encarregados de sua guarda, devendo fazer cumprir as determinações emanadas do Judiciário (art. 152 do Código Brasileiro de Menores de 1927).

Já a partir do Decreto-Lei n. 6.026 de 1943, os Assis-tentes Sociais passaram a ter uma participação mais incisiva neste processo, atuando como estagiários ou membros do Comissariado de Vigilância, de modo que já no final de 1940 já ocupavam um “espaço formal de trabalho no então deno-minado Juizado de Menores de São Paulo.” (FÁVERO, 2010, p. 20).

A partir de 1979, com a promulgação do Código de Me-nores (Lei n. 6.697/79), foi reconhecido a condição de perito social dos Assistentes Sociais que trabalhavam nestes Juiza-dos. O art. 4º do Código de Menores forçou esta participação na medida em que previa o estudo socioeconômico e cultu-ral em que o menor se encontrava, bem como sua família, além de prever que o estudo de caso deveria ser feito “por uma equipe de que participe pessoal técnico, sempre que possível.”

Segundo FÁVERO (2010, p. 21), a partir do marco intro-duzido pelo Código de Menores, de 1979, essa participação dos Assistentes Sociais no ínsito do Judiciário foi adensado em 1990 com a criação do Estatuto da Criança e do Adoles-cente (ECA)(16).

Acreditamos que percurso similar está sendo feito em relação à atuação dos Assistentes Sociais quando da organi-zação da Pericia Biopsicossocial(17).

Esta sistemática, envolvendo perito médico e perito as-sistente social, já é realidade na dinâmica do BPC da LOAS, como vimos detidamente neste trabalho. Deverá o ser tam-bém quando se tratar de benefício previdenciário de origem contributiva. Não há, absolutamente, nenhuma lógica ou ex-plicação racional que justifique a presença da Perícia Biopsi-cossocial quando se tratar de um benefício assistencial e sua dispensabilidade quando se tratar de benefício de prestação continuada inscrito dentro do RGPS.

Adrede, a verificação da incapacidade por tempo deter-minado, cujo diagnóstico de melhora não ocorrer antes de dois anos, para fins do BPC da LOAS, nada difere da incapaci-dade laboral parcial, por tempo determinado, dos segurados que buscam os benefícios do auxílio-doença previdenciário.

Logo, é necessário o trabalho do Assistente Social para a verificação de todos os elementos que compõem a CIF de 2001, diante da premissa de que o perito médico não conse-gue avaliar os quesitos de ordem social, econômica, ambien-tal, pessoal e atitudinal.

Essa nova perspectiva, advinda da Perícia Biopsicosso-cial, portanto, traz aos Assistentes Sociais um novo desafio: dar conta da resposta a uma série de quesitos que, até então, cingia-se basicamente na verificação do aspecto econômico. Os Assistentes Sociais, até então, são chamados como Peritos Sociais para avaliar o critério de pobreza, miséria ou neces-sidade econômica dos segurados ou os autores que buscam os benefícios de prestação continuada da Assistência Social.

Trata-se, sem dúvida, de ir muito além dessa mera ava-liação econômico-social. As avaliações sociais deverão con-templar as diversas áreas e aspectos trazidos pela CIF-2001.

Para tanto, é necessário uma melhor formação que come-ça, sem dúvida, na academia, ou seja, nos Cursos de Serviço Social. Estes, por sua vez, deverão introduzir a disciplina de Pericia Social em seus currículos(18).

Faz-se imprescindível que os Assistentes Sociais com-preendam minimamente o “mundo do Direito”, bem como os meandros da perícia médica, stricto sensu, de modo a res-ponderem a contento a essa nova perspectiva. Com isso, da-rão grande passo no auxílio ao Juízo, até mesmo porque esta é a razão principal pela qual foram designados como peritos: auxiliar o juiz na formação de sua convicção, de modo a de-cidir a lide da forma mais justa o possível.

(16) A partir do ECA, portanto, tornou-se impossível pensar em proteção integral à criança e ao adolescente sem a integração dos Assis-tentes Sociais na equipe multiprofissional ou interdisciplinar que esta orientação exige. Nesta perspectiva, cabe aos Assistentes Sociais não somente realizar levantamentos sociais, emitirem pareceres e laudos, como também orientar, aconselhar e encaminhar os menores (art. 150 e 151 do ECA).

(17) Para uma análise mais detida da participação dos Assistentes Sociais enquanto Peritos Sociais ver COSTA, 2013.

(18) Em rápido olhar em diversos currículos pesquisados, verificamos a ausência da respectiva disciplina, ou outra correlata, muito embora os Assistentes Sociais já estejam há longo tempo atuando como Peritos do Juízo, mormente nos processos em que envolvem menores e infratores.

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É imperioso, particularmente, que estudem e compreendam o sistema previdenciário, especialmente no que diz respeito aos benefícios de prestação continuada que, para a sua concessão, depende da Perícia Biopsicossocial: auxílio-doença (comum e acidentário), aposentadoria por invalidez e auxílio-acidente e tantos outros benefícios.

5. os cAminhos ApontAdos peLA períciA biopsicossociAL nA concessão do bpc dA LoAs

Percebe-se, pela leitura do exposto na Convenção....2007 e pela influência da CIF de 2001, que as barreiras sociais podem obstruir a participação efetiva dos indivíduos em so-ciedade, conduzindo, necessariamente, à mudança da con-cepção vigente do que é doença e incapacidade.

Fruto desta Convenção...2007, a qual o Brasil referendou e passou a ter o status de Emenda Constitucional, o Decreto n. 6.564/08 alterou significativamente o critério biomédico até então utilizado para verificação da deficiência, prevista na LOAS de 1993. Segundo este, a avaliação da deficiência e do grau de incapacidade passa a ser composta da avaliação médica e social, cabendo a estas áreas específicas as seguintes incumbências:

“A avaliação médica da deficiência e do grau de in-capacidade considerará as deficiências nas funções e nas estruturas do corpo, e a avaliação social considerará os fatores ambientais, sociais e pessoais, e ambas considera-rão a limitação do desempenho de atividades e a restrição da participação social, segundo suas especialidades.”

Do mesmo modo, restou garantido, na avaliação dos pedidos do benefício pecuniário da LOAS, as avaliações por meio destas duas áreas específicas – a médica e a social – como melhor forma de avaliar as deficiências e incapacidades duradouras (Conf. Redação dada pelo Decreto n. 6.564/08).

O INSS, por sua vez, em 29 de maio de 2009, através da Portaria Conjunta n. 1 daquele ano, instituiu os instrumen-tos para a avaliação da deficiência e do grau de incapacidade dos pretendentes ao BPC da LOAS, buscando o cumprimento dos ditames estabelecidos na CIF de 2001 e na Convenção Internacional mencionada.

No mesmo sentido, a Instrução Normativa n. 45, de 06 de agosto de 2010, trouxe na Seção VII, Subseção I, que trata “Do Serviço Social”, vários dispositivos que convergem ao argumento aqui exposto. Vejamos: no art. 385 consta que o Assistente Social deverá realizar o parecer e a pesquisa social, bem como avaliar a pessoa com deficiência. Os §§ 4º e 6º, do inc. V deste mesmo artigo, todos da IN n. 45/10, são dignos de citação literal.

§ 4º – A avaliação social em conjunto com a avaliação médica da pessoa com deficiência, consiste num instrumento destinado à caracterização da deficiência e do grau de incapacidade, e considerará os fatores ambientais, sociais, pessoais, a limitação do desempenho de atividades e a restrição da participação

social dos requerentes do Benefício de Prestação Continuada da pessoa portadora de deficiência.

Não se trata, porém, como pensam alguns, da necessidade dos dois peritos para realizar seus trabalhos estanques e desco-lados um do outro: o Perito Médico para avaliar a deficiência ou incapacidade duradoura dos segurados e o Perito Social para verificar a questão da renda. Não é isso. Trata-se de um trabalho interdisciplinar, em conjunto, diante da complexidade com que se apresentam os casos que versam sobre estas questões.

Julgamos, destarte, importante esse avanço na dinâmica operacional do BPC da LOAS porque, nos benefícios pre-videnciários de prestação continuada do RGPS, ainda esta questão está longe de ser resolvida.

A pergunta que se impõe é por que este mesmo pro-cedimento não foi implementado para os benefícios previ-denciários, quando é necessária a avaliação da incapacidade laboral ou a invalidez dos segurados? Responder que estes dois importantes marcos (a CIF-2001 e a Convenção...2007) aplicam-se somente aos benefícios assistenciais não possui nenhum embasamento. Como vimos, podem – e devem – ser aplicados em todos os campos da seguridade social.

Aliás, é de bom alvitre lembrar que nem sempre esse en-tendimento, o da Pericia Complexa e Sistemática (Médico e Perito Social), quando da avaliação dos pedidos do BPC da LOAS, é mantida nos processos judiciais vindicando este benefício. É comum o entendimento de magistrados que no-meiam os Peritos Médicos para realizar a análise das patolo-gias e o Assistente Social, como Perito Social, para verificar a questão da renda mensal da família do requerente.

Tanto é verdadeira esta constatação que, no resultado ne-gativo das pericias médicas, estes magistrados sequer desig-nam a Perícia Social ou Socioeconômica, justamente porque entendem prejudicado o primeiro requisito (da deficiência ou incapacidade temporária).

Colocando as coisas no seu devido lugar, ver-se-á que a Perícia Social não se restringe somente na avaliação da renda “per capita” da família do requerente ao BPC da LOAS, mas também na aferição de todos estes outros componentes ex-postos na CIF-2001. Adotar outra sistemática é causar enor-mes prejuízos aos jurisdicionados, mormente em se tratando de benefício assistencial.

De qualquer modo, o caminho aberto pela sistemática de avaliação do Benefício de Prestação Continuada da LOAS é indicativo da aplicação deste mecanismo para os demais casos envolvendo benefícios previdenciários.

Trata-se de uma nova forma de concepção da perícia, apontando para uma construção sistemática, holística, com-plexa, da novel concepção de avaliação que nominados PE-RÍCIA BIOPSICOSSOCIAL.

concLusões

A Assistência Social foi a última das espécies do gênero SEGURIDADE SOCIAL, a ser regulamentada. O único bene-

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fício de prestação continuada, de caráter pecuniário, foi re-gulamentado após cinco anos da vigência da Lei n. 8.472/93. Tal fato, conforme apontado por COSTA (2012), demonstra a resistência da compreensão da assistência social enquanto direito social fundamental, tal como foi inscrito na Consti-tuição Federal de 1988.

Por outro lado, embora tardiamente regulamentado, pas-sando a ser deslocadamente gestionado e pago pelo INSS, a forma de compreensão do que é incapacidade, mesmo que temporária, é digna de nota. O BPC da LOAS foi o primeiro benefício da seguridade social como um todo a instituir a Perícia Biopsicossocial na avaliação dos segurados que o bus-cam como meio de subsistência.

Recepcionando, como vimos, os novos pressupostos tra-zidos pela Convenção...2007, o Parecer Social, emitido por Assistente Social, passou a ser obrigatório quando da ava-liação pericial. Não basta somente o Parecer Médico, cujo trabalho é importante, sem dúvida, na constatação do tipo de patologia, haja visto que ele, por si, é insuficiente para dar conta de uma série de fatores que circunda cada segurado e cada caso concreto.

Neste sentido é que se torna fundamental o preparo dos Assistentes Sociais, o que implicará, certamente, pela inclu-são de disciplina relacionada à perícia complexa, dentro das grades curriculares dos cursos de Serviço Social, como outros Cursos e similares, para atualizar os conhecimentos destes profissionais que já estão inseridos dentro das políticas sociais.

Julgamos, desse modo, como um bom exemplo a siste-mática atualmente vigente na concessão do BPC da LOAS, vez que apontamos pela utilização desta também nos de-mais benefícios previdenciários, especialmente aqueles que versem sobre a concessão ou manutenção de benefícios por incapacidade laboral.

referênciAs bibLiográficAs

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Benefício assistencial e Benefícios previdenciários: diferenças e aproximações

Silvio Marques Garcia(*)

1. introdução

Nestes vinte anos de regulamentação legal do benefício assistencial, muitas controvérsias se instalaram na doutrina e na jurisprudência acerca dessa prestação assistencial previs-ta no art. 203, inciso V, da Constituição Federal. Este artigo busca delinear as características desse benefício, bem como analisar aspectos que, na prática previdenciária, aproximam as políticas de previdência e de assistência social, envolvendo a concessão de benefícios previdenciários como as aposenta-dorias por idade e por invalidez.

A República, fundamentada na dignidade da pessoa hu-mana e no valor social do trabalho (CF, art. 1º), busca, den-tre seus objetivos primordiais (CF, art. 3º), a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desen-volvimento nacional; a erradicação da pobreza e da margi-nalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos. Esses objetivos constituem ponto decisivo para a compreensão dos direitos sociais na democracia social brasileira, que pretende garantir a digni-dade de todos, por meio da melhoria de sua qualidade de vida, sem discriminações ou marginalizações, e diminuir as desigualdades sociais.

Foram mantidas as conquistas alcançadas a partir do Es-tado Liberal e do Estado Social em matéria de direitos funda-mentais e o cidadão foi incluído no processo de concretização das políticas públicas, dentre as quais se destaca a seguridade social, definida no art. 194, caput, da Constituição Federal como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Po-deres Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os di-reitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. Com a superação do paradigma normativo liberal, a segurida-de constitui um direito fundamental material. A aplicação dos dispositivos legais que disciplinam a seguridade social deve propiciar a manutenção da dignidade dos beneficiários como parte da tarefa de efetivação dos direitos fundamentais sociais.

A seguridade social é parte integrante da Constituição material, por se tratar de um “elemento estruturante do Es-tado” que se traduz na concretização do princípio da so-lidariedade em seu aspecto específico de redistribuição de renda, bem como nas demais políticas públicas a ele relacio-nadas. (SERAU JUNIOR, 2009. p. 161) O reconhecimento da seguridade como um direito fundamental material impli-ca consequências para a aplicação das normas assistenciais, dentre elas a preponderância dos princípios constitucionais, os quais refletem os valores éticos compartilhados pela co-munidade e cuja efetivação deve ser continuamente buscada pelo Estado.

Apesar das conquistas normativas, no âmbito social o envelhecimento da população irá exercer, nas próximas dé-cadas, uma pressão sobre o sistema de seguridade social. Nesse cenário, os altos índices de evasão fiscal e as políticas de aumento real do valor dos benefícios previdenciários e assistenciais, cujo piso é atrelado ao salário mínimo, acarreta-rão custos não compensados pelo crescimento populacional. O benefício assistencial ao idoso e ao deficiente poderá de-sempenhar um papel relevante nessa transição demográfica, proporcionando a retirada de uma grande parcela da popu-lação da miséria, aumentando o consumo das famílias e pos-sibilitando o crescimento da economia e a geração de novos postos de trabalho.

A complexidade das políticas de seguridade social e a dificuldade de sua efetivação em todo o território nacional deram origem à sua divisão em três pilares, a fim de se ob-ter uma melhor gestão em relação às necessidades cada vez maiores dos cidadãos em relação às prestações da saúde, da previdência e da assistência social. Nos termos da Consti-tuição Federal, o Estado presta assistência aos cidadãos de diversas formas, como a assistência jurídica (CF, art. 5º, inc. LXXIV) e a assistência à família (CF, art. 226, § 8º), dentre outras. A assistência aos desamparados foi inserida no Capítulo II, que trata dos direitos sociais, ao lado do direito

(*) Procurador Federal. Especialista em Direito Público (UNB/EAGU). Mestre em Direito (Unesp).

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107Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Benefício Assistencial e Benefícios Previdenciários: diferenças e aproximações|

à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à proteção à maternidade e à infância, e à previdência social. A assistência também é devida pela sociedade, como no caso da assistência aos filhos devida pelos empregadores aos seus trabalhadores (CF, art. 6º, inc. XXV).

Compete igualmente à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios prestar assistência em geral às pes-soas portadoras de deficiência assim como combater as cau-sas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos (CF, art. 23). A assistência ao idoso cabe à família, à sociedade e ao Esta-do, que deverão assegurar sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade, bem-estar e o direito à vida (CF, art. 230).

A assistência social, como parte integrante da seguridade, será prestada a quem dela necessitar, independentemente do recolhimento de contribuições. Dentre seus objetivos estão a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, às pessoas portadoras de deficiência e à velhice (CF, art. 203). As ações da assistência social são custeadas pelo orçamento da seguridade social (CF, art. 204; art. 195, § 2º).

Dentre as principais medidas trazidas pela Constituição para efetivar o direito à seguridade social, destaca-se para este estudo, o benefício mensal de um salário mínimo garan-tido à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que compro-vem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei (CF, art. 203, inciso V). Esse benefício, conhecido como amparo assistencial, benefício assistencial de prestação continuada, be-nefício assistencial ou ainda pela sigla LOAS (uma referência à Lei Orgânica da Assistência Social, a qual regulamenta a sua concessão), é considerado a mais importante prestação pecu-niária da assistência social (MORAES, 2010, p. 283; CARDO-SO; SILVA JÚNIOR, 2013, p. 669).

1. reguLAmentAção do benefício AssistenciAL

O benefício assistencial constitui uma prestação pe-cuniária mensal continuada da assistência social no valor de um salário mínimo. Não dá direito ao recebimento de décimo terceiro, pois não há previsão legal nesse sentido. É concedido sem a fixação de termo final, mas se sujeita a revisão a cada dois anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem (Lei n. 8.742/1993, art. 21). Apesar de ser um benefício previsto no texto constitu-cional, a sua regulamentação foi feita somente pela Lei n. 8.742/1993, que define a assistência social, em seu art. 1º, como uma “Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um con-junto integrado de ações de iniciativa pública e da socieda-de, para garantir o atendimento às necessidades básicas”.

A concessão do benefício, entretanto, teve início apenas a partir de 1º de janeiro de 1996 (Dec. n. 1.744/1995, art. 40), o que demonstra um atraso considerável na efetivação desse direito fundamental.

Essa definição é relevante quando se busca identificar o conceito doutrinário de mínimo existencial, o qual se refe-re ao conjunto de condições mínimas de existência humana digna, o qual, além de não poder ser objeto de restrições por parte do Estado, exige deste prestações positivas para a sua efetivação. Nesse sentido, os mínimos sociais seriam as pres-tações necessárias para a garantia de um piso de dignidade a que se convencionou nominar de mínimo existencial.

Vários aspectos da regulamentação do benefício assis-tencial têm sido alvo de intensos debates na doutrina e na jurisprudência, dentre eles a idade mínima para ter acesso ao benefício, o conceito de família, a fixação de um critério ob-jetivo para aferir a miserabilidade e a exclusão de rendimento igual ou inferior ao salário mínimo da renda familiar.

2.1. conceito de idoso

A Lei n. 8.742/1993 previu inicialmente a concessão do benefício assistencial às pessoas com idade igual ou superior a setenta anos (art. 20, caput). O Decreto n. 1.744/1995 (já revogado pelo Decreto n. 6.214/2007) reduziu a exigência etária para 67 anos a partir de 1º de janeiro de 1998, e para 65 anos a partir de 1º de janeiro de 2000 (Dec. n. 1.744/1995, art. 42). O Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003) reafirmou a idade mínima para a concessão do benefício em 65 anos (art. 34).

A redação mais recente do art. 20 da Lei n. 8.742/1993, promovida pela Lei n. 12.435/2011, manteve a idade míni-ma de 65 anos. A redução etária de 70 para 65 anos esten-deu o benefício a um maior número de idosos, ainda mais se considerado o aumento da expectativa de vida que vem sendo conquistada nos últimos anos, decorrente, em certa medida, de políticas de saúde e assistenciais, dentre elas a concessão do benefício assistencial ao idoso. Daí já se nota a sua extrema relevância para a garantia do envelhecimento com dignidade.

Apesar de o Estatuto do Idoso assegurar direitos às pes-soas com idade igual ou superior a sessenta anos (art. 1º), para efeito de concessão do benefício assistencial a idade deve ser mantida em 65 anos, seja em razão do aumento da expectativa de vida, seja porque sua diminuição poderia sig-nificar um estímulo para que os trabalhadores que recebem salário mínimo ou próximo do piso abandonassem o merca-do de trabalho para buscar a assistência social.

Cumpre observar também que a assistência social não traz critérios de idade diferenciados para homens e mulheres, certamente uma efetivação do princípio da igualdade cons-titucional e um avanço em relação à previdência, que ainda possui muita dificuldade na concretização desse comando.

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108 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Silvio Marques Garcia|

2.2. conceito de deficiente

Na redação original do art. 20, § 2º, da Lei n. 8.742/1993, regulamentado pelo Decreto n. 6.214/2007, art. 4º, inc. II, também em sua redação original, para efeito de concessão do benefício assistencial, a pessoa com deficiência era considerada aquela “incapacitada para a vida independente e para o trabalho”. A incapacidade exigida ia além da mera incapacidade para o trabalho, requisito para a concessão de benefícios previdenciários, e também não se confundia com a incapacidade civil (Dec. n. 6.214/2007, art. 18).

Em 2008, com a ratificação da Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (De-creto Legislativo n. 186/2008, promulgada pelo Decreto n. 6.949/2009), segundo o procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, os direitos e garantias previstos na convenção passaram a ter o status de Emenda Constitucional, com aplicação imediata (CF, art. 5º, § 1º). Portanto, os dispositivos da legislação assistencial que lhe eram contrários sucumbiram diante da sua força normativa. O requisito para a concessão do benefício em questão deixou de ser a incapacidade para a vida independente e para o trabalho e passou-se a exigir um conceito mais amplo de deficiência, baseado na “a existência de impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sen-sorial, os quais, em interação com diversas barreiras, obs-truam sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas, [...]” (Dec. n. 6.214/2007, art. 9º, inc. I, com redação dada pelo Dec. n. 7.617/2011) A deficiência deixou de ser apenas um conceito clínico, para constituir uma situação que decorre de con-junto de fatores que dizem respeito ao cidadão em interação com o meio ambiente.

Uma das consequências da adaptação do conceito à nor-ma da convenção internalizada é a necessidade de avaliação médica e social para se verificar a existência de incapacida-de e do grau de impedimento em interação com as diversas barreiras que obstruam a participação plena e efetiva do ci-dadão na sociedade em igualdade de condições com as de-mais pessoas (Lei n. 8.742/1993, art. 20, § 6º). Essa avaliação deverá ser feita por médicos peritos e assistentes sociais do Instituto Nacional de Seguro Social. O art. 15 do Decreto n. 6.214/2007 melhor explicita a avaliação, que deverá ser feita com base nos princípios da Classificação Internacional de Funcionalidades, Incapacidade e Saúde – CIF, estabeleci-da por Resolução da Organização Mundial da Saúde. A ava-liação social deverá considerar fatores ambientais, sociais e pessoais; a avaliação médica considerará as deficiências nas funções e nas estruturas do corpo; ambas considerarão, ade-mais, a limitação do desempenho de atividades e a restrição da participação social, segundo suas especificidades (Lei n. 8.742/1993, art. 20, § 2º).

Verifica-se, dessa forma, uma evolução do conceito de deficiência, muito mais adequado ao próprio desenho cons-

titucional das políticas públicas de apoio à pessoa com defi-ciência, que desde o princípio buscava sua inserção na socie-dade e foi reforçado pela ratificação da Convenção de Nova Iorque.

2.3. conceito de família

O benefício assistencial é devido à pessoa idosa ou com deficiência que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família (Lei n. 8.742/1993, art. 20). Ganha relevo a análise do conceito de família, uma vez que influencia diretamente na apuração da renda mensal familiar. Luciano Meneguetti Pereira (2011, p. 60) afirma que “a regulamentação do BPC também tem se mostrado restritiva desde a sua origem, em razão do acesso ao benefício ser fortemente vinculado à família e não aos idosos e pessoas com deficiência enquanto titulares individuais de um direito fundamental”.

Entretanto, a responsabilidade pela assistência social, parte integrante da seguridade social, compete aos Poderes Públicos, à sociedade e à família (CF, art. 194, art. 203, inc. V, art. 227, art. 299 e art. 230). Nesse sentido, a própria deli-mitação constitucional do benefício assistencial prevê a sua concessão à pessoa com deficiência e ao idoso que compro-vem não possuir meios de prover à própria manutenção “ou de tê-la provida por sua família” (CF, art. 203, inc. V). A atua-ção dos programas públicos de assistência social, portanto, é subsidiária, e somente terá lugar quando a família não puder prover à subsistência da pessoa idosa ou com deficiência.

Apesar de o conceito constitucional remeter à família, levando a se concluir que há a necessidade de que ela seja acionada, na forma da lei civil, antes de buscar o socorro do Estado, a legislação assistencial tem fixado outras regras a respeito. A Lei n. 8.742/1993 entendeu a família como “a uni-dade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto, cuja econo-mia é mantida pela contribuição de seus integrantes” (art. 20, § 1º). Tal conceito era totalmente desvinculado das relações biológicas ou de parentesco civil.

A Lei n. 9.720/1998 alterou o conceito de família, que passou a ser compreendida como “o conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, desde que vivam sob o mesmo teto”. Adotou-se, dessa forma, a concepção da legislação previdenciária, mais restrita que a anterior. Assim, o filho e o irmão maiores de 21 anos, além de outras pessoas como o padrasto, a madrasta, tios, netos etc. passaram a ser excluídos do cálculo da renda familiar per capita, o que acabou ampliando as hipóteses de concessão.

Uma das recentes alterações promovidas pela Lei n. 12.435/2011 resultou em importante modificação no concei-to de família, que passou a ser entendida como “composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutela-

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109Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Benefício Assistencial e Benefícios Previdenciários: diferenças e aproximações|

dos, desde que vivam sob o mesmo teto” (Lei n. 8.742/1993, art. 20, § 1º). Houve, dessa forma, a fixação de um critério próprio, mais adequado para a apuração da renda familiar. Foram incluídos o padrasto e a madrasta, na falta de um dos pais e, além disso, os irmãos solteiros maiores de 21 anos também foram incluídos, assim como os enteados solteiros e os menores tutelados. Apesar disso, a fixação de um conceito exaustivo de núcleo familiar está sujeita a críticas (PEREIRA, 2011, p. 64), já que pode não refletir a realidade da noção moderna de família que deve merecer a proteção do Estado.

De outro lado, havendo pessoas que residam sob o mes-mo teto com capacidade financeira para promover a manu-tenção do idoso ou da pessoa com deficiência, é necessário delimitar aquelas cuja renda será incluída na apuração da renda mensal familiar per capita. Nesse sentido, o legislador optou por desconsiderar os filhos e irmãos casados, bem como os que não residam sob o mesmo teto. Conforme ob-servam Oscar Valente Cardoso e Adir José da Silva Júnior (2013, p. 673), “qualquer pessoa que não se enquadrar no rol legal do art. 20, § 1º, da Lei n. 8.742/1993, deve ser excluída do conceito de grupo familiar da LOAS, ainda que tenha grau de parentesco ou auxilie economicamente o pretendente ao benefício de prestação continuada.”

Assim, as alterações na Lei n. 8.742/1993 alargaram as possibilidades de concessão do benefício, pois restringiram o conceito de família. Filhos que não residam sob o mesmo teto, embora tendo a responsabilidade civil pelo sustento dos pais, não terão sua renda computada para a análise da con-cessão do benefício.

2.4. necessidade de um critério objetivo para a constatação da miserabilidade

Apesar de o benefício assistencial possuir um caráter subsidiário em relação à previdência social, impõe-se reco-nhecer as limitações dos recursos do Estado em relação à ne-cessidade de garantia do bem-estar dos cidadãos. Em outras palavras, é necessários escolher qual grupo de cidadãos será beneficiado com os recursos disponíveis.

A função constitucional do benefício é prestar assistência social ao idoso e à pessoa com deficiência que dela necessi-tarem, impedindo que permaneçam na miséria e garantindo--lhes um mínimo de dignidade. A identificação das pessoas eleitas como beneficiárias deverá ser feita mediante critérios objetivos, até mesmo para evitar favorecimentos pessoais ou discriminações no momento da execução das políticas públi-cas de assistência social.

A Loas delimitou 1/4 do salário mínimo como critério objetivo para a constatação da hipossuficiência econômica. Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita for inferior a esse limite (Lei n. 8.742/1993, art. 20, § 3º).

Alguns autores (MORO, 2003, p. 148; PEREIRA, 2011, p. 55; MORENO FILHO, 2011, p. 739), afirmam a dificul-dade de efetivação do benefício assistencial, especialmente

em razão da regulamentação legislativa restritiva e da “inter-pretação literal dos dispositivos legais” praticada pelo INSS (PEREIRA, 2011, p. 55), órgão responsável pela concessão e manutenção do benefício. Não obstante, é preciso ter em mente que a autarquia possui atuação em todo o território nacional e cuida da manutenção de mais de 30 milhões de benefícios. Sua atuação, portanto, deve ser uniforme e objeti-va, evitando-se margem de interpretação que possa dar lugar a favorecimentos pessoais em determinadas localidades. A existência de fraudes é notícia comum nos meios de comu-nicação. Assim, a autoridade administrativa deverá cingir-se à análise das circunstâncias pessoais conforme os critérios objetivos fixados em lei, primando pela obediência ao prin-cípio da legalidade.

Ademais, atividade do Poder Judiciário permite corrigir eventual negativa indevida da assistência social. A jurispru-dência foi ampliando a regulamentação inicialmente restriti-va do benefício assistencial.

O Supremo Tribunal Federal, em 27/08/1998, na ADI n. 1232/DF, julgou improcedente o pedido de declaração da in-constitucionalidade do art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742/1993. A partir dessa decisão, entendimentos como o da Súmula da TNU, n. 11, que possibilitavam a prova da miserabilidade por outros meios e uma análise subjetiva para a concessão do benefício, restaram superados e a referida súmula foi cancelada.

Não obstante, diversos tribunais e a própria TNU pas-saram a entender que o critério único da renda inferior a 1/4 do salário mínimo, apesar de presumir absolutamente a miserabilidade do postulante quando comprovado, não po-deria excluir outros meios de prova caso a renda familiar per capita superasse tal patamar (STJ, REsp n. 464.774/SC, REsp n. 756.119/MS, REsp n. 1.025.181/RS, REsp Repetitivo n. 1112557/MG; TRF3, AC 00045614920034036109, Rel. Batis-ta Pereira, e-DJF3 17/11/2011, AC 00412225020104039999, Rel. Therezinha Cazerta, e-DJF3 10.9.2012; TRF4 AC 200504010277442, Rel. Fernando Quadros da Silva, D.E. 9.12.2009, TNU, PEDILEF 200643009017410, Rel. Élio Wanderley de Siqueira Filho, DJU 22.1.2008, PEDI-LEF 200584015002615, Rel. Maria Divina Vitória, DJU 21.12.2007).

De acordo com a jurisprudência, a prescrição legal desse limite não impede a análise de outros elementos específicos constitutivos da situação econômica da família. Passou-se a admitir, portanto, o reconhecimento da hipossuficiência eco-nômica por outros meios de prova. As reiteradas decisões das instâncias inferiores no sentido de que o critério do art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742/1993, embora constitucional, não seria o único meio de prova da miserabilidade reconduziram a questão à análise do Supremo Tribunal Federal.

Na própria Corte Suprema, várias decisões singulares de ministros enunciam o processo de inconstitucionalização do critério legal em face de mudanças fáticas e jurídicas (STF, Recl 4374/PE). Em 1º.2.2007, na Reclamação n. 4.374/PE, o relator, ministro Gilmar Mendes, indeferiu a pretensão cau-telar do INSS, mantendo as decisões de primeira instância

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110 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Silvio Marques Garcia|

que haviam concedido o benefício assistencial em situações de miserabilidade social, apesar de a renda familiar per capita superar o limite objetivo legal. Em 9.2.2008, o STF reconhe-ceu a repercussão geral da questão, sinalizando a possibilidade de mudança de posicionamento da corte (RE n. 567.985/MT).

Em 18.4.2013, no julgamento dos REs n. 580.963/PR e 567.985/MT, bem como da Recl n. 4.374/PE, pronun-ciou a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742/1993, em razão das transformações fáticas posteriores que modificaram a realidade normativa, tornando inconstitucional a norma anteriormente considerada legítima.

A fundamentação da decisão se baseou na alteração do estádio de desenvolvimento econômico do país e na su-perveniência de leis que trouxeram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, aumen-tando o limite da renda per capita para 1/2 do salário míni-mo e instituindo programas como o Bolsa Família (Lei n. 10.836/2004) o Programa Nacional de Acesso à Alimentação (Lei n. 10.689/2003), o Bolsa Escola (Lei n. 10.219/2001) e outras ações de transferência de renda do Governo Fede-ral. Pesou a necessidade de o legislador tratar a matéria de forma sistemática, como observou o relator, evitando-se in-congruências na concessão dos benefícios. Tal solução, no sentido da inconstitucionalidade superveniente fundamen-tada no critério de 1/2 salário mínimo, fixado em políticas assistenciais posteriores, já havia sido proposta pela doutrina e pela jurisprudência (Cf. MORO, 2003, p. 151-153).

A decisão do STF, contudo, não é isenta de críticas, já que fixar o critério em meio salário mínimo “também pode ser criticado por carecer de melhor base empírica”, embo-ra não possa “ser acusado de ser excessivamente restritivo como o anterior” (MORO, 2003, p. 153). A esse respeito, Oscar Valente Cardoso e Adir José da Silva Júnior (2013, p. 677) opinam que “a decisão do STF apresentou lacunas que, pelo contrário, ampliarão as discussões em torno de tema tão sensível, especialmente em âmbito legislativo, aumentando a pressão ao Poder respectivo para que redefina os critérios anteriormente amparados.”

A inexistência de um critério objetivo prejudica a análise administrativa do benefício. A definição constitucional, por meio de uma norma de eficácia limitada (CF, art. 203, inc. V), permitiu ao legislador ordinário estabelecer o grupo de pes-soas que teriam direito ao benefício. Assim, o critério seria inconstitucional apenas se não proporcionasse a concessão de um número razoável de benefícios, conforme as possibili-dades do orçamento.

A necessidade de um critério objetivo, além de possi-bilitar a uniformidade das decisões administrativas e evitar favorecimentos pessoais ou discriminações, é necessária para a segurança jurídica do processo administrativo. A fixação de um critério fluido acarretará certamente uma reavaliação de todos os casos em que foi negado o benefício pelo Poder Ju-diciário, gerando decisões divergentes e, por isso mesmo, não necessariamente mais justas que as decisões administrativas.

2.5. valores excluídos do conceito de renda

A Lei n. 8.742/1993 fixou como critério objetivo para a concessão do benefício assistencial a renda mensal familiar per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo (Lei n. 8.742/1991, art. 20, § 3º). A Lei n. 12.435/2011 alterou a redação do referido dispositivo, substituindo o adjetivo por-tadora (de deficiência) pela preposição com (deficiência), o que não alterou o seu conteúdo.

A partir desse critério surgem questões relacionadas ao conceito de renda. Há quem afirma que, na ausência de fi-xação de um conceito de renda pela lei assistencial, é neces-sário emprestar a definição dada pelo art. 43, inc. I, da Lei n. 5.172/1966, que instituiu o Código Tributário Nacional (MORENO FILHO, 2011, p. 744). O mencionado dispositivo estabelece que a renda é o “produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos”. Essa definição é dada pelo CTN para fins de incidência do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza. Segundo tal entendimento, como os valores recebidos a título de benefício assistencial por outro membro da família não são oriundos do capital nem do tra-balho, não é possível integrarem a composição da renda fa-miliar. Entretanto, não é possível concordar com a utilização do conceito de renda da legislação tributária, até porque os benefícios da assistência social serão prestados independen-temente de contribuição à seguridade social (CF, art. 203). Na seara assistencial, o conceito de renda mensal bruta fami-liar é assim fixado pelo Decreto n. 6.214/2007:

VI – renda mensal bruta familiar: a soma dos rendimentos bru-tos auferidos mensalmente pelos membros da família composta por salários, proventos, pensões, pensões alimentícias, bene-fícios de previdência pública ou privada, seguro-desemprego, comissões, pro labore, outros rendimentos do trabalho não assalariado, rendimentos do mercado informal ou autônomo, rendimentos auferidos do patrimônio, Renda Mensal Vitalícia e Benefício de Prestação Continuada, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 19. (Redação dada pelo Decreto n. 7.617, de 2011)

Ademais, a exclusão de qualquer valor do conceito de renda para fins assistenciais depende de disposição legal. Entender o contrário seria desconsiderar o disposto no art. 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso. Se é necessário um dispositivo para afirmar que determinada prestação não compõe o conceito de renda é porque as demais certamente dele fazem parte.

Dessa forma, o melhor fundamento para a exclusão de outro benefício assistencial ou mesmo benefício previden-ciário de valor mínimo do cálculo da renda é a solução dada pela jurisprudência, segundo a qual a possibilidade restrita literal do art. 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso viola a isonomia.

O art. 4º, § 2º, do Decreto n. 6.214/2007 estabelece que não serão computados como renda mensal bruta familiar:

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I – benefícios e auxílios assistenciais de natureza eventual e temporária; (Incluído pelo Decreto n. 7.617, de 2011)

II – valores oriundos de programas sociais de transferência de renda; (Incluído pelo Decreto n. 7.617, de 2011)

III – bolsas de estágio curricular; (Incluído pelo Decreto n. 7.617, de 2011)

IV – pensão especial de natureza indenizatória e benefícios de assistência médica, conforme disposto no art. 5º; (Incluído pelo Decreto n. 7.617, de 2011)

V – rendas de natureza eventual ou sazonal, a serem regula-mentadas em ato conjunto do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e do INSS; (Incluído pelo Decreto n. 7.617, de 2011) e

VI – remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz. (Incluído pelo Decreto n. 7.617, de 2011)

Assim, também são excluídos do conceito de renda os valores decorrentes de outros programas sociais de transfe-rência de renda, como o Bolsa Família, além de outros bene-fícios e auxílios assistenciais de natureza eventual e temporá-ria e outras rendas de natureza eventual ou sazonal.

Uma inovação que veio em boa hora foi a previsão do § 9º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993, que garante a exclusão da remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz do conceito de renda, limitado esse recebimento concomitante ao período de dois anos (Lei n. 8.742/1993, art. 21-A, § 2º). O mencionado § 9º do art. 20, incluído pela Lei n. 12.470/2011, possibilita a integração da pessoa com deficiência ao mercado de trabalho.

Com esse mesmo espírito, foi introduzido o art. 21-A, que passou a prever apenas a suspensão do benefício quando a pessoa com deficiência exercer atividade remunerada, in-clusive na condição de microempreendedor individual. Uma vez extinta a relação de emprego ou a atividade empreende-dora, poderá ser requerida a continuidade do pagamento do benefício suspenso (Lei n. 8.742/1993, art. 21-A, § 1º).

2.6. possibilidade de cumulação

O benefício assistencial não pode ser cumulado pelo ti-tular com outras prestações da seguridade social ou de outro regime, salvo as da assistência médica e a pensão especial de natureza indenizatória (Lei n. 8.742/1993, art. 20, § 4º).

Nos termos do art. 19 do Decreto n. 6.214/2007, é pos-sível que mais de um membro da família receba o benefí-cio assistencial, desde que, computado o recebimento deste na renda familiar, o resultado per capita não seja igual ou superior a 1/4 do salário mínimo.

Cumpre mencionar a possibilidade de outro membro da família receber benefício previdenciário ou assistencial. Se todos forem idosos, o recebimento do benefício assistencial por um membro não impedirá que outros tenham acesso a igual benefício (Lei n. 10.741/2003, art. 34, parágrafo único;

Dec. n. 6.214/2007, art. 19, parágrafo único). Como o refe-rido dispositivo está presente no Estatuto do Idoso e prevê a exclusão apenas de benefício assistencial já concedido a ido-so, há uma corrente que o interpreta restritivamente. Nesse sentido, o TRF da 3ª Região já decidiu:

Art. 34, parágrafo único, da Lei n. 10.741/03: o benefício concedido nos moldes do caput deste artigo não é de ser contado, para fins de aferição do montante per capita da ren-da familiar. A contrariu sensu, qualquer prestação que não o amparo social descrito no comando em voga deverá, ne-cessariamente, ser computado para a mensuração propos-ta.” (TRF3, EI 00395669720064039999, 3ª Seção, Rel. Vera Jucovsky, e-DJF3 30.11.2011. No mesmo sentido: TRF3, AC 00137856820094039999, Rel. Marisa Santos, e-DJF3 21.9.2011, p. 547).

Essa regra, prevista apenas para os idosos, também é es-tendida por outra corrente da jurisprudência para o membro deficiente que já recebe ou venha a receber benefício (TRF3, APELREEX 00349951520084039999, Rel. Fausto de Sanc-tis, e-DJF3 18.11.2011; AC 00513884920074039999, Rel. Leide Polo, e-DJF3 29.9.2011, p. 1453; TRF4, APELREEX 200571000452570, Rel. Guilherme Pinho Machado, D.E. 10.8.2009) Se o novo benefício for de natureza previdenciá-ria, há também jurisprudência no sentido de que pode ser cumulado sem que venha a alterar as condições da conces-são do assistencial anterior, para efeito da revisão bienal (Cf. nesse sentido, além dos julgados acima, a Súmula 20 das Tur-mas Recursais de Santa Catarina e ainda: STJ, Pet 7203/PE; AgRg no REsp 1351525/SP; TRF4 AC 200471150007060, Rel. João Batista Lazzari, D.E. 10.08.2009; TNU, PEDILEF 200543009000310, Rel. Élio Wanderley de Siqueira Filho, DJU 31.1.2008).

Ademais, não há impedimento para o recebimento de valores decorrentes de outros programas sociais de transfe-rência de renda, como o Bolsa Família.

Também pode ser cumulado, pelo período de até dois anos, o recebimento do benefício assistencial com a remune-ração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz (Lei n. 8.742/1993, art. 20, § 9º e art. 21-A, § 2º).

3. benefício AssistenciAL e benefícios previdenciários: diferençAs e AproximAções

A seguridade engloba a assistência e a previdência so-cial, as quais constituem políticas complementares com ob-jetivos distintos. Como afirma Ricardo Quartim de Moraes (2010, p. 281-282), “do mero fato de a Constituição Federal ter feito uma distinção entre Previdência e Assistência resul-ta que não pode o legislador ou o intérprete tratá-las como sinônimos.”

No âmbito constitucional, há situações imprevistas ou esperadas que dão ensejo à proteção social. Aquelas descritas

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112 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Silvio Marques Garcia|

no art. 201 conferem ao segurado ou aos seus dependentes uma determinada cobertura previdenciária, como a invali-dez, a maternidade, o desemprego involuntário e a morte. Outras situações há que podem ensejar a concessão de um benefício previdenciário ou assistencial, como é o caso da idade avançada, que pode proporcionar a aposentadoria por idade ou o benefício assistencial ao idoso.

O evento doença, embora descrito no art. 201, inciso I, da Constituição Federal, está mais afeto à prestação da saúde como vertente da seguridade social. É que o risco coberto pelo benefício intitulado auxílio-doença (mas que deveria ser chamado de auxílio-incapacidade) não é a existência da doença em si, mas a incapacidade dela resultante.

A previdência social diz respeito a políticas de segurida-de direcionadas às pessoas que exercem atividade remune-rada, enfatizando, portanto, o primado do trabalho como um dos pilares em que se baseia a ordem social (CF, art. 193). A valorização do trabalho, ademais, é um dos fundamentos da ordem econômica constitucional (CF, art. 170).

3.1. filiação

A primeira diferença entre os benefícios previdenciários e assistenciais diz respeito à forma de filiação. A complemen-taridade entre os sistemas de previdência e assistência social fica evidente quando se verifica que a filiação à previdência, para os trabalhadores que exercem atividade remunerada, é obrigatória (CF, art. 201, caput; Lei n. 8.213/1991, art. 11). As pessoas que possuem qualidade de seguradas e carência ou estão em período de graça ou de outro modo façam jus a algum benefício previdenciário (Lei n. 10.666/2003) não poderão receber o benefício assistencial previsto no art. 203, inciso V, da Constituição.

O assistencial, dessa forma, será devido somente se não for o caso de concessão de benefício de natureza previden-ciária. Nesse sentido, diz MORAES (2010, p. 284) que “o benefício assistencial de prestação continuada é voltado, por exclusão, àqueles que não podem se filiar à Previdência So-cial justamente por estarem inaptos ao trabalho, seja tal inap-tidão concreta (pessoas portadoras de deficiência) ou ficta (idoso).”

3.2. eventos cobertos

Outra diferença entre os sistemas em discussão está rela-cionada à previsão constitucional acerca dos eventos a serem cobertos. Enquanto os benefícios previdenciários cobrem eventos como a invalidez e a idade avançada do segurado, o benefício assistencial está previsto em situações nas quais o idoso e o deficiente não possuem meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. A assistên-cia social considera, dessa forma, aspectos pessoais e socioe-conômicos.

Harmonizando os princípios da universalidade da cober-tura e do atendimento e da seletividade e distributividade

na prestação dos benefícios e serviços (CF, art. 194, incs. I e III) com o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial (CF, art. 201), específico da previdência social, verifica-se a ne-cessidade da extensão do direito fundamental à previdência social a um maior número de trabalhadores. A consequên-cia da conjugação desses mandamentos constitucionais é a adoção de contribuições diferenciadas para os trabalhadores considerados de baixa renda ou com recursos insuficientes para efetuarem a contribuição em igualdade com os demais sem prejuízo do seu sustento e de sua família.

Assim, a própria previdência social passa a ter contornos que a aproximam, em certa medida, da assistência social, em-bora esta seja entendida como complementar àquela. O papel da previdência social na (re)distribuição da renda decorre da sua inserção no âmbito da seguridade, deixando de ser um mero seguro privado. Esse papel evoluiu atualmente para alcançar um maior número de cidadãos, principalmente diante da situação econômico-social do Brasil e da necessidade de inclusão social de um grande número de trabalhadores que se encontram na informalidade. Exemplo disso é a contribuição diferenciada para o MEI (CF, art. 201, § 12; LC n. 128/2001) e para o segurado facultativo sem renda própria que se dedi-que exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência (Lei n. 12.470/2011), os quais podem contribuir com uma alíquota de 5% sobre o salário mínimo, obtendo acesso aos principais benefícios previdenciários, o que de-monstra como é atualmente tênue a distinção entre a assis-tência e a previdência, esta cada vez mais social.

3.3. Aposentadoria por idade x Loas

As diferenças entre o benefício assistencial ao idoso e a aposentadoria por idade estão relacionadas a aspectos subje-tivos e objetivos. Quanto ao aspecto subjetivo, exige-se como requisito etário o mínimo de 65 anos para o homem e a mu-lher para o assistencial, ao passo que, no previdenciário, a exigência é de 65 anos para o homem e 60 para a mulher, re-duzidos em cinco anos para os trabalhadores rurais. No que diz respeito à qualidade de segurado e à carência, admitida a sua comprovação em número de meses de atividade rural para os trabalhadores rurais, também são elementares para a concessão da aposentadoria por idade.

A relevância do benefício assistencial tem mostrado o quanto é necessário desenvolver um sistema de previdência mais inclusivo e eficiente. Na grande maioria das situações, principalmente na área rural, após décadas de trabalho, o se-gurado não consegue obter acesso ao benefício de aposen-tadoria em valor superior ao mínimo. Em janeiro de 2014, o valor médio dos benefícios do RGPS pagos para a cliente-la urbana (18 milhões de beneficiários) foi de R$ 1.112,83, enquanto que para os trabalhadores rurais (8,9 milhões de beneficiários) foi de R$ 647,35 (MINISTÉRIO DA PREVI-DÊNCIA SOCIAL, 2014, p. 25). Ademais, dos 377.155 be-nefícios previdenciários concedidos em janeiro de 2014, 51,90% foram de valor igual ou inferior a um salário mínimo (Ibidem, p. 12). Assim, não faria sentido garantir o benefício

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113Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Benefício Assistencial e Benefícios Previdenciários: diferenças e aproximações|

assistencial de um salário mínimo ao homem idoso que pos-sui 60 anos e não contribuiu para a previdência e conceder benefício mensal de igual valor ao segurado da mesma idade que efetivamente contribuiu para a previdência durante o período de carência. Na área urbana o segurado economica-mente hipossuficiente que, ao calcular a renda do seu futuro benefício de aposentadoria verificasse que este ficaria próxi-mo do piso não precisaria esperar o limite etário mínimo de 65 anos. Bastaria que, aos 60 efetuasse o pedido assistencial. O caráter supletivo do assistencial, portanto, fundamenta a necessidade de se exigir idade superior, tendo em vista a si-tuação fática de haver um grande número de beneficiários que recebem aposentadoria em valor equivalente ou próximo do piso.

As falhas do sistema previdenciário, entretanto, não po-dem ser imputadas à assistência social, que cumpre o seu papel constitucional, mas a uma previdência ineficiente e pouco inclusiva, incapaz de fazer pela maioria dos segurados mais do que a assistência social faz pelos seus beneficiários. Nesse sentido, a previdência exerce nada mais do que uma função assistencial, qual seja, a de funcionar como uma bar-reira contra a miserabilidade.

3.4. Aposentadoria por invalidez x LoAs

A maior proximidade entre um evento coberto pela assis-tência social e pela previdência está na relação entre o bene-fício de aposentadoria por invalidez e o benefício assistencial ao deficiente. É necessário estabelecer a diferença entre inva-lidez e deficiência.

No caso da aposentadoria por invalidez, o requisito fun-damental, além da qualidade de segurado e da carência, é a invalidez (CF, art. 203, inc. I), a qual, nos termos da lei, é compreendida como a situação do segurado que “for consi-derado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exer-cício de atividade que lhe garanta a subsistência [...] (Lei n. 8.213/1991, art. 42).

Quanto ao benefício assistencial, será devido à pessoa com deficiência que “não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”, de acordo com a lei (CF, art. 203, inc. V). Na redação anterior da Lei n. 8.742/1994, a pessoa com deficiência era assim considerada aquela “incapacitada para a vida independente e para o tra-balho” (Lei n. 8.742/1993, art. 20, § 2º).

A assistência apresenta um caráter supletivo em relação à previdência, na medida em que, havendo capacidade para o trabalho, o deficiente será remetido à previdência, seja como segurado obrigatório ou facultativo. Nesse sentido, foram criadas medidas para a inclusão dos deficientes no merca-do de trabalho, tanto no setor privado (Lei n. 8.213/1991, art.93); como no público (CF, art. 37, inc. VIII), com reservas de vagas para pessoas com deficiência.

As Leis n. 12.435/2011 e Lei n. 12.470/2011 alteraram sucessivamente a redação do art. § 2º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993, para adequar o conceito de deficiência aos

padrões internacionais e às políticas públicas de apoio à pessoa com deficiência estabelecidas na Constituição. A deficiência passou a constituir uma situação decorrente de conjunto de fatores que dizem respeito ao cidadão em interação com o meio ambiente. Entretanto, a definição legal extremamente genérica e não é isenta de críticas. De qualquer modo, é possível afirmar que a deficiência diz respeito à impossibilidade de participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas em razão de impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.

Essa participação em sociedade a que a lei se refere diz respeito à integração ao mercado de trabalho, já que o valor social do trabalho é um dos fundamentos da República (CF, art. 1º, inc. IV), da ordem econômica (CF, art. 170, caput) e da ordem social (CF, art. 193), bem como um dos objetivos da assistência social (CF, art. 203, inc. III).

O deficiente não pode ser simplesmente equiparado ao segurado total ou temporariamente incapaz para o trabalho. Este estava ou está efetiva ou potencialmente integrado ao mercado de trabalho e, portanto, deverá contribuir como segurado obrigatório ou facultativo para fazer jus aos bene-fícios da previdência social. Já o deficiente não possui con-dições de participar do aspecto laboral da vida em sociedade em igualdade com as demais pessoas.

De outro lado, não é qualquer impedimento de partici-par em igualdade de condições do mercado de trabalho que caracteriza o deficiente para fins do benefício de prestação continuada. O deficiente que possui condições de ser inte-grado ao mercado de trabalho público ou privado no regime de reserva de vagas também deverá ser considerado segurado obrigatório ou facultativo, sendo cabível, nesse caso, a habili-tação e a reabilitação (Lei n. 8.742/1993, art. 2º, inc. I, alíneas c e d). Conforme esclarecem Oscar Valente Cardoso e Adir José da Silva Júnior (2013, p. 671),

as barreiras que se apresentam ao deficiente são de-correntes do ambiente e do meio, ainda não devidamen-te adaptado à sua condição (aspectos sociológicos, em coordenação com os biológicos, quais sejam, os de longo prazo de natureza física, intelectual e sensorial) e, na me-dida em que o Poder Público e os demais responsáveis pela sua reinserção forem cumprindo os seus fins, tal de-ficiência deixa de ser considerada como tal.

Para a caracterização do direito ao benefício de prestação continuada, portanto, é relevante a existência de incapacida-de de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Isso porque se houver impedimentos de longo prazo que obstruam sua participação plena e efetiva na socie-dade em igualdade de condições com as demais pessoas, mas se, ainda assim, estiver presente a capacidade para a própria manutenção, não haverá direito ao benefício.

Os requisitos incapacidade para o trabalho e incapacida-de para a vida independente deixaram de ser critérios legais para a caracterização da deficiência. Não obstante, consta-

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114 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Silvio Marques Garcia|

tada a deficiência para fins do benefício assistencial, é certo que haverá incapacidade para o trabalho e para a vida inde-pendente.

O conceito atual de deficiência, bastante amplo, remete à necessidade de individualização da previsão normativa ao caso concreto, o que será feito por meio de avaliação mé-dia e de assistente social (Lei n. 8.742/1993, art. 20, § 6º). Depende, ademais, do contexto social em que se encontra o deficiente.

3.5. Aposentadoria do deficiente x LoAs

A Lei Complementar n. 142/2013 regulamentou o § 1º do art. 201 da Constituição Federal no que diz respeito à aposentadoria da pessoa com deficiência segurada do Regime Geral de Previdência Social. Essa lei estabeleceu critérios diferenciados para a aposentadoria por idade e por tempo de contribuição da pessoa com deficiência. Não foram instituí-das duas novas modalidades de aposentadoria, mas apenas condições diferenciadas de acesso a tais benefícios.

Para obter a aposentadoria por idade, o deficiente deverá comprovar: a) a deficiência na data da entrada do requeri-mento, ressalvado o direito adquirido; b) a idade mínima de 60 anos se homem e 55 se mulher; e c) a carência mínima de 15 anos de contribuições; d) a existência de deficiência durante igual período.

No caso da aposentadoria por tempo de contribuição do deficiente, tal benefício é assegurado:

a) aos 25 anos de tempo de contribuição como defi-ciente, se homem, e 20 anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência grave;

b) aos 29 anos de tempo de contribuição como defi-ciente, se homem, e 24 anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência moderada;

c) aos 33 anos de tempo de contribuição como defi-ciente, se homem, e 28 anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência leve.

Além do tempo de contribuição conforme a deficiência seja grave, moderada ou leve, será necessário comprovar: a) a deficiência na data da entrada do requerimento, ressalvado o direito adquirido; b) a carência mínima de 180 contribui-ções, nos termos do art. 25, inc. II, da Lei n. 8.213/1991; c) é admitida a contagem diferenciada do tempo de serviço na condição de segurado com deficiência, anteriormente à data da vigência da Lei Complementar n. 142/2013.

A análise desses benefícios recentemente regulamenta-dos na legislação previdenciária é relevante, principalmente em razão do conceito de deficiência estabelecido no art. 2º, idêntico ao fixado no art. 20, § 2º, da Loas, com redação dada pela Lei n. 12.470/2011. Ambos atendem ao disposto na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2007, a qual possui força de Emenda Constitucional em nosso ordenamento, uma vez que foi aprovada nos termos do § 3º do art. 5º da Constituição.

A diferença básica entre o benefício assistencial e as apo-sentadorias devidas ao deficiente consiste no fato de que não existem no assistencial os elementos fundamentais da relação previdenciária, quais sejam: filiação, qualidade de segurado e carência.

A Lei Complementar n. 142/2013 estabelece parâmetros para a avaliação da deficiência, inclusive afirmando que ela será “médica e funcional, nos termos do Regulamento.” (Lei n. 142/2013, art. 4º). A perícia (administrativa ou judicial) necessária para a concessão de qualquer benefício (previden-ciário ou assistencial) ao deficiente não poderá cingir-se uni-camente ao aspecto relativo à (in)capacidade laboral do segu-rado. Tampouco a incapacidade para os atos da vida diária era critério que na legislação assistencial revogada permitia veri-ficar com clareza a existência de deficiência. A jurisprudência deverá auxiliar a fixar as balizas que diferenciam a deficiência da incapacidade para o trabalho, requisito este presente nos benefícios previdenciários por incapacidade (auxílio-doença, auxílio-acidente e aposentadoria por invalidez).

3.6. pensão por morte x LoAs

Na prática previdenciária também é possível identifi-car relações de aproximação entre o benefício assistencial e o benefício de pensão por morte. Não são raros os casos em que o cidadão procura o INSS na busca de um benefício previdenciário, mas, por falta de informação, documentação insuficiente e até mesmo em razão da interpretação restritiva feita pela autarquia, acaba recebendo o benefício de prestação continuada da Loas.

Há outros casos em que o beneficiário tinha direito à aposentadoria, urbana ou rural, mas passou a receber o be-nefício de renda mensal vitalícia (Lei n. 6.179/1974, art. 2º, inc. I), o qual, pelo fato de não gerar direito à pensão (art. 7º, § 2º), é considerado pelo INSS como assistencial, apesar de possuir características que de certa forma o aproximam da previdência, já que exigia o exercício, ao menos durante determinado período, de atividade incluída no regime do INPS ou do Funrural.

Constatada a concessão do assistencial em lugar do be-nefício previdenciário, cabe pedido de desfazimento do ato concessório e concessão do benefício devido, o que trará van-tagens para o titular, como o recebimento de 13º salário e o direito à pensão para os seus dependentes.

Também os dependentes do beneficiário falecido que re-cebia renda mensal vitalícia ou benefício de prestação conti-nuada da Loas poderão requerer a pensão por morte. Se ficar constatado que o instituidor da pensão possuía o direito à aposentadoria, mas em seu lugar passou a receber outro be-nefício que não gera direito à pensão, tal situação deverá ser corrigida por meio do deferimento do benefício de pensão por morte aos seus dependentes (STJ, REsp n. 196.946/SP, REsp n. 210.862/SP, TRF3, AR n. 00199652220124030000, Rel. Sergio Nascimento, 3ª Seção, e-DJF3 9.10.2013; TRF4, AC 200972990030414, Rel. Eduardo Vandré Oliveira Lema Garcia, D.E. 5.2.2010).

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115Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais Benefício Assistencial e Benefícios Previdenciários: diferenças e aproximações|

considerAções finAis

Para o cumprimento dos objetivos da República, prin-cipalmente a construção de uma sociedade livre, justa e so-lidária, a erradicação da pobreza e a redução das desigual-dades sociais e regionais, é crucial o papel desempenhado pelo benefício assistencial. Passados vinte anos após a sua regulamentação, esse mecanismo ainda é fundamental para o cumprimento das metas inicialmente buscadas de transfor-mação social, o que é evidenciado pela existência, em janeiro de 2014, de 4,1 milhões de benefícios assistenciais mantidos pelo INSS (Ministério da Previdência Social, 2014, p. 25).

A Loas constituiu um avanço ao reafirmar o caráter de política pública da assistência social, realizada por meio de um conjunto integrado de ações de iniciativa da sociedade e do Estado. As mudanças trazidas pelas Leis ns. 12.435/2011 e 12.470/2011 irão possibilitar a ampliação da concessão do benefício assistencial a um maior número de pessoas idosas e com deficiência.

A recente alteração na jurisprudência do Supremo Tri-bunal Federal também permitirá a ampliação da concessão do benefício assistencial, principalmente pela possibilidade de consideração de outros fatores capazes de identificar o postulante como hipossuficiente economicamente. Entretan-to, a ausência de um critério objetivo trará dificuldades para a concessão administrativa do benefício, aumentando ainda mais a demanda judicial por essa prestação assistencial fun-damental para a garantia da dignidade humana.

A forma diferenciada de contribuição para algumas ca-tegorias e a grande quantidade de benefícios no valor do sa-lário mínimo demonstram a relação de proximidade entre a previdência e a assistência social. Apesar da necessidade de ampliação da cobertura previdenciária para as populações carentes, o benefício assistencial ainda cumpre importante papel complementar à previdência social. Daí a importância de se analisarem as relações de aproximação entre os benefí-cios previdenciários e assistenciais, principalmente tendo em vista a semelhança dos eventos cobertos por esses dois sub-sistemas que compõem o tripé da seguridade social no Brasil.

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o direito dos imigrantes ao Benefício de prestação continuada: uma questão de cidadania

Tatiana Chang Waldman (*)

Camila Bibiana Freitas Baraldi(**)

Táli Pires de Almeida(***)

introdução

A marca dos 20 anos da Lei Orgânica da Assistência Social é um momento interessante para abordarmos temas atuais e crescentes na sociedade brasileira – como são as migrações in-ternacionais – e sua relação com este importante documento de garantia de direitos. Dentro do campo dos benefícios as-sistenciais, um tema que vem se destacando nos debates con-temporâneos é a concessão do Benefício de Prestação Conti-nuada da Assistência Social (BPC) a essa população específica residente no país. As constantes violações deste direito social ilustradas pelos indeferimentos de pedidos de concessão do benefício da assistência social motivados pela nacionalidade do solicitante, não obstante o cumprimento dos requisitos le-gais, serão a preocupação central desse artigo.

A presença de imigrantes no Brasil é historicamente parte constituinte do crescimento econômico brasileiro e de nossa vida social. Nas páginas dos jornais de hoje ganham destaque as notícias sobre imigrantes latino-americanos em condições de trabalho consideradas análogas a escravidão, e sobre as muitas empresas que anunciam a necessidade de flexibilizar nossa legislação a fim de facilitar a entrada de uma mão de obra qualificada advinda sobretudo do continente europeu.

Desde a chegada dos portugueses em nosso território, pas-sando pelo vinda forçada dos negros africanos e das políticas de incentivo a migração europeia e japonesa nos séculos XIX e XX, nossa história segue marcada pela presença de milha-res de imigrantes que forjaram nossa identidade social, nossa história e nossa trajetória econômica.

A maioria dos estudos que tratam do tema das migra-ções internacionais observam os fatores histórico-estruturais relacionados ao fenômeno. Em geral, os países que recebem imigrantes atravessam um período de expansão e crescimen-to econômico, acompanhado de uma necessidade de mão de obra, seja ela qualificada ou não. Enquanto que os países de origem dos imigrantes passam por situações de crise econô-mica e desemprego. No entanto, esse cenário é mais com-plexo e diversificado, e mesmo sendo um tema que cada vez mais ganha atenção da sociedade e dos governos as migra-ções internacionais contemporâneas mobilizam apenas 3% da humanidade, uma taxa que se mantém estável nos últimos 50 anos (CSA, 2008; PNUD, 2009). De acordo com o Rela-tório de Desenvolvimento Humano (PNUD, 2009), existem 200 milhões de migrantes internacionais no mundo, a maio-ria mudou-se entre países com níveis de desenvolvimento semelhantes(1).

(*) Mestre e doutoranda na área de concentração de Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Univer-sidade de São Paulo (FD/USP).

(**) Mestre em Direito, na área de Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC) e doutoranda no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI/USP).

(***) Mestre pelo Programa de Pós Graduação em Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam/USP).

(1) “Apenas 37% das migrações de todo o mundo são de países em desenvolvimento para países desenvolvidos. A maior parte das migrações ocorre entre países com o mesmo nível de desenvolvimento: cerca de 60% dos migrantes desloca-se ou entre países em desenvolvimento ou entre países desenvolvidos (os restantes 3% referem-se a deslocações de países desenvolvidos para países em desenvolvimento)” (PNUD, 2009, p. 21). A grande parte dos deslocamentos de pessoas, no entanto, não ocorre de um país a outro, mas, dentro dos próprios países. Estima-se que o número de migrantes internos seja quatro vezes maior do que a migração internacional (PNUD, 2009).

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117Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais O direito dos Imigrantes ao Benefício de Prestação Continuada: uma questão de cidadania|

Ao observarmos os dados recentes a respeito do número de estrangeiros no Brasil, assim como analisarmos suas tra-jetórias, perceberemos um cenário mais complexo e diver-sificado do que no passado: são perfis originários dos cinco continentes e condições de migração também muito diver-sas. Existem pessoas que buscam refúgio no Brasil devido a perseguições políticas e religiosas, e há aquelas que chegam em busca de melhores condições de vida e trabalho(2).

Ainda que os imigrantes sofram com estigmatizações associadas à pobreza e vulnerabilidade e sejam discrimina-dos na vida pública, de imediato a sua principal preocupação refere-se às dificuldades para garantir a regularização migra-tória, o que muitas vezes afeta concretamente sua situação econômica. A associação de migração com pobreza nem sem-pre é pertinente, pois partir em busca de novas possibilida-des de vida requer investimentos financeiros, envolvimento e contato com as redes migratórias que passam por relações de parentesco, experiência profissional e acadêmica (GRIM-SON, 2011). Os grupos mais pobres e vulneráveis nem sem-pre possuem tal dinamismo.

A assimetria econômica e social entre os países é um dos fatores necessários a serem levados em consideração ao se analisar o fenômeno das migrações internacionais. Porém, os estudos recentes (GRIMSON, 2011; PORTES, 2011; TRUZ-ZI, 2008) apontam que cada vez mais os indivíduos migram dentro de redes. Ou seja, ainda que as escolhas individuais e os aspectos econômicos sejam importantes, a migração in-ternacional é um processo social que envolve múltiplas re-lações.

Ao analisarmos um fluxo migratório entre países é pos-sível encontrar agências de emprego que cumprem o papel de recrutar trabalhadores dispostos a ocupar os postos de trabalho vagos nos países receptores ou mesmo acordos bi-laterais ou regionais entre países que pretendem promover a circulação de trabalhadores e de pessoas em geral. O Brasil, de país emissor de trabalhadores migrantes durante as déca-das de 1980 e 1990, inverteu essa posição e hoje é conside-rado um país receptor de imigrantes. Atualmente vive um período de expansão econômica capaz de gerar uma grande

demanda por trabalhadores com alto grau de qualificação e conhecimento específico em áreas como engenharia (civil, naval, transportes) e extração e refinamento de petróleo, por exemplo. Da mesma maneira, tem oferecido postos de tra-balho que a população brasileira tem cada vez mais evitado se inserir, como é o caso do setor da costura na indústria da confecção (majoritariamente ocupado por imigrantes boli-vianos, paraguaios e peruanos) e as profissões ligadas ao se-tor de serviços tais quais emprego doméstico, lazer e turismo (camareiros e garçons).

É importante descrever este cenário, pois se é certo que as migrações são um processo social complexo que envolve diversas relações sociais e decisões, também está clara a sua relação central com o trabalho – indivíduos que pretendem vender sua força de trabalho em áreas dispostas a recebê-la – e o papel econômico e social que esses atores, os migrantes, desempenham.

A situação dos latino-americanos, além de tudo isso, insere-se em um contexto de integração regional na América do Sul por meio dos processos do Mercado Comum do Sul (Mercosul)(3)e da União Sul-americana das Nações (Unasul)(4). Calcula-se que a metade dos migrantes internacionais deslo-ca-se dentro da mesma região de origem e ao redor de 40% mudam-se para países vizinhos (PNUD, 2009). A migração internacional de trabalhadores latino-americanos com dire-ção às áreas metropolitanas do Brasil como São Paulo e Rio de Janeiro é de fato um fenômeno em expansão (BAENINGER, 2012). No entanto, a condição de irregularidade migratória de muitas pessoas – apesar da possibilidade de regularização aberta pelo Mercosul – dificulta a tarefa de mensuração do número de imigrantes devido a ausência de documentação e registro desse fluxo.

Mesmo relativamente aos imigrantes registrados, há di-ficuldade para se encontrar dados sobre o número e sobre o perfil dos imigrantes no Brasil. As principais fontes de infor-mação sobre o número de estrangeiros residentes no Brasil são a Polícia Federal e o Departamento de Estrangeiros/SNJ, órgão ligado ao Ministério da Justiça(5). Os números mais re-centes de que se tem notícia publicados a respeito da presença

(2) As condições de desgaste econômico e social pelas quais os imigrantes passam em seus países de origem nos dão elementos para afirmar que nem sempre migrar é uma opção realizada em um contexto de total liberdade, mas sim como a única alternativa possível em determi-nado momento de suas vidas.

(3) Existem acordos relativos ao tema das migrações assinados no âmbito do Mercosul, trata-se dos Acordos sobre Residência para Nacio-nais dos Estados Partes do Mercosul, Bolívia, Chile, Peru e Colômbia, vigentes desde 2009 e promulgados no Brasil através dos Decretos ns. 6.964/2009 e 6.975/2009. Os acordos favorecem que imigrantes oriundos dos países signatários possam regularizar sua situação migratória de maneira simplificada, sem exigências de contrato de trabalho ou qualificação.

(4) O Tratado Constitutivo da UNASUL, assinado em Brasília em 23 de maio de 2008 e promulgado pelo Decreto n. 7.667/2012, em seu art. 3º refere à construção de uma cidadania sul-americana como um dos seus objetivos específicos: “i) a consolidação de uma identidade sul-americana através do reconhecimento progressivo de direitos a nacionais de um Estado Membro residentes em qualquer outro Estado Membro, com o objetivo de alcançar uma cidadania sul-americana”.

(5) Os dados, cuja fonte é o Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça, são registros administrativos. O propósito dessa com-pilação é o controle das permissões de residência e o cumprimento das disposições legais a nível nacional. Esses registros não oferecem informações que permitam análises sobre toda a população presente no território, especialmente, sobre aquelas em situação de irregulari-dade migratória. Além disso, a limitação do acesso a essa informação só permitiu encontrar números referentes a determinados países da América do Sul.

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imigrante no Brasil, o foram em jornais de grande circulação – os quais obtiverem a informação diretamente das autori-dades governamentais(6) – ou em notícias da própria página eletrônica do Ministério da Justiça(7). De acordo com estes dados, o número de estrangeiros residentes regularmente no Brasil é de cerca de 1 milhão e 500 mil, o que representa me-nos de 1% da população brasileira.

A migração de latino-americanos, no entanto, já é de cer-ta forma consolidada (SILVA, 1995; FREITAS, 2010), o fluxo de bolivianos com destino à cidade de São Paulo remonta à década de 1950. A novidade presente na chegada de bolivia-nos, paraguaios e peruanos ao Brasil é o seu número expressi-vo e o nicho do mercado de trabalho aberto a eles: a indústria da confecção e no emprego doméstico(8).

As transformações ocorridas na indústria da confecção no Brasil desde o final dos anos 1980 são fruto de um intenso processo de reestruturação produtiva. A tentativa de enxugar os custos relacionados ao pagamento da mão de obra no setor da costura levou à opção pela terceirização da produção e pela flexibilização das relações de trabalho. A costura é uma etapa de trabalho que vem sendo realizada em inúmeras ofi-cinas em condições de trabalho e de segurança precárias.

A entrada dos imigrantes latino-americanos na indústria da confecção é permeada pela busca de trabalho e desejo de ascensão social. A cooperação, por sua vez, é fundamental para o estabelecimento do imigrante no país de destino, uma vez que as redes de solidariedade são as alternativas capa-zes de oferecer a acolhida necessária e um trabalho imediato. São muitos os casos daqueles que começaram como costurei-ros, juntaram dinheiro e compraram sua primeira máquina de costura para, em seguida, ter sua oficina e seus próprios empregados. Essa perspectiva de ascensão faz com que os imigrantes suportem mais de dez horas de trabalho diário (SILVA, 1995; ALMEIDA, 2013).

Pesquisas etnográficas (SILVA, 1995, 2008; ALMEIDA, 2013) revelam que, no país de destino, apesar das dificulda-des burocráticas relatadas, o imigrante busca sua regulariza-ção migratória e o cumprimento da legislação local. Assim como, trabalha para garantir ganhos econômicos suficientes para realizar o pagamento de seus impostos e mantém a es-perança de um futuro próspero.

Os atores estatais envolvidos no processo de migração in-ternacional são distintos: países de origem, trânsito e destino.

A responsabilidade é, assim, compartilhada e são múltiplas as dimensões em termos de políticas a serem trabalhadas: acesso ao mercado de trabalho, educação, saúde, seguridade social e direitos humanos. Tendo em vista a centralidade do trabalho para as migrações, as políticas de acesso ao trabalho, emprego e renda são vitais no delineamento das políticas migratórias que pretendem garantir condições dignas de vida e trabalho aos imigrantes, em total respeito aos direitos humanos.

Contra a redução do imigrante a uma força de trabalho, mas, reconhecendo-o como ser humano que possui identida-de e cultura, é preciso reafirmar que mesmo quando está em condição de irregularidade migratória, ou em uma situação de trabalho que não envolve os processos trabalhistas legais, sua condição ainda assim é de um trabalhador (FERREIRA, 2011). Esclarece-nos Sayad:

A estadia autorizada do imigrante está inteiramente sujeita ao trabalho, única razão de ser que lhe é reconhe-cida [...] Foi o trabalho que fez “nascer” o imigrante, que o fez existir, e é ele, quando termina, que faz “morrer” o imigrante, que decreta sua negação ou que o empur-ra para o não ser. E esse trabalho, que condiciona toda a existência do imigrante, não é qualquer trabalho, não se encontra em qualquer lugar; ele é o trabalho que o “mercado de trabalho para imigrantes” lhe atribui e no lugar em que lhe é atribuído: trabalho para imigrantes que requerem, pois, imigrantes; imigrante para trabalho que se tornam, dessa forma, trabalhos para imigrantes (SAYAD, 1998, p. 55).

Seja por meio das redes migratórias, busca por refúgio, trabalho ou melhores condições de vida, as migrações inter-nacionais são um fato e seus sujeitos, homens e mulheres, exigem que suas demandas e direitos sejam respeitados e garantidos independentemente do lugar do planeta em que estejam e de sua autorização para existir.

1. o benefício de prestAção continuAdA dA AssistênciA sociAL (bpc) e suA concessão Aos imigrAntes

O Benefício de Prestação Continuada da Assistência So-cial (BPC), benefício individual, não vitalício e intransferível, foi declarado pela Constituição Federal de 1988:

(6) Por exemplo: O GLOBO. O sonho brasileiro. 30 out. 2011, Caderno de Economia p. 35 e FOLHA DE SÃO PAULO. Brasil recebe 57% mais mão de obra estrangeira. 05 fev 2012. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1044123-brasil-recebe-57-mais-mao--de-obra-estrangeira.shtm>.

(7) Cf.:<http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={A5F550A5-5425-49CE-8E88-E104614AB866}&BrowserType=NN&LangID=pt-br&params =itemID%3D{BA915BD3-AC38-4F6C-81A1-AC4AF88BE2D0}%3B&UIPartUID={2218FAF9-5230-431C-A9E3-E780D3E67DFE}>.

(8) Em fevereiro de 2013, o número de estrangeiros sul-americanos que possuíam visto temporário de permanência ou permanência de-finitiva correspondia a: 48.252 argentinos, 76.460 bolivianos, 27.904 chilenos, 9.661 colombianos, 21.189 paraguaios, 21.493 peruanos e 32.359 uruguaios. Fonte: Sistema Nacional de Cadastramento e Registro de Estrangeiros – SINCRE, Departamento de Estrangeiros – Mi-nistério da Justiça.

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119Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais O direito dos Imigrantes ao Benefício de Prestação Continuada: uma questão de cidadania|

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela neces-sitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

v – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei (grifo nosso).

Foi estabelecido pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, em seu Capítulo IV (Dos Benefícios, dos Serviços, dos Programas e dos Projetos de Assistência Social), Seção I (Do Benefício de Prestação Continuada)(9):

Art. 20. o benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao ido-so com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

§ 1º Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto.

§ 2º Para efeito de concessão deste benefício, considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

§ 4º O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória.

§ 5º A condição de acolhimento em instituições de longa permanência não prejudica o direito do idoso ou da pessoa com deficiência ao benefício de prestação continuada.

§ 6º A concessão do benefício ficará sujeita à avaliação da deficiência e do grau de impedimento de que trata o § 2º, composta por avaliação médica e avaliação social realizadas por médicos peritos e por assistentes sociais do Instituto Nacional de Seguro Social – INSS.

§ 7º Na hipótese de não existirem serviços no município de residência do beneficiário, fica assegurado, na forma prevista em regulamento, o seu encaminhamento ao município mais próximo que contar com tal estrutura.

§ 8º A renda familiar mensal a que se refere o § 3º deverá ser declarada pelo requerente ou seu representante legal, sujeitando-se aos demais procedimentos previstos no regulamento para o deferimento do pedido.

§ 9º A remuneração da pessoa com deficiência na condição de aprendiz não será considerada para fins do cálculo a que se refere o § 3º deste artigo.

§ 10. Considera-se impedimento de longo prazo, para os fins do § 2º deste artigo, aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos.

O benefício foi, ainda, regulamentado pelo Decreto n. 6.214, de 26 de setembro de 2007(10), que em seu art. 7º traz, de forma inadequada, como requisito da concessão do benefício a nacionalidade brasileira (nata ou naturalizada), excluindo, desse modo, todos os imigrantes do rol de po-tenciais beneficiários. Tal dispositivo foi o principal agente causador do debate que pretendemos realizar por meio desse artigo:

Art. 7º É devido o Benefício de Prestação Continuada ao brasi-leiro, naturalizado ou nato, que comprove domicílio e residên-cia no Brasil e atenda a todos os demais critérios estabelecidos neste Regulamento (grifo nosso).

A garantia do BPC é um dos objetivos da assistência so-cial (art. 2º, I, e, LOAS) regida pelo princípio da “igualdade de direitos no acesso ao atendimento, sem discriminação de qualquer natureza” (art. 4º, IV, LOAS). Conforme já men-cionado, tal benefício é expressamente garantido às pessoas que dele necessitem, sem qualquer distinção no texto legal constitucional e infraconstitucional entre nacionais e estran-geiros (art. 203, V, CF; art. 20, LOAS). Se em determinados dispositivos a LOAS alude à expressão cidadão – “A assis-tência social, direito do cidadão e dever do Estado [...]” (art. 1º, LOAS) ou no que diz respeito aos princípios que regem a assistência social afirma o “respeito à dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de qualidade, bem como à convivência familiar e comunitária, vedando-se qualquer comprovação vexatória de necessida-de” (art. 4º, III, LOAS) – não o faz no sentido de excluir a cidadania do estrangeiro. Ou seja, não faz a distinção entre cidadão nacional ou cidadão imigrante. Pretender adotar tal interpretação, a nosso ver, implicaria em desvirtuar o con-teúdo essencial do direito em debate(11). Tal discussão será aprofundada ao longo do artigo.

A própria Constituição incluiu a Seguridade Social, e, portanto, a Saúde, a Previdência e a Assistência Social, no Título da Ordem Social, o qual tem como objetivo o bem-

(9) A LOAS sofreu alterações em alguns dispositivos pela Lei n. 9.720/1998, Lei n. 12.435/2011 e Lei n. 12.470/2011.

(10) O Decreto n. 6.214/ 2007 revogou o antigo Decreto n. 1.744/1995 e sofreu algumas alterações a partir dos Decretos n. 6.564/2008 e n. 7.617/2011.

(11) Em sentido contrário, Carlos Gustavo Moimaz Marques (2012, p. 10) defende “justamente partindo do pressuposto de que a assis-tência só era “direito do cidadão” [art. 1º, LOAS], e cidadão é tão somente o brasileiro nato ou naturalizado, o Decreto n. 1.744/95 deixou explícito a impossibilidade de o estrangeiro, que não fosse naturalizado, obter a prestação [do BPC]. Nesse sentido dispôs o art. 4º, do mencionado Decreto [...] Essa mesma disposição permanece no atual Decreto que regulamenta a LOAS (Decreto n. 6.214/07)”.

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120 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Tatiana Chang Waldman, Camila Bibiana Freitas Baraldi e Táli Pires de Almeida|

-estar e a justiça sociais (art. 193, CF), competindo ao Poder Público organizar a Seguridade Social tendo como diretriz a universalidade da cobertura e do atendimento (art. 194, parágrafo único, I, CF).

A universalidade da cobertura e do atendimento é um dos chamados princípios constitucionais da Seguridade So-cial, que se traduz pela indicação de que a proteção social deve alcançar todos os eventos cuja reparação seja imperiosa para trazer a subsistência de quem dela necessite (CASTRO; LAZZARI, 2008). Ressaltamos, mais uma vez, não haver qualquer distinção nesse sentido prevista constitucional-mente entre nacionais e estrangeiros.

O Ministério Público Federal já apresentou judicialmen-te este entendimento(12) quando questionou “como garantir a aplicação do Princípio da Universalidade excluindo do di-reito à assistência social os estrangeiros residentes no país?” e “Qual seria o motivo de os Réus [União e INSS] afastarem seus nacionais da situação de miserabilidade não garantindo o mesmo direito aos estrangeiros residentes no país?” “Será que os Réus entendem ser o direito à assistência social um privilégio e não um dever do Estado destinado a todos os indivíduos que nele residam?”.

Observa-se que não há qualquer fundamento ou justifi-cativa plausível para a afirmação do direito ao benefício tão somente aos nacionais, como fez o Decreto n. 6.214/2007 (art. 7º). Conforme demonstrado, a exclusão dos imigran-tes do exercício, há que se frisar, de um direito humano fun-damental mostra-se incoerente com o ordenamento jurídico nacional. Poderia um Decreto que regulamenta o benefício diminuir o seu rol de potencial beneficiários estabelecido constitucionalmente por um critério de discriminação por nacionalidade?

Há quem entenda que sim. Essa é a posição adotada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) competente para implementar, coordenar, regular, fi-nanciar, monitorar e avaliar a prestação do benefício, o que realiza por intermédio da Secretaria Nacional de Assistên-cia Social (SNAS), e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), responsável pela sua operacionalização.

O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome em Ofício Circular Conjunto n. 02/2014 – SENARC/MDS e SNAS/MDS, de 11 de fevereiro de 2014, que traz es-clarecimentos sobre a inserção de estrangeiros no Cadastro Único e no acesso ao Programa Bolsa Família, faz menção

ao Benefício de Prestação Continuada e esclarece que este é um direito expressamente reservado aos cidadãos brasileiros com fundamento no art. 7º do Decreto n. 6.214/2007. No que diz respeito ao acesso ao Programa Bolsa Família, o mesmo Ofício esclarece que não haveria nenhum impedimento por motivo de nacionalidade estrangeira, desde que observados os critérios legais.

Já o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) por meio da Resolução INSS/PR n. 435, de 18 de março de 1997 (DOU de 4.4.97)(13) que estabelece normas e procedimentos para a operacionalização do Benefício de Prestação Continuada, do mesmo modo, adota a limitação ao acesso ao BPC aos brasi-leiros natos ou naturalizados.

Diante de um cenário em que o próprio Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e o Instituto Na-cional do Seguro Social negam o acesso aos imigrantes ao Be-nefício de Prestação Continuada, o debate sobre este direito acabou sendo levado a esfera judicial.

O Ministério Público Federal, pela Procuradoria Regio-nal dos Direitos do Cidadão, ajuizou Ação Civil Pública (n. 0021229-88.2004.4.03.6100), com pedido de tutela anteci-pada, contra a União Federal e o Instituto Nacional do Seguro Social, ensejando o reconhecimento do direito ao Benefício de Prestação Continuada previsto no inciso V do art. 203 da Constituição Federal para os estrangeiros não naturalizados residentes no Brasil. De acordo com o Ministério Público Fe-deral, o INSS se manifestou(14) no sentido de que os pedidos realizados por estrangeiros devem para além de preencher os requisitos ordinários à concessão do BPC, também apresen-tar requisitos extraordinários, quais sejam, ser naturalizados e domiciliados no Brasil e não amparados pelo Sistema Pre-videnciário do país de origem. Tal exigência trazida a época pelo Decreto n. 1.744/95 e hoje pelo Decreto n. 6.214/2007, viola a Constituição Federal, uma vez que se a Constitui-ção remete ao legislador ordinário a regulamentação do art. 203, V, este deve respeitar os limites constitucionais e não desviar suas finalidades, tal como fizeram os mencionados decretos. Ademais, de maneira apropriada o Ministério Pú-blico Federal nos recorda em sua petição que os Decretos são instrumentos normativos editados pelo Poder Executivo para tornar efetivo o cumprimento da lei.

Cabe anotar, por fim, que o texto da Ação Civil Pública esclarece que seu intuito é proteger todos aqueles imigran-tes que tenham o animus definitivo de permanecer no país,

(12) Ação Civil Pública n. 0021229-88.2004.4.03.6100 que trata da concessão do BPC para estrangeiros não naturalizados e residentes no Brasil.

(13) A Resolução INSS/PR n. 435, de 18 de março de 1997 revogou a Resolução INSS/PR n. 324, de 15 de dezembro de 1995.

(14) O Ministério Público Federal ouviu o INSS na fase da formação da convicção ministerial – procedimento administrativo n. 1.34.001.000473/2003-14 com a finalidade de apurar a conduta da União Federal, através do INSS, na apreciação de requerimento do BPC quando formulado por estrangeiros – colhendo manifestação da Coordenadoria Geral de Benefícios deste e das suas gerências execu-tivas em São Paulo (Centro, Leste, Oeste, Sul e Norte) para solicitar informações acerca dos requisitos exigidos à concessão do benefício assistencial.

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tendo ingressado regularmente em território brasileiro, ou ainda, aqueles que mesmo entrando irregularmente tenham regularizado sua situação, incluindo aqui, portanto, todos os estrangeiros com concessão de permanência definitiva no Brasil, bem como os refugiados. O Ministério Público Federal questiona, ainda, “por que exigir dos estrangeiros residentes no país os deveres a que se sujeitam seus nacionais, negan-do-lhes, em contrapartida, os direitos mínimos assegurados pelo texto constitucional?”. A Ação Civil Pública aguarda de-cisão no TRF/3ª Região.

Sobre a concessão do BPC a um grupo mais específico, os refugiados, o Ministério Público Federal, pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, ajuizou Ação Civil Pública n. 0023528-28.2010.4.03.6100, em face do Instituto Nacio-nal do Seguro Social (INSS), que tinha como objeto impor--lhe a obrigação de pagar, aos idosos palestinos refugiados no Estado de São Paulo, o BPC. Os autos da referida Ação foram extintos sem resolução do mérito, pelo entendimento de ile-gitimidade do Ministério Público para defesa de interesses individuais em discussão.

Para além das Ações Civis Públicas, é, também, expres-sivo o número de ações individuais nesse sentido e, ao que parece, a jurisprudência tem sido favorável a possibilidade de concessão do benefício aos imigrantes, desde que cumpridos os requisitos legais:

ASSISTENCIAL E CONSTITUCIONAL. AGRAVO LEGAL. ART. 557, § 1º, DO CPC. BENEFÍCIO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL. ART. 203, V, DA CF. ESTRANGEIRO RESIDENTE NO PAÍS. IGUALDADE DE CONDIÇÕES. ART. 5º DA CONS-TITUIÇÃO FEDERAL. POSSIBILIDADE. REQUISITOS LE-GAIS PREENCHIDOS. 1. Para a concessão do benefício de assistência social (LOAS) faz-se necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: 1) ser pessoa portadora de deficiên-cia ou idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais (art. 34 do Estatuto do Idoso – Lei n. 10.741 de 1º.10.2003); 2) não possuir meios de subsistência próprios ou de tê-la provida por sua família, cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo (art. 203, V, da CF; art. 20, § 3º, e art. 38 da Lei n. 8.742 de 7.12.1993). 2. A condição de estrangeiro da parte Autora não a impede de usufruir os benefícios previstos pela seguridade social, desde que preenchidos os requisitos para tanto. Isto, pois, de acordo com o caput do art. 5º da Consti-tuição Federal, é assegurado ao estrangeiro, residente no país, o gozo dos direitos e garantias individuais, em igualdade de condições com o nacional. 3. Sendo a assistência social um direito fundamental, os estrangeiros, residentes no país, e que preenchem os requisitos, também devem ser amparados com o benefício assistencial, pois qualquer distinção fulminaria a universalidade deste direito. 4. Preenchidos os requisitos le-gais ensejadores à concessão do benefício. 5. Agravo Legal a que se nega provimento. (AC 00120721920134039999, DE-SEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS, TRF3 – SÉTIMA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA: 18.09.2013) (grifo nosso).

PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO. ASSISTÊNCIA SOCIAL. ESTRANGEIRO RESIDENTE NO PAÍS. POSSIBILIDADE.

IGUALDADE DE CONDIÇÕES PREVISTA NO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PESSOA HIPOSSUFICIENTE E DE BAIXA INSTRUÇÃO. IDADE AVANÇADA. IMPLEMEN-TAÇÃO DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS. I – A assistência social é paga ao portador de deficiência ou ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprove não possuir meios de prover a própria subsistência ou de tê-la provida pela sua família (CF, art. 203, V, Lei n. 8.742/93, Lei n. 9.720/98 e Lei n. 10.741/03, art. 34). II – o fato da parte autora ostentar a condição de estrangeiro não constitui óbice à concessão do benefício, desde que presentes os requisitos legais autoriza-dores, uma vez que a constituição federal não promove a distinção entre estrangeiros residentes no país e brasileiros, sendo o benefício assistencial de prestação continuada de-vido “a quem dela necessitar”, inexistindo restrição à sua concessão ao estrangeiro aqui residente. III – Ademais, o art. 5º da Constituição Federal assegura ao estrangeiro residente no país o gozo dos direitos e garantias individuais em igual-dade de condição com o nacional. IV – ressalte-se que, em-bora tenha sido reconhecida a repercussão geral e a questão ainda esteja em análise no supremo tribunal federal (re 587.970), trata-se de posicionamento dominante nesta e. corte a concessão do benefício ao estrangeiro, sendo plena-mente aplicável a regra autorizadora prevista no art. 557 do Có-digo de Processo Civil. V – Agravo a que se nega provimento. (AC 00002189220074036004, DESEMBARGADOR FEDERAL WALTER DO AMARAL, TRF3 – DÉCIMA TURMA, e-DJF3 Ju-dicial 1 DATA:10.10.2012) (grifo nosso).

Uma dessas ações individuais de percepção de benefício assistencial acabou originando o Recurso Extraordinário n. 587.970 que trata da possibilidade de concessão do bene-fício assistencial previsto no art. 203, inciso V, da Consti-tuição Federal ao imigrante domiciliado no Brasil e teve a sua repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal:

ASSISTÊNCIA SOCIAL – GARANTIA DE SALÁRIO MÍNIMO A MENOS AFORTUNADO – ESTRANGEIRO RESIDENTE NO PAÍS – DIREITO RECONHECIDO NA ORIGEM – Pos-sui repercussão geral a controvérsia sobre a possibilidade de conceder a estrangeiros residentes no país o benefício assisten-cial previsto no art. 203, inciso V, da Carta da República. (RE 587.970 RG, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 25.6.2009, DJe-186 DIVULG 1º.10.2009 PUBLIC 2.10.2009 EMENT VOL-02376-04 PP-00742 ).

O Recurso Extraordinário n. 587.970 ainda está sob aná-lise, mas o reconhecimento da repercussão geral da contro-vérsia ora debatida indica a importância da questão e gera expectativa acerca da palavra final do Supremo Tribunal Fe-deral.

Entendemos que o critério de nacionalidade não pode ser um fator excludente quando se trata de direitos sociais como a “assistência aos desamparados” conforme afirmado pela Constituição Federal de 1988 (art. 6º, CF). De acordo com José Afonso da Silva (2004) o princípio fundamental é o de que os estrangeiros residentes no país sejam titulares dos

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mesmos direitos e tenham os mesmos deveres dos brasileiros, sendo aceitas só as limitações estabelecidas expressamente na Constituição:

A Constituição assegura aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, tanto quanto aos brasileiros (art. 5º, caput, CF). Não diz aí que assegura os direitos sociais, mas, em verdade, ela não restringe o gozo destes apenas aos brasileiros [...] Por este lado, o texto do art. 5º não é bom, porque abrange menos do que a Constituição dá (SILVA, 2004, p. 338)

O próprio Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815/1980) declara em seu art. 95 que o estrangeiro residente no país é titular de todos os direitos reconhecidos aos brasileiros, nos termos da Constituição e das leis.

Como vemos a questão central da discussão parece refe-rir-se à compreensão do conceito de cidadania. A miserabi-lidade, a falta do mínimo necessário para uma sobrevivência digna e suas decorrências não são exclusividade de nacionais ou estrangeiros residentes em um Estado. Do mesmo modo, benefícios assistenciais que tem como objetivo atenuar tal o estado de privação não podem adotar critérios discriminató-rios de nacionalidade.

2. cidAdAniA e migrAções internAcionAis

O sistema internacional moderno apropriou-se dos dis-cursos nacionais para criar a legitimidade necessária aos governos dos Estados que se delinearam no fim do século XVIII. O sistema de Estados soberanos e independentes já havia sido estabelecido desde a Paz de Vestfália em 1648, mas o nacionalismo foi o amálgama social para legitimar a unidade política de regiões que, em verdade, não possuíam ligações emocionais históricas tão estreitas como quis fazer acreditar a história moderna.

O processo de homogeneização que deu lugar ao sur-gimento das nações permitiu a criação de um povo estável para compor os elementos teóricos do Estado: território de-limitado, povo e governo autônomo. Neste cenário é que a soberania fincou as suas raízes e desenvolveu-se durante a Idade Moderna. Corolários basilares do conceito de sobera-nia eram, no plano externo, a independência com relação aos seus pares e, no plano interno, a autonomia de governo sobre o seu território.

Durante muitos anos, essa autonomia se apresentou como um poder ilimitado dos governantes sobre a vida de seus súditos. Somente a partir das Revoluções liberais este estado de coisas se modificou, os governados conseguiram estabelecer limites ao exercício do governo e adquirir di-reitos em face dele. Este percurso corresponde à afirmação dos direitos humanos na esfera doméstica (BOBBIO, 2004)

e esse dualismo entre governantes e governados, que define os contornos concretos do poder, também é central para o tema da cidadania. A acepção moderna de cidadania como titularidade de direitos subjetivos tem como pressupostos o Estado e a centralização jurídica. O Estado nacional assume a prerrogativa da atribuição de tal posição jurídica.

Dentre os novos problemas colocados por esta nova for-ma política, o Estado moderno, um dos mais candentes era o da identificação dos cidadãos ao Estado e ao sistema dirigen-te que, na Idade Média, era assegurada pelos corpos interme-diários, como a religião, a hierarquia social, as corporações, etc. (HOBSBAWN, 1990).

A ideia de patriotismo original revolucionário-popular, segundo Hobsbawn, estava baseada no Estado e não era uma ideia nacionalista. A pátria, segundo o pensamento da Re-volução Francesa, era a que havia sido escolhida e não era determinada pela etnia ou pela língua (HOBSBAWN, 1990). Assim, o nacionalismo era uma força política separada do Estado, mas que em algum momento foi apropriada por este como um instrumento útil na busca por um elemento de coe-são do povo, além das estratégias de criação de uma comu-nidade imaginária através da construção de símbolos e mitos comuns (HOBSBAWN, 1990).

O patriotismo estatal tinha uma tendência amplamen-te includente – era o cidadão que decidia adotar a pátria –, enquanto o nacionalismo era excludente e baseava-se na língua, etnia, entre outros critérios, para fazer essa diferen-ciação. O risco de criar um contranacionalismo ao excluir parte da população não gerou problemas imediatos já que o próprio processo de modernização incentivou a homoge-neização e assimilação dos grupos minoritários, sobretudo pelo estabelecimento de uma língua nacional (HOBSBAWN, 1990).

O atrelamento do conceito de cidadania ao de naciona-lidade determinou que somente os indivíduos pertencentes à nação, ao povo, esta “comunidade imaginada” (ANDER-SON, 2008) seriam titulares dos direitos que progressiva-mente foram sendo incorporados no rol dos direitos de cidadania.

Mas esta é só e claramente a concepção moderna de ci-dadania:

Uma tal simplificação de relações, pela qual a cidada-nia não é mais que a condição jurídica de quem faz parte de um Estado, não tem sentido, sem qualquer reserva, que na plenitude do Estado absoluto, em que a soberania é entendida como indivisível [...](QUAGLIONI, 2004, p. 83).

A migração é parte constitutiva da experiência huma-na e também deste processo de formação da maior parte das comunidades políticas que hoje chamamos de Estado (MOULIN, 2011). Do ponto de vista conceitual, a migração internacional vincula-se inexoravelmente à ideia de Esta-

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123Parte II – Requisitos para Concessão e Aspectos Processuais O direito dos Imigrantes ao Benefício de Prestação Continuada: uma questão de cidadania|

dos nacionais, materializando-se por meio do cruzamento das fronteiras políticas de tais Estados. Por isto mesmo, a percepção, cultural, econômica, política e jurídica, assim como as condições objetivas de mobilidade, sofreram gran-des mudanças ao longo do tempo, em particular a partir do final do século XX. A história política das migrações – assim como a da cidadania – constitui uma série de emergências descontínuas, muito distantes da lenda da plena integração ao país de destino: trata-se de uma história de lutas pelo reconhecimento (BOUBEKER, 2007), que continua a ser contada.

A clássica teoria de Marshall sobre a cidadania descreve uma ordem lógica de expansão destes direitos: civis, políticos e sociais, ordem que historicamente se verificou na Inglaterra onde viveu. No Brasil, no entanto, a história foi outra. A par-tir da Independência, em 1822, homens livres, com certa ren-da passaram a ser titulares de direitos políticos (CARVALHO, 2011). Muitos brasileiros, no entanto, na mesma época, ain-da não dispunham da garantia de seus direitos civis, era o caso dos escravos que só os adquiriram após a abolição da escravatura, em 1888. Os direitos trabalhistas e sociais, por sua vez, remontam aos anos 1930, mas mais que fruto de rei-vindicações dos cidadãos, titulares de direitos políticos, estes se surgiram como concessões do Estado, benefícios. Apenas em 1932, o sufrágio foi garantido às mulheres(15) e gradati-vamente, em concomitância com o afirmar-se dos direitos humanos em âmbito internacional, o princípio da igualdade de direitos foi sendo incorporado às constituições brasileiras e ao ordenamento jurídico nacional como um todo. Neste processo a Constituição Federal de 1988 expressa, então, a consagração do princípio da igualdade, incluindo os estran-geiros, conforme previsto no seu art. 5º, mas a luta pela sua efetivação é permanente.

Interessante notar que a afirmação dos direitos huma-nos coloca-se contra toda forma de discriminação que possa consistir em diminuição de direitos. A diferenciação entre nacionais e estrangeiros é a última que ainda resiste na mente e nos discursos de alguns, apesar de novas interpretações so-bre o conceito de cidadania ganharem espaço na realidade e na literatura. O que as migrações trazem à tona é justamente o caráter excludente que está na origem do conceito de cida-dania moderno.

Tendo em vista que não há razão justificável para esta diferenciação, alguns teóricos defendem que a residência seja o critério mais adequado para a titularidade de direi-tos de cidadania. Outros, ainda vão além e afirmam que a cidadania se expressa para além dos limites jurídicos para ela estabelecidos. Assim, os imigrantes residentes, ainda que não reconhecidos pelo ordenamento jurídico do país, prati-cam quotidianamente atos de cidadania, ou seja, agem como cidadãos.

Nesse sentido, é importante resgatar a discussão anterior sobre o contexto em que os movimentos migratórios ocor-rem. O movimento do trabalho é central ao sistema capitalis-ta de forma geral e especialmente à sua mais recente apresen-tação, o neoliberalismo (MEZZADRA, 2006), o qual se apoia sobre o trabalho migrante.

A dinâmica do capitalismo neoliberal estrutura os deslo-camentos de pessoas ao transformar os modos de produção e acumulação do capital e criar um mercado global de capitais, mercadorias e trabalho precário (mas submetido a controle) que atenda às demandas de flexibilização, redução de cus-tos (GLICK-SCHILLER, 2009; HEWINSON; KALLERBERG, 2012).

Por outro lado, o comportamento e as lutas dos imigran-tes, lado subjetivo das migrações, são reivindicações concre-tas do direito à mobilidade que forçam as fronteiras da cida-dania (MEZZADRA, 2006). A mobilidade é um fator chave no desenvolvimento do trabalho, da cidadania e das formas de vida atualmente. Como já dito, as migrações excedem os fatores objetivos, econômicos ou demográficos. Trata-se de um movimento de pessoas, um movimento social, que exce-de e é autônomo em relação não só a estes como às políticas migratórias construídas exclusivamente a partir do interesse dos Estados e seus mercados de trabalho.

Nesse sentido, a cidadania é um terreno de luta. A mi-gração é uma busca concreta, um exercício de liberdade, com todas as dificuldades e ambiguidades de origem econômica, política, jurídica e social que uma luta pressupõe. Os com-portamentos sociais dos imigrantes se exprimem na forma de reivindicações de direitos que muitas vezes excedem estrutu-ralmente a gramática e a linguagem do direito (MEZZADRA, 2006). Podem ser mais ou menos reconhecidos no ordena-mento jurídico e no próprio desenho estrutural da cidadania, mas sempre propõem uma requalificação dos conceitos de liberdade e igualdade. (MEZZADRA, 2006).

Se queremos invocar um dos princípios norteadores da Seguridade Social, qual seja a solidariedade, precisamos lem-brar que a estrutura econômica, social e política que compele os imigrantes a tomar a decisão de imigrar é internacional. A globalização intensifica as relações entre os Estados na-cionais tornando-os todos “solidários” na construção desse cenário, na produção da riqueza e da pobreza mundial, atra-vés da divisão da terra em áreas de interesse e exploração; da co-presença de abertura e protecionismo econômico, etc. (MEZZADRA, 2006).

Ainda que não completamente consciente, o gesto de subtrair-se às condições locais que lhe impedem o desenvol-vimento da vida, é um gesto político (MEZZADRA, 2006) que questiona os limites que lhe são impostos juridicamen-te pela divisão do mundo em Estados-nação e cidadanias nacionais. Ou seja, questiona as configurações consolidadas das fronteiras não somente nos planos econômico e políti-

(15) Decreto n. 21.076, de 24.2.1932, assinado pelo presidente Getúlio Vargas.

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co, mas também no plano das identidades e do quotidiano (MEZZADRA, 2006).

É lugar comum afirmar que a livre-circulação de bens e sobretudo de capitais ganha força com a globalização, enquanto a de pessoas é cada vez mais restrita. A descrição fática é correta, mas isso somente ilustra as contradições e a seletividade no processo de globalização e o que já havíamos dito sobre a migração e a cidadania serem espaços de luta pela liberdade. A imprevisibilidade, decorrente da subjetividade, que caracteriza estes movimentos hoje, é que incomoda a Estados e mercado que gostariam de manter o controle sobre o movimento do trabalho (MEZZADRA, 2006).

A mobilidade e porosidade das fronteiras, decorre da ca-pacidade dos movimentos migratórios de produzir os pró-prios espaços (transnacionais), não se limitando a aceitar a geografia política construída em torno à norma soberana do Estado-nação (MEZZADRA, 2006). Este reconhecimen-to do caráter transnacional das migrações não significa negar o papel significativo dos Estados nacionais, mas perceber a sua transformação (VERTOVEC, 2004). São suas políticas e leis que garantem direitos e distribuem prestações de forma predominante ainda hoje (GLICK SCHILLER, 2009). O pro-blema está na disparidade das lógicas das políticas migrató-rias, que seguem uma lógica nacional, e das forças que deter-minam e moldam os deslocamentos, que são transnacionais (CASTLES, 2004). Assim, pautando-se por um nacionalismo metodológico, as políticas desconsideram o que ocorre no sistema em que os Estados-nação estão inseridos e que aju-dam a moldar (GLICK-SCHILLER, 2009).

Diversos estudos sociológicos já documentaram o trans-nacionalismo crescente, no sentido de que os imigrantes vi-vem as suas vidas dentro, mas também através das fronteiras de múltiplos Estados-nação (GLICK SCHILLER, 2009). Po-liticamente, no entanto, a continuidade do nacionalismo me-todológico, que faz corresponder fronteiras estatais a frontei-ras sociais (VERTOVEC, 2004), continua a tratar o imigrante como uma ameaça. E ainda ignora as divisões sociais e cultu-rais que existem entre os próprios nacionais dentro de suas fronteiras (GLICK SCHILLER, 2009).

Os movimentos não são vistos como meras respostas a problemas sociais e econômicos dos imigrantes, mas como uma força criativa no interior das estruturas sociais, econô-micas e culturais (MEZZADRA, 2013). Dando continuidade à linha Marshalliana, e de forma resumida, a cidadania é di-nâmica (MEZZADRA, 2006):

A cidadania se põe nesta perspectiva como aquele es-paço ao mesmo tempo objetivo (ou seja, institucional e soberano) e subjetivo (ou seja, de movimento, de ação), em que a política encontra a cada vez, em circunstâncias historicamente determinadas, a própria instável repre-sentação de conjunto (MEZZADRA, 2006, p. 22).

A cidadania está em crise e não é por causa das migra-ções, mas sim porque o trabalho e a rede de proteção so-cial ligada a ele está em crise (o Estado Social que nunca se completou no Brasil), as migrações apenas se inserem neste cenário e trazem luz para o problema (MEZZADRA, 2006).

A precariedade crescente do trabalho e a espoliação de direitos são realidades para todos. Colocar a discussão como fosse um problema dos imigrantes serve somente àqueles que querem colocar um véu sobre estes processos, permitindo que eles avancem mais facilmente. Enquanto todos discutem que o problema é a presença de imigrantes e a solução seria barrá-los ou retirá-los; a exploração e a precarização se desenvolvem para imigrantes – que continuarão a entrar no território nacional – e brasileiros, tudo com o estímulo de nosso mercado de trabalho e a conivência de nosso ordenamento jurídico.

A aplicação de lógicas administrativas a terrenos de rele-vância constitucional, ou seja, de direitos, amplamente acei-ta quando referida a estrangeiros, sanciona juridicamente o rompimento do universalismo da cidadania e apenas forta-lece a tendência à erosão de direitos também entre os na-cionais. A exclusão dos imigrantes sanciona o encerramento do inteiro ciclo histórico de expansão da cidadania moderna (MEZZADRA, 2006).

Essa visão justifica as políticas restritivas e as políticas seletivas que criam diversas categorias de imigrantes(16). A esta seletividade alia-se quase sempre uma forte securitização das fronteiras, para fazer valer os critérios de admissão. Há países, como os Estados Unidos que investem pesadamente nessa área, mas com poucos resultados em evitar a entrada de imigrantes fora dos esquemas estabelecidos. O resultado mais visível desses mecanismos de diferenciação é a violação dos direitos humanos dos imigrantes. Um recente relatório a respeito das mortes na fronteira do México com os Estados Unidos demonstra que estas aumentaram significativamente com o aumento da securitização das fronteiras a partir de 1990 (THE BINATIONAL MIGRATION INSTITUTE, 2013).

Outro resultado da criação de diversas categorias de imi-grantes e da hierarquização entre migrantes ideais e inde-sejados é a geração de irregularidade uma vez que não se consegue impedir totalmente os deslocamentos. Os imigran-tes irregulares são alguns dos trabalhadores mais explorados no mercado de trabalho devido à sua vulnerabilidade não só econômica como social e jurídica.

Ressalte-se que as regras de admissão variam considera-velmente a depender da conjuntura econômica e política. As-sim, a irregularidade não é uma condição ligada a um situa-ção substantiva do imigrante. Esta condição resulta, isto sim, das decisões técnicas e políticas do Estados que consideram os imigrantes apenas como objetos de suas políticas, mão de obra para seu mercado e não como sujeitos com desejos e direitos.

(16) A ideia de fronteiras fechadas, fortalezas, não serve para explicar grande parte as políticas migratórias atuais, pois para alguns as fronteiras são abertas e há incentivos (mas uma série de condições devem ser atendidas e respeitadas), para outros não. Em muitas dessas diferenciações reproduzem-se hierarquias raciais e coloniais. Ver RIGO, 2011.

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É nesse sentido que todos os residentes devem ser tra-tados com igualdade. Uma democracia não pode tolerar que indivíduos que compõem a sua população sejam privados de direitos. Como vimos, os vínculos que se estabelecem hoje entre indivíduos e Estados não são exclusivos, de modo que não há que se falar em necessidade de reciprocidade uma vez que os imigrantes também possuem vínculos com o país de destino, construídos a partir da residência naquele território e não é justificável que se aplique diferenciações administra-tivas (entrada regular ou irregular) para questões constitu-cionais como são os direitos fundamentais.

considerAções finAis

A Assistência Social, diferentemente da Previdência So-cial, não é contributiva. O imigrante que vive no país faz parte da sociedade brasileira, paga seus impostos e desen-volve a sua vida quotidiana no país. Sendo assim, há que se compreender que com esta sociedade estabelece vínculos, também de solidariedade, que fundamentam a concessão dos benefícios assistenciais.

Nesse sentido, não há que se falar em reciprocidade ou subsidiariedade com relação ao país de origem, pois o transnacionalismo que caracteriza a realidade destas pessoas resulta em um mosaico de vínculos que não podem ser hie-rarquizados. O respeito à subjetividade das escolhas dessas pessoas, assim como leva ao questionamento de políticas mi-gratórias que só consideram os interesses dos Estados, tam-bém levam ao questionamento da necessidade de reciproci-dade entre países para a concessão de benefícios assistenciais.

A invocação de Acordos Bilaterais e Multilaterais de Se-guridade Social como exemplo da prática de reciprocidade é falaciosa uma vez que se trata de regulamentar o co-financia-mento de prestações previdenciárias contributivas, quando essas contribuições foram feitas a mais de uma país. Situa-ção totalmente diversa dos benefícios assistenciais que não baseiam-se em contribuições.

Com relação a outros direitos sociais a interpretação mos-tra-se hoje favorável quanto à sua garantia a todos os estran-geiros presentes no território nacional, mesmo que por vezes ainda subsistam algumas violações no seu exercício quotidia-no, o que nos faz reafirmar que a luta pela efetivação des-ses direitos é permanente. A saúde, por exemplo, que assim como a assistência social está incluída na seguridade social, é declarada expressamente como direito de todos e dever do Estado, tendo como diretriz o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196, CF). Hoje no Brasil, tanto brasileiros e estrangei-ros – em situação migratória regular ou irregular – têm esse

acesso garantido(17). No que se refere ao direito à educação, apesar de amplamente garantido em nosso ordenamento ju-rídico e hoje entendido como um direito cuja garantia deve ser necessariamente universal, este já sofreu sérias violações por conta de dispositivos com limitações não recepcionadas pela Constituição Federal de 1988 (Cf. a redação dos artigos 48 e 97 do Estatuto do Estrangeiro – Lei n. 6.815/80)(18), se-melhantes pelas suas decorrências e restrições ao dispositivo ora debatido (art. 7º, Decreto n. 6.214/2007).

Por fim, observamos a grande contribuição e a relevância do debate sobre a verdadeira universalização do Benefício de Prestação Continuada, ou seja, seu exercício por parte de na-cionais e estrangeiros residentes no Brasil e a futura decisão pelo Supremo Tribunal Federal sobre a temática, com reper-cussão geral, para a garantia de condições dignas de vida aos imigrantes no Estado que os acolheu.

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(17) Cf. WALDMAN, Tatiana Chang. Movimentos migratórios sob a perspectiva do direito à saúde: Imigrantes bolivianas em São Paulo. Revista de Direito Sanitário. São Paulo, v. 12, n. 1, p. 90-114, mar./jun. 2011.

(18) Sobre a questão da luta pelo acesso à educação escolar de imigrantes no Estado de São Paulo, direito social e fundamental, Cf. WALD-MAN, Tatiana Chang. O acesso à educação escolar de imigrantes em São Paulo: a trajetória de um direito. 2012. 236f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

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parte iiiFinanciamento e Custeio da Assistência Social

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assistência social: Breve estudo soBre os gastos com proteção social Básica e proteção social especial nos

municípios de são paulo e de Belém

Luma Cavaleiro de Macêdo Scaff(*)

1. posição dA questão

O direito fundamental à assistência social é de respon-sabilidade conjunta de todos os entes federativos cuja diver-sidade de fontes de financiamento é assegurada pela própria Carta Constitucional. A assistência social é sustentada por

dois critérios, quais sejam a Proteção Social Básica (PSB) e a Proteção Social Especial (PSE)

Extrai-se do orçamento na parte de demonstrativo de gastos por função de forma regionalizada(1) que os valores despendidos com a assistência social vem aumentando nos dois últimos anos:

Norte Nordeste Centro-Oeste Sudeste Sul Total2013 160.114.999 965.603.251 724.743.152 4.905.019.735 1.198.693.156 7.954.174.2922014 382.858.040 2.014.242.139 1.226.967.925 11.793.437.469 3.283.213.167 18.700.718.739

Considerando que existe uma variação nos repasses do dinheiro público de acordo com a região, este artigo objetiva demonstrar, em breve análise, os gastos com os critérios de Proteção Social Básica e de Proteção Social Especial nos mu-nicípios de São Paulo e de Belém(2).

2. AssistênciA sociAL: Aspectos constitucionAis. princípios. diretrizes

Em consonância com os objetivos previstos no art. 3º da Constituição Federal, a seguridade social deve ser com-

preendida em perspectiva integral, envolvendo a previdência social(3), a saúde(4) e a assistência social(5). Para Marco Aurelio Serau Junior, a seguridade social:

“é a estrutura pública ou função estatal de garantir e atender às necessidades básicas e vitais da população (as contingencias sociais), necessidades estas que são derivadas unicamente de sua condição de pessoa humana, atinentes, portanto, a todo gênero humano, independentemente do pertencimento a qualquer categoria profissional”(6)

Interessa particularmente neste breve ensaio a assistên-cia social, daí ressaltar os objetivos constitucionais da Repú-

(*) Graduada em direito pela Universidade Federal do Pará. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo e doutoranda pela mesma instituição. Assessora Jurídica na Secretaria de Estado de Cultura do Pará. Professora na Faculdade Ideal. Professora na Faculdade Integrada Brasil Amazônia. Pesquisadora. Advogada.

(1) Esses dados foram extraídos do site da Receita Federal do Brasil e podem ser consultados nos seguintes endereços: <http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/estudotributario/BensTributarios/2014/DGT2014.pdf> e <http://www.receita.fazenda.gov.br/publico/estudotributa-rio/BensTributarios/2013/DGT2013.pdf>.

(2) Justifica-se a escolha das duas localidades, não apenas por afinidade, mas também por utilizar as cidades como pontos de contraste entre o centro rico e desenvolvido e a periferia subdesenvolvido tomando por empréstimo o capitalismo periférico.

(3) Art. 201. CF

(4) Art. 196 CF

(5) Art. 203 CF

(6) SERAU JUNIOR, Marco Aurelio. Seguridade Social como Direito Fundamental Material. Curitiba: Juruá, 2009. p. 151.

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130 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Luma Cavaleiro de Macêdo Scaff|

blica a erradicação, a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Nesta linha, o direito fundamental à assistência social no art. 203 a ser prestada a quem dela necessitar, independentemente da contribuição com os seguintes objetivos(7):

I. A proteção à família, à infância, à adolescência e à velhice;

II. O amparo às crianças e adolescentes carentes;

III. A promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV. A habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V. A garantia de um salário mínimo de beneficio men-sal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la por sua família, conforme dispuser a lei(8).

Com isso, a assistência social deve ser entendida como uma política social que provê o atendimento das necessi-dades básicas trazidas em proteção à família, à infância, à adolescência, à velhice e à pessoa portadora de deficiência, independentemente de contribuição à seguridade social(9).

Uma vez observando as diretrizes de descentralização administrativa e a participação da população na formulação e controle das ações em todos os níveis, a assistência social é direito do cidadão e dever do Estado, além de integrar a seguridade social. É política não contributiva com a fi-nalidade de prover os mínimos sociais realizada por meio de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas(10).

Sabe-se que o Estado é financiado por meio de receitas tributárias e não tributárias(11) pela toda a sociedade(12) e no caso, tratar-se de direitos fundamentais sociais(13) que podem ser inseridos na classificação como integrantes da terceira dimensão(14). Logo, são direitos que possuem custos(15).

3. estruturA dA AssistênciA sociAL

Para sustentar essa estrutura de proteção de direitos so-ciais, o art. 204 da Constituição Federal estabelece que as ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social previstos em seu no art. 195, além de outras fontes de finan-ciamento com base nas seguintes diretrizes:

I. Descentralização político administrativa, cabendo à coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entida-des beneficentes e de assistência social;

II. Participação da população por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis;

Sobre o funcionamento da gestão descentralizada e participativa do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no Brasil, destaca-se dentre outros três instrumentos princi-pais:

I. Conselhos de Assistência Social;

II. Política Nacional de Assistência Social;

III. Fundos de Assistência Social(16);

Os Conselhos de Assistência Social são de âmbito nacio-nal, estadual ou municipal, com destaque para o art. 17 da Lei Orgânica de Assistência Social que dentre suas funções destaca-se a elaboração da Política Nacional de Assistência Social.

São instâncias deliberativas de caráter permanente e composição paritária. Esses Conselhos de Assistência Social estão vinculados ao órgão gestor de assistência social, que deve prover a infraestrutura necessária ao seu funcionamen-to, garantindo recursos materiais, humanos e financeiros, inclusive com despesas referentes a passagens e diárias de conselheiros representantes do governo ou da sociedade ci-vil, quando estiverem no exercício de suas atribuições. Esse Conselho é o responsável pela Política Nacional de Assistên-cia Social.

(7) Art. 2º, Lei n. 8.742/93.

(8) ADI 1.232/DF. ADI 937-7/DF. ADI 1.497-8/DF.

(9) Art. 4º, Lei n. 8.212/91.

(10) Art. 1º, LOAS.

(11) Art. 9º e s/s Lei n. 4.320/64.

(12) SCAFF, Fernando Facury. Como a Sociedade Financia o Estado para a Implementação dos Direitos Humanos?. In: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho; Jose Luis Bolzan de Morais; Lenio Luiz Streck. (Org.). Estudos Constitucionais. São Paulo: Renovar, 2007, v. 1, p. 71-100.

(13) SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São Paulo: Livraria do Advogado, 2004.

(14) Sobre as dimensões dos direitos humanos, ver Paulo Bonavides. Este autor já defende a 5ª dimensão dos direitos.

(15) GALDINO, Flávio. Uma Introdução a Teoria dos Custos dos Direitos. Os Direitos não Nascem em Árvores. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. SUSTEIN, Cass. HOLMES, Stephen. The Cost of Rights – Why Liberty Depends on Taxs. New York, Norton, 2000

(16) Com origem no Fundo Nacional de Ação Comunitária (Funac). Art. 27 LOAS.

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131Parte III – Financiamento e Custeio da Assistência Social Assistência Social: breve estudo sobre os gastos com Proteção Social Básica e Proteção Social Especial em SP e Belém|

Sobre a Política Nacional de Assistência Social, impor-tante à compreensão desta pesquisa, destacar o papel do Cen-tro de Referência de Assistência Social (CRAS) como unidade pública estatal integrante desse modelo descentralizado de gestão. Atua como principal “porta de entrada” do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), além de ser o responsá-vel pela organização de oferta e serviço de proteção social e da gestão territorial da rede de assistência social básica, promo-vendo a articulação das unidades a ele referenciadas. Dentre suas principais atividades, destaca-se o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF)(17) que consiste em um trabalho de caráter continuado que visa fortalecer a fun-ção protetiva das famílias, prevenindo a ruptura de vínculos, promovendo o acesso e usufruto de direitos e contribuindo para melhoria da qualidade de vida.

Os Fundos de Assistência Social podem ser constituídos na esfera federal, estadual e municipal devem constituir-se em unidades orçamentárias com a finalidade de reunirem os recursos financeiros da assistência social para o co-financia-mento da política de assistência social.

Além desses três, é possível acrescentar outros instru-mentos mais simples de gestão que também integram o siste-ma tais como as conferências, de âmbito municipal, estadual e nacional “cuja atribuição é avaliar a situação da assistência social nos três níveis e propor aperfeiçoamento do sistema” tais como as conferências que reúnem governos e sociedade representados por delegados(18).

Coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social do Combate à Fome (MDS), o SUAS é um sistema público que organiza, de forma descentralizada os serviços socioas-sistenciais no Brasil.

Adotando um modelo de gestão descentralizada, o SUAS articula os três níveis da federação mediante distribuição de

competências e de responsabilidades, além de transferências financeiras viabilizando a Política Nacional de Assistência Social. Em dezembro de 2013, 99,8% dos municípios brasi-leiros já estavam habilitados em um dos níveis de gestão do SUAS e do mesmo modo todos os Estados já estavam com-prometidos com a implantação de sistemas locais e regionais de assistência social e sua adequação ao modelo de gestão e cofianciamento, o que se traduziu mediante pactos para aprimoramento do sistema(19). A Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social (NOB-SUAS/2012)(20) estabelece ainda que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem elaborar o Pacto de Aprimoramento do SUAS. O Pacto é o instrumento pelo qual se materializam as metas e as prioridades nacionais no âmbito do SUAS, e se constitui em mecanismo de indução do aprimoramento da gestão, dos serviços, programas, projetos e benefícios so-cioassistenciais.

O novo modelo de gestão proposto pelo SUAS envolve dois tipos de proteção social. Uma é a Proteção Social Básica (PSB) que é destinada à prevenção de riscos sociais e pessoais por meio da oferta de programas, projetos e serviços e bene-fícios a indivíduos e famílias em situação de vulnerabilidade social.

A outra é a Proteção Social Especial (PSE) destinada a famílias e indivíduos que já se encontram em situação de risco e que tiveram seus direitos violados por ocorrência de abandono, maus tratos, abuso sexual, uso de drogas dentre outros aspectos. É com base nesses dois critérios Proteção Social Básica e Proteção Social Especial que será realizado breve estudo comparativo entre os municípios de Belém e de São Paulo(21).

Diferentemente da PSB que tem um caráter preven-tivo, a PSE atua com natureza protetiva, daí examinar os gastos de cada um desses setores. São ações que requerem

(17) Os valores gastos com o PAIF integram esse breve relato.

(18) A IX Conferência Nacional de Assistência Social foi realizada em dezembro de 2013 com tema “A Gestão e o Financiamento na efe-tivação do SUAS”. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/conferencias-nacionais/ix-conferencia-nacional>. Acesso em 25 de março de 2014.

(19) Dados extraídos do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS). Acesso em 23 de março de 2014. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/suas>.

(20) A Norma Operacional Básica (NOBSUAS) disciplina a operacionalização da gestão da Política de Assistência Social, conforme a Constituição Federal de 1988, a LOAS e legislação complementar aplicável nos termos da Política Nacional de Assistência Social de 2004, considerando a construção do Sistema Único da Assistência Social – SUAS, abordando, dentre outras questões, a divisão de competências e responsabilidades entre as três esferas de governo; os níveis de gestão de cada uma dessas esferas; as instâncias que compõem o processo de gestão e como elas se relacionam; os principais instrumentos de gestão a serem utilizados; e, a forma de gestão financeira que considera os mecanismos de transferência, os critérios de partilha e de transferência de recursos. Uma nova versão da NOBSUAS foi publicada em 03 de janeiro de 2013 e representa um marco fundamental na estruturação do Suas, imprimindo um salto qualitativo na sua gestão e na oferta de serviços socioassistenciais em todo o território nacional, tendo como base a participação e o controle social.

Esta nova versão passa a vigorar a partir de hoje 03.01.2013. A Resolução CNAS n. 130, de 15 de julho de 2005, que aprovou a NOBSUAS 2005 foi revogada pela Resolução CNAS n. 33/2012 que aprova a NOB/SUAS 2012. Acesso em 24 de março de 2014. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/politica-e-nobs>.

A Norma Operacional Básica do SUAS representa um estágio importante para a consolidação do SUAS e é produto de ampla discussão nacional com diversos segmentos do setor.

(21) Os dados utilizados nessa pesquisa são extraídos do site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome no ano de 2014.

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132 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Luma Cavaleiro de Macêdo Scaff|

o acompanhamento familiar e individual e maior flexibili-dade nas soluções.

Além disso, o SUAS engloba também os benefícios as-sistenciais como os programas do bolsa família e o progra-ma de segurança alimentar. Também gerencia a vinculação de entidades e organizações de assistência social ao Sistema, mantendo atualizado o CNAS.

4. proteção sociAL básicA. proteção sociAL especiAL. notAs sobre os dAdos dos municípios de são pAuLo e de beLém

Considerando que a assistência pública é de competên-cia comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na forma do art. 23, II da Constituição Social, esse breve relato pretende identificar os valores gastos com a proteção social básica e com a proteção social especial em dois municípios, Belém e São Paulo.

No município de Belém, no que se refere à proteção so-cial básica, são 12 CRAS(s) e destes todos possuem cofinan-ciamento do MDS . O valor pactuado para cofinanciamento mensal do CRAS no município é de R$ 144.000,00, com pre-visão de cofinanciamento no ano de 2013 de R$ 1.728.000,00. O CRAS cofinanciado possui capacidade de atendimento de 12.000 famílias/ano, e capacidade de referenciamento para 60.000 famílias.

Abaixo pode ser visualizado gráfico com a evolução das transferências feitas ao município para o cofinanciamento do(s) CRAS(s) entre 2010 e 2013.

De acordo com os registros do Sistema Nacional de Infor-mação do Sistema Único de Assistência Social (Rede Suas), em dezembro de 2013 foram registradas 2.655 famílias em acompanhamento pelo PAIF, em que 208 Famílias encontra-vam-se em situação de extrema pobreza e 139 Famílias eram do Programa Bolsa Família.

Nesse mesmo período, foram contabilizados um total de 2.930 atendimentos individualizados nos CRAS do município.

Ação valor pactuadosaldo em conta

corrente

PAIF – Serviços de Proteção Social Bási-ca á Família R$ 144.000,00 R$ 1.556.230,00

Ação valor pactuadosaldo em conta

corrente

Serviço de Convivên-cia e Fortalecimento de Vínculos R$ 47.326,00 R$ 347.375,58

Projovem Adolescente R$ 39.257,00 R$ 975.171,65

Equipes Volantes R$ 0,00 R$ 0,00

Programa de Pro-moção do Acesso ao Mundo do Trabalho – ACESSUAS R$ 0,00 R$ 0,00

total r$ 230.583,00 r$ 2.878.777,23

Já em São Paulo, de forma comparada, no que se refere à proteção social básica, o município possui 52 CRAS cofi-nanciados pelo MDS. O valor pactuado para cofinanciamento mensal do CRAS no município é de R$ 624.000,00, com pre-visão de cofinanciamento no ano de 2013 de R$ 7.488.000,00. O CRAS cofinanciado possui capacidade de atendimento de 52.000 famílias/ano, e capacidade de referenciamento para 260.000 famílias.

Abaixo pode ser visualizado gráfico com a evolução das transferências feitas ao município para o cofinanciamento do(s) CRAS(s) entre 2010 e 2013.

De acordo com os registros do Sistema Nacional de Infor-mação do Sistema Único de Assistência Social (Rede Suas), em dezembro de 2013 foram registradas 3.449 famílias em acompanhamento pelo PAIF, em que 94 Famílias encontra-vam-se em situação de extrema pobreza e 118 Famílias eram do Programa Bolsa Família.

Nesse mesmo período, foram contabilizados um total de 44.967 atendimentos individualizados nos CRAS do muni-cípio.

Ação valor pactuadosaldo em conta

corrente

PAIF – Serviços de Proteção Social Bási-ca á Família R$ 624.000,00 R$ 1.189.334,41

Serviço de Convivên-cia e Fortalecimento de Vínculos R$ 2.770,00 R$ 6.307,88

Projovem Adolescen-te R$ 1.883,00 R$ 57.221,67

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133Parte III – Financiamento e Custeio da Assistência Social Assistência Social: breve estudo sobre os gastos com Proteção Social Básica e Proteção Social Especial em SP e Belém|

Ação valor pactuadosaldo em conta

corrente

Equipes Volantes R$ 0,00 R$ 0,00

Programa de Pro-moção do Acesso ao Mundo do Trabalho – ACESSUAS R$ 608.226,00 R$ 1.234.730,01

Total R$ 1.236.879,00 R$ 2.487.593,97

Diferente é o que ocorre com os gastos com os serviços de proteção social especial.

Em Belém, nos serviços de proteção social especial, em agosto de 2013 o município contava com 3 de CREAS(s) co-financiados pelo MDS, sendo 3 CREAS(s) local(s) locais e 0 CREAS(s) regional, tendo um aporte mensal para os Serviços de Proteção e atendimento a Famílias e Indivíduos (PAEFI) no valor de R$ 39.000,00 e uma previsão anual de transferên-cia no montante de R$ 780.000,00.

Ação valor pactuadosaldo em conta

corrente

Serviço de PSE para Pessoas com Defi-ciência, idosas e suas Famílias R$ 0,00 R$ 347.426,54

Serviços de Acolhi-mento R$ 38.000,00 R$ 225.872,58

Programa de Erra-dicação do Trabalho Infantil/Serviço So-cioeducativo/Servi-ço de Convivência e Fortalecimento de vínculo R$ 63.000,00 R$ 902.150,08

Serviço Especializa-do para Pessoas em Situação de Rua – Centro Pop R$ 0,00 R$ 0,00

Serviço de Proteção e atendimento espe-cializado a Famílias e Indivíduos – PAEFI R$ 39.000,00 R$ 696,56

Ação valor pactuadosaldo em conta

corrente

Serviço de Proteção Social ao Adolescente em cumprimento de medida socioeduca-tiva de Liberdade As-sistida e de Prestação de Serviço a comuni-dade – MSE R$ 8.800,00 R$ 0,00

Total R$ 148.800,00 R$ 1.476.145,76

Em agosto de 2013, a proteção social especial em São Paulo contava com 27 de CREAS(s) cofinanciados pelo MDS, sendo 27 CREAS(s) local(s) locais e 0 CREAS(s) regional, tendo um aporte mensal para os Serviços de Proteção e aten-dimento a Famílias e Indivíduos (PAEFI) no valor de R$ 208.000,00 e uma previsão anual de transferência no mon-tante de R$ 4.212.000,00.

valor pactuado/saldo Acumulado das ações de prote-ção social especial (janeiro de 2014)

Ação valor pactuadosaldo em conta

corrente

Serviço de PSE para Pessoas com eficiên-cia, idosas e suas Fa-mílias R$ 0,00 R$ 0,00

Serviços de Acolhi-mento R$ 956.000,00 R$ 3.933.451,16

Programa de Erra-dicação do Trabalho Infantil/Serviço So-cioeducativo/Servi-ço de Convivência e Fortalecimento de vínculo R$ 29.000,00 R$ 16.282,77

Serviço Especializa-do para Pessoas em Situação de Rua – Centro Pop R$ 46.000,00 R$ 0,00

Serviço de Proteção e atendimento espe-cializado a Famílias e Indivíduos – PAEFI R$ 208.000,00 R$ 3.125.832,40

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134 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Luma Cavaleiro de Macêdo Scaff|

Ação valor pactuadosaldo em conta

corrente

Serviço de Proteção Social ao Adolescente em cumprimento de medica Socio Educa-tiva de Liberdade As-sistida e de Prestação de Serviço a comuni-dade – MSE R$ 0,00 R$ 0,00

Total R$ 1.239.000,00 R$ 7.075.566,33

Ainda em se tratando de assistência social, verifica-se que em grande parte são programas que visam a distribui-ção de renda para situações específicas e nesse contexto, a título de ilustração, importante mencionar o Programa Bolsa Família que é parte integrante do Sistema Único de Assistên-cia Social. É um programa de transferência condicionada da renda que beneficia famílias pobres e extremamente pobres inscritas no Cadastro Único.

Segundo dados do Sistema de Avaliação e Gestão da In-formação (SAGI) vinculado ao MDS, o total de famílias ins-critas no cadastro único do Bolsa Família é de 130.917 em maio de 2013 distribuídas da seguinte forma:

a) 97.797 com renda per capita família de até R$ 70,00;

b) 117.491 com renda per capita familiar de até R$ 140,00;

c) 126.827 com renda per capita até meio salário mínimo;

Em março de 2014, o programa beneficiou 98.703 famí-lias representando uma cobertura de 102,7% da estimativa de famílias no município. As famílias recebem benefícios com valor médio de R$ 135,03 e o montante total transferido pelo governo federal alcançou R$ 13.328.322 naquele mês.

Em relação às condicionalidades, o acompanhamento da frequência escolar com base no bimestre de novem-bro de 2013 atingiu o percentual de 95,05% para crian-ças e adolescentes entre 06 e 15 anos, o que equivale a 85.249 alunos acompanhados em relação ao público no perfil equivalente a 89.686. Foi destacada na pesquisa a faixa etária dos jovens entre 16 e 17 anos no percentual de 94,95%, resultando em 21.042 jovens acompanhados de um total de 22.160.

No município de São Paulo, os números são diferentes; um pouco mais extensos, pois o total de famílias inscritas no cadastro único do bolsa família era de 729.987 em maio de 2013 distribuídos da seguinte forma:

a) 271.178 com renda per capita família de até R$ 70,00;

b) 477.991 com renda per capita familiar de até R$ 140,00;

c) 679.197 com renda per capita até meio salário mínimo.

No mês de março de 2014, o total de famílias beneficia-das pelo programa foi de 362.074, representando uma cober-tura de 72,3% da estimativa de famílias pobres no município. As famílias recebem benefícios em valor médio de R$ 126,05 e o montante total transferido pelo governo federal foi de R$ 45.638.386 no mês.

No que se refere às condicionalidades, o acompanhamen-to da frequência escolar com base no bimestre de novembro de 2013 atingiu o percentual de 94,55% para crianças e ado-lescentes entre 05 e 15 anos, o que equivale a 295.064 alunos acompanhados em relação ao público no perfil equivalente a 312.064. Foi apartada uma parcela da pesquisa para analisar jovens de 16 a 17 anos no percentual de 82,50%, resultando em 44.031 jovens acompanhados de um total de 53.434(22).

concLusão

Os dados aqui analisados revelam que o Estado tem reali-zado gastos sucessivos em valores consideráveis com a assis-tência social em larga escala, sejam direcionados aos centros desenvolvidos como São Paulo ou a regiões periféricas como Belém.

O Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome disponibiliza em seu portal ferramentas que permitem, não apenas a transparência dos gastos públicos, como tam-bém explica a estrutura da assistência social, o que permite a participação e a fiscalização por todos os cidadãos.

Com isso, constata-se que, a despeito da questão popu-lacional, os gastos com assistência social são maiores em re-giões mais ricas, no caso, em São Paulo. O valor pactuado para São Paulo é mais que o dobro em comparação a Belém para a proteção social básica. Todavia, o total se aproxima no que se refere ao saldo em conta corrente.

Ainda, o MDS estabeleceu mecanismos de apoio finan-ceiro à gestão descentralizada das ações de assistência social nos municípios, e também nos estados(23).

A estrutura da assistência social importa em diversas fon-tes de financiamento, o que contribui para a ampliação desse setor; primordialmente recursos orçamentários e transferência de rendas entre os entes federativos. Sem dúvida, é função de o Estado atender aqueles que dele necessitam conforme explici-

(22) Todos os dados utilizados nessa pesquisa sobre o Bolsa Família foram extraídos do Sistema de Avaliação e Gestão da Informação (SAGI) integrante do MDS que pode ser consultado no site <http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/FerramentasSAGI/index.php?group=1>. Disponível em 25 de março de 2014.

(23) Em relação às transferências aos municípios, o primeiro mecanismo criado foi o Índice de Gestão Descentralizada Municipal, ainda em 2006, com o objetivo de financiar a melhoria da gestão do Programa Bolsa Família e do Cadastro Único. Posteriormente, com a consolida-ção do SUAS, as ações passíveis de financiamento com os recursos do IGD-PBF foram ampliadas, garantindo o apoio financeiro da União descentralizada dos serviços, programas, projetos e benefícios de assistência social.

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135Parte III – Financiamento e Custeio da Assistência Social Assistência Social: breve estudo sobre os gastos com Proteção Social Básica e Proteção Social Especial em SP e Belém|

tado no item 01 desse ensaio. Os dados evidenciados demons-tram justamente as transferências de valores, mas esquecem de mensurar o desenvolvimento das pessoas envolvidas.

Com base nesses dados, verifica-se que a assistência no Brasil é realizada por diferentes programas de transferência de renda que envolvem, não apenas recursos orçamentários, como também repasses entre os entes federados; dinheiro esse que também é distribuído à população. Persiste questão delicada qual seja a mera distribuição de recursos não impli-ca na possibilidade de desenvolver os setores considerados mais pobres e precários da sociedade.

A mera transferência de receitas é inócua caso falte a pre-sença estatal para o desenvolvimento de capacidades(24) a fim de que os envolvidos possam assegurar a si condições dignas do direito à vida.

bibLiogrAfiA

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Anexo i recursos repAssAdos peLo fnAs (fAf). série

histÓricA por região

Fonte: CGEOF/DEFNAS/SNAS

Obs.: Os valores apresentados referem-se aos saldos exis-tentes em 31.12.2012(25)

(24) SEM, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

(25) MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE A FOME. Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação – SAGI. Disponível em: <http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/FerramentasSAGI/index.php?group=1>. Acesso em 29 de março de 2014.

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parte ivAspectos Criminais

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a assistência social e o crime de advocacia administrativa: uma interpretação necessária

Denis Renato dos Santos Cruz(*)

1. breves notAs AcercA dA AssistênciA sociAL no brAsiL

A assistência social tem sido preocupação constante do Brasil, tanto que “sempre se fez presente por meio de práti-cas e fundamentos teórico-ideológicos próprios (como, por exemplo, a caridade, a benemerência e o auxílio aos neces-sitados), os quais podem ser considerados as raízes da assis-tência social, no modo como é conhecida nos dias atuais” (CEDENHO, 2012, p. 22).

Essa preocupação se materializa desde o século XVI, épo-ca em que ainda éramos colônia de Portugal (1500-1822), ten-do iniciado com as Irmandades de Misericórdia; passado pelos socorros públicos durante o Império (1822-1889); pela criação da Liga Brasileira de Assistência (anteriormente denominada Legião de Caridade Darcy Vargas), durante a Era Vargas (1930-1945); entre outras iniciativas voltadas a garantir assistência aos mais necessitados (CEDENHO, 2012, p. 23-48).

Mas foi o advento da Constituição Federal de 1988 que trouxe, dentre os direitos sociais, “a assistência aos desampa-rados” (art. 6º), além de prever, em sua art. 203, caput – inte-grante do Título Da Ordem Social –, que “[a] assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social”.

Assim é lícito concluir, como propõe Antonio Carlos Cedenho, que a assistência social:

(...) tem por característica a não contributividade, ob-jetivando atender exatamente àquela parcela da popula-ção que de alguma forma é marginalizada, seja porque não tem trabalho, seja porque não tem acesso ao estudo e consequentemente a oportunidades de trabalho, seja ainda aquela parcela que por falta de acesso à correta ali-mentação e cuidados médicos sofre debilidades físicas e

convive com crônicos problemas de saúde, e assim como os demais acaba sendo preterida pelo mercado de traba-lho (CEDENHO, 2012, p. 96).

Marisa Ferreira dos Santos, ao tratar da disciplina cons-titucional da assistência social, pronuncia:

Para a CF a Assistência Social é instrumento de trans-formação social, e não meramente assistencialista. As prestações de assistência social devem promover a in-tegração e a inclusão do assistido na vida comunitária, fazer com que, a partir do recebimento das prestações assistenciais, seja “menos desigual” e possa exercer ativi-dades que lhe garantam a subsistência (SANTOS, 2012, p. 107; grifo no original).

Já a Lei de Organização da Assistência Social (Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993), em vigor até os dias atuais, veicula a seguinte conceituação:

Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Esta-do, é Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.

Dânae Dal Bianco, ao trator do assunto, afirma:

A Assistência Social é composta por programas de acesso universal, que independem de contribuição dos beneficiários, e é direcionada ao combate da pobreza, à redução das desigualdades sociais, à proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência, à velhice e à pes-soa portadora de deficiência; enfim, constitui um com-plexo de programas e políticas destinados à assistência a pessoas que, por motivos diversos, encontram-se em situação de fragilidade social. Dentre as diversas ações da

(*) Pós-graduado pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal. Bacharel em Direito e Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Bacharel e Li-cenciado em História pela Universidade de São Paulo – USP. Analista Judiciário e Assessor de Desembargador Federal no Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

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Assistência Social, destacam-se a concessão de benefícios de renda mensal em dinheiro a idosos e portadores de deficiência (usualmente denominado LOAS, pois previs-to na Lei Orgânica da Assistência Social, Lei n. 8.742, de 7.12.1993) e o programa Bolsa Família (Lei n. 10.836, de 9.1.2004) (DAL BIANCO, 2011, p. 13; grifo no original).

Dessa forma, é inegável a importância da assistência social no ordenamento jurídico brasileiro, em especial pelo regramento constitucional que lhe foi conferido pela Carta de 1988, que a alçou a “verdadeiro direito fundamental da pessoa humana a que corresponde o dever do Estado, me-diante o estabelecimento de política de Seguridade Social que proveja os mínimos sociais” (SILVA, 2012, p. 797-798).

2. A AssistênciA sociAL e A AdvocAciA AdministrAtivA

2.1. A advocacia administrativa enquanto ilícito administrativo

A advocacia administrativa, consistente “na defesa de in-teresse privado perante órgãos públicos, através do patrocí-nio do servidor público” (MATTOS, 2012, p. 640), é prática há muito vedada na legislação brasileira, dada sua flagrante imoralidade.

Tanto assim é que a Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, ao tratar das proibições dos servidores públicos fede-rais, listou essa conduta como ilícito administrativo em seu art. 117, XI, in verbis:

Art. 117. Ao servidor é proibido:

XI - atuar, como procurador ou intermediário, junto a repar-tições públicas, salvo quando se tratar de benefícios previden-ciários ou assistenciais de parentes até o segundo grau, e de cônjuge ou companheiro;

Ao comentar esse dispositivo, Mauro Roberto Gomes de Mattos estatui:

(...) o tipo objetivo da presente infração disciplinar é o patrocínio pelo servidor público, direta ou indireta-mente, junto a repartições públicas, ainda que não no exercício do cargo, emprego ou função mas valendo-se de sua condição funcional, para interceder por direito alheio.

Por patrocínio, pode se identificar a defesa de interes-ses próprios ou alheios, através de um tipo de advocacia, onde o servidor público atua como patrono, cuidando e fazendo a defesa de um interesse privado perante a Ad-ministração Pública; ou a interposta pessoa, sob seu co-mando o faz (MATTOS, 2012, p. 640-641).

O objetivo da norma é, então, coibir as práticas desvian-tes dos servidores públicos, atentatórias à impessoalidade e moralidade, capituladas como advocacia administrativa.

2.2. A advocacia administrativa enquanto crime

A advocacia administrativa passou a ser criminalizada apenas com a edição do Código Penal de 1940, pois antes “não passava de um ilícito administrativo ou de uma falta disciplinar” (PAGLIARO e COSTA JR., 2006, p. 137), como, aliás, consta na Exposição de Motivos do Código:

Dos crimes contra a administração pública

84. Em último lugar, cuida o projeto dos crimes con-tra a administração pública (...). Várias são as inovações introduzidas, no sentido de suprir omissões ou retificar fór-mulas da legislação vigente. Entre os fatos incriminados como lesivos do interesse da administração pública, figuram os seguintes, até agora injustificadamente, deixados à mar-gem da nossa lei penal: (...) advocacia administrativa (isto é, “patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado junto à administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário”); (grifo nosso).

Nesse passo, importante relembrar que o crime de ad-vocacia administrativa recebe contornos específicos quando estamos a falar da proteção à ordem tributária ou, ainda, a procedimentos licitatórios, a teor do disposto no art. 3º, II, da Lei n. 8.137/90 e no art. 91 da Lei n. 8.666/93, que preveem, respectivamente:

Art. 3º Constitui crime funcional contra a ordem tributária, além dos previstos no Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal (Título XI, Capítulo I):

II – exigir, solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de iniciar seu exercício, mas em razão dela, vantagem indevida; ou acei-tar promessa de tal vantagem, para deixar de lançar ou cobrar tributo ou contribuição social, ou cobrá-los parcialmente. Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.

Art. 91. Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração, dando causa à instauração de lici-tação ou à celebração de contrato, cuja invalidação vier a ser decretada pelo Poder Judiciário:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Todavia, considerando que os tipos penais acima trans-critos tratam de situações específicas e o objeto deste artigo não é a análise do crime de advocacia administrativa perante a administração tributária ou em procedimentos licitatórios, iremos nos ater à sua disciplina no Código Penal.

E assim dispõe o art. 321 do Código Penal, que tipifica a chamada advocacia administrativa:

Advocacia administrativa

Art. 321 – Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse priva-do perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário:

Pena – detenção, de um a três meses, ou multa.

Parágrafo único – Se o interesse é ilegítimo:

Pena – detenção, de três meses a um ano, além da multa.

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141Parte IV – Aspectos Criminais A Assistência Social e o Crime de Advocacia Administrativa: uma interpretação necessária|

A propósito desse delito, inicialmente é preciso esclare-cer que apesar de seu nomen juris dar a entender que é vol-tado somente a advogados, não é este o caso, pois o termo “advocacia” é utilizado “no sentido de ‘promoção de defesa’ ou ‘patrocínio’” (NUCCI, 2006, p. 922).

De todo modo, trata-se de um crime próprio, ou seja, “que só pode ser cometido por uma determinada categoria de pessoas, pois pressupõe no agente uma particular con-dição ou qualidade pessoal” (JESUS, 1986, p. 166), in casu, enquadrar-se no conceito de “funcionário público” trazido pelo art. 327, caput e § 1º, do Código Penal(1).

Cezar Roberto Bitencourt, ao examinar o tipo do art. 321 do Código Penal, enuncia:

A ação incriminada consiste em patrocinar (advogar, proteger, defender), direta ou indiretamente, interesse privado perante a Administração Pública, valendo-se da qualidade de funcionário, isto é, aproveitando-se da faci-lidade de acesso junto a seus colegas e da camaradagem, consideração ou influência de que goza entre estes. Com o prestígio que tem no interior das repartições públicas e a facilidade de acesso às informações ou troca de favores, a interferência de um funcionário público, patrocinan-do interesse privado de alguém, retira a imparcialidade e a isenção que a Administração Pública deve manter na administração de interesse público. O que se reprime efe-tivamente é o patrocínio de interesse privado, que pode, inclusive, chocar-se com os próprios interesses da Ad-ministração, especialmente na forma qualificada em que o interesse é ilegítimo (BITENCOURT, 2012, p. 1.221).

Em acréscimo, trazemos os ensinamentos de Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Jr. acerca do delito em estudo:

Aquele que exercita uma função pública poderá lici-tamente fazer valer sua condição de funcionário em suas relações sociais para assegurar melhor exercício de sua função ou para obtenção de maior prestígio pessoal. Po-derá ainda exercitá-la de forma ilícita, com a finalidade de prevaricar ou de alterar em sua vantagem a condição de paridade que deveria existir entre os cidadãos diante da Administração Pública.

Esta última hipótese é contemplada pelo art. 321. De acordo com ela, o agente se prevalece indevida-mente de sua qualidade para obtenção de vantagem como particular. Em razão de sua qualidade, tem ele um acesso mais fácil dentro da própria Administração e perante seus colegas.

(...)

A essência do ilícito, mais do que o patrocínio do in-teresse, reside no abuso da qualidade de funcionário. Tal

abuso poderá fazer-se direta ou indiretamente. Ou seja, o funcionário poderá valer-se indevidamente de sua qua-lidade em contato direto com a Administração Pública, realizando ele mesmo a defesa dos interesses. Ou, en-tão, poderá servir-se de outra pessoa, um testa-de-ferro, para obter, graças ao trabalho deste, o mesmo resultado. Nessa segunda hipótese, o abuso não se limita ao rela-cionamento com o intermediário, refletindo-se também em seu relacionamento com a administração pública. Em outras palavras: é necessário que a qualidade de funcio-nário prevaleça, ainda que indiretamente, junto à Admi-nistração da qual se espera a providência (PAGLIARO e COSTA JR., 2006, p. 138-139).

Logo, tal qual o art. 117, XI, da Lei n. 8.112/90 o faz no âmbito disciplinar, o art. 321 do Código Penal reprime a cha-mada advocacia administrativa no âmbito criminal, demons-trando a necessidade de refrear esta nefasta prática dentro da Administração Pública.

2.3. o crime de advocacia administrativa e a importância da assistência social: uma interpretação necessária

Diante do que foi dito até agora, podemos perceber que a importância atribuída pela Constituição Federal à seguridade social – em que está inserida a assistência social – influenciou o legislador ordinário que, ao editar a Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, fez ressalva expressa de que a defesa de interesse privado perante a Administração Pública não confi-gura o ilícito disciplinar descrito em seu art. 117, XI, “quan-do se tratar de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até o segundo grau, e de cônjuge ou companheiro”.

Quanto a tudo isso, Ivan Barbosa Rigolin assevera:

No inc. XI se impede ao servidor exercer a chamada “advocacia administrativa”, que é aquela modalidade de tráfico ou trânsito de influência, dentro da Administra-ção Pública, a qual pode eventualmente seduzir o servi-dor amigo de outros servidores com poder decisório em questões administrativas. Tal conduta é tipificada, aliás, pelo Código Penal, art. 321, como crime contra a Admi-nistração.

Esse modo de proceder, da mais evidente imorali-dade, por discriminatório, é excepcionado quando se tratar de pleiteamento, por servidor público, em nome de algum seu parente até o segundo grau, ou de cônju-ge ou companheiro, de benefícios previdenciários ou assistenciais.

A exceção em favor de tais benefícios foi aberta pela lei em razão do induvidoso caráter assistencial, social, hu-

(1) Art. 327. Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública. § 1º. Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.

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142 Benefício Assistencial – Lei n. 8.742/93 Temas Polêmicos Denis Renato dos Santos Cruz|

manitário, benemérito, que revestem; dificilmente, com efeito, alguém pleiteará, de maneira imoral ou egoistica-mente interessada, benefícios previdenciários para seus parentes (RIGOLIN, 2010, p. 267-268; grifo nosso).

Portanto, não há dúvidas acerca da aplicação, no âmbito disciplinar, da ressalva trazida pelo inciso XI do art. 117 da Lei n. 8.112/90.

Contudo, existe a possibilidade de no âmbito criminal essa orientação não ser observada de plano, ante a ausência de previsão expressa dessa excludente na redação original do art. 321 do Código Penal, ainda em vigor.

Nesse contexto, devemos ter em mente que o art. 321 do Código Penal data de 1940 e não foi objeto de alteração ou atualização legislativa, o que, aliado ao fato de o direito ser dinâmico e sistêmico, comportando e merecendo interpreta-ção integrativa, autoriza a aplicação da excludente constan-te no inciso xi do art. 117 da Lei n. 8.112, de 11 de dezem-bro de 1990, para as situações que, em tese, configurem o crime de advocacia administrativa.

Quanto a esse aspecto, convém mencionar a existência na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei n. 3.743/2004(2), que dá a seguinte redação ao caput do art. 321 do Código Penal:

Art. 321 – Patrocinar, direta ou indiretamente, interesse priva-do perante a administração pública, valendo-se da qualidade de funcionário, salvo os benefícios previdenciários ou assistenciais para ascendentes, descendentes, cônjuge ou irmão: (grifo nosso).

Aliás, o Projeto é calcado exatamente na existência da previsão da excludente na Lei n. 8.112/90, como se nota em sua justificativa, da lavra do então Deputado Federal Coronel Alves:

Esse projeto vem cristalizar o que já existe na lei n. 8.112/90, Regime Jurídico do Servidor Público, pois ela permite a mediação de interesse previdenciário ou assis-tencial para ascendente ou descendente.

Assim esse projeto vem conceder o tratamento iso-nômico para os demais agentes públicos, uma vez que é muito comum a família se socorrer do parente servidor para a obtenção de um legítimo benefício.

Entretanto, não há previsão acerca da análise de tal Pro-jeto pelo Plenário da Câmara dos Deputados, especialmente diante da adiantada tramitação do Projeto de Lei do Senado n. 236, de 9 de julho de 2012, que reforma o Código Penal Brasileiro e, em seu art. 290, tão somente aumentou as penas cominadas à advocacia administrativa, pois manteve a reda-ção original do art. 321 do Código Penal de 1940, ou seja, nada falou acerca da excludente ora em exame(3).

Não obstante, o fato é que, independentemente de al-teração legislativa, resta devidamente autorizada a aplicação da excludente prevista no inciso XI do art. 117 da Lei n. 8.112/90 quanto ao crime de advocacia administrativa, disci-plinado pelo art. 321 do Código Penal.

E há que ser assim porque se nem o direito administra-tivo pune a dita advocacia administrativa nas hipóteses de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até o segundo grau, cônjuge ou companheiro do servidor, quanto mais o direito penal, que “é considerado a ultima ratio, isto é, a última cartada do sistema legislativo, quando se entende que outra solução não pode haver senão a criação de lei penal incriminadora, impondo sanção penal ao infrator” (NUCCI, 2006, p. 69).

Acreditamos, ainda, que situação se justifica ainda mais quando se está a tratar de benefício assistencial, visto ser a assistência social “o instituto que melhor atende o precei-to de redução das desigualdades sociais e regionais, porque se destina a combater a pobreza, a criar as condições para atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais” (SANTOS, 2012, p. 109).

Necessário se faz, portanto, estabelecer uma interpreta-ção do crime de advocacia administrativa consentânea com a ordem constitucional vigente, que inseriu a assistência social na categoria dos direitos fundamentais, afastando sua inci-dência quando o patrocínio dos interesses de parentes até o segundo grau, cônjuge ou companheiro relacionar-se a bene-fícios assistenciais.

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(2) Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=257319>. Acesso em: 26 de abril de 2014.

(3) Disponível em: <http://www12.senado.gov.br/noticias/Arquivos/2013/12/leia-a-integra-do-relatorio-final-sobre-a-reforma-do-codigo--penal>. Acesso em: 26 de abril de 2014.

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143Parte IV – Aspectos Criminais A Assistência Social e o Crime de Advocacia Administrativa: uma interpretação necessária|

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