Benjamin a Crise Do Romance

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  • 7/25/2019 Benjamin a Crise Do Romance

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    A crise do romance

    Sobre Alexandersplatz, de Diblln

    o sentido da poesia pica a existncia um mar. No

    h nada mais pico que o mar. Naturalmente podemos rela

    cionar-nos corn o mar de diferentes formas. Podemos por

    exemplo deitar na praia ouvir as ondas ou collier os molus

    cos arremessados na areia. o que faz o poeta pico. Mas

    tambm podemos percorrer o mar. Corn muitos objetivos e

    sem objetivo nenhum. Podemos fazer uma travessia maritima

    e cruzar o oceano sem terra vista vendo unicamente o cu e

    o mar. o que faz o romancista. Ele o mudo o solitrio.

    0 homem pico limita-se a repousar. o poema pico o povo

    repousa depois do dia de trabalho: escuta sonha e colhe. 0

    romancista

    se

    separou do povo e do que ele faz. A matriz do

    romance o individuo em sua solido o homem que no pode

    mais falar exemplarmente sobre suas preocupaes a quem

    ningum pode dar conselhos e que no sabe dar conselhos a

    ningum. Escrever um romance significa descrever a existncia

    humana levando o incomensurvel ao paroxismo. A distncia

    que separa o romance da verdadeira epopia pode ser avaliada

    se

    pensarmos na obra de Homero ou Dante. A tradio oral

    *) D5blin, Alfred,

    Berlin Alexanderp/atz

    ie

    Geschichte von Franz Biber-

    kopft

    Berlim, S. FischerVerlag,1929.530p.

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    MAGIA E rtcNICA, ARTE E POLITICA 55

    patrimnio

    da

    epopia,

    nada

    tem etn comum com o que cons

    titui a substatlcia do romance. 0 que distingue o romance de

    todas as outras formas de prosa - contos de fadas, sagas,

    provrbios, farsas - que ele nem provm

    da

    tradiio

    oral

    nem a alimenta. Essa caracteristica o distingue, sobretudo, da

    narrativa, que representa,

    na

    prosa, o espirito pico em toda a

    sua pureza. Nada contribui mais para a perigosa mudez do

    homem interior,

    nada

    mata mais radicalmente o espirito da

    narrativa que o espao

    cada

    vez maior e cada

    vez

    mais impu

    dente que a leitura dos romances ocupa em nossa existncia.

    Por isso, a citao seguinte contm a voz do narrador nato,

    insurgindo-se contra o romancista:

    No

    quero alongar-me

    na

    tese de que considera tilliberar do livro o elemento pico ..

    til sobretudo no que diz respeito linguagem. 0 livro a

    morte das linguagens autnticas. 0 poeta pico que se limita a

    escrever nilo dispe das foras lingisticas mais importantes e

    mais constitutivas . Flaubert nio teria falado assim.

    ssa tese

    de Dblin. Ele a exps pormenorizadamente no primeiro

    anurio da Seio de Poesia da Academia Prussiana das Artes,

    e

    sua

    Construo da obra pica

    uma

    contribuiio magistral

    e bem documentada para a compreensio da crise do romance,

    que se inicia corn a restauraio

    da

    poesia pica e que encon

    tramos

    em toda

    parte, inclusive no drama. Quem refletir

    so-

    bre essa palestra de Dblin nio precisar mais ater-se aos

    indicios extemos dessa

    crise,

    que se manifesta no fortaleci

    mento da radicalidade pica. Nio se surpreender mais corn a

    avalancha de romances biogrficos e hist6ricos. Como terico,

    Doblin no se resigna corn essa

    crise,

    mas antecipa-se a ela e a

    transforma em coisa sua. Seu ltimo livro mostra que

    em

    sua

    produiio a teoria e a prtica coincidem.

    No h

    nada

    mais instrutivo que comparar essa atitude

    de Dblin com a atitude i.gnalmente soberana, i.gnalmente

    concretizada na prtica, igualmente precisa e, no entanto, em

    tudo oposta primeira, que se manifesta no Diario dos moe-

    deiros falsos recentemente publicado por Andr Gide. A si

    tuao atual da literatura pica se exprime corn toda a nitidez,

    a contrario sensu na inteligncia critica

    de

    Gide. Nesse co

    mentrio autobiogrfico so bre seu ltimo romance, o autor

    desenvolve a teoria do roman

    pur .

    Corn o mximo de suti

    leza, descarta os elementos narrativos simples, combinados

    entre si de forma linear ( caracteristicas importantes

    da

    epo-

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    6 WALTER

    BENJAMIN

    pia), em beneficia de procedimentos mais intelectualizados,

    puramente romanescos, o que tambm significa, no caso, ro

    mnticos. A posio dos personagens corn relao

    ao, a

    posio do autor corn relao a eles e

    sua tcnica, tudo isso

    deve fazer parte integrante do proprio romance. Em suma,

    esse roman

    pur

    interioridade pura, no conhece a dimen

    so externa e constitui, nesse sentido, a antitese mais com

    pleta da atitude pica pura, representada pela narrativa.

    0 ideal gideano do romance, exatamente oposto ao de Dblin,

    o romance escritur l puro. As posies de Flaubert so de

    fendidas talvez pela ultima vez. No admira que a palestra de

    Dblin represente a reao mais extrema a esse ponto de vista.

    Talvez os senhores levantem as mos

    cabea, se eu lhes

    disser que aconselho os au ores a serem decididamente liricos,

    dramticos, e mesmo reflexives, em seu trabalho pico.

    Mas

    insisto nisso.

    A perplexidade de muitos leitores desse novo livro mostra

    como essa insistncia foi tenaz. verdade que raramente se

    havia narrado nesse estilo, raramente a serenidade do leitor

    fora perturbada

    por

    ondas to altas de acontecimentos e re

    flexes, raramente ele fora assim molhado, at os ossos, pela

    espuma da linguagem verdadeiramente falada. Mas no

    ncessrio usar express5es artificiais, falar de dialogue int

    rieur ou aludir a Joyce. Na realidade, trata-se de uma coisa

    inteiramente diferente. 0 principio estilistico do livro a mon

    tagem. Material impresso de toda ordem, de origem pequeno

    burguesa, historias escandalosas, acidentes, sensaes de

    1928, canes populares e anuncios enxameiam nesse texto

    /1

    montagem faz explodir o romance , estrutural e estilistica

    mente, e abre novas possibilidades, de carter pico. Princi

    palmente na forma. 0 material da montagem est longe de ser

    arbitrrio. A verdadeira montagem se baseia no documenta.

    Em sua luta fantica contra a obra de arte, o dadaismo colo

    cou a seu servio a vida cotidiana, atravs da montagem. Foi o

    primeiro a proclamar, ainda que de forma insegura, a hege

    monia exdusiva do autntico.

    Em

    seus melhores momentos,

    o cinema tentou habituar-nos montagem. Agora, ela se tor

    non pela prQeira vez utilizvel

    para

    a literatura pica. Os

    versicules da Blblia, as estatisticas, os textos publicitrios so

    usados por Dblin para conferir autoridade ao pica. Eles

    correspondem aos versos estereotipados da antiga epopia.

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    MAGIA E

    'ttCNICA,

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    Tlio densa essa montagem que o autor, esmagado por

    ela, mal consegue tomar a palavra. Ele reservou

    para

    si a

    organizalio dos capitulos, estruturados no estilo das

    narra

    es populares; quanto ao resto, nlio tem pressa em fazer-se

    ouvir. (Ele ter, mais tarde, o que dizer.)

    J

    surpreendente por

    quanto tempo ele acompanha seus personagens, sem correr o

    risco

    de faz-los falar. Como o poeta pico, ele chega at as

    coisas corn grande lentidlio. Tudo o que acontece, mesmo o

    mais repentino, parece preparado h longo tempo. Inspira-o,

    nessa atitude, o proprio esplrito do dialeto berlinense. 0 ritmo

    do seu movitrtento vagaroso. Pois o berlinense fala como o-

    nhecedor, relacionando-se amorosamente corn o que diz. Ele

    degusta o que diz. Quando insulta, zomba ou ameaa, ele

    toma algum tempo para faz-lo. Glassbrenner acentuou as

    qualidades dramticas do dialeto berlinense. Aqui ele son

    dado em suas profundidades picas; o navio de Franz Biber

    kopf tem uma carga pesada, mas nlio corre o risco de enca

    lhar. 0 livro um monumento a Berlim, porque o narrador

    nlio se preocupou em cortejar a cidade, corn o sentimenta

    lismo de quem celebra a terra natal. Ele fala

    a partir

    da

    i-

    dade. Berlim seu megafone. Seu dialeto uma das foras

    que se voltam contra o carter fechado do velho romance. Pois

    esse livro

    nada

    tem de fechado. Ele tem sua moral, que afeta

    mesmo os berlinenses. (0 Abraham Tonelli de Tieck, j ha

    via mostrado em alio

    o

    focinho berlinense , mas ningum

    tinha ousado ainda curar essa enfermidade.)

    Vale a pena investigar essa cura, atravs de Franz Biber

    kopf. 0 que

    se

    passa corn ele? Mas uma questlio prvia

    se

    impe:

    porque

    o livro se chama

    Berlin Alexanderp/atz

    en

    quanto

    A historia de Franz iberkopf s6

    aparece como sub

    titulo? 0 que , em Berlim, Alexanderplatz? o lugar onde

    se

    dlio, nos ultimos dois anos, as transformaes mais violentas,

    onde guindastes e escavadeiras trabalham incessantemente,

    onde o solo treme corn o impacto dessas mquinas, corn as

    colunas de autom6veis e corn o rugido dos trens subterrneos,

    onde

    se

    escancaram, mais profundaniente que em qualquer

    outro lugar, as visceras

    da

    grande cidade, onde se abrem luz

    (*) A berliner chnauze design

    o estilo

    de

    falar do

    berlinense: irreverente

    rpido na rq,Uca eocasionalmente agressivo. N. T.)

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    W LTER BENJ MIN

    do dia os patios dos fundos

    em

    tomo

    da

    praa Georgenkirch,

    e onde se preservaram mais silenciosamente que em outras

    partes da cidade, nos labirintos

    em tomo

    da Marsiliusstrasse

    (onde as secretrias

    da

    Policia dos Estrangeiros

    estio

    alojadas

    em coryios) e em

    tomo da

    Kaiserstrasse (onde as prostitutas

    praticam, noite, suas rondas imemoriais), remanescentes in

    tactos

    da

    ltima dcada do sculo passado. Nio um bairro

    industrial, e sim comercial, habitado pela pequena burguesia.

    No meio de tudo isso, o negativo sociol6gico desse meio: os

    marginais, reforados pelos contingentes de desempregados.

    Biberkopf um deles. Desempregado, ele deixa a prisio de

    Tegel, mantm-se honesto durante algum tempo, abre aigu

    mas lojas, renuncia vida respeitvel, e toma-se membro de

    uma quadrilha. 0 raio em que se move essa existncia, na

    praa, no mximo de m l metros. Alexanderplatz rege sua

    vida.

    Um

    regente cruel, se se quiser. E seu poder ilimitado.

    Porque o lei tor se esquece de tudo o que niio seja ele, aprende

    a preencher, nesse espao, sua existncia e descobre como sa

    bia pouco a seu respeito.

    Tudo

    muito derente do que ima

    ginava o leitor ao

    tirar

    esse livro

    da

    estante. Ele

    nio

    tem o

    aspecto de um romance social . Ningum dorme aqui ao

    ar

    livre. Todos os personagens tm um quarto. Nenhum deles

    visto procura de um quarto. 0 transeunte que primeiro pe

    netra nessa praa parece ter perdido seus temores. Sem d

    vida, toda essa gente miservel. Mas em seu quarto que ela

    miservel. Como aconteceu isso? 0 que significa isso? Sig

    nifica duas coisas. Uma grande, e outra restritiva. Algo de

    grande: a misria

    nio

    ,

    de fato, como o pequeno Moritz a

    imaginava. Pelo menos a misria real, em contraste corn a

    misria temida.

    Nio

    apenas as pessoas, mas tambm a po

    breza e o desespero precisam adaptar-se s circunstncias,

    precisam virar-se . Mesmo os seus agentes, o amor e o

    -

    cool, revoltam-se freqentemente. Nio h nada de tio grave

    corn que niio possamos conviver durante algum tempo. Nesse

    livro, a misria ostenta seu lado jovial.

    la

    se senta corn os

    homens

    na

    mesma mesa, sem que corn isso a conversa se inter

    rampa; eles continuarr. sentados e

    nio

    param de corner.

    uma verdade ignorada pela nova subliteratura naturalista.

    Por isso, um grande

    narrador

    era necessrio para reafirmar

    essa verdade. Diz-se que Lenin s6 odiava uma coisa corn 6dio

    mais fantico que a misria:

    wmpactuar

    corn a misria. Essa

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    MAGIA

    E 'i'SCNICA,

    ARTE

    E

    POLITICA 9

    atitude, corn efeito, de certo modo burguesa; no somente

    no sentido mesquinho do desleixo, mas no sentido maior

    da

    sabedoria. Nesse sentido, a histria de Dblin burguesa

    numa

    acepo muito mais restritiva que se considerssemos

    apenas

    sua

    tendncia e

    sua inten_o:

    ela burguesa por sua

    origem. 0 que vern tona nesse livro, de modo fascinante

    e corn

    uma

    fora incomparvel, a grande seduo de Charles

    Dickens,

    em

    cuja

    obra

    os burgueses e os criminosos coexistem

    em grande harmonia, porque seus interesses, embora opostos,

    situam-se no mesmo mundo. 0 mundo desses marginais

    homlogo ao mundo burgus; a trajetria de Franz Biber

    kopf, de proxeneta a pequeno-burgus, descreve apenas uma

    metamorfose herica da conscincia burguesa.

    Poderiamos responder teoria do

    roman

    pur dizendo

    que o romance semelhante ao mar. Sua unica pureza est no

    sai. Quai o sai desse livro? Acontece corn osai pico o mesmo

    que corn osai quimico: ele toma mais durveis as coisas s

    quais se mescla. E a durabilidade um critrio da literatura

    pica,

    num

    sentido inteiramente distinto da durabilidade que

    caracteriza os demais gneros literrios. Mas no se

    trata

    de

    uma durao no tempo, e sim no leitor. 0 verdadeiro lei tor l

    uma obra pica para "conservar" certas coisas. E, sem du

    vida, ele conserva duas coisas desse livro: o episdio do brao

    e o de Mietze. Por que Franz Biberkopf jogado debaixo de

    um carro, perdendo um brao? E porque he tiram a amiga e

    a matam? A resposta est

    na

    segunda pgina do livro. "Por

    que ele exige da vida mais que um sanduche." Nesse caso,

    no exige refeiies abundantes, dinheiro ou mulheres, mas

    algo de pior. Seu

    grande

    focinho" fareja

    uma

    coisa que no

    tem forma. Ele est consumido por uma forne - a do destino.

    Nada mais. Esse homem precisa pintar o diabo

    na

    parede,

    alfresco

    sempre de novo. No admira, portanto, que sempre

    de novo o diabo aparea, para busc-lo. Como essa forne de

    destino saciada, saciada por toda a vida, cedendo lugar

    satisfao corn o sanduche, e como o marginal se transforma

    num

    sbio - esse o itinerrio de sua vida.

    No

    fim,

    Franz

    Biberkopf se converte

    num

    homem sem destino, "esperto",

    como dizem os berlinenses. Dblin descreveu esse "amadure

    cimento" de Franz corn uma arte inesquecvel. Assim como

    durante o Barmiswoh os judeus divulgam criana o seu se

    gundo nome, at ento secreto, Dblin d a Biberkopf um

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    6 WALTER BENJAMIN

    segundo prenome. Ele

    se

    chama, agora, Franz Karl.

    Ao

    mes

    mo

    tempo, acontece algo de muito estranho corn esse Franz

    Karl, que

    se

    tomou ajudante de porteiro numa fbrica.

    ia

    podemos

    jurar

    que

    DOblin

    tivesse percebido isso, embora co

    nhecesse seu heroi tilo intimamente. 0 que acontece o

    se-

    guinte: Franz Biberkopf deixa de ser exemplar e ascende, em

    vida, ao cu dos.personagens romanescos. A esperana e a

    memoria o consolarlo, doravante, nesse cu, seu cubiculo de

    porteiro, porque mais esperto que

    os

    outros. Mas nos nilo

    o visitaremos nesse cubiculo. Pois essa a lei

    da

    forma roma

    nesca: no momento em que o heroi consegue ajudar-se, sua

    existncia

    nilo

    pode mais ajudar-nos. E se certo que essa

    verdade

    vern

    luz, em sua forma mais grandiosa e mais

    -

    placvel,

    naEducation sentimentale

    entilo a historia de Franz

    Biberkopf a

    Education sentimentale

    dos marginais. 0 es-

    tgio mais extremo, mais vertiginoso, mais definitivo, mais

    avanado,

    do

    velho romance de formaio

    do

    periodo bur

    gus.

    1930