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1 BEPPE FENOGLIO E SEUS APPUNTI PARTIGIANI: UMA EXPERIÊNCIA LITERÁRIA DE GUERRA CIVIL Gabriela Valente Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos/ Literatura Italiana). Orientador: Professor Doutor Marco Lucchesi Rio de Janeiro/ Fevereiro de 2011 Faculdade de Letras/ UFRJ

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BEPPE FENOGLIO E SEUS APPUNTI PARTIGIANI:

UMA EXPERIÊNCIA LITERÁRIA DE GUERRA CIVIL

Gabriela Valente

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de Pós-graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários para a obtenção do

título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos

Literários Neolatinos/ Literatura Italiana).

Orientador: Professor Doutor Marco Lucchesi

Rio de Janeiro/ Fevereiro de 2011

Faculdade de Letras/ UFRJ

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Ao Pedro,

pelo amor que cultivamos juntos.

À minha mãe,

que num ato de coragem e amor nos levou à Itália,

de onde nunca mais saímos.

Ao meu pai,

por quem voltei e fiquei.

Ao Ricardo, que foi comigo,

voltou comigo e segue junto,

nessa saudade silenciosa.

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Escrevo with a deep distrust and a deeper faith.

Beppe Fenoglio

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Resumo

Esta dissertação consiste na análise do livro Appunti partigiani, de Beppe Fenoglio.

Para isso, faz uso de dois principais recursos: um historiográfico e outro teórico. Num

primeiro momento, realiza uma retomada histórica da Resistência e do fim da Segunda

Guerra Mundial na Itália, a partir do livro de Claudio Pavone, Una guerra civile. No

momento seguinte, alcança os textos de Walter Benjamin que tratam dos conceitos de

Erfahrung, Erlebnis e ―rememoração‖. Ao fim, chega à análise do livro a partir de suas

recorrências formais e conteudísticas, seguindo diretrizes da teórica Maria Corti. O

apêndice desta pesquisa é a tradução instrumental do livro estudado, inédito em língua

portuguesa.

Palavras-chave: Beppe Fenoglio; Walter Benjamin; Resistência italiana; Neorrealismo

literário italiano.

Riassunto

Questa tesi consiste nell‘analisi del libro Appunti partigiani, di Beppe Fenoglio. A tal

proposito si utilizano due risorse principali: una storica e l‘altra teorica. In un primo

momento, si sviluppa la fase storica della Resistenza e della fine della Seconda Guerra

Mondiale in Italia, a partire del libro di Claudio Pavone, Una guerra civile.

Successivamente, si sviluppano i testi di Walter Benjamin relativi ai concetti di

Erfahrung, Erlebnis e ―rememoração‖. Infine, si arriva all‘analisi del libro a partire

dalle sue costanti di forma e contenuto, seguendo le direttive di Maria Corti.

L‘appendice di questa ricerca è la traduzione strumentale del libro studiato, inedito in

lingua portoghese.

Parole chiavi: Beppe Fenoglio; Walter Benjamin; Resistenza italiana; Neorrealismo

letterario italiano.

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Agradecimentos

Ao chapa hauly Ricardo, meu maior e melhor amigo, pelo aprendizado da alegria e do

amor doce e chameguento que guia em silêncio toda vida que eu vivo.

Ao Beppe Fenoglio, companheiro dos últimos dois anos, pela síntese potente e bela do

que ele deixou escrito, pela ironia, o sentido político e a simplicidade com que escolheu

fazê-lo.

Ao meu grande orientador Marco Lucchesi, que, sempre tão dedicado e atencioso, foi

meu Google particular e seguiu de muito perto o texto que agora vejo terminado graças

à sua ajuda generosa, delicada, rigorosa e também prazerosa. Com ele aprendi o que

deve ser uma orientação: a liberdade que caminha de mãos dadas com a

responsabilidade. Um imenso obrigada pela acolhida e a paciência.

Ao Pedro Segreto, que traz no sangue o impulso desta pesquisa, minha pedra

fundamental, meu companheiro amoroso, teórico e digital, por me ensinar todos os dias

que, com ou sem livros e psicanálise, a vida é maravilhosa. Pelo OCR, programa que

tornou possível a digitalização dos Appunti e, consequentemente, sua tradução, um

gesto prazeroso.

À minha família, os Araújos e os Valentes, por ser o lugar confortável em que eu existo

plenamente. Aos meus pais, Flávio e Mariangela, pelo amor, pela infância no

Logradouro e pelos irmãos que me deram. Por ainda conseguirem ser meus pais,

apoiando e seguindo de perto minha vida, por exigirem de mim a felicidade. Aos meus

irmãos Dráulio e Carlos, pela companhia de um mundo menos solitário. Ao meu irmão

e grande amigo Sérgio, pela companhia intensa, generosa e amorosa no aprendizado de

uma irmandade conquistada dia a dia, pelo amor que cultivamos nos últimos anos, pelas

concordâncias e discordâncias em que aprendemos a amar incondicionalmente. Às

minhas primas Maíra, Mariana e Milena, pela irmandade muito próxima que a vida nos

deu e que, juntas, sabemos cultivar lindamente. Aos meus tios Mali e Cristina, pelo

apoio e o amor incondicional, as receitas, as viagens, além dos meus ―primos qridos do

meu curaxão‘ Rafael e Rodrigo Valente.

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Ao Roberto Moura e à Beth Real, pelos almoços de domingo em família, onde nasceu

esta pesquisa. Vatapás ouvindo sobre os italianos pioneiros do cinema brasileiro em

suas dimensões humanas, Pascoal Segreto e Humberto Mauro de perto e de dentro.

Longas conversas regadas a vinho, discutindo Benjamin, Neorrealismo italiano e

vanguarda do cinema brasileiro.

Ao Garoto, por toda lambida, todo chamego e todo passeio em dia de sol. À Nilza, pela

adoção voluntária e o aprendizado do sorriso fácil diante de toda dificuldade, além do

chamego, também em forma de empadão de legumes e pudim de leite condensado.

Aos meus amigos, por partilharem muito de perto comigo a vida e esta dissertação.

Muito obrigada à Lila Carvalho, a doçura em forma de amiga; Ao Danilo Torres, pelo

irmão que temos e que continua a nos unir profundamente; À Juliana Cassidy, amiga

muito próxima em cuja casa e família amorosa eu realizo os afetos mais puros e

sinceros, por ser o colo confortável onde eu me deito com frequência. Ao Márcio

Holanda e Ju Campelo, por tudo o que já vivemos juntos; Ao Jonas Torres, Ju Michilis

e meu afilhado Luca, por celebrarmos a vida juntos; À toda a Caos! Vídeo e Design,

pelo ambiente familiar e a convivência ao longo de todos esses anos: ao Marcelo Alt e

Naiana, ao Afonso e ao Lui, pelo aprendizado de um trabalho que se ama. Ao Piero

Messina, pela admiração e respeito que tenho por tudo o que ele faz. Ao Wilkie, ao Elio,

à Francesca, à Laura, ao Maurizio, ao tios Riccardo e Elena, por cultivarem meus

recantos afetivos italianos. À Marília Misailides, Alice Vieira e Pedro Melo, por

estarem ali, mesmo quando eu não vejo. Ao João Maurício, por ele acreditar no que ele

acredita, pelas conversas infinitas nas situações mais adversas. À Cristina Cadore e ao

Tiago Gualda, amigos que me alegram a vida. À Elisa Ribaudo, pela tarde sull’amaca

sugerindo soluções para a tradução dos Appunti.

Aos grandes professores-amigos que encontrei ao longo das disciplinas do mestrado e

àqueles que já tinha encontrado nas salas da graduação e que continuei encontrando nos

corredores e cafés da Faculdade de Letras: a eles devo a inspiração, a coragem e a

disposição para essas muitas linhas que aqui se seguem, além de algumas indicações de

leitura fundamentais. Muito obrigada ao Alberto Pucheu, à Ana Alencar, ao Dau Bastos,

ao Eucanaã Ferraz e à Mayara Ribeiro, importantes referências ao longo dos anos da

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graduação; com eles aprendi que o comprometimento sincero com a Universidade não

burocrática pode salvar de todo o resto.

Aos professores que acompanharam de perto a evolução desta pesquisa e que,

exatamente por isso, constituem a banca de avaliação: Marcelo Jacques e André Bueno,

muito obrigada! André me mostrou um Walter Benjamin que mudou os rumos desta

pesquisa e Marcelo me indicou os caminhos por onde compreendê-lo melhor. Tê-los na

banca me enche de orgulho e responsabilidade, pois sei que neles reside a seriedade e o

rigor que admiro na academia.

Meu agradecimento sincero à colega e pesquisadora de Beppe Fenoglio, Maria do

Rosario Toschi. Tradutora do único livro disponível do autor em língua portuguesa

(tradução que compunha sua dissertação de mestrado), dela recebi os Appunti partigiani,

pelos quais imediatamente me apaixonei.

Ao esforço sem medida do teórico Claudio Pavone, cujo ensaio de mil páginas sobre a

Resistência está por trás de tudo o que escrevi nesta dissertação.

Ao século em que vivo, que me permitiu ter acesso ao Google e ao site da Ibs.it, sem os

quais eu não conseguiria, do Brasil, obter as informações e adquirir os livros essenciais

para esta pesquisa. Aos leitores do blog neorealismoitaliano.wordpress.com, onde eu

verbalizei e partilhei o work in progress desta pesquisa.

Ao Chico Belo, à Dona Mecê e seus 22 filhos, à Dona Luci e seus 18 filhos, à Ivone, ao

Seu Franciné e à Dona Naísa, à Márcia, Marcilene e Marlete, ao Seu Caetano e Dona

Maria, ao Chico da Velha, ao Branquinho, ao Juninho, ao Seu Chico Brito e a toda a

Juatama que me fez poder um dia compreender de que falava o Fenoglio em seus

Appunti.

À Capes, pela bolsa concedida desde o primeiro dia de mestrado. A todas as famílias

brasileiras que ficaram sem bolsa-família para que este texto pudesse ganhar vida. Sem

falsa retórica, era nelas que pensava em cada domingo de sol diante do computador.

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Sumário

Introdução.....................................................................................................................................10

Capítulo I .....................................................................................................................................20

1 A Segunda Guerra e seu fruto histórico: a Resistência ............................................................20

1.1 O fim da Segunda Grande Guerra, alla italiana ....................................................................21

1.1.2 O ―25 de Julho‖, a primeira traição ....................................................................................24

1.1.3 A confusão dos ―Quarenta e cinco dias badoglianos‖ ........................................................25

1.1.4 O ―8 de Setembro‖, a segunda traição ................................................................................26

1.2 A decisão pela Resistência, uma guerra civil ........................................................................29

1.2.1 As instituições durante a Resistência, a revisão dos poderes e das funções .......................30

1.2.2 O partigiano .......................................................................................................................34

2 O Neorrealismo ........................................................................................................................38

2.1 O Neorrealismo em divergências: cinema e literatura ...........................................................40

2.2 O Neorrealismo em literatura e suas constantes ....................................................................41

2.3 A literatura neorrealista em divergências ..............................................................................43

Capítulo II ....................................................................................................................................47

1 Duas obras em duas vidas: Walter Benjamin e Beppe Fenoglio ..............................................47

1.2 Uma obra e uma vida: Walter Benjamin ...............................................................................48

1.3 Outra obra, outra vida, a mesma guerra: Beppe Fenoglio .....................................................49

2 O Neorrealismo fenogliano e a teoria da narração benjaminiana .............................................54

3 Beppe Fenoglio e seus Appunti, entre a ―experiência‖ e a ―vivência‖ .....................................60

3.1 Fenoglio e a ―experiência‖ (Erfahrung) ................................................................................60

3.2 Fenoglio e a ―vivência‖ (Erlebnis) ........................................................................................62

3.3 Fenoglio e a ―rememoração‖ .................................................................................................65

4 Os Appunti partigiani, uma vida, uma obra e uma guerra .......................................................69

4.1 Os Appunti de uma vida ........................................................................................................69

4.2 Os Appunti de uma obra ........................................................................................................75

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4.3 Os Appunti de uma guerra .....................................................................................................76

Capítulo III ..................................................................................................................................78

1 Os Appunti em sua materialidade .............................................................................................78

2 Os Appunti em suas constantes neorrealistas ...........................................................................79

3 Os Appunti para fins analíticos .................................................................................................82

3.1 Os Appunti e a ―rememoração‖ .............................................................................................82

3.2 Os Appunti: temas e ideologias .............................................................................................90

3.2.1 Os Partigiani ......................................................................................................................90

3.2.2. Comunhão com a população civil .....................................................................................97

3.2.2.1. Igreja .............................................................................................................................102

3.2.3. Le Langhe e La Langa, dois recantos afetivos .........................................................106

3.2.4. Anna Maria e la Lupa ...................................................................................................111

3.2.5. Fascistas e alemães x opositores .................................................................................113

3.2.6. Ironia e humor ...............................................................................................................116

3.3 Os Appunti: O nascimento de uma nova forma literária................................................128

3.3.1. Oralidade, dialeto e coloquialidade, uma gramática a serviço de uma literatura. 130

3.3.1.1 Sintaxe ..........................................................................................................................130

3.3.1.2 Morfologia ...................................................................................................................133

3.3.1.3 Fonética ........................................................................................................................133

3.3.2. Outros recursos: liberdade .........................................................................................134

3.3.3. Um narrador, um estilo e um ritmo ............................................................................136

3.3.4. Estrutura dos diálogos .................................................................................................137

4 Os Appunti e seu final inacabado ...........................................................................................138

Conclusão ..................................................................................................................................141

Referências ................................................................................................................................146

Mapas ........................................................................................................................................154

Apêndice ....................................................................................................................................156

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Introdução

E não só falar desses escritores é difícil, como também

entendê-los enquanto os lemos, porque é muito bonito

dizer que uma obra de arte é tal enquanto escapa às

contingências históricas que a produziram e cria um seu

mundo fantástico etc., mas são palavras. De fato, a obra

de arte nos comove ou se deixa compreender por nós

somente enquanto conserva para nós um interesse

histórico, enquanto responde a um nosso problema

qualquer, resolve, enfim, uma nossa necessidade de vida

prática. Não existe a arte pela arte. E até a mais ociosa

lírica parnasiana resolverá para o leitor – um bocado

antiquado deve ser, esse leitor, pra dizer a verdade – um

problema prático: como viver sonhando.

(Cesare Pavese, em ensaio sobre a literatura americana,

1931)

A Segunda Guerra Mundial e a Resistência Italiana são capítulos tortuosos da história

da Itália. Muitos vetores de força operavam sobre o mesmo período, com intensidades e

direções distintas1.

Após trinta anos de fascismo, regime que viu a ascensão do líder Benito Mussolini à

condição de imperador e ditador, em junho de 1940, a Itália declara guerra à França e ao

Reino Unido, ao lado de uma Alemanha já em guerra contra os dois países há cerca de

um ano. Pouco mais de três anos depois, em 25 de julho de 1943, a Guerra parece

vencida pelos Aliados, que já começam a invadir o sul da Itália. Diante da derrota

1 Este trabalho, porém, visa abordar a Segunda Guerra apenas do ponto de vista italiano, restringindo o

recorte aos anos finais da Guerra e à Resistência italiana. Pelo recorte metodológico pertinente a esta

pesquisa, também não poderei alcançar os anos do surgimento do fascismo, da ascensão de Mussolini,

nem da relação do fascismo com o nazismo – temas de extrema importância que certamente recebem

especial atenção em pesquisas de recorte diferente.

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iminente, o Rei Vittorio Emanuele III depõe Benito Mussolini do comando do Exército

Régio e assina o acordo de paz com os Aliados. Mas a Segunda Guerra ainda duraria

outros vinte meses em território italiano, porque no momento em que o rei assina a

derrota italiana, o território da península estava definitivamente ocupado pelos nazistas.

A Resistência italiana é o fenômeno que viu, após a derrota oficial da Itália, o

envolvimento de civis numa guerra civil contra os italianos que insistiam em apoiar

Mussolini – então ainda em guerra no norte da Itália, onde fundara a República Social

Italiana – e contra os alemães, para expulsá-los de seu território.

Glorificada logo depois do fim da Guerra como a salvação do povo italiano, que tinha,

pelo menos no final do processo, se redimido pela luta armada antifascista e devolvido a

Itália aos italianos, a Resistência, ao longo dos anos, nem sempre foi vista com tanto

otimismo. Ao contrário, muitos foram os momentos em que o pessimismo que arrebatou

a Itália a partir dos anos 1950, quando as coisas novamente se acomodaram e parecia

que nada tinha mudado tanto quanto deveria, se alastrou também para o fenômeno da

Resistência, obscurecendo em maniqueísmos absolutos sua real importância histórica e

social, independentemente do sucesso moral ou ideológico obtido naquela guerra civil.

A Resistência, devido à sua forte relação com a Rússia comunista, foi ainda fortemente

criticada quando tornaram-se públicos os Processos de Moscou e mudou a compreensão

europeia da Rússia comunista e dos crimes cometidos por Stalin. Nesse momento, ela

passou a ocupar um lugar menos glorioso no imaginário italiano. Mas a partir dos anos

1990, com o passar do tempo e acalmar dos ânimos, a Resistência voltou a trazer à tona

questões profundas da história recente da Itália. Hoje ocupa o lugar dos grandes fatos

históricos cuja dialética alimenta infindáveis estudos e reflexões.

Do fenômeno da Resistência, nasceu o fenômeno estético do Neorrealismo

cinematográfico e literário italiano.

O Neorrealismo foi um conjunto de realizações artísticas (principalmente literárias e

cinematográficas) ocorridas na Itália a partir do começo da Segunda Guerra Mundial,

que atingiu seu ápice no final dela, em 1945. O que agrega essas manifestações

artísticas sobre essa etiqueta é exatamente o fato histórico da Segunda Guerra e da

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Resistência, que trouxe para os cineastas e escritores daquele período novos problemas

estéticos e conteudísticos.

Porque, quem lembra o ―Neorrealismo‖ sobretudo como uma contaminação ou

imposição sofrida pela literatura por razões extra literárias, desloca os termos da

questão: na verdade, os elementos extra-literários estavam ali tanto massivos e

indiscutíveis que pareciam um dado de fato; todo o problema nos parecia ser de

poética, como transformar em obra literária aquele mundo que era para nós o

mundo2.

No cinema, realizado principalmente em Roma, o problema da representação parece

mais facilmente delimitado: seu caráter documental se prestava perfeitamente à sua

função e daquela linguagem – que parecia nascer definitivamente – serviram-se muito

bem grandes diretores, como Roberto Rosellini em seu Roma, cidade aberta (marco

importante da grande revolução que a linguagem cinematográfica sofreria naquele

momento).

O primeiro filme reconhecidamente neorrealista3, Obsessão, de Luchino Visconti, é de

1943. Mas Roma, cidade aberta, de Roberto Rossellini, lançado em 1945 – pouco

depois do fim da Guerra –, é o verdadeiro ponto de partida da estética enquanto sistema4.

Roma espalhou pelo mundo aquela linguagem e colocou a Itália no centro da discussão

de um novo modo de fazer cinema, em oposição ao cinema holliwoodiano5. Outras

2 Prefácio de Italo Calvino a Il sentiero dei nidi di ragno (1993). Grifo do autor.

3 O cinema neorrealista é fruto também da discussão teórica realizada junto à Rivista Cinema. Dirigida

por Vittorio Mussolini, filho do ditador, a revista foi fundada como instrumento de propaganda fascista e,

em teoria, era ideologicamente pró-fascismo, mas, na prática, a revista foi o berço do debate teórico que

levaria ao Neorrealismo. Em torno dela orbitariam Alessandro Blasetti, Cesare Zavattini, Alberto Lattuada,

Giuseppe De Santis, Franco Fortini, Luigi Comencini, Massimo Mida, Michelangelo Antonioni: todos

responsáveis pela elaboração teórica que, com o fim da Guerra, explodiria como urgência estética.

4 O termo é usado aqui a partir de Antonio Candido, que, na sua monumental Formação da Literatura

Brasileira, tratando de literatura, caracteriza o ―sistema‖ como a interlocução entre autor, leitor e

tradição.

5 FABRIS (1996).

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grandes manifestações cinematográficas são Paisà (1947), de Roberto Rosellini;

Sciuscià (1946) e Ladri di biciclette (1948), de Vittorio De Sica; e La terra trema

(1950), de Luchino Visconti.

A discussão crítica do Neorrealismo cinematográfico e sua difusão pelo mundo

enquanto estética fundamental para o surgimento do cinema moderno deve-se

principalmente a certa crítica francesa reunida em torno da revista Cahiers du cinéma,

principalmente aos muitos artigos de André Bazin, publicados contemporaneamente ao

lançamento dos filmes6. Em torno a essa crítica francesa, que durante os anos 1960 foi

responsável pela retomada dos filmes e diretores neorrealistas, aquele cinema foi

alavancado à condição de clássico: o primeiro cinema nacional, o primeiro cinema de

autor, quase que o primeiro cinema de fato: um cinema então ainda recém-nascido, que

algum tempo depois teria dado as condições de possibilidade para a Nouvelle Vague na

França e para o Cinema Novo no Brasil. Por esse caminho, aquele cinema chegou até o

público brasileiro já ocupando um lugar de clássico. O mesmo não aconteceria com a

literatura.

Para a literatura, quase toda ambientada no norte da Itália, a questão da representação

parece mais mediada e envolve especificidades da linguagem, que se reinventava

naquele impulso histórico, num doloroso embate com a tradição, o que não se dava com

o cinema, cuja tradição parecia estar sendo fundada ali. Na literatura, outra grande

distinção em relação ao cinema, a Resistência era ainda mais forte, não apenas pela

proximidade física, mas principalmente pelo envolvimento direto dos escritores que

subiram as montanhas para lutarem como partigiani7 pela expulsão dos alemães da

Itália. E a incógnita da representação era por isso mesmo ainda mais multiforme, pois

fruto de uma experiência tantas vezes vivida em primeira pessoa por quem se propunha

a escrever sobre ela.

6 Reunidos em português no livro O cinema, ensaios (1981), de André Bazin, atualmente esgotado.

7 O termo designa os que lutaram na Resistência italiana. Por alguma incoerência histórica, foi sempre

traduzido para o português pela sua forma francesa partisans. O motivo é para mim inexplicável, já que

os resistentes franceses sempre foram nomeados por maquis, e não partisans, e a palavra é,

etimologicamente, de origem italiana. Sem correspondente em português, optei por manter a grafia

italiana para remeter especificamente àquele significado.

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Assim, muitas foram as tentativas de dar voz àquele tempo com a literatura, mas é

perceptível, mesmo na diversidade, algo comum entre os escritores: uma vontade de

contar o que se viveu naqueles anos, um pacto intenso de verossimilhança com o leitor,

a opção por uma linguagem acessível, a preferência pela prosa em detrimento da poesia

(forma muito alta, estreitamente ligada ao fascismo), uma paisagem local, o retorno ao

uso dos dialetos (proibidos pelo fascismo), sem nenhuma pretensão de pureza – nem

naturalista, nem regionalista – (puro era o mito do ―super-homem‖)8. Falar de si para

falar do todo: o pequeno vilarejo que, em sua dimensão humana, pode dizer do mundo

inteiro.

Dentre as tentativas literariamente bem sucedidas, as principais foram Uomini e no

(1945), de Elio Vittorini; Il sentiero dei nidi di ragno (1947), de Italo Calvino;

Cronache di poveri amanti (1947), de Vasco Pratolini; Il compagno (1947), de Cesare

Pavese9.

Separadamente, é necessário compreender a produção de Beppe Fenoglio. Isolado na

cidade de Alba, o autor teria um percurso específico dentro do Neorrealismo, em que as

datas neorrealistas não correspondem à escritura e publicação de sua obra, mas quase

toda a sua produção insistiu, mesmo tardiamente, nas questões temáticas e formais do

pós-guerra italiano. Seus principais livros são Il trucco, Racconti della guerra civile

(1949), La paga del sabato (1949) e Primavera di bellezza (1959). É de 2002 a edição

das cartas do autor que restaram. É de 2007 a edição completa dos contos, seguindo a

classificação do próprio autor, que os dividiu entre ―Contos da guerra civil‖, ―Contos de

parentela e do povoado‖ e ―Contos do pós-guerra‖. De 2001 é a primeira e única

tradução para o português do livro Una questiona privata (Uma questão pessoal), de

Maria Rosário Toschi.

Cada um dos autores e cada uma das obras por eles produzidas, aos quais chamo de

―neorrealistas‖ nesta pesquisa, teve um percurso único e muito diverso, mas todos eles

com resultados indubitavelmente literários. Acredito, porém, que o escritor que esteve

8 Il super uomo, tantas vezes usado pelo regime fascista para alimentar o ego e o desejo de dominação do

povo italiano sobre outros povos.

9 Utiliza-se aqui o critério adotado por Corti (1978, p. 29).

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esteticamente mais próximo da Resistência enquanto problemática fundadora daquela

estética foi Beppe Fenoglio. Por isso, nesta pesquisa, realizo o esforço de compreensão

dessa trajetória, de sua relação com os impulsos históricos e sociais e de seu fruto

estético a partir do livro inicial desse autor, Appunti partigiani, inédito em língua

portuguesa.

Os Appunti são um texto escrito entre 1944 e 1946 (a crítica não é unânime quanto a

quase nenhuma data de redação das obras de Fenoglio), que trata do último ano da

Segunda Guerra Mundial no contexto da Resistência italiana. Escrito a mão nos

cadernos de contabilidade do açougue do pai, o livro foi esquecido pelo autor na

mudança da casa no centro de Alba (pequena cidade localizada no norte da Itália) para

uma casa mais afastada, por volta dos anos 1960. Anos depois o novo proprietário

esvaziou o sótão e colocou tudo em caixas de papelão, que foram deixadas à beira do

Rio Tanaro. Um empresário de Milão que pescava por ali viu as caixas e abriu uma das

cadernetas, em cuja capa estava escrito ―Contabilidade Açougue Fenoglio‖; leu a

primeira página: ―Appunti partigiani‖ e a dedicatória: ―A todos os partigianos da Itália,

mortos ou vivos‖. Por alguma coincidência aleatória, o empresário-pescador levou para

casa as cadernetas I, II, III e IV. Muito tempo depois, essas cadernetas alcançaram o

estudioso da obra de Fenoglio, Lorenzo Mondo, e vieram a público em 1994.

Os Appunti partigiani são o marco zero do Beppe Fenoglio escritor neorrealista, com

ecos em toda a sua produção posterior (fatos, causos, personagens). Obra de um escritor

não de todo compreendido à época (muito cruel, muito violento com os ídolos que

restavam ao povo italiano), que agora alcança seu lugar nos estudos de literatura italiana.

Seus livros são relançados, seu nome ganha prestígio.

O livro levanta muitos problemas para a crítica literária. Escritos no imediato pós-guerra,

achado e publicado anos depois, em 1994, os Appunti, do ponto de vista da recepção,

são um texto que não teve críticas negativas, que não pretendeu nem convencer nem

dirimir ninguém de nada, que já alcançou um público calejado e distanciado do calor

dos fatos e que, por isso, pode nos dizer muito sobre aquele período e sobre seus ecos na

Itália de hoje.

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16

As hipóteses levantadas por esta pesquisa são as de que Beppe Fenoglio e seus Appunti

traçam um percurso específico que pode dizer muito da relação entre a literatura

neorrealista e a tradição literária, a crítica, a recepção literária e a cultura italiana

exatamente devido à sua aproximação estética, linguística, política, moral e física com a

Resistência.

Partindo dessa hipótese e do texto que constituiu o corpus desta pesquisa realizei aqui

três esforços distintos, todos exigidos pelo texto de Fenoglio, e todos com o objetivo

indireto de levantar questões relevantes para uma reflexão sobre o Neorrealismo

literário italiano, levantar seus pontos sombrios, trazer à tona suas incongruências,

discutir sua relevância e sua potência ao longo dos anos. Cada percurso que me parecia

essencial para a discussão está localizado em um capítulo.

Restringir os teóricos que aproximei à obra de Fenoglio, em todos os capítulos, foi uma

escolha consciente com o objetivo de aprofundar a discussão. Dentro do universo

disponível em minhas leituras, que tentei que fossem inicialmente muito amplas, mas

que, num segundo momento, pudessem aprofundar a discussão, escolhi não comparar

muitos textos teóricos. Pois meu objetivo não era aquele de levantar uma discussão

teórica sobre um conceito em diversos autores, mas aproximar os Appunti ao que eles

exigiam e ao que lhes pudesse fazer alçar um voo mais alto. Todos os capítulos são

voluntariamente uma conversa com poucos teóricos, poucos conceitos, poucos textos,

que, quando necessário, são apoiados por outras fontes. Daí a escolha maciça, dentre

muitas outras possibilidades que se encontram na bibliografia, de um texto de história

da Resistência e de uma crítica e especialista em Beppe Fenoglio, no primeiro capítulo;

daí a escolha de um teórico – quase que de uma questão – para o segundo capítulo; daí a

escolha por um só método de análise, de uma teórica, para o terceiro capítulo.

Assim, no primeiro capítulo, proponho uma reflexão sobre a Itália em meio à Segunda

Grande Guerra e seus meses de dura Resistência. Essa discussão me parece obrigatória

para uma profunda análise dos Appunti, pois além dos fatos históricos serem

constantemente evocados ao longo da narrativa, cada ironia contida em suas páginas só

poderá ser compreendida se for claro seu sentido literal e de onde deriva a inversão

realizada pelo autor. O momento histórico da Resistência me parecia sombrio e

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complicado e a simples narrativa historiográfica não contemplava os meandros

abordados por Fenoglio em seus Appunti.

Optei então por adotar, nesse capítulo, dois teóricos que melhor dialogavam com os

Appunti sobre o ponto de vista que me interessava discutir, aquele de viés

historiográfico.

O primeiro deles foi Claudio Pavone, historiador italiano, que no ano de 1991 publicou

o ensaio de mais de mil páginas intitulado Una guerra civile: saggio storico sulla

moralità nella Resistenza10

. Nele, Pavone volta à Resistência italiana a partir de

documentos não institucionais, buscando em cartas, diários e bilhetes uma via de acesso

às mudanças no conceito de moralidade ao longo daqueles anos. Muito de uma

Resistência até então ovacionada é discutida por Pavone, que mostra também a possível

não ruptura de fato da Resistência com o fascismo e os dilemas de uma Itália sem

muitos outros referenciais após quase trinta anos de regime ditatorial. Dele me servi

inúmeras vezes por acreditar que a sua nova e complexa visão da Resistência, sua

conceituação do período enquanto guerra civil contribuía para uma apreensão dialética e

fragmentada, já que em nenhum momento pretendia esgotar o tema.

A segunda foi a filóloga e crítica italiana, responsável pela edição crítica das obras

completas do autor e precursora dos estudos sobre Fenoglio, Maria Corti, que em 1978

publicou o texto Il viaggio testuale11

, em que discute muitas questões sobre o

Neorrealismo literário italiano e acena algumas problemáticas relativas à obra de

Fenoglio.

Feito o preâmbulo contextual e a discussão sobre o nascimento de uma estética que se

reivindicava estritamente ligada àquele contexto, o segundo capítulo ganha um fôlego

de teoria literária. Nele proponho um exercício teórico de aproximação dos escritos de

Walter Benjamin sobre a relação entre literatura e experiência e os Appunti. Também

essa aproximação me foi sugerida pelo texto de Fenoglio, em que autobiografia e ficção

se misturam numa pretensa objetividade de crônica historiográfica ou diário, tendo a

10

PAVONE (1991).

11 CORTI (1978).

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Resistência como motivo profundo da narrativa. Foi a visão estética e política da

Resistência, desenvolvida por Fenoglio em seus Appunti, que me fez chegar às teses

Sobre o conceito de história, de Benjamin. Foi a autobiografia enquanto reivindicação

de todo um movimento literário, presente principalmente nos Appunti, que me fez

chegar aos conceitos de Ehfahrung, Erlebnis e ―rememoração‖, de Walter Benjamin.

Para discuti-los, me utilizei dos textos ―Experiência e pobreza‖, ―O narrador‖, ―Sobre

alguns temas em Baudelaire‖ e, por fim, os últimos textos escritos por Walter Benjamin,

as teses ―Sobre o conceito de história‖, todos escritos nos anos 193012

. Para o

aprofundamento dos conceitos sobre experiência, me utilizei da ajuda dos teóricos Jean

Marie Gagnebin13

e Michel Lowy14

.

Nesse capítulo, além de aproximar as obras de Benjamin e Fenoglio, aproximo também

suas vidas, profundamente marcadas pela experiência da Segunda Guerra Mundial.

Como literatura de apoio para as notícias biográficas sobre Benjamin, me servi de

Marcio Selligman15

, e para aquelas relativas a Fenoglio, me dirigi ao seu biógrafo e

crítico Davide Lajolo16

(inicialmente, um dos muitos que não compreenderam os

escritos do autor, Lajolo se tornaria depois o responsável pela primeira biografia do

escritor).

O terceiro capítulo é a análise do livro, tentando mapear a estratégia estética e política

contida no texto e seus mecanismos de realização. Mais longo e detalhado, nele me

proponho a esmiuçar muitas das problemáticas presentes no texto dos Appunti. Para isso,

utilizei dois princípios analíticos que se fundiram em um só: primeiro selecionei os

temas recorrentes no texto, suas questões linguísticas, suas bases fomativas; em seguida,

aproximei a elas o modo com que Maria Corti realiza a análise de textos neorrealistas.

Ao fim, tinha a análise separada em dois momentos distintos: um temático e outro

formal. Acrescentei a ela um terceiro momento – que, na verdade, se apresenta antes

dos outros dois – que é a aproximação efetiva, com citações, do texto dos Appunti aos

conceitos benjaminianos sobre experiência.

12

BENJAMIN (1994a)

13 GAGNEBIN (2007).

14 LÖWY (2008).

15 SELLIGMANN (2009).

16 LAJOLO (1978).

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19

Ao longo dos anos de mestrado realizei, ainda, a tradução completa dos Appunti de

Beppe Fenoglio. A tradução nasceu não apenas da necessidade de citá-lo em língua

portuguesa ao longo do capítulo de análise17

, mas também como um método de

apropriação do texto. Dessa tradução é composto o ―Apêndice‖ desta dissertação, que

consta do texto dos Appunti em língua italiana e de sua tradução instrumental, por mim

realizada. Dada a complexidade de tal tarefa – tanto linguística quanto conceitual –

antes do ―Apêndice‖, há uma ―Introdução ao apêndice‖, em que trato com mais calma

dessa tarefa, explicitanto inclusive algumas escolhas tradutórias e a manutenção de

alguns termos em língua original inevitavelmente presentes nas citações do terceiro

capítulo.

17

Ao longo de todo este trabalho, os trechos citados dos Appunti foram por mim traduzidos e serão

citados na dissertação em língua portuguesa, com nota de rodapé em língua original.

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20

Capítulo I

1 A Segunda Guerra e seu fruto histórico: a Resistência

A Segunda Guerra Mundial foi um divisor de águas na história do século XX. Para a

Itália não foi diferente: suas consequências políticas, sociais e culturais são a chave para

uma maior compreensão da condição italiana hoje. Na literatura e no cinema, o que foi

produzido sobre os influxos daquela tragédia ainda é considerado um dos pontos altos

da produção cultural italiana.

No Brasil, nosso esforço de compreensão daquela Guerra acabou focando muito mais na

tentativa de apreensão da Alemanha nazista e da experiência limítrofe dos campos de

concentração e menos nas particularidades italianas, que se tornaram, no pós-guerra,

muito menos relevantes, pois tinham sido muito menos extremas e cruéis. Além disso, a

Itália tinha mudado de lado e produzido uma Resistência civil aos alemães, o que

acabou sendo essencial para o que chamaria de um ―perigoso perdão internacional do

Fascismo‖ em detrimento de uma ―justa e sempre insuficiente condenação irrestrita do

Nazismo‖.

Para a Itália, no entanto, aquela continua sendo uma encruzilhada essencial, em que

paradoxos e incoerências afloram em relação a muitos pontos, como o que trata do

papel desempenhado pelo país naquela guerra e os dramas vividos naqueles anos, mas

principalmente no que diz respeito à grande confusão política e institucional em que a

Itália esteve imersa nos dois últimos anos de Guerra: a mudança de lado; a política

dividida entre o rei, o ditador e a Igreja Católica; a divisão do país entre Norte e Sul; a

Resistência e os partigiani18

; o comunismo e a relação com a Rússia comunista; a

semente do que depois se tornaria o sogno americano do pós-guerra.

18

A escolha por mim operada pela manutenção do vocábulo em língua italiana está longamente

explicitada na introdução desta dissertação e será novamente discutida no item 1.2.2 deste mesmo

capítulo. A escolha diz respeito à não existência de um vocábulo aproximativo em língua portuguesa – já

que é para mim incompreensível a escolha de alguns autores pelo termo partisans, em francês.

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Nascido e ambientado em meio a essas problemáticas, o Neorrealismo, cujas escolhas

estéticas e formais encontram-se profundamente inseridas naquela discussão

especificamente italiana, ganha imensa amplitude se observado em relação a seu

ambiente de produção. Para isso, faz-se necessária uma imersão na Itália em fim de

Guerra e suas diversas problemáticas. Todas elas ecoaram na produção neorrealista,

muitas delas ainda ecoam na Itália de hoje.

1.1 O fim da Segunda Grande Guerra, alla italiana

Qual deve ser a primeira virtude de um balilla19

?

A obediência!

E a segunda?

A obediência!

[em caracteres maiores]

E a terceira?

A obediência!

[em caracteres enormes].

Livro único do Estado, usado durante o regime fascista nas escolas primárias20

.

O fascismo, regime totalitário que durou de 1922 a 1945, teve forte adesão do povo

italiano, chegando a uma quase unanimidade em 1936, na época da proclamação do

19

Ballila, em dialeto genovês, significa criança. Referindo-se a um evento histórico em que uma criança

jogou pedras no invasor austríaco da cidade de Gênova no ano de 1746, eram assim nomeados pelo

fascismo as crianças e jovens italianos.

20 Devido à escassa bibliografia sobre o Neorrealismo literário italiano em português, muitas das citações

usadas nesta dissertação foram traduzidas por mim das referidas fontes em língua italiana. O longo ensaio

de Claudio Pavone, base teórica para a concepção de Resistência deste trabalho, não tem publicação em

português. Todas as citações dali retiradas foram traduzidas por mim. Por se tratar de um texto teórico,

optei por não disponibilizar o original em notas de rodapé, guardando tal preciosismo para a citação de

textos literários.

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22

―Império Fascista‖. Sua derrocada tem início em 9 e 10 de julho de 1943 com o

desembarque das tropas Aliadas na Sicília.

O caminho escolhido pelos Países Aliados para derrotar Adolf Hitler e Benito Mussolini

poderia ter sido outro: a invasão do território alemão, a partir do Canal da Mancha, era a

ideia defendida pelos ingleses. A insistência dos americanos por uma avançada a partir

da África, alcançando a Sicília e subindo a Península Italiana até chegar à Alemanha21

foi decisiva para o destino da Itália. A ofensiva aliada em território italiano trouxe para

o país dilemas e consequências: a primeira guerra feita em casa com o envolvimento de

civis, uma rendição incondicional, um acerto de contas dramático e fratricida com seu

próprio passado e com as escolhas que havia feito.

A Itália entrou na Guerra acreditando que a vitória da Alemanha era certa, que a Guerra

aconteceria longe da Itália e que a ela caberia um papel central na nova configuração

mundial num pós-guerra que imaginava o nazi-fascismo como vencedor: ―A maior parte

dos italianos teria desejado estar na guerra o menos possível, sempre longe de casa, e

deixando que o resto providenciassem os poderosos aliados alemães‖22

.

O país não dispunha de exército, dinheiro, ou matéria-prima necessários para entrar

numa guerra de qualquer dimensão, e, principalmente, não dimensionou corretamente

aquela guerra. Além disso, nenhum motivo parecia ser suficientemente relevante, e ao

povo italiano aquela guerra iria soar, desde o início, não justificada.

Um dado que acomuna muitos dos testemunhos de que podemos dispor é que a

massa dos combatentes se sentiu lançada em uma empreitada de dimensões,

intensidades e significados para além da própria direta capacidade não só de

controle, mas até mesmo de compreensão (PAVONE, 1991, p. 77).

A questão da purificação da raça e o consequente extermínio dos judeus, base

ideológica do nazismo, não estavam na base do fascismo. Essa distinção levaria o

exército alemão a se relacionar com o exército italiano como um aliado necessário,

nunca essencial. Para os alemães, o povo italiano também era uma raça inferior, que

21

ISAACS (1973).

22 PAVONE (1991, p. 73).

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deveria servir-lhes, mas que estava longe de ter as qualidades arianas necessárias para

merecer respeito e admiração. Em resposta a isso, o desejo de serem protagonistas, de

demonstrar seu valor e não receber ordens de nenhuma outra nação irá perpassar muitas

escolhas italianas durante a Guerra: desde a escolha de se colocarem como aliados dos

alemães – para provar sua capacidade – e inimigos dos ingleses – nação de que eram

tradicionalmente aliados –, até a ferocidade com que, durante a Resistência, mesmo

tendo assinado uma rendição incondicional, os italianos esqueceriam rapidamente seu

passado fascista aliado de Hitler e tentariam dar as cartas da avançada aliada em seu

território. A lembrança transcrita abaixo explicita esse esquecimento:

Os aliados, vale lembrar, derramaram seu sangue além do nosso para nos liberar do

fascismo. As desconfianças que eles podem alimentar em relação a nós são

justificadas: não devemos esquecer que também sobre o povo italiano recai a culpa.

Seremos nós (note-se o diferente significado que assume este segundo ―nós‖) [sic],

vanguarda popular, que devemos demonstrar aos Aliados ter rompido

definitivamente com o fascismo e termos nos colocado em um novo caminho

(PAVONE, 1991, p. 196).

Durante os primeiros anos de Guerra, os italianos oscilavam entre a não convicção dos

motivos daquela guerra e a vontade de provar ser capaz de vencê-la.

O próprio Churchill tinha dito (...) que os italianos ―sabem ser os melhores em

muitos campos‖ (...). Mesmo assim, estão decididos a fazer a única coisa que nunca

souberam muito bem, ou seja, combater (PAVONE, 1991, p. 190).

Embora ainda pesem sobre a nação italiana os crimes cometidos na Líbia, na Etiópia, na

Grécia e na Albânia e embora fuzilamentos e mortes não devam ser contados,

comumente o comportamento dos italianos durante a Segunda Guerra é visto como um

resultado indesejado dos excessos mussolinianos. Entre os muitos argumentos utilizados

como indícios de pouca convicção do Exército Régio estão o número reduzido de

fuzilamentos cometidos pelo exército italiano, a tendência do soldado italiano de refazer,

onde quer que estivesse, uma família e a bondade com que tratavam os inimigos, todas

elas reforçando a imagem de um soldado incapaz de lutar. Deve-se suspeitar também de

que a visão do soldado dos primeiros anos de Guerra tenha sido profundamente

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modificada pela Resistência, em que antigos soldados do Exército Régio tentaram se

opor ao soldado sem motivo para lutar.

Foi durante a retirada da Rússia, primeira grande vitória dos Países Aliados, no final de

1942, que o exército italiano se deparou, pela primeira vez naquela guerra, com uma

experiência de derrota dramática. A partir daquela data, a Guerra começou a ser vencida

pelos Aliados. Foi também na Rússia que o exército entrou em contato com outros dois

aspectos da Guerra até então desconhecidos que iriam chocar profundamente os

italianos: foi lá que o soldado italiano tomou conhecimento dos campos de concentração

nazistas, os italianos sentiram pena dos prisioneiros e confirmaram do que era capaz o

nazismo; foi lá que viram, pela primeira vez, os resistentes russos, chamados partizans,

homens e mulheres que morriam de cabeça erguida. Muitos soldados do Exército Régio

se tornariam partigiani na Resistência.

Após o retorno da Rússia, o exército italiano nunca mais voltaria a combater como antes.

O fascismo perdia adeptos, os Aliados avançavam na África e, em julho de 1943,

desembarcaram em território italiano, tornando insustentável a posição do rei da Itália

de apoio a Mussolini. Uniu-se a isso

o cansaço da guerra, o desejo de paz, a violência sofrida pelos bombardeios aéreos,

a solidariedade para com os familiares mortos, desaparecidos e espalhados em

muitas frentes de batalha, a fome e outras privações materiais, a consciência da

superioridade arrasadora do inimigo [que, juntos,] concorriam a dar a certeza de

uma guerra irremediavelmente perdida (PAVONE, 1991, p. 7).

1.1.2 O ―25 de Julho‖, a primeira traição

Em 25 de julho, a Itália encontra-se diante de uma encruzilhada: a avançada dos Países

Aliados pela península é questão de tempo, mas o exército alemão transita livremente

pelo território italiano. Por isso, numa dupla tentativa de minimizar os danos com a

chegada dos Aliados e de conciliar a isso o fato irreversível de que o território estava

impregnado de alemães, o rei da Itália, Vittorio Emanuele III, e o Gran Consiglio

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Fascista depõem Mussolini e colocam no comando do país o Marechal Pietro Badoglio.

Os italianos acharam que fosse o fim da guerra, e os soldados, que já desertavam desde

o desembarque Aliado, agora o faziam sempre em maior número.

Efetivamente, ainda nada tinha mudado, e o exército emitiu ordens de punição contra

desertores. Não era o fim da guerra e, para a Itália, aquele seria um forçoso recomeço:

Badoglio, em seu discurso inicial, diria: ―A guerra continua. A Itália mantém a palavra

dada‖. E completaria seu discurso dizendo que a Itália iria reagir a todo e qualquer

invasor. Porém, a partir daquela data, quem fosse o invasor, quem fosse o inimigo e

quem fosse o aliado, não era mais claro nem para o exército e nem para o povo italiano.

Por isso ―toda a Resistência é atravessada por essa constante preocupação. (...) Que no

25 de julho o povo foi clemente demais‖ (PAVONE, 1991, p. 254).

1.1.3 A confusão dos ―Quarenta e cinco dias badoglianos‖

No intervalo conhecido como ―Quarenta e cinco dias badoglianos‖ faltaram diretrizes

básicas para o exército e a nação e a Itália viveu uma sensação de desamparo

institucional, nenhum poder regulador impunha ou cobrava algo23

. Durante esse período

foi delineada a situação caótica para o 8 de setembro: a ausência institucional, a revolta

dos italianos pela traição de seus superiores, o rompimento entre exército e população.

A vontade comum de acabar com a guerra não foi suficiente para criar entre

exército e população aquela concordância de intenção e de obra que, no entanto,

fez parte da retórica oficial dos quarenta e cinco dias badoglianos. Isso aconteceu

não apenas pelo comportamento dos altos Comandos, (…) mas porque o uso das

forças armadas em função de ordem pública comprometeu no nascimento qualquer

forma de fraternidade, embora (…) as tropas e os oficiais subalternos tenham

manifestado com freqüência relutância a executar as ordens mais drásticas

(PAVONE, 1991, p. 9).

23

PAVONE (1991).

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A partir de 25 de julho as instituições deixaram de dar qualquer garantia para as

escolhas individuais dos cidadãos italianos e todos eles passariam a decidir sobre si com

base em convicções altamente subjetivas. Nem Igreja, nem Exército, nem Monarquia,

nem Fascismo conseguiria guiar o país. E, a partir disso, que caminho escolher tornou-

se um grande problema.

Para os Aliados, a Itália estava apenas ganhando tempo. Sem que a Alemanha fosse

oficialmente comunicada, o marechal Badoglio seria o responsável pelas negociações de

rendição da Itália, que, como exigiram os Aliados, foi incondicional. Para os alemães,

os italianos tinham demonstrado o que já se sabia: ―eram um povo fraco, volúvel e

pouco confiável‖. Hitler agiu como se tivesse sempre sabido que a Itália mudaria de

lado e, depois de 25 de julho, aumentou assustadoramente o contingente alemão em

território italiano: cada vez mais o país caminhava para ser o cenário e o palco para o

desenrolar final da Segunda Guerra Mundial.

Os quarenta e cinco dias teriam servido também para dar tempo aos fascistas, com medo

da condenação dos Aliados e da população civil, de fugirem. E foi o que fizeram: os

comandantes dos altos cargos do exército, sem maiores explicações ou recomendações a

seus subalternos, simplesmente, um dia, sumiram. Esse foi um dia-chave na

historiografia da Itália moderna.

A desintegração do 8 de setembro marcou uma fratura não facilmente recuperável

na história das instituições militares italianas, e, mais ainda, na consciência do país

diante delas. Dessa fratura as drásticas tomadas de posição dos resistentes não

constituem mais que as manifestações mais evidentes (PAVONE, 1991, p. 99).

1.1.4 O ―8 de Setembro‖, a segunda traição

O dia 8 de setembro de 1943 é a data da chegada Aliada a Roma e marcou o fim dos

―Quarenta e cinco dias badoglianos‖ e a fuga em massa: quando chegaram a Roma, os

Aliados sequer acharam fascistas com quem negociar a tomada da cidade, todos haviam

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fugido, marechal Badoglio inclusive. Por sua vez, o rei não aguenta a pressão e assina o

acordo de paz, fugindo de Turim para Roma e de Roma para Bari (extremo-sul da Itália).

A Península fica dividida em duas (de Roma para baixo já liberada/ de Roma para cima

ainda em poder dos nazistas). ―Dia 9 de setembro Emanuele Artom anotou no seu diário:

‗Meia Itália é alemã, meia inglesa e não existe mais uma Itália italiana‘‖ (PAVONE,

1991, p. 172).

Mais uma vez nada estava definitivamente resolvido, mais uma vez os italianos estavam

em meio ao campo de batalha, expostos e abandonados, se sentiam traídos, os oficiais

tinham fugido, até o rei os tinha abandonado. E diante da sensação de abandono,

desertar era considerado natural: ―O que caracteriza a catástrofe do 8 de setembro é que

ninguém, oficial ou soldado, travestindo-se como civis, pensou que estava desertando‖

(PAVONE, 1991, p. 17).

Se 25 de julho tinha sido muito difícil para os italianos, 8 de setembro foi ainda pior,

como Giaime Pintor, antifascista, escreveria em seu diário:

Os soldados que em setembro atravessavam a Itália com fome e seminus, queriam

principalmente voltar pra casa, não ouvir mais falar de guerra e de esforços. Eram

um povo vencido; mas traziam dentro de si o germe de uma obscura retomada: o

sentido das ofensas realizadas e sofridas, o desgosto pela injustiça em que tinham

vivido (PAVONE, 1991, p. 21).

A reação da sociedade civil diante do 8 de setembro foi de desespero e raiva enquanto

assistiam ―às cenas em que pouquíssimos alemães dominavam muitíssimos italianos,

derrotados, perdidos‖ (PAVONE, 1991, p. 17). Tentando salvar os que ainda não

haviam sido capturados pelos alemães, os italianos deram total apoio aos desertores:

Os maquinistas diminuíam a velocidade do trem e efetuavam paradas imprevistas

para permitir que os soldados escapassem (…); os agricultores estavam imbuídos

da sensação de pena daqueles pobres sem casa e em perigo que eram, em sua

maioria, agricultores como eles (...); todos ofereciam roupas civis aos militares. (...)

A fraternidade entre civis e militares, que não tinha sido conseguida sob o signo

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equívoco de Badoglio, acontecia agora sob aquele da desgraça comum (PAVONE,

1991, p. 18).

Com a desfeita de toda instituição reguladora, por alguns meses, a Itália viveu um

estado de anarquia puro: em pequenos vilarejos não havia nenhum sentido regulador.

Nessa hora de abandono, o país acabou optando pela união. Mas, em novembro de 1943,

Mussolini foi tirado da prisão por uma expedição alemã e fundou no norte da Itália a

República de Salò ou Reppubblica Sociale Italiana24

, um governo sob explícito domínio

alemão, que serviria para dar apoio institucional à ocupação do território italiano pelos

alemães e seria a principal motivação dos últimos vintes meses de guerra. Diante dessa

nova instância de poder regulador e em paralelo à avançada dos Aliados (que se

contrapunha à primeira), fez-se necessária a escolha por parte da população italiana: ser

contra ou a favor dos que tentavam pela força impor uma ―lei‖25

.

Na hora de realizar a escolha, os impasses vieram à tona e tudo se tornou paradoxal e

polissêmico, toda escolha guardava também incoerências, a situação nunca mostrava

prós e contras por inteiro e a dúvida e a confusão seriam imperativos na Itália ocupada.

As hesitações que dominavam o imaginário italiano giravam em torno das perguntas

sobre se deveriam continuar participando daquela guerra, ou a Itália era agora apenas o

território em que ela se desenrolaria; se aquela guerra era justa e como lidar, nessa nova

conjuntura, com o fascismo; se tornar-se antifascista ou se era possível abster-se dessa

decisão; se das duas forças que se enfrentavam em território italiano, Inglaterra e

Alemanha, ambas grandes potências invasoras, qual delas seria a boa e qual a má e,

finalmente, se a luta era imprescindível, de que lado deveriam lutar.

24

Daqui em diante referida apenas pela sigla RSI.

25 PAVONE (1991).

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1.2 A decisão pela Resistência, uma guerra civil

Le guerre civili sono le sole che

meritano di essere combattute26

.

Franco Venturi

Num país em que reside o Vaticano, todos os italianos, ou quase, tinham feito dois

juramentos: ao rei e ao Duce 27

. Mas quem recebeu o juramento os tinha traído. Sobre a

traição do Marechal Badoglio a Hittler e ao nazismo, Gaetano Salvemini, antifascista,

escreveria: ―Um mau caráter não se torna um gentleman quando trai outro mau

caráter‖28

.

Nesse caso, o povo italiano se sentia liberado da fidelidade prometida. Se o rei e

Badoglio haviam traído, o povo italiano estava livre para não obedecer ao chamado para

a tentativa de reorganizar o fascismo na RSI no Norte e para não obedecer ao rei, que

tentava fundar novamente o Exército Régio, no Sul.

O primeiro significado de liberdade que assume a escolha pela Resistência está

implícito em seu ser um ato de desobediência. (…) Não exatamente contra a

legalidade (já que exatamente quem detivesse a legalidade estava em discussão),

mas desobediência a quem detinha a força de se fazer obedecer. (…) Que o poder

contra o qual se revoltassem fosse ainda julgado ilegal além de ilegítimo, não fazia

que completar o quadro (PAVONE, 1991, p. 25).

Grande parte da população, não sem alguns casos famosos de crise de consciência,

optou pela resistência: civis, intelectuais e soldados dissidentes do exército regular

começaram a desaprovar abertamente o Exército Régio, o fascismo, Mussolini e a

presença do exército alemão em território italiano, ―pegando em armas numa verdadeira

guerra civil para devolver a Itália aos italianos‖ (PAVONE, 1991). E sobre a definição

26

―As guerras civis são as únicas que merecem ser combatidas‖ (PAVONE, 1991).

27 PAVONE (1991).

28 PAVONE (1991 p.40).

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30

de guerra civil aqui adotada: ―No ambiente anti-fascista e resistencial a atribuição de

guerra civil ao que estava acontecendo por vezes é negada, mas mais frequentemente é

reconhecida, implicitamente ou explicitamente, com inflexões variadas‖ (PAVONE,

1991, p. 248).

A manchete dos principais jornais logo após o 8 de setembro antecipava os vinte meses

sucessivos da nação: ―Necessidade da luta armada e Povo e exército querem a paz. A

paz se conquista com a expulsão dos alemães do nosso território‖29

.

Era impossível, porém, que a Resistência fosse comandada por um poder institucional,

já que os únicos poderes nacionais (rei Vittorio Emanuele e marechal Badoglio) eram

traidores. Por isso, inicialmente, o movimento de resistência foi voluntário e

desorganizado, composto principalmente por jovens desertores, civis e intelectuais, que,

no território ocupado, tentavam pela força expulsar os alemães e com eles os fascistas

da RSI.

1.2.1 As instituições durante a Resistência, a revisão dos poderes e das funções

Nesse momento, e em relação ao fenômeno já instaurado da Resistência, as instituições

da Itália ocupada também passaram a desempenhar novos papéis. Se ao longo dos anos

do fascismo suas diretrizes haviam sido pautadas numa retórica tão fanática quanto

frágil por seu caráter ditatorial, com as alterações libertárias seguidas à Resistência as

duas principais instituições da Itália ocupada, Igreja e Exército, foram obrigadas a rever

seu lugar no novo conflito instaurado. Além disso, com a aproximação do fim da Guerra,

novas entidades representativas foram criadas para mediar a transição e/ou fundar as

bases políticas para a nova Itália.

Após a Primeira Guerra e ao longo de todo o fascismo, a Igreja mantinha uma aliança

com os ideais do Império Fascista com base em interesses recíprocos e se ocupava da

29

PAVONE (1991, p. 11).

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31

reconstrução da Itália e das almas. Com a entrada da Itália em guerra, a Igreja tentou

não se pronunciar abertamente enquanto instituição e permanecer acima de todas as

partes envolvidas, mas, na prática, três vertentes distintas operavam nos discursos da

instituição. Um incutia nos fiéis a ideia de que a Guerra é punição aos pecados; um

segundo justificava a Guerra como uma vontade divina, ―Deus quer, a História precisa‖;

e um terceiro pregava que um cristão não deve odiar nem matar. Juntamente com isso, a

Igreja pregava ainda que em guerra ―morrem sempre os melhores‖, o que justificava as

mortes e gerava culpa nos sobreviventes. Com a decadência do fascismo e o advento da

RSI, a Igreja foi se afastando do fascismo e, enquanto instituição, tentou continuar

acima de todas as partes. Mas voltou a viver inúmeros dilemas no nível do indivíduo: o

debate sobre a ―guerra justa‖ volta às consciências no embate entre RSI e Resistência.

Pois, se um soldado mata em guerra, ele está defendendo seu povo e cumprindo seu

dever. Mas se uma guerra se dá no interior de um mesmo país, o quinto mandamento

estaria, sem justificativas, ferozmente violado, e a Igreja não poderia apoiar uma guerra

fratricida.

Já o Exército, cujos soldados dos primeiros três anos de guerra eram ―bons e não viam

motivo naquela guerra‖, quando desfeito, dá lugar a soldados lutando numa guerra

violenta e cruel, de uma violência política que nada guardava da falta de engajamento

do Exército Régio. A Resistência seria para os jovens aventureiros e desertores do

exército uma oportunidade para, rompendo com o caráter hierárquico da instituição,

realizar um acerto de contas. Neste acerto, o Exército Régio foi fortemente penalizado

pela traição feita, e seus oficiais de carreira, em sua grande maioria, ficaram de fora da

Resistência, enquanto que os soldados rasos do Exército Régio seriam a base da

Resistência. O fato de que ex-soldados – rasos ou não – tenham constituído a

Resistência gerou a dificuldade em diferenciar ex-fascistas de resistentes, confusão que

fez com que os criminosos de guerra do Exército Régio nunca tenham sido entregues

aos Aliados (esse objetivo nem mesmo chegou a fazer parte dos planos da Resistência).

As distintas posições no interior das instituições podem ser pensadas também a partir de

suas divisões hierárquicas. Tanto na Igreja quanto no Exército era radical a diferença

entre o que pregavam – antes ou depois da Resistência – o alto clero e as altas patentes

do Exército, ambos comprometidos política e ideologicamente com o fascismo, em

oposição ao baixo clero e aos soldados rasos, que dada a distância hierárquica das

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decisões tomadas no interior das instituições, viviam perplexidades subjetivas e

dispunham de certa liberdade para agir no registro de um cotidiano inserido na

comunidade.

Há que se distinguir ainda os soldados regulares do rei, servindo no sul da Itália sob

dominação dos Aliados, e os rebeldes do Norte, que, embora pudessem ter o mesmo

objetivo – a expulsão dos alemães e a extinção do fascismo –, eram movidos por

princípios e motivos radicalmente distintos. No Sul, o poder do rei ditava as regras e os

combatentes lutavam sob a dominação de um líder, a quem deviam fidelidade e lealdade.

No Norte, os partigiani não serviam a ninguém e se organizavam muito livremente em

grupos – muitas vezes lutando entre si – para, na tentativa de romper definitivamente

com tudo o que a Itália representava, gerar algo novo, livre das amarras do passado,

livre de fascistas, invasores, igrejas e até reis.

Com o passar do tempo e a demora da avançada aliada, a Resistência foi se tornando um

fenômeno organizado. Surgem os Comitati di Liberazione Nazionali, órgãos semilegais

que negociavam com os aliados a avançada, quase como que preparando o terreno para

o fim da Guerra e o retorno do país a mãos italianas. Nesse segundo momento da

Resistência, surgem também os partidos, principalmente o Partido Comunista Italiano,

fortemente ligado à URSS comunista. Os partidos se opunham abertamente apenas no

que dizia respeito ao futuro da Itália, mas concordavam na parte mais relevante: a Itália

deveria ser liberada de fascistas e alemães e, como não havia outra possibilidade, a luta

armada realizada por grupos de resistentes deveria prosseguir e, com o fim da Guerra, a

Itália deveria tomar um novo rumo nas mãos dos novos representantes democráticos.

Para que isso acontecesse, os partidos, totalmente legais, através dos CLN, que

transitavam entre legalidade e ilegalidade, financiavam a Resistência: ―O enraizamento

dos partidos na sociedade italiana do pós-guerra teve certamente um dos seus

pressupostos nessa presença resistencial dos partidos, que ainda hoje legitima o arco

constitucional dos partidos da República Italiana‖ (PAVONE, 1991, p. 148).

À medida que os partidos tinham mais acesso aos grupos de resistentes, com o objetivo

de organizar o fenômeno da Resistência para obter resultados, começaram também a

interferir politicamente na formação de seus componentes, moldando as consciências

para o pós-guerra: ―Um material, por assim dizer, politicamente amorfo, quem chegou

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primeiro para ajudá-los, para estimulá-los, para lhes dar conselhos com uma maior

experiência, pôde orientá-los em direção às próprias posições políticas‖ (PAVONE,

1991, p. 151).

Compostos por jovens que tinham crescido sem conhecer nenhuma outra forma de

política que não fosse o fascismo, os grupos de resistentes começaram a se dividir entre

os apoiados por partidos – dependendo do partido variava também a orientação política

e o nome recebido – e os autônomos, que não recebiam auxílio regular de nenhum

partido e não expressavam direcionamento político a priori. As formações dos grupos

apoiados pelo Partido Comunista denominavam-se I Rossi – os Vermelhos – e aquelas

sem orientação política, apenas patriotas, e por vezes monarquistas, Gli Azzurri – os

Azuis. Embora a problemática da presença política na Resistência seja bem mais ampla

e não se limite à adesão ou não aos partidos por parte das formações (PAVONE, 1991, p.

161).

A questão relacionada à escolha de em que formação lutar, trouxe ainda maiores

problemas para os resistentes:

Bastava tornar-se anti-alemães para deixar de ser fascistas? O documento

comunista (...) parece negá-lo; e certamente nenhum ―anti-alemão‖ continuou a se

qualificar como fascista. Mas se fascista se assumia em sentido forte, aí a

perspectiva se tornava menos linear; e a suspeita com que foram vistas, por aquelas

politizadas, as formações ―autônomas‖, meramente militares ou patriotas, parece

poder ser atribuída não apenas a sectarismo político, mas à percepção de uma

diferença de substância e de um não resolvido emaranhado da consciência nacional

lidando com o problema da própria responsabilidade diante do fascismo e da guerra

(PAVONE, 1991, p. 259).

Como vemos, as consciências em jogo na Itália do período resistencial estavam lidando

com um número não facilmente delimitado de variáveis, em que rompimentos e

retomadas tanto institucionais quanto subjetivas alteraram o desenrolar dos fatos no pós-

guerra italiano.

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34

1.2.2 O partigiano

É nesse momento, de uma maior organização política, que os ―rebeldes‖ e os

―desertores‖ passam a ser chamados indiferentemente da origem ou da orientação

política, de partigiano. Palavra inicialmente rechaçada pela sua etimologia – ―de parte‖

dava a ideia de alguém que luta em prol de uma parte e não de outra –, com o advento

da politização entre os bandos, a palavra ganha o sentido histórico dos partizans russos

e passa a designar ―resistentes‖, cobrindo semanticamente todos os envolvidos na luta

pela liberação italiana, comunistas ou não.

O primeiro grande desafio dos partigiani foi aquele de se desvincular da ideia de que

seu comportamento era de antipatriotismo ao desejar que a Itália perdesse a Guerra.

Outra dificuldade era aquela de lutar contra seus compatriotas numa guerra fratricida30

.

Os partigiani tentaram também criar um novo ideal de pátria, mas a empreitada não foi

bem sucedida, porque a outra metade da Itália estava apenas arrasada com a Guerra e

não motivada pela insurreição da Resistência31

: ―O fato de que italianos combatessem

contra italianos e que uns e outros invocassem a Itália tornava de fato mais difícil, mas

também mais urgente, a reconquista de um seguro sentido de pátria‖ (PAVONE, 1991, p.

173).

Um orgulho partigiano foi o de ter rompido, ou desejado romper, com tudo o que o

fascismo tinha representado. Marcado pela dureza da experiência da guerra, rechaçando

qualquer comportamento religioso, o partigiano provou ser mais competente que os

oficiais militares de carreira e poder fazer a Resistência sem o auxílio do ―hierárquico e

burocrático‖ Exército Régio: ―A identidade nacional não podia então ser reconstituída

que tirando de si o secular destino que tinha feito da Itália apenas o palco dos grandes

dramas históricos recitados como protagonistas por outros povos‖ (PAVONE, 1991, p.

179).

30

―Os italianos são o único povo (acredito) que tenham na base da sua história (ou da sua lenda) um

fratricídio‖ (SABA apud PAVONE, 1991, p. 267).

31 ―Una parte d‘Italia aveva subito la miseria della guerra, non la scossa morale dell‘insurezione‖ (PARRI

apud PAVONE, 1991, p. 74).

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35

Muitos foram os paradoxos vivenciados pelos indivíduos envolvidos, entre eles a

problemática relação entre legalidade e ilegalidade, voluntariado e financiamento

partidário; ou, ainda, o dilema sobre até que ponto o direcionamento político diminuía a

liberdade das formações, se receber ou não receber dinheiro dos partidos, e, caso

optassem por receber, se deveria haver distinção entre o honorário dos chefes de bandos

e dos outros partigiani; havia ainda a dúvida, às vezes política, outras aleatória, sobre

em que grupo lutar; e, por último, os italianos se perguntavam se, uma vez expulsos os

alemães e fascistas, em que medida a ocupação da Itália por ingleses e americanos

consistia numa boa troca: ―Dos Aliados, então, não se podia prescindir, mas era

necessário manter diante deles autonomia e dignidade, diferenciando-se, também nisso,

do comportamento dos fascistas em relação aos alemães‖ (PAVONE, 1991, p. 193).

A intensificação da Resistência italiana após o 8 de setembro seria recebida com

desconfiança e alguma admiração pelo países Aliados, o que reforçava ainda mais nos

partigiani a necessidade de provar seu rompimento com a Itália anterior. A relação entre

Inglaterra e Itália estava abalada pelos primeiros anos de guerra, mas não se podia

prescindir daquela massa de soldados que, voluntariamente, se colocava à disposição

dos países Aliados para lhes ajudar a vencer a Guerra.

A admiração é maior enquanto – digamos francamente – no exterior era difusa a

opinião de que uma coisa parecida os italianos não teriam feito nunca (...). A idéia

que neles seja defeito não tanto a coragem física quanto a virtude militar e até a

vontade de lutar, não é de hoje e não é de ontem32

.

Já os fascistas da RSI demonstraram dificuldade em reconhecer a própria existência dos

partigiani.

Os fascistas têm de fato dificuldade em compreender como se possa não ser

heróicos (...) e ao mesmo tempo não ser banais. Para além dos objetivos de

propaganda, o uso de expressões como ―bandidos‖ (...) manifestava o forte

desconforto diante de um fenômeno imprevisto, que se tentava exorcizar atribuindo

32

PAVONE (1991, p. 191).

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36

o nascimento e o desenvolvimento a agentes externos (PAVONE, 1991, p. 239).

Na base dessa negação fascista, estava uma profunda incredulidade na possibilidade real

dos antifascistas de pegar em armas. Dessa incredulidade advinha a maior dificuldade

em sair vitoriosos daquela guerra civil contra os partigiani: ―A segurança por muito

tempo gozada pela cobertura institucional, o desprezo pelo adversário (...) tornava os

fascistas não preparados para enfrentar uma verdadeira guerra civil combatida por

ambas as partes‖ (PAVONE, 1991, p. 240).

Quanto ao dia a dia daqueles vinte meses, é importante lembrar que tanto o governo do

rei quanto o governo fascista evitaram, em comum acordo com seus respectivos aliados,

provocar um enfrentamento direto entre seus exércitos. O enfrentamento se daria entre

RSI e partigiani, levantando mais uma vez a discussão sobre a relação inexistente entre

Exército Régio no sul da Itália e partigiani no norte.

Esta é uma confirmação de que a guerra civil não foi combatida entre Reino do Sul

e República Social Italiana. Foi uma guerra combatida entre os fascistas e anti-

fascistas, sobre o único território que os via ambos presentes politicamente e

militarmente, numa partida que assumia também um significado envolvendo todo o

povo italiano (PAVONE, 1991, p. 238).

Os fascistas da RSI nada ofereciam de novo em relação aos fascistas dos primeiros anos

de guerra; ao contrário, se mostravam desesperados. O surgimento do partigiano trará

outra possibilidade de identificação e uma nova perspectiva para o acerto de contas com

o passado, cheio de esperança e projetos. O aparecimento desse novo oponente levará os

fascistas a um ulterior desgaste em sua função e naquilo que representavam para o povo

italiano.

O persistente uso de ―fascista‖ como epíteto injurioso, global e resumidor das

ignomínias capazes de se instalar em um ser humano, pode se considerar uma

extrema conseqüência desta dilatação, em que a RSI deu uma conclusiva

contribuição no conteúdo semântico da palavra além dos limites historicamente

verificáveis (PAVONE, 1991, p. 260).

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37

No final da Guerra, a escolha pela Resistência tornou-se ainda mais dramática. O

inverno de 1944 foi rigoroso; os fascistas e alemães, já cientes de que perderiam a

guerra, tinham se tornado mais cruéis e menos tolerantes com os partigiani; havia uma

maior escassez de comida e as batalhas diminuíam entre RSI e partigiani com a

avançada aliada. Nos últimos meses de guerra, muitos foram os partigiani, que, não

suportando tantas provações físicas, se esconderam em lugar mais confortável,

esperando a Guerra acabar.

Contínua era a necessidade de renovar a escolha [pela Resistência] cada vez em

condições ainda mais difíceis daquelas dos primeiros meses (…). A escolha deve

ser, portanto, considerada, muito mais do que como uma instantânea iluminação,

como um processo que a cada vez abre o caminho por meio de provações, porque

cansados estão os homens que a vivem (PAVONE, 1991, p. 39).

A República Social Italiana, ou República de Salò, o governo-fantoche sob domínio

alemão, durou até abril de 1945, quando Benito Mussolini e sua amante Clara Petacci

foram capturados, julgados rapidamente e fuzilados, e seus corpos expostos em praça

pública, em Milão. Era o verdadeiro fim da Segunda Grande Guerra. Como tinham

esperado os italianos em 25 de julho e em 8 de setembro de 1943 e como tinham

desejado nos 20 meses seguintes.

E aí? – gritei a eles diminuindo a velocidade da bicicleta. E tanta era naqueles dias

a identidade de sentimentos e pensamentos que eles entenderam muito bem o

sentido da minha pergunta e, embora não me conhecessem como eu não os

conhecia, responderam com um gesto alegre de mão: – Foram embora!33

.

33

PAVONE (1991).

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38

2 O Neorrealismo

A Resistência foi na história, na política, na cultura e na sociedade italiana a herança

mais importante deixada pela Segunda Grande Guerra para a Itália (enquanto que dos

três primeiros anos de guerra fala-se pouco ou nada, como que num recalque do

fascismo): a experiência de desobediência em massa, vivida pela primeira vez na

história da Itália unida34

, deixou muitos frutos: politicamente, a Itália foi um

prolongamento daquele cenário até os anos 1990, com o início da Segunda República, e

ainda é, hoje, o que se organizou entre os partidos naquele período; socialmente, ainda

vive a problemática de classes e sindicatos alavancada com o proletariado naquele

momento; e, culturalmente, ainda se remete, com frequência, para reafirmar ou negar, às

questões estéticas levantadas a partir daquela guerra civil.

A produção cultural do pós-guerra na Itália, principalmente literária e cinematográfica,

é conhecida pela ―etiqueta‖ Neorrealismo. A palavra tem origem no movimento alemão

de reação ao Expressionismo, denominado Neue Sachlichkeit, de onde quase certamente

deriva o vocábulo italiano Neorrealismo, também em final dos anos 192035

. Mas a

palavra permanece pouco utilizada na língua italiana até o ano de 1942, quando é

empregada, no sentido que conhecemos hoje, por Mario Serandrei, montador do filme

Ossessione, de Lucchino Visconti. Em uma carta ao diretor, Serandrei diria: ―Não sei

como poderia definir este tipo de cinema se não com o apelativo de neorrealístico‖. Em

1943, a etiqueta se estende do cinema à literatura, assegurando assim a autonomia do

vocábulo em relação à sua origem alemã 36

e ao seu uso literário – Realismo – na Itália

dos anos 1930, de que o Neorrealismo não é uma retomada.

O Neorrealismo não foi um movimento organizado, apesar de no cinema ter tido um

grande amadurecimento da discussão teórica. Não tem manifestos nem artistas reunidos

nem obras de caráter exclusivamente panfletário ou engajado. Embora as raízes do

rompimento que o Neorrealismo realizou estejam localizadas no começo do regime

fascista, segundo Maria Corti, filóloga e crítica italiana, são nos últimos anos de Guerra,

34

PAVONE (1991).

35 BRUNETTA (1972, pp. 129-136).

36 CORTI (1978, p. 29).

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39

principalmente pela influência da Resistência – ―de onde [deriva] o seu caráter mais

coletivo e ligado a um processo generalizado de liberação‖ 37

– que tal rompimento se

manifesta. Assim, por ―Neorrealismo‖ entende-se aqui um conjunto de manifestações

artísticas fruto de um mesmo ambiente, nem sempre produzidas durante os anos de

imediato pós-guerra, mas contaminadas pela experiência de uma Itália arrasada por uma

guerra perdida, apoiada moralmente numa Resistência vitoriosa38

. Esteticamente,

poderia dizer, com André Bazin, que o que justifica o epíteto de ―Neorrealismo‖ é certa

―vontade de realismo‖, em oposição ao esteticismo39

.

O Neorrealismo, tanto cinematográfico quanto literário, teve como matriz a Segunda

Grande Guerra e diante daquele cenário elaborou a renovação das linguagens na

tentativa de uma nova forma de fazer arte, no caso, e não por acaso, naquele momento,

fortemente marcada pela cinematografia. O cinema, filho da possibilidade técnica

surgida com a fotografia, representava a possibilidade de ―mostrar‖ a realidade

―exatamente como ela se dava‖, foi a linguagem preferencial para uma tentativa de

ficcionalização/transliteração do real. Numa profunda relação com o documentário, o

cinema neorrealista extrapolaria as fronteiras do real e do ficcional, através de

estratégias conscientes de manejo das duas matrizes, o ―sublime‖ e o ―humilde‖40

, ora

aproximando-as, ora afastando-as.

Apesar de todas as especificidades, algumas recorrências daquele cinema merecem

atenção. São elas: a descoberta da paisagem italiana e o gosto pelos ambientes naturais,

aqui não estáticos, mas determinantes à ação; a escolha por mostrar uma ―Itália

proletária, suburbana, anti-heróica‖41

; o emprego dos dialetos presente em muitos

filmes42

; o valor de documentário de algumas películas; o uso de atores não

37

CORTI (1978, p. 29).

38 FABRIS (1996).

39 BAZIN (1981).

40A terminologia é de Maria Corti (1978). Corti entende por sublime tudo o que advém da tradição

literária e por humilde, o que era colhido na oralidade das classes menos favorecidas, agora, através das

operações formais do Neorrealismo, inseridas no sublime.

41 POGGIOLI apud FABRIS (1981, p. 67).

42 ―Os dialetos, considerados pelo fascismo como uma força desagregadora da almejada unidade

linguística nacional, haviam sido praticamente banidos das telas‖ (FABRIS, 1981, p. 71).

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40

profissionais43

; o gosto pela crônica do dia a dia e pelos sentimentos dos humildes44

.

2.1 O Neorrealismo em divergências: cinema e literatura

Entre as duas linguagens ligadas ao Neorrealismo – literatura e cinema – há muitas

interseções e alguns pontos cegos. As interseções formais são inúmeras, e já longamente

levantadas pela crítica especializada na Itália e não só. Mas o principal ponto cego

temático talvez seja a concepção que cada uma das linguagens, com seus respectivos

autores e obras, acabaram desenvolvendo sobre a Resistência. Para o cinema, a

Resistência é principalmente anterior ao fatídico 8 de setembro. Para a literatura, a

Resistência existe de fato a partir daquela data: e da relação ou ―com-vivência‖ com

aquela guerra civil nasce uma forma específica de narrar, uma atenção renovada para a

língua falada na Itália, o partigiano e a guerra civil, respectivamente o personagem e o

ambiente que se tornariam pano de fundo para o desafio estético daquele período:

conseguir narrar aquela guerra civil literariamente.

Daí a predileção, no corpus desta pesquisa, apenas pela literatura, por acreditar que é

devido a certa concepção específica que as obras literárias explicitaram da Resistência,

principalmente os escritos de Beppe Fenoglio, que elas podem operar uma nova

narrativa, cavadas num ―entre‖, numa transição, de que trataremos melhor em seguida.

O cinema, por viver naquele momento uma espécie de fundação enquanto linguagem,

não se remete tão profundamente à tradição, pois ali estava sendo criada uma tradição

inicial, permitida naquele momento também por certo desenvolvimento tecnológico45

, a

que a linguagem cinematográfica iria se remeter dali em diante. Segundo o crítico

43

―Rosellini também preferiu muitas vezes trabalhar com atores não-profissionais, porque, em sua

opinião, não tinham idéias pré-concebidas e, uma vez desbloqueados do medo que os paralisava na frente

de uma câmera e que podia levá-los a representar, conseguiam ser eles mesmos. O trabalho do diretor

consistia precisamente em reconduzi-los à sua natureza verdadeira, em devolver-lhes os gestos habituais‖

(FABRIS, 1981, p. 82).

44 FABRIS (1981, p. 90).

45 SEGRETO (2004).

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41

italiano Asor Rosa, no cinema, a ―ausência de uma tradição nacional permitiu uma

criação mais livre e sem preconceitos também de um ponto de vista estilístico‖46

.

Já para a literatura, o movimento era de negação e retomada, a partir de uma longa

relação com a tradição, agora permeada por uma recém-fundada tradição oral, na

tentativa de desenvolver um novo modo de narrar, sendo ele diretamente ligado à

Resistência dos dois últimos anos de guerra.

2.2 O Neorrealismo em literatura e suas constantes

Sobre quais textos devem ser entendidos como neorrealistas, a problemática não é

simples e envolveria um estudo maior e a elaboração de critérios para análise das obras

neorrealistas e a aproximação de um corpus de grande peso. Por enquanto, nos

limitamos a aceitar, para a produção literária, o estudo realizado pela teórica Maria Corti,

segundo o qual é a combinação de critérios temáticos e formais que enquadra uma obra

na etiqueta neorrealista, e não apenas critérios cronológicos. Em outras palavras, nem

tudo o que se produziu na Itália entre os anos de 1941 e 1950 é neorrealista e nem tudo

o que se produziu antes ou depois disso necessariamente não o é47

.

Trata-se de um conjunto de obras disperso no que diz respeito à cronologia, ideologia e

forma. Mesmo assim, Corti tenta propor um conjunto de constantes que agregariam as

obras neorrealistas sob esse nome, apesar de o Neorrealismo não ter desenvolvido uma

―poética com regras codificantes‖48

.

A primeira constante genérica postulada pela autora é uma ―constante de

contraditoriedade‖ que tem ―por base a contraditoriedade do contexto sócio-cultural‖ e

está expressa na dualidade entre ―mentalidade burguesa ainda ativa e consciência

florescente de um futuro socialmente distinto‖. Essa dualidade apresentou para a

46

ASOR ROSA apud CORTI (1978, p. 32).

47 Sobre as datas: 1941, dois anos antes do início da Resistência italiana; 1950, dois anos depois do início

da ―involução política italiana com as conseqüentes desilusões dos intelectuais e o declínio da narrativa

firmemente engajada‖ (CORTI, 1978, p. 29).

48 CORTI (1978, p. 32).

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42

literatura neorrealista problemáticas de ordem ―temática, ideológica, lexical e

estilística‖ e gerou, segundo Corti, a partir de uma citação de Italo Calvino, uma cisão

entre a realidade social e o protagonista, deixando os textos neorrealistas sempre no

―meio do caminho‖, não conseguindo desenvolver nem a dimensão coletiva nem a

individual.

A segunda constante postulada por Corti é um pouco mais específica e trata da

novíssima relação da literatura italiana com uma tradição oral recém-desenvolvida

durante os anos de Resistência. Essa constante está expressa na ―idéia de uma

potencialidade narrativa nova, recém-descoberta‖ e na ―consciência de poder dar início

a algo diferente no plano tanto temático quanto formal‖. A citação de Italo Calvino

utilizada pela autora nessa argumentação é também retirada do prefácio à segunda

edição do Il sentiero dei nidi di ragno (1964) e elucida muito bem a discussão.

Durante a guerra partigiana as história recém-vividas se transformavam e

transfiguravam em histórias contadas de noite em volta da fogueira, adquirindo já

um estilo, uma linguagem, um humor como de façanha, uma pesquisa de efeitos

angustiantes e truculentos. Alguns dos meus contos, alguma páginas deste romance,

têm em sua origem esta tradição oral recém nascida, nos fatos, na linguagem49

.

A problemática da aproximação oralidade/literatura tem relação ainda com o vínculo

existente entre esse narrador oral, o narrador literário desenvolvido a partir do primeiro,

e o destinatário de ambas as narrativas. Segundo Corti, por trás do narrador oral havia a

inserção de ―uma voz que vinha de baixo, dada a mistura dos estratos sociais nos grupos

partigiani, de atores e testemunhas de fatos‖ e não de relatórios institucionais ou

oficiais mediados por funcionários de altos cargos, como acontecia nos comunicados de

guerra do Exército Régio.

A partir dessa constatação, Corti lança uma inquietante pergunta: ―Havia de onde fazer

nascer uma literatura épica-popular. Porque não nasceu e no seu lugar nasceu o

49

CORTI (1978, p. 34).

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Neorrealismo?‖50

. A pergunta merece uma longa discussão. Fica aqui a ideia de mais

um ideal frustrado na Itália do pós-guerra e de mais uma característica que fundamente

o recorte do corpus desta pesquisa: segundo Corti, Beppe Fenoglio, com seu romance

póstumo Il partigiano Johnny, constitui a única exceção de uma épica popular bem

sucedida nos autores neorrealistas.

A terceira constante trata da tensão moral e formal de que estavam dominados os

escritores do Neorrealismo na Itália. Tal tensão, como também a segunda constante da

―idéia de uma potencialidade narrativa nova‖, nasce da impossibilidade de aqueles

escritores permanecerem, em qualquer lugar da península, indiferentes a ―uma nova

realidade popular e a um novo sentido de coletividade como força ativa e comunicante‖.

De onde deriva a constante que está expressa no ―programa de engajamento, a

consciência de um engajamento como modelo de comportamento absoluto do

intelectual e do artista‖51

.

Logo, o que entendo aqui como Neorrealismo é um conjunto de obras e autores que

estavam lidando em seus textos diretamente com essas questões, sem resolvê-las. Pois o

Neorrealismo ―é um modo de organizar-se da experiência histórico-social de um

momento da coletividade italiana; daqui sua função de signo em uma tipologia da

cultura italiana pós-bélica‖52

.

2.3 A literatura neorrealista em divergências

Faço minhas, novamente, as palavras de Corti, quando a autora afirma que poucos são

os autores cuja produção possa ser entendida como inteiramente neorrealista, já que o

Neorrealismo nasce de um momento histórico, e não de uma imposição ou suposição

50

A autora cita em resposta a célebre frase do germanista Cesare Cases: ―Vivemos em um país onde se

verificam sempre as causas e nunca os efeitos‖. A discussão prossegue no texto em questão, a que

enviamos para possível aprofundamento (CORTI, 1978, p. 35).

51 Sobre o desenrolar mal sucedido de muitas das pretensões explicitadas nessas constantes, enviamos ao

mesmo texto de Maria Corti, em que a autora trata das dificuldades, para o escritor neorrealista, em

realizar plenamente seu propósito (CORTI, 1978, p. 36).

52 CORTI (1978, p. 31).

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estética a priori, momento esse em que se produziu

uma verdadeira fratura nas condições políticas em que a consciência do

rompimento é não apenas genuína, mas com raízes novas, resistenciais, de onde

seu caráter mais coletivo e ligado a um processo liberatório generalizado: a

humanidade assistiu e participou de grandes fatos e por isso nela explode (...) a

vontade de narrá-los 53

.

A partir do argumento de maior ou menor aproximação a esse momento histórico (fato

que não decorre necessariamente de uma coincidência cronológica, mas, advindo de

caminhos distintos, é percebido diretamente nas obras literárias), Corti apreende a

relação dos autores com o Neorrealismo. Segundo a autora, Elio Vittorini e Cesare

Pavese, comumente enquadrados entre os neorrealistas por se tratarem de autores já em

exercício antes do fenômeno da Resistência, teriam sofrido menor influência e seriam,

principalmente, grandes referências aos autores jovens, que começariam a escrever a

partir da experiência da Resistência, estes, sim, neorrealistas.

Elio Vittorini, nascido no sul da Itália, desenvolveu uma escrita muito mais ligada ao

―Verismo‖, com a problemática meridional e o dialeto siciliano ocupando forte papel na

narrativa. Apenas o livro Uomini e no (1945) é visto por Corti como neorrealista54

.

Cesare Pavese via muito desconfiadamente os partigiani. Não lutou na Resistência, não

empunhou armas, nunca compreendeu direito porque devesse necessariamente fazê-lo.

A Resistência aparece em sua obra muito mais como um fato mítico que se soma a

tantos outros do que como fator determinante ao desenrolar dos fatos e/ou evoluir dos

personagens. Apenas o livro Il compangno é considerado por Corti uma obra

neorrealista.

53

CORTI (1978, p. 30).

54 A autora exclui da produção neorrealista do autor seu livro mais célebre, Conversazione in Sicilia,

alegando ter temática neorrealista, mas afirma que o ―nível formal da obra guia para uma leitura mítico-

lírica que com o Neorrealismo não tem nada em comum‖ (CORTI, 1978, p. 25).

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Italo Calvino, por sua vez, profundamente formado pela Resistência – foi partigiano nas

montanhas –, escreveu apenas seu primeiro livro dialogando diretamente com o

Neorrealismo (Il sentiero dei nidi di ragno, de 1947). Após a publicação de muitos

textos apenas de memória e crônica jornalística daquele ambiente, Il sentiero é

considerado unanimemente pela crítica o primeiro texto do pós-guerra já

definitivamente uma transposição literária do ambiente resistencial. Depois dele,

Calvino passou para a chamada ―fase fantástica‖ (Il barone rampante, Il cavaliere

inesistente e Il visconte dimezzato) e, a partir daí, sua produção passou a ser

esteticamente muito mais ligada ao surrealismo e ao OuLiPo55

do que propriamente ao

Neorrealismo.

Quase como confirmação da tese sustentada por Corti de que Pavese e Vittorini foram

pouco influenciados pela linguagem/temática da Resistência e Calvino, rapidamente,

seguiria outro caminho, agrego aqui um argumento biográfico fundamentado no papel

por eles desempenhado no sistema literário italiano do pós-guerra. Os dois primeiros

exerciam já uma função decisiva no mundo da literatura durante a Guerra; Pavese, como

tradutor, Vittorini, como editor. Calvino, embora mais jovem, desde muito cedo

resenhava, escrevia críticas e artigos em jornais italianos. Em comum, diria que o

percurso dos três autores aconteceu dentro de uma das maiores editoras da Europa

naquele momento, a Einaudi, onde eles exerceriam papéis de grande importância no

país, lendo tudo o que se publicava na Itália, emitindo juízos de valor sobre os textos,

filiando-se e desfilando ao Partido Comunista, discutindo, teoricamente, que Itália

propor e que Itália negar, ocupando posições na imprensa nacional, traduzindo,

resenhando e levando a público livros e autores.

Beppe Fenoglio, também segundo Corti, permaneceria, ao contrário dos outros três, um

exemplo produtivo de autor neorrealista. Sua obra, e daqui decorre uma das principais

hipóteses fundadoras desta pesquisa, está fortemente inserida na Resistência, fenômeno

chave para o Neorrealismo, com seus temas, ritmos e dramas característicos. Considero

então sua produção paradigmática para pensar os problemas vividos pela literatura

55

Surgida na França no ano de 1960, o OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle) é uma corrente

literária formada por escritores e matemáticos que propõe a libertação da literatura, aparentemente de

maneira paradoxal, através dos chamados constrangimentos literários. Seus principais autores são

Raymond Queneau, François Le Lionnais e Georges Perec, além do próprio Italo Calvino.

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naquele período. Fenoglio, além de ter sido um outsider da literatura italiana pela

separação física dos outros autores do período e do mundo da literatura (nunca uma

resenha, uma crítica, um ensaio), foi também o único cuja cronologia das obras, mesmo

com alguns pontos obscuros, mostra um autor em pleno 1963 ainda escrevendo

literatura sobre a experiência da Resistência italiana em que vigora o desafio de muito

mais de um século: como continuar narrando literariamente na modernidade, com que

língua, em que tipos textuais, com que temática, em que registro, a partir de que relação

entre experiência e literatura ou tradição e literatura ou ainda morte e literatura.

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47

Capítulo II

1 Duas obras em duas vidas: Walter Benjamin e Beppe Fenoglio

Naquele momento de transição, num pós-guerra de cenário desolador e ao mesmo

tempo esperançoso, Beppe Fenoglio começaria a escrever num diálogo profundo com

muitas das problemáticas levantadas alguns anos antes por Walter Benjamin.

Provavelmente alheio a elas – é sabido que a biblioteca do escritor era composta

principalmente de obras literárias, poucas de teoria da literatura –, a produção literária

de Fenoglio parece pedir uma aproximação à teoria de Benjamin: um teórico que pagou

com a vida o horror de uma experiência que um escritor narraria toda a vida.

Partindo da concepção de que em literatura a vida dos autores ou teóricos nem sempre é

relevante, chego convicta à conclusão de que no caso de Benjamin e Fenoglio é

extremamente relevante e até necessária uma compreensão da obra desses autores

também em relação às suas vidas. No caso específico desses dois autores, obra e vida

estão ligadas numa inseparável relação, que perpassa os escritos de ambos: Benjamin e

Fenoglio se aproximam e conversam entre si quase que inevitavelmente. Nessa

chiaccherata por mim realizada, falam de suas obras – se aproximam principalmente

por causa delas –, mas falam também de suas vidas, que, em comum, alimentam a

lucidez, a clareza, o valor estético, o pessimismo e a esperança da modernidade e de a

humanidade achar saídas para suas falências. Na conversa, ambos concordam que a

maior dessas falências foi a Segunda Grande Guerra e que esse fato marcaria

profundamente suas vidas e, consequentemente, suas obras.

Por isso, nesta pesquisa, o fio condutor da aproximação nada aleatória das duas

vidas/obras é dado exatamente pela Segunda Guerra Mundial: ponto de partida e de

chegada para as vidas e obras dos respectivos autores, com o desdobramento da

Resistência, uma consequência trágica, mas também transformadora, que permitiria a

Fenoglio propor uma nova tentativa de narração sobre a qual Benjamin não pôde refletir

ou teorizar.

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Aqui nasce o cerne da tentativa de aproximação entre Walter Benjamin e Beppe

Fenoglio. Benjamim viveu, teorizou e foi morto pela mesma Segunda Guerra a que

Fenoglio iria sobreviver alguns anos depois e sobre a qual iria escrever durante toda a

vida. Ambos viveram a mesma encruzilhada histórica em momentos e perspectivas

distintas e dela surgiu a obra teórica de Benjamin e a obra literária de Fenoglio.

Benjamin teorizou sobre aquela crise e afirmou que, com todas as mudanças que

alteraram também a sociabilidade – como a modernidade, o capitalismo e as guerras

permitidas por um estrondoso desenvolvimento técnico –, a literatura também passaria

por uma transformação. Disse também que uma nova forma de narrar deveria nascer

dessa transformação: Fenoglio escreveu sobre e a partir dessa crise, na tentativa de

transformação permitida pela Resistência – que depois se mostrou frustrada –; de dentro

da crise, falando dela, num exercício de invenção desse novo modo de fazer literário.

1.2 Uma obra e uma vida: Walter Benjamin

Walter Benjamin nasceu em Berlim, em 1892, e foi um dos mais notáveis teóricos e

críticos de literatura do século XX. Atento ao momento de transição que vivia, pensou

as mudanças de seu tempo a partir de pontos-chave como o capitalismo, a modernidade,

o positivismo, o tecnicismo e o fascismo, chegando às mudanças no modo de produção

de sua época. Foi um crítico severo da ascensão do nazismo na Alemanha e de certa

crença cega no progresso técnico e científico, direção irrevogável que o homem parecia

ter tomado. Objetivando reinventar o modelo do gênero ―crítica literária‖ na

Alemanha56

, foi autor de textos de extrema importância para a teoria literária, todos eles

escritos por alguém cujo olhar era sempre permeado pela literatura, construindo

argumentos de grande rigor estético para a discussão teórica, se utilizando de imagens

obtidas a partir de metáforas.

De origem judaica, escolheu permanecer na Alemanha durante os anos do cerco. Negou

convites para fugir para a Palestina, para os Estados Unidos e até para o Brasil. Em

56 SELLIGMANN (2009). Selligman afirma ter sido esse o propósito mais ousado de Walter Benjamin,

atingido com sucesso.

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1940, fugiu finalmente para a França, onde, obedecendo ao chamado das autoridades

nazi-fascistas, se dirigiu espontaneamente, juntamente com outros judeus, a um estádio

de futebol onde foi preso. Após esforços políticos, Benjamin foi liberado e tentou sair

da Europa pela França, a partir dos Pirineus, numa travessia a pé, juntamente com um

grupo de outros judeus. Na fronteira com a Espanha, Benjamin teve seu visto de entrada

negado e cometeu suicídio no quarto do hotel em que estava hospedado.

Walter Benjamin escreveu sobre muitos temas, que tratam, sobretudo, da modernidade.

Mas, embora seus textos se alimentem do contexto em que foram escritos, não estão

restritos a ele. Em comum, diria que abordam uma mesma crise e estão localizados na

mesma ―encruzilhada histórica‖. Essa crise reverberou em muitos campos do

pensamento: fotografia (1931 – ―Pequena história da Fotografia‖), arte (1935/1936 – ―A

obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖), literatura (1930 – ―A crise do

Romance‖, que trata da crise do gênero literário; 1933 – ―Experiência e pobreza‖, que

trata da crise da experiência; 1934 – ―O autor como produtor‖, que trata da crise na

função social do escritor; 1936 – ―O Narrador‖, que trata da crise na função social

desempenhada pelo narrador) e história (1940 – ―Sobre o conceito de História‖). E a

―encruzilhada histórica‖ entre a Alemanha nazista, o antissemitismo, o entre-guerras, o

coroamento da ascensão burguesa, uma crise econômica anunciada e uma consequência

lógica por ele prevista: mais uma guerra.

1.3 Outra obra, outra vida, a mesma guerra: Beppe Fenoglio

Beppe Fenoglio, alguns anos depois, viveria essa guerra: a Segunda Grande Guerra, mas

principalmente a Guerra Civil de Resistência aos alemães. E ali teria início a

experiência/vivência57

na vida do autor que modificaria por completo sua atuação como

escritor: a Resistência italiana58

.

57

A distinção benjaminiana dos dois conceitos será mais bem abordada ainda neste capítulo.

58 É consenso na crítica especializada da obra de Fenoglio que ―a Resistência se tornara o centro da sua

vida, o evento que o revelou a si mesmo determinando o seu destino como homem e como escritor‖

(BUFANO, 2007, p. 12).

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Fenoglio foi um autor profundamente marcado pela experiência da Resistência, vivida

em primeira pessoa. Aquela experiência iria ditar o principal filão da sua produção

literária, daí a pertinência em acompanhá-la também a partir da biografia do autor, que,

nesse caso, e como era característico do Neorrealismo, se utilizou do artifício de um

pacto de verossimilhança e autobiografismo com seus leitores para alcançar e partilhar

sua experiência narrativa.

Fenoglio nasceu em 1º de março de 1922, em Alba, pequena cidade de vocação

primordialmente rural, no norte da Itália. O irmão Walter nasceu em 1923 e a irmã

Marisa dez anos depois, em 1933. Seus pais, Amilcare e Margherita, eram de origem

humilde; o pai, açougueiro num tempo em que carne se comia apenas aos domingos ou

em ocasiões festivas, a mãe, dona de casa, a quem Beppe chamaria sempre madre,

nunca mamma.

O autor, que sofria de certa gagueira desde a infância, muito cedo chamou a atenção dos

professores e, ao final de cada ano de escola não obrigatória, seus pais eram convocados

pelos professores, que insistiam para que Beppe continuasse estudando. Os pais, como

não era comum à época, tentaram criar os três filhos para uma perspectiva melhor que a

deles: por isso eles puderam continuar estudando.

O impacto do filho do açougueiro com os filhos da burguesia de Alba, estudantes

habituais do liceu clássico, não foi por nada suave. Quando Beppe precisava passar

na frente da escola, empurrando com Walter o carrinho de açougueiro, sofria por

um pouco de vergonha mas prosseguia enrijecendo ainda mais os músculos do

rosto59

.

Até que no Liceo Classico Gavone di Alba encontrou os três professores que mudaram

sua vida: Pietro Chiodi, Leonardo Cocito e Lucia Marchiaro. O primeiro, professor de

filosofia e história, e o segundo, de italiano e latim, juntos, foram decisivos para o

antifascismo ainda pouco sistematizado do jovem Fenoglio. Chiodi e Cocito

participaram das greves de 1943, se colocaram publicamente como antifascistas a partir

de 25 de julho e estiveram entre os primeiros organizadores e chefes daqueles grupos

resistentes que responderam armados aos invasores nazistas e aos fascistas que os

59

LAJOLO (1978, p. 41).

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51

apoiavam60

. Chiodi foi preso e mantido num campo de concentração. Com o fim da

guerra, permaneceu fortemente ligado a Fenoglio. Cocito foi morto, enforcado pelos

nazistas, em setembro de 1944. Lucia Marchiaro foi responsável pelo English and

englished things, professora de inglês de quem Fenoglio foi o aluno preferido, tamanha

dedicação e paixão mostrada ao estudo da língua e da literatura inglesa.

Seus ensinamentos foram decisivos para a relação de Fenoglio com o mundo

anglo-saxão ao qual se sentia naturalmente ligado pelo seu temperamento e pelas

suas juvenis aspirações a um tipo de sociedade e civilização que fosse mais justa,

mais aberta, mais livre do que aquela que se vivia na Itália sob o fascismo e à

sombra das tantas organizações clericais em Alba (LAJOLO, 1978, p. 117).

Em 1942, estava no segundo ano da Faculdade de Letras, em Turim, quando recebeu a

convocação para lutar no Exército Régio Fascista. Abandonou a Faculdade e foi para

Roma. Àquela altura, Fenoglio era um típico jovem nascido no Piemonte, que, crescido

sob o fascismo, distinguia claramente dele os Savoia61

. Segundo grande parte desses

jovens, os Savoia apenas tinham cometido um grave erro aliando-se a Mussolini.

Portanto, separando bem um do outro, Fenoglio, em juventude, nutria forte admiração

pelo rei e pela monarquia. Sua ida a Roma ainda foi animada por certo sentido de

aventura juvenil, mas também por alguma esperança de contribuir para recuperar o

prestígio da monarquia e uma imagem de pátria que caía em decadência62

. De lá

mandou ao pai um cartão-postal dizendo: ―Ao meu pai, velho alpino, viva o rei!‖ 63

.

O explícito comportamento filo monárquico de Beppe Fenoglio não constitui de

todo modo motivo de surpresa não apenas pela fé nos valores da tradição própria

da sua família, mas também porque mesmo a população de Alba nutre sentimentos

60

LAJOLO (1978, p. 146).

61 Os Savoia foram uma dinastia real europeia que, no início do século XVIII, obteve o domínio sobre o

Reino da Sicília (1713) e em seguida sobre o da Sardegna (1720). No século XIX, se colocou à frente do

movimento de unificação nacional italiano, que conduziu à proclamação do Reino da Itália, em 17 de

março de 1861. Por cerca de oitenta anos reinaram na Itália. Até que, com o fim da Segunda Guerra, o

resultado do plebiscito tornou a Itália uma República e os Savoia foram mandados ao exílio por tempo

indeterminado.

62 LAJOLO (1978, p. 156).

63 LAJOLO (1978, p. 151).

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igualmente conservadores e ainda os nutrirá no pós-guerra (LAJOLO, 1978, p.

151).

Fenoglio terminou o curso de soldado e estava à espera da guerra quando veio o 25 de

julho, seguido do 8 de setembro. Naqueles dias de ausência institucional, Fenoglio foi

um dos muitos soldados que, aos 21 anos, cruzou a Itália como desertor de volta para

casa. Após um breve lapso trancafiado na casa de uma tia, subiu as montanhas das

Langhe (região montanhosa nos arredores de Alba) para ser partigiano. O depoimento

do irmão Walter denota a relação da região com o universo de Fenoglio, importância

essa que não está ligada a uma experiência juvenil mitificada, mas, ao contrário, trata de

uma escolha adulta por um universo mítico e literário.

Devo dizer que eu gostava mais da cidade que dos vilarejos das Langhe, Beppe ao

contrário era inclusive apaixonado por elas. E não é que passasse muito tempo lá,

principalmente nos primeiros anos. Íamos lá pra cima nas férias porque em casa já

era dificíl nos manter estudando e não podiam claro nos mandar pro litoral como

acontecia com alguns dos nossos amigos. Mas eu acredito que as langhe tenham

sido também pra ele, embora diferentemente de Pavese, ligado à escrita como

motivo de narração literária64

.

Fenoglio iniciou sua trajetória partigiana junto a um grupo de Rossi – comunistas –,

mas, avesso a toda e qualquer forma de dogmatismo, preceito, ou grupo restrito,

rapidamente abandona os Rossi e passa a lutar junto a um grupo de Azzurri, principal

vertente das ditas ―formações autônomas‖. Sem ligação com partidos, o grupo formado

por patriotas foi conhecido também por badogliani, pela ligação estabelecida com o rei

e o novo marechal por ele nomeado ao governo da Itália, Pietro Badoglio. Nessa escolha,

há que se levar em conta certa margem de casualidade na politização e no

direcionamento tomado por alguns partigiani ou formações ao longo da Resistência. E

para Fenoglio o cenário dessa escolha não foi diferente.

Um chefe da formação do Mauri, Nando, passou para as GL pelo único motivo que

eles eram mais bem armados e ―se pudesse ter fornecimentos maiores – disse –,

64

FENOGLIO apud LAJOLO (1978, p. 46).

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passaria até aos garibaldinos porque a guerra se faz com armas e não com política65

.

Muito já se discutiu, na biografia e na obra de Fenoglio, sobre a relevância dessa

escolha. Eu partilho da ideia defendida por, entre outros, um biógrafo de Fenoglio,

Davide Lajolo, de que esse fato revela nada mais do que certo provincianismo

monarquista juvenil – ―é fato que em Fenoglio a escolha ideológica é lenta e distante

[da juventude] (...), começando a partir de 1947‖66

–, misturado à teimosia e ao

individualismo característicos do temperamento do autor. Acredito, portanto, que

nenhuma teoria política já consciente estivesse por trás daquela decisão e,

principalmente, essa escolha não traria nenhuma consequência decisiva para a

constituição humana e literária de Beppe Fenoglio.

Durante a guerra partigiana os três baluartes do espírito puritano de Fenoglio era

sua majestade o Rei, a missão inglesa e ―o major‖ (Mauri) [chefe da formação em

que lutava], e ―os Rossi‖ um incompreensível subproduto da guerrilha. (...) Mas

tudo isso deveria durar pouco. À medida que o velho mundo reemergia e a

Resistência era comprimida e desvalorizada, Fenoglio aprendeu (...) como se não

houvesse grande diferença entre partigiani Azzurri e Rossi67

.

Fenoglio permaneceu convicto de sua escolha pela guerrilha dos partigiani e esteve nas

montanhas ao longo dos vinte meses de guerra civil. Durante esse período, a família

lidava com as represálias – a casa dos pais foi investigada seguidas vezes e eles

chegaram a ser presos pela RSI por apoiarem um desertor. Nessa ocasião, o irmão

Walter voltou para casa para que os pais fossem liberados; Fenoglio permaneceu,

reforçando novamente sua escolha no inverno de 1944, período mais complicado, em

que muitos partigiani acabaram encontrando um porto seguro onde esperar pelo fim da

Guerra.

65

―Si veda la relazione del commissario politico della 8a divisione Asti, Nestore, alla delegazione per il

Piemonte, 18 febbraio 1945‖. (PAVONE, 1991, p. 159).

66 LAJOLO (1978, p. 150).

67 CHIODI apud LAGORIO (1998, p. 172).

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Nos últimos meses, sempre junto aos Azzurri, desempenhou também a função de

intérprete das missões aliadas cuja sede era no comando em que ele continuou

combatendo até a liberação de Turim e o fim definitivo da Guerra.

Com o fim da Guerra, Fenoglio permaneceu em Alba e tornou-se funcionário da

Empresa Marenco, exportadora de vinhos, trabalhando na tradução da correspondência

do setor de exportação para o inglês, função que desempenharia até a morte.

Em 1960, aos 38 anos de idade, casou-se com Luciana. O casamento foi apenas no civil,

fato que escandalizou a provinciana Alba, e nenhum familiar dos noivos quis presenciar

a cerimônia. No ano seguinte nasceu Margherita, a única filha de Fenoglio, a quem ele

deu o nome da mãe.

Após um ano de estadia no campo devido a uma tosse não diagnosticada, em 1963, aos

41 anos de idade, Beppe Fenoglio faleceu por um câncer de pulmão que se alastrou

muito rapidamente. Ele mesmo dispôs sobre o funeral: laico, sem flores, sem paradas,

sem discursos.

Entre o Fenoglio filo inglês da adolescência e o Fenoglio escritor do pós-guerra

há aquela terrível experiência que foi a guerrilha no Cuneese. Talvez para viver

seja necessário esquecer, mas certamente para entender é necessário lembrar. É

desta viagem ao inferno que foi a guerrilha que nasce o Fenoglio escritor

(LAJOLO, 1978, p. 132).

2 O Neorrealismo fenogliano e a teoria da narração benjaminiana

Como acenei anteriormente, acredito ser a Resistência o fenômeno que perpassa grande

parte da obra de Fenoglio, bem como o Neorrealismo literário como um todo, e que

impõe àqueles escritores o desafio da tentativa de narrar a partir de uma

experiência/vivência. Para tentar uma maior compreensão dessa problemática, proponho

uma aproximação da problemática à teoria benjaminiana sobre a relação entre

―experiência‖, ―vivência‖ e literatura. As questões colocadas por Benjamin e os

conceitos por ele elaborados, dialogam intensamente com as obras daqueles autores na

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Itália do pós-guerra, principalmente as de Beppe Fenoglio, único a persistir nessa

problemática por cerca de vinte anos: como narrar a Resistência a partir de uma

―experiência/vivência‖, do que se trata e por que fazê-lo.

Para auxílio na análise dos textos de Benjamin, me servi de renomados estudiosos da

obra do autor, principalmente Michael Löwy e Jeanne Marie Gagnebin, autores que nem

sempre concordam sobre muitos dos conceitos benjaminianos. Preferi, por motivos

metodológicos, não entrar profundamente nas discordâncias, mas, à luz da obra de

Fenoglio, tentar levantar os pontos relevantes desses comentaristas no que diz respeito

aos conceitos de experiência (Erfahrung), vivência (Erlebnis) e rememoração,

desenvolvidos por Benjamin principalmente nos textos ―Experiência e pobreza‖, ―Sobre

alguns temas em Baudelaire‖ e ―O Narrador‖68

.

No texto ―Experiência e pobreza‖, de 1933, Benjamin trata mais sistematicamente de

uma temática recorrente em sua produção: o declínio da experiência (Erfahrung) na

modernidade. A partir de outro caráter muito importante de sua obra, a crítica ao

progresso, Benjamin argumenta que a modernidade condicionou os homens a um novo

modo de produção repetitivo, similar ao autômato, que os afastou da possibilidade de

experienciar.

O início do texto é logo pautado pela renomada afirmação de que ―as ações da

experiência estão em baixa‖69

e que, aliada ao desenvolvimento técnico da humanidade,

teria surgido uma ―nova forma de miséria‖70

. E diante dessa miséria (bem como diante

do fascismo), era preciso dispor dos instrumentos certos para poder combatê-la.

Convinha, então, encarar o fato de que ―é hoje em dia uma prova de honradez confessar

nossa pobreza‖, que não é mais ―uma pobreza [de experiência] privada, mas de toda a

humanidade. Surge assim uma nova barbárie‖. Para o Benjamin do texto ―Experiência e

pobreza‖, num movimento sempre dialético entre ganhos e perdas, essa barbárie tem um

68

BENJAMIN (1994a, p. 114).

BENJAMIN (1994b, p.103).

BENJAMIN (1994a, p. 197).

69 BENJAMIN (1994a, p. 114).

70 BENJAMIN (1994b, p.115).

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sentido ―novo e positivo‖, pois a partir dela o bárbaro seria impelido ―a partir para a

frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco‖71

.

Os grandes homens do seu tempo, segundo o autor, se distinguiam pela precoce

percepção de sua pobreza e do fato de que produziriam com e a partir dela, ―sua

característica é uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo uma total

fidelidade a esse século‖72

. Diante dessa pobreza, nenhuma nostalgia. Ao contrário disso,

uma quase celebração diante da clareza de perceber o século como ele de fato se

mostrava:

Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas

experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um

mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e

interna, que algo de decente possa resultar disso73

.

O Walter Benjamin, aqui profundamente dialético e nada nostálgico, encerra esse texto

propositivo abrindo espaço para que o novo possa surgir, fruto do momento de maior

pobreza e barbárie (também no mau sentido) do século, uma nova missão surgiria:

aquela de encontrar um novo modo de narrar para um novo tempo de uma nova

narração. Porque ―ao cansaço, segue-se o sonho‖74

: a literatura.

Em outro texto fundamental para a discussão aqui proposta, ―O Narrador‖, de 1936,

Benjamin, segundo Gagnebin75

, estaria proibido de utilizar o conceito de nova barbárie

do texto de 1933 porque a barbárie real já havia se instalado. ―O Narrador‖ seria então

―uma nova tentativa de pensar juntos, de um lado, o fim da experiência e das narrativas

tradicionais, de outro, a possibilidade de uma narrativa diferente‖.

Assim, a partir de uma argumentação romântica de que havia algo que não há mais, mas

com a concepção dialética de que alguma outra coisa tomaria o lugar deixado vazio,

71

BENJAMIN (1994b, p. 116).

72 BENJAMIN (1994b, p. 116).

73 BENJAMIN (1994a, p. 118).

74 BENJAMIN (1994a, p. 118).

75 GAGNEBIN (2007, p. 62).

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Benjamin sustenta mais uma vez a tese de que ―a arte de narrar está em vias de extinção

porque é como se estivéssemos privados (...) da faculdade de intercambiar experiências‖.

E a esse declínio da experiência está ligado também o declínio da função social do

narrador, que era antes o encarregado por narrar uma ―experiência‖ e que, agora,

limitado a ―vivenciar‖, encontra-se também impossibilitado de narrar.

No mesmo texto, Benjamin diz ainda, desenvolvendo uma tese já enunciada no texto de

1933, numa repetição exata do trecho a seguir, que:

no final da Guerra [da Primeira], observou-se que os combatentes voltavam mudos

do campo de batalha, não mais ricos, e sim mais pobres em experiência

comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a

guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca.

Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais

radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de

trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela

guerra de material e a experiência ética pelos governantes76

.

Com lucidez, prosseguia em sua conceituação a partir de argumentos quase irrevogáveis:

a memorização só é conseguida com a concisão, a não explicação, a não necessária

confirmação pela experiência de uma narrativa. Essa memorização só pode se realizar

no ―tédio (distensão psíquica)‖, o tédio está ligado a ―antigas formas de trabalho manual

[que] estão extintas nas cidades e em vias de extinção no campo‖. O fim dessa

possibilidade de distensão psíquica leva também ao fim do dom da audição, que, por

sua vez, estaria vinculado a uma ―comunidade de ouvintes‖ que propicia a possibilidade

de recontar; sem ela, o narrador permaneceria em silêncio, pois quem contava não é

mais ouvido e se cala.

Assim, o dom narrativo, tecido há milênios em torno das formas de trabalho manuais, e

a narrativa, forma artesanal de comunicação, estariam em extinção. Como também a

possibilidade de vivenciar e de contar da morte, que antes era cultivada, e de morte

76

BENJAMIN (1994a, p. 198). Trecho também presente, com sutis alterações, em ―Experiência e

pobreza‖, p. 115. Aqui optamos pela citação de datação mais avançada, ou seja, de ―O narrador‖.

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eram feitas as narrativas. Na tradição – no passado –, na morte, estaria a origem da

narrativa.

Em ritmos geológicos, algo se perdia: a capacidade de, a partir de uma experiência

partilhável vinculada à tradição, narrar uma história que possa ser narrada novamente,

que perpetue uma lição, um conselho. A Erfahrung é essa experiência que ―se inscreve

numa temporalidade comum a várias gerações‖, que não diz respeito apenas à religião

ou à literatura, mas que alcança também ―uma prática comum‖, por isso, o fruto dessa

experiência é a narrativa, que não apenas conta uma história, mas também gera ―uma

verdadeira formação (Bildung) para todos os indivíduos de uma mesma coletividade‖77

.

Para compreendermos a origem da ―verdadeira transmissão da experiência‖ e a origem

da ―narração tradicional‖, devemos atentar para uma ―autoridade que não é devida a

uma sabedoria particular‖78

, mas de que é imbuído ―mesmo um pobre-diabo‖79

na hora

de sua morte, daí o fato de que o narrador poderia estar bem exemplificado na figura do

―moribundo‖.

A arte de narrar, que definhava desde ―o surgimento do romance no início do período

moderno‖80

, agora se extinguia também graças à ascensão da ―informação‖ – forma de

comunicação ―mais ameaçadora [à narrativa] que o romance‖ e provocadora de ―uma

crise no próprio romance‖. A informação se distingue profundamente da narrativa, pois

aspira a uma ―verificação imediata‖ e deve ser ―plausível e nisso é incompatível com (...)

a narrativa‖81

.

Algo novo tinha surgido: um narrador que, diante da impossibilidade de uma narrativa

partilhável, tinha se voltado para dentro, dentro de suas casas, dentro de um livro, em

que um romance fala da história de um herói, e assim a ―história do si vai preencher o

papel deixado vago pela história comum‖82

. Essa forma de narrar estaria ligada a um

77

GAGNEBIN (2007, p. 57).

78 GAGNEBIN (2007, p. 58).

79 BENJAMIN (1994a, p. 207).

80 BENJAMIN (1994a, p. 201).

81 BENJAMIN (1994a, p. 202).

82 GAGNEBIN (2007, p. 59).

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novo conceito de experiência (Erlebnis), não partilhável, que ―reenvia à vida do

indivíduo particular, na sua inefável preciosidade, mas também na sua solidão‖83

.

Segundo Benjamin, porém, algo mais novo ainda precisava emergir: ―uma forma

narrativa diferente das baseadas na prioridade da Erlebnis‖84

, algo que se localizasse na

rachadura entre a Erfahrung e a Erlebnis. Nem a ―obsoleta‖ narrativa de uma

experiência partilhada, coletiva e pautada na tradição – para a qual a morte não

apresenta perigo – mas a que os modernos não mais teriam acesso. Nem a escolha

burguesa diante da não partilha, o romance, a informação – para os quais a morte

representa um escândalo. Sendo essa segunda postura entendida por Benjamin nas

―Teses‖ como não adequada para o narrador, nem para o historiador materialista

preocupado em atualizar o passado na apropriação de uma reminiscência.

Num ―entre‖85

estaria localizado o conceito benjaminiano de ―rememoração‖: conceito

que englobaria certa ―produtividade da perda e da morte‖86

. Trata-se aqui da concepção

de que ―declínio histórico da narração e recalque social do morrer‖ são transformações

que caminham lado a lado. E que ―o fim da narração e o declínio da experiência são

inseparáveis (...) das transformações profundas que a morte, como processo social,

sofreu no decorrer do século XIX‖. Portanto, para se pensar a ―construção de um novo

tipo de narratividade‖ devemos, inevitavelmente, passar também ―pelo estabelecimento

de uma outra relação, tanto social como individual, com a morte e com o morrer‖87

, e,

consequentemente, também com a experiência.

83

GAGNEBIN, (2007, p. 59).

84 GAGNEBIN (2007, p. 62).

85 O termo, de enorme eco na tradição filosófica ocidental, é aqui utilizado apenas na tentativa de propor

que o conceito benjaminiano de ―rememoração‖ ocupe um outro lugar, ―entre‖ e ―a partir‖ do conceito de

Erfahrung e do de Erlebnis. O conceito de ―rememoração‖ em Benjamin é aqui entendido não como uma

pacificação, mas uma inquietação, sem saudosismos ou isolamentos, que permite a postura dialética

materialista adequada a uma nova forma de narrar, em consonância com um novo momento histórico e

social, logo também literário.

86 GAGNEBIN (2007, p. 64).

87 GAGNEBIN (2007, pp. 64-65).

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3 Beppe Fenoglio e seus Appunti, entre a ―experiência‖ e a ―vivência‖

Para a obra de Beppe Fenoglio, principalmente para os Appunti partigiani, a

problemática relativa à Erfahrung e à Erlebnis mostra-se extremamente relevante. Os

Appunti são fruto direto de uma experiência vivida em primeira pessoa e está

impregnada em suas linhas uma vontade de partilha. Mas em Fenoglio, mesmo nos

primeiros textos, como no caso dos Appunti, essa tentativa de partilha de uma

experiência não é desvinculada do impedimento advindo do fato de que ele também

vivia um tempo em que ―as ações da experiência estavam em baixa‖. Diante dessa

impossibilidade, Fenoglio poderia ter aceitado como alternativa a partilha, que

Benjamin chamaria de burguesa, de uma vivência, mas não o fez. Optou, principalmente

nos Appunti – seu texto menos mediado pelo tempo e por reescrituras –, por um

caminho que pudesse dialogar tanto com a experiência (Erfahrung) quanto com a

vivência (Erlebnis), num insistente exercício dialético e ―necessário de rememoração

universal, orientada pela preocupação em não esquecer os excluídos da história‖88

,

dialogando tanto com a Erfahrung quanto com a Erlebnis.

Diante de um possível dilema na apropriação dos conceitos benjaminianos levantados e

discutidos a seguir, na tentativa de dialetizar a discussão, optei por decompor e analisar

separadamente os dois termos. A separação é artificial e, embora assim concebida por

muitos comentaristas da obra de Walter Benjamin, é por mim operada apenas com o

intuito de recuperar a dialética dos termos. Acredito que na obra de Benjamin os dois

conceitos são inseparáveis e complementares, não antagônicos.

3.1 Fenoglio e a ―experiência‖ (Erfahrung)

Se olharmos para a obra de Fenoglio com o conceito de Erfahrung em mente,

encontramos muitos pontos de ressonância que poderiam nos levar a compreender sua

literatura como fruto de uma ―experiência‖. Com um narrador e uma comunidade

88

GAGNEBIN (2007, p. 5).

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ouvinte em que ainda residia aquela partilha que Benjamin via na obra do contista russo

Nikolai Leskov89

.

Se levarmos em conta a suposição feita por Gagnebin90

de que Walter Benjamin, no

célebre texto ―Teses sobre o conceito de história‖, não estaria apenas ―especulando

sobre o devir histórico ‗enquanto tal‘‖, mas, principalmente, elaborando uma teoria da

narração da História e das histórias, poderíamos supor que ali, naquele momento único

da Resistência na Itália, a História, as histórias e a literatura teriam se unido para contar

a partir de outro ponto de vista. Disso teria nascido o Neorrealismo: naquele caso não

eram os combatentes de exércitos oficiais que estavam insistentemente narrando uma

experiência de guerra, mas os partigiani, que tinham lutado por um ideal, ou então pela

falta de um, mas imbuídos de revolta pelas atrocidades sofridas e cometidas durante a

tal guerra de trincheira imposta a eles pelo fascismo, querendo dar fim àquela sucessão

de opressões, querendo interromper o fluxo da história.

Talvez pudéssemos dizer que em Fenoglio se encontra muito do que Benjamin percebia

também em Leskov, e que dizia estar em vias de extinção: a arte da narração, filha da

contação oral, aquela do tempo do ―homem em harmonia com a natureza‖, aquela em

que o narrador é ingênuo: a da ―moral da história‖, a da partilha. Uma narrativa em que

a experiência coletiva da morte – experiência individual máxima – não representa nem

um escândalo nem um impedimento.

Poderíamos dizer que Fenoglio propôs uma literatura que fala da morte. Uma literatura

da reminiscência, para ser lida com o ouvido, para um público leitor ainda não de todo

tomado pela alienação do trabalho da fábrica. Uma literatura em que ―o narrador

mantém sua fidelidade a essa época, e seu olhar não se desvia do relógio diante do qual

desfila a procissão das criaturas, na qual a morte tem seu lugar, ou à frente do cortejo,

ou como retardatária miserável‖ (BENJAMIN, 1994a, p. 210).

89

O texto de Benjamin ―O narrador – ou considerações sobre a obra de Nikolai Leskov‖ trata dos

conceitos aqui usados a partir da obra do autor russo. Benjamin localiza Leskov, embora contemporâneo a

ele, como um autor ainda numa literatura da Erfahrung e analisa seu narrador como aquele ligado à

partilha de uma experiência em diálogo intenso com a tradição oral.

90 GAGNEBIN apud BENJAMIN (1994).

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Seria possível argumentar dizendo que em Alba, pequena cidade do norte da Itália, onde

nasceu e viveu Fenoglio, o capitalismo demorou um pouco mais a chegar, pois naquele

momento a cidade ainda era movida principalmente pela agricultura, num sistema de

quase feudalismo, e as fábricas e a alienação alterariam muito tempo depois o cotidiano

de Alba. Beppe Fenoglio, assim como Walter Benjamin, foi testemunha, alguns anos

depois, da sua chegada e das modificações que impunham ao homem, foi descrente do

tecnicismo positivista que levaria todos os homens a um futuro melhor. E naquela

encruzilhada histórica ele não aderiu ao presente e insistiu em compartilhar um passado,

a Resistência, e insistia em contar da morte, sem impedimento nem escândalo, uma

morte partilhada.

Seria fácil demonstrar que Fenoglio escrevia da pequena cidade de Alba, em que,

naquele tempo, ainda se realizavam trabalhos manuais, ouvindo histórias. Talvez por

isso, na literatura de Fenoglio, e em todo o Neorrealismo literário italiano, o homem foi

à guerra e não voltou emudecido, impossibilitado de contar, pobre em experiências

partilháveis, como Benjamin imaginava e como viu a guerra emudecer no coração da

Europa, em consequência da Primeira Grande Guerra. Ao contrário, Beppe Fenoglio,

que lutou como partigiano na Resistência italiana – a que chamou de guerra civil –,

voltou com uma necessidade voraz de contar, de partilhar.

3.2 Fenoglio e a ―vivência‖ (Erlebnis)

Se, por outro lado, olharmos para a obra de Fenoglio com o conceito de Erlebnis em

mente, encontramos, também aqui, muitos pontos de ressonância que poderiam nos

levar a compreender sua literatura como fruto de uma vivência, em que a

impossibilidade de narrar conduz a voz solitária de um único indivíduo aos ouvidos de

uma comunidade ouvinte que perdeu o dom da audição.

Se pensarmos na recepção das obras de Fenoglio, à época de sua publicação, logo

poderíamos supor que ali não mais residia aquela partilha que Benjamin via na obra do

contista russo Leskov. Fenoglio foi inicialmente muito criticado por narrar uma

Resistência que para alguns era vista como um desserviço para a Itália e para os

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italianos. Seus partigiani eram muito violentos, muito oportunistas, muito pouco

conscientes politicamente. Suas escolhas formais foram acusadas de cair em certo apelo

fácil ao dialeto e ele foi, por isso, lentamente incorporado e lido.

Poderíamos afirmar então que a partilha era aparente, mas não efetiva. E que mesmo

partindo de um contexto aparentemente comum, a Resistência, quando se tinha tentado

transformá-la em texto, em literatura, quando se tinha tentado narrar aquela História,

exatamente na sua pretensa objetividade, na sua tentativa de literalidade, a arte de narrar

desaparecera por completo e os envolvidos, embora insistissem na tentativa, estavam

privados da faculdade de intercambiar experiências. Por isso, em poucos anos, a Itália se

perceberia ainda imersa na mesma impossibilidade de revisão de seu passado.

Poderíamos argumentar que o que se publicou nos dez anos que se seguiram ao fim da

Guerra, nada tinha em ―comum com uma experiência transmitida de boca em boca‖:

mas aquela vivência individual que contava de um herói isolado denominada

Neorrealismo, tinha sido a ilusão de que isso seria possível. Seguido imediatamente da

constatação de que a épica popular que poderia ter nascido não nasceu e tudo havia sido

apenas um fruto subjetivo e moderno de uma vivência por um sujeito solitário,

radicalmente desmoralizado por uma guerra de trincheiras seguida de uma guerra civil,

que viu sua cidade, sua casa, sua família tocada por uma violência que deveria ficar

longe de casa, principalmente para a expectativa dos italianos.

Poderíamos localizar Fenoglio como o homem moderno que testemunhou a cisão entre

a vivência subjetiva e o universo coletivo da experiência, em que o ―eu‖, mesmo

participando da luta, se sente dela separado e dividido91

. Afirmaríamos então que o

Neorrealismo foi a ilusão de que uma vivência poderia ser narrada como uma

experiência, mas essa ilusão frustrada não passaria de um desejo de partilha, que duraria

um episódio fugaz, apenas o tempo de desfazer tamanha ilusão: pois vivemos um tempo

91

―O ‗eu‘, mesmo participando da luta, se sente daquela separado e dividido. Toda a produção de Beppe

Fenoglio, grande escritor de uma ‗literatura da Resistência‘, é marcada pela contradição entre o ‗eu‘ e a

participação na luta‖ (FERRONI, Giulio. ―La letteratura come esperienza dell‘io‖. In: Il Grillo.

Disponível em: http://www.emsf.rai.it/grillo/trasmissioni.asp?d=652#letteraturaresistenza. Acesso em:

12/ jul./ 2010).

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em que não é possível partilhar experiências e, no máximo, podemos fazer literatura

dessa impossibilidade.

Aquela literatura não teria passado então de um falso suspiro ilusório, em que a

―concisão, que facilita a memorização‖ teria desaparecido, embora, em ilusórias

tentativas, os neorrealistas tivessem se dedicado profundamente a textos breves, como

os contos e as narrativas curtas. Mas os tipos textuais, naquele caso, teriam sido o

artifício de fé para encobrir a falência, apenas casca, sem raiz, apenas invólucro, sem

espírito. Porque era inútil a ilusão de que haveria, na cidade de Alba em meio a uma

guerra civil, uma comunidade de ouvintes cercada pelo ―tédio‖ e pela ―distensão

psíquica‖.

Além disso, as formas de produção já estavam, também em Alba, profundamente

alteradas: afinal, não podemos esquecer que a grande empresa Fiat já existia naqueles

anos, mudança essencial nas cidades próximas de Turim, como Alba. Não podemos não

aceitar que uma etapa fundamental para a rendição do rei Vittorio Emanuele aos

Aliados tinha sido o episódio das greves de 1943, que ali já estava arregimentado um

sistema de sindicatos e fábricas que já teria extinguido – ou estava em vias de

extinguir – qualquer ―antiga forma de trabalho manual‖.

Com isso, teria sido extinto também o ―dom da audição‖ e ―quem contava não é mais

ouvido e se cala‖, dedicando-se, a partir desse momento, a uma escrita que para o leitor

desavisado poderia ser fruto da tradição oral, mas que, na verdade, dialogava em si e por

si com uma vivência individual. Que operava diante da morte um engano: apesar de

parecer afrontá-la de frente numa descrição crua, na verdade, o Neorrealismo e a obra

de Fenoglio se aproximariam da morte já a partir do sujeito que a vivencia, nunca da

comunidade que a vive enquanto experiência comum, extirpando, assim, de vez ―a

possibilidade de vivenciar e de contar da morte‖. Uma vivência que, em aproximação

com a morte – experiência individual máxima –, demonstre uma coletividade

escandalizada ou o impedimento que gera silêncio.

Constataríamos ainda que o sujeito neorrealista narra uma ruptura com a natureza,

nunca uma harmonia com ela. Ao contrário do narrador de Benjamin, ele nunca

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representa a figura do justo, nunca é ingênuo e nunca oferece ao leitor uma moral da

história.

3.3 Fenoglio e a ―rememoração‖

É bem triste viver sem fazer saber92

.

Como vimos, a obra de Beppe Fenoglio pode dialogar com os dois conceitos, gerando

em ambas as aproximações um fio teórico condutor importante. Porém, o fato de que

sua aproximação tanto ao conceito de Erfahrung quanto ao de Erlebnis resulte

produtiva, chama a atenção para o ―entre‖ que ela ocupa. De onde deriva o paradoxo

sobre o lugar em que pode ser localizada a obra de Beppe Fenoglio diante da

problemática benjaminiana ligada à experiência.

A ideia desenvolvida a seguir coloca a obra de Beppe Fenoglio, principalmente os

Appunti, lidando dialeticamente com o conceito de ―experiência‖ e de ―vivência‖, numa

guerra com essas duas dimensões que leva a uma terceira dimensão, ligada ao conceito

de ―rememoração‖ (Eingedenken), como solução a esse embate, solução aqui nunca

pacífica, vale relembrar.

Se o autômato é o homem que perdeu toda experiência e memória, a ligação entre a

Erfahrung, a teologia e o materialismo histórico é para Benjamin a rememoração

(Eingedenken) (...). [e cita W. Benjamin:] ―Na rememoração fazemos uma

experiência (Erfahrung) que nos impede de conceber a história de uma forma

radicalmente ateológica93

.

O conceito de rememoração em Walter Benjamin é discutido em diversos pontos de sua

obra, embora abertamente apresentado em raros momentos, como, por exemplo, no item

13 do texto ―O Narrador‖. Nele, a partir da relação entre o ouvinte e o narrador,

Benjamin afirma que essa ―ingênua relação é dominada pelo interesse em conservar o

92

Sobrevivente de um campo de concentração (PAVONE, 1991).

93 LÖWY (2008, p. 196).

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66

que foi narrado‖94

. Essa ―memória abrangente‖ e efêmera viabilizava a existência da

poesia épica e era evocada pelos gregos pela musa Mnemosyne, deusa da reminiscência.

Aqui Benjamin introduz o conceito de reminiscência, ligado em sua forma mais antiga à

epopeia, e o caracteriza como sendo o que ―funda a cadeia da tradição, que transmite os

acontecimentos de geração em geração‖95

. A epopeia, segundo Benjamin, em seu cerne,

já continha a narrativa e o germe do romance. Em ritmos geológicos, o ―romance

começou a emergir do seio da epopéia‖ e foi possível perceber que sua musa se

diferenciou da musa da epopeia e não era mais a musa épica – a reminiscência.

Agora, num processo de separação, a reminiscência se dividiu entre uma musa da

narrativa (―memória‖), ligada à ―breve memória do narrador de muitos fatos difusos‖, e

uma musa do romance (―rememoração‖), ligada à ―memória perpetuadora do

romancista‖, que já habitava a epopeia, mas que agora se diferencia dela e ―é

consagrada a um herói, uma peregrinação, um combate‖.

A questão que se coloca nesse ponto da discussão trata da diferença, para Benjamin,

entre ―experiência‖ e ―memória‖ e ―vivência‖ e ―rememoração‖. Se a ―memória‖ é a

musa da narrativa e na narrativa partilha-se uma ―experiência‖, os dois termos poderiam

ser correspondentes. Bem como se a ―rememoração‖ é a musa do romance e o romance

trata da narrativa de uma ―vivência‖, os dois termos estariam profundamente ligados.

E estão, já que em Benjamin tudo acontece em ―ritmos geológicos‖ e a apreensão de

conceitos nunca é estanque. Mas levanto aqui a hipótese de que a segunda dupla de

conceitos, respectivamente ―memória‖ e ―rememoração‖, é pelo autor concebida para

agregar distinções substanciais à discussão.

A distinção fundamental, acredito, diz respeito ao fato de a primeira dupla de conceitos,

aquele da ―experiência‖ e da ―vivência‖, estar localizada na apreensão dos eventos.

Enquanto que os conceitos de ―memória‖ e ―rememoração‖ dizem respeito ao ato de

narrá-los.

94

BENJAMIN (1994a, p. 210).

95 BENJAMIN (1994a, p. 211).

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67

A experiência (Erfahrung) não se confunde [para Benjamin] com a experiência

vivida [vivência] (Erlebnis): enquanto que a primeira é um traço cultural enraizado

na tradição, a segunda situa-se a um nível psicológico imediato, que não tem, de

modo algum, a mesma significação96

.

Assim, para Benjamin, os modernos estavam – por todos os motivos históricos e sociais

anteriormente discutidos – impossibilitados de experienciar e limitados a vivenciar.

Porém, no ato de transposição literária havia uma escolha a ser realizada. E já que a

―memória‖, musa da narrativa, estava em vias de extinção, o narrador moderno,

negando como única solução a vivência solitária e burguesa do herói da Erlebnis,

deveria se servir da ―rememoração‖.

A evocação de uma musa já presente na ―reminiscência‖ era a postura adequada para o

narrador que pretendesse recuperar o irrecuperável de uma experiência não mais

partilhável. Era a postura adequada para o grande homem de seu tempo que percebesse

antecipadamente a pobreza de experiências partilháveis de que dispunha e pretendesse

não aceitar como única saída à impossibilidade da narração de uma ―experiência‖ o

enclausuramento numa ―vivência‖.

Evocar a ―rememoração‖, musa oriunda da ―reminiscência‖, e tê-la presente enquanto

musa do romance, forma de que dispunha o narrador moderno, era a postura adequada

ao narrador e ao historiador materialista, preocupado em atualizar o passado na

apropriação de uma ―reminiscência‖. Uma postura adequada àqueles que pretendiam

olhar de frente sua pobreza, escovar a história a contrapelo, trazer dos escombros as

sombras e fazer emergir disso ―uma forma narrativa diferente das baseadas na

prioridade da Erlebnis‖.

Em Fenoglio e nos seus Appunti, a apreensão da experiência parte sim de um ―eu‖

solitário, mas o exercício de contação se propõe partilhável, numa extensão daquela

―tradição oral‖ de contação de histórias na beira da fogueira. É claro, ao longo das

páginas dos Appunti, que essa tentativa permanece no embate e não consegue se realizar.

96

LÖWY (2008, p. 193).

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68

E a postura de Fenoglio nos Appunti nunca é a do narrador que aceita a impossibilidade

daquela partilha. Fenoglio opta por um narrador que, a partir da apropriação de uma

―reminiscência‖, tendo como musa a ―rememoração‖, recorre a ―muitos fatos difusos‖97

que tentam, a todo tempo e sem sucesso, fundar uma experiência partilhável.

A experiência (Erfahrung) pertence à ordem da tradição, tanto na vida coletiva

como na vida privada. Ela se constitui menos de dados isolados, rigorosamente

fixados pela memória, que de dados acumulados, quase sempre inconscientes, que

nela se concentram98

.

Na narrativa de Beppe Fenoglio a limitação da impossibilidade de partilha não é aceita e

o autor não se conforma em narrar uma vivência burguesa, solitária, ―de um herói, de

uma peregrinação, de um combate‖. Para ele, a Resistência representa um hiato numa

continuidade baseada na fé no progresso. Com a Resistência, pela primeira e única vez

na história da Itália unida, acreditou-se que seria possível, literária e socialmente, dar

dois passos para trás e voltar a um cenário de experiências partilhadas. Fenoglio

agarrou-se a essa interrupção e fez daquela ―reminiscência‖ a pedra fundamental de sua

literatura, que se propunha, única bem sucedida no propósito entre os neorrealistas,

como literatura épico-popular.

Fenoglio dispunha dos dois ingredientes necessários para a elaboração de um projeto

épico-popular, que, segundo Maria Corti, ele teria atingido: tinha acesso àquela tradição

oral, assim como fazia parte dela, e dispunha de uma memória comum adquirida na

experiência/vivência da Resistência italiana. Ao mesmo tempo, Fenoglio pertencia à

modernidade, com as suas consequências e impossibilidades. Sua postura diante dessas

impossibilidades e pobrezas não foi limitar-se à narração de uma Erlebnis, mas a partir

de outro ponto de vista, optou por narrar a guerra voluntária da Resistência e não a

guerra dos exércitos oficiais, com a língua falada pelos italianos em guerra nas

montanhas do norte da Itália, não com a língua oficial, a partir de uma relação quase

banal com a morte, sem escândalos ou impedimentos. Foi o autor que tentou elaborar

97

BENJAMIN (1994a, p. 211).

98 LÖWY (2008, p. 193).

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69

em sua narrativa uma cantata popolare99

, exatamente partindo do pressuposto da

partilha daquela ―experiência‖.

Beppe Fenoglio, assim como Kafka, deu a seu narrador ―todas as qualidades que o

narrador tradicional tirava da rica tradição na qual se enraizava – não intervir na

narrativa, não pretender originalidade, ser uma voz neutra‖ –, porém ambos

―conquistaram essas qualidades a duras penas no terreno solapado de uma tradição

morta e de uma identidade em migalhas‖100

.

4 Os Appunti partigiani, uma vida, uma obra e uma guerra

Fruto de uma tradição morta – aliada a uma recém constituída tradição oral da

Resistência – e de uma identidade em migalhas – com o suspiro de esperança com que

se apresentava a Resistência italiana – é o livro Appunti partigiani, de Beppe Fenoglio.

Texto publicado postumamente, escrito logo após o fim da Guerra, já com estrutura,

forma e sequência narrativa, mas ainda pouco mediado. Pouco mediado pelo tempo, que

afastaria um pouco o autor de certa crença na Resistência e na partilha de sua

experiência; pouco mediado pelo próprio exercício literário, que agregaria outras

problemáticas à obra de Fenoglio, como o uso do inglês em seus textos; pouco mediado

pelas reescrituras, usualmente realizadas pelo autor, que iam podando certa esperança

do narrador fenogliano; e pouco mediado pela crítica, já que o livro foi publicado

apenas em 1994, sem a mediação de quase cinquenta anos de interpretações.

Os Appunti nos alcançam quase límpidos, escritos na horizontal sobre as colunas das

cadernetas de contabilidade do açougue do Fenoglio pai, divididas em: data, carne

(subdividido em quilo e grama), preço e valor total. Nelas Fenoglio escreveu seu

primeiro enredo.

4.1 Os Appunti de uma vida

99

O termo é de Lorenzo Mondo, no prefácio aos Appunti partigiani.

100 GAGNEBIN (2007, p. 66).

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A diferenciação entre Giuseppe e Beppe, no caso de Fenoglio, não fica muito clara, e

talvez essa distinção seja mesmo incoerente. Não somente por Giuseppe ser apenas seu

nome de batismo, nunca tendo sido usado por ele, mas principalmente porque o homem,

o autor e o personagem aqui tratados se misturam frequentemente num enredo ficcional-

neorrealista que brinca com vida e obra num só projeto: narrar a partir de um

mecanismo de transposição literária experiências vividas em primeira pessoa.

Fenoglio, durante o período de guerrilha nas Langhe, era um dos poucos que não usava

um nome de batalha: Beppe era Beppe também como partigiano101

, e o seria também

como escritor. Os nomes anglófanos das personagens alter ego das obras da maturidade

chegariam depois. Contaram seus companheiros de guerrilha que ele tomava notas

numa caderneta durante a guerra civil e tinha sonetos de Shakespeare escritos no forro

do casaco que usava nas montanhas.

No final da Guerra, passou a se debruçar durante horas sobre aquelas memórias e

anotações – appunti. Já se valia do método que depois o identificaria como escritor:

escrevia e reescrevia, começava de novo, reescrevia mais uma vez, uma, duas, três,

quatro versões do mesmo livro, num laboratório desconhecido do público e da crítica

durante os primeiros sete anos de pós-guerra, ao longo dos quais muito foi publicado

sobre a Resistência.

Beppe Fenoglio foi um solitário escritor. Era inexplicavelmente amante to England and

English things, amou a língua, a literatura e a história inglesa e também americana,

admirou Cromwell, afirmando muitas vezes querer ter sido ―um soldado de Cromwell

com a bíblia na mochila‖102

. Foi profundo conhecedor de Shakespeare, leu também T. E.

Lawrence, T. Hardy, C. Fith, R. Kipling, T. De Quincey, R. L. Stevenson, Wilkie Collins,

101

―Dessacralizante é a motivação que um sobrevivente de uma das formações constituídas na Iugoslávia

dá da escolha do nome Garibaldi [como nome de batalha]: Mazzini era republicano demais, Matteotti

político demais, enquanto ‗Garibaldi, digamos francamente, dá certo pra tudo e dava certo pra nós

também, e nos tornamos Divisione partigiana Italia Garibaldi‘‖ (PAVONE, p. 185).

102 Oliver Cromwell (1599-1658) foi um militar e político britânico, conhecido como um dos líderes da

Guerra Civil inglesa, movimento que derrubou Carlos I e levou à instauração de uma república puritana

na Grã-Bretanha (LAJOLO, 1978, p. 139).

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John Bunyan, D. H. Lawrence, Emily Bronte, Marlowe, Robert Browning, Ernest

Hemingway, Herman Melville, Edgar Allan Poe, Edgar Lee Masters e James Joyce103

.

Traduziu T. S. Eliot e S. T. Coleridge.

Nós descobrimos a Itália – este é o ponto – procurando os homens e as palavras na

América e na Rússia, na França, na Espanha. (...) Este mundo ele [Fenoglio] o

reviveu fantasticamente, mas detidamente para buscar sua formação longe do clima

esquálido do fascismo104

.

Sua atividade como literário acontecia, porém, sempre no isolamento voluntário da

cidade de Alba, onde ele escolheu permanecer ao fim da Guerra e de onde escreveria

sobre a Resistência nas Langhe, com ironia e sarcasmo, deixando mais mórbido o horror

daquela guerra, das condições de vida dos habitantes daquela região.

Fenoglio obtém na sua narrativa o controle feroz dos sentimentos. A vida dos

pobres camponeses deste Sul [da Itália] do Piemonte [localizado no Norte], com

pouca água, com o granizo que quase todo ano se abate sobre os persistentes

vinhedos, com os bosques amarelos pela seca ou alagados pela chuva em excesso,

com os parasitas que devoram malvados as últimas fileiras [de plantação], com a

febre aftosa que colhe o rebanho nos estábulos, a tosse seca, a tuberculose que leva

amarelos ao túmulo mesmo as mulheres e homens ainda úteis para o trabalho,

Fenoglio narra esta vida, não a descreve, vivendo-a com uma atrocidade que não se

encontra nem mesmo em Verga105

.

Seu primeiro livro I ventitre giorni della città di Alba, publicado pela Einaudi, apenas

em 1952, foi recebido pela crítica de modo divergente; houve quem timidamente

afirmasse ser aquela uma voz distinta no cenário da literatura italiana do pós-guerra,

mas também houve quem se chocasse pela dessacralização e pela violência de seu texto.

O livro que conta a ocupação da cidade de Alba pelos partigiani durante a Resistência –

que durou 23 dias – realiza duas operações contrárias: expõe a violência em si mesma

voltada para a mitificação e descreve o partigiano não mitificado, ambas com um ritmo

103

―Estivemos na casa de Fenoglio (…). Ali encontramos (…)‖ e segue a descrição dos autores. Alguns

nomes foram acrescidos à lista por outras fontes (LAJOLO, 1978).

104 PAVESE apud LAJOLO (1978, p. 132).

105 LAJOLO (1978, p. 63).

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e num estilo ainda inédito para a Itália, que se agarrava à figura do herói-partigiano para

seu exame de consciência do pós-guerra. Esse estranhamento causado pelo estilo de

Fenoglio iria se repetir em todos os seus textos.

Em vida, por uma querela editorial106

, só teve tempo de ver outros dois livros

publicados, em 1954, La malora (um conto longo), ainda pela Einaudi, e em 1959,

Primavera di bellezza (romance com primeira versão escrita toda em língua inglesa,

seguida de outras duas em língua italiana, a terceira versão constitui o texto publicado),

já pela Editora Garzanti. Seus dois romances mais importantes são póstumos: Una

questiona privata – único com tradução para o português – e Il partigiano Johnny

(ambos com primeira versão em inglês)107

.

O mecanismo de uso da língua inglesa na obra de Fenoglio foi se tornando ao longo do

tempo cada vez mais decisiva, alcançando seu ápice na operação estilística realizada em

Primavera di bellezza: a versão em inglês foi sendo reescrita até alcançar uma versão

italiana, com poucas palavras em inglês remanescentes. Nos livros póstumos a presença

da língua é ainda mais maciça, mas há que se levar em conta que o autor, ao longo das

muitas versões escritas, ia tirando as palavras em inglês para que, no final, apenas as

que lhe parecessem de fato intraduzíveis permanecesse no idioma. Nas obras póstumas

ele não pôde concluir essas operações e elas vieram a público com uma quantidade de

inglês explícito que talvez não mantivessem, se Fenoglio as tivesse preparado para

publicação em vida.

A função do uso do inglês numa obra italiana era de natureza anárquica e provocatória,

já que a tradição literária da península de inúmeros dialetos tinha sua raiz e seu

106

Elio Vittorini escreveu, na apresentação de Primavera di belleza (1960), que o livro reforçava o medo

de que os jovens escritores italianos, assim que não mais escrevessem sobre coisas experimentadas

pessoalmente, não conseguissem transcender à universalidade e se expressassem com ―afrodisíacos

dialetais‖. Fenoglio ficou profundamente irritado com a apresentação. Depois do desentendimento, o

autor assinou um contrato com o editor Livio Garzanti. Infelizmente, a Editora Einaudi ainda possuía

direito sobre suas obras e a questão se prolongou até a sua morte, impedindo-o de publicar tanto por uma

quanto por outra editora.

107 Quando da morte do autor, todo o material inédito foi levado à Einaudi e os leitores da editora,

Calvino inclusive, devolveram tudo afirmando não haver nada publicável. Deve-se ao estudioso da obra

de Beppe Fenoglio, Lorenzo Mondo, a publicação de suas muitas obras póstumas.

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desenrolar a partir da socialmente problemática e literariamente magnífica invenção

linguística moldada pelo toscano Dante Alighieri. Além disso, desempenhava o papel de

romper com a língua literária que havia feito ritmo com a retórica, liberar-se das

suas amarras e dos seus vínculos, não usar palavras que haviam distorcido os

significados, voltar como virgem à língua italiana através da lição recebida por

uma língua estrangeira108

.

Foi o único a insistir na temática da Resistência por quase vinte anos, até sua morte

precoce – mesmo quando ninguém mais achava que aquele fosse um tema pertinente.

As temáticas de Fenoglio são sempre a Resistência, os agricultores da região de Alba, a

dificuldade dos partigiani com o pós-guerra. É do autor a classificação de seus contos

em ―Contos da guerra civil‖, ―Contos do parentesco e do vilarejo‖, ―Contos do pós-

guerra‖, divisão essa que só se concretizou postumamente (com o adendo dos raríssimos

―Contos fantásticos‖, em sua maioria inéditos). Também os romances são sobre a

Resistência, e Fenoglio foi, inclusive, acusado de ter insistido demais no tema num

momento em que a Itália, com o discurso em prol de acalmar os ânimos, realizava uma

cruzada contra os resistentes, acusando-os de comunistas e excessivamente violentos.

Com muita frequência a obra de Fenoglio é aproximada da obra do seu coetâneo Cesare

Pavese, também nascido no Piemonte, também considerado neorrealista, cujos livros

também são ambientados nas Langhe, cuja morte também foi prematura. Mas as

distinções profundas no esqueleto de suas obras são tão profundas que essa

aproximação se perde sempre em algo de biográfico e nunca avança ao estilo ou às

temáticas dos dois autores. Pavese viveu e escreveu quase que em oposição à Fenoglio,

ou vice-versa. Pavese não lutou na Resistência e essa matriz temática da culpa e da falta

serão força motriz de sua obra; tinha o projeto literário de criar uma Itália mítica,

ambientada nas Langhe, nostálgico em relação àquela paisagem e saudosista no que

dizia respeito à infância. Fenoglio narra uma Resistência adulta, sem nostalgias ou

saudosismos, nem pela paisagem nem pela infância, sem mitos para um país, sem

mulheres idealizadas, sem um projeto literário para uma nação.

108

LAJOLO (1978, p. 192).

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A literatura de Fenoglio não era mística, e nela a representação da Igreja e de Deus

acontece a partir do ponto de vista de seus personagens, temerosamente ligados a Deus

e frequentemente explorados pela Igreja. Um deles pronuncia gritando a frase ―Dio non

fu mai con noi‖109

. A violência é a via de acesso ao que era sacro, frequentemente

servindo-se de certa pitada de ironia.

Seus narradores evoluem muito ao longo de sua obra. Os primeiros textos têm um

narrador em primeira pessoa, ainda com uma visão italiana dos fatos. Depois, sua escrita

evolui para um narrador anglófono de olhar destacado para tudo que era folclore latino

ou italiano em demasia, no fascismo ou na Resistência. As descrições do fascismo

recaem no grotesco, no dessacralizante. E toda seriedade é guardada para os motivos

profundos e a violência da escolha pela Resistência. Seu texto é irônico e econômico,

nele o controle dos sentimentos e a secura funcionam como esconderijo para a piedade e

a compaixão, que nunca são explícitas.

Beppe Fenoglio foi autor de poucas palavras fora dos seus livros, os poucos críticos que

o conheceram tiveram que ir encontrá-lo em Alba. Falou muito pouco sobre si, todo o

resto deixou dito em sua obra literária.

Porquanto eu possa procurar, não encontro nenhuma anedota de algum sabor

relativo à gênese e à publicação dos meus livros. Poderá talvez interessar esta

pequena revelação: Primavera di belleza foi concebido e escrito em língua inglesa.

O texto tal como o conhecem os leitores italianos é então uma mera tradução.

A crítica me seguiu e me segue com certa atenção, em medida superior, devo dizer,

à expectativa de um escritor apartado amateur-like que eu sou. (…)

Escrevo por uma infinidade de motivos. Por vocação (…), também para justificar

os meus dezesseis anos de estudos não coroados pela formatura, também por

espírito agonístico, também para me devolver sensações passadas; por uma

infinidade de razões, em suma. Não certo por diversão. Dou um duro danado. A

mais fácil das minhas páginas sai simples após dezenas de penosas reescrituras.

Escrevo with a deep distrust and a deeper faith110

.

109

―Deus nunca esteve conosco‖ (LAJOLO, 1978, p. 64).

110 ―Escrevo com profunda descrença e ainda mais profunda fé‖ (ACCROCCA, 1960, apud FENOGLIO,

2002, pp. 180-181).

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4.2 Os Appunti de uma obra

Em 1994, após trinta e um anos da morte de Fenoglio, o crítico e estudioso da sua obra

Lorenzo Mondo, pela Editora Einaudi, foi responsável pela publicação de mais um texto

inédito de Beppe Fenoglio, os Appunti partigiani. Os problemas na datação da obra do

autor, derivados das inúmeras reescrituras, são infindáveis, mas, segundo Maria Corti111

,

Fenoglio teria escrito seus ―Rascunhos partigiani”112

durante a Guerra ou

imediatamente depois de voltar para casa. Segundo Lorenzo Mondo, a clareza da

caligrafia e a divisão em capítulos indicam um texto reescrito com certa calma e

conforto, talvez a partir de anotações feitas ao longo da Resistência. De todo modo, os

Appunti constituem, portanto, a primeira tentativa de que temos notícia do Fenoglio

escritor buscando uma sistematização literária de suas anotações biográficas. Daquele

rascunho já literário, com personagens e enredo, sairiam muitos dos personagens dos

contos mais maduros, sairiam também algumas sementes para os romances de maior

fôlego.

A história do que hoje nos alcança como livro começa com um esquecimento: as

Anotações partigianas foram deixadas para trás na mudança da Família Fenoglio da

casa no centro de Alba, Piazza Rosetti, número 1, para uma casa fora da cidade. O

comprador da casa, algum tempo depois, esvaziou o sótão, e tudo o que lá estava foi

colocado em caixas de papelão à beira do rio Tanaro. Um empresário de Milão, que

costumava ir pescar para aqueles lados, se deparou com as caixas, abriu algumas

cadernetas, leu a dedicatória: ―A todos os Partigiani da Itália, mortos ou vivos‖. Num

gesto aleatório, o empresário pescador pega mais três cadernetas e leva para casa.

Muitos anos depois, quando Beppe Fenoglio começa a ser conhecido do grande público,

111

Criadora do Fondo Manoscritti di Autori Moderni e Contemporanei, junto à Universidade de Pavia,

Corti foi a pesquisadora responsável pela edição crítica das obras de Fenoglio (1978). O conjunto dos

inéditos do autor foi, ao longo de oito anos, minuciosamente analisado por uma equipe coordenada por

ela. O Fondo, hoje, além dos manuscritos de Fenoglio, guarda ainda aqueles de autores como Eugenio

Montale, Italo Calvino, Mario Luzi, Carlo Levi, Umberto Saba e Carlo Emilio Gadda, entre outros.

112 O texto é inédito em português. O que consta entre aspas é o título por mim utilizado na tradução em

anexo.

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seus rascunhos alcançaram o pesquisador Lorenzo Mondo, que publicou apenas em

1994 o que, acredita-se, é o primeiro texto escrito a mão por Beppe Fenoglio sobre a

Guerra e a Resistência. O livro é inacabado porque, como brinca o teórico Lorenzo

Mondo, ficaram no ―Fundo Tanaro‖ as cadernetas que continham o desenrolar da

narrativa e que não foram levadas para casa pelo pescador-empresário de Milão e por

isso não chegaram até nós.

4.3 Os Appunti de uma guerra

Os Appunti narram a Resistência italiana. Têm início no dia 2 de novembro de 1944,

quando Beppe, depois da retomada da cidade de Alba pelos fascistas republicanos da

RSI113

, volta para as montanhas das Langhe. Contam seu percurso até a chegada na sua

base, na Chácara da Langa, onde reencontra os amigos Piccàrd e Cervellino – nomes de

batalha de dois irmãos. Acompanhamos literariamente o dia a dia dos partigiani, as

pequenas batalhas sobre as montanhas, a prisão de alguns companheiros partigiani por

fascistas, a prisão e o fuzilamento de fascistas por partigiani, a relação da população

civil com os partigiani, a traição cometida por civis contra os partigiani, os excessos

cometidos por partigiani contra civis.

A narrativa tem como centro temporal o período em que os partigiani sofreram as duas

piores perseguições de toda a guerra civil, os rastrellamenti – as caçadas114

– dos meses

de novembro e dezembro de 1944. A última página inacabada dos Appunti narra o

desaparecimento dos companheiros de batalha Piccàrd e Cervellino. Beppe fica só nas

montanhas das Langhe.

113

Num ato de excessiva confiança, os partigiani tomaram dos fascistas da RSI a cidade de Alba, capital

das Langhe e cidade de Fenoglio, em outubro de 1944. Mantiveram a cidade sob suas armas por vinte e

três dias e, depois, novamente ela voltou às mãos dos republicanos. O feito da tomada de Alba e a

narrativa dos vinte e três dias é narrada por Fenoglio em seu livro de estreia I 23 giorni della città di Alba.

114 O termo em italiano rastrellamento vem do objeto utilizado para retirar folhas e frutos de um terreno

rastrello, que em português chama-se rastelo. Obviamente, a tentativa de tradução do termo italiano

rastrellamento evocando rastrello não faria sentido algum. Por isso, optei aqui por priorizar o sentido

persecutório e violento do termo optando por ―caçada‖.

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Toda a inovação formal que caracterizaria a escrita fenogliana já estava ali antecipada: a

secura, a rapidez, as inversões e neologismos, apenas o perfume do dialeto, a ironia.

Uma Resistência violenta e não sacralizada, cujos motivos profundos da escolha pela

guerrilha continuam a mover o protagonista Beppe.

A escolha dos Appunti como objeto desta pesquisa está ligado ao fato de ser ele o texto

de Fenoglio que se remete mais diretamente à experiência vivida pelo autor na

Resistência, um texto menos mediado por um projeto estético-literário complexificado

posteriormente: o narrador ainda é em primeira pessoa, o protagonista ainda é o

partigiano Beppe, que depois daria lugar ao alter ego Johnny/Milton. Além disso, esse

é um texto ainda não perpassado pelas versões anteriores em língua inglesa, que, num

crescente, passam a ser a etapa inicial do processo criativo do autor, num projeto

literário mais amplo, acrescido de intenso pessimismo dos anos de pós-guerra.

Se ao longo do amadurecimento do Fenoglio escritor seu projeto literário foi se

tornando mais complexo e elaborado, por outro lado foi também se afastando da

tentativa de narrar uma experiência subjetiva. Embora permanecessem de fundo

autobiográfico ao longo de toda a sua produção, os textos da maturidade ganham

inúmeros outros pontos de acesso, todos eles muito frutíferos e de extremo rigor formal,

o narrador, a língua inglesa, o pessimismo e tantos outros. Mas a questão que interessa a

esta pesquisa se localiza no limiar entre experiência e literatura, analisada numa

primeira tentativa de organização literária de certa experiência, perguntando-se, à luz

das problemáticas benjaminianas sobre experiência e literatura, o que a torna literatura e

que relação um texto literário pode continuar alimentando com a experiência de que ele

é fruto.

Para isso parto agora, na última etapa desta pesquisa, à luz das questões teóricas, sociais,

históricas e literárias anteriormente levantadas, para a análise do texto contido nos

Appunti partigiani, de Beppe Fenoglio115

.

115

O texto dos Appunti foi na íntegra por mim traduzido. O esforço tradutório do apêndice desta pesquisa

foi realizado no sentido de aprofundar a relação com o texto e permitir a citação em língua portuguesa dos

trechos utilizados na análise contida no próximo capítulo. Recomendo a leitura do apêndice (que consta

também do original) antes da leitura do terceiro capítulo, por acreditar que algo da genialidade e da

concisão do texto de Fenoglio (que não se pretende totalmente recuperável na tradução proposta no

apêndice) certamente se perde na necessidade de descontextualização operada numa análise.

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Capítulo III

1 Os Appunti em sua materialidade

O livro Appunti partigiani é composto de pouco mais de 80 páginas, numa edição de

capa branca, com formato ainda menor do que uma folha A5. Inacabado, o livro se

divide em oito capítulos, escritos em algarismos romanos no começo de cada nova parte.

O Cap. VIII, a última parte que chegou até nós, é composto de apenas uma página, cuja

última frase, ―Cervellino fuzilam um dia desses, e Piccàrd vão enfiar em alguma brigata

nera‖, acaba, abrindo vereda para o infinito, num indescritível ―e vão levar pra ca-

[...]‖116

, fragmento que encerra também a quarta caderneta utilizada por Fenoglio para a

escrita de suas anotações. Da possível, quase certa, quinta caderneta e da continuação

daquela narrativa nunca tivemos notícia, o que deixa a história que carrega esse pequeno

livro de capa branca, que pode ser lido em pouco mais de uma hora, ainda mais sutil,

despretensiosa e bela.

A narrativa se desenrola num estilo rápido, que oscila principalmente entre o trágico e o

irônico, chegando, em momentos de especial concisão, num humor explícito. O enredo,

difícil de ser resumido, trata de um sem número de acontecimentos-peripécias,

encontros com muitos personagens mais ou menos relevantes e reincidentes, além de

transitar por pequenos povoados, cujos nomes pouco se repetem, em passos rápidos que

fazem jus ao ambiente perigoso e instável descrito pelo autor.

Numa tentativa tanto didática quando dialética, proponho, num terceiro momento desta

dissertação, uma análise mais detalhada do livro Appunti partigiani, de Beppe Fenoglio.

A metodologia empreendida é devedora de duas fontes: a primeira consiste do arsenal

metodológico oriundo da análise realizada pela teórica Maria Corti de outros textos

neorrealistas117

, a segunda consiste no próprio texto contido nos Appunti partigiani – a

divisão em temas recorrentes e as questões linguísticas abordadas foram exigidas pelo

116

―Cervellino lo fucilano uno di questi giorni, e Piccàrd lo ficcheranno in qualche brigata nera e lo

porteranno a ca-‖ (FENOGLIO, 1994, p. 84).

117 CORTI (1978).

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texto e seus componentes; à metodologia de análise imposta pelo texto de Fenoglio se

somam os procedimentos de Maria Corti na tentativa de uma análise de maior amplitude

e precisão teórico-crítica. A estratégia de análise visa ainda não aniquilar a experiência

de leitura do livro, mas ajudar na compreensão de seus temas e problemáticas à luz das

questões históricas e teóricas levantadas nos dois capítulos precedentes.

2 Os Appunti em suas constantes neorrealistas

Maria Corti, em seu estudo de alguns textos neorrealistas, busca elaborar uma

sistemática de funcionamento desses textos (exemplo desse esforço são as ―Constantes‖,

abordadas no segundo capítulo). Para isso identifica mecanismos recorrentes em muitos

textos neorrealistas que, como tentarei aqui mostrar, ocorrem também nos Appunti de

Fenoglio. Segundo Corti, é no ponto de encontro entre o nível temático e o formal que

se cria uma lei constitutiva de textos literários, também para os neorrealistas. Por isso,

não basta se ater aos fatos narrados, num nível apenas temático, para se perceber as

características que justifiquem uma etiqueta para um movimento, no caso a de

―neorrealista‖, embora, ressalva feita novamente também pela teórica, o Neorrealismo

não tenha conseguido constituir uma ―poética codificante‖ comum a muitos textos.

Premissa feita, a autora segue na tentativa de categorização, dividindo o problema do

conteúdo em dois: campos temáticos e estruturas semióticas e ideológicas.

O campo temático ou metafórico, para Corti, é por vezes amplo e geral, a ponto de estar

presente em todo texto neorrealista – a coletividade, as classes sociais, o regionalismo

enquanto emblema da realidade – e outras vezes podem ser mais limitados, com

frequência em oposição a outro – resistentes x fascistas, homens íntegros x animalescos,

agricultor x burguês, campo x cidade, inteligentes x obtusos, fascistas x garibaldinos.

Já as estruturas semióticas e ideológicas pertencem a um campo metafórico de uma

―região do espírito‖, são ―orgânicos e coerentemente articulados e exprimem um

conjunto de valores para uso cotidiano de uma classe de intelectuais‖, são eles os

conceitos de Natureza, Homem, Solidariedade dos Humildes e Oprimidos, Esperança no

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Futuro, Fé no Renascimento, que funcionam como um ―universo de moralidade, utópico

e atemporal‖.

Nas estruturas semióticas e ideológicas reside, segundo Corti, uma chave para a

compreensão da chamada ―falência dos textos neorrealistas‖. Estes eram textos que

pretendiam incidir sobre a realidade social, e se colocavam num novo lugar, tanto

temática quanto linguisticamente, em relação à produção literária anterior a eles. No

entanto, ―psicológica e ideologicamente se apoiava[m] em modelos culturais do

passado‖: ―Por isso os livros neorrealistas são tão datados e os seus autores (...) tão

pouco intrépidos para brincarem com os séculos‖118

.

Entre as mudanças formais, Corti identifica um primeiro grupo de inovações ligado ao

uso dos italianos regionais em consonância com a língua literária. A autora chama

atenção para o fato de que os novos conteúdos exigiam uma nova forma. Em reação a

essa exigência, os neorrealistas optaram por uma aparente ―não atenção‖ com a língua, a

partir de diálogos que faziam uso de uma língua falada regional ou dialetal, sendo essa

uma escolha comum a todos os textos, uma ―invariante‖. A escolha pela língua falada

tentava acompanhar a escolha pela objetividade temática: ―Em outras palavras, se aspira

a unificar a língua literária com o nível baixo, com os estratos lingüísticos das massas.

(...) Parecia desse modo aos escritores ser possível entrar na história, também em nível

lingüístico‖119

.

Em seguida, Corti anota ainda outras duas importantes observações, a primeira ligada ao

fato de que as novidades linguísticas vindas da tradição popular e modificadas pela

experiência da resistência, já existentes na imprensa clandestina da Resistência, foram

absorvidas e transferidas pelos escritores neorrealistas a um plano de consciência

literária; a segunda trata da forte separação ocorrida naquele momento entre prosa e

poesia.

Como consequência, o novo registro linguístico dos escritos neorrealistas abunda de

exemplos em que estão misturadas as influências populares com as estruturas literárias.

118

CORTI, (1978, p 70).

119 CORTI (1978, p. 73).

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A mesma mistura acontecia em nível vocabular e fonético, apesar de, para a literatura, a

importância das variações fonéticas dos italianos regionais, bem como a da gestualidade

da língua falada, terem sido, por motivos óbvios, menor do que no cinema: ―No meio do

caminho colocaríamos os três pontinhos, que (...) são muito freqüentes e servem para

tantas coisas, a gestualidade anexa ao diálogo, o nível interior, psicológico‖120

.

Um segundo grupo de inovações é analisado por Maria Corti em âmbito sintático,

composto por três elementos fundamentais: a prosa documental, com os usos de

parataxe121

, a reprodução mimética do diálogo, com suas redundâncias, formas

exclamativas e interrogativas, e a frequente conversa com o leitor.

O terceiro e último grupo de inovações identificado por Maria Corti nos textos

neorrealistas diz respeito à ―criolização122

do léxico e mistura do código, em nível

lexical e fraseológico‖ e trata da mistura de italianos regionais e dialetos, já presente na

imprensa clandestina. Sobre este último grupo, Corti avisa da dificuldade em se

proceder a uma análise atenta dessas inovações, dada sua sutileza e a diferente função

que desempenham nos textos e nos personagens a que são atribuídas, gerando um efeito

descrito por Italo Calvino como uma presença de ―frases italianas de quem pensa em

dialeto‖123

.

O texto de Beppe Fenoglio dialoga com todas as questões levantadas até aqui por Maria

Corti, mas impõe modificações e ajustes e acrescenta problemáticas temáticas,

ideológicas e linguísticas. Por isso, a análise que aqui se segue é fruto da junção das

duas coisas: a necessidade do texto com o aparato crítico a posteriori.

120

CORTI (1978, p. 78).

121 Coordenação, ou parataxe, é a construção em que os termos se ordenam numa seqüência e não ficam

conjugados num sintagma. Na coordenação, cada termo vale por si e a sua soma dá a significação global

em que as significações dos termos constituintes entram ordenadamente lado a lado (CAMARA JR.,

2000, p. 86).

122 Creolizzazione, no original, indica, em sentido amplo, mistura, não pureza de uma língua. Oriundo de

creolo (crioulo, em português), adj. m. 1. Se diz de pessoa de raça branca nascida na América centro-

meridional de colonos europeus ou de pai europeu e mãe indígena. 2. Se diz de fala híbrida surgida do

contato de uma língua europeia com línguas indígenas dos países centro-americanos (Dizionario Garzanti

della Lingua Italiana, 1998).

123 CALVINO apud CORTI (1978, p. 94).

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3 Os Appunti para fins analíticos

A análise dos Appunti foi então dividida em três momentos, todos eles acompanhados

de partes do livro: o primeiro visa conceituar o livro Appunti partigiani em relação à

questão experiência-literatura levantada no capítulo anterior; a segunda trata das

questões de conteúdo, com divisões e subdivisões sugeridas pelo texto e acrescidas das

categorias sugeridas por Maria Corti para outros textos e aqui aplicadas aos Appunti; a

terceira chega ao nível linguístico e às inovações operadas por Fenoglio, sempre com o

auxílio do que Corti postulou para outros textos.

3.1 Os Appunti e a ―rememoração‖

O exercício de ―rememoração‖ acontece nos Appunti a partir de um movimento

dialético entre Erfahrung e Erlebnis. Fenoglio, num duplo movimento, parte de uma

experiência que conceitua como vivida coletivamente – a Resistência italiana –,

aproxima a ela uma vivência individual própria de seu tempo (com todas as suas

impossibilidades) e narra a partir da rememoração; por outro lado, coloca a experiência

da Resistência italiana como uma vivência individual, mas recorre à tradição oral e

coletiva na hora de narrá-la, a partir das escolhas formais que realiza, que também têm

início no esforço de rememorar.

Nessa dupla articulação, o texto faz uso de alguns artifícios para alcançar os efeitos

desejados. O primeiro, mais importante e mais recorrente é a autobiografia, que se

utiliza de um pacto previamente estabelecido com o leitor de que o narrador está

contando um fato em que esteve presente em primeira pessoa, envolvido, tanto

afetivamente quanto na prática, no desenrolar dos acontecimentos.

Assim, o livro tem início com o narrador, personagem e autor Beppe, que se despede de

sua mãe para voltar às montanhas. O padeiro da cidade consola a mãe e revela seu

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verdadeiro nome: ―Senhora... senhora Rita...‖124

. Ainda na mesma página, na subida das

montanhas, Beppe passa por um pequeno vilarejo e o dono de uma pensão lhe pergunta:

―Você é o Beppe, filho do Amilcare. Tá indo lá pra cima?‖125

, confirmando também o

nome do pai.

Mais adiante, Beppe reflete sobre a importância de não ter documentos consigo caso

seja capturado por um fascista ou alemão, decide então jogar fora sua carteira de

identidade, mas, antes, lê para o leitor o que tem escrito nela e acrescenta: ―Tá toda

certa, menos pela idade e a profissão. De fato declara que eu sou de 1920, e eu sou de

1922. Que sou marceneiro: mas eu estudo, todo mundo sabe‖126

.

Seguindo viagem, Beppe decide parar para dormir, identifica no escuro a maior

quantidade de luz e se dirige até o que, segundo ele, é a Chácara Cervasco, a maior da

região. Chegando lá, mais uma prova autobiográfica:

– Sou o filho do Amilcare. Esta é Fazenda Cervasco?

– Bom, se o senhor é filho do Amilcare, esta é Fazenda Cervasco (...)127

.

Quando Beppe, na manhã seguinte, chega até o comandante e pede para ser locado perto

de Alba, onde estão seus amigos, o comandante permite, mas, antes de se despedir, se

assegura que ele continue usando o lenço azul, distintivo dos azzurri, em que todos

bordam o nome de batalha:

– Mandou bordar teu nome de batalha nele?

Rio que não. E depois digo que a mim o nome de batalha nem me serve nem

me acrescenta. Quem não me conhece por Beppe por essas Langhe?128

.

124

―Signora... signora Rita...‖ (FENOGLIO, 1994, p. 1).

125 ―Tu sei Beppe, figlio di Amilcare. Sei che vai sú?‖ (FENOGLIO, 1994, p. 1).

126 ―È tutta giusta, salvo che per l‘età e la professione. Infatti dichiara che sono del 20, e io sono del 22.

Che faccio l‘ebanista: ma io studio, si sa‖ (FENOGLIO, 1994, p. 7).

127 – Sono il figlio di Amilcare. Questa è Cascina Cervasco?/ – Bè, se voi siete figlio di Amilcare, questa

è Cascina Cervasco‖ (FENOGLIO,1994, p. 10).

128 ―– Gli hai fatto ricamare il tuo nome di battaglia?/ Rido di no. E poi dico che a me il nome di battaglia

né mi serve né mi dona. Chi non mi conosce per Beppe su queste Langhe?‖ (FENOGLIO, 1994, p. 15).

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A maior prova autobiográfica, porém, aparece muito depois. Quando Beppe e seus

companheiros enfrentam os piores dias de perseguição, quando o frio e a névoa se abate

sobre eles, no penúltimo dia de narrativa, Beppe recebe uma carta de casa. Nela a

estratégia ficcional é a de dar detalhes da vida privada da Família Fenoglio para mais

um vez reforçar a coincidência entre autor e narrador.

Querido Beppe,

nós todos bem, ainda que um pouco aflitos, porque a república daqui sabe que você

é partigiano e poderia se vingar em cima de nós. Recebemos teu recado do casaco

de pele. Mamãe encomendou imediatamente, acho que vai ficar até bastante

elegante. O difícil vai ser fazer passar pelo bloqueio, mas esperamos fazer chegar

em ti de todo modo e o quanto antes. Enquanto isso vai em Valdivilla no senhor...

dono da fazenda... Esteve em casa até sábado passado, e a mamãe lhe deu mil liras

e um par de meias pra ti. Em cada meia você vai encontrar dois maços de cigarro.

Vá com certeza. Sabe aquela tua fotografia grande que tem na sala de jantar?

Vieram os republicanos para nos fazer a perquisição e cobriram ela de cuspes,

depois começaram a gritar que você era um traidor e um bastardo. Então a mamãe

disse a eles que ela pode dizer que você não é um bastardo. Procura uma maneira

de nos fazer saber do que você precisa. A mamãe te diz para dormir protegido e

com um olho só, pra não querer sempre ser o primeiro, e quer que você faça

algumas noites as orações.

Marisa.

P.S. Nos deram de presente um filhote. Os donos de antes o chamavam de

Michelangelo, nós o chamamos de Micky129

.

129

Caro Beppe, noi tutti bene, quantunque un pò affannati, perché la repubblica di qui sa che sei

partigiano e potrebbe vendicarsi su di noi. Abbiamo ricevuto il tuo biglietto del pellicciotto. La mamma lo

ha subito dato a fare, credo che riuscirà anche abbastanza elegante. Il difficile sarà farlo passare al posto

di blocco, ma speriamo di fartelo avere a ogni costo e quanto prima. Intanto vai a Valdivilla dal signor...

padrone della cascina... È stato da noi fin dall‘altro sabato, e la mamma gli ha dato mille lire e un paio di

calze per te. In ogni calza troverai due pacchetti di sigarette. Vacci di sicuro. Sai quella tua fotografia

grande che c‘è in sala da pranzo? Son venuti i repubblicani a farci la perquisizione e l‘hanno coperta di

sputi, poi si son messi a gridare che eri un traditore e un bastardo. Allora la mamma ha detto loro che lei

può dire che non sei un bastardo. Cerca la maniera di farci sapere cosa ti manca. La mamma ti dice di

dormire al sicuro e con un occhio solo, di non voler sempre fare il primo, e vuole che dici qualche sera le

orazioni.

Marisa. P.S. Ci hanno regalato un cucciolo. I suoi padroni di prima lo chiamavano Michelangelo, noi lo

chiamiamo Micky (FENOGLIO, 1994, p. 76).

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Na carta, a omissão do nome da pessoa que ele deve procurar e da chácara em que está é

sinal de que ele poderia sofrer retaliações se seu nome fosse revelado. O ―P.S.‖ quase

humorístico, dada a situação em que é lido, confirma a intenção em reforçar o caráter

autobiográfico. E temos aqui a confirmação do nome da irmã de Fenoglio, Marisa.

A outra estratégia de que o autor faz uso para o que chamei de ―exercício de

rememoração‖ é o destaque que o partigiano Beppe mostra ter dos outros partigiani.

Beppe, narrador autobiográfico, apesar da sua reivindicada presença em primeira pessoa

nos eventos históricos e fatos cotidianos narrados, assume sempre algum destaque do

grupo, como que ressaltando duas coisas: o isolamento moral, ético e ideológico que o

narrador mantém e o isolamento do sujeito histórico de seu tempo, num procedimento

que retoma os preceitos benjaminianos de não adequação ao tempo histórico para

acessar suas entranhas. Ambas as tomadas de distância dão ao texto de Fenoglio o ar

fresco e a possibilidade de continuar significando ao longo dos anos.

Exemplos dramáticos dessa não adequação são encontrados na postura do narrador e

partigiano Beppe diante dos inimigos. Algo de animalesco é por ele identificado em

seus companheiros e, embora se descreva como quem acredita na justiça daquele

fuzilamento, nunca dele participa ativamente. Por vezes optando por não bater nos

prisioneiros, quando todos os partigiani o fazem, outras não querendo ver de perto seus

fuzilamentos, sejam eles de partigiani traidores, ou fascistas ou alemães, o narrador

Beppe os encara sempre com certa compaixão.

No trecho a seguir, Beppe cruza com um partigiano que mantém um prisioneiro já

surrado por muitos outros partigiani:

Johnson me faz: – Você é partigiano?

Digo: – Não te parece?

– E então bate, – e me aponta aquele rosto que já se ofereceu.

– Por que eu devo bater nele?

– Traidor. Traição.

A cabeça dele caiu de novo sobre o peito.

– Que traição? – digo.

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– Traição, não?

O sentado levanta de novo o seu horrível rosto e geme: – Eu, um partigiano como

eu...

Johnson o cala com uma pancada do Sten.

Digo: – Mas ele é partigiano?

– Sim, mas traidor. Você vai ou não vai dar esses dois murros nele? Você é o

primeiro que se faz implorar. Devem ter passado uns cem e todos lhe deram. Bate,

vai!

– É obrigatório?

– Obrigatório, não... – Johnson está atônito e eu sigo adiante130

.

Ou num segundo momento, em que todo um destacamento e alguns civis presenciam o

fuzilamento de um fascista, o narrador descreve lentamente todos os preparativos,

caracteriza todos os participantes, com olhar atento aos detalhes, que demonstram a

crueldade e os atos animalescos daquela cena em que ninguém duvida de que a coisa

certa a ser feita é fuzilar o fascista, nem mesmo Beppe:

Depois Barba se vira pra me dizer pra descer com ele que de onde estou não vou

ver. Digo que vejo muito bem, movo apenas alguns passos com o pároco que

encostou do meu lado e reza em latim com taquicardia. Olga apoiou a cabeça atrás

das costas do Comandante e olha o fogo do cigarro e pergunta em vão se vai ser

um barulho alto. Na margem estão os partigiani em uma fila só, com as mãos no

bolso. Um partigiano pequenininho que o chamam Topo diz a Barba que afaste um

dedo, que ele também possa ver. Mas Barba não o ouve, e Topo corre rapidíssimo a

procurar um outro lugar. Mas eis a descarga, e Topo se empena como se o disparo

tivesse acertado ele e blasfema seco. Aqueles poucos civis são os primeiros a ir

embora dali, dizendo simplesmente que aquele prado é um pouco perto demais da

cidade. Os partigiani ficam vendo Caminito fazendo as vezes de coveiro. Depois

130

Johnson mi fa: – Sei partigiano?/ Dico: – Non ti pare?/ – E allora picchia, – e mi addita quella faccia

che già si è offerta./ – Perché ho da picchiarlo?/ – Traditore. Tradimento./ A quello la testa è ricascata sul

petto./ – Che tradimento? – dico./ – Tradimento, no?/ ll seduto rialza la sua orribile faccia e geme: – Io,

un partigiano come me.../ Johnson lo zittisce con uno scarto dello Sten./ Dico: – Ma è partigiano?/ – Sì,

ma traditore. Glieli dai questi due pugni o non glieli dai? Sei il primo che si fa pregare. Ne saran passati

cento e tutti han dato. Picchia, dai!/ – Obbligatorio?/ – Obbligatorio no... – Johnson è interdetto e io passo

oltre‖ (FENOGLIO, 1994, p. 13).

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de um momento Barba sobe e me diz que eu não vi que antes ele mijou nas

calças131

.

Outro momento em que o narrador se descreve totalmente diferente de seus

companheiros é quando os partigiani, em meio a uma perseguição, são levados por um

comandante, descrito como um incompetente e cheio de má intenção, a um almoço farto

e prazeroso, regado a vinho, entrada, prato principal e sobremesa, em tempos de total

escassez. O clima é todo surrealista, os republicanos estão chegando, e eles, em vez de

irem embora, são tomados pela euforia e mandam um partigiano avisar com um assovio

quando os republicanos estivessem mais perto. Apenas Beppe parece manter a noção de

perigo, e a reforça com uma revelação que o distingue totalmente de seus companheiros:

―Todos bebem e começam a fazer bagunça e entoar a canção Il partigian del bosco que

conta de uma moça que o partigiano do bosque lhe rompeu o véu. Eu sou abstêmio, e

grito que se continuam assim não ouvimos o assobio‖ 132

.

Beppe, porém, não é um personagem simples de delimitar, pois, apesar de se descrever

diante dos fuzilamentos e das violências exacerbadas como quem não seria capaz de

cometê-las, ele nunca as julga. Nunca acena para nenhum juízo de valor e nem descreve

quem é capaz de fuzilar como um personagem inferior a ele. Em alguns momentos ele

até se iguala a eles, em crueldade e frieza. Principalmente em relação às mulheres. No

trecho a seguir, Beppe trata de uma garota que fazia parte dos partigiani e com a qual

ele tinha transado durante toda a noite; ela sobe depressa num caminhão e ele, de longe,

131

―Poi Barba si volta a dirmi di scendere con lui che da dove sono non vedrò. Dico che vedo benissimo,

muovo solo qualche passo coi parroco che mi si e affiancato e prega in latino col batticuore. Olga ha

appoggiato la testa dietro la schiena del Comandante e guarda il fuocherello della sigaretta e chiede

invano se sarà un rumore forte. Sul ciglio stanno i partigiani su una fila sola, con le mani in tasca. Un

partigiano piccolino che lo chiamano Topo dice a Barba di spostarsi d‘un dito, che anche lui possa vedere.

Ma Barba non l‘intende, e Topo corre velocissimo a cercarsi un altro posto. Ma ecco la scarica, e lui

s‘impenna come se la raffica avesse inchiodato lui e bestemmia secco. Quei pochi borghesi sono i primi a

partirsene, dicendo semplicemente che quel prato è un pò troppo vicino al paese. I partigiani restano a

veder Caminito far da becchino. Dopo un momento Barba sale e mi dice che non ho visto io che prima s‘è

pisciato addosso‖ (FENOGLIO, 1994, p. 37).

132 ―Tutti bevono e cominciano a far bordello e intonare la canzone ‗Il partigian del bosco‘ che dice di una

ragazza che il partigian del bosco le ha rotto il velo. Io sono astemio, e urlo che se fanno cosí non

sentiamo il fischio‖ (FENOGLIO, 1994, p. 62).

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pensa: ―É bonito ver que uma garota que foi tamburelada a noite toda ainda faz destas

espargatas‖133

.

Momento em que o narrador se utiliza do ―exercício de rememoração‖ é também aquele

em que traz à tona a parte pouco nobre da guerra civil – Resistência italiana. A partir

dos Appunti, somos colocados em contato com uma realidade em que, na verdade, os

partigiani faziam muitas elucubrações, mas pouca guerra. E, quando acontecia, o

inimigo era tão superior em armas e munição, que as perdas eram sempre dramáticas.

Por isso o dia a dia da guerrilha narrado por Beppe não glorifica nem enche de retórica

seus dias, mas, ao contrário, mostra partigiani eternamente em fuga e seu superiores

sempre às voltas com problemas mínimos, tais como a organização das refeições ou

reclamações dos civis de galinhas roubadas, além dos muitos problemas com as outras

facções. A seguir, vemos o partigiano Beppe presenciando uma dessa reclamações:

– O partigiano Caccia me requisitou o meu único bezerro. Não por nada, mas a

fazenda Caffa tem três bezerros no estábulo, e todos três mais maduros que o meu.

O Comandante lhe diz para resolver com o intendente Rolando e assim o manda

embora‖134

.

Outra característica do texto de Fenoglio que, acredito, o mantém entre Erfahrung e

Erlebnis é a voluntária estruturação da narrativa com resquícios de diário. A escolha

visa reforçar a pretensa veracidade das informações e está presente desde o título da

breve narrativa até as marcações temporais ao longo de todo o texto, que, juntas, servem

para tornar o leitor ativo dentro da narrativa, com sua carga de memória partilhada,

leitor com o qual o texto pretende uma quase total consonância de sensações. Marcas

como ―a vigília da Imaculada‖, ―uma semana antes do Natal‖, ―é dia 21 de dezembro‖ e

muitas outras servem para dar ao leitor uma precisão histórica, mas unidas a orações

133

―È bello vedere che una ragazza che l‘hanno stamburata tutta la notte fa ancora di queste spaccate‖

(FENOGLIO, 1994, p. 79).

134 ―Mi ritiro alla finestra e vedo Madonna della Rovere e Castino e, sull'ultima collina, la torre di

Roccaverano. E sento il mezzadro:/ – ll partigiano Caccia mi ha requisito il mio unico vitello. Tanto per

dire, la cascina Caffa ha tre vitelli in stalla, e tutt‘e tre più maturi del mio./ Il Comandante gli dice di

vedersela con l‘intendente Rolando e cosí lo manda via‖ (FENOGLIO, 1994, p. 14).

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vazias e ausência de fatos, para dar o tom das anotações de diário: ―Nada mais pelo

resto da tarde‖135

.

Ou ainda, sobre o esforço em anotar a caçada de novembro:

Agora que escrevo da grande caçada de novembro continuo a não entender nada

dela, como dela não entendi nada então quando a sofri toda. Nem lembro o

intinerário, tanto mais que, os três dias que durou, outra coisa não foi que um

marchar em círculo(...). E houve bastante também para nós, mesmo que tivéssemos

feito o calo em novembro. Mas talvez erro em dizer assim, porque às grandes

caçadas a gente não se acostuma nunca‖136

.

A última estratégia dialética de Fenoglio trata da inserção, dentro de sua narrativa, dos

resquícios fascistas no interior das facções resistentes. Ruptura e continuidade reforçam

um ―exercício de rememoração‖ que nunca exalta forçosamente um momento cheio de

nuances, ambiguidades e retrocessos. Os gestos fascistas são sempre narrados com

alguma graça, quase como que avisando ao leitor que o narrador percebe que é um

retrocesso, mas que o ambiente da Resistência era inevitavelmente cheio deles: ―Na

ponte de Cossano o guarda se precipita para levantar a cancela do bloqueio, depois se

esticam para nos cumprimentar alla Régio Exército‖137

.

Assim, percebo a narrativa presente nos Appunti partigiani, de Beppe Fenoglio, um

exaustivo exercício de não simplificação daquele momento histórico, não pertencimento

a este ou aquele grupo, não total concordância com os partigiani, com a violência. Uma

escolha difícil para aquele período a de optar por narrar ao seu leitor alguns fenômenos

ridículos, escolhendo a banalização da guerrilha, sem abrir mão de certa esperança de

135

―Nient‘altro per il resto del pomeriggio‖ (FENOGLIO, 1994, p. 20).

136 ―Adesso che scrivo del grande rastrellamento di novembre continuo a non capircene niente, come non

ne ho capito niente allora che l‘ho buscato tutto. Né ricordo l‘itinerario, tanto più che, i tre giorni che è

durato, altro non è stato che un marciare in tondo. (...) E ce ne fu anche per noi, anche se noi ci si era fatto

il callo a novembre. Ma forse sbaglio a dir cosí, perché ai grandi rastrellamenti non ci si abitua mai‖

(FENOGLIO, 1994, p. 48).

137 ―Al ponte di Cossano le guardie si precipitano a sollevare la sbarra del blocco, poi s‘impalano a

salutarci alla Regio Esercito‖ (FENOGLIO, 1994, p. 26).

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que naquele microcosmo houvesse um germe transformador da sociedade como um

todo. Esperança que está presente nos Appunti e foi sumindo dos textos da maturidade.

A partir dessas escolhas prévias, seguem-se outras escolhas formais um narrador que

possui uma memória de fatos difusos, que cruza com muitos personagens e narra muitas

paisagens e que não se atém à narrativa da aventura de uma trajetória, uma vida, um

sujeito, um herói. O narrador-personagem de Fenoglio está inserido numa coletividade e

narra acontecimentos ocorridos a um grupo de pessoas, embora se utilize da

autobiografia como via de acesso à ―rememoração‖: é a partir do pacto de veracidade

conseguido a partir da autobiografia que Beppe narra os acontecimentos partilhados de

uma guerrilha vivida por ele em primeira pessoa, mas também por seu leitor, direta ou

indiretamente, e o narrador, ao longo de todo o livro, parece saber disso.

3.2 Os Appunti: temas e ideologias

Num segundo momento da análise, chegamos ao nível temático e ideológico. Também

aqui os itens em que foram divididos são exigidos pelo texto analisado e estão

separados segundo alguns temas recorrentes que cumprem funções formais e

ideológicas ao longo de toda a obra. São eles ―Os partigiani‖, ―A comunhão com a

população civil‖, com um subtópico ―Igreja‖, ―Anna Maria e la Lupa‖, ―Fascistas e

alemães x italianos‖ e ―Ironia e humor‖. Como em todo exercício analítico, as partes

foram divididas para melhor serem manuseadas, mas as divisões guardam sempre algo

de artificial e as partes estão contaminadas entre si.

3.2.1 Os Partigiani

Os partigiani constituem um núcleo essencial da narrativa, e a partir deste primeiro

grande recorte encontraríamos muitos outros, como a tragicidade da narrativa,

representada através da dureza da Guerra e das condições precárias a que os partigiani

estão submetidos. Mas por partigiani o texto entende também os seres humanos,

dialetizando a problemática das escolhas por nomes de batalha, facções ou partidos

políticos.

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As duas principais facções constituídas na Resistência italiana são os Azzurri, também

chamados de badogliani por serem principalmente patriotas, ou seja, não comunistas,

não fascistas, mas a favor de que a Itália voltasse a mãos italianas e esse feito havia sido

delegado ao rei e ao general Pietro Badoglio, que do sul da península tentava

reorganizar as tropas italianas contra a República Social Italiana. A outra facção era

chamada os Rossi, fazendo alusão à cor vermelha dos comunistas, eram também

conhecidos por garibaldini, nome que evocava os feitos de unificação de Giuseppe

Garibaldi. Os principais inimigos das tropas partigiane das montanhas do Cunese eram

os soldados da RSI, chamados ―republicanos‖ ou ―fascistas‖, e os alemães.

O narrador-personagem Beppe é descrito desde o início do livro como partigiano,

porque, convém lembrar, essa já é a segunda vez que ele sobe as montanhas para lutar

na Resistência. Pelos Appunti, não sabemos, portanto, nada sobre os primeiros

momentos de Beppe entre os partigiani, seus estranhamentos, seu ritual de

transformação. Quando somos apresentados a ele, ele já fala, se veste e pensa como um

partigiano e como tal exprime suas sensações:

Mas vai ser um dia bonito, e os dias bonitos têm um sentido também para nós

partigiani138

.

(...)

Sentamos pra comer bistecas e pra roubar pão fresco uns aos outros. Quem não viu

partigiani comer, nunca viu nada139

.

(...)

Sei que falo como cafona, mas como partigiano se desaprende o melhor140

.

Sobre a primeira noite entre os partigiani temos um único relato ao longo de todo o

livro:

138

―Ma va a essere una bella giornata, e le belle giornate hanno un senso anche per noi partigiani‖

(FENOGLIO, 1994, p. 11).

139 ―Sediamo a mangiar bistecche e a rubarci l‘un l‘altro il pane fresco. Chi non ha visto partigiani

mangiare, non ha mai visto niente‖ (FENOGLIO, 1994, p. 19).

140 ―So di parlar da cafone, ma da partigiani si disimpara il meglio‖ (FENOGLIO, 1994, p. 28).

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No fundo, nem ganha nem perde nada, porque a primeira noite entre os partigiani

de fato não se fecha olho. Acreditem, fica-se acordado pensando que aquele mudar

de lugar para dormir muda tantas coisas: se agora te pegam dormindo ali, te tiram a

pele ali mesmo. E você escuta no escuro os outros roncarem, e pensa que devem

ser todos veteranos do pargianato, pra poderem dormir assim. Mas na manhã

seguinte você vem a saber que a maioria é de pouco mais velho que você. E isso te

conforta para as próximas noites141

.

O olhar de Beppe recai, porém com algum desprezo, sobre muitos partigiani,

principalmente os que ocupam cargos de maior prestígio. No trecho a seguir vemos o

total desprezo pelas hierarquias, que lembram o Exército Régio fascista, e a descrição

dos partigiani que ocupam altos cargos como prepotentes e incompetentes, salvo raras

excessões, pois eram os partigiani sem distintivos que faziam a verdadeira batalha.

Na porta estacionam oito ou dez partigiani bem vestidos, bem armados, bem

pançudos e prepotentes. São os caras da Equipe Comando Divisão, os guarda-

costas, nós os chamamos os armigeri. Estudo um por um, e se eu fosse o

Comandante, as costas eu guardaria sozinho.

Quase todos calçam botas alemãs e usam o cinturão do Gott mit uns, mas não os

conquistaram eles. Aquela é presa de pobres partigiani destacados na casa do diabo:

os mandaram em homenagem ao Comandante de Divisão, e naturalmente

acabaram pegando eles. E como provavam, já inventavam a história de como os

tinham conquistado, pra contar às garotas e àqueles partigiani que não os

conhecem. Porque os partigiani novatos ou que vêm de longe, como os veem,

imediatamente os estimam padreterno em fato de coragem e de manejo das armas,

mas fora o chefe deles Moretto e um ou dois outros, a verdade é que os armigeri

são todos incompetentes. De Moretto não falo, Moretto é de fato quase um

padreterno naquele campo‖142

.

141

―In fondo, né ci guadagna né ci perde, perché la prima notte tra i partigiani proprio non si chiude

occhio. Ve lo dico io, si sta svegli a pensare che quel cambiar di posto da dormire cambia tante cose: se

ora ti beccano a dormir lí, ti fanno la pelle sul posto. E senti nel buio gli altri russare, e pensi che devono

essere tutti veterani del partigianato, per poter dormire cosí. Ma alla mattina dopo vieni a sapere che i piú

sono di poco piú anziani di te. E questo ti conforta per le prossime notti‖ (FENOGLIO, 1994, p. 21).

142 ―Sulla porta stazionano otto o dieci partigiani ben vestiti, ben armati, ben pasciuti e prepotenti. Son

quelli della Squadra Comando Divisione, la guardia del corpo, noi li chiamiamo gli armigeri. Li studio

uno ad uno, e se fossi io il Comandante, il corpo me lo difenderei tutto da solo. Quasi tutti calzano gli

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Há ainda outro componente no tom sarcástico com que Beppe narra toda a reunião do

Comando de Divisão, em que estão também os personagens acima descritos: Beppe

narrador parecia acreditar num sentido anárquico da Resistência e trata com desprezo e

impaciência toda tentativa de sistematização da guerrilha.

Sobre o ambiente de precariedade e disputa até entre os partigiani de uma mesma

formação, lemos a resposta de Beppe diante de uma chamada urgente, no meio de um

almoço, numa pensão: ―Armados estamos já armados, todos tinham mantido a arma a

tiracolo, porque é um lugar, este, que se não exatamente a arma, ao menos os

carregadores te roubam fatalmente‖143

.

Outro motivo de desprezo por parte do narrador para com alguns partigiani é a

mediocridade de intuitos e intenções que movem o dia a dia da batalha. Aqui, Beppe

narra que mesmo Moretto, o único dos partigiani descritos anteriormente como

merecedor de respeito em campo de batalha, faz um pedido ao comandante para evitar

problemas na hora dos fuzilamentos: ―Moretto implora ao Comandante para deixar aqui

em cima Napoleone e Giulio, ou depois lá em baixo em Rocchetta acontece de novo a

chatice do de quem é a vez‖144

.

Numa das cenas mais fortes do livro, os partigiani Blister e Jack, antes companheiros

de batalha, cometeram abusos a uma família de civis e devem ser fuzilados em pouco

tempo. O narrador se mantém ainda mais imparcial e indiferente à dramaticidade da

stivaletti tedeschi e portano il cinturino del Gott mit uns, ma mica li han conquistati loro. Quella è preda

di poveri partigiani distaccati a casa del diavolo: li han mandati in omaggio al Comandante di Divisione, e

naturalmente han finito di beccarseli costoro. E come li provavano, già s‘inventavano la storia di come li

han conquistati, da raccontarsi alle ragazze e a quei partigiani che non li conoscono. Perché i partigiani

novelli o che vengono da lontano, come li vedono, súbito li stimano padreterni in fatto di coraggio e di

maneggio delle armi, ma tolto il loro capo Moretto e uno o due altri, la verità è che gli armigeri son tutte

schiappe. Di Moretto non dico, Moretto è davvero quasi un padreterno in quel campo‖ (FENOGLIO,

1994, pp. 33-34).

143 ―Armati siamo già armati, tutti avevan tenuta l‘arma a tracolla, perché è un posto, questo, che se non

proprio l‘arma, almeno i caricatori te li fregano fatalmente‖ (FENOGLIO, 1994, p. 29).

144 ―Intanto il Moretto prega il Comandante di tener quassù Napoleone e Giulio, o poi laggiù a Rocchetta

risuccede la grana dell‘a chi spetta‖ (FENOGLIO, 1994, p. 29).

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cena, descrita em detalhes que trazem à tona outras tantas problemáticas da guerrilha, a

partir do ―que ele‖ (linha 2), usando o discurso indireto livre, numa forma de diálogo

em que o narrador atribui a si próprio a função de reproduzir a fala dos personagens,

podendo então se posicionar em relação a elas:

Perguntou se podia fumar, se enrolou um cigarro, depois explodiu gritando que ele

era um partigiano dos primeiros, que lembrássemos de como ele tinha se

comportado na batalha de Alba e que ele e Jack tinham roubado só porque há seis

meses não tinham um centavo no bolso. Ele e Jack não eram como Beppe e

Cervellino e Piccàrd que tinham papai que mandava dinheiro da cidade pra eles. E

nem eram daquela zona como a maior parte dos outros que em um pulo estão em

casa e se trocam por baixo e pegam dinheiro(...). Depois Cosmo lhe gritou cala a

boca, ladrão, ladrão nojento, e Blister abaixou a cabeça e pediu baixinho se de vez

em quando poderíamos dizer a hora145

.

E no caminho feito com os dois partigiani traidores para o campo em que serão

fuzilados, mais uma demonstração de excessos e violências desmedidas atestam a

fragilidade da escolha pelo lado a que os sujeitos pertenceriam naquela guerra civil, em

que nem só de mentes reunidas por uma boa causa eram compostas as facções de

partigani e mesmo os bem intencionados estavam sujeitos às provações que poderiam

fazê-los transgredir as regras daquele grupo e ser friamente humilhados e fuzilados

pelos seus, até ontem, companheiros:

Aqueles do Caramba agora querem cacetear a parte deles, mas Cosmo e Set se

metem no meio, diz Cosmo que um pouco mais de murros os tomaria da

145

―Chiese se poteva fumare, s‘arrotolò una sigaretta, poi scoppiò a urlare che lui era un partigiano dei

primi, che ci ricordassimo di come s‘era portato alla battaglia di Alba e che lui e Jack avevano rubato solo

perché da sei mesi non avevano un soldo sulla pelle. Lui e Jack non erano come Beppe e Cervellino e

Piccàrd che avevano papà che gli mandava soldi dalla città. E nemmeno erano dei posti come la maggior

parte degli altri che in un salto sono a casa e si cambiano da sotto e prendono soldi. (...)Poi Cosmo gli

gridò fa silenzio, ladro, ladro schifoso, e Blister chinò la testa e chiese piano se di tanto in tanto gli

dicevamo l‘ora‖ (FENOGLIO, 1994, p. 56).

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metralhadora do Set. E eles precisam se contentar em cuspir, em gritar criminosos

e passar adiante146

.

E, em seguida, a cena do fuzilamento, em que o narrador deixa entrever um carinho

misturado com frieza incompreensível pelo companheiro-partigiano-traidor:

Set mira Blister e lhe diz: – Primeiro grita Viva Badoglio! E Blister ri e diz: – Mas

sim, viva Badoglio! – e ri.

Set apertou, mas a arma se encrava, tic. Set fica branco, grita a Cosmo que é a

primeira vez que a sua metralhadora o trai, e que não lhe substitua que ele conserta

imediatamente. Blister começou a rir, ri altíssimo e Set o faz morrer enquanto ri e

nós de Blister vamos lembrar sempre assim. Em seguida tem Jack que corre no

meio porque alguém lhe deu um empurrão e Set atira nele correndo, porque é certo

que Jack cairia no chão assim que parasse, e não é bonito fuzilar um homem caído

no chão, não é fazer justiça‖147

.

A temática do erotismo, muitas vezes explícita nos Appunti, é aqui inserida na temática

dos partigiani por não existir no livro nenhum outro ponto de vista que não seja o dos

partigiani homens sobre as mulheres. Esse ponto de vista é partilhado e não há vozes

dissonantes: as mulheres que estão por qualquer motivo envolvidas na guerrilha são de

―uso comum‖ e ―desfrutadas‖ para fins sexuais (com excessão de Olga, mulher do

comandante), as filhas de camponeses ou ajudantes nas chácaras são descritas como

feias, fedidas e de dar ojeriza em quem as olha, e as meninas burguesas, filhas dos civis

das cidades, são desejadas e por elas os partigiani se apaixonam.

146

―Quelli di Caramba adesso vogliono cazzottare la loro parte, ma Cosmo e Set si mettono in mezzo,

dice Cosmo che un altro pò di pugni li toglierebbe al mitra di Set. E quelli devono contentarsi di sputare,

di gridare ai delinquenti e passar via‖ (FENOGLIO, 1994, p. 57).

147 ―Set mira Blister e gli dice: – Prima grida Viva Badoglio! E Blister ride e dice: – Ma sí, viva

Badoglio! – e ride./ Set ha premuto, ma l‘arma s‘inceppa, cik. Set si sbianca, grida a Cosmo che è la

prima volta che il suo mitra lo tradisce, e che non gli dia il cambio che lui lo ripara subito. Blister s‘è

messo a ridere, ride fortissimo e Set lo fa morire che ride e noi Blister ce lo ricorderemo sempre cosí. Poi

c‘è Jack che corre in mezzo perché qualcuno gli ha dato uno spintone e Set lo spara in corsa, perché è

certo che Jack stramazzava come si fermava, e non è bello fucilare un uomo insaccato in terra, non è far

giustizia‖ (FENOGLIO, 1994, p. 59).

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Em nós começa a dar vontade, paramos nas estradas olhando em baixo as moças

que estão pastando nos declives. Olhamos para elas longamente e perigosamente,

rodando os punhos nos bolsos dos calções, mesmo sabendo que estas moças fedem

de cabra e vestem por baixo como as freiras. Piccàrd diz saber que certas loiras

hoje em dia vestem roupas íntimas pretas‖148

.

Nos dias mais duros da Resistência, os partigiani se encontram, todos em péssimo

estado:

Cada um olha se o outro é ainda mais mal vestido, depois nos olhamos em face e

esperamos quem é o primeiro a dizer que assim não se pode mais continuar. Tem

dois deles que ainda vestem as bermudinhas de verão e batem joelho contra joelho

com um barulho que nós ficamos todos calados pra melhor ouvir. Até que os dois

colocam uma mão entre as pernas e ficam assim curvados. Cosmo lhe pergunta

porque não se fazem dar um par de calças velhas de algum agricultor, mas eles

dizem que não é coisa de partigiani, não seria mais um uniforme‖149

.

Nesse encontro, Cosmo era o comandante admirado e respeitado por todos. O encontro

tinha sido marcado para que os partigiani recebessem o comunicado do mensageiro,

cujo recado falava de ordens superiores para dissolver os destacamentos, esconder as

armas, trabalhar nas chácaras ou descer para se esconder nas cidades e esperar o inverno

passar: ―Ali na hora, diante da pergunta de Cosmo, ninguém disse que desce. Mas

depois, dia após dia, ficamos sempre em menor número‖150

.

148

―A noi comincia a venire la voglia, ci fermiamo sulle strade a guardar giù le ragazze che stanno a

pascolo sui pendii. Le guardiamo a lungo e pericolosamente, ruotando i pugni nelle tasche dei calzoni,

anche se sappiamo che queste ragazze puzzano di capra e vestono da sotto come le suore. Piccàrd dice di

sapere che certe bionde oggigiorno portano la biancheria nera‖ (FENOGLIO, 1994, p. 68).

149 ―Ognuno guarda se l‘altro è ancora più mal messo, poi ci guardiamo in faccia e aspettiamo chi fa il

primo a dire che cosí non si può più andare avanti.

(...) Ce n‘è due che portano ancora i calzoncini estivi e battono ginocchio contro ginocchio con un rumore

che noi stiamo tutti zitti per meglio sentirlo. Finché i due si mettono una mano tra le gambe e stanno cosí

piegati. Cosmo gli chiede perché non si fan dare un paio di calzoni vecchi da qualche contadino, ma loro

dicono che non è roba da partigiani, non sarebbe piú una divisa‖ (FENOGLIO, 1994, p. 69).

150 ―Lí sul momento, a domanda di Cosmo, nessuno ha detto che scende. Ma poi, giorno per giorno, siamo

rimasti sempre più pochi‖ (FENOGLIO, 1994, p. 70).

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Entre aqueles que desceram para se esconder nas cidades, estava Cosmo, o comandante,

oficial de aviação, responsável pela defesa de Alba, inspetor do triângulo Benevello-

Neive-Castagnole, que os abandona covardemente. O narrador, porém, não o julga,

deixando sutilmente no ar a covardia pelo modo como Cosmo avisa que vai descer, mas

a reação de todos é fria e trata de deixar claro que diante de tamanha provação aquela

decisão não pode ser julgada e Cosmo não pode ser tido como desertor:

Em seguida saímos do castanheiro, Cosmo vem por último e diz nas nossas costas

que ele faz um outro caminho. Nos viramos, Cosmo diz que vai descansar por

alguns dias em uma casa de Neive, onde ele tem o amor, e se não sabíamos agora

sabemos. Tá bom, Cosmo, nós três você vai encontrar sempre na Langa. Tchau,

Cosmo, um abraço pra namorada e quando puder fala também de nós pra ela151

.

Depois, na última página do livro, quando Beppe fica sozinho, procura pelo seu

comandante em Neive, onde ele disse que estaria, e não o encontra, mais uma vez

reforçando o abandono sofrido, abandono este que retoma ainda o abandono sofrido

pelo Exército Régio de seus superiores, no 8 de setembro de 1943.

3.2.2.Comunhão com a população civil

O tema da comunhão com os que cercam e fazem parte indiretamente do movimento da

Resistência é um tema de extrema relevância nos Appunti partigiani. Chamados em

italiano de borghesi, os civis acompanham de perto e auxiliam como podem no dia a dia

da Resistência: dão animais, sementes, vinhos e grãos para a alimentação dos partigiani

e passam informações sobre a localização dos republicanos ou alemães, mas,

principalmente, são responsáveis pela justificativa profunda daquela guerra civil, já que

apoiam, sem restrições, moral e ideologicamente, aquela Resistência.

151

―Poi usciamo dal castagneto, Cosmo viene ultimo e ci dice alle spalle che lui fa un‘altra strada. Ci

voltiamo, Cosmo dice che va a riposarsi per qualche giorno in una casa di Neive, dove lui ha l‘amore, e se

non lo sapevamo adesso lo sappiamo. Va bene, Cosmo, noi tre ci troverai sempre alla Langa. Ciao,

Cosmo, salutaci la ragazza e a tempo perso parlale anche di noi‖ (FENOGLIO, 1994, p. 71).

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Ao longo de toda a narrativa, os civis, que o personagem Beppe muitas vezes já

conhecia porque fazia a Resistência perto de casa, dão ao enredo a certeza de que Beppe

está fazendo a coisa certa, como quando começa a viagem de volta: ―Na porta o padeiro

de Bellonuovo aperta a mão dele na minha e no bolso uma linguiça enrolada em papel.

Sou grato que não me fala de refletir bem, bato os pés para ajustá-los nos coturnos, e

vou‖152

.

Os civis representavam também o núcleo mais frágil da narrativa. De um lado, eram

penalizados pelos republicanos ou alemães por darem apoio aos partigiani, de outro, se

cedessem às pressões e dessem informações ou ajuda aos fascistas ou alemães, eram

penalizados pelos partigiani. Uma das formas mais brutais de penalização dos civis,

usada por ambos os lados, era o castigo exemplar: o fuzilamento de um civil que

cooperava com a Resistência ou de um partigiano capturado por parte dos fascistas e o

fuzilamento de um traidor por parte dos partigiani acontecia em praça pública, na frente

de toda a população do povoado, mulheres e o padre, inclusive. Aqui, no início da

narrativa, um civil comenta a injustiça que foi obrigado a presenciar: ―– O dono da

pensão te disse que eu também tava, hoje de manhã, lá pra ver? Não é uma guerra

honesta. Aquela de 15, a nossa, aquela sim‖153

.

E completa dando seu apoio para a escolha do partigiano Beppe pela Resistência,

melhor ainda se ao lado dos Azzurri154

.

Você está na Estrela Vermelha ou com os lenços azuis?

– Azuis.

– Prefiro. Vão ter um inverno de cão, vocês rapazes. Diz que não acaba pra

dezembro?

152

―Alla porta il fornaio di Bellonuovo mi mette la mano nella mano e in tasca un cotechino incartato. Gli

sono grato che non mi parla di rifletterci bene, pesto i piedi per aggiustarli negli scarponi, e vado‖

(FENOGLIO, 1994, p. 1).

153 ― L‘oste t‘ha detto che c‘ero anch‘io, stamane, messo là a vedere? Non è una guerra onesta. Quella del

15, la nostra, quella sì‖ (FENOGLIO, 1994, p. 1).

154 Historicamente, porém, não há indícios de que a população do Cunese fosse principalmente a favor

dos Azzurri em detrimento dos Rossi. O objetivo do autor aqui não é de caráter documental, mas estético:

a preferência dos civis pelos Azzurri facilita o desenrolar da narrativa com o total apoio dos civis à facção

em que o personagem Beppe estava.

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– Não acaba.

– Vão ter um inverno de cão. Tchau, patriota – e foi155

.

Na primeira noite, ainda a caminho das montanhas, quando o personagem Beppe dorme

no estábulo da Chácara Cervasco, na manhã seguinte somos avisados de mais uma

ajuda, vinda do dono da chácara:

Digo: – O patrão tá aí que eu lhe dê bom dia?

– Tá dormindo, – diz. – Esteve de guarda pelo senhor a noite toda156

.

Beppe, quando segue viagem e reflete sobre o cocorrido, resume perfeitamente o acordo

entre partigiani e população civil de que estaremos programaticamente convencidos ao

fim da narrativa: ―Todos nos dão, a nós partigiani. Nós partigiani entramos com a arma

e a pele‖157

.

Emblemática também a opinião de Anna Maria, a garota por quem Beppe se apaixona,

numa tarde de domingo, passeando com a Lupa na praça de S. Stefano. Perguntada

sobre os homens que lhe cortejavam e seus interesses amorosos por civis, Anna Maria

responde duramente: ―– Sou eu quem não os quero ver. Não é decente ser civil, nesses

tempos. Os jovens, se entende. Ou daqui ou de lá, mas com tantas armas e riscos‖158

.

Essa comunhão vem à tona propositadamente nos momentos mais trágicos e violentos

do livro. O fato de que os civis concordem com os fuzilamentos funciona no enredo

como uma justificativa para que eles sejam feitos, uma justificativa pintada sempre com

certa dose de histeria partilhada. Como no ―julgamento‖ e fuzilamento do professor de

Rocchetta, que há muito era suspeito de traição e que agora tinha sido descoberto pelos

155

―– L‘oste t‘ha detto che c‘ero anch‘io, stamane, messo là a vedere? Non è una guerra onesta. Quella

del 15, la nostra, quella sí/ – Sei nella Stella Rossa o coi fazzoletti azzurri?/ – Azzurri./ – Preferisco.

Avrete un inverno cane, voi ragazzi. Dí che non finisce per Dicembre?/ – Non finisce./ – Avrete un

inverno cane. Ciao, patriota – e via‖ (FENOGLIO, 1994, p. 6).

156 ―Dico: – C‘è il padrone che gli dica salve?/ – Dorme, – dice. – Le ha fatto la guardia tutta la notte‖

(FENOGLIO, 1994, p. 11).

157 ―Tutti ci danno, a noi partigiani. Noi partigiani mettiamo l‘arma e la pelle‖ (FENOGLIO, 1994, p. 12).

158 ―– Sono io che non li voglio vedere. Non è decente esser borghesi, di questi tempi. I giovani,

s‘intende. O di qua o di là, ma con tanto d'arma e rischio‖ (FENOGLIO, 1994, p. 29).

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partigiani, cuja longa transcrição é justificada pelo ritmo com que a ação se desenrola,

com uma lentidão trágica que antecede um fato memorável, um dos mais dramáticos do

livro:

Acredito que agora estejam na praça todo ou quase todo o povo de Rocchetta.

Daquela rua à esquerda sai um barulho longo e as pessoas correm naquela direção.

Desembocam quatro armigeri que abrem espaço ou gritam para fazê-lo. Vem o

professor, com a cara de cinzas, em meio a dois outros armigeri. Depois Moretto

que calcula a olho as pessoas, então o resto dos armigeri. No calcanhar deles

correm os estudantes, chegam pra ver o que fazem ao senhor professor. Mas agora

o pároco reúne e manda embora todos. Desde o primeiro momento as pessoas

perdem a cabeça, os homens e mais as mulheres. Gritam ao bastardo, ao traidor que

colocava sua instrução em escrever bem longas cartas aos assassinos de S. Marco,

ao covarde que dá nojo até ao Deus da piedade, que agora o porco levam pro

açougue, e bravi aos partigiani que finalmente fazem o vosso dever. Perseguem e,

como não chegam a colocar as mãos nele, fazem sucessão de cuspidas. Um cuspe

lava a cara do armigero Fodretta, e ele dá com a coronha da arma na barriga dos

mais próximos. Com bons e maus modos os armigeri deixam as pessoas em

ferradura de cavalo, quase. E Moretto imprimiu o professor contra um muro belo

branco.

Grita Moretto: – Oh povo de Rocchetta!

Gritam as pessoas que o povo de Rocchetta são todos eles, e que estão e

permanecerão do nosso lado até o fim.

Moretto: – Povo de Rocchetta, é esse o professor?

As pessoas berram que é bem aquele, e a mesma rodada de bastardo, traidor,

covarde, porco e mais filho de puta milanesa.

Moretto: – É ou não é um espião?

E as pessoas de pescoço inchado: – Sim que é um espião, Cristo, se é!159

.

159

―Credo che ora ci sia in piazza tutto o quasi tutto il popolo di Rocchetta./ Da quella strada a sinistra

esce un rumore lungo e la gente corre da quella parte. Sbucano quattro armigeri che fanno largo o urlano

di farlo. Viene il maestro, con la faccia di cenere, in mezzo a due altri armigeri. Poi Moretto che calcola a

occhio la gente, quindi il resto degli armigeri. Alle loro calcagna corrono gli scolari, arrivano a vedere

cosa gli fanno al signor maestro. Ma adesso il parroco li raggruppa e li mena via tutti. Fin dal primo

momento la gente esce di cervello, gli uomini e più le donne. Grida al bastardo, al traditore che metteva la

sua istruzione a scrivere bene lunghe lettere agli assassini S. Marco, alla carogna che fa schifo anche al

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Com os civis, que logo no começo da descrição compõem a cena, os alunos, que

chegam para ver o que vão fazer ao senhor professor – com certa dose de ironia –, as

pessoas que perdem a cabeça e os gritos com vocativos – Oh, povo de Rocchetta! –, o

professor é fuzilado, manchando o muro branco recém-pintado de outro civil. A frase

final encerra a cena de loucura conjunta com um silêncio sem cerimônias ou

constrangimentos: ―Ninguém tirou o chapéu, não barulho senão de pés e de

respirações‖160

.

Às vezes em tom de graça e molequice, o narrador coloca essa comunhão em favor da

paquera e do namoro com as meninas que eram ―informantes‖ dos partigiani:

Mas entre os nossos informantes tinha cada menina bonita, estudantes em maioria,

que primeiro nos davam as notícias e depois nos faziam falar das nossas vidas

desgraçadas, de como se dormia nos estábulos e dos bois que te pisoteavam capim

sobre o nariz. E então soltavam gritinhos de oh que pena não ser homem! E a gente

se perdia farejando o bom cheiro delas. Tinha uma que chegava a nos servir uma

espécie de chá, e nos preparava cigarros de pétalas de rosa, cigarros de cortesã, ela

os chamava. E nós íamos lá mais frequentemente do que nos outros, mesmo se não

era sempre a melhor informada161

.

Dio della pietà, che ora il porco lo portano al macello, e bravi partigiani che finalmente fate il vostro

dovere. Serrano e, come non arrivano a mettergli le mani addosso, fanno bordate di sputi. Uno sputo lava

la faccia all‘armigero Fodretta, e lui dà del calcio dell‘arma nelle pancie dei più prossimi. Con le buone e

le cattive gli armigeri mettono la gente a ferro di cavallo, pressapoco. E Moretto lui ha stampato il

maestro contro un muro bel bianco./ (...) Grida Moretto: – O popolo di Rocchetta!?/ Grida la gente che il

popolo di Rocchetta son tutti loro, e che sono e saranno con noi fino alla fine./ Moretto: – Popolo di

Rocchetta, è questo il maestro?/ La gente urla che è ben quello, e la stessa giostra di bastardo, traditore,

carogna, porco e in più figlio di troia milanese./ Moretto: – È o non è una spia?/ E la gente col collo

gonfio: – Sì che è una spia, Cristo che lo è!‖ (FENOGLIO, 1994, p. 41).

160 ―Nessuno s‘è tolto il cappello, non rumore se non di piedi e di respiri‖ (FENOGLIO, 1994, p. 42).

161 ―Ma tra i nostri informatori c‘erano certe belle ragazze, studentesse per lo più, che prima ci davan le

notizie e poi ci facevano parlare delle nostre vitacce, di come si dormiva nelle stalle e dei buoi che ti

calcavano le piote sul naso. E allora griderellavano oh che peccato non essere un maschio! e noi ci

perdevamo ad annusare il loro buon odore. Una ce n‘era che arrivava a servirci una specie di tè, e ci

preparava sigarette di petali di rosa, sigarette da cortigiana, lei le chiamava. E noi ci andavamo più spesso

che dagli altri, anche se non era sempre la meglio informata‖ (FENOGLIO, 1994, p. 54).

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Outro aspecto relevante para a compreensão dessa relação entre partigiani e população

civil é como o narrador se coloca diante dos traidores e como diz se colocarem os outros

civis. Comportamento já anteriormente demonstrado nos fuzilamentos de traidores,

agora explicitado na voz de um civil e teorizado pelo narrador Beppe:

Alguns agricultores vêm nos dizer que hoje no pátio passou um tal que era

certamente um espião e que pena que não tivessem partigiani nas redondezas. (...)

Eu desde pequeno acreditava que os espiões tivessem obrigatoriamente uma certa

cara que se devesse reconhecer à primeira vista. Agora mudei de ideia, porque

nunca vi uma daquelas caras que falam sozinhas, e no entanto os espiões existem,

porque sobre as Langhe estão acontecendo coisas que não se explicam que com os

espiões162

.

3.2.2.1. Igreja

A relação que o movimento de Resistência italiano estabeleceu com a Igreja passa pela

problemática ambígua entre o discurso institucional pregado e o comportamento dos

sujeitos em pequenos povoados do norte da Itália. Como visto no primeiro capítulo

deste trabalho, a Igreja, depois do 8 de setembro, viveu uma crise de consciência: se

durante o fascismo a Guerra poderia ser entendida como sacrifício necessário, agora,

com italianos lutando entre si, a Resistência viu uma Igreja silenciosa, sem discursos

fortes, ocupada em contornar problemas dramáticos do cotidiano de um país em guerra

civil.

Muitos padres se tornaram comunistas e se aliaram às formações resistentes dando-lhes

auxílio com dinheiro, documentos falsos, esconderijo protegido, pois os fascistas ainda

162

―Dei contadini vengono a dirci che oggi sulla sua aia è passato un tale che era certamente una spia e

che peccato che non ci fossero partigiani nei dintorni(...). Io fin da piccolo credevo che le spie avessero

per forza una faccia tale da doversi riconoscere a prima vista. Adesso ho cambiato idea, perché non ho

mai visto una di quelle faccie che parlano da sole, eppure le spie ci sono, perché sulle Langhe stanno

succedendo cose che non si spiegano che con le spie‖ (FENOGLIO, 1994, p. 69).

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respeitavam o lugar de Deus e os conventos, que abrigaram inúmeros partigiani nos

últimos meses de Resistência.

Nos Appunti, a Igreja enquanto instituição e seu discurso oficial inexistem. Igreja, para

o narrador Beppe, são os párocos dos pequenos povoados, todos sem opinião política –

porque, claramente, se Beppe estava entre os Azzurri e não entre os comunistas, seus

personagens nunca seriam comunistas, principalmente os que desempenhavam

importante função social. Esses personagens estavam preocupados com a tragédia de

uma guerra civil que acometia seu rebanho e ocupados em confessar os prisioneiros de

ambos os lados, antes que eles fossem fuzilados.

O trecho a seguir é um parêntese na narrativa de Fenoglio, parêntese este de grande

importância, pois é retomado em quase todos os romances longos. Uma cena surrealista

e pouco explicada, em que uma freira insiste para que Beppe leve consigo o ―coração de

Jesus‖; nela somos avisados da comunhão também entre indivíduos da Igreja e

partigiani, além de certo descaso do partigiano em relação à fé e às orações: como bom

partigiano, Beppe era ateu.

– Você já recebeu o Coração de Jesus?

Digo que não, irmã.

– Sabe, aqui não tem partigiano que não o tenha. Porque tem a virtude de parar as

balas – me faz sinal para esperar, que volta logo e com a surpresa. Olho em volta se

vejo algum partigiano que me informe sobre esse Coração de Jesus. Agora a freira

voltou, me estende um envelopinho de tela. O direito é todo bordado com no meio

um coração vermelho muito macio com três gotas de sangue e uma coroa de

espinhos. No verso está escrito em roxo: Para! O Coração de Jesus está comigo.

Observo, palpo, depois aceno com a cabeça que entendi e digo obrigado. Mas a

freira me convida a procurar no envelopinho. Tiro um panfleto levemente impresso:

Prece e Convenção com o Coração Sagradíssimo de Jesus. Longa prece, mas a

murmuro até o fim, depois digo que é muito bonita e eficaz. Enfio a mão na

carteira no bolso da calça pra tirar ela de lá. Imediatamente ela diz que não ali, o

seu lugar é sobre o coração, onde se espera que cheguem os golpes em guerra.

Enquanto guardo o envelopinho no bolso interno do casaco, penso no partigiano

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Bomba que recentemente recebeu uma fuzilada exatamente pros lados da carteira.

A freira fica olhando, com um sorriso e as mãos cruzadas163

.

Um momento de clara oposição entre a relação de Beppe com a Igreja e com o mundo,

antes e depois da transformação que o tornou partigiano, nos é dada no trecho a seguir:

Na colina da frente vejo sair jorrando da igreja de Benevello o povo das Langhe

vestido de preto. Oh, sim, domingo. Sinto vontade de me odiar se repenso como,

quando civil, eu me deixava entediar por aqueles domingos na cidade, tanto que

por ironia eu gritava a mim mesmo e aos amigos que encontrava pelo entorpecido

caminho: – Mas chega dessa vida de contínuos prazeres!164

.

A seguir, temos a descrição do pároco de S. Donato, ovelha negra do clero e adorado

pelos seus paroquianos, que demonstra ter com o partigiano Beppe uma relação de

intimidade e afeto.

Da soleira da igreja o pároco me chama, que acabou de varrer a sua igreja. Gordo

como um porco, cabeça quadrada, ovelha negra de todo o clero diocesano, mas os

seus paroquianos o adoram, e um pouco também nós que o chamamos Don Bestia.

Desce até mim, deixada a vassoura em pé contra a grade da igreja. Diz que se por

163

―– Ha già avuto il Cuor di Gesú?/ Dico che no, sorella./ – Sa, qui non c‘è partigiano che non l‘abbia.

Perché ha la virtu di fermar le pallottole. – Mi fa cenno d‘aspettare, che torna subito e con la sorpresa.

Guardo in giro se vedo qualche partigiano che m‘informi su questo Cuor di Gesú. Ora la suora è tornata,

mi porge una bustina di tela. Il dritto è tutto ricamato con nel mezzo un rosso cuore morbidissimo con tre

scoli di sangue e un giro di spine. Sul rovescio è stampato in viola: Ferma! Il Cuore di Gesu è con me.

Osservo, palpo, poi accenno col capo che ho capito e dico grazie. Ma la suora m‘invita a frugare nella

bustina. Ne sfilo un foglietto fittissimamente stampato: Preghiera e Convenzione col Cuore Sacratissimo

di Gesú. Lunga preghiera, ma la brontolo fino in fondo, poi dico che è molto bella ed efficace. Metto

mano al portafoglio nella tasca dei calzoni per ritirarvela. Súbito dice che non lí, il suo posto è sul cuore,

dove s‘aspetta che arrivino i colpi in guerra. Mentre calo la bustina nella tasca interna della giacca, penso

al partigiano Bomba che recentemente s‘è avuto una fucilata proprio dalla parte del portafoglio. La suora

sta a guardare, con un sorriso e le mani intrecciate‖ (FENOGLIO, 1994, p. 20).

164 ―Sulla collina di fronte vedo uscire a fiotti dalla chiesa di Benevello la gente delle Langhe vestita di

nero. Oh sí, domenica. Mi vien da odiarmi se ripenso a come, da borghese, mi lasciavo annoiare da quelle

mie domeniche cittadine tanto che per ironia gridavo a me stesso e agli amici che incontravo per la

torpida strada: – Ma basta con questa vita di continui piaceri!‖ (FENOGLIO, 1994, p. 24).

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acaso eu for requisitar tabaco de nariz, me lembre dele, e depois que vem um

pouco passear comigo165

.

A função desempenhada pelos párocos nos Appunti é ainda repleta de momentos

dramáticos, como quando um italiano deve ser fuzilado pelos partigiani por ser

republicano, logo fascista. Nesses casos, os párocos deviam confessá-los e lhes dar a

tranquilidade de ter sido perdoados por Deus, mas, normalmente, eles presenciavam os

momentos finais desse fiel e representavam os únicos personagens que não estavam

tranquilos naquele ritual, embora partilhassem da opinião dos partigiani de que o

fuzilamento deveria ocorrer:

Agora o armigero na porta vem recuando e depois dele vêm o pároco e o

condenado. Enquanto o pároco mantém os braços altos tirando a estola, o outro o

abraça quase sufocando-o, depois escorrega e lhe aperta os joelhos e grita que o

salve ele, reverendo, que ele tem mulher e filhos e se não acredita agora lhe mostra

a foto e que um padre não pode ser assim pelo amor de Deus e tantas outras coisas

berra e chora. O pároco se contorce em vão, grita ao fascista que não o esprema

assim e ao armigero que corra para fazê-lo respirar. Mas o armigero está

estupidificado e não sabe fazer nada além de apontar e apontar de novo a arma.

Don Bestia luta com o republicano e lhe grita que ele não tem nada a ver com isso,

ele o seu dever já fez, resolveu seus problemas com Deus, mas com os homens não

pode, não tem mais tempo, precisa ir fazer o catecismo das crianças, e depois a nós

altíssimo: – Rapazes, façam o vosso dever!166

.

165

―Dalla soglia della chiesa il parroco mi chiama, che ha finito di scopare la sua chiesa. Grasso come un

porco, testa quadra, pecora nera di tutto il clero diocesano, ma i suoi parrocchiani lo adorano, e un poco

anche noi che lo chiamiamo Don Bestia. Scende da me, lasciata la scopa ritta contro lo stipite della

chiesa. Mi dice che se càpito a requisir tabacco da naso, mi ricordi di lui, e poi che viene un pò a spasso

con me‖ (FENOGLIO, 1994, p. 35).

166 ―Adesso l‘armigero sulla porta viene rinculando e dopo lui vengono il parroco e il condannato. Mentre

il parroco tiene alte le braccia a sfilarsi la stola, quello lo abbraccia da soffocarlo, poi scivola a stringergli

le ginocchia e grida che lo salvi lui, reverendo, che lui ha moglie e figli e se non gli crede ora gli mostra la

foto e che un prete non può essere cosi per amor di Dio e tante altre cose urla e piange. ll parroco si

divincola invano, grida al fascista di non spremerlo cosi e all‘armigero di correre a farlo respirare. Ma

l‘armigero è istupidito e non sa far altro che spianare e rispianare l‘arma./Don Bestia lotta col

repubblicano e gli grida che lui non c‘entra, lui il suo dovere l‘ha fatto, l‘ha messo a posto con Dio ma

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Don Bestia volta à narrativa, no mesmo dia, poucas horas depois, quando o professor de

Rocchetta deve ser fuzilado; apavorado, aparece na janela perguntando o que acontecia

e com medo de ser chamado para, mais uma vez, presenciar um ato tão dramático.

Diante do temor do pároco, Beppe reage com humor dessacralizante:

Don Bestia diante do clamor se fez na janela da canônica e me gritou: – Beppe,

mas pra onde vocês ainda vão? – Eu não sei que lhe repetir que hoje é o dia das

execuções. O pároco desmaia, mas eu lhe digo que essa é a vez do padre de

Rocchetta e passo adiante167

.

Finalmente, nos Appunti, a influência do catolicismo sobre famílias italianas é imensa e

sobre a ruptura que a Resistência opera nos partigiani em relação a qualquer forma de

hierarquia ou fé – que quando se trata da Igreja Católica implica sempre alguma relação

hierárquica – está bem exemplificada no trecho transcrito, em que quase no fim do livro

Beppe responde em pensamento à carta da irmã Marisa, que traz o pedido da mãe para

que ele repita as orações, algumas noites: ―As orações, mamãe querida, eu esqueci.

Tanto para dizer, tento o Pai Nosso e três vezes engasgo em venha a nós o vosso reino,

e não me lembro de mais nenhuma palavra‖168

.

3.2.3. Le Langhe e La Langa, dois recantos afetivos

Segundo Maria Corti, depois de um longo período de uma concepção fascista de nação,

os escritores neorrealistas voltam às regiões e aos dialetos, numa operação muito

diferente daquela realizada pelos escritores do século XIX, pois, vindos depois do

fascismo, aqueles escritores apresentavam uma ideia centrífuga em relação à concepção

de pátria e Estado, que ainda soava muito próxima aos ―fantasmas ideológicos do

con gli uomini non può, non ha più tempo, deve andare a fare il catechismo ai bambini, e poi a noi

fortissimo: – Ragazzi, fate il vostro dovere!‖ (FENOGLIO, 1994, p. 37).

167 ―Don Bestia al clamore s‘è fatto alla finestra della canonica e mi grida: — Beppe, ma dove andate

ancora? – Io non so che ripetergli gridando che oggi è la giornata delle esecuzioni. Il parroco smuore, ma

io gli dico che stavolta tocca al prete di Rocchetta e passo via‖ (FENOGLIO, 1994, p. 39).

168 ―Le orazioni, mamma cara, mi son passate di mente. Tanto cosí, provo il Padrenostro e tre volte

m‘impunto a venga il tuo regno, e non mi torna una parola di piú‖ (FENOGLIO, 1994, p. 76).

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fascismo‖169

. A escolha pela região em que a narrativa se desenrolava era, então,

determinante para muitas outras características temáticas e linguísticas.

Le Langhe, sempre no plural, é uma região do norte da Itália com perímetro de cerca de

200 quilômetros, dividida em três cadeias de colinas entrecortadas por rios: a Oriental,

entre as duas Bormide170

– de Spigno e di Millesimo –, a central, entre a Bormida de

Millesimo e o Rio Belbo – e a Ocidental, entre o Rio Belbo e o Rio Tanaro. A zona do

Barolo pertence às Langhe Ocidentais, da qual Alba é a capital. Nessa zona, Beppe

Fenoglio e o personagem Beppe dos Appunti partigiani fizeram a Resistência (vide

mapa em anexo).

A função desempenhada pela região Le Langhe é de grande importância para a narrativa.

O partigiano Beppe escolhe lutar perto de casa, com seus amigos, para expulsar os

fascistas e alemães praticamente de dentro da sua casa. A intimidade e afeto com que

ele é capaz de se fundir com a paisagem denotam a relevância dessa escolha e as

Langhe serão o leitmotiv da narrativa e representam o lugar para onde voltar, a casa.

Convém retomar aqui um assunto já abordado anteriormente: as Langhe de Fenoglio em

oposição às Langhe de Cesare Pavese. Para Pavese, as Langhe representavam uma

memória infantil e uma meloncolia saudosista impossibilitada de voltar àquele passado

e fadada a lembrar dele como um lugar longínquo e matafórico, mitificado em sua

literatura. As Langhe de Fenoglio são o lugar real em que ele passava os seus dias já

como partigiano adulto. Elas fazem parte da transformação edificante que a experiência

da Resistência operou sobre o jovem personagem Beppe, e nunca são memória ou

infância idealizada, mas sim um lugar de vida adulta e real.

Duas Langhe coincidem na narrativa, e não por acaso o nome da chácara em que Beppe

e os amigos ficam todo o tempo é Chácara Langa (no singular). As duas formas de um

mesmo afeto, Langa e Langhe são a extensão de um mesmo sentido de casa: na primeira,

uma casa concreta e efetiva, com os personagens que constituem o núcleo duro da

169

CORTI (1978, p. 65).

170 Bormida é um rio do norte da Itália que corta as regiões da Ligúria e do Piemonte e se divide em dois

principais cursos, Bormida de Spigno e Bormida de Millesimo, que juntos desaguam no Rio Tanaro.

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narrativa; na segunda, uma casa ampla, solitária e generosa. Pelas duas, Beppe escolhe

combater naquela região:

Mas no rústico, com os meeiros, devem estar os meus dois amigos de Alba, os

partigiani Piccàrd e Cervellino, irmãos. Por eles renunciei à Browning e ao lugar

privilegiado na brigada de Mango. Por eles e por Fazenda da Langa e pela loba que

já há duas horas me cheira os calcanhares e depois me olha com olhos

apaixonados‖171

.

Durante toda a narrativa, as Langhe aparecem como um lugar em que o personagem

Beppe se sente seguro e protegido. Na primeira página do livro, elas nos são

apresentadas com o narrador quase abdusido pela carga afetiva a elas atribuída:

Ali arranco o meu belo passo de homem do campo; parecem viajar comigo as

colinas à minha direita, que olham a minha pequena cidade protegida por elas (...).

Por não querer tirar os olhos daquelas colinas, me vejo com um pé no buraco do

fosso‖172

.

Seguimos a viagem do protagonista no caminho de volta para as Langhe pela descrição

precisa de sua localização. Até que Beppe alcança finalmente a parte das Langhe em

que se sente em casa:

Estas começam a ser as Langhe do meu coração: aquelas que de Ceva a Santo

Stefano Belbo, entre o Tanaro e a Bormida, escondem e nutrem cinco mil

partigiani e lhes oferecem lugares únicos para batalhar, quem tem vontade. E soam

mal a quem os partigiani os quer mortos assassinados, todos todos e pior, se

possível, daquele de S. Rocco173

.

171

―Ma nel rustico, coi mezzadri, devono starci i miei due amici di Alba, i partigiani Piccàrd e Cervellino,

fratelli. Per loro ho rinunziato alla Browning e al posto privilegiato nella brigata di Mango. Per loro e per

Cascina della Langa e per la lupa che da due ore ormai mi annusa i talloni e poi mi guarda con occhi

innamorati‖ (FENOGLIO, 1994, p. 24).

172 ―Lí stacco il mio bel passo da campagna; paiono viaggiare con me le colline alla mia destra, che

guardano la mia piccola città tenuta da loro. (...)/A non voler staccar gli occhi da quelle colline, mi trovo

con un piede sul vuoto del fossato‖ (FENOGLIO, 1994, p. 1).

173―Queste cominciano a essere le Langhe del mio cuore: quelle che da Ceva a Santo Stefano Belbo, tra il

Tànaro e la Bòrmida, nascondono e nutrono cinquemila partigiani e gli offrono posti unici per

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As duas formas de Langhe (Langa no singular, a cascina, e Langhe no plural, a região)

se alternam no mesmo objetivo, descrever um protagonista familiarizado com a região

em que luta, ligado afetivamente aos personagens que encontra, planejando sua vida,

naquela mesma região, para quando a Guerra acabar. No trecho a seguir, vemos a

relação de interdependência com que estão ligadas as duas formas:

Quem não conhece, quem nunca esteve na Fazenda da Langa quer dizer que destas

Langhe ele não pode falar. É o feudo de um renomado comerciante da minha

cidade, já camarada do meu pai. Quando acontece de ele falar dela com os seus

amigos da cidade, eles de instinto encolhem os ombros porque Fazenda da Langa

traz uma ideia de tramontana e solidão. Se é destino que eu retorne civil e faça

honesto dinheiro, quero me apresentar àquele comerciante ou aos seu herdeiros e

pedir a eles que me vendam. Uma vez minha, vou passar ali três meses de cada ano

que me restar174

.

A intimidade do protagonista e narrador com a região se estende também para outros

aspectos, que numa análise mais ampla pode chegar até a ideia presente nos Appunti de

Natureza, uma Natureza concreta e adulta, cheia de vestígios e rastros de realidade:

Quem se vangloria de ter sido partigiano nessas Langhe e diante da pergunta sai

dizendo que esta estrada ele nunca fez ou até só que não lembra dela, eu lhe dou

um murro na cara. Aliás não, lhe pergunto simplesmente se partigiano ele foi no

Serviço do Trabalho ou escondido em algum seminário. Porque até os republicanos

conhecem esta estrada. Principalmente os Rao e os S. Marco. Culpa nossa que nem

sempre os impedíamos de chegar aqui em cima175

.

battagliarci, chi ne ha voglia. E suonano male a chi i partigiani li vuole morti ammazzati, tutti tutti e

peggio, se possibile, di quello di S. Rocco‖ (FENOGLIO, 1994, p. 7).

174 ―Chi non conosce, chi non è mai stato a Cascina della Langa vuol dire che di queste Langhe lui non

può parlare. È il feudo di un noto commerciante della mia città, già commilitone di mio padre. Quando gli

capita di parlarne con i suoi amici cittadini, questi d‘istinto raggricciano le spalle perche Cascina della

Langa porta un‘idea di tramontana e solitudine. Se è destino che io torni borghese e faccia onesti soldi,

voglio presentarmi a quel commerciante o ai suoi eredi a chieder loro di vendermela. Una volta mia, ci

passerò tre mesi d‘ogni anno che mi resterà‖ (FENOGLIO, 1994, p. 22).

175 ―Chi si vanta d‘aver fatto il partigiano su queste Langhe e a domanda esce a dire che questa strada lui

non l‘ha fatta mai o solo che non se la ricorda, io gli tiro un pugno in faccia. Anzi no, gli domando

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Uma ideia de Mãe Natureza justa, que protege e zela pelos seus partigiani, como na

perseguição de novembro, em que Beppe afirma que foi a Natureza/Langhe quem os

salvou (note-se a brincadeira entre maiúscula e minúscula no trecho abaixo): ―Não foi

habilidade nossa, nem que eles fossem todos incompetentes. Foi, com a sua terra, a sua

pedra e o seu bosque, a langa, a nossa grande mãe Langa‖176

.

A perseguição de dezembro, descrita em detalhes nos Appunti e lembrada como a pior

de todas, é aqui percebida dramaticamente com o sentido de perda de uma casa, a partir

do momento em que tinham perdido as Langhe:

Toda noite assim, mudando toda noite. E hoje eu sou uma autoridade em matéria

de estábulo de Langa. Lembro ainda que o tal estábulo é o maior, que o tal outro é

o mais úmido, que nesta faltam os panos que servem de janela e tem um boi

caprichoso, naquela as pessoas te dão alguns cobertores, e assim sucessivamente177

.

(...)

E nós pensávamos que agora eram eles os donos das Langhe e nós talvez não

conseguimos mais reconquistá-las‖178

.

No último dia de batalha narrado nos Appunti que chegaram até nós, mais uma vez a

intimidade com as Langhe e a segurança propiciada por elas, em meio a um nevoeiro

em que não se via nada, o sentido de pertencimento que a sola dos sapatos têm: ―Não

vemos onde colocamos os pés, mas não erramos certo caminho. E aquela famosa

Manera-Mango, antes de nós, a reconhecem nossos solados‖179

.

semplicemente se il partigiano l‘ha fatto nel Servizio del Lavoro o nascosto in qualche seminario. Perché

anche i repubblicani conoscono questa strada. Specie i Rap e i S. Marco. Colpa nostra che non sempre li

tenevamo dall‘arrivar quassú‖ (FENOGLIO, 1994, p. 22).

176 ―Non fu abilità nostra, né che loro fossero tutte schiappe. Fu, con la sua terra, la sua pietra e il suo

bosco, la langa, la nostra grande madre Langa‖ (FENOGLIO, 1994, p. 51).

177 ―Tutte le sere cosí, cambiando ogni sera. E oggi io sono un‘autorità in fatto di stalle di Langa. Ricordo

ancora che la tale stalla è la piú grande, che la tal‘altra è la più umida, che a questa mancano le impannate

e c‘è un bue bizzoso, in quella la gente ti dà delle coperte, e cosí via‖ (FENOGLIO, 1994, p. 68).

178 ―E noi pensavamo che adesso erano loro i padroni delle Langhe e noi forse non ce la facciamo più a

riprendercele‖ (FENOGLIO, 1994, p. 65).

179 ―Non vediamo dove posiamo i piedi, ma non sbagliamo certo strada. E quella famosa Manera-Mango,

prima che noi, la riconoscono le nostre suole‖ (FENOGLIO, 1994, p. 79).

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3.2.4. Anna Maria e la Lupa

Anna Maria é uma garota burguesa, de belas pernas, que Beppe conheceu numa tarde de

domingo na praça central de S. Stefano. Estudante de Química Industrial, Anna Maria é

solitária e politizada, sabe cantar canções partigiane e, depois daquela tarde tranquila

passada com Beppe em S. Stefano, a garota passa a desempenhar um papel crucial

dentro da narrativa dos Appunti: é o pensamento nela que faz com que Beppe passe

impunemente pelos momentos mais dramáticos da guerrilha. Sua memória funciona

como um amuleto antitensão e tira a atenção do protagonista e do leitor das cenas mais

animalescas. Quando o narrador volta a descrever as cenas de fuzilamento ou

perseguição em que a lembrança de Anna Maria foi evocada para aliviar a tensão, seu

efeito já foi conseguido e a tensão foi dissipada para novamente recomeçar a crescer. O

mecanismo é sempre o mesmo, o protagonista se perde pensando em Anna Maria e

quando se dá conta (―quando mi riscuoto‖) um outro momento da narrativa tem início (a

expressão quando mi riscuoto chega a aparecer duas vezes na mesma cena, em que os

partigiani Blister e Jack devem ser fuzilados, momento longo e de grande tensão):

Vento atravessa da esquerda, vem me dizer que ele ontem passou em S. Stefano e

que uma bela moça lhe perguntou se aquele partigiano Beppe que estava na Langa

ainda está vivo. Cervellino escuta, pra dar uma de engraçado. Eu lhe chamo de

idiota e lhe faço votos que seja sempre inteligente como eu em assunto de mulher.

Depois me perco pensando em Anna Maria, naquele feliz domingo em S. Stefano.

Quando me dou conta, estamos passando de Mango e a luz está voltando nos

bastidores180

.

Prova da função exercida por Anna Maria é o trecho a seguir, em que o narrador brinca

e subverte essa função, num momento de provação física durante a perseguição de

180

―Vento traversa da sinistra, viene a dirmi che lui ieri è passato a S. Stefano e una bella ragazza gli ha

chiesto se quel partigiano Beppe che stava alla Langa è ancora vivo. Cervellino sente, si ferma a far dello

spirito. Io gli do del cretino e gli auguro di essere sempre intelligente come me in fatto di donne. Poi mi

perdo a pensare ad Anna Maria, a quella felice domenica a S. Stefano.(...)/Quando mi riscuoto, stiamo

passando a Mango e la luce sta tornando tra le quinte‖ (FENOGLIO, 1994, p. 57).

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novembro: ―As três noites as passamos nos bosques, e eu pensava frequentemente em

Anna Maria, mas dessa vez só por causa das luvas e do cachecol‖181

.

Ou quando Beppe, na perseguição mais perigosa do livro, lembra de mandar em

pensamento um pedido a Anna Maria, na última vez em que faz referência a ela nos

Appunti: ―Anna Maria, faça-me o favor de ficar quieta em casa. Estou já eu na rua‖182

.

Também a Lupa, cadela da Chácara da Langa, desempenha um papel importante; sua

presença é evocada e sua ausência sentida nos momentos de maior solidão. Como

quando Beppe ainda está a caminho das montanhas e sente saudades dela:

Tivesse comigo, nessa noite e por essa estrada, a loba da Fazenda da Langa183

,

cadela de sete anos que se te ama você a comanda com os olhos, grandiosa na

guarda e na caça de esquilos, animal combatente. Mas eu vou revê-la, o mais cedo

possível, e vou fazer ela me lamber e um pouco morder184

.

Ao contrário de Anna Maria, que chega nos momentos de tensão, a Lupa faz companhia

nos momentos de calmaria, na rotina da Chácara da Langa e nas noites de sentinela

dormidas ao relento, em que sua presença evoca o silêncio: ―Ela deve ter feito efeito

sobre nós como dizem que fazem os cães e outros animais, porque repentinamente

sentimos a necessidade de ficar calados e em seguida sozinhos‖185

.

181

―Le tre notti le passammo nei boschi, e io pensavo spesso a Anna Maria, ma stavolta solo per via dei

guanti e della sciarpa‖ (FENOGLIO, 1994, p. 49).

182 ―Anna Maria, fammi il favore di startene in casa. Ci son già io in giro‖ (FENOGLIO, 1994, p. 68).

183 O termo no original é cascina, que não possui correspondentes arquitetônicos em português. As

cascine são construções rústicas típicas da região do Piemonte. Nelas agricultores meeiros moram e

executam as tarefas ligadas ao plantio e à colheita daquela espécie de fazenda não latifundiária. Aqui

optei pelo termo ―fazenda‖ em detrimento de ―chácara‖ – que resolvia bem um aspecto sonoro do termo –

pela forte ligação de ―fazenda‖ com a agricultura.

184 ―Avessi con me, stasera e per questa strada, la lupa della Cascina della Langa, cagna di sette anni che

se t‘ama la comandi con gli occhi, grandissima alla guardia e a cacciar scoiattoli, bestia combattente. Ma

la rivedrò, al più presto, e mi farò leccare e un pò morsicare‖ (FENOGLIO, 1994, p. 8).

185 ―Costei deve averci fatto effetto come dicono che lo fa ai cani e altre bestie, perché tutto d‘un tratto

abbiamo sentito il bisogno di star zitti e poi da soli‖ (FENOGLIO, 1994, p. 44).

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Ao longo de toda a narrativa a Lupa é personagem recorrente. O fato de a cadela se

chamar Lupa não é irrelevante, já que em italiano significa apenas a raça da cadela:

Cane Lupo é um modo coloquial de nominar a raça Pastor Alemão. A cadela sem nome

é a companheira fiel de Beppe, por todo o livro, a ela são dedicadas as falas mais

manhosas e românticas, indicando certa impossibilidade de os partigiani, em guerrilha,

partilharem sentimentos parecidos com os de outros seres humanos: ―Oh, loba, desce

aqui que eu quero enfiar a cara no teu pelo e ficar assim tentando não pensar em

nada‖186

.

3.2.5. Fascistas e alemães x opositores

O tema dos fascistas e alemães é o tema que melhor se articula em oposição a outro, o

tema dos seus opositores, os antinazifascistas, sendo que sob essa etiqueta estão tanto os

civis que apoiavam a Resistência quanto os partigiani que combatiam nela.

O primeiro acontecimento do livro narra que um jovem simpatizante dos partigiani com

um trapo azul no pescoço e uma pistola de ar na mão foi pego por fascistas e fuzilado na

praça de S. Rocco com todos os habitantes, como era de costume, obrigados a assistir.

Quando Beppe, passando por S. Rocco, a caminho das montanhas, é levado para ver o

pequeno corpo estendido em praça pública – porque os fascistas proibiram os civis de o

enterrarem – o leitor é convencido de que sua escolha pelo partigianato é justa e

necessária:

– Diria que até o isqueiro tem medo.

– Eu digo que isto serve pra tirar o medo187

.

Durante a perseguição de dezembro, Beppe, Cervellino, Piccàrd e Cosmo cruzam com

um grupo de civis que estão fugindo e o diálogo entre eles – unidos em oposição aos

186

―Oh, lupa, scendi giù che voglio mettermi col muso nel tuo pelo e star cosí a cercar di non pensare a

niente‖ (FENOGLIO, 1994, p. 65).

187 ―– Si direbbe che anche l‘accendisigari ha paura./ – Io dico che questo serve a toglier la paura‖

(FENOGLIO, 1994, p. 5).

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outros – demonstra os requintes de crueldade que fascistas e alemães adotavam contra

eles:

Perguntam a nós o que fazer, se fugir até de noite ou se parar. Cosmo diz que eles

civis, se eram prevenidos, nos tempos de calma faziam um buraco no chão e agora

desciam pra lá com cobertores e comida e os velhos os cobriam com estrume.

Respondem em muitos que quase todos tinham o buraco, mas que agora não serve

mais porque os alemães levam diante deles cães que farejam a terra metro por

metro e param e latem ao mínimo cheiro de cristão. Os alemães cavam certeiro, te

puxam pelos cabelos, e fazem aparecer aquele pouco de cabeça que basta para

colocar nela um tiro, tanto você já está embaixo da terra188

.

E num inusitado encontro entre os opositores durante a caçada de novembro, a descrição

irônica daquele absurdo: ―Nós e eles estamos a uma fração de segundo de nos olhar nos

olhos, como conhecidos, de uma calçada para a outra, vendo quem acena primeiro‖189

.

Quando a caçada de novembro finalmente acaba, o resumo das perdas mostra a dureza

daquela guerra civil, principalmente sobre os civis:

Na manhã seguinte estava tudo acabado. Não houve mais um tiro no ar, mas foram

necessárias doze horas para que nós partigiani e as pessoas nos convencêssemos

daquela calmaria(...). Eles tinham matado, mais civis do que partigiani, tinham

feito fogueira de fazendas, e saqueado, tinham forçado as mulheres, arregimentado

homens e padres para que lhe levassem as munições e servissem de escudos contra

nós. Tinham vindo em três divisões, para peneirar tudo e todos. Mas, peço perdão

aos mortos e às suas famílias, desculpa àqueles que perderam a casa e os animais,

188

―Domandano a noi il da fare, se scappare fino a notte o fermarsi. Cosmo dice che loro borghesi, se

erano previdenti, nei tempi di calma si facevano un buco in terra e ora ci si calavano con coperte e

mangiare e i vecchi li coprivano col letame. Rispondono in molti che quasi tutti l‘avevano il buco, ma ora

non serve più perché i tedeschi si portano avanti dei cani che annusano la terra metro per metro e si

fermano e abbaiano al minimo odor di cristiano. l tedeschi scavano giusto, ti tirano per i capelli, e fanno

sporgere quel pò di testa che basta a collocarci una rivoltellata, tanto sei già sotto terra‖ (FENOGLIO,

1994, p. 47).

189 ―Noi e loro stiamo un attimo a fissarci, come conoscenze da un marciapiede all‘altro, a vedere chi

saluta per primo‖. (FENOGLIO, 1994, p. 50).

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mas eu acredito que na ocasião alemães e fascistas não tenham salvado as

compras190

.

Os Appunti, como toda a literatura de Fenoglio, nunca mostram apenas um lado da

questão. Havia também a possibilidade de as mulheres italianas se apaixonarem por

alemães (como de fato ocorreu), gerando um constrangimento indescritível para os

envolvidos naquela guerrilha. Nos Appunti, nem o constrangimento permanece sem

resposta: a quase graça com que o problema é narrado por Beppe e a frieza com que é

resolvido por Cervellino pretendem tirar o peso dramático de todo acontecimento

narrado, dando lugar para uma objetividade em que fosse possível reconhecer a dureza

profunda do que estava sendo narrado:

A meeira olha por um bom tempo pra ela, depois se decide, nos diz que sua

sobrinha fez amor com um operador de canhão alemão alto dois metros, amor até

o fim. Cervellino diz que até o dia em que eles fuderem aquela coisa ali, nós não

temos ciúme nenhum. A meeira diz que tudo não acabou ali, aquela desgraçada

fala sempre do seu Mathias, e se chegar por acaso um partigiano com alguma coisa

atravessada e ouvir, pode até machucar ela. Mas Cosmo diz que as mulheres são

mulheres, e tudo isso não tem nada a ver, não deveria ter nada a ver com a guerra e

a política191

.

Os fascistas, nos Appunti, nunca têm nome. Os alemães também não. O Mathias da

citação anterior é a única excessão voluntária a essa regra. Só os partigiani traidores

190

―La mattina dopo era tutto finito. Non ci fu neanche piu un colpo in aria, ma ci vollero dodici ore

perché noi partigiani e la gente ci persuadessimo di quella quiete./ (...) Loro avevano ammazzato, piú

borghesi che partigiani, avevano fatto falò di cascine, e razziato, avevano sforzato donne, intruppati

uomini e preti perché gli portassero le cassette delle munizioni e gli facessero scudo da noi. Erano venuti

in tre divisioni, per setacciare tutto e tutti. Ma, chiedo perdono ai morti e alle loro famiglie, scusa a quelli

che ci han perduta la casa e il bestiame, ma io credo che allora tedeschi e fascisti non si siano salvate le

spese‖ (FENOGLIO, 1994, p. 51).

191 ―La mezzadra la guarda a lungo, poi si decide, ci dice che sua nipote ha fatto l‘ amore con un

cannoniere tedesco grande due metri, l‘amore fino in fondo. Cervellino dice che finché i tedeschi ci

fottono quella roba lí, noi non ne siamo per niente gelosi. La mezzadra dice che tutto non è finito lí, quella

disgraziata parla sempre del suo Mathias, e se ci càpita un partigiano con qualcosa per traverso e la sente,

può anche farle del male. Ma Cosmo dice che le femmine sono femmine, e tutto ciò non c‘entra, non

dovrebbe entrarci con la guerra e la politica‖ (FENOGLIO, 1994, pp. 66-67).

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tinham nome e já tinham aparecido antes na narrativa. Todos os outros personagens que

são fuzilados, fossem republicanos fascistas ou alemães nazistas, permanecem na maior

parte do tempo calados e nunca sabemos seus nomes. Os civis traidores têm tratamento

levemente distinto, pois deles sabemos a função social que ocupam, o professor de

Rocchetta, por exemplo. Isso pode acontecer por dois motivos: o primeiro, seguindo a

lógica do narrador Beppe, que queima a carteira de identidade para que quem o mate

não tenha o prazer de saber seu nome, porque o narrador não pode saber seus nomes, já

que eles não tinham documentos consigo; ou porque, como fascistas e alemães, não

merecem ter um nome ou ganhar lugar na memória daquela comunidade, já que eram

capazes de tamanha violência para com ela. Os civis traidores são descritos sempre

como que levados inconscientemente ou pelas precárias condições a cometerem seus

crimes, mas nem por isso são poupados: em tempos de guerra civil, toda falha é grave.

Ao longo do livro nos são contadas inúmeras atrocidades cometidas por fascistas ou

alemães, a maioria delas cometida em grupo. A algumas o narrador dedica muito tempo

e cuidado para dar ao leitor todos os detalhes sórdidos, que servem para colocar os

opositores dos partigiani como seres humanos deturpados e cruéis. No trecho abaixo,

tem-se a descrição de como os fascistas invadiam as chácaras durante a noite, matavam,

estupravam e roubavam e o desenrolar de uma dessas invasões em uma chácara perto da

Langa:

Mas às vezes eles vêm como ladrões assassinos, de noite, com os sapatos

enfaixados de retalho, e fazem o anel em torno a uma casa que algum espião

imundo lhe deu primeiro o esboço, e os homens que lá moram são todos mortos(...).

Fizeram ele morrer três vezes, antes que fosse bem morto. Porque erravam de

propósito o disparo. O primeiro um palmo acima da cabeça, o outro raspando num

ombro, o terceiro a um pelo do quadril. E depois, à mulher dele que zanzava de

camisola gritando o que fazia ela agora, lhe disseram que ser puta é ainda um bom

ofício e ela estava já com o traje192

.

192

―Ma qualche volta ci vengono da ladri assassini, di notte, con le scarpe fasciate di stracci, e fanno

l‘anello intorno a una casa che qualche lurida spia gli ha fatto prima lo schizzo, e i maschi che ci abitano

son tutti morti./ (...) L‘han fatto morire tre volte, prima che fosse ben morto. Perché sbagliavano apposta

la raffica. Una a un palmo sopra la testa, l‘altra a rasargli una spalla, la terza a pelo da un fianco. E poi, a

sua moglie che girava in camicia gridando cosa faceva lei adesso, le han detto che la puttana è ancora un

buon mestiere e lei era già in costume‖ (FENOGLIO, 1994, p. 67).

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Sobre as humilhações infringidas aos inimigos o livro é repleto de exemplos de ambos

os lados. No geral, os fascistas são descritos como mais sofisticados no modo com que

humilhavam os partigiani. Já os alemães são frios e calculistas (tiravam só a cabeça dos

civis da terra e atiravam nela, porque o resto já estava enterrado); e os partigiani,

quando em posse de algum prisioneiro, eram acometidos de tamanha raiva que sua

especialidade era o espancamento, conjunto, por todos os que passassem por ali, num

acesso de ira e revolta que não se dedicava a elucubrações sobre como humilhar o

inimigo, mas se satisfazia em surrá-lo.

No trecho transcrito, um exemplo das humilhações dos republicanos fascistas para com

os partigiani e das técnicas, diria surrealistas, utilizadas por eles para capturar e matar

partigiani:

Aqueles de Canelli, que são exploradores da Divisão S. Marco, acertaram um

pouco dos nossos, e antes de fuzilar, eles estudaram bem bem e tiraram a roupa de

todos eles. Em seguida se vestiram com a roupa deles e à moda deles, com um

lenço azul no pescoço. E assim acontecem encontros muito estranhos, e sempre

sobra um morto, e o morto é sempre nosso193

.

Na narrativa dos Appunti, porém, nada é previsível, simples ou plano, mas toda regra

estrutural da narrativa pode ter excessões e nuances, condizentes com o ambiente que

descreve. Assim, quando o leitor acha que apreendeu a caracterização dos personagens e

os respectivos tipos de crueldade atribuídos a eles pelo personagem-narrador, é

supreendido com a inversão de todos os valores, como quando um partigiano afirma

que ele acha que os alemães são mais corajosos para morrer do que os italianos, que

―Moretto não deve ter gozado grande coisa em fuzilar aquele trapo, e que ele se

193

―Quelli di Canelli, che sono esploratori della Divisione S. Marco, hanno beccato un pò di nostri, e

prima di fucilarli, li hanno studiati ben bene e spogliati. Poi si son vestiti con la loro roba e alla loro

moda, con un fazzoletto azzurro al collo. E cosí succedono degli stranissimi incontri, e ci scappa sempre

il morto, e il morto è sempre nostro‖ (FENOGLIO, 1994, p. 69).

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envergonha de ser italiano porque viu muito poucos italianos morrendo

decentemente‖194

.

3.2.6. Ironia e humor

Ironia e humor são os recursos fenoglianos de que faço uso neste ponto da análise como

mediação entre os problemas temáticos e os formais, devido ao fato de que ambos os

mecanismos se constituem numa tênue fronteira, ora mais próximos do conteúdo, ora da

forma. A ironia, presente principalmente no interior dos diálogos, sejam diretos ou

indiretos, consiste num instrumento para invocar o leitor a interagir com o texto,

insinuando o destaque do narrador da coisa narrada, mas, quando analisado

profundamente, constituindo, ao contrário do que tenta fazer parecer, o principal

instrumento de posicionamento do narrador. Já o humor, extremamente sutil, atenua o

peso da narrativa e serve também para ligar leitor e narrador numa relação de empatia

cruel, pois o leitor é convidado a rir da dramaticidade de algumas cenas aterrorizantes.

Reforçando a escolha por uma análise que tente penetrar mais profundamente o texto

dos Appunti de Fenoglio, mais uma vez realizo uma divisão forçosa e artificial entre

conteúdo e forma, para tentar uma síntese posterior mais clara e potente.

Neste trabalho, por limitações de espaço e recorte metodológico, preferi ainda dar

atenção à função desempenhada por esses mecanismos no interior do texto, não me

atendo às suas respectivas conceituações teóricas. Também optei pela junção dos dois

recursos – ironia e humor – num só item, desta vez guiada por uma exigência do próprio

texto presente nos Appunti, já que nele os dois mecanismos exercem as mesmas funções:

interrompem as situações dramáticas do livro, por vezes reforçando, noutras atenuando

o peso na narrativa, sempre colocando graça num absurdo ou inesperado gesto ou fala

diante da dramaticidade/violência das situações.

194

―Moretto non deve aver goduto granché a fucilare quello straccio, e che lui si vergogna d‘essere

italiano perché ne ha visti troppo pochi d‘italiani a morire decentemente‖ (FENOGLIO, 1994, p. 38).

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Como quando o narrador Beppe, subindo as montanhas, passa pelo cemitério de Treiso

e, numa estratégia recorrente de transformar tragédia em graça, fechando o ciclo, por

vezes, num efeito de ainda maior tragicidade, observa:

E à esquerda, não tem erro, aquele é o cemitério de Treiso. Ele foi desenhado um

pouco grande demais para o povoado que é Treiso, mas em honrar todo aquele

espaço providenciamos nós partigiani, de um pouco de tempo pra cá195

.

Um recurso usado para conseguir o humor é ainda aquele de explicitar as fragilidades

dos partigiani, suas dependências psicológicas de outros referenciais morais e

ideológicos e sua participação na guerrilha com certa ingenuidade e emoção pueris. No

trecho que segue, vemos abordado o tema dos nomes de batalha, sempre ingleses. Nele,

o narrador argumenta por que não adotou um nome de batalha – porque luta perto de

casa, motivo que justifica, ao longo da narrativa, apenas a sua escolha por não ter um

nome de batalha, já que todos os outros partigiani, mesmo lutando perto de casa,

adotaram um. Nele, Beppe diz ainda que se a batalha o tirasse de perto de casa

obrigando-o, assim, a escolher um nome, escolheria o impronunciável Heathcliff, nome

do protagonista do romance O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë:

Digo: – Mas se a guerra partigiana me leva pra fora daqui, vou ter um nome de

batalha: Heathcliff.

– Como você disse?

– Um nome inglês. Vou ensinar a todos como pronunciá-lo, então.

Não lhe diga, Beppe, que o teu amor, uma noite de dezembro de 43, te disse que

pra ela você parecia com o Heathcliff do famoso romance.

O Comandante diz:

– Tão usando muito os nomes ingleses entre os nossos partigiani. Eu tinha um

partigiano na brigada que tinha escolhido para si um tão difícil que nem ele sabia

ensiná-lo. Os outros, cansados de ter que chamá-lo sempre você e coiso,

convocaram conselho de equipe e o batizaram Stefano. Ele não aceita, propõe

chamá-lo ao menos Fredrich; os outros insistem por Stefano. Ele faz relatório ao

195

―E a sinistra, non c‘è da sbagliare, quello è il camposanto di Treiso. L‘han disegnato un pò troppo

grande per il paesello che è Treiso, ma a fare onore a tutto quello spazio ci pensiamo noi partigiani, da un

pò di tempo in qua‖ (FENOGLIO, 1994, p. 8).

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Comando Pelotão. Este, tudo bem, reprova, porque Fredrich soa alemão. Ele

abandona todo mundo e passa pros Garibaldi196

.

A escolha pelo nome Heathcliff não é, em nenhum momento, fundamentada pelo

narrador e nem compreendida pelo seu comandante, num dos trechos mais

explicitamente engraçados do livro, que tratando de um tema específico dos partigiani,

também tece uma nítida separação entre os dois mundos, um da guerra civil e outro, da

Literatura. Separação incorrigível, em que reside o esforço dialético de tentar abordá-las

num mesmo esforço, aquele do texto dos Appunti.

A precariedade de condições também é, paradoxalmente, motivo para um tom mais leve

na narrativa, como quando o narrador descreve o uso dado aos livros e às revistas ao

longo dos meses de Resistência: ―uma prateleira vazia porque os livros e as revistas eles

as levavam para fora para suas necessidades‖197

.

Ou, ainda, quando fala dos veículos usados pelos partigiani e da escassez de

combustível:

Esses carros partigiani funcionam a gasolina, a benzol, a álcool, a solvente, a

licores de luxo e às vezes, parece, a ar 198

.

(...)

Como todo carro partigiano, a nossa mil e quinhentos funciona a empurrógeno,

quer dizer que se você não empurra por um bom tempo ela nem sonha em dar

partida199

.

196

―Dico: – Ma se la guerra partigiana mi tira fuori di qui, avrò un nome di battaglia: Heathcliff./ – Come

hai detto?/ – Un nome inglese. Insegnerò a tutti a pronunciarlo, allora./ (…) Il Comandante dice: – Vanno

molto i nomi inglesi tra i nostri partigiani. Avevo un partigiano in brigata che se n'era scelto uno cosí

difficile che nemmeno lui sapeva insegnarlo. Gli altri, stufi di doverlo sempre chiamare tu e coso,

montarono consiglio di squadra e lo battezzarono Stefano. Lui non ci sta, propone di chiamarlo almeno

Fredrich; gli altri insistono per Stefano. Lui si mette a rapporto al Comando Plotone. Questo, d'accordo,

boccia, perché Fredrich suona tedesco. Lui ci pianta tutti e passa alla Garibaldi‖ (FENOGLIO, 1994, p.

15).

197 ―Uno scaffale vuoto perché i libri e le riviste se le portavano fuori a finire i loro bisogni‖ (FENOGLIO,

1994, p. 24).

198 ―Queste macchine partigiane vanno a benzina, a benzolo, a alcol, a solvente, a liquori di lusso e

talvolta, sembra, a aria‖ (FENOGLIO, 1994, p. 24).

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Além de certa ingenuidade pueril descrita nos personagens, os ragazzi partigiani são

também caracterizados pelo narrador como jovens movidos por um sentido de aventura

que nada a tem a ver com os moventes profundos daquela guerra civil. Ao longo de todo

o livro, muitas vezes é abordado o tema da escolha daqueles jovens pela Resistência e

muitas são as histórias que motivaram essas escolhas. Mas na Resistência de Fenoglio,

até para gerar o efeito de eficiente contraste em relação ao seu narrador Beppe, a

escolha pela Resistência tem muitas vezes motivos pouco ideológicos ou políticos,

deixando a impressão no leitor de uma quase moda juvenil, que trazia benefícios e

vantagens aos aventureiros naquele estreito contexto:

Piccàrd pula esgarranchado no paralama e fica ali se segurando num farol. Aquele

é um lugar desconfortável mas glorioso no turismo partigiano. Quem tá lá faz

sucesso, ele e aqueles que estão dentro, porque faz acreditar a quem olha que o

homem em cima do paralama é o homen de confiança de algum grande

comandante que viaja a bordo. E as moças das cidadezinhas por onde você passa

não veem nada além de você e te admiram todo inteiro‖200

.

A narrativa oral que alcança a literatura é um tema recorrente também nas inúmeras

anedotas (daquelas que, como afirmou Italo Calvino, eram contadas à noite, na beira da

fogueira) dos partigiani. Em todas elas vemos sobressair um tom de alegria,

incompreensível para a situação narrada se não levarmos em conta a idade dos

protagonistas. O tom juvenil é reforçado pelo autor nas situações em que pretende uma

distensão do texto, como, por exemplo, nos trechos de explícito efeito humorístico:

Cumprimentamos o partigiano Catone, que é dos nossos e trás largo e estendido o

seu lenço azzurro em meio a todo aquele rosso. Dá o braço a uma garotinha que é

talvez a mais feia da praça. E veste aquelas suas eternas calças que têm uma

história. Em agosto, em uma surpresa republicana em Benevello, Catone foi o

199

―Come ogni altra auto partigiana, la nostra millecinque è a spinterogeno, vale a dire che se non la

spingi per un bel pò di partire nemmeno si sogna‖ (FENOGLIO, 1994, p. 26).

200 ―Piccàrd salta a cavalcioni del parafango e ci sta tenendosi a un fanale. È quello un posto scomodo ma

glorioso nel turismo partigiano. Chi ci sta fa bella figura lui e quelli che son dentro, perché dà da pensare

a chi guarda che l‘uomo sul parafango sia il fido di qualche gran comandante che viaggia a bordo. E poi

le ragazze dei villaggi che passi non vedono che te e ti ammirano tutto intero‖ (FENOGLIO, 1994, p. 26).

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único a conseguir escapar. Mas atiraram atrás dele por todo o vale. E um disparo

lhe recortou as calças em duas em dois ou três pontos sem tocar as pernas. Aquelas

calças desde então não trocou mais, nem mandou remendar, mas leva as calças pra

passear pelas Langhe e mostra bem de perto às moças. Hoje pelos rasgos dá pra ver

as cuecas de uma inacreditável cor de vinho201

.

No já citado diálogo com Anna Maria em que a menina burguesa se diz a favor dos

partigiani sobra espaço para uma resposta rápida que corrobore para a descrição do

personagem/narrador Beppe como um jovem galanteador, que faz sucesso com as

mulheres e que passa domingos nas praças da região esbanjando o lenço azul no

pescoço para impressionar as meninas do povoado. Aqui, Beppe confirma a opinião de

Anna Maria, reafirmando, com o objetivo de impressioná-la, que ele corre os riscos

daquela escolha:

– Sou eu quem não os quero ver. Não é decente ser civil, nesses tempos. Os jovens,

se entende. Ou daqui ou de lá, mas com tantas armas e riscos. Não lhe parece?

– Não lhe parece que me parece?‖202

.

A principal fonte de ironia, porém, é a pretensão dos partigiani de realizar uma grande

batalha, descrita pelo narrador como um contínuo fugir de um lugar a outro, com raros

episódios decisivos para o desenrolar da Guerra. No trecho a seguir, partigiani

inutilmente reunidos ao redor de um mapa, são ironicamente comparados a Napoleão

Bonaparte, imperador francês: ―Consigo ver que sobre a mesa está dobrado um mapa

201

―Salutiamo il partigiano Catone, che è dei nostri e porta largo e spiegato il suo fazzoletto azzurro in

mezzo a tutto quel rosso. Dà il braccio a una ragazzina che è forse la più brutta della piazza. E porta quei

suoi eterni calzoni che hanno una storia. Nell‘agosto, in una sorpresa repubblicana a Benevello, Catone fu

il solo a farcela a scappare. Ma gli spararono dietro per tutta la valle. E una raffica gli sforbiciò i calzoni

in due o tre punti senza toccargli le gambe. Quei calzoni da allora non li ha più cambiati, né li ha fatti

rammendare, ma li porta in giro per le Langhe e li fa vedere davvicino alle ragazze. Oggi per gli strappi

gli vedi i mutandoni d‘un incredibile color vino‖ (FENOGLIO, 1994, p. 28).

202 ―– Sono io che non li voglio vedere. Non è decente esser borghesi, di questi tempi. I giovani, s‘intende.

O di qua o di là, ma con tanto d'arma e rischio. Non le pare?/ – Non le pare che mi pare?‖ (FENOGLIO,

1994, p. 29).

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das Langhe, e muita gente em volta fala alto de setores e estradas de entrincheiramento,

outra cala sempre e sempre olha o mapa, enrugados como muitos napoleões‖203

.

Sobre o dia a dia da batalha, mais um exemplo de certa burocratização violenta da ação

dos partigiani, da qual o leitor é convidado a rir:

Vira-se, vai até Franco, o pálido comandante do pelotão dos destruidores, meu

amigo, e lhe diz que tem uma pontezinha para se explodir. Franco diz que ele de

pontezinhas já explodiu trinta e seis, que está de s... cheio disso, mas que vai

explodir só mais essa e depois descansa‖204

.

Quanto mais dramática for a situação narrada, maior o efeito conseguido pela ironia e o

humor. Aqui vemos a descrição de um prisioneiro sendo levado ao fuzilamento: ―O

prisioneiro pergunta onde o estão levando, e um dos dois lhe diz que o levam pra

colônia de férias‖205

.

O peso do acontecimento a ser narrado – um fuzilamento – é primeiro aliviado pela

resposta irônica, para imediatamente depois tornar-se ainda mais dramático, pois, além

de se tratar do fuzilamento de uma personagem a que não fomos convencidos pelo texto

a odiar, o sentido de violência trágica é corroborado pela resposta irônica, mas

principalmente tranquila e serena, de quem deve fuzilá-lo, explicitando a inexistência de

sentimentos como compaixão ou mesmo pena.

Outro momento sereno, e por isso mesmo dramático, da narrativa é quando um civil, no

fuzilamento de outra personagem, se preocupa apenas com o que o fuzilamento do

personagem vai causar no seu muro: ―Aparece um civil e diz que por caridade, aquela é

203

―Riesco a vedere che sul tavolo sta spiegata una carta delle Langhe, e molta gente intorno parla forte di

settori e di strade d‘arroccamento, altra tace sempre e sempre guarda la carta, aggrottati come tanti

napoleoni‖ (FENOGLIO, 1994, p. 34).

204 ―Si volta, va da Franco, il pallido comandante del plotone guastatori, amico mio, e gli dice che ci

sarebbe un ponticello da far saltare. Franco dice che lui di ponticelli ne ha fatti saltare ben trentasei, che

ne hai c... pieni, ma che fa saltare ancóra questo e poi si riposa‖ (FENOGLIO, 1994, p. 35).

205―Il prigioniero domanda dove lo stanno portando, e uno di quei due gli dice che lo portano in

villeggiatura‖ (FENOGLIO, 1994, p. 36).

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sua casa, mandou refazer o reboco há menos de um mês e que existiriam tantos outros

belos lugares. Mas alguém o empurra pra trás‖206

.

Ou ainda quando, durante o julgamento dos partigiani traidores Blister e Jack, Beppe

chega e pergunta por que os dois estão sendo julgados, se o motivo é aquele que ele

imagina; na resposta, mais uma dose de desesperança e ironia:

– Ivan, é talvez porque na caçada Blister se vestiu de civil e perdeu a arma?

Diz Ivan que se fosse por aquilo, não se faria outra coisa além de processos até o

fim da guerra e que se deveria chamar os fascistas para serem jurados207

.

Com o desenrolar da narrativa, os outros temas vão sendo engolidos pelas ―caçadas‖,

que se tornam cada vez mais próximas e violentas. As caçadas são as investidas

minuciosas de alemães e fascistas em conjunto sobre um território. Elas visavam não

apenas a captura dos partigiani, como também o assassinato de civis, que colaborassem

ou não com a guerrilha, o estupro das mulheres, a prisão dos homens e a queimada de

casas, além do roubo dos proventos, animais e colheitas: ―Tinham passado eles, tinham

comido e colocado na mochila toda a gordura e os salames, galinhas e coelhos, bebido

todos os ovos, em seguida partido novamente dizendo que mandassem a conta a

Badoglio‖208

.

Também aqui cabe um toque de ironia com a sugestão de quem pagaria a conta dos

prejuízos deixados pelos fascistas nas casas civis que invadiam. Badoglio é o marechal

nomeado pelo rei para ocupar o comando do Exército Régio após a queda de Mussolini

(com a rápida mudança de lado desse exército, que deixava de ser aliado alemão para se

tornar aliado dos Aliados). Os fascistas sugeriam, ironicamente, que o atual chefe do

206

―Viene fuori un borghese e dice che per carità, quella è casa sua, ha fatto rifar l‘intonaco meno d‘un

mese fa e che ci sarebbero tanti altri bei posti. Ma qualcuno lo ricaccia indietro‖ (FENOGLIO, 1994, p.

41).

207 ―– Ivan, è forse per via che in rastrellamento Blister s‘è messo in borghese e ha perso l‘arma?/ Mi dice

Ivan che se fosse per quello, non si farebbe altro che processi fino alla fine della guerra e che si dovrebbe

chiamare i fascisti a far da giurati‖ (FENOGLIO, 1994, p. 52).

208 ―Eran passati loro, avevano mangiato e messo in zaino tutto il lardo e i salami, galline e conigli, sorbite

tutte le uova, poi erano ripartiti dicendo che mandassero il conto a Badoglio‖ (FENOGLIO, 1994, p. 49).

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exército que um dia foi o deles, pagasse a conta daqueles que continuavam lutando ao

lado de Mussolini.

Ainda no julgamento de Blister e Jack, na tentativa de se defender, Blister insinua que a

família que está afirmando que ele cometeu aquele crime, na verdade, é fascista. Em

meio ao clima tenso construído para aquele julgamento, a resposta do comandante

inviabiliza totalmente qualquer dramaticidade (il Duce era como Mussolini era

chamado): ―Você não sabe, Cosmo, que são todos fascistas? A mulher chama o céu por

testemunha, e Cosmo grita que se esta é gente fascista, ele Cosmo é o Duce‖209

.

Quando Blister e Jack são condenados e fuzilados, a narração do acontecimento, mais

uma vez, se encerra com crueza, violência e humor:

Assim eu vi que Blister estava bem coberto, mas Jack não tinha em cima mais que

um véu de areia, lhe despontavam dois terços dos sapatos, escanchados. E a

ninguém veio mais em mente voltar para melhorar sua sepultura. Tanto é verdade

que na primavera, depois de neve e degelo, a mensageira Meris estava passando

por ali e viu aqueles sapatos eretos entre as margaridinhas e desmaiou em cima. E

acordou de manhã com o rosto a um palmo dos velhos sapatos do Jack210

.

O fato de que a sepultura de um ex-companheiro de batalha tenha sido feita com

tamanho descaso (a ponto de jogar sobre o corpo um ―véu de areia‖) reforça a

impressão de brutalidade daquela guerra civil. O humor está sutilmente espalhado por

todo o trecho, mas atinge seu ápice na oração ―e viu aqueles sapatos eretos entre as

margaridinhas‖, com o diminutivo ―margaridinhas‖ como principal responsável pelo

tom geral da oração.

209

―Non lo sai, Cosmo, che son tutti fascisti? La donna chiama il cielo a testimonio, e Cosmo grida che se

questa gente è fascista, lui Cosmo è il Duce‖ (FENOGLIO, 1994, p. 54).

210 ―Cosí io ho visto che Blister era ben coperto, ma Jack non aveva sopra che un velo di terra, gli

spuntavano due terzi delle scarpe, divaricate. E a nessuno venne più in mente di tornare a migliorargli la

sepoltura. Tant‘è vero che in primavera, dopo nevi e sgelo, la staffetta Meris si trovò a passar di lí e vide

quelle scarpe ritte tra le margheritine e ci svenne sopra. E si svegliò la mattina col viso a una spanna dalle

vecchie scarpe di Jack‖ (FENOGLIO, 1994, p. 59).

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Sobre a chegada dos Aliados, mais demorada do que teriam preferido os civis

envolvidos naquela guerra civil, também aqui, na boca de outra personagem, a

desconfiança irônica da ação dos Aliados: ―Diz Maria Laò: – Se pelo menos em Neive

se pudesse ouvir a Radio Londra pra saber em que ponto estamos. Vêm pra cima ou vão

pra baixo esses Aliados de meia tijela?‖211

.

Começa a segunda grande caçada narrada nos Appunti, o histórico ―rastrellamento de

novembro‖. No final de um almoço surrealista, quando, em plena guerrilha, todo um

pelotão participa de um banquete regado a vinho, nhoques e pêra com queijo parmesão,

os partigiani precisam fugir desesperados porque os republicanos chegaram. Nesse

trecho, volta o humor, na narrativa de uma fuga burlesca e desajeitada de cinco

aventureiros: Beppe, Piccàrd e Cervellino, o partigiano Maria Laò e o comandante

Cosmo. Mais uma vez o humor tem muitos objetivos: tirar peso do texto num momento

reconhecidamente dramático para as formações dos resistentes partigiani, narrar os

heróis da pátria como meros fugitivos desesperados e dar graça para esse desespero,

aproveitando o fato de que o acontecimento narrado era já, a priori, dramático também

para os leitores. Justo nesse momento dramático o autor conduz o leitor ao riso mais

aberto de toda a narrativa:

Descemos, e eu me sinto pouco bem, maldito Otto e os seus nhoques, suo frio, o

cérebro está congelando. Digo a Piccàrd pra me passar o seu capacete de aviador,

me passa, coloco, tão pesado e aderente que eu sufoco dentro e não escuto mais

nada, embora veja os meus quatro mover os lábios e fazer gestos.212

No trecho citado, os nhoques que o comandante Otto ofereceu durante o almoço

demasiadamente farto começam a causar mal-estar em todos os quatro – a personagem

Otto é descrita ao longo de toda a narrativa como escorregadia e culpada, não se sabe

211

―Dice Maria Laò: – Se almeno a Neive si potesse sentire Radio Londra per sapere a che punto stiamo.

Vengon sú o vanno giú questi Alleati delle balle?‖ (FENOGLIO, 1994, p. 61).

212 ―Scendiamo, e io mi sento poco bene, maledetto Otto e i suoi gnocchi, sudo freddo, mi sta gelando Il

cervello. Dico a Piccàrd di passarmi il suo casco da aviatore, me lo passa, me lo infilo, così pesante che ci

soffoco dentro e non sento più niente, anche se vedo i miei quattro muovere le labbra e far gesti‖

(FENOGLIO, 1994, p. 63).

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muito bem do quê. O frio piora a fuga, até que Beppe pede o capacete de Piccàrd

emprestado. Daí em diante, a cena vai atingindo seu ponto alto:

E agora o que faz o doido do Maria Laò que começou a dar saltos mortais? E

porque Cosmo e Cervellino me largaram aqui e correm como Deus manda em

direção às olarias, pulando com os pés unidos como cangurus e de vez em quando

pegando nas costas? E a areia persegue os dois com borrifadas e esguichos? Até

Piccàrd corre, segurando os calções, corre atrás de Cosmo e Cervellino,

lateralmente, e faz tantas guinadas, paradas e retomadas como se corresse em uma

estrada cheia de gente e de trânsito, e ao contrário corre no plano e no vazio.213

Até que o trecho se encerra com a explicação da falta de entendimento do narrador do

que via; na verdade, ele não ouvia nada com o capacete na cabeça:

Eu tiro uma orelha do capacete, e escuto metralhadoras e cospe fogo, pistolas e

variadas espingardas que fazem jazz. Chego diante do precipício, e estão todos lá

em cima, a oitenta metros, no último declive, em três filas, os primeiros no chão, os

segundos ajoelhados e os terceiros eretos, como em Waterloo, e atiram à vontade.

Mas ou são estrábicos ou são misericordiosos214

.

No final da ―caçada‖, o narrador ressalta a barreira entre os republicanos e os partigiani:

na verdade, ninguém entende bem como eles conseguem atingir seus alvos – apesar de a

213

―E adesso cosa fa il matto di Maria Laò che s‘è messo a fare i salti mortali? E perché Cosmo e

Cervellino m‘han piantato e corrono che Dio li porta verso la fornace, saltando a piedi giunti come

canguri e ogni tanto toccandosi la schiena? E la terra li insegue a spruzzi e schizzi? Anche Piccàrd corre,

tenendosi su i calzoni, corre dietro Cosmo e Cervellino, di traverso, e fa tanti scarti, stop e riprese come se

corresse in una strada piena di gente e traffico, e invece corre al piano e al pulito‖ (FENOGLIO, 1994, p.

63).

214 ―Scendiamo, e io mi sento poco bene, maledetto Otto e i suoi gnocchi, sudo freddo, mi sta gelando il

cervello. Dico a Piccàrd di passarmi il suo casco da aviatore, me lo passa, me lo infilo, cosí pesante e

aderente che ci soffoco dentro e non sento più niente, anche se vedo i miei quattro muovere le labbra e far

gesti. (...)Io alzo un‘orecchia del casco, e ci son mitraglie e sputa fuochi, mitra e volgari schioppi che

fanno il jazz. Faccio fronte al bricco, e son tutti lassù, a ottanta metri, sull‘ultimo pendio, in tre file, i

primi a terra, i secondi inginocchiati e i terzi ritti, come a Waterloo, e sparano a volontà. Ma o sono

strabici o sono misericordiosi‖ (FENOGLIO, 1994, p. 63).

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explicação que o comandante Cosmo dá ser apresentada ironicamente como a fala ―de

quem entende‖ continuar não explicando:

A meeira não consegue entender como os alemães tenham podido acertar Castino,

se Castino daqui de cima não se vê, coberto por duas colinas, Cervellino tenta

explicar ele, faz uma grande confusão, chama de idiota triplo Piccàrd que o tinha

chamado de idiota, então Cosmo explica ele que fez escola militar e sabe quase

tudo de armas e tiros, mas a meeira não entende nada do mesmo jeito, e diz só os

alemães, ah os alemães‖215

.

Até que o tom dramático volta, encerrando a narrativa dos dias mais perigosos da

caçada de novembro, para abrir a narrativa para uma calmaria nervosa, que antecipa seu

final dramático – mesmo que não programado pelo autor, já que a crítica é unânime em

acreditar na existência de outras cadernetas que dariam continuidade à narrativa dos

Appunti.

Mas nós tínhamos sempre um sono mortal. Se tivéssemos acordado e fôssemos

vistos em torno a um cerco da república, quase teríamos dito: – Tudo bem, me

deixem dormir mais um pouco. Mas tem o perigo que aqueles te façam dormir

imediatamente e pra sempre. É isso que te faz seguir, seguir216

.

3.3 Os Appunti: O nascimento de uma nova forma literária

Num terceiro momento da análise do livro Appunti partigiani, de Beppe Fenoglio, tendo

sido o primeiro focado na questão da relação entre experiência e literatura a partir dos

215

―La mezzadra non sa capacitarsi come i tedeschi han potuto centrare Castino, se Castino da quassù non

si vede, coperto da due colline, Cervellino vuole spiegarle lui, fa una gran confusione, dà del fesso triplo a

Piccàrd che gli ha dato del fesso, allora Cosmo spiega lui che ha fatto l‘accademia e sa quasi tutto d‘armi

e tiro, ma la mezzadra non ci capisce niente lo stesso, e dice solo i tedeschi, ah i tedeschi‖ (FENOGLIO,

1994, p. 66).

216 ―Ma avevamo sempre un sonno mortale. Se ci fossimo svegliati e ci fossimo visti intorno un cerchio di

repubblica, quasi avremmo detto: – Va bene, lasciatemi solo dormire un altro pò. Ma c‘è il pericolo che

quelli ti facciano dormire subito e per sempre. È questo che ti fa andare, andare‖ (FENOGLIO, 1994, p.

68).

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conceitos de Walter Benjamin e o segundo, focado nas questões temáticas a partir das

colocações de Maria Corti, chegamos ao último, e não por isso menos importante, nível

linguístico ou formal.

A questão linguística para a literatura italiana se coloca como problemática necessária

para todo escritor em qualquer período. Numa nação unida tardiamente com uma língua

forçadamente unitária – pois oriunda de apenas um dialeto (aquele toscano) que se

sobrepunha a mais de trinta outros dialetos –, o problema entre nação e língua voltaria à

tona em todo momento-chave da história italiana.

O Neorrealismo foi mais um desses momentos. Nele, mais uma vez os escritores se

propunham a reinventar uma língua, a reconstruir a relação da literatura escrita por eles

com a tradição literária, a romper com tudo o que lhes soasse referência fascista, a rever

as escolhas estéticas, morais e ideológicas que tinham levado o país àquela guerra civil.

Para novas problemáticas e intenções, cabia uma nova língua. Mas, dessa vez217

, ela foi

apenas realocada: da tradição oral recém-instaurada pela Resistência italiana para a

literatura, num exercício de transposição do real que tinha como pressuposto um pacto

de verossimilhança com o leitor, de onde a ficção nascia.

Os Appunti constituem um exemplo também linguisticamente violento da ruptura

realizada pela literatura daquele período. Seus efeitos são devidos a muitos recursos,

operados em diversos níveis, tanto retóricos quanto sintáticos, vocabulares e gráficos.

Sua potência inovadora no âmbito linguístico está ligada principalmente à ausência de

mediações: sem uma reescrita que atenuasse o vigor, sem um editor que sugerisse

alterações, sequer um único leitor durante cerca de cinquenta anos, até que, sem

217

Se Dante Alighieri, na sua magistral Comédia, realizara uma operação grandiosa na organização dos

dialetos toscanos, escolhendo minuciosamente um pouco de cada, descartando minuciosamente outra

parcela, para compor, num imenso esforço intelectual, o que se tornaria o italiano literário, agora, para o

Neorrealismo, a operação consistiria em realizar o que Cesare Zavattini (teórico e roteirista do cinema

Neorrealista) chamou de buco nel muro (buraco na parede), para o exercício de apropriação do que já

existia diante dos olhos, bastava fazer o buraco e observar em silêncio para ver.

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interferências, vem a público, póstumo, em 1994. Essa ausência de mediação constitui,

a meu ver, o tesouro temático e linguístico dos Appunti.

3.3.1. Oralidade, dialeto e coloquialidade, uma gramática a serviço de uma literatura

A operação de invenção de uma nova língua literária deveria nascer da transposição da

língua oral para o registro literário, o que levaria aqueles escritores imediatamente ao

confronto estético e literário com o dialeto, que, por sua vez, estava intimamente ligado

a um registro coloquial. As três operações reunidas têm diversos efeitos sobre o

conjunto do texto dos Appunti.

Dentre as mais recorrentes, vemos a escolha pelo vocabulário de registro oral e das

camadas menos favorecidas da população, as inversões e repetições, características das

estratégias de ênfase na língua falada, a grafia diversa de palavras para marcar a distinta

pronúncia em dialeto (o que será aprofundado no tópico ―Fonologia‖), as diversas

escolhas por vocábulos dialetais, além da liberdade percebida na invenção dos

neologismos. Os três mecanismos, frutos da operação de inserção da

oralidade/dialeto/coloquialidade na literatura, são parte constituinte de todas as outras

escolhas. Mais uma vez, a divisão por mim realizada para fins analíticos inexiste no

texto fenogliano.

A gramática normativa de uma língua se divide, grosso modo e conceituando

rapidamente, em fonologia – os sons de uma língua –, morfologia – a composição de

seu léxico –, sintaxe – as orações e seus muitos componentes – e semântica – o campo

do sentido218

. Em todos os seus níveis Fenoglio buscou intervir 219

.

3.3.1.1 Sintaxe

218

PERINI (1996).

219 Pelo item ―Semântica‖ entendo todas as tentativas de ressignificação de termos e conceitos operadas

pelo autor em seu texto e neste estudo analisados nos itens até agora tratados, tais como ironia e humor, a

Igreja etc.

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Enquanto a língua italiana culta é cheia de orações subordinadas, Beppe Fenoglio, nos

Appunti, opta raramente pelo uso dessa relação entre as orações. A preferência recai

primordialmente sobre as coordenadas, forma preferida da língua falada, cuja estrutura

permite o uso de orações curtas e independentes. Da estrutura de subordinação,

Fenoglio mantém apenas as orações relativas e alguns gerúndios.

O uso recorrente do tempo verbal futuro do indicativo em sua construção analítica, ao

invés de sintética, também chama a atenção para certo caráter oral e dialetal. Em língua

italiana, o futuro do indicativo é um tempo simples – ou seja, não necessita de verbos

auxiliares em sua conjugação, do infinitivo do verbo chega-se, por um caminho mais ou

menos regular, à sua conjugação no futuro220

. O futuro sintético é um tempo

extremamente usual em italiano e feito a partir do radical do verbo acrescido das

desinências de futuro. Em língua italiana, para o futuro do indicativo, não é comum o

uso do verbo auxiliar na sua construção. No entanto, nos Appunti, o autor muitas vezes

recorre a essa construção (vado a dire, vado a fare), nuance que, quando traduzida para

o português, fica imperceptível. O objetivo pretendido pelo autor é, mais uma vez,

aquele de aproximar a língua falada daquela escrita e de atentar para um substrato

dialetal da região norte da Itália: ―Mas Piccàrd diz que não conseguiria em tempo, mão

nas pistolas e no chão atrás daquelas cássias e atenção àquilo que vai acontecer (va a

succedere).‖221

Mais um recorrente recurso de inserção da fala na escrita é o uso abundante dos dêiticos.

Os dêiticos são expressões que são interpretadas por referência a elementos do contexto

extralinguístico em que ocorre a fala. Com função parecida com a dos pronomes

referenciais – que se referem a um elemento anteriormente citado no texto para retomá-

220

Por exemplo, o futuro do verbo parlare – falar – é Io parl-erò, tu parl-erai, Lei parl-erà, noi parl-

eremo, voi parl-erete, loro parl-eranno, sendo as desinências usadas as paradigmáticas para verbos de 1ª

conjugação (-are) no futuro do indicativo. A excepcionalidade da escolha de Fenoglio consiste em utilizar

o futuro analítico, ou seja, a forma expandida do tempo verbal: ao invés de parle-erò, usa o verbo auxiliar

andare + o infinitivo do verbo principal parlare = vado a parlare. A forma sintética do futuro indicativo

é muito comum em português, mas em italiano, ainda hoje, constitui um erro, mesmo no registro oral.

221 ―Ma Piccàrd dice che non farei in tempo, mano alle pistole e a terra dietro quelle gaggie e attenti a quel

che va a succedere‖ (FENOGLIO, 1994, p. 71).

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lo – o dêitico retoma um elemento externo ao texto222

. A dêixis diz respeito

principalmente às pessoas que participam da interação verbal, ou a lugares e tempos que

são inferidos a partir da situação de fala. Ela realiza uma espécie de ―ancoragem‖ da

fala na realidade, no contexto, explicitando a tentativa de fazer o leitor participar

daquele acontecimento.

Nos trechos a seguir, os dêiticos são os ―ali, ali‖, na primeira citação e o ―assim‖ na

segunda. Ambos explicitam algo não dito anteriomente que pode ser compreendido pelo

contexto (onde é este ―ali, ali‖ que a personagem indica e qual o comprimento do

pescoço da galinha que é ―grande assim‖, são informações retomadas pelo contexto).

Mas no pátio daquela casa sai uma mulher, como nos vê fica fulminada, e

nós daqui de cima vemos que quer gritar e não lhe vem a voz. Em

seguida aponta o dedo a nos dizer que estão ali, ali. Assim nós voltamos

a dar uma de corredores e parece que perdemos pedaços sobre pedaços

do nosso corpo223.

De todo lado nos perseguem os armigeri, levando cada um uma galinha

com um pescoço longo assim224.

No trecho a seguir, mais um exemplo de construção típica do registro oral: ―E ci

mettiamo a far scommesse, li arrivano, non li arrivano, e Claudia chiede ogni minuto

quand‘è che sentiremo Ceng a sparare‖225

.

Nesse caso, antes do verbo ―chegar‖ na terceira pessoa do plural, ―chegam‖, a língua

pede apenas um pronome pessoal que recupere o sujeito da frase, no caso, um ―eles‖ –

222

O termo de difícil tradução em italiano, ecco, por exemplo, é um dêitico.

223 ―Ma sull‘aia di quella casa esce una donna, come ci vede sta fulminata, e noi da quassù vediamo che

vuol gridare e non le vien la voce. Poi punta il dito a dirci che son lí, lí. Cosí noi torniamo a fare i

corridori e ci pare di perdere pezzi su pezzi del nostro corpo‖ (FENOGLIO, 1994, p. 64).

224 ―Da tutte le parti ci rincorrono gli armigeri, portando ognuno una gallina con un collo lungo cosí‖

(FENOGLIO, 1994, p. 73).

225 Nesse caso a análise do trecho não fazia sentido em português, por isso consta em língua original.

(FENOGLIO, 1994, p. 73).

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loro – ou a repetição do sujeito ―os homens de Ceng‖. Mas, na língua falada, costuma-

se substituir o pronome pessoal por um pronome objeto direto – li –, no caso, o de

terceira pessoa do plural masculino, concordando com o sujeito ―eles‖, que, em

português, seria o equivalente ao pronome ―os‖.

Merece atenção, ainda, a estreita relação entre registro coloquial e elipse sintática bem

sucedida em registros escritos. Ou seja, o fato de que a elipse sintática, que é uma

estratégia comum na língua falada e normalmente não aceita na língua escrita, tenha

chegado ao registro literário indica que o registro coloquial estava alcançando o escrito.

A isso corresponde, no plano temático, uma forte ligação entre emitente e destinatário,

já que um autor havia levado para o registro escrito, com o objetivo de torná-lo

exemplar, algo que pertencia anteriormente a seu leitor, num registro oral. Para fechar o

ciclo, a autobiografia permite que esse escritor/narrador que realizou essa operação no

ato da escrita seja visto por seu leitor como agente das ações e copartícipe dos

acontecimentos no registro oral agora transposto para a escrita.

3.3.1.2 Morfologia

As escolhas morfológicas de Fenoglio nos Appunti são frutos da tentativa de realizar a

inserção de uma certa língua falada pelos partigiani das montanhas das Langhe, mais

especificamente do Cuneese, num registro literário. Mas essa inserção em registro

escrito implicava sempre que a língua de base fosse o italiano culto, registro escrito.

Nessa interação entre os dois registros se localiza a importância pela escolha de

vocábulos dialetais em meio a frases em italiano, presente em tantos trechos do livro.

3.3.1.3 Fonética

A fonética, normalmente ligada a problemáticas da fala, tem importância nos Appunti

exatamente porque nele Fenoglio reproduz a fala de suas personagens, tentando retomar

seus sotaques e variações fonéticas.

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A estratégia mais recorente é aquela de grafar diversamente as palavras, marcando a

pronúncia dialetal em oposição àquela do italiano culto. Para isso, Fenoglio acentua as

palavras sem acento, para denotar que a sílaba tônica varia naquele dialeto ou que a

pronúncia, mais fechada em italiano culto, naquele dialeto é aberta. No norte da Itália

como um todo, a pronúncia das vogais é muito mais aberta e, embora não sejam

acentuadas no italiano standart, no dialetal, caso se fizesse juz à sua pronúncia, bem

poderiam ser. Assim, o autor acentua, entre tantas outras, as palavras appéna (p. 6) –

assim que – e ancóra (p. 34) – ainda –; a primeira se pronuncia, em italiano culto, com a

letra ―e‖ fechada, pronúncia aqui alterada pelo acento, e a segunda, com ―o‖ fechado,

aqui escrito aberto.

3.3.2. Outros recursos: liberdade

Além dos muitos recursos utilizados por Fenoglio para este ou aquele fim, os Appunti

gozam ainda de certa liberdade formal, sem nenhum objetivo precisamente ideológico

ou político. O texto apenas respira um ar livre.

Livre para começar muitas orações, principalmente depois de ponto final, com o

conectivo ―e‖, sem que a relação entre as orações seja de adição, mas apenas mantendo

o fio condutor da narrativa com um tom coloquial e um ritmo acelerado:

E à esquerda (...)226

.

E nada, vocês ainda fazem essas caras e essas conversas227

.

E nós nos colocamos nos lados, em duas alas, como gente que fica olhando jogar

bocce e Set já se plantou no meio de pernas abertas e assobia a Vento para fazer a

volta por fora228

.

226

―E a sinistra‖ (FENOGLIO, 1994, p. 8).

227 ―E niente, fate ancòra quelle faccie e quei discorsi‖ (FENOGLIO, 1994, p. 58).

228 ―E noi ci mettiamo ai lati, in due ali, come gente che sta a guardar giocare a bocce e Set s‘è già

piantato in mezzo a gambe larghe e sibila a Vento di girare al largo‖ (FENOGLIO, 1994, p. 58).

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Blister grita pronto! e vai se plantar na cara do Set e lhe sorri malicioso, e alarga o

sorriso à medida que Set decide fechar a cara229

.

Livre para usar pontos seguidos de minúsculas: ―Caminhei firme, né? mas taí, deve ter

sido (...)230

.

Livre para repetir e repetir e repetir, como faz a fala, enfatizando e tornando redundante

até os objetos diretos, que, na sua forma pronominal, já são a repetição de algo:

Viu como o Set o recita bem o papel dele?231

.

(...) e vimos descer pela estrada de Neive, na colina da frente, pelotões e pelotões e

pelotões deles, como se fossem aos tiros (...)232

.

Corremos na água como podemos, para cima e para cima, com a mão sobre a boca

para não expulsar o coração (...)233

.

Livre para grafar Deus com maiúscula e na página seguinte com minúscula: ―Se deus234

quiser chegaram ao menos no coberto‖235

.

Livre para grafar dois pontos em reticências e para inventar onomatopéias e escrever

expressões extremamente coloquiais:

Bene..

229

―Blister grida pronto! e va a impalarsi in faccia a Set e gli sorride da furbo, e slarga il sorriso man

mano che Set si decide a ghignare‖ (FENOGLIO, 1994, p. 58).

230 ―Ho camminato sostenuto, no? ma ecco, sarà stato (...)‖ (FENOGLIO, 1994, p. 9).

231 ―Hai visto come la fa bene Set la sua parte?‖ (FENOGLIO, 1994, p. 58).

232 ―(...) e vedemmo scendere per la strada di Neive, sulla collina dirimpetto, plotoni e plotoni e plotoni di

loro, come se andassero ai tiri (...)‖ (FENOGLIO, 1994, p. 65).

233 ―Corriamo nell‘ acqua come possiamo, sú sú, con la mano sulla bocca per non rigettare il cuore (...)‖

(FENOGLIO, 1994, p. 64).

234 Na maioria das ocorrências o termo é grafado com maiúscula, mas em algumas ocasiões – como esta –

é propositadamente grafado com minúscula.

235 ―Se dio vuole sono almeno arrivati nel coperto‖ (FENOGLIO, 1994, p. 64).

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Tatatata, um disparo breve, de sabe-se lá onde, de sabe-se lá quem236

.

– Agora você vai sempre a S. Stefano, diz aí?237

.

Vá lá que você também é grande brincalhão238

.

– Podiam voltar, Beppe, e somos trezentas almas, aqui em S. Rocco. Cobre ele de

novo, vai!239

.

3.3.3. Um narrador, um estilo e um ritmo

O narrador em primeira pessoa intervém muito pouco ao longo do texto, mas todos os

eventos narrados são sutilmente filtrados pela sua percepção. Quando intervém

explicitamente na narrativa, antecipando um fato, julgando um comportamento ou

tomando partido numa discussão, essa intervenção traz consigo um tom menos objetivo

para a narrativa. Mas são exceções ao tom geral da narrativa, que é, na maior parte do

tempo, de pretensa objetividade.

Um dos principais recursos responsáveis pelo efeito estilístico conseguido pelo texto é o

uso frequente do estilo nominal, que evita verbos plenos substituindo-os por verbos

substantivados – quando, por exemplo, no lugar do verbo ―usar‖, opta-se pelo

substantivo ―o uso‖. O objetivo desse recurso é aquele de aumentar a eficiência textual

em acenar para as coisas, sem especificar, sem alcançar significantes precisos, visando

atingir uma essência.

O ritmo do texto de Fenoglio é cadenciado, nem rápido, nem lento, apenas objetivo. O

texto prende seu leitor por certa cadência ritmada, em que os eventos se sucedem em

níveis e graus distintos de beleza, dramaticidade, violência, sem que o narrador altere

seu passo diante deles. Impassível, pretende se mostrar o não retórico narrador diante

236

―Tatatata, una raffica breve, da chissà dove, da chissà chi‖ (FENOGLIO, 1994, p. 79).

237 ―– Adesso ci andrai spesso a S. Stefano, dí?‖ (FENOGLIO, 1994, p. 32).

238 ―Va‘ là che anche tu sei un bel burlone‖ (FENOGLIO, 1994, p. 57).

239 ―Potevano tornare, Beppe, e siamo trecento anime, qui a S. Rocco. Ricoprilo, và!‖ (FENOGLIO, 1994,

p. 5).

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dos fatos. Como quando passa livremente e sem avisos prévios de um assunto a outro: a

colega de Liceu achava que seu rosto naquela foto parecia doce e confiante, ponto,

Beppe quer acender um cigarro, ponto, fez tudo caminhando, ponto: ―Vai entender.

Com a esquerda procuro no bolso um fósforo e com a direita uma pedra no chão.

Queimou bem, o papel. Fiz tudo andando‖240

.

3.3.4. Estrutura dos diálogos

O modo com que Beppe Fenoglio estrutura seus diálogos nos Appunti partigiani

também merece atenção. O autor opta, na maior parte das vezes, pela mais complexa

forma de construção de discursos, o discurso indireto livre. Raramente usa o discurso

direto, raramente o indireto simples. No discurso indireto livre a fala dos personagens é

internalizada dentro da fala do narrador e nunca fica muito claro onde começa e onde

acaba a fala de uma e de outra personagem, nem por sinais gráficos (travessões etc.),

nem por marcas textuais.

Nos trechos citados, bons exemplos da velocidade conseguida com essa estratégia e da

imparcialidade pretendida, além do efeito estilístico, principalmente no primeiro trecho,

quando alguém procura Beppe para lhe entregar a carta da irmã:

Beppe sou eu, pego a carta, obrigado, embolso, vou ler na Langa com conforto e

prazer241

.

À margem de Mango um civil me diz que esta noite se levanta um vento de fazer

cair por terra, quero apostar?242

.

240

―Mah. Con la sinistra mi cerco in tasca uno zolfino e con la destra un ciottolo in terra. È bruciata bene,

la carta. Fatto tutto camminando‖ (FENOGLIO, 1994, p. 7).

241 ―Beppe sono io, prendo la lettera, grazie, l‘intasco, la leggerò alla Langa con comodo e gusto‖

(FENOGLIO, 1994, p. 75).

242 ―Al margine di Mango un borghese mi dice che stasera s‘alzerà un vento da far stramazzare, voglio

scommettere?‖ (FENOGLIO, 1994, p. 21).

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No pátio o filho dos meeiros, onze anos, me encontra e me rouba um cigarro. A

mãe chega e diz que o pequeno fuma, einh? e que todos eles sentiram a minha

falta243

.

A introdução das falas das personagens, como vimos nos exemplos acima, é feita

normalmente pelo que a gramática italiana chama de verbos traspositori –

transpositórios – que servem para transpor, passar, atribuir a fala do narrador à

personagem, como, por exemplo, o verbo dire – dizer – na terceira pessoa, dice – diz –,

utilizado com a mesma função também em português. Nos Appunti abundam exemplos

do uso dos verbos traspositori: ―Maria Laò diz que é Maria Laò e eu que sou Beppe,

exatamente Beppe da Langa‖244

.

Esse mecanismo recorrente de o narrador endossar a fala de inúmeros personagens

através do discurso indireto livre deixa o livro perpassado por inúmeros pontos de vista

que não são os do narrador – ou pelo menos são pintados com a objetividade do que não

deveria ser parcial. Mas esse mecanismo esconde justamente a parcialidade, pois

embora o narrador nunca exprima juízos de valor sobre as falas que ―reproduz‖, a ironia

e o humor com que o faz mostram que elas foram ―filtradas‖ e que essa objetividade é

apenas pretendida. Importante lembrar que essa estratégia não explicita ou elucida a

parcialidade do narrador, mesmo na ironia e no humor – aliás, principalmente nesses

momentos – fica pouco óbvio o lado em que se coloca o narrador. Nos trechos a seguir,

lemos o momento dramático em que o partigiano Blister desiste de se defender das

acusações: ―Depois Cosmo lhe gritou cala a boca, ladrão, ladrão nojento, e Blister

abaixou a cabeça e pediu baixinho se de vez em quando poderíamos dizer a hora‖245

.

4 Os Appunti e seu final inacabado

243

―Sull‘aia il figlio dei mezzadri, undici anni, m‘incontra e mi scrocca una sigaretta. La madre arriva e

dice che il piccolo fuma, eh? e che tutti loro han sentito la mia mancanza‖ (FENOGLIO, 1994, p. 24).

244 ―Maria Laò dice che è Maria Laò e io che son Beppe, proprio Beppe della Langa‖ (FENOGLIO, 1994,

p. 65).

245 ―Poi Cosmo gli gridò fa silenzio, ladro, ladro schifoso, e Blister chinò la testa e chiese piano se di tanto

in tanto gli dicevamo l‘ora‖ (FENOGLIO, 1994, p. 56).

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Num crescente trágico em que Beppe perde os dois amigos de batalha e se vê só, diante

do inverno, o leitor é conduzido ao fim do livro. Os Appunti partigiani são um livro

inacabado. Apesar de não programado pelo autor, o livro inexiste sem ele. Um final

aberto, sem conclusões ou morais, inacabado, e em cada página que se aproxima do

final, o livro se torna mais profundo, reflexivo e dramático.

Piccàrd suspeita que o irmão Cervellino foi capturado, acompanhamos sua dor e a

indiferente e impassível postura de Beppe narrador: ―E Piccàrd se vira pra mim com os

punhos e me grita que ele é irmão dele e que pressente no sangue. Em seguida geme

seco uma só vez‖246

.

Decide voltar na Langa para procurar o irmão, o caminho é cheio de névoa, a tensão

cresce. Chegando lá, o silêncio que enche o leitor de compaixão é o vazio:

Piccàrd diz que ele vai para a Langa, república ou não. E sai sem olhar se eu o

estou seguindo. Eu o sigo sim e Piccàrd além da pistola colocou pra fora uma

granada que eu não imaginava que tivesse. Subimos filtrando a névoa com os olhos

e as orelhas, mas em cima, em torno à Langa, tem um silêncio tal que Piccàrd

começa a gemer: – Não tem mais ninguém, não tem mais ninguém. Adeus. Rente

às paredes desembocamos no pátio, e a loba não está mais, não se ouvem cacarejar

as galinhas nem os porcos grunhir debaixo da varanda. Piccàrd vai escancarar a

porta do estábulo, vemos a manjedoura abarrotada de forragem, mas não os dois

bois247

.

Piccàrd tinha razão, o irmão Cervellino havia sido capturado. Para tentar salvá-lo decide

se entregar, pedindo a Beppe que responda para cada companheiro que o acusar de

246

―E Piccàrd mi si rivolta coi pugni e mi grida che lui è suo fratello e che se lo sente nel sangue. Poi ha

singhiozzato secco una volta sola‖ (FENOGLIO, 1994, p. 80).

247 ―Piccàrd dice che lui va alla Langa, repubblica o no. (...) Saliamo filtrando la nebbia con gli occhi e le

orecchie, ma in cima, attorno alla Langa, c‘è un tale silenzio che Piccàrd si mette a gemere: – Non c‘è più

nessuno, non c‘è più nessuno. Addio. – Rasente ai muri svoltiamo nell‘aia, e la lupa non c‘è più, non si

sente chiocciar galline né i maiali grugnire da sotto il porticato. Piccàrd va a spalancare la porta della

stalla, vediamo la rastrelliera traboccare di foraggio, ma non i due buoi‖ (FENOGLIO, 1994, p. 83).

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desertor que ele não o era. Beppe fica sozinho: ―Agora estou sozinho, só diante do

inverno. Tè, tè, lupa!‖248

.

E sozinho encerra a narrativa. Repensando nos momentos passados com Piccàrd e

Cervellino, mais uma vez é a frieza do narrador que comove e emociona

paradoxalmente o leitor:

Passaram quinze dias, mas me parece que Piccàrd e Cervellino tivessem feito

comigo toda uma longa guerra a partir daquele fato. Não serviu a Cervellino e a

Piccàrd o milagre de sair vivo do dia 8 de dezembro. Cervellino fuzilam um dia

desses, e Piccàrd vão enfiar em alguma brigata nera e vão levar pra ca-[...]249

.

O livro acaba. Seu fim no meio de uma palavra parece perpassar toda a sua trajetória,

desde a despedida de Beppe da mãe, na primeira página do livro, até as últimas duas

letras ca-, na última página, o que toda a narrativa parece avisar é, na verdade, que seu

fim será aquele. Inacabado. Como inacabado parece ter sido tudo o que Beppe narrou.

Como inacabados parecem ter sido aqueles meses, aquela Resistência, aquele momento

da Itália, aquela cisão entre fascistas e antifascistas que parece ter fundado uma nação.

248

―Adesso sono solo, solo davanti all‘inverno. Tè, tè, lupa!‖ (FENOGLIO, 1994, p. 84).

249 ―Son passati quindici giorni, ma mi pare che Piccàrd e Cervellino avessero fatta con me tutta una lunga

guerra da quel fatto. Non gli è servito a Cervellino e a Piccàrd il miracolo di scapolarla il giorno 8

Dìcembre. Cervellino lo fucilano uno di questi giorni, e Piccàrd lo ficcheranno in qualche brigata nera e

lo porteranno a ca-[...]‖ (FENOGLIO, 1994, p. 84, fim da Caderneta IV).

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Conclusão

Quando dei início a esta pesquisa, há dois anos, eu partia de uma intuição, como, aliás,

partimos todos, sempre: o Neorrealismo literário italiano havia sido um emaranhado

estético, temático e linguístico para a literatura italiana e esse emaranhado ainda não

havia sido desfeito: a literatura da Itália, hoje, me parece ainda se remeter com muita

frequência, para negá-lo ou reafirmá-lo, à literatura do pós-guerra.

Para compreender melhor uma literatura que já amava desde os anos do Liceu

Linguístico, em Florença, sentia necessidade de ler sobre aquele período. Demorei um

pouco mais a descobrir o que, exatamente, do pós-guerra italiano me comovia e que

problemáticas daquele período eu identificava naqueles livros e por que tudo aquilo me

inquietava.

A primeira tentativa de vereda por aquela literatura, agora não mais como leitora, mas

como estudiosa, foi a tentativa de entender a relação daqueles textos com aquele cinema:

o cinema neorrealista italiano é conhecido no mundo inteiro e também no Brasil, me

perguntava com frequência por que aquela literatura não tinha seguido o mesmo

caminho de sucesso. Rapidamente, entendi que a bibliografia que tratava da relação

entre as duas linguagens as aproximava somente enquanto fruto do mesmo momento

histórico. Mas algo continuava dividindo-as profundamente.

Foi através do livro de Claudio Pavone, bibliografia essencial para toda a minha

compreensão daquele período, que compreendi a importância da Resistência italiana e

conclui que ali estava a divergência entre as duas estéticas: o cinema tinha sido feito em

Roma, que foi liberada pelos Aliados em setembro de 1943 e que, por isso, trata

perifericamente das formações organizadas de partigiani e da Resistência; já a literatura,

localizada principalmente no norte da Itália, tinha vivenciado de perto os vinte meses de

Resistência.

A partir daí me parecia certo que minha pesquisa tomaria um rumo exclusivamente

literário. Mas, mesmo entre os escritores neorrealistas, precisei de muita leitura e de

muitas tentativas até encontrar meu objeto. A primeira delas, me parecia óbvio, foi

voltar aos livros de Cesare Pavese, cujo belo livro La luna e i falò havia sido meu livro

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de cabeceira durante muitos anos. Mas ali não havia a Resistência que eu buscava:

Pavese estava preocupado em fundar mitos, seu projeto estético estava ligado aos mitos

clássicos, e não era esse o caminho que pretendia tomar.

Em seguida fui ter com Elio Vittorini, mas sua produção estava localizada no sul da

Itália, sua problemática linguística evocava o dialeto meridional e, mais uma vez,

nenhuma Resistência.

Cheguei então ao maravilhoso Italo Calvino, cujo único livro que dialogasse com o que

me interessava era Il sentiero dei nidi di ragno, mas, também ali, a Resistência era pano

de fundo para o desenrolar das ações pelos olhos de uma criança. Todo o resto de sua

produção estava ligada ao realismo fantástico, à matemática e a milhões de outras

problemáticas, mas não as que me interessavam estudar.

Quando recebi pelo correio a cópia dos Appunti partigiani, juntamente com muitas

outras possibilidades de caminhos que deveriam me levar a um Beppe Fenoglio

neoexpressionista (!) – pelo menos essa era a intenção do meu interlocutor à época –

entendi que naquele texto estavam reunidas as minhas inquietações: descobri outra

paixão, aquela pela figura do partigiano, reencontrei ali a Resistência italiana de que

Pavone falava, com seus absurdos, seus abusos e insucessos; respirei através do livro

um ambiente de Resistência, com a insistência por evocar aquele dialeto, com a

linguagem coloquial brilhantemente inserida no registro literário; sentia por todo o livro

uma ousadia, sempre regada a muita ironia, que me deu a sensação de que ali estava o

meu objeto de pesquisa.

A partir desse momento toda a dissertação me parecia clara. Faltava percorrer os

caminhos necessários para fundamentar minhas paixões.

Claudio Pavone foi a base histórica, sociológica e política da pesquisa; Maria Corti

surgiria para relacionar aquele contexto ao Neorrealismo, com suas categorizações do

que foi esse momento e quais livros estariam inseridos dentro daquelas problemáticas:

assim estruturei o primeiro capítulo. Nele, interessava-me falar da importância daquele

momento histórico, de suas incoerências e paixões, de sua falência, onde ainda reside o

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epicentro da explosão de inúmeros valores morais, intelectuais e humanos para a Itália e

para a literatura italiana.

Walter Benjamin me alcançou quando tudo me parecia já resolvido. Com ele, aprendi o

exercício dialético de duvidar do que parecia pronto. Por um momento me pareceu não

ser possível falar de Fenoglio sem ter lido toda a teoria crítica. Felizmente, o

encantamento deu lugar a uma postura um pouco mais atrevida que me permitisse falar

de Walter Benjamin e/ou me apropriar de seus conceitos, mesmo sem, necessariamente,

ter lido tudo. Postura arriscada, que se inspirou profundamente em Benjamin, cujos

textos gozam de uma liberdade tão iluminada que nenhuma interpretação jamais

conseguirá de todo cegar – nem a psicanalítica, nem a materialista, nem a cabalista, nem

nenhuma outra.

Walter Benjamin, acredito, chega para enriquecer a potência conceitual dos Appunti de

Fenoglio. Com ele, propus traçar dialeticamente uma relação de pertencimento e

universalidade a partir do exercício de aproximação dos conceitos de ―experiência‖

(Erfahrung), ―vivência‖ (Erlebnis) e ―rememoração‖ à obra inicial de Beppe Fenoglio.

Com ele, tentei dizer que os Appunti não pertencem – ou pertencem menos – àquele

modelo moral e estético que pautou a Itália do pós-guerra e, exatamente por isso, estão

profundamente ligados a ele. Tentei levantar a dialética daquele momento a partir das

inversões provocadas por Fenoglio em seus Appunti. Tentei dizer que o antifascismo de

Fenoglio e sua aproximação à cultura inglesa, o faz duvidar de toda retórica, tanto da

utilizada pelo fascismo, quanto da pregada pela Resistência. Tentei afirmar que a

operação esquizofrênico/materialista por ele realizada nos Appunti – apreensão de uma

experiência a partir da Erlebnis e narração dessa vivência a partir da Erfahrung, cujo

único fruto possível nos dias de hoje é a ―rememoração‖ – gerou a dificuldade de

compreensão de seus primeiros livros. No momento em que foram publicados, o autor

não dispunha de público leitor pronto para aqueles novos valores que não se pretendiam

partilháveis pelos fatos narrados, mas pelas superestruturas ideológicas e semióticas que

traziam consigo.

Os Appunti gozaram dessa fortuna: um encaixotamento voluntário, seguido de mais

alguns anos de incógnita, vêm a publico quando seus leitores já estão prontos para

recebê-los.

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Ao fim desse percurso, renovo meus votos para com a literatura italiana. Tudo o que

aprendi, suspeitei e neguei ou confirmei ao longo dos últimos vinte meses que durou a

minha resistência pessoal foi um imenso aprendizado para minha carreira acadêmica e

não só. A solidão e a disciplina com que se chega ao final de um mestrado foram de

grande aprendizado.

Beppe Fenoglio foi uma companhia extremamente prazerosa, que sempre conseguiu

arrancar de mim um sorriso. Um autor apartado, como ele mesmo se nomeou, cujos

frutos estéticos e história pessoal e intelectual estão condensados numa narrativa

eficiente e de potência superior a qualquer tentativa de amarra cronológica que se lhe

tente dar. Os Appunti foram uma lição de potência estética, concisão, ironia e

engajamento reverso.

Esta pesquisa poderia ter muitos desdobramentos que desde já antevejo. Após dois anos

de leituras, o Neorrealismo continua me parecendo um emaranhado onde se podem

achar pérolas da literatura italiana, cujas potências podem dar margem a inúmeros

olhares e pesquisas.

O primeiro e mais imediato percurso me parece ser aquele de verificar como os três

pontos cruciais de sustentação dos Appunti partigiani, a Resistência, o partigiano e a

oralidade se comportam nos outros livros de Beppe Fenoglio e até que ponto as

problemáticas que adentraram as obras da maturidade alteraram a estruturação desses

pilares no interior das obras.

O segundo, em retrocesso, poderia ser voltar à distinção, aqui intuída, existente entre

cinema e literatura neorrealista devido às suas respectivas compreensões da Resistência,

e a partir daí aprofundar essa intuição, confirmá-la, negá-la ou dar lugar a outra. Vereda

impossível de ser tomada em apenas dois anos, tempo disponível para um mestrado.

A terceira – que nesta breve conclusão será a última, mas que certamente não encerra as

inquietações abertas pelo Neorrealismo em literatura – seria a profícua investigação do

perfil de intelectual moldado nos prefácios dos livros neorrealistas por seus autores.

Essa vereda é mais complexa e arenosa, por seu caráter inédito e sua delicada colocação

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numa fronteira entre literatura e sociologia, mas, se empreendida com os devidos

cuidados, pode dizer muito da importância daquela literatura e dos motivos pelos quais

ela continua ecoando na Itália de hoje. Pode falar da relação entre intelectuais e

literatura naquele momento, verificando a importância dos paratextos, como os

prefácios, para o sistema literário da Itália da Resistência e averiguar a relação desses

textos não ficcionais, em que um autor pronuncia suas ansiedades políticas e literárias,

com os textos literários contidos nas páginas que se seguem a eles.

Por fim, não posso deixar de relacionar tudo o que estudei ao longo dos últimos dois

anos com a situação estética, social e política vivida pela Itália hoje. Para isso, faço

minhas as palavras do meticuloso crítico Alfonso Berardinelli, que, citando Elsa

Morante, levanta o assombroso presságio:

Se Mussolini (...) era e é um perfeito exemplar e espelho do povo italiano

contemporâneo, se é difícil encontrar um melhor e mais completo exemplo de

Italiano, então o anti-fascismo, a Resistência, a própria Democracia, não poderão

ser outra coisa que não desvios da norma, superestruturas muito frágeis ou ilusões

momentâneas250

.

A Itália de hoje não poderia se furtar da inquietante dúvida sobre a veridicidade dessa

afirmação, por isso, creio eu, volta aos seus neorrealistas: volta a eles na academia, volta

no cinema, com a produção de inúmeros filmes que tratam do período e de seus

extremismos, volta na literatura de cunho realista, aquela dos desmandos da máfia

siciliana, volta nos jornais, volta na televisão, volta nas conversas de botequim, alcança,

do outro lado do oceano, uma universidade brasileira.

250

BERARDINELLI (1998).

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Mapas

1 Itália e países de fronteira: França, Suíça, Áustria, Eslovênia e Croácia.

2 Região do Piemonte e suas províncias em detalhe.

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3 Província de Cuneo (PI) em detalhe.

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Introdução ao apêndice

Esta tradução nasceu sobretudo da minha necessidade de um exercício de apropriação

textual do livro a ser estudado nesta pesquisa. Traduzir, acredito, ainda é dos melhores

mecanismos de aproximação a um texto.

Sendo assim, essa tradução que aqui se mostra não pretende ter valor literário e não se

pretende pronta para todo leitor, mas ela constitui a prova de um esforço e a

possibilidade de uma leitura instrumental que auxilie na compreensão das questões

teóricas levantadas ao longo desta dissertação. Beppe Fenoglio, mesmo em seus Appunti,

já era um grande escritor, com um grande tema e uma grande revolução linguística nas

mãos para iniciar sua trajetória. Minha tradução em nenhum momento pretende a

ousadia de lhe atingir em qualquer um dos aspectos.

Muitas dificuldades se mostraram ao longo do esforço tradutório, todas elas me

ajudaram na apreensão e análise do texto e algumas permanecem não resolvidas, em

itálico e com notas de rodapé. Me esforcei também para que as notas fossem em número

reduzido, já que esta não é uma dissertação em tradução e eu não pretendia fazer uma

análise das problemáticas tradutórias.

A pretensa objetividade do texto fenogliano poderia sugerir um texto fácil de se traduzir.

Mas por trás dessa descrição objetiva e desse texto não retórico e não emotivo, há

sempre algum corte brusco, irônico ou absurdo, que faz com que o leitor abandone

qualquer início de compaixão, todos muito difíceis de serem traduzidos e gerarem o

mesmo efeito rápido e brutal. Nesses minúsculos momentos de ruptura aflora toda a

crueldade da guerra civil e, numa fração de segundos, somos arrebatados pela emoção;

conseguida por recursos sutis e elaborados, ela nunca é alcançada através da retórica, o

que dificulta que seu efeito seja recuperado na tradução.

Alguns termos foram de difícil tradução; nesses casos, optei por deixar em língua

italiana. Termos como partigiano, Azzurri, Rossi, armigeri etc. não possuem

correspondentes históricos em português e, mesmo que houvesse, seria leviano

aproximá-los a qualquer outro contexto, dada sua especificidade e relevância histórica

para o contexto italiano.

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Outra dificuldade para a tradução de qualquer texto do italiano para o português do

Brasil é o uso excessivo e recorrente dos pronomes-objeto, que nós brasileiros, no

registro coloquial – que é aquele usado por Fenoglio nos Appunti –, renegamos por

completo. O falante brasileiro, quando deve retomar elementos, prefere os sinônimos ou

os elementos dêiticos. Para que a tradução ficasse o mais perto possível da oralidade,

muitos pronomes não foram trazidos para o português. Quando a retomada de elementos

era necessária ou de efeito estilístico, preferi fazê-lo a partir de um possessivo ou da

retomada do sujeito com um pronome pessoal.

Não tenho dúvida de que a minha compreensão dos Appunti em seus detalhes e

estruturas mais profundos se devem ao esforço de traduzi-los. Em cada página que se

apresenta ―traduzida‖ neste apêndice, leia-se uma reverência implícita ao autor e a

consciência de ter falhado na missão cuja excelência nunca pretendi atingir.

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Rascunhos partigiani

Beppe Fenoglio

1944-1945

Aos cuidados de Lorenzo Mondo

Torino: Einaudi, 1994.

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A todos os partigiani da Itália,

mortos e vivos

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Cap. I

Volta, se você acha que deve, volta. Mas saiba que toda vez que passarem com

caminhões e metralhadoras e cães para aquelas colinas onde você estará, eu vou me

sentir morrer. Agora vai.

Abraço minha mãe, não apertada, que não sinta com o peito a pistola que me deforma

um bolso. Desço na padaria, a atravesso. Na porta o padeiro de Bellonuovo aperta a mão

dele na minha e no bolso uma linguiça enrolada em papel. Sou grato que não me fala de

refletir bem, bato os pés para ajustá-los nos coturnos, e vou.

É já noite e muito frio. Não tem lua, mas vai aparecer? Subo a estrada Alba-Acqui por

uns duzentos metros, corto em um prado em subida e estou na estradinha de S. Rocco.

Ali arranco o meu belo passo de homem do campo; parecem viajar comigo as colinas à

minha direita, que olham a minha pequena cidade protegida por elas. Lá mora a moça

por quem sou, serei sempre, apaixonado. Se agora pelo menos eu não estivesse

apaixonado, ou melhor, se aquela belíssima me desse esperanças. Por não querer tirar os

olhos daquelas colinas, me vejo com um pé no buraco do fosso. Volto pro meio da

estrada com um solavanco. Mas o amor se faz repensar. Se me matarem, posso desejar

que ela sinta alguma coisa quebrar dentro de si e suba correndo pelas colinas me

procurando entre amigos e inimigos, uivando como uma loba? Vai me encontrar longo,

longuíssimo, sobre a neve e vai me beijar entre sangue e gelo. Como eu ando rápido!

Mas estou mesmo louco por ela se por ela esqueço minha mãe. Minha mãe a essa hora

se despediu com muitos obrigada do padeiro que não sabe dizer nada além de –

Senhora... senhora Rita... – e volta pra cidade pela longa estrada. E em uma hora vai

estar na nossa casa na praça do Duomo, vai entrar pra olhar minha cama que sabe-se lá

quando vai ter que refazer, depois vai chamar meu pai para dizer que fui embora.

Depois do jantar vão ouvir Radio Londra, e se os aliados não tiverem avançado um

pouquinho, vão ficar desesperados.

Sob os meus passos ecoa a passarela de S. Rocco: o povoado fica a oitocentos metros,

tão pequeno que de dia a igreja sozinha já esconde ele todo. Tanto à direita quanto à

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esquerda, são muitas as fazendas nas colinas: mas não têm luz, não dão som, como se

em cada uma tivesse acontecido uma desgraça. Os cães silenciam de todos os palheiros.

S. Rocco. Entro na pracinha, onde tem uma luz atenta, logo ali. Se não erro, é a pensão.

Vou na direção dela, antes que toque a porta, eis que se abre e o jovem dono da pensão

aparece e eu dentro não enxergo.

Diz gravemente: – Você é o Beppe, filho do Amilcare. Tá indo lá pra cima?

– Ainda preciso atravessar duas colinas.

– Aqui veio a República, hoje.

– De Alba, muitos?

– Eu digo que eram cem. Caçadores dos Alpes.

– Possível que não tenham feito nada?

– Alguma coisa bem que fizeram.

Farejo o ar ruidosamente colhendo cheiro de queimado.

– Não – diz –, mas eu te mostro. E me leva a atravessar a pracinha triturada pelos

tanques, pros lados da igreja e da escola.

– Deixa eu ir na frente – diz.

– Eu não tenho medo.

– Tudo bem. Apenas, você poderia tropeçar.

Mais alguns passos e ele para e me para apontando uma mão contra o meu peito. Juro

que não vejo nada de nada. Ele tenta fazer funcionar um isqueiro grande, e consegue na

quinta vez. A chama escapa sobre um morto, enrolado em alguma coisa que não me

parece todo de uma cor.

– Fuzilado, desgraçados – disse, e enquanto eu me abaixo para descobri-lo na

frente: – É a bandeira da escola, mas não cobre ele todo, mesmo sendo pequenino.

Agora o rosto está descoberto: intacto. Não quero ver se lhe atiraram na nuca, tiro de

misericórdia. E depois a chama trai.

– Agora você vai descobrir o peito dele?

Apagou-se. Enquanto se esforça para reacender, o dono da pensão:

– Diria que até o isqueiro tem medo.

– Eu digo que isto serve pra tirar o medo.

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Me olha fixamente e para de solicitar o isqueiro.

– Quer acender de novo?

Acende de novo, mas não se abaixa novamente e diz: – Meio carregador de

metralhadora.

– Você contou as feridas?

– Vi com os meus olhos, fuzilarem ele.

– Explica.

– Eles nos obrigaram, quem morasse na praça. Até o padre e a professora.

– Onde eles o pegaram?

– Em um vinhedo que agora não dá pra ver. Um dia em que a gente se encontrar,

lembra de me pedir pra te mostrar.

– Armado?

– Uma pistola de ar, uma pistolinha que não sei se conseguia cospir a bala. E um trapo

azul em volta do pescoço. Ainda deve estar com ele, você viu?

– Morreu bem?

Está tão nervoso o dono da pensão: – Como assim? Ah. Bom, eu fiquei sempre de

olhos bem fechados, como todos menos o padre. Só por um momento os abri, e ele

estava batendo continência... tão pequenino.

– Quando foi?

– Hoje de manhã, eram umas nove.

– E vocês não o transportaram? Com a igreja a um passo?

– Beppe, os oficiais disseram que ai da cidade se alguém tocar nele antes de vinte

e quatro horas. E enterrá-lo como não fosse um cristão: isso ao padre.

– Mas eles não voltaram, né?

– Podiam voltar, Beppe, e somos trezentas almas, aqui em S. Rocco. Cobre ele de novo,

vai!

Eu cubro o menino, e ele sopra com força o isqueiro. O acompanho até a pensão e na

porta o deixo passar.

– Você não entra?

– Não tenho tempo, olho só dentro. Tem um velho debruçado numa mesa, sem

copo nem cachimbo.

–Cliente?

– O pai do moleiro – diz – Amanhã de manhã vamos levá-lo ao cemitério de Treiso. É

no teu caminho, acho, o cemitério. Se tivéssemos certeza que aqueles não vão sair pra

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inspecionar as colinas... Vamos fazer um belo funeral pra ele, amanhã, se chover ou

tiver névoa. Tomara.

O velho se levanta, se encapota e vem pra saída.

– O dono da pensão te disse que eu também tava, hoje de manhã, lá pra ver? Não é uma

guerra honesta. Aquela de 15, a nossa, aquela sim. Você está na Estrela Vermelha ou

com os lenços azuis?

– Azuis.

– Prefiro. Vão ter um inverno de cão, vocês rapazes. Diz que não acaba pra dezembro?

– Não acaba.

– Vão ter um inverno de cão. Tchau, patriota – e foi.

Volta o dono da pensão: – Algo quente para beber?

– Não. Deixa eu ir.

Enfia no bolso do meu casaco uma carteira de Popolari e: – Força e coragem, einh? –

Me encaminho: – A gente se vê.

Imediatamente avisa: – O menos possível, Beppe, você sabe.

Vou. Recém fora do povoado a estrada sobe. Bom, não é o primeiro que vejo, e não será

o último, mesmo assim me viro. Mas não tem nada que desponte da sombra, na margem

direita da pracinha.

– Aqui vocês encontram flores um pouco bonitas? – digo.

O dono da pensão levanta uma mão e a voz: – As meninas das fazendas vão lhe fazer

uma coroa, esta noite.

Parto. De uma curva da estrada vem um sopro de vento, vem como a onda virando um

promontório. Quando a estrada correr pelo vale, imagino que vento vai soprar, de pegar

de peito. Bom, aquele pequenino lá pegou coisa bem pior com o peito. Sabe-se lá como

se chamava, onde nasceu e o que fazia. E se os seu documentos acabaram no Ofício

Político do 1° Regimento Caçadores dos Alpes ou se os tem o padre de S. Rocco. Puxa,

não os tivesse no bolso...: é já alguma coisa negar a quem te mata de saber a tua

identidade, obrigá-lo a dizer por aí ter só matado um cara. Exato, mas como eu nunca

pensei nisso? E depois daqueles dois ou três momentinhos em que eu estava com a pele

em liquidação? Procuro na minha velha carteira de couro sintético, encontro a minha

carteira de identidade e a seguro. Tá toda certa, menos pela idade e a profissão. De fato

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declara que eu sou de 1920, e eu sou de 1922. Que sou marceneiro: mas eu estudo, todo

mundo sabe. Descolo a fotografia, velha cinco anos: a minha cara de terceiro ano de

Liceu, e tinha uma minha colega que achava que ela era doce e altiva. Vai entender.

Com a esquerda procuro no bolso um fósforo e com a direita uma pedra no chão.

Queimou bem, o papel. Fiz tudo andando.

Agora a estrada sobe na metade do vale. Vento sim, mas só consegue me despentear.

Não consigo avistar, lá em cima, onde o céu se liga à colina. Estas começam a ser as

Langhe do meu coração: aquelas que de Ceva a Santo Stefano Belbo, entre o Tanaro e a

Bormida, escondem e nutrem cinco mil partigiani e lhes oferecem lugares únicos para

batalhar, quem tem vontade. E soam mal a quem os partigiani os quer mortos

assassinados, todos todos e pior, se possível, daquele de S. Rocco.

Vejo quatro candeeiros no pico da colina. Três estreitos juntos formando um

triangulinho, e um solitário, distante mil, dois mil passos: me dá vontade de chamá-lo de

Estrela Polar. Nada de lua, quer dizer que não são as suas noites, estas. Tivesse comigo,

nessa noite e por essa estrada, a loba da Fazenda da Langa251

, cadela de sete anos que se

te ama você a comanda com os olhos, grandiosa na guarda e na caça de esquilos, animal

combatente. Mas eu vou revê-la, o mais cedo possível, e vou fazer ela me lamber e um

pouco morder.

Subo a passos largos, como se a estrada fosse uma escada com degraus despropositados.

E tamborilo a coronha da minha pistola. E pensar que se você leva ela assim pra passear,

e faz os encontros que eu pretendo e te falta a força para adoperá-la, por ter no corpo

aquele troço, eles te tiram legalmente a vida.

Batalha!

Tivesse só pensado, mas eu gritei, feito doido. E aqueles três candeeiros se apagaram de

repente, como se eu tivesse soprado neles, com aquele grito. E à minha esquerda, lá lá

em cima, um cão começa a latir que vai lhe esplodir alguma veia. De todo lado lhe

251

O termo, no original, é cascina, que não possui correspondentes arquitetônicos em português. As

cascine são construções rústicas típicas da região do Piemonte; nelas, agricultores meeiros moram e

executam as tarefas ligadas ao plantio e à colheita típicos daquela espécie de fazenda não latifundiária.

Aqui optei pelo termo ―fazenda‖ em detrimento de ―chácara‖ – que resolvia bem um aspecto sonoro do

termo – pela forte ligação de ―fazenda‖ com a agricultura.

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respondem no ritmo os selvagens, incorruptíveis cães das colinas. Sou tomado por uma

alegria feroz, quero fazer a minha parte nesse concerto, e começo a cantar:

Lá nas Langhe

Tem uma barraca,

Tem vinho e grappa.

Lá nas Langhe

Tem um bosque escuro

É o cemitério

Dos partigiani!

Estou em cima da primeira colina, sem fôlego pela subida e pelo cantar. Aquela tal luz

está à minha direita, logo ali. Parecia tão mais longe. E à esquerda, não tem erro, aquele

é o cemitério de Treiso. Ele foi desenhado um pouco grande demais para o povoado que

é Treiso, mas em honrar todo aquele espaço providenciamos nós partigiani, de um

pouco de tempo pra cá.

Vontade de fumar, cato um popolare e dois fósforos. Dois sopros de vento os apagam,

depois que eu já os risquei no muro baixo do cemitério. Passo de novo as unhas no

fundo de cada bolso, mas não tem mais mesmo. Há que se blasfemar, mas não

desperdiçamos fôlego, volta pra carteira o popolare e corro da colina de Treiso até

mergulhar no pequeno vale de Trezzo, tristíssimo povoado onde não ficar nem quando

morto. Chego numa corrida desesperada, sem que nunca um partigiano tenha me dito

alto là chi va là252

, sem encontrar um civil vagabundo que me faça: – Cereia,

partigiano!253

– e peça ao meu bem-estar que avance sem mexer as mãos acima da

cabeça. Na praça de Trezzo, a luz do prebitério, e um gato foge tapando as suas

lanterninhas de um azul precioso. No sopé da colina de Neviglie, o vento reforça, sei

bem que não vai economizar um metro do meu caminho. Mas por que eu preciso chegar

em Mango exatamente hoje à noite, e depois perambular mais pra encontrar lugar pra

dormir? Às onze batem rocamente nos sinos de Trezzo e de Neviglie, e eu me

perguntando como é possível que sejam já onze. Caminhei firme, né? mas taí, deve ter

252

―Alto lá, quem vem lá‖ seria uma boa tradução, mas aqui preferi deixar em língua original.

253 Saudação usada pelo partigiani.

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sido na padaria de Bellonuovo, com minha mãe, que eu perdi a noção do tempo. Quer

dizer que eu vou procurar um estábulo ou um feno a meia costa de Neviglie, durmo lá

com resignação e em Mango chego belo belo amanhã de manhã. À direita, pouco longe,

vejo o fantasma de uma grande construção. E uma fazendona: uma fazenda daquele

tamanho, por esses lados, não pode ser que não Fazenda Cervasco, eu acho. Vou

correndo, paro na margem do pátio. Um segundo, e no escuro piso uma argola que corre

vertiginosamente por um fio de ferro pendurado no ar. Tenho tempo de dar um passo

pra trás, e uma bola peluda e fedida passa rente a mim correndo, depois os dentes se

encontram com um barulho de pedra batida contra pedra. Deus, esses cachorros

desgraçados do campo são os nossos piores inimigos, vêm imediatamente depois dos

fascistas. Pelo arremesso acabou no fim do pátio, agora volta se arrastando por trás

daquele mesmo barulho de ferrugem, para na minha frente com empenadas e latidos

furiosos. Possível que essa coleira não te sufoca, cachorro vira-lata, como é que te

chamam? Não sei como posso ouvir gente segurando a respiração, lá no estábulo, mas

juro que escuto assim.

Grito: – Esta é Fazenda Cervasco?

O cachorro enlouquece, mas a porta do estábulo se entreabre, como por si só.

– Sou o filho do Amilcare. Esta é Fazenda Cervasco?

A abertura se alarga, e dali desponta um quarto de homem dizendo: – Bom, se o senhor

é filho do Amilcare, esta é Fazenda Cervasco – e depois – Quieto, París, pordeus!

Entro no estábulo quente que transpira, com dois bois virados me vendo chegar. Cinco

minutos depois, encaixado na manjedoura, com puxado até os olhos um fedido cobertor

de cavalo, durmo ao soprar dos bois, sem medos nem sonhos.

Cap. II

Alguém me tocou no ombro. Desconto na manjedoura, bato a cabeça na grade, esquadro

o rapaz da fazenda, me diz: – É dia, – e logo se vira pra soltar os bois. Uma galinha

passa rente a mim no voo da grade ao chão de ladrilho, em direção à saída. Penduro um

pé fora da manjedoura e eis que o vejo descalço de meia. Olho o outro, e o outro está

como numa teia de aranha de lã. Pela surpresa assobio. O rapaz se vira, olha e diz: –

Capaz que tenham comido os bois. – E se revira pra eles, sem repreendê-los. Preciso

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colocar os coturnos nos pés descalços. Agarro o revólver e sorrio pra ele. O menino vem

até mim, olha e diz: – Não é dos mais bonitos.

– A mim basta que atire.

– Mas e atira?

Olho de cara feia, reembolso a pistola e saio. Luz ácida, devem ser seis e meia. Mas vai

ser um dia bonito, e os dias bonitos têm um sentido também para nós partigiani. Sexta

ou sábado? Chego no parapeito da janela da grande cozinha: tem uma velha que faz

alguma coisa.

Digo: – O patrão tá aí que eu lhe dê bom dia?

– Tá dormindo, – diz. – Esteve de guarda pelo senhor a noite toda.

Faço: – Oh! – e depois, – Quanto a senhora acha que levo para chegar em Mango?

Chega na porta, me estuda as pernas e os sapatos, depois: – Em meia hora, o senhor.

Quer um pouco de pão?

– Quero um pouco de água.

– Os outros não se lavam quase nunca.

– Ah não?

– Dou-lhe o pão?

Como a linguiça do padeiro com o pão do meeiro. Fumo nisso um cigarro do dono da

pensão. Todos nos dão, a nós partigiani. Nós partigiani entramos com a arma e a pele.

Agora vou embora, e o vira-lata de ontem à noite está tão aliviado que nem late pra mim.

Aqui estou em cima das Langhe, em meio às Langhe. Longe vejo S. Adriano e Mango,

a Torretta e S. Donato. Aquele pico à esquerda me cobre Bricco d‘Avene e Valdivilla.

Lembro bem dos lugares também porque, nos anos da Guerra da Abissínia, meu pai nos

trazia aqui e por aí pelas Langhe, no nosso 509. E minha mãe, que na direção do meu

pai confiava mas temia a estrada, antes de certas curvas em descida dizia em mente uma

Avemaria.

Sopra um vento que me exalta e ando rápido. Em meia hora, exatamente, estou em

Mango.

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Na balança pública tem um bloqueio dos lenços azzurri. Na cidade, o Comando de

Brigada. Lá em cima em S. Donato, talvez o comando Divisão.

No bloqueio cruza o partigiano Riccio. Está armado com um mosquete de artilharia, e o

carrega mal e o deixa enferrujado porque tem vergonha. O partigiano Verona possui um

Sten, dado-lhe pessoalmente pelo Comandante de Companhia, e olha que o Verona,

naquele dia da República na Torretta, fugiu antes dele.

Riccio me encontra e diz que não era nada mal o modo como atirava a minha

metralhadora americana, no dia dos mortos, em Alba. Mas como foi que depois

engasgou? O extrator que expelia dilacerava os cartuchos?

Passo e no final da breve rua em subida está um rapaz com o rosto desfigurado e seus

olhos desaparacem entre hematomas e inchaços. Está sentado no pé de um plátano e

respira como moribundo. O vigia um partigiano com Sten e nas costas um lenço azul

com em cima bordado: Johnson.

Johnson me faz: – Você é partigiano?

Digo: – Não te parece?

– E então bate, – e me aponta aquele rosto que já se ofereceu.

– Por que eu devo bater nele?

– Traidor. Traição.

A cabeça dele caiu de novo sobre o peito.

– Que traição? – digo.

– Traição, não?

O sentado levanta de novo o seu horrível rosto e geme: – Eu, um partigiano como eu...

Johnson o cala com uma pancada do Sten.

Digo: – Mas ele é partigiano?

– Sim, mas traidor. Você vai ou não vai dar esses dois murros nele? Você é o primeiro

que se faz implorar. Devem ter passado uns cem e todos lhe deram. Bate, vai!

– É obrigatório?

– Obrigatório, não... – Johnson está atônito e eu sigo adiante. Subo a ladeira da paróquia,

passo farmácia e estalagem, me pergunto onde terão enfiado o Comando. Dos lados da

Igreja desce rapidamente um partigianone com chapéu alpino.

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Faço: – Tu...?

Me esquadra, para, se vira e no lenço azul leio: Terrível.

– Terrível, me diz onde é o Comando?

– Tabaco, você tem algum? O Comando fica à direita da Prefeitura, na casa dos Ceretti,

pela estrada descendo em direção à igreja dos Batidos – e desce com o cigarro que lhe

dei.

A estrada aos Batidos é muito íngreme, pavimentada barbaramente: quero me ver descer

e subir daqui a um mês, quando congelar. Casa Ceretti era casa de fascistas: no tempo

em que os chamavam ainda de rebeldes, os partigiani a tinham saqueado: levado tudo o

que se podia, destruído todo o resto. Depois, com a instalação do fronte das Langhe,

com a avançada dos partigiani em Treiso e em Cappelletto, Mango tinha crescido a

Sede de Comando de Brigada. Na falta de coisa melhor, este Comando tinha se alojado

na casa dos Ceretti com os restos daquela longínqua destruição. Toda vez que ficavam

desconfortáveis mais do que o normal, os adeptos do Comando chamavam de velhacos

e pior àqueles tais partigiani.

Na porta dos Ceretti, alta três degraus da rua, está uma moça com calças em funil, botas

alpinas e camiseta de tecido de paraquedas. Tem um fio de vento pela rua, mas a moça

não estremece e fica de peito descoberto. Me diz oi. Eu lhe trato por senhora, e ela diz

chamar-se Carmencita. Entro, no corredor estaciono para ler a tabela dos adeptos do

Comando Brigada. Último nome leio: Carmencita, Serviços Diversos.

O Comandante senta na sala de refeição e está dando ouvidos a um civil vindo pra

perguntar se o seu aparelho de radio o partigiano Miguel o requisitou com a ordem

deste Comando.

Como ele vai embora, nada satisfeito me parece, o Comandante me aperta a mão e se

faz dar um cigarro. Ele entra com o isqueiro e fumamos.

– Beppe, – me diz, – aqui precisamos de um atirador de metralhadora como você.

Temos uma Browning, e deixamos ela toda pra você. Você fica comigo aqui no

Comando, não faz p... nenhuma o dia todo, só se apresenta quando chega a República,

você e a Browning.

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– Escuta, grande Chefe Branco: eu quero ir pra Fazenda da Langa e ficar lá com os

meus amigos de Alba.

Diz que é uma pena, porque tem uma nova posição pouco fora da cidade, que eu e a

Browning comandamos um batalhão de Rap: mas, como você quiser.

Carmencita entra pra anunciar um agricultor, o meeiro dos Badellini.

Me afasto em direção à janela e vejo Madonna della Rovere e Castino e, na última

colina, a torre de Roccaverano. E ouço o meeiro:

– O partigiano Caccia me requisitou o meu único bezerro. Não por nada, mas a fazenda

Caffa tem três bezerros no estábulo, e todos três mais maduros que o meu.

O Comandante lhe diz para resolver com o intendente Rolando e assim o manda embora.

Depois me pergunta onde eu guardo o lenço azul.

– No bolso – e puxo uma ponta dele.

– Mandou bordar teu nome de batalha nele?

Rio que não. E depois digo que a mim o nome de batalha nem me serve nem me

acrescenta. Quem não me conhece por Beppe por essas Langhe? Digo: – Mas se a

guerra partigiana me leva pra fora daqui, vou ter um nome de batalha: Heathcliff.

– Como você disse?

– Um nome inglês. Vou ensinar a todos como pronunciá-lo, então.

Não lhe diga, Beppe, que o teu amor, uma noite de dezembro de 43, te disse que pra ela

você parecia com o Heathcliff do famoso romance.

O Comandante diz:

– Tão usando muito os nomes ingleses entre os nossos partigiani. Eu tinha um

partigiano na brigada que tinha escolhido para si um tão difícil que nem ele sabia

ensiná-lo. Os outros, cansados de ter que chamá-lo sempre você e coiso, convocaram

conselho de equipe e o batizaram Stefano. Ele não aceita, propõe chamá-lo ao menos

Fredrich; os outros insistem por Stefano. Ele faz relatório ao Comando Pelotão. Este,

tudo bem, reprova, porque Fredrich soa alemão. Ele abandona todo mundo e passa pros

Garibaldi.

Fora explode barulho, Carmencita aparece correndo segurando os seios. Grita que está

chegando a República da estrada de Valdivilla. Cuspimos os cigarros. O Comandante

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abraça o porta carregador e pergunta quanta. Carmencita diz que é um imenso caminhão

cheio. O Comandante empunha o seu Mas francês, e a mim faz sinal para pegar aquela

espingarda que está no chão da dispensa. Fora correndo, Carmencita atrás. Subimos

voando por onde desci. Pergunto ao Comandante pela Browning, que com a Browning

eu queimo aquele caminhão. O Comandante bufa que tá longe três quilômetros, sob a

responsabilidade do partigiano Pinco. Estamos na clareira da estrada, Carmencita

sempre atrás. Há uns trinta partigiani pelo chão, os olhos e as armas virados para a

estrada de Valdivilla, ali na frente, sinuosa em sobe e desce. Sozinho o Partigiano

Vento dá uma de esperto e olha alto de pernas abertas, todo bem descoberto. Passamos

correndo atrás dele, e o Comandante lhe atira um tapa que o deixa sentado. Nos

abaixamos entre um Breda e um Bren. O Comandante blasfema que como sempre, na

hora da confusão, não tem os pelotões nas mãos, que trinta são pouquinhos, mas tanto

faz. Nas casas perto da balança pública as pessoas batem com força portas e fecham

persianas. Tem um menino, fora, que brinca com a areia. Uma mulher se joga de uma

porta, o agarra por um braço e o tira voando dali, como um passarinho por uma asa. Eu

olho o céu, de um tão bonito e pacífico azul, e pergunto e digo por que tinha que ter

espingardeadas, hoje de manhã. O cara do Bren à direita me avisa com uma leve

cotovelada, e eu cotovelo o Comandante. Eis o Caminhão, de fato grande, que pega a

rampa que de S. Ambrogio leva a Mango, depois de três curvas. Tá lotado de gente

armada e sacudida; um metralhador na cabine, muito visível. Desaparece na primeira

curva.

O Comandante se apoia sobre as mãos e sussurra à esquerda e à direita: – Atira o Bren e

atira o Breda na última curva. E mosqueteria. Sten e metralhadora por último, quando

eu disser. Quem atirar ao acaso, eu atiro primeiro nele que nos fascistas. – Vira meia

cabeça e percebe Carmencita alinhada, com o peito que pulsa como aquele de um

pombo: lhe dá um grito que aquela evapora.

O caminhão reaparece. São mesmo tantos, em cima. Que tipo de metralhadora é aquela

na cabine? A segunda curva o engole.

Da esquerda Riccio pergunta pra que lado fugimos, se tiver que fugir. O zumbido cresce,

mas aquele caminhão quando é que aparece? Agora tem bem que sair, temos o motor

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nos tímpanos. Os dois do Bren e do Breda apertaram o olho esquerdo e fazem cocegas

no gatilho. Faço uma careta, um partigiano deve ter deixado sair ar do de trás.

O caminhão aparece, mas eis que para de repente e com um longo rangido. – Parados! –

digo, e ao Comandante: – Brigadeiro, tem certeza que aquela é República?

Só a cabine e um metro de chassi emergem das cássias.

Responde: certeza não, mas a esta altura queria que fosse, – e um pouco mais alto: –

Ninguém atira!

E, lá embaixo, o homem na metralhadora balança os braços fazendo sinais, depois se

abaixa recebendo alguma coisa, se levanta novamente e banderola um trapo vermelho.

– Garibaldinos, juro – digo imediatamente.

Vento, que é o último à esquerda e o que está mais perto deles, avisa que pra ele são

Estrelas Vermelhas.

Agora dois, três, depois mais homens sobem correndo em direção à balança pública,

agitando mãos, caixinhas e carregadores, e gritando ei! oi!

Nós todos nos levantamos, e Vento corre primeiro lá pra baixo pra balança. O caminhão

começou a andar, sobe prontamente e para na balança. Pulam pra fora, e são mais de

quarenta, com aqueles cinco ou seis que ficam agarrados pelo lado de fora e aquele que

parou pra tirar o pó daquela tal metralhadora.

Encontramo-os na balança. Estão muito mal vestidos, com uma profusão de estrelas

vermelhas na gola e na boina, mas têm armas de infinita variedade. Da cabine desmonta

um partigiano pelos quarenta, cara feia, pistola pesada e duas estrelas de ouro no casaco

de couro. Vem na nossa direção afastando os companheiros, saúda de punhos fechados:

Comissário de guerra Némega, – diz. – Como se não bastassem os nazi-fascistas, einh?

O nosso Comandante diz: – Pois é.

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Movo um passo e com o dedão mostro aquela metralhadora.

O Comissário diz: – Skoda, – e depois imediatamente olha com compaixão o nosso

Bren.

As Estrelas Vermelhas riem de chacota.

Rimos nós também.

Diz o Comissário: – Tiveram sorte hoje, vocês badoglianos.

O Comandante: – Tiveram sorte vocês, você quer dizer.

Aqui por pouco não saiu um desafio, e nós voltamos a tomar posição atrás dos plátanos,

e o caminhão refaz a subida, acendemos um pouco de fogo e algum morto, e assim fica

claro quem dos dois teve sorte, hoje.

Depois o Comandante diz: – Onde diabos estão indo?

O Comissário diz: – Transferência – e abana uma mão suja em direção à alta Langa. Um

garibaldino dos mais jovens aparece a nos dizer que vão a Cissone. O cara à sua direita

lhe enfia um cotovelo entre as costelas que o faz gemer.

O Comissário diz: – Sempre curiosos, vocês badoglianos.

E eu: – Sempre misteriosos, vocês rossi.

O Comissário Némega grita: – Subam, companheiros! Partimos! – e os caras atacam o

caminhão, ali se içam em massa dando-se chutes na cara e com os canos das armas, e

agora estão todos em cima. Motor, mas o caminhão não se desgruda do chão. Estalos e

estrondos que o capô parece explodir, depois da cabine o Comissário pede pra gente dar

uma mão. Riccio lhe diz que antes disso preferimos morrer. Blasfema o Comissário e

faz sinal a uma dúzia dos seus para desmontar. Enquanto os caras se balançam na lateral,

o caminhão consegue. O Comissário ri. Antes de desaparecer pela descida, começamos

a cantar:

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É a Guarda Rossa

Que marcha para a reconquista

E levará pra fossa

A escrava Humanidade!

E um disparo pelos ares. O Comandante e eu dizemos Cristo! juntos. Seguro pelo

pescoço o partigiano Vasco que quer correr lá em cima e atirar nos pneus do caminhão.

No campanário são quinze pra meio-dia, e todos pegamos à direita pra descer ao

refeitório na Fazenda Chivi. Na janela do primeiro andar está a partigiana francesinha

Esthèr de camisola vermelha: se penteia e mostra os belos pelos dos suvacos. Riccio diz

que a camisola vermelha deu de presente pra ela o partigiano Villa que tinha

encomendado em Alba, diretamente do corpo da mulher de um hierarca254

. Miguel vira

o mosquete a tira-colo, exclama: – Droga! – e vai escalar a parede. A francesinha não se

decompõe nem se retira, mas quando Miguel iguala a cabeça ao peitoril, Villa aparece a

meio busto, lhe pressiona uma mão sobre o nariz e o faz desabar lá em baixo.

Entramos: lá estão mesas de cavalete, bancos, um garrafão de vinho no vazio da

chaminé, e cheiro de carne dourada em óleo de amêndoas. Tem um jovem ignorado em

um impermeável claro estreito por um cinto de oficil e belos coturnos novos com

elásticos coloridos. O partigiano Razzo que se encaminha para encher garrafões de

vinho diz ao Comandante que aquele alí veio hoje de manhã se alistar nos lenços azzurri.

Como o Comandante se aproxima dele, ele se coloca em posição de sentido. Terrível

passa e o chama de puxa-saco.

Sentamos pra comer bistecas e pra roubar pão fresco uns aos outros. Quem não viu

partigiani comer, nunca viu nada.

O recruta tá lá sempre no seu canto, de cabeça baixa olhando as unhas. Eu acho que

aquele garoto quer chorar. Estalo os dedos e ele vem. Afasto e ele senta. Porque me

254

Gerarca: nome dado aos dirigentes do partido fascista italiano.

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roçou um ombro, me diz desculpa. O deixo trinchar a bisteca com uma sua faquinha,

depois pergunto: – Estudante?

– Terceiro ano de contabilidade.

Eu acabei pão e bisteca e acendo o último cigarro do taberneiro. Ele para de mastigar e

olhando pra frente diz baixo: – O que devo fazer?

Digo sem olhar pra ele: – Tentar fazer aquilo que talvez seja o teu dever.

E ele: – Talvez? – e depois, – Estudante?

– Formando em Letras em Turim.

Um pouco depois pergunta se pode se fazer chamar Raoul, agora. Respondo que Raoul

é um grande nome de batalha.

Da cozinha vem o cozinheiro Ferdinando dizendo ao Comandante que esta noite faz o

cozido. Já que está aqui, pergunta ao Comandante o que deve responder aos quatro ou

cinco que toda manhã pro café pretendem salada de carne. O Comandante grita que

estes são partigiani da barriga e ordena que dê nomes. Ferdinando olha estrábico, diz

que não se lembra, depois desce no quintal e grita para Esthèr largar Villa e descer para

lavar os pratos.

Volto pra cidade, a passeio. Duas vezes me virei pra ver se o Raul tava atrás de mim

com nos olhos suplício por companhia. Mas não o vi e tanto melhor.

Chego no pátio da Creche, onde bate um pouco de sol, e na frente, ondas de colinas. O

tempo de parar e da esquerda um chamado discretamente: – Partigiano! – Oh, é a freira

da creche. Vou, e vendo-a de perto não consigo adivinhar se tem vinte ou quarenta, de

anos. Mas é fresca a voz que me diz: – Você já recebeu o Coração de Jesus?

Digo que não, irmã.

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– Sabe, aqui não tem partigiano que não o tenha. Porque tem a virtude de parar as

balas. – Me faz sinal para esperar, que volta logo e com a surpresa. Olho em volta se

vejo algum partigiano que me informe sobre esse Coração de Jesus. Agora a freira

voltou, me estende um envelopinho de tela. O direito é todo bordado com no meio um

coração vermelho muito macio com três gotas de sangue e uma coroa de espinhos. No

verso está escrito em roxo: Para! O Coração de Jesus está comigo. Observo, palpo,

depois aceno com a cabeça que entendi e digo obrigado. Mas a freira me convida a

procurar no envelopinho. Tiro um panfleto levemente impresso: Prece e Convenção

com o Coração Sagradíssimo de Jesus. Longa prece, mas a murmuro até o fim, depois

digo que é muito bonita e eficaz. Enfio a mão na carteira no bolso da calça pra tirar ela

de lá. Imediatamente ela diz que não alí, o seu lugar é sobre o coração, onde se espera

que cheguem os golpes em guerra. Enquanto guardo o envelopinho no bolso interno do

casaco, penso no partigiano Bomba que recentemente recebeu uma fuzilada exatamente

pros lados da carteira. A freira fica olhando, com um sorriso e as mãos cruzadas.

Nada mais pelo resto da tarde. No escurecer parto para a Fazenda da Langa. Antes me

compro um par de meias e assim troco a nota de mil que me deu minha mãe, e dois

maços de Nazionali no mercado negro. Desco pela estrada dos Battuti, escuto a Voz de

Londres bater na porta ao aparelho do senhor Ilario. Fico escutando: em resumo diz que

são elas para desalojar os alemães da Irpinia e que o general Alexander pensa sempre

em nós partigiani. Não esperava nada de diferente e desco. À margem de Mango um

civil me diz que esta noite se levanta um vento de fazer cair por terra, quero apostar?

Desde que não se levante antes de eu chegar em casa ou quase, se não na Langa eu

chego depois de meia-noite, louco de ar e assobios. Antes da Annunziata olho à direita:

nas terras dos Lovisi, onde colocamos as sentinelas para o Norte, tem um impermeável

claro a spallarm uma pértica255

que deve ser uma 91. Provável que não venham rendê-lo

até amanhã de manhã, e que ele fique a noite toda. No fundo, nem ganha nem perde

nada, porque a primeira noite entre os partigiani de fato não se fecha olho. Acreditem,

fica-se acordado pensando que aquele mudar de lugar para dormir muda tantas coisas:

se agora te pegam dormindo alí, te tiram a pele ali mesmo. E você escuta no escuro os

outros roncarem, e pensa que devem ser todos veteranos do pargianato, pra poderem

255

Vara com que se mediam as terras distribuídas aos soldados romanos.

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dormir assim. Mas na manhã seguinte você vem a saber que a maioria é de pouco mais

velho que você. E isso te conforta para as próximas noites.

Estou na bifurcação de S. Donato, de onde se vê Fazenda da Langa, tão alta e solitária

que por trás não há nada além de céu. Parece que pode-se alcançá-la em cinco minutos,

mas não me engana. Vou chegar lá que o céu vai ter mudado de cor, e na cozinha o

candeeiro aceso que você vê de muito longe e da cumeeira a fumaça que brota de baixo

da panela do molho de osso de porco que certamente vou encontrar essa noite, com a

polenta e doze nozes.

Cap. III

Quem não conhece, quem nunca esteve na Fazenda da Langa quer dizer que destas

Langhe ele não pode falar. É o feudo de um renomado comerciante da minha cidade, já

camarada do meu pai. Quando acontece de ele falar dela com os seus amigos da cidade,

eles de instinto encolhem os ombros porque Fazenda da Langa trás uma ideia de

tramontana e solidão. Se é destino que eu retorne civil e faça honesto dinheiro, quero

me apresentar àquele comerciante ou aos seu herdeiros e pedir a eles que me vendam.

Uma vez minha, vou passar ali três meses de cada ano que me restar. Desde que eu case

com aquela tal garota, se não não se faz nada disso. Se não, vou vir sozinho, a pé, uma

vez por ano, um dia qualquer de inverno, e vou tentar sentir novamente aquele frio, e

fazer praticamente as coisas e os passos e os pensamentos que devo ter feito num dia

igual do inverno 1944-1945. E esperamos que os meeiros que então lá vão estar me

deixem sossegado, não venham atrás de mim com muita suspeita nem pretendam

explicações demais. Todo inverno eu vou vir aqui, como para um aniversário, até

quando eu vou ser tão velho e cansado a ponto de duvidar por um momento que um dia

por estes lados eu tenha tanto caminhado e combatido. E isto vai me avisar que no

próximo inverno eu não vou poder subir novamente para tocar os muros da velha Langa

e reconhecer o filhote que existiu da loba.

Logo atrás da Fazenda da Langa corre a estrada que da bifurcação Manera sobe e desce

até Mango, a estrada que eu fiz ontem de noite Mango acima. Pouco mais de uma

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vereda, mas é a grande linha interna do nosso fronte das Langhe Orientais, o caminho

que nós batemos pé ante pé. Quem se vangloria de ter sido partigiano nessas Langhe e

diante da pergunta sai dizendo que esta estrada ele nunca fez ou até só que não lembra

dela, eu lhe dou um murro na cara. Aliás não, lhe pergunto simplesmente se partigiano

ele foi no Serviço do Trabalho ou escondido em algum seminário. Porque até os

republicanos conhecem esta estrada. Principalmente os Rao e os S. Marco. Culpa nossa

que nem sempre os impedíamos de chegar aqui em cima.

Fazenda da Langa consiste em um estábulo, uma casa grande e uma varanda que

fecham por três lados o vastíssimo pátio. O quarto lado seria protegido por um fileira

de árvores de alta colina, mas daqui mesmo assim você vê a planície e os Alpes.

Fazenda da Langa os partigiani a desfrutam desde janeiro de 1944. Na casa grande aloja

o pelotão do turno no bloqueio permanente da bifurcação Manera: nunca mais de trinta

homens. O estábulo serve de parada para uma infinidade: nós azzurri, G.L. do presídio

de Castagnole, garibaldinos que vão e vêm da brigada de Lupo. Aqui sempre teve e tem

de beber e de comer, com tanto consumo que a fazenda teria ido a falência em um mês

se a meeira não tivesse decidido colocar o escote e segurar as contas. Sabe-se que o

nosso Comando Divisão mensalmente acerta a conta. Agora tem tanto trabalho de casa

que a meeira fez subir de Alba uma sua sobrinha cozinheira. Sabe-se lá que

pelotãozinho aloja na casa grande. Mas no rústico, com os meeiros, devem estar os

meus dois amigos de Alba, os partigiani Piccàrd e Cervellino, irmãos. Por eles

renunciei à Browning e ao lugar privilegiado na brigada de Mango. Por eles e por

Fazenda da Langa e pela loba que já há duas horas me cheira os calcanhares e depois

me olha com olhos apaixonados.

No pátio o filho dos meeiros, onze anos, me encontra e me rouba um cigarro. A mãe

chega e diz que o pequeno fuma, einh? e que todos eles sentiram a minha falta. Devo

beijá-la nas duas bochechas. Cervellino e Piccàrd me esperavam dia após dia: agora

estão em Manera buscando carne e pão da carga partigiana. Vão voltar. Entro na casa

grande seguindo-a, me mostra as três camas quebradas, o vaso obstruído por vísceras de

galinha e de coelho, as cadeiras aleijadas, uma prateleira vazia porque os livros e as

revistas eles as levavam para fora para suas necessidades. Pergunto quem está de guarda

na fazenda. Diz que são os partigiani do pelotão de Baffo, bando de sujismundos e

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vândalos. Mas espera que durante a semana passe na Langa o Comando de Divisão, e

quer ver no tronco pelo menos uma dúzia. Saindo vejo abaixo da varanda a nossa 1500

vermelha. Cervellino e Piccàrd e eu a tínhamos encontrado abandonada na estrada de

Moretta e a fizemos escalar para a Langa servindo-lhe aguarrás no reservatório. Esses

carros partigiani funcionam a gasolina, a benzol, a álcool, a solvente, a licores de luxo e

às vezes, parece, a ar. No final da volta pelo quintal a meeira me apresenta sua sobrinha

ajudante. É muito jovem, mas gorda disforme. E suja. Não vou comer de bom grado

aquilo que vir ou souber cozinhado por ela.

Saio com a loba pra ver se aqueles dois aparecem na curva de Montemarino. À direita

reconheço a velha posição que vigia a estrada de Mompiano e Camo. Nunca a usaram, e

agora vivem lá.

Vem vindo alto um tocar de sinos de Benevello e Diano. Na colina da frente vejo sair

jorrando da igreja de Benevello o povo das Langhe vestido de preto. Oh, sim, domingo.

Sinto vontade de me odiar se repenso como, quando civil, eu me deixava entediar por

aqueles domingos na cidade, tanto que por ironia eu gritava a mim mesmo e aos amigos

que encontrava pelo entorpecido caminho: – Mas chega dessa vida de contínuos

prazeres! – Uma lembrança ao meu amor: deve ter ido à missa e depois voltado pra casa

correndo, para não receber elogios de algum oficial republicano256

na porta de algum

café. Ela é da nossa ideia. Acredito aliás que seja apaixonada por um partigiano na

minha mesma Divisão. Vai passar a tarde lendo: sabe-se lá que romance, sabe-se lá se

não queira reler um dos tantos que lhe dei de presente eu sem nunca uma dedicatória.

Piccàrd e Cervellino voltaram. A meeira recebe a sacola das compras de comida e sai

dizendo que da próxima se façam dar mais carne e menos osso, e que naquela carga

deve haver alguém que dá uma boa mordida. Cervellino tinha pegado para si meu

cinturão, mas me devolve sem dar um pio e eu o aperto devagar sobre a barriga, alla

cowboy. Também hoje Piccàrd está com a cabeça mascarada por aquele capacete de

voador estratosférico pelo qual desde o início nós o chamamos Piccàrd.

256

Fim da Caderneta I.

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181

Almoçamos com os meeiros. Colocaram do meu lado a sobrinha, que infelizmente

demonstra me apreciar. Perto da metade do almoço entra o partigiano Meo pedindo

talheres, mas sabemos bem que foi mandado por Baffo pra ver se nós se come257

mais

fino que eles.

Depois nós três saimos do pátio em direção à colina, pra fumar, para que os caras do

Baffo não venham esvaziar nossas carteiras. Fumamos em paz, à margem do castanhal.

Cervellino fica preto no rosto, preto como um chapéu de padre, e diz que ele não se vê

gastando na Langa esta tarde de festa. Diz Piccàrd que poderíamos ligar o motor e

averiguar alguma cidadezinha da Langa. Digo que é uma grande ideia, mas e o caldo?

Piccàrd confessa ter três garrafões de verdadeira gasolina. Digo que poderíamos descer

até S. Stefano, e quem sabe uma chegada até Canelli. Piccàrd diz que tudo bem, desde

que hoje à noite não precise se arrepender por aquela última gasolina. Cervellino diz só

que ele dirige.

Piccàrd vai ao estábulo para a gasolina, enquanto eu e Cervellino tiramos o carro da

varanda. Estavam no pátio três ou quatro homens de Baffo designados e fixos nas

pernas largas da sobrinha da meeira que sentava pra descascar batatas já pra hoje à noite.

Agora deixam a visão e vêm perguntar onde vamos com o carro. Explico que vamos em

missão até quase as portas de Asti. Patrulhamento, mais precisamente. E que na volta

passamos no Comando Divisão para relatar. Nesse meio tempo volta Piccàrd com um

garrafão em cada mão e o terceiro embaixo da axila. Enquanto Cervellino pega,

destampa e derrama, chega do mesmo jeito Baffo pedindo para que lhe deixemos três

dedos no fundo de cada garrafão, que com isso ele consegue fazer se movimentar a

Aprilia do pelotão, Piccàrd diz que sente muito, já não temos pra ida e volta. E Baffo

vai embora, venenoso, gritando que nós vamos ver putas, patrulhamento uma ova!

Cervellino senta imediatamente no volante, enquanto Piccàrd faz subir no banco traseiro

a loba, que queremos exibir pelas ruas de S. Stefano e Canelli. Como todo carro

partigiano, a nossa mil e quinhentos funciona a empurrógeno, quer dizer que se você

não empurra por um bom tempo ela nem sonha em dar partida. Eu e Piccàrd

257

Para manter o efeito de registro coloquial do original ―noi si mangia‖ (primeira pessoa do plural +

pronome e verbo, com o ―si‖ impessoal).

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empurramos e empurramos, e perto de Monternarino finalmente colocamos em

movimento. Eu pulo no carro ao lado da comportadíssima loba: já Piccàrd pula

esgarranchado no paralama e fica ali se segurando num farol. Aquele é um lugar

desconfortável mas glorioso no turismo partigiano. Quem tá lá faz sucesso ele e aqueles

que estão dentro, porque faz acreditar a quem olha que o homem em cima do paralama é

o homen de confiança de algum grande comandante que viaja a bordo. E as moças das

cidadezinhas por onde você passa não vêm nada além de você e te admiram todo inteiro.

Cervellino dirige como pode e sabe. Antes de algumas curvas pela feia e longa descida à

Ponte Belbo estamos todos um pouco preocupados, menos a loba. Cervellino

desemboca algumas curvas em ângulo reto que eu espero ver Piccàrd desaparecer do

paralama e aterrar em cima da pedra. Cervellino um pouco não sabe, um pouco faz de

propósito e um pouco é a direção que é bailarina. Piccàrd antes se vira e acena a

Cervellino se ele está maluco. Depois, já que o volante não melhora, desnuda a pistola e

mostra pra ele por trás do parabrisa. Cervellino começa a pilotar mais sério. Na ponte de

Cossano o guarda se precipita para levantar a cancela do bloqueio, depois se esticam

para nos comprimentar alla Régio Exército. Exatamente por causa do Piccàrd que está

no paralama, acho. Depois de onze paradas, devidas na opinião de Cervellino às velas

sujas e, na minha e de Piccàrd, ao fato de que este pobre carro fez de autoescola a

inúmeros partigiani, chegamos às margens da civil cidadezinha de S. Stefano. Aqui

Piccàrd faz sinal para parar, pula pro chão, ajeita da cintura o uniforme, vem à porta nos

dizer para fazermos a nossa parte para uma bela entrada, acomoda a loba de modo que a

sua orgulhosa cabeça se enquadre bem na janelinha, depois volta pro paralama. Mas,

que sejam de novo as velas, o motor não liga de novo e depois de quinze minutos de

chichisbeamentos e de impropérios ao ambicioso Piccàrd, empurra empurra, colocamos

o carro pra dentro da lotadíssima praça de S. Stefano. Alguns partigiani fazem cara feia,

civis nos olham com campaixão, alguém até nos dá uma mãozinha.

A praça tá toda colorida de partigiani: Stelle Rosse principalmente, porque S. Stefano é

destacamento garibaldino. Partigiani no café, partigiani a passeio, partigiani dão uma

de espertos com as armas. E poucos jovens civis, mas não totalmente à vontade, um

pouco humildes, desabitados de moças. Em compensação são bastante elegantes e muito

limpos.

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Nós três começamos a passear, ouvindo cedo elogiosos comentários que porém diziam

respeito à loba que nos precede toda elástica e com as orelhas em pé. Vemos uma

multidão de moças, a maioria bonita, orgulho da cidade e alegria dos forasteiros.

Aquelas não acompanhadas se contam nos dedos, todas as outras administram em torno

de si três ou quatro cada uma.

Cumprimentamos o partigiano Catone, que é dos nossos e trás largo e estendido o seu

lenço azzurro em meio a todo aquele rosso. Dá o braço a uma garotinha que é talvez a

mais feia da praça. E veste aquelas suas eternas calças que têm uma história. Em agosto,

em uma surpresa republicana em Benevello, Catone foi o único a conseguir escapar.

Mas atiraram atrás dele por todo o vale. E um disparo lhe recortou as calças em duas em

dois ou três pontos sem tocar as pernas. Aquelas calças desde então não trocou mais,

nem mandou remendar, mas leva as calças pra passear pelas Langhe e mostra bem de

perto às moças. Hoje pelos rasgos dá pra ver as cuecas de uma inacreditável cor de

vinho.

Estamos na nossa segunda volta pela praça. Cervellino observa atentamente todas a

moças, diz que não tem muito o que fazer, e aquele pouco foi monopolizado pelos

garibaldinos do destacamento. Piccàrd diz que então ele pega o carro e vai direto pra

Canelli pro cassino, e que fazemos bem em ir todos com ele que é o mais velho.

Cervellino topa, eu não. Não param para me convencer e vão, deixando-me a loba. Vão

voltar em poucas horas e em todo caso me dão três buzinadas. Cervellino me pediu

primeiro cem liras emprestadas, porque, se a mercadoria é boa, ele sobre pro quarto.

Acabaram de sair que já eu me arrependo, porque me vejo só em meio a essa gente. A

loba me chega mais perto, caminhando sinto seu focinho se esfregando sempre nas

minhas pernas. Pra cima e pra baixo pela praça, caminho distraído, me deixando

esbarrar, olhando pra baixo. Escuto dizer com frequência que belo animal, mas não me

esforço em ver quem está dizendo. Escuto depois dizer: – Magnífico animal – e dessa

vez paro porque olhando ainda pra baixo vejo para além de onde a loba está, de saltos

unidos, o mais magnífico par de pernas jamais perfilado aos meus atentos olhos.

A garota, sozinha, vinte anos, com todo o corpo no estilo das pernas e um rosto que vou

chamar hawaiano, pergunta se a cadela é minha. Por agora sim, digo, e que é a única

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fêmea que no presente me ame de verdade. Faz cócegas nas orelhas dela, a penteia no

dorso, pega nas patas dela. E a loba, caso estranho, deixa ela fazer.

Pergunto porque não passeamos.

E passeamos, eu e a garota perfumada. Decido lhe perguntar se é estudante. Me

responde que está no primeiro ano de química industrial e eu admiro.

– Como é que uma figura da tua classe não tem o chichisbéu, hoje domingo?

Sei que falo como cafona, mas como partigiano se desaprende o melhor.

– Eu não tenho amigos. E talvez nem mesmo amigas. Todos dizem que sou soberba.

– Oh. Será possível que nenhum partigiano a tenha nunca abordado?

– Sim, me parou e me acompanhou uma vez o partigiano Bolide que comanda o

destacamento aqui. Mas eu o desiludi e ele se desencorajou.

– E nenhum outro...?

– Se não teve brecha nem o grande chefe Bolide, que esperanças restam aos gregários?

– Pois é, também acho que os gregários tenham pensado assim. E... nada de civis?

– Sou eu quem não os quero ver. Não é decente ser civil, nesses tempos. Os jovens, se

entende. Ou daqui ou de lá, mas com tantas armas e riscos. Não lhe parece?

– Não lhe parece que me parece?

Ela não sei, mas eu estou tão a vontade. É uma coisa esplêndida e simples.

Depois me diz: – Sabe que no começo eu também queria ir pra colina com vocês

partigiani?

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Penso instantaneamente em Carmencita e companheiras, a ideia me aterroriza e eu

demonstro. Sorri, me diz que sabe, mas que no começo tudo parecia alinhado para ser

diferente e tão mais bonito. Como eu me chamo ou como me faço chamar?

– Meu nome é Beppe. Tanto em casa como aqui em cima. E a senhorita?

– Anna Maria. – Olha em frente e me diz que aquela garota que eu vejo lá é uma sua

quase amiga e que está esperando exatamente ela. Pergunto se assim ela me deixa, e não

faço nada para lhe impedir de ver que eu sofro com isso. Não me responde, mas vai até

a garota e se falam. A garota me olha rapidamente por cima do ombro de Anna Maria.

Mas eu não lhe dou bola, me coloco a olhar só as pernas de Anna Maria, quero estudá-

las até decorar. Ela volta e aquela garota se mistura entre as pessoas. Estou quase feliz e

começamos uma outra volta na praça.

– Aquela garota o acha distinto, sabe?

– Eu? Que hoje de manhã nem tomei banho. Mas tinha que me ver como civil. Como

civil, em um domingo como este, me visto de vicunha, camisa branca, gravata prata e

vou dançar no Circolo Sociale.

– Tem sempre gente bonita? Noblesse? Vai lá alguma garota em quem o senhor se vê

obrigado a repensar aqui em cima e nesse estado?

Não lhe digo que sim que tem, mas agora me parece um pouco distante e pela primeira

vez sinto a necessidade de traí-la.

Retumba uma pistoletada. Anna Maria quase voa no meu colo e eu farejo seus cabelos.

A loba se empenou. Mas as pessoas se dispersam, alguém grita e foge. Foi que a um

partigiano que ostentava a pistola escapou um tiro, fez a barba à bochecha de um outro

partigiano e acabou contra a insígnia do hotel. Três ou quatro partigiani dos seus

pularam em cima dele e agora o estão esmurrando.

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Agora sim passeio melhor, porque depois deste fato as pessoas rarearam. Podemos nos

olhar nos olhos por bastante tempo, sem temer esbarrar nas pessoas e fazer um papelão.

Eu me importo só dela, previnindo papelões.

Inesperadamente me diz: – Porque não nos tratamos por Beppe e por Anna Maria?

Respondo que já era hora, Anna Maria.

Cantarolo polvere di stelle, ela me tira a melodia da boca. Canta muito melhor que eu,

faz as variações, ao modo de Natalino Otto.

Paro para comprar uma dúzia de caquis, e os comemos passeando, mesmo que eles

grudem um pouco nossos dentes. Depois me lembro que ainda não fumei, me assombro

do fato, saco cigarros e ofereço, mas ela não quer mais do que um pra fumar em casa,

hoje à noite. Vai pensar em mim por todo o tempo que durar o cigarro.

Consigo fazer com que ela pegue dois.

– Você onde está, Beppe?

– Na Fazenda da Langa.

– Mas é um lugar horrível!

– Pra mim é belíssimo, Anna Maria.

– É, você é bem o tipo de achar bonito aquilo que os outros acham horrível.

– Sim, é importante aquilo que os outros descartam e vice-versa.

Olha pra mim demoradamente, depois me diz: – Você sente frio, Beppe?

Digo que agora não, definitivamente.

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– Quando está na colina, de manhã e de noite?

– Bom, lá em cima é tudo outra coisa. A Langa fica exposta aos quatro ventos. E depois

esse vai ser un iverno de cão. Mas por que, Anna Maria?

– Eu te faço um par de luvas, einh, Beppe? – e pega minha mão, faz encaixar na sua e

calcula quanto os meus superam os seus dedos: – E também um cachecol. Um cachecol

todo branco, com um coração vermelho nas duas pontas e uma espada azzurra.

Digo gravemente: – Anna Maria... – mas aparece na praça nosso carro vermelho, mas

como é possível ter pressa assim? Três toques de buzina que me deixam indisposto.

Agora devem ter me entrevisto, porque Cervellino guia diretamente sobre nós. Digo

com pressa: Adeus, Anna Maria. Sim, é o carro que me leva novamente lá pra cima.

Mas estamos entendidos que as luvas e o cachecol você me faz e que por isso eu te

quero quase bem.

Precipitam Piccàrd e Cervellino com olhos acesos de admiração, dizendo que são os

meus melhores amigos e estendendo as mãos direitas. Eu não gostaria que apertassem a

mão dela com aquelas deles que sabe-se lá onde estiveram enfiadas até pouco tempo

atrás, mas o que posso fazer?

Depois de um minuto Anna Maria se despede toda formal também comigo. Eu a vejo ir.

Chamo alto a loba, para que ela ouça e se vire uma última vez. Mas ela segue direto em

cima daquelas sua pernas.

Subimos e se parte, Piccàrd dentro com a gente. Piccàrd pergunta se eu a conhecia antes,

se eu tinha encontro marcado. Juro que não. Piccàrd diz sozinho: – Pernas de se

enlouquecer. – Cervellino me entrega a cédula de cem: não gastou, diz, porque a

mercadoria não merecia nada de extra. E Piccàrd: – É um estabelecimento pequeno. Da

Carla, o chamam. Mas tem sempre uma imensidão de partigiani. Você quase nunca

consegue ficar no quarto, porque tem tantos partigiani fora esperando que perdem a

paciência e te atiram na porta. Agora eu conto daquela com quem estive eu...

– Piccàrd, me conta hoje à noite.

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Quero pensar na moça de S. Stefano, penteando a loba no lombo exatamente como ela

fez hoje. Mas está na minha mente também a moça de Alba, com um rosto concentrado

e desconfiado. Anna Maria vai ser importante pra mim, pelo menos durante o tempo

que sou partigiano. Hoje à noite que volto pra Langa, aponto no Baffo e pego briga com

ele de todo jeito. Só porque lembro que hoje gritou que nós íamos ver putas. Não

saberia dizer como isso tenha a ver, mas sinto que tem.

Depois de muito tempo Piccàrd diz com voz de sono: – Agora você vai sempre a S.

Stefano, diz aí?

Cap. IV

De Castino chegou em S. Donato o Comandante da nossa Divisão. Vai apresentar

grande relatório na pensão da cidade a todos os oficiais partigiani que têm homens pra

cá de Valle Belbo. A mim não deveria interessar porque sou partigiano simples. Mas

ontem à noite aparece na Langa o partigiano Riccio, como mensageiro do Comando

Brigada de Mango, e me diz que deverei comparecer eu também e que logo se começará

a falar de mim como do tenente Beppe. Diz depois que o pelotão Baffo deixa amanhã a

Langa para mudar pra Treiso, e a meeira diz que Deus existe.

Assim cá estou eu hoje de manhã no sagrado de S. Donato, esperando com tantos outros

que o Comandante saia ele ou faça entrar a nós na pensão. Na porta estacionam oito ou

dez partigiani bem vestidos, bem armados, bem pançudos e prepotentes. São os caras

da Equipe Comando Divisão, os guarda-costas, nós os chamamos os armigeri. Estudo

um por um, e se eu fosse o Comandante, as costas eu guardaria sozinho.

Quase todos calçam botas alemãs e usam o cinturão do Gott mit uns, mas não os

conquistaram eles. Aquela é presa de pobres partigiani destacados na casa do diabo: os

mandaram em homenagem ao Comandante de Divisão, e naturalmente acabaram

pegando eles. E como provavam, já inventavam a história de como os tinham

conquistado, pra contar às garotas e àqueles partigiani que não os conhecem. Porque os

partigiani novatos ou que vêm de longe, como os veem, imediatamente os estimam

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padreterno em fato de coragem e de manejo das armas, mas fora o chefe deles Moretto

e um ou dois outros, a verdade é que os armigeri são todos incompetentes. De Moretto

não falo, Moretto é de fato quase um padreterno naquele campo.

É exatamente Moretto aquele que chega na soleira, olhando em volta com olho de

menino homicida e nos convida todos pra dentro. Entro por último e quando me

apresento naquela que o dono da pensão chama a sala, esta já regurgita de partigiani

com patente que estão sufocando o Comandante de Divisão. Consigo ver que sobre a

mesa está dobrado um mapa das Langhe, e muita gente em volta fala alto de setores e

estradas de entrincheiramento, outra cala sempre e sempre olha o mapa, enrugados

como muitos napoleões. Os outros ou confrontam as armas pessoais ou contam os

últimos fatos de armas, e um diz que ele não tem medo de nenhuma arma menos do

morteiro. Em um canto, sozinha, vestida de partigiana, fumando, intocável, uma

gatinha de moça: a amante do Comandante, Olga, se sabe.

Agora o ajudante sênior da Divisão se esgoela para fazer o resumo da situação militar: –

Em Alba estão eles. E são Rap. Em Canelli eles. S. Marco. Em Bistagno eles. Ainda S.

Marco. Em Ceva eles com a S.S. Na primeira caçada grande eles vão rir e nós vamos

chorar. E esta caçada, saibam disso, está no ar. – Me entedio, vou sem objetivo e uma

porta que dá em um quartinho. No quartinho um partigiano sentado se vira pra me olhar

e assim descubro um oficial em uniforme cinzaverde, sentado também, que mantém o

rosto entre as mãos e tem aliança no anelar. Interrogo com os olhos o partigiano, e ele

coloca a mão atrás das costas e me faz polegar invertido. Chamam meu nome da sala, a

própria voz do Comandante.

O Comandante da Divisão era oficial da marinha, tem um belo físico, os cabelos longos

fazendo-lhe de lã no pescoço, parece que vai deixar crescer também a barba, um

uniforme complicado e de efeito, esplêndidas armas e uma fragilidade por mulheres e

motores. Parece capaz de cometer muitos erros, mas de fazê-los com uma certa

elegância.

Diz: – Você é o Beppe de Alba. Agora está na Langa, mas o Comandante da Brigada de

Mango me diz que lá você é desperdiçado. É verdade que você fala inglês?

Respondo que sim, sei me virar.

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– Então em pouco tempo você vai me ser útil. Daqui a pouco os ingleses nos fazem os

chamados lançamentos: armas e munições, fardas e medicamentos. Mas antes de tudo

isso vão nos lançar alguns oficiais. Então você passa a ser o oficial de ligação entre o

meu Comando e estes oficiais ingleses.

Digo que por agora está bem, e algo mais?

– O que você era no Exército?

– Aluno Oficial de infantaria.

Presenteia-me com uma carteira de Serraglio. Quero saber daquele republicano no

quartinho. Diz que é um tenente da Littorio, o pegaram em Val di Spigno os homens de

Binda, e que vai ser fuzilado durante o dia. Vira-se, vai até Franco, o pálido comandante

do pelotão destruidores, meu amigo, e lhe diz que tem uma pontezinha para se explodir.

Franco diz que ele de pontezinhas já explodiu trinta e seis, que está de s... cheio disso,

mas que vai explodir só mais essa e depois descansa.

Eu saio, subo em direção à igreja, no sol de San Martino, Vejo lá em baixo a bela cidade

de S. Stefano, e a sua praça vazia e cinza, grande demais para os dias de semana. Sabe-

se lá se Anna Maria ainda se lembra, se já começou aquele trabalho de lã?

Da soleira da igreja o pároco me chama, que acabou de varrer a sua igreja. Gordo como

um porco, cabeça quadrada, ovelha negra de todo o clero diocesano, mas os seus

paroquianos o adoram, e um pouco também nós que o chamamos Don Bestia. Desce até

mim, deixada a vassoura em pé contra a grade da igreja. Diz que se por acaso eu for

requisitar tabaco de nariz, me lembre dele, e depois que vem um pouco passear comigo.

Assim chegamos na escola e paramos na janela olhando pra dentro. Há cerca de vinte

selvagens alunos e a professorinha, tão feia que até os partigiani a deixam em paz.

Agora os meninos nos viram depois do vidro e olham todos na nossa direção e nos

apontam às meninas nos primeiros bancos. Ouvimos a professorinha levantar a voz,

depois a vemos chegar na porta e pedir ao reverendo e ao partigiano que se afastem ou

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não consegue dar aula. Assim continuamos, mas temos imediatamente de nos virar,

porque da igreja um armigero chama alto o pároco, que precisam dele.

Voltamos, e ao nosso encontro vem aquele republicano em meio a dois armigeri. O

prisioneiro pergunta onde o estão levando, e um dos dois lhe diz que o levam pra

colônia de férias. Enquanto isso o partigiano Caminito os ultrapassa com uma pá no

ombro, esquadra o republicano pra pegar no olho as medidas dele, depois desce em um

prado. O fascista entende, tropeça, mas os dois o sustentam pela axila e pela gola e pela

força o arrastam à igreja. O pároco diz que vai tomar sua confissão, que vai pegar a

estola e já volta. E o prisioneiro se olha em volta vendo onde foi parar aquele partigiano

com a pá, depois quem de nós tem a cara mais humana. Parece achar que é a minha e

faça como fosse falar comigo. Mas o pároco eis que ressurge na soleira, com uma estola

roxa no pescoço, e diz: – Venha, meu filho. – Desce um degrau de braço dado com o

prisioneiro e desaparece com ele na sombra da igreja. Entra depois deles um armigero e

fica de pernas abertas com a metralhadora apontada ao confessionário.

Cerca de uma dúzia de partigiani descem calmos o prado onde Carninito cava o fosso,

suando e cantando que agora o eliminamos. Também civis vão pra lá, mas poucos e

com um andar de contrabandistas. Está lá ainda o Comandante de Divisão e da margem

grita a Caminito para não dar uma de vagabundo e de avarento, que cave um pouco

mais funda. Aquela porca Olga se esfrega no peito dele e lhe pergunta quanto espera a

acender o cigarro dela. Eu não me movo de onde estou. Sobem os dois armigeri Giulio

e Napoleone, armados como ninguém mais em volta. Napoleone diz alto que o último

fuzilamento foi dele Giulio, e que hoje esse gozo é sacrossantamente dele Napoleone.

Giulio não concorda, mas chega nas suas costas Moretto desarmado, que diz que entre

os dois que brigam o terceiro goza e que ele vai resolver e eles dois fazem bem em não

ter nada em contrário.

Agora o armigero na porta vem recuando e depois dele vêm o pároco e o condenado.

Enquanto o pároco mantém os braços altos tirando a estola, o outro o abraça quase

sufocando-o, depois escorrega e lhe aperta os joelhos e grita que o salve ele, reverendo,

que ele tem mulher e filhos e se não acredita agora lhe mostra a foto e que um padre não

pode ser assim pelo amor de Deus e tantas outras coisas berra e chora. O pároco se

contorce em vão, grita ao fascista que não o esprema assim e ao armigero que corra

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para fazê-lo respirar. Mas o armigero está estupidificado e não sabe fazer nada além de

apontar e apontar de novo a arma. Don Bestia luta com o republicano e lhe grita que ele

não tem nada a ver com isso, ele o seu dever já fez, resolveu seus problemas com Deus,

mas com os homens não pode, não tem mais tempo, precisa ir fazer o catecismo das

crianças, e depois a nós altíssimo: – Rapazes, façam o vosso dever! – Moretto voa pra

cima dele, dá um murro na nuca do fascista, o arranca do pároco e corre ao prado

segurando-o pela mão e agarra voando o Sten que Barba lhe estende. Depois Barba se

vira pra me dizer pra descer com ele que de onde estou não vou ver. Digo que vejo

muito bem, movo apenas alguns passos com o pároco que encostou do meu lado e reza

em latim com taquicardia. Olga apoiou a cabeça atrás das costas do Comandante e olha

o fogo do cigarro e pergunta em vão se vai ser um barulho alto. Na margem estão os

partigiani em uma fila só, com as mãos no bolso. Um partigiano pequenininho que o

chamam Topo diz a Barba que afaste um dedo, que ele também possa ver. Mas Barba

não o ouve, e Topo corre rapidíssimo a procurar um outro lugar. Mas eis a descarga, e

Topo se empena como se o disparo tivesse acertado ele e blasfema seco. Aqueles

poucos civis são os primeiros a ir embora dali, dizendo simplesmente que aquele prado

é um pouco perto demais da cidade. Os partigiani ficam vendo Caminito fazendo as

vezes de coveiro. Depois de um momento Barba sobe e me diz que eu não vi que antes

ele mijou nas calças.

Voltamos pra pensão pro almoço. Sentando-se o Comandante diz ao ajudante para

colocar a execução na ata. O armigero Giulio diz que Moretto não deve ter gozado

grande coisa em fuzilar aquele trapo, e que ele se envergonha de ser italiano porque viu

muito poucos italianos morrendo decentemente. A gente lembra ao contrário como

morreu aquele alemão em Scaletta? O Comandante diz que agora é hora de comer e que

ai de quem falar disso de novo. Olga a servem primeiro.

Entra Caminito segurando os sapatos do fuzilado. Diz ao armigero Fodretta que quer

trocar pelo sobretudo. Mas Fodretta não aceita, e Caminito senta na mesa, mantendo

aqueles sapatos no colo. O seu vizinho, o vice chefe da Polícia Secreta de Divisão, tão

distinto, pergunta se aqueles sapatos não podia colocá-los no chão e se antes pelo menos

lavou as mãos. Caminito fica ameaçador, lhe grita nas orelhas que aquele dos sapatos no

chão é um velho truque para melhor roubá-los. Moretto lhe berra para fechar aquela

privada que é a sua boca. Caminito nem escuta, grita que ele era partigiano ancião

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quando ainda esse idiota da Polícia passeava pela cidade e fazia reverência e sorriso às

sentinelas da Muti. O Comandante avisa que mais uma palavra e Caminito acaba no

tronco e fica lá doze horas. Caminito diz que se colocarem no tronco ele, como o

desamarram, ele passa aos Garibaldi. Tem lágrimas nos olhos, esse boi do Caminito, e

eu me surpreendo e os armigeri e Olga riem dele. Caminito se envergonha, coloca entre

os dentes os cadarços e assim segura os sapatos, com as mãos recolhe o prato, os

talheres e o pão e foge lá pra fora. O cara da Polícia pede desculpas ao Comandante, à

senhorita e a quantos estão na mesa.

Entra voando o mensageiro Pucci, treze anos, para diante da cadeira de Moretto e lhe

fala no ouvido, olhando mal quem dos outros se esforça pra ouvir. Depois num pulo

Moretto se levanta, dá a volta na mesa, chega ao Comandante e lhe diz precipitando que

finalmente as provas existem, que o professor primário de Rocchetta é mesmo um

espião, e dos mais imundos, e que tinha razão o povo de Rocchetta que nos escrevia ou

vinha nos dizer. As provas estão na mão do Comandante da 3° Companhia da sexta

Brigada e dizem como e quando o professor de Rocchetta nos trai com a S. Marco de

Canelli. Um armigero grita que hoje é o dia das execuções. De fato o Comandante diz

calmo que se é assim, não resta que uma coisa a fazer, e fazê-la imediatamente que o

professor não nos roube tempo e corra para ter com os seus em Asti. Moretto grita que

todos que estamos à mesa devemos nos armar e ir com ele, que descemos em Rocchetta.

Levantamos, empurrando a mesa. Armados estamos já armados, todos tinham mantido a

arma a tiracolo, porque é um lugar, este, que se não exatamente a arma, ao menos os

carregadores te roubam fatalmente. Enquanto isso o Moretto implora o Comandante

para deixar aqui em cima Napoleone e Giulio, ou depois lá em baixo em Rocchetta

acontece de novo a chatice do de quem é a vez.

Agora corremos pela única via de S. Donato enfiando o retão que em quinze minutos

vai nos descarregar imprudente em Rocchetta, no coldre do Valle Belbo. Don Bestia

diante do clamor se fez na janela da canônica e me gritou: – Beppe, mas pra onde vocês

ainda vão? – Eu não sei que lhe repetir que hoje é o dia das execuções. O pároco

desmaia, mas eu lhe digo que essa é a vez do padre de Rocchetta e passo adiante.

E lá vamos pelo retão correndo, quase dando saltos mortais tanto é ríspido e nós

estamos lançados, e nesse voo não vai muito que vemos o campanário de Rocchetta.

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Moretto e Pucci os primeiros, em avalanche, todos os outros atrás, tropeçando, parando

pra catar carregadores, blasfemando Deus fascista. Eu digo que é uma barulheira que

escutam até em Rocchetta, até o professor deveria ouvir. Mas quando chegamos lá com

os cabelos nos olhos e os joelhos que nos vibram como aos cavalos, a cidadezinha de

Rocchetta está vazia e calada, como sempre nos dias que não é domingo. Vão todos

com Moretto à casa do professor, a mim Moretto disse para ir à igreja e fazer tocar o

sino. Enquanto aquele bando está saindo da praça à esquerda, uma cancela se fecha

rangendo. Todos pensam em emboscada, os mais preparados pegam de mira a janela e

soltam as travas. De trás da janela se grita Não! penetrantemente. Moretto grita que quer

ver a janela escancarada, e imediatamente se escancara e descobre um velho que grita

repetidamente Não! Não! e mantém os olhos insensatos fixos nas bocas da armas.

Gargalham os armigeri e partem, o velho aperta uma mão no coração, suspira que

escuto eu do outro lado da praça, depois fecha novamente.

Vou bater na portinha do campanário. Espero, volto a bater. Do canto da fachada surge

um homem. Sem se mostrar me diz que ele é apenas o sacristão. Digo que procuro

exatamente ele, ele um pouco se assusta, mas digo que não quero mais nada além de que

ele se pendure nas cordas e toque o sino. Responde que imediatamente e com prazer e

não tem necessidade que eu ajude. Venho na metade da praça, paro no instante em que

ouço bater os sinos. Parece que rodando me cheguem à cabeça estilhaços de bronze.

Sinto-me tolo e olho com raiva as mulheres que se mostram nas portas e os homens que

adentram a praça medindo cada passo. Agora um me grita para lhe dizer por que esta

confusão de sinos e o que vai ver a cidade de Rocchetta. Grito que não digo nada porque

não sei nada. De uma ruela chega uma mãe, se vira pra trás e vê a filha no calcanhar.

Grita a ela que volte pra casa imediatamente, curiosa sem vergonha que é. A filha se

lamenta, diz que não tem mal em ficar olhando os partigiani, mas a mãe vai pra cima

dela, lhe dá um tapa nas orelhas, depois a segue até em casa. Apareceu o pároco, sabe

tanto quanto seus paroquianos, e eu lhe digo que faz bem em se dirigir à escola ou à

casa do professor.

Acredito que agora estejam na praça todo ou quase todo o povo de Rocchetta.

Daquela rua à esquerda sai um barulho longo e as pessoas correm naquela direção.

Desembocam quatro armigeri que abrem espaço ou gritam para fazê-lo. Vem o

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professor, com a cara de cinzas, em meio a dois outros armigeri. Depois Moretto que

calcula a olho as pessoas, então o resto dos armigeri. No calcanhar deles correm os

estudantes, chegam para ver o que fazem ao senhor professor. Mas agora o pároco reúne

e manda embora todos. Desde o primeiro momento as pessoas perdem a cabeça, os

homens e mais as mulheres. Gritam ao bastardo, ao traidor que colocava sua instrução

em escrever bem longas cartas aos assassinos de S. Marco, ao covarde que dá nojo até

ao Deus da piedade, que agora o porco levam pro açougue, e bravi aos partigiani que

finalmente fazem o vosso dever. Perseguem e, como não chegam a colocar as mãos nele,

fazem sucessão de cuspidas. Um cuspe lava a cara do armigero Fodretta, e ele dá com a

coronha da arma na barriga dos mais próximos. Com bons e maus modos os armigeri

deixam as pessoas em ferradura de cavalo, quase. E Moretto imprimiu o professor

contra um muro belo branco. Aparece um civil e diz que por caridade, aquela é sua casa,

mandou refazer o reboco há menos de um mês e que existiriam tantos outros belos

lugares. Mas alguém o empurra pra trás.

Agora Moretto olha em volta com aqueles seus olhos e as pessoas fazem um certo

silêncio. Neste silêncio o armigero Barba me diz que o professor é réu confesso e que

Neri e Gagno ficaram pra segurar a mulher.

Grita Moretto: – Oh povo de Rocchetta!

Gritam as pessoas que o povo de Rocchetta são todos eles, e que estão e permanecerão

do nosso lado até o fim.

Moretto: – Povo de Rocchetta, é esse o professor?

As pessoas berram que é bem aquele, e a mesma rodada de bastardo, traidor, covarde,

porco e mais filho de puta milanesa.

Moretto: – É ou não é um espião?

E as pessoas de pescoço inchado: – Sim que é um espião, Cristo, se é!

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E o Moretto faz para falar de novo, mas com o rabo do olho vê o professor que

escorrega contra o muro, se vira e berra: – De pé! – e depois: – Então é um grande

covarde e não merece viver nem mais um minuto.

As pessoas aprovam tempestuosamente. Uma pedra voa aos pés do professor e levanta

poeira.

Moretto levanta o Sten e diz alto e destacado: – Então, gente, estamos todos de acordo

que deve ser aniquilado.

As pessoas rápido rápido se olham no rosto e à maioria os joelhos fazem giacomo

giacomo258

. E Moretto reabaixou o Sten. Mas agora o povo de Rocchetta grita que já

que eles estão de acordo, e o que espera ainda, famoso Moretto.

Moretto não é certo aquele que espera e dá o disparo, bela encorpada. O professor faz

um monte preto no chão e no muro tem uma rosa de buraquinhos e jatos de sangue.

As pessoas tremem como um bosque sob o vento. E alguns dão no pé, corcundos e com

olhar enviesado. Ninguém tirou o chapéu, não barulho se não de pés e de respirações. E

agora uma mulher grita de longe, depois mais de perto, e as pessoas se fendem como

para deixar passar este grito. Com o grito sai uma mulher com a roupa dilacerada, e

antes que Neri e Gagno a tenham apanhada ou mais alguém lhe barre no caminho, a

mulher se joga sobre o morto e o beija e lhe fala, e não vê que o pároco se ajoelhou do

lado dela, na poeira, lhe passa uma mão atrás da nuca para juntar os cabelos, e geme que

ela lhe dizia sempre, você era muito malvado, Carlo, e não teriam mais te perdoado.

Fecho os olhos e penso em Anna Maria, na sua carne viva e benéfica, quero ter filhos

dela. Quando me acordo, não há mais armigeri pela praça. Como o vento chega

Napoleone, tagarelando como um trem. Para seco para olhar, depois joga a arma no

chão e blasfema que aquele bastardo do Moretto tira sempre o doce da boca dele.

258

Tremem, cedem.

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Cap. V

Voltei pra Langa, no escuro, fazendo um pouco do caminho com o pelotão de Blackie

que vai defender a bifurcação Manera e alojar em Montemarino. Blackie apodrece

dentro por causa de mulher, mas é um dos mais renomados e de maior fígado dos

partigiani das Langhe.

Em casa Piccàrd e Cervellino e a meeira me fazem contar do fascista de S. Donato e do

professor de Rocchetta. Depois a meeira se levantou para acender o lampião e assim

fazendo disse que dois em meia jornada são um pouco demais e que não vai demorar

para vir o castigo. E nós três nos fazemos feios e sérios, porque nessas coisas a meeira

tem um faro que nem mesmo o partigiano mais sensitivo. Fora a cadela faz, comprido

comprido, o uivado do lobo seu pai. Nós três pulamos lá fora com as pistolas, soltamos

a loba e com ela saímos a explorar. Depois voltamos, mas sem a loba que se meteu entre

as castanhas atrás do cheiro de sabe-se lá que bicho. A meeira diz que é melhor que essa

noite durmamos no estábulo, pra poder pular fora ao primeiro perigo. E não gostaríamos

uma vez na vida de ficar de sentinela, principalmente de meia-noite em diante?

E assim por toda a fria noite ficamos todos os três batendo os arredores da Langa, com

um mosquete e duas pistolas cada, na cabeça os cobertores que parecíamos tantas freiras,

e aparando com a mão o fogo dos cigarros. Havia estrelas, eu por não saber que fazer

tirei o fuzil da tracola, coloquei no ombro, mirei uma estrela, quando a tinha na mira,

fazia bang e dizia te peguei, estrela. Em certo momento vem do castanhal um grande

barulho, e eu grito: – Não atira, Piccàrd, que é a loba que volta com companhia! –

Depois percebemos, um pouco tarde, que havia lua, e lua cheia. Ela deve ter feito efeito

sobre nós como dizem que faz aos cães e outros animais, porque repentinamente

sentimos a necessidade de ficar calados e em seguida sozinhos. Assim Cervellino foi

pela estrada de Montemarino, Piccàrd ia a Mompiano e eu em direção à Serra dei Pini.

A loba atrás de mim, voluntariamente. Aqueles dois não sei, por mim eu observei

longamente a lua e em seguida em direção a S. Stefano. Talvez Anna Maria está

acordada pensando e também ela observa a lua. Mas mesmo que fosse assim, mesmo se

S. Stefano não é longe demais, tenho medo que ela veja a outra face, da lua259

. Depois

259

O jogo efetuado pelo autor entre os modos indicativo e subjuntivo dos verbos é retomado na tradução.

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eu e Cervellino voltamos em direção a Piccàrd, porque era ele quem tinha os fósforos.

Houve um tiro de fuzil, longe, e maldizemos o tal que o fez.

Quase claro a meeira nos chama no pátio, diz que agora de sentinela ficava ela.

Passamos a meeira no pátio e Cervellino diz que sim que está cansado, mas se a

sobrinha não desse nojo como dá, esta seria a hora. E depois todo mundo dormir, com a

loba na cama com a gente, deitada atravessada em cima das nossas três barrigas.

Quando nos acordam ainda está cedo demais, mas ninguém protesta porque entra da

janela um fragor que está no céu e nas colinas. Vamos até a janela enfiando os sapatos,

e Piccàrd diz que são metralhadoras com acompanhamento de morteiro. Cervellino diz

que pra ele a batalha é em torno de Cravanzana. Eu digo mais longe, Bossolasco e

talvez Murazzano. Piccàrd me dá razão e diz que então é a nossa divisão gêmea, aquela

do major Mauri, que hoje dá e toma.

Ficamos o dia todo sentados ao sol na ladeira a nos interessar por aquela balbúrdia que

não nos faltou até de noite. De noite sentinela séria. E hoje de manhã voltamos a sentar

na ladeira, ouvindo tudo e bem. Hoje de manhã são tiros de canhão, sempre na distância

de ontem, tiros de canhão que parece um milagre que o céu não rache ou pelo menos se

suje. Nós entendemos daqui que são alemães, que ontem Mauri deu, mas hoje vai pegá-

las a todo custo. Não queremos perder uma nota desta música, e a meeira e a sobrinha

nos trazem comida na ladeira. Por sorte que são dias bonitos, os últimos do verão de S.

Martino, e as noites são frias sim, mas um frio que você aguenta parado. Como nessa

noite, que fizemos a guarda com Blackie e Blackie nos falou até o dia raiar daquilo que

as mulheres têm acima das pernas, na metade.

No terceiro dia chega de canhões, de novo pom pom e tiros de morteiro, mais próximos.

E na quarta noite há um estrondo em cima da colina atrás de Benevello, e olha lá,

Cervellino, olha lá, Piccàrd, os caminhões alemães com os canhões a reboque. No

sagrado de Benevello tem já um alemão que roda os olhos e o cobre fogo em tudo em

volta. Toquem rápido, sinos dessa Langa!

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Aqueles do Blackie deram um disparo alto, agora se batem para além da Langa, lá

embaixo em direção a Mango. Piccàrd, Cervellino e eu pegamos as espingardas e mais o

pouco de coisa que tínhamos e vamos à margem do pátio para despedir da meeira. Diz a

mulher que prestemos atenção em não lhe dar o sofrimento de nos saber mortos

assassinados e que assim que acabar, nós voltemos à Langa. Despedimos da loba, e

tenho medo que os alemães a vejam, façam dela uma paixão e a levem embora. Aquele

estrondo recomeçou e os caminhões amarelos com os canhões a reboque descem de

Benevello à bifurcação, e a gentalha que está em cima atira cospe fogo pelos ares, que é

um modo como outro de dizer Rauss! E não se enfiam na estrada da Langa? E então se

entende tudo: colocam as peças na Langa e daqui conquistam Castino onde aqueles

bundões dos fascistas lhe disseram que está o Comando e o grosso da nossa divisão. A

meeira diz que agora terá que dar de beber e comer aos alemães e que nós não devemos

perder um outro minuto. Assim partimos e no trecho entre Serra dei Pini e o Pilone del

Chiarla caminhamos com tantos civis encapotados com as mulheres que correm atrás

deles para lhes dar alguma coisa que esqueceram. Chegamos em Mango que é noite, e

há sentinelas por todo lugar, roucas de tanto dizer quem vai lá! Mas estas sentinelas são

toda a guarnição ou quase, porque a brigada passou pra Castino pra última defesa. Aqui

em Mango o comando o tem Cosmo, um oficial de aviação, e deve proteger a cidade e o

vale da república de Alba, porque se sabe que esta vai ser uma armadilha nunca vista.

Encontramos Cosmo com o seu armigero Maria Laò, e Cosmo está chamando de

covarde em contumácia aos pelotões em posição avançada que no primeiro tiro de

canhão passaram o rio e assim se tiraram destas Langhe que amanhã vão pegar fogo sob

os nossos pés. Com Cosmo vamos na casa do senhor llario para ouvir a Radio Londra

que nos levante a moral. Mas de Londres nos dizem: – Ações de patrulhas – e nós rimos

por desespero demais. Em seguida vamos à pensão, nos sentamos na sala comum, nos

dizemos que não devemos dormir e ficar acordados falando sempre. Fala Cosmo e diz

que amanhã em Castino vai ser uma coisa rápida, claro vai nos custar um pouco cara,

mas de algum jeito se salva a honra da Divisão. Paciência quem sobrar morto, quem

ferido, paciência pelas casas que vão pegar fogo. Depois Maria Laò diz que ele falou

com os feridos de Mauri que passavam de caminhão para Campetto e pode dizer que a

batalha lá em cima foi de três dias, que alemães e fascistas têm uma imensidão de

mortos e também nós somos ricos naquele quesito, e que no final Mauri subiu em cima

da torre de Murazzano e disparou o foguete branco que estava combinado que

significava salve-se quem puder. Nós três da Langa não temos nada a dizer, assim

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começamos a jogar baralho, pegamos dinheiro um do outro jogando sete e meio. Mas

tanto é que dormimos em cima da mesa.

Nos acorda, de manhã, o fragor da batalha de Castino. Tiros de canhão sacrossantos, e

nós três sabemos bem de que lado chegam, e lá em cima a meeira deve tampar os

ouvidos e rezar. E a loba deve latir que lhe pula alguma veia, e pode ser que um alemão

qualquer se impaciente e a derrube em um só golpe. Corremos na praça, chegamos nos

parapeitos, afastando as pessoas que tremem que nem vara verde, porque nós partigiani

os acostumamos a tudo menos aos canhões. Castino não se vê, mas no ponto onde

sabemos que está tem um círculo de fumaça, como sobre uma grande estação ferroviária.

Agora os tiros de canhão reduplicam, ecoam por todo o horizonte, e Cosmo, que ele só

de nós cinco esteve na guerra de verdade, nos olha nos olhos e diz que disparam tiros de

canhão também em direção a Alba. Através da cidade voamos para a balança pública,

pela estrada de Neive sobe uma procissão de civis. Quando os encontramos,

imediatamente não falam porque têm o coração na boca, depois balbuciam que a

república se mexeu cantando de Alba, agora colocou os canhões sobre Neive, e além

disso têm os tanques que você ouve um quilometro antes. Perguntam a nós o que fazer,

se fugir até de noite ou se parar. Cosmo diz que eles civis, se eram prevenidos, nos

tempos de calma faziam um buraco no chão e agora desciam pra lá com cobertores e

comida e os velhos os cobriam com estrume. Respondem em muitos que quase todos

tinham o buraco, mas que agora não serve mais porque os alemães levam diante deles

cães que farejam a terra metro por metro e param e latem ao mínimo cheiro de cristão.

Os alemães cavam certeiro, te puxam pelos cabelos, e fazem aparecer aquele pouco de

cabeça que basta para colocar nela um tiro, tanto você já está embaixo da terra. Dois

tiros de canhão, e os vidros da balança pública dançam e os civis quem ninguém mais

vê. Na porta de Neive tem um brinquedinho de tanque que move os canos como uma

mosca as antenas, e nos canos chamas vermelho e azul. Cosmo diz que o jogo está feito,

que eles colocam correntes nas Langhe e fazem um zoologico e nós todos dentro como

os macacos, eles vão rir um pouco e depois nos eliminam todos, que vai ser muito

cômodo nessa hora que vão poder fazê-lo em ordem alfabética. Voltamos pra praça, não

mais tiros de canhão deste lado, só mais rajadas de cospe fogo, e sempre fumaça sobre a

cidade, não mais na cúpola, mas em dezoito torres. Quer dizer que Castino está

dominada, os nossos varridos depois de ter feito até demais, e dezoito casas queimam.

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Cosmo reflete, em seguida diz que agora debandamos todos e que podemos começar

nós três. Dizemos que está bem, mas pra que lado vamos?

Cosmo diz que assim como estão as coisas, podemos jogar uma moeda pra cima, e se

der cara vamos para o Norte, e para o Sul se coroa.

Dizemos: – Tchau Cosmo e tchau Maria Laò. E pensem na saúde. – Diz Cosmo: –

Tchau, rapazes, e cuidado com o c... que os c... voam baixos, Piccàrd e Cervellino e eu

descemos em direção a Valdivilla.

Agora que escrevo da grande caçada de novembro continuo a não entender nada dela,

como dela não entendi nada então quando a sofri toda. Nem lembro o intinerário, tanto

mais que, os três dias que durou, outra coisa não foi que um marchar em círculo. Passos

demos certo mais que muitos, a certo ponto Piccàrd disse que teria gostado de ter um

conta quilometros fixado no pé esquerdo. Mas íamos, normalmente, como num passeio,

porque tanto não servia e era só e toda questão de sorte. E não perdemos nada, quando

todos perdiam alguma coisa. Ao contrário alguma coisa até ganhamos. Porque passando

diante de uma fazenda, vimos uma jovem mulher enclinada chorando sob um fuzil e

uma pesada bolsinha de munição.

Nos disse que tinha sido um partigiano a deixar ali toda aquela coisa, e ela não sabia

onde encondê-la, e tinha todos os seus homens em baixo do estrume, e se chegam eles o

menos que lhe teriam feito lhe teriam queimado o teto. Assim Cervellino se encarregou

do fuzil e eu da bolsinha e os conservamos até o fim.

Chegamos em cidades ou fazendas onde eles tinham passado cinco minutos antes, ou

então recém chegados tínhamos que dar meia volta porque eles apareciam na última

curva. E salvo que por três pães sovados que nos jogou pela porta uma rã de mulher

gritando que ela tinha muito medo, jejuamos por três dias. Porque ou batíamos nas

fazendas e a porta continuava de madeira, ou as mulheres nos abriam só pra nos dizer

que não tinha mais uma migalha e entrássemos à vontade para ver se era a verdade.

Tinham passado eles, tinham comido e colocado na mochila todo a gordura e os salames,

galinhas e coelhos, bebidos todos os ovos, em seguida partido novamente dizendo que

mandassem a conta a Badoglio.

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As três noites as passamos nos bosques, e eu pensava frequentemente em Anna Maria,

mas dessa vez só por causa das luvas e do cachecol.

E não nos faltou a companhia, porque desde o primeiro dia se juntou a nós três o

partigiano Blister e, perto do final, o partigiano Riri. Blister nos parecia corajoso e

resistente, perguntava a cada cinco minutos quando chegava o dia em que nós fazíamos

os cães e eles a lebre. Mas depois se fartou ou sentiu medo, dizia ter bolhas nos pés.

Fato está que entrou como partigiano em uma casa de pequeno proprietário perto de

Camo e saiu civil, vestido de xadrez, e a espingarda a tinha enfiado no buraco do vaso.

Nos deixou para ir se esconder na sacristia de Cossano.

A mesma coisa Riri. Riri o encontramos em Bosia e nos seguiu até Feisoglio. Ao ouvir

de uma mulher que os alemães exploravam o vale moita por moita, lhe faltou o coração.

Roubou de um estábulo um cobertor de bois, achou sabe-se lá onde um quilo de

castanhas brancas, em seguida nos conduziu ao cemitério de Feisoglio. Perguntou se

também a nós aquela lá parecia a tumba mais sã, com a nossa ajuda removeu o pedra, se

abaixou lá e quando mais não se via que a cabeça, nos disse que fazíamos bem em

soterrar-nos com ele. Eu disse que a gente queria morrer no aberto, no pé das colinas, e

entra todo, Riri, que agora nós recolocamos a pedra e te deixamos um fio de ar. Tchau,

Riri, a gente se vê depois.

Foi meia hora depois deste fato do Riri que sentimos o susto dos sustos. Caminhávamos

aos pés da colina, tendo à direita, a cem passos, a torrente do Belbo. E Cervellino me dá

uma cotovelada, olho pra cima e na crista despontam elmos como fungos e em seguida

os alemães se apresentam em pessoa inteira. Nós e eles estamos a uma fração de

segundo de nos olhar nos olhos, como conhecidos de uma calçada para a outra, vendo

quem acena primeiro. Depois nós voamos aqueles cem passos e enquanto isso os

alemães atiram os malditos cospe fogo e nós não tomamos nem um tiro em três, que era

como não se molhar na chuva. E nos jogamos de barriga naquelas duas poças de água e

engatinhamos até a outra margem e nos ensopamos em baixo das ervas daninhas. E

esperamos que os alemães desçam para dar cabo de nós no molhado. Mas eles passam

reto, e Cervellino diz que escapamos dessa por um pelo de pulga. E enquanto nos

ajoelhamos na água e nos agarramos nas ervas daninhas da borda para sair para o seco,

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na outra margem desfilam outros alemães e jogam no vale granadas, uma a cada cinco

metros. De bomba em bomba chegam até nós. Piccàrd sussurra que se não morremos

agora duma vez morremos depois tuberculosos. Basta, nos deitamos de barriga pra

baixo e sentíamos emergir o traseiro. Uma bomba esplode do nosso lado e faz uma

tatuagem sobre a casca de uma árvore. A segunda no vale. Os alemães prosseguem e

jogam bombas que não nos dizem mais respeito.

Uma outra angústia, a última, nos pegou em cima da colina de Annunziata. Vínhamos

papeando, irresponsáveis mesmo, e em cima da colina na nossa frente desemboca

brigata nera, tanta, empurrando-se na frente dois bois e dois dos nossos todos

esanguentados. O primeiro que nos viu se arriscou apontando o fuzil e gritando rendam-

se, bandidos. Eu lhe dei a primeira pernacchia da minha vida. E me saí bem, como me

saí bem na consequente corridinha.

Na manhã seguinte estava tudo acabado. Não houve mais um tiro no ar, mas foram

necessárias doze horas para que nós partigiani e as pessoas nos convencêssemos

daquela calmaria.

Eles tinham matado, mais civis do que partigiani, tinham feito fogueira de fazendas, e

saqueado, tinham forçado as mulheres, arregimentado homens e padres para que lhe

levassem as munições e servissem de escudos contra nós. Tinham vindo em três

divisões, para peneirar tudo e todos. Mas, peço perdão aos mortos e às suas famílias,

desculpa àqueles que perderam a casa e os animais, mas eu acredito que na ocasião

alemães e fascistas não tenham salvado as compras. Não foi habilidade nossa, nem que

eles fossem todos incompetentes. Foi, com a sua terra, a sua pedra e o seu bosque, a

langa, a nossa grande mãe Langa.

Cap. VI

Piccàrd e Cervellino e eu queríamos voltar logo pra Langa e ficar como antes. Mas

Cosmo enfiou na cabeça segurar a gente ali com ele e daqueles que tinham

pontualmente sobrado formou a guarnição do rico povoado de Castagnole delle Lanze.

Nos primeiros dias de dezembro, já que nós éramos garotos expertos e que como civis

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tinhamos rodado tudo por ali, nos tirou do policiamento da balsa do Tànaro e nos

encarregou do serviço de informação. Tinha que se rodar feito pião, a gente tinha cara

de cronista estagiário. E se caminhava armados de só pistola e cada um por conta

própria. Recompúnhamos o trio só quando tinha que se retirar notícias nas redondezas

de Alba. Então a gente tinha que se emburacar em certas casas de onde você ouvia as

sentinelas deles pisarem o asfalto da avenida circunvalação e com a tua chegada a

família abaixava as cortinas e fechava as persianas, falava a sussurros e caminhava na

ponta dos pés, come se houvesse um morto em casa. Mas entre os nossos informantes

tinha cada menina bonita, estudantes em maioria, que primeiro nos davam as notícias e

depois nos faziam falar das nossas vidas desgraçadas, de como se dormia nos estábulos

e dos bois que te pisoteavam capim sobre o nariz. E então soltavam gritinhos de oh que

pena não ser homem! E a gente se perdia farejando o bom cheiro delas. Tinha uma que

chegava a nos servir uma espécie de chá, e nos preparava cigarros de pétalas de rosa,

cigarros de cortesã, ela os chamava. E nós íamos lá mais frequentemente do que nos

outros, mesmo se não era sempre a melhor informada.

Uma tarde regressávamos a Castagnole com a notícia para Cosmo que a república de

Alba prendeu o conde di Guarene porque era por nós e nos passava dinheiro. E na praça

a sentinela nos diz para se jogar pro Comando, se queremos ver ao menos um tico do

processo que Cosmo está fazendo a Blister e Jack.

Na salona do Comando está o velho Blister e Jack estapeados contra uma parede, e

devem ter antes batido, mas nem tanto. À esquerda está o pelotão de Treiso, todos

vergonhosos, porque Blister e Jack são dos deles. À direita estão os partigiani que não

têm nada a ver, e gritam delinquente, esmerdaram o nome de todos nós! No meio está

Cosmo, puto da vida como assim nunca o tinha visto, e aperta o seu Mas com tanto

frenesi que agora aposto que lhe foge um disparo e olha só que vai acertar exatamente

Blister e Jack. Nas costas de Cosmo estão alguns civis, toda uma família. Os homens

estão pálidos e fazem de tudo pra não olhar para Blister e Jack. Mas tem uma recém

casada com fogo nos olhos e nas bochechas. Nós três naturalmente vamos à direita, e eu

faço a Ivan: – Ivan, é talvez por causa que na caçada Blister se vestiu de civil e perdeu a

arma?

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205

Diz Ivan que se fosse por aquilo, não se faria outra coisa além de processos até o fim da

guerra e que se deveria chamar os fascistas para serem jurados. Não, eu vejo aquela

gente ali? Pois bem, Blister e Jack, os porcos, lhe entraram em casa e lhe estapearam na

parede e pegaram dinheiro e coisa boa e todo o ouro. E o ouro eles venderam por doze

mil a um tal de Barbaresco que Cosmo acabando aqui vai pegar pela garganta e fazer

cuspir a alma e o ouro.

Cosmo cala nossa boca, que agora se vai recomeçar. Blister esteja composto e repita

alto aquela que pra ele é a verdade.

Diz Blister: – Mas imagina, Cosmo, que fizemos perto do que o que diz essa gente. É

verdade que colocamos eles na parede, mas só com as mãos, sem tirar o fuzil de tiracolo.

Né260

, Jack?

Grita a mulher que é tudo falso, comandante Cosmo, que aquele ali mesmo enfiou o

fuzil na barriga do seu sogro. E se vira para o sogro e lhe pergunta como uma víbora

porque ele não diz. E Cosmo diz que tudo bem261

, acredita nela e não em Blister. E

Blister diz a Cosmo que faz mal em fazer assim, e depois grita a Jack pra ele falar

também, pra ajudar, pra não ficar ali bancando o penitente. Mas Jack é a partir de agora

um homem morto. E Blister grita que sim, se serviu do fuzil, é verdade, mas só porque

estava lidando com fascistas. Você não sabe, Cosmo, que são todos fascistas?

A mulher chama o céu por testemunha, e Cosmo grita que se esta é gente fascista, ele

Cosmo é o Duce262

.

O sogro pede desculpas, diz que ele aos partigiani deu até agora um bezerro, os salames

de todo um porco, deu meio quintal263

de avelã pra fazer azeite, três garrafões de vinho

e nunca lhes fechou a porta na cara e nunca vai fechar. E depois que tem um sobrinho

desaparecido na Rússia.

260

No original consta a forma do Piemonte italiano ―neh‖ que tem a mesma função do nosso ―né‖.

262

Como era chamado Mussolini. 263

Unidade de medida equivalente a 100 quilos.

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Mas Blister se acovarda e berra fascistas, vocês são fascistas, fascistões. Tão fascistas,

Cosmo, que têm um gagliardetto264

no quarto. Aqui se faz um grande silêncio e uma

grandíssima atenção, e Blister diz à mulher: – Diga lá, a senhora que banca a ofendida,

o que é aquela bandeira naquele canto do quarto grande? Um gagliardetto é, e vocês são

todos fascistas e quem sabe não nos espiam!

Aquele diabo de mulher aponta para Blister e lhe grita que aquela é uma bandeira, uma

bandeira tricolor, que ganhou o marido dela em um concurso de dança, e tem escrito em

cima, no branco, concurso dançante, primeiro prêmio. Dá um passo atrás e diz a Cosmo

para ir ou para mandar ver, a bandeira continua lá. Nada de gagliardetto, eles nem

sabem como são os gagliardetti. O povo do campo não quer saber do fascismo.

Blister expulsa o cabelo da testa, e depois sacramenta que ele estava convencido de que

fosse um gagliardetto, porque estava num canto, na sombra, e eles tinham bebido um

pouco, tanto ele quanto Jack.

Aquele moinho de vento de mulher ri com sarcasmo e diz que não estavam assim tão

bebidos. Ela não lhe sentiu o bafo feder de vinho quando Blister a espremia contra a

perede e tentava enfiar as mãos na saia dela. Blister uiva, mas ela nem lhe dá trela e diz

a Cosmo que os bêbados não têm aquele olho e aquela mão pra roubar. E Blister de

mudo se joga sobre ela com as mãos pra frente e gritando: – Bruxa, bruxa! – mas pelo

caminho encontra o cano do Mas do Cosmo, e Cosmo empurra a arma na boca do

estomago dele o levanta e o revira em cima da mesa e prega ele lá gritando que atira ali

mesmo. E lá Blister com a cabeça pendurada e rodando as pernas pelos ares, acabou por

confessar tudo. E antes de deixar ele começar a chorar, Cosmo faz ele dizer o nome do

comprador, ladrão quanto eles. Depois Blister apanha de Cosmo um murro na boca e

chora, e chora Jack lá de baixo. Cosmo se retira de lado e aqueles da direita chegam na

mesa pra cacetear Blister e por alguns minutos de Blister não se vê nada além do gritar e

dos gemidos. Aqueles à esquerda não se mexeram, suspiram, olham pro chão, um até se

virou de cara pra parede. Pergunta Cosmo se ainda não estão convencidos. Dizem que

estão convencidíssimos, mas que não querem fazê-lo do mesmo jeito. Depois aqueles da

direita se lembram do Jack e correm pra bater sua cabeça na parede feito abóbora, bum,

264

Bandeira dos adeptos do fascismo.

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bum. Os civis dizem a Cosmo que sentem muito mesmo por tudo isso. Com exceção da

mulher que por todo o tempo permaneceu tensa e com os punhos cerrados batendo o

tempo com os pés. Depois Cosmo diz alto para ficarmos todos de pé e quem está de

chapéu que tire. E diz claro que os partigiani Blister e Jack do pelotão de Treiso, réus

confessos de roubo aos danos desta brava gente que é dos nossos, serão fuzilados de

acordo com o artigo tal do grupo tal. Nós dizemos bravo a Cosmo, aqueles civis estão

assustadíssimos, agora sim que olham fixamente para Jack e Blister, fascinados. E

avança Set, o tenebroso Set, e pede para ser ele a fuzilar os dois, que ele vai atirar com

tanto gosto como se fossem republicanos. Cosmo diz que então vai ser Set e que a

função vamos fazer no vale de Madonna della Rovere. Blister que tinha se apoiado

sobre as mãos, agora diz baixinho: – Set, Set... – e se estica em cima da mesa. Jack se

colocou ajoelhado a si apalpa a cabeça que está inchando, agora pede um copo d‘água

que ninguém vai trazer. Cosmo diz a Riccio para voar no Comando Divisão, falar do

crime e do processo e voltar com a sentença confirmada e a data da execução. E não

demore mais de três horas.

Durante aquelas três horas que Riccio passou fora, nós estivemos olhando para Blister e

Jack sem que nada mudasse em mente. Blister se levantou sentando em cima da mesa,

colocou a cara na luz pra que todos víssemos como tínhamos estragada a cara do velho

Blister, depois passou a manga pra tirar o sangue. Perguntou se podia fumar, se enrolou

um cigarro, depois explodiu gritando que ele era um partigiano dos primeiros, que

lembrássemos de como ele tinha se comportado na batalha de Alba e que ele e Jack

tinham roubado só porque há seis meses não tinham um centavo no bolso. Ele e Jack

não eram como Beppe e Cervellino e Piccàrd que tinham papai que mandava dinheiro

da cidade pra eles. E nem eram daquela zona como a maior parte dos outros que em um

pulo estão em casa e se trocam por baixo e pegam dinheiro. Gritava que era impossível

que ninguém gastasse uma palavra por ele e Jack, e ao Set que lhe tremeria certamente a

mão, oh se lhe tremeria! Depois Cosmo lhe gritou cala a boca, ladrão, ladrão nojento, e

Blister abaixou a cabeça e pediu baixinho se de vez em quando poderíamos dizer a hora.

Jack estava ajoelhado e repetia a ladainha de que ele a nós todos tinha querido sempre

muito bem e que não esquecêssemos que era casado e com um filho.

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Depois volta Riccio e já da soleira diz que o Comandante está ultrajado pelo

comportamento dos partigiani Blister e Jack e que aquilo que faz Cosmo está sempre

bem feito. Mas fuzilamos imeditamente porque amanhã de manhã vai ter caçada.

Tira-se Blister da mesa, se recolhe Jack, colocamos os dois na nossa frente e saímos em

cortejo para ir a Madonna della Rovere.

Na praça de Castagnole dão a passeadinha os belos exemplares da Polícia Secreta.

Andam com moças e dizem que se ouça bem que eles são da Polícia Secreta, e que as

senhoritas não devem ligar para seus trajes civis, eles são partigiani mais e melhor do

que estes que estão passando, e abrem o casaco pra mostrar a pistolinha enfiada nos

calções. E aquelas idiotas os admiram de baixo pra cima e querem saber deles porque

aqueles dois partigiani estão tão moídos na cara e onde vai a guarnição.

Fora do povoado encontramos o pelotão Caramba. Caramba quer saber de Blister e Jack,

e Cosmo contra a vontade explica tudo em duas palavras. Aqueles do Caramba agora

querem cacetear a parte deles, mas Cosmo e Set se metem no meio, diz Cosmo que um

pouco mais de murros os tomaria da metralhadora do Set. E eles precisam se contentar

em cuspir, em gritar criminosos e passar adiante.

Como entrávamos em Val Beca, Cosmo e Maria Laò abrem o cortejo, depois Blister e

Jack, e Set caminha em contato de cotovelo e os choca com os olhos e depois retorce os

olhos vendo quem tem cara de querer roubá-los. Depois todos nós, marchando em duas

filas, nas bordas. Vento atravessa da esquerda, vem me dizer que ele ontem passou em S.

Stefano e que uma bela moça lhe perguntou se aquele partigiano Beppe que estava na

Langa ainda está vivo. Cervellino escuta, para pra dar uma de engraçado. Eu lhe chamo

de idiota e lhe faço votos que seja sempre inteligente como eu em assunto de mulher.

Depois me perco pensando em Anna Maria, naquele feliz domingo em S. Stefano.

Quando me dou conta, estamos passando de Mango e a luz está voltando nos bastidores.

Remonto as filas, chego entre Cosmo e Set. Jack segue adiante apenas porque senão

aquele que lhe vem atrás belisca os calcanhares. Mas Blister, ou é a luz que está de

piada, ou é que a surra lhe fez uma máscara, Blister sorri esperto, até pisca o olho a Set.

Blister me vê, sorri largo, um sorriso muito natural, e me faz: – Não me faça essa cara

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de enterro, Beppe. Vá lá que você também é grande brincalhão. Grandes brincalhões

que são todos vocês. Cosmo então é o campeão dos brincalhões. Vocês nem sonham em

nos matar, vocês já quase nos perdoaram, aposto que amanhã vocês vão nos tratar como

ontem. E nada, vocês ainda fazem essas caras e essas conversas. Mas eu já farejei que

vocês vão fazer tudo regular, menos o disparo. Quem sabe vão ser vistos cavando a

fossa, mas nada de chumbo. Viu como o Set o recita bem o papel dele? Vocês querem

só nos fazer tomar um susto, um grande susto, e pra vocês nós vamos estar já bastante

castigados. E vocês acham que Jack vai desmaiar, e eu também acho. Mas se é só por

isso, por ter que cansar a pernas vocês e nós até Rovere. Vocês podiam bem fazer tudo

no pátio do Comando, em Castagnole. Ao invés disso, tudo pela farsa, até Rovere,

Cristo.

Set fecha a cara, depois lhe diz que se fosse ele, não diria mais Cristo a esse ponto. E

Blister suspeita e estica a cara, se estica pra olhar Set nos olhos, e depois começa a rir de

novo.

Nos ultrapassam Miguel e Terribile que vão em uma fazenda pegar emprestado enxada

e pá. E nós chegamos depois deles em Madonna della Rovere, no rittano265

embaixo da

paróquia, e não precisa procurar o lugar, porque o primeiro clarão que vemos é aquele

que Deus fez. Ainda tem luz no céu, mas aqui embaixo não chega. E nós nos colocamos

nos lados, em duas alas, como gente que fica olhando jogar bocce e Set já se plantou no

meio de pernas abertas e assobia a Vento para fazer a volta por fora. Em seguida Cosmo

grita a Blister para ser o primeiro, porque é certo que Blister foi o primeiro também pra

roubar. Blister grita pronto! e vai se plantar na cara do Set e lhe sorri malicioso, e alarga

o sorriso à medida que Set decide fechar a cara. E em seguida lhe diz: - Então é você

mesmo, Set. E vai me matar com essa metralhadora aí? Já colocou a bala no cano?

Deixa eu ver, Set.

Por trás da nossa fila Jack grita como lobo, uuuahhh! em seguida cai e gane, porque está

comendo areia. E Blister grita: – Olha pra mim, Jack, que assim você aprende o papel!

265

Conformação geográfica típica da paisagem das Langhe, constituída por um vale profundamente

imerso entre duas colinas finamente cobertas por vegetação e atravessada por uma torrente.

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E agora Cosmo diz: – Vamos, Set.

Set mira Blister e lhe diz: – Primeiro grita Viva Badoglio! E Blister ri e diz: – Mas sim,

viva Badoglio! – e ri.

Set apertou, mas a arma se encrava, tic. Set fica branco, grita a Cosmo que é a primeira

vez que a sua metralhadora o trai, e que não lhe substitua que ele conserta

imediatamente. Blister começou a rir, ri altíssimo e Set o faz morrer enquanto ri e nós

de Blister vamos lembrar sempre assim. Em seguida tem Jack que corre no meio porque

alguém lhe deu um empurrão e Set atira nele correndo, porque é certo que Jack cairia no

chão assim que parasse, e não é bonito fuzilar um homem caído no chão, não é fazer

justiça.

Agora está escuro, e Cosmo acende seu olho de boi e vai fazer luz a Miguel e a Terribile

que acabam as fossas. E manteve aceso até o fim. Assim eu vi que Blister estava bem

coberto, mas Jack não tinha em cima mais que um véu de areia, lhe despontavam dois

terços dos sapatos, escanchadas. E a ninguém veio mais em mente voltar para melhorar

sua sepultura. Tanto é verdade que na primavera, depois de neve e degelo, a mensageira

Meris estava passando por ali e viu aqueles sapatos eretos entre as margaridinhas e

desmaiou em cima. E se acordou de manhã com o rosto a um palmo dos velhos sapatos

do Jack.

No dia seguinte, alarme para todas as Langhe Orientais. Começava a grande caçada de

dezembro, e acometia aquela parte que a filoxera266

de novembro tinha poupado. Grosso

modo, os povoados entre Nizza e Molini d‘Isola, fronte garibaldino. Quase toda

república, brigate nere, com poucos mas suficientes alemães. Os garibaldinos foram

revirados como nada, e os fascistas corriam na frente atirando a alvo sobre aqueles

lenços vermelhos que abanavam nas costas dos garibaldinos. Tomaram Nizza e depois

Canelli, bebendo-se as defesas. Não pararam ali nem desviaram: entraram em S. Stefano,

266

S. f. (zool.) gênero de insetos homópteros. Doença nas vides, determinada pela presença de um inseto

deste gênero (Phylloxera vastatrix), que lhes ataca as raízes e faz secar as folhas. || -, s. f. e adj. (fig.)

destruidor, esmagador. F. gr. Phyllon (folha) + xeros (seco) (Aulete Dicionário on Line).

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e isso me deu um golpe no coração. E como S. Stefano era frequentada por uma grande

quantidade dos nossos, tiveram alvos azzurri além de rossi.

Piccàrd e Cervellino e eu estávamos noite e dia de guarda na balsa sobre o Tanaro,

dando passagem a manadas de Stelle Rosse que iam para a outra margem. E havia os

habituais patifes comissários de guerra que antes de embarcar queriam discutir com a

gente. Diziam que a nossa caçada de novembro era uma piada em comparação com

aquele feito sob medida para eles garibaldinos. E nós dizíamos que era verdade o

contrário, bastava calcular os alemães que estavam neste e naquele. Os comissários

fingiam fazer a conta, em seguida diziam que então este valia o outro e que estávamos

empatados. E nós dizíamos que tinha uma bela diferença, Mauri tinha suportado três

dias na entrada de Murazzano, e eles em Nizza nem uma hora. E os comissários

entravam no barco dizendo que de todo modo ainda haveria bastante para nós

badoglianos.

E houve bastante também para nós, mesmo que tivéssemos feito o calo em novembro.

Mas talvez erro em dizer assim, porque às grandes caçadas a gente não se acostuma

nunca.

Nós do destacamento de Castagnole estivemos em paz até a vigília da Imaculada267

.

Piccàrd e Cervellino conseguiram receber de casa dois casacos de pele de ovelha a

tempo para o inverno e para ostentar pela primeira e última vez na praça de Castagnole

aos olhos daquelas poucas moças que as mães ainda deixavam passear. Aqueles casacos

de pele os enroupavam um pouco demais, Piccàrd parecia uma bola de neve. E deviam

atrapalhar pra correr, e era preciso correr de um momento a outro. De todo modo,

àquela mulher que tinha trazido os casacos pra eles, eu dei um bilhete para minha casa,

que me fizessem um casaco de pele igual, um pouco menos grosso, e me mandassem ele

para a Langa.

Na manhã da Imaculada, Cosmo e Maria Laò vêm nos acordar onde dormíamos, uma

fazenda entre o povoado e o rio, e nós três reclamamos que ainda está cedo. Cosmo diz

que nós temos uma só fraqueza, aquela do sono, e se a república nos matar um dia, vai

267

7 de dezembro.

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ser dormindo. Saímos para o campo, e atiram sem parar mas ainda distante e não se

ouvem sinos, mesmo sendo feriado regular. Cosmo diz que a república está na

bifurcação de Boglietto e que ele já dispersou o destacamento e agora vamos a Neive ao

pelotão de Otto.

No meio do caminho, na soleira da paróquia de Farinere, está o capelão todo

paramentado e olha se vem gente na sua missa e balança a cabeça. Nos grita pra entrar,

que ele a missa vai dizer curta curta, e vai nos fazer bem para os próximos perigos.

Grita Cosmo que não temos tempo, que quem foge reza.

Caminhamos ocupando toda a estrada, e à direita Piccàrd de vez em quando se fecha no

casaco de pele como uma senhora.

Diz Maria Laò: – Se pelo menos em Neive se pudesse ouvir a Radio Londra pra saber

em que ponto estamos. Vêm pra cima ou vão pra baixo esses Aliados de meia tijela?

E Cosmo: – Eu queria saber só aquilo que acontece nas Langhe. Sabemos que estão em

Nizza, em Canelli e em S. Stefano e daqui a uma hora vão estar em Castagnole. Mas

aquilo que seria necessário saber e que Radio Londra não pode dizer é se param ali. Se

atravessarem de novo as Langhe mais uma vez, de baixo pra cima, nos dispersam por

todo o inverno.

Diz Piccàrd: – Vai saber se vão colocar um destacamento em Canelli, um destacamento

fixo. Se colocarem, vão eles encontrar a Carla, e nós partigiani onde vamos pra

descarregar os tubos?

Eu tenho uma grande vontade de perguntar a Cosmo se acha que vão colocar um

destacamento fixo também em S. Stefano, mas me contenho, porque não quero trocar

palavra a Cervellino.

E lá estamos nós em Neive. O povoado é populoso, mas na praça não tem um alma

penada, e se olham em volta a todo momento e se dizem que o fulano já se escondeu no

buraco e também o beltrano. Cosmo está se perguntando onde aquele perigoso retardado

do Otto mantém as sentinelas, quando vêm ao nosso encontro três homens de Otto e

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começam a lustrar os sapatos de Cosmo, porque Cosmo além de tudo é também o

inspetor do triângulo Benevello-Neive-Castagnole. Otto vê-se que não tem a

consciência muito limpa, diz que agora é meio-dia e vamos imediatamente à mesa e em

seguida vai dar conta de si e dos seus homens.

Nos fizeram comer como num almoço de noivado. Começamos com nhoques e

acabamos com peras e nozes, e Otto estudava a cara de Cosmo. Perto do fim o

cozinheiro do pelotão enfia o nariz dentro e diz que lhe trouxeram a notícia de que a

república está em Castagnole. Cosmo diz que se está que fique. Apenas, Otto mande um

homem esperto de guarda e este quando vê cinza e verde na última curva assobie. Em

seguida Otto manda trazer vinho arquisuperextra e pisca o olho ao seu cozinheiro.

Todos bebem e começam a fazer bagunça e entoar a canção Il partigian del bosco que

conta de uma moça que o partigiano do bosque lhe rompeu o véu. Eu sou abstêmio, e

grito que se continuam assim não ouvimos o assobio. Agora Cosmo grita que faz o

discurso, e aqueles de Otto se calam como por encanto e lhe sorriem esticando os lábios.

E Cosmo improvisa uma dose à base de partigiani lambepratos e roubagalinhas,

parasitas da boa população de Neive, e nós do séquito vendo a cara de Otto e dos seus

explodimos a rir, mas paramos imediatamente porque estamos com muita dor de

barriga.

Fora chove sobre nós um casal de morteiradas. Pulamos todos em pé, uns tentando

empurrar a mesa contra as pernas dos outros. Cosmo sai primeiro dizendo que não lhe

parece ser aqueles de Castagnole. Como brotamos todos na estrada, duas outras

morteiradas, sobre a colina das Trestelle. E Cosmo diz que é a república de Alba que

subiu pra servir de bigorna e que agora aqueles de Castagnole se colocam em

movimento para servir de martelo.

Aqueles de Otto e Otto já não estão mais ali, sumidos, se entende que deveriam ter as

catacumbas na imediata vizinhança. Nós cinco descemos ao plano, pra tomar o caminho

de Mango que Deus queira que esteja livre. Descemos, e eu me sinto pouco bem,

maldito Otto e os seus nhoques, suo frio, o cérebro está congelando. Digo a Piccàrd pra

me passar o seu capacete de aviador, me passa, coloco, tão pesado e aderente que eu

sufoco dentro e não escuto mais nada, embora veja os meus quatro mover os lábios e

fazer gestos.

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Na passagem de nível encontramos três velhinhas que ainda passeiam em fim de tarde

em tempos como este. Tiro uma orelha do capacete, e escuto elas dizerem que a estrada

de Avene está livre e que podemos ir nela sem medo. Em Mango tem deles? Não,

patriotas, diz-se que em Mango não estejam. Bem, nós vamos a Mango.

Atravessamos a planície da olaria que confina com o torrente Tinella e acaba aos pés do

Bricco d‘Avene. Cosmo diz que precisamos chegar em Mango em menos de uma hora,

e se os nhoques atrapalham, marchar massageando a barriga. Mas um minuto depois

Piccàrd diz que não aguenta mais, precisa ir correndo. Cosmo diz que seja rápido, e

Piccàrd sai levantando o casaco de pele e desabotoando os calções. Eu fecho novamente

o capacete e me viro para olhar o povoado de Neive e a estrada de Castagnole. E agora

o que faz o doido do Maria Laò que começou a dar saltos mortais? E porque Cosmo e

Cervellino me largaram aqui e correm como Deus manda em direção às olarias, pulando

com os pés unidos como cangurus e de vez em quando pegando nas costas? E a areia

persegue os dois com borrifadas e esguichos? Até Piccàrd corre, segurando os calções,

corre atrás de Cosmo e Cervellino, lateralmente, e faz tantas guinadas, paradas e

retomadas como se corresse em uma estrada cheia de gente e de trânsito, e ao contrário

corre no plano e no vazio. Eu tiro uma orelha do capacete, e escuto metralhadoras e

cospe fogo, pistolas e variadas espingardas que fazem jazz. Chego diante do precipício,

e estão todos lá em cima, a oitenta metros, no último declive, em três filas, os primeiros

no chão, os segundos ajoelhados e os terceiros eretos, como em Waterloo, e atiram à

vontade. Mas ou são estrábicos ou são misericordiosos. Lá está Maria Laò que se jogou

para trás de um córrego que desce perpendicular ao torrente e agora foge sobre

cotovelos. Eu corro como um prato, e eles erram todos, e eu voo num mergulho para

trás do córrego que a barriga acaba indo parar no traseiro.

E Maria Laò parou, se virou na minha direção, amarelobranco na cara, e tampa a boca

com a mão e em cima aperta ainda a outra mão. Tento falar com ele, mas não respiro

mais, e coloco ele na minha frente a empurrões. Em seguida retomo a fôlego e lhe digo,

vamos lá Maria268

Laò, vamos lá que não tem tempo para vomitar. E Maria Laò me faz

sinal de que é o coração e também a barriga. Depois me sussurra para olhar se eles vêm

268

Fim da Caderneta III.

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na nossa direção. Mas eu digo que é melhor não olhar, tanto se eles chegam onde

estamos, não deixam nem o tempo de nos assustarmos ainda mais, e seguimos adiante,

Maria. Continuam atirando, sempre mais frequente, e todos atrás daqueles três. E assim

nós dois seguimos adiante de barriga no chão, mas logo temos de parar, porque agora

atiram no córrego e podam os galhos sobre as nossas cabeças. Maria Laò se vira com

um sorriso maluco e diz que é sinal vermelho, depois estica a cara pelo desespero e sai

correndo, ganha a margem e se afunda no torrente. Eu atrás, que falta pouco eu o soterre

com os pés. Corremos na água como podemos, para cima e para cima, com a mão sobre

a boca para não expulsar o coração, e ouvimos gritar: – Aqueles do casaco de pele!

Aqueles do casaco de pele! – Paramos, colocamos os olhos no nível da margem e

vemos dois, três, cinco republicanos que correm rapidíssimos em direção às olarias. –

Aqueles do casaco de pele! – Mas Cosmo e Piccàrd e Cervellino não vemos mais. Se

deus269

quiser chegaram ao menos no coberto.

Maria Laò e eu vamos subindo o vale, correndo, mesmo parecendo que a corrida tenha

acabado. Depois explodem nossas têmporas, parece que afundamos no ar, e paramos em

uma vereda entre duas vinhas, a cinquenta passos de uma fazenda. E para dar o exemplo

um ao outro, nos dizemos que agora fumamos um cigarro. Mas no pátio daquela casa

sai uma mulher, como nos vê fica fulminada, e nós daqui de cima vemos que quer gritar

e não lhe vem a voz. Em seguida aponta o dedo a nos dizer que estão ali, ali. Assim nós

voltamos a dar uma de corredores e parece que perdemos pedaços sobre pedaços do

nosso corpo.

Por horas e horas andamos sem saber por onde. Paramos na borda de uma colina que

vistos de longe poderiam talvez nos acreditar árvores ramificadas e vimos descer pela

estrada de Neive, na colina da frente, pelotões e pelotões e pelotões deles, como se

fossem aos tiros, e cantavam: – S. Marco, S. Marco, o que importa se se morre! – que

lhes ouviam até aqueles nos buracos. E nós pensávamos que agora eram eles os donos

das Langhe e nós talvez não conseguimos mais reconquistá-las.

269

Na maioria das ocorrências o termo é grafado com maiúscula, mas em algumas ocasiões – como esta –

é propositadamente grafado com minúscula.

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Íamos sem reconhecer os lugares, em seguida a noite nos alcançou como uma tampa de

panela. Maria Laò disse: – Que dia foi. – E eu disse: Oito de dezembro. – E assim no

escuro não tínhamos mais tanta certeza de que Cosmo e Piccàrd e Cervellino tinham se

salvado e estivessem ainda rodando como nós em uma colina igual a essa. E Maria Laò

disse como se não houvesse nada de mais certo no mundo: – Mataram meu Cosmo. – E

eu não queria dizê-lo, mas depois disse mais seguro do que ele: – Mataram Piccàrd,

mataram Cervellino. – E não nos curvamos pra chorar, porque de cara estava Cascina

della Langa, e nós queríamos chorar só entre as suas muralhas. Como entramos no pátio,

já vemos a meeira na portinhola que cozinha e segura o lampião. Maria Laò diz que é

Maria Laò e eu que sou Beppe, exatamente Beppe da Langa. E de dentro do estábulo a

loba late ritmada. Oh, loba, desce aqui que eu quero enfiar a cara no teu pelo e ficar

assim tentando não pensar em nada. A meeira balança o lampião pra nos dizer para

entrar. E Maria Laò entrando diz: – A Senhora sabia que mataram Cosmo? – e eu: –

Mataram também Piccàrd e Cervellino. – A meeira não diz nada, Maria Laò grita: –

Então, Beppe, é verdade mesmo que mataram todos três! – Mas agora que nos fez entrar

na cozinha, a meeira diz que não, que não podem ter matado eles, ela não acredita. E

Maria Laò se enraivece e chora: – Oh sim, como a senhora pode saber, como pode dizer?

A Senhora não viu hoje! – E então a meeira nos pega pela mão como duas crianças,

subimos a escada enquanto ela conta alto os degraus, entramos no primeiro quarto e na

cama da meeira dormem Cosmo e Piccàrd e Cervellino com os dois casacos de pele em

cima dos pés e a loba que os protege sentada no pé da cama.

Cap. VII

No pátio da Langa ainda estão bem profundas as marcas das carretas alemãs. E jogados

aqui e acolá, os cartuchos das suas granadas. A meeira nos leva para ver onde eles

estacionaram os carros. Falta Maria Laò, que se escondeu por alguns dias em Benevello

onde ele tem o amor. A meeira não consegue entender como os alemães tenham podido

acertar Castino, se Castino daqui de cima não se vê, coberto por duas colinas,

Cervellino tenta explicar ele, faz uma grande confusão, chama de idiota triplo Piccàrd

que o tinha chamado de idiota, então Cosmo explica ele que fez escola militar e sabe

quase tudo de armas e tiros, mas a meeira não entende nada do mesmo jeito, e diz só os

alemães, ah os alemães.

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Embaixo da varanda ainda está o nosso millecinque vermelho, no seu lugar de sempre,

mas a meeira nos diz para ir dar uma olhada, pobre carro. Nós vamos e vemos que lhe

explodiram o motor com uma granada. Tudo bem, diz Piccàrd. Na portinhola da cozinha

aparece a gorda sobrinha pra jogar fora a água suja. A meeira olha por um bom tempo

pra ela, depois se decide, nos diz que sua sobrinha fez amor com um operador de canhão

alemão alto dois metros, amor até o fim. Cervellino diz que até o dia em que eles

fuderem aquela coisa ali, nós não temos ciúme nenhum. A meeira diz que tudo não

acabou ali, aquela desgraçada fala sempre do seu Mathias, e se chegar por acaso um

partigiano com alguma coisa atravessada e ouvir, pode até machucar ela. Mas Cosmo

diz que as mulheres são mulheres, e tudo isso não tem nada a ver, não deveria ter nada a

ver com a guerra e a política.

No que diz respeito à estratégia, foi exatamente como dizia Cosmo. Eles reatravessaram

todas as Langhe, de baixo pra cima, pegando de enfiada Valle Belbo. E fizeram coisas

inenarráveis, para se comportar ex aequo com os sócios deles de novembro. Mas não

conseguiram. A vontade havia, mas aqueles de novembro eram de fato de outra casta.

De todo modo saber fazer eles sabem. Tanto é verdade que a nossa Divisão está em

ruínas.

Agora que das Langhe os donos são eles, os republicanos vêm com frequência visitar as

propriedades, como verdadeiros donos. E nós nos fazem correr pra todo lado, como se

fôssemos contrabandeadores. Mas às vezes eles vêm como ladrões assassinos, de noite,

com os sapatos enfaixados de retalho, e fazem o anel em torno a uma casa que algum

espião imundo lhe deu primeiro o esboço, e os homens que lá moram são todos mortos.

A última aconteceu em Trezzo, povoado alguns quilômetros abaixo de Cascina della

Langa. Subiram de Alba no escuro, chamando de covarde aqueles que tropeçavam e

faziam barulho, meia-noite estavam em Trezzo, em cadeia em volta de uma certa casa, e

ali começaram a fazer bagunça, como se sabe que normalmente fazemos nós partigiani.

Gritavam que eram partigiani de tal comando, vinham de tal lugar, e queriam dormir

naquele estábulo. Depois de pouco o homem se apresenta na janela do térreo, e eles pelo

pescoço o arremessam pra baixo, o grudam na parede. Fizeram ele morrer três vezes,

antes que fosse bem morto. Porque erravam de propósito o disparo. O primeiro um

palmo acima da cabeça, o outro raspando num ombro, o terceiro a um pelo do quadril. E

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depois, à mulher dele que zanzava de camisola gritando o que fazia ela agora, lhe

disseram que ser puta é ainda um bom ofício e ela estava já com o traje.

Aconteceu em Trezzo, abaixo de nós, e nós dormíamos e dormia também a loba. Assim

à meeira faltou o coração, pela primeira vez, e nos diz que vai nos dar sempre de comer,

mas que pra dormir temos que ir procurar um lugar sobre as colinas mais distantes. Por

vocês e por mim, disse. Aquela noite mesmo esperamos a lua, em seguida fomos

embora, a meeira segurava a loba pela coleira que não viesse atrás de nós. Fomos como

os filhos pródigos, com os cobertores na cabeça e sem nunca fumar, porque Cosmo diz

que um isqueiro aceso se vê por quilômetros ao redor. Dormimos no estábulo daquele

que talvez vai acabar sogro de Maria Laò. Toda noite assim, mudando toda noite. E hoje

eu sou uma autoridade em matéria de estábulo de Langa. Lembro ainda que o tal

estábulo é o maior, que o tal outro é o mais úmido, que nesta faltam os panos que

servem de janela e tem um boi caprichoso, naquela as pessoas te dão alguns cobertores,

e assim sucessivamente. Mas nós tínhamos sempre um sono mortal. Se tivéssemos

acordado e fôssemos vistos em torno a um cerco da república, quase teríamos dito: –

Tudo bem, me deixem dormir mais um pouco – mas tem o perigo que aqueles te façam

dormir imediatamente e pra sempre. É isso que te faz seguir, seguir.

Enquanto isso a república de fato colocou um destacamento fixo em Nizza e em Canelli.

Em S. Stefano não, mas de Canelli até S. Stefano há apenas quatro quilômetros no plano,

eles vêm aqui passear. São maioria as vezes em que estão lá do que as que não estão,

nos dizem. Anna Maria, faça-me o favor de ficar quieta em casa. Estou já eu na rua.

Em nós começa a dar vontade, paramos nas estradas olhando em baixo as moças que

estão pastando nos declives. Olhamos para elas longamente e perigosamente, rodando

os punhos nos bolsos dos calções, mesmo sabendo que estas moças fedem de cabra e

vestem por baixo como as freiras. Piccàrd diz saber que certas loiras hoje em dia vestem

roupas íntimas pretas.

A república colocou um destacamento também em Cravanzana, no coração das Langhe.

Fixo ou temporário, quem sabe? Aqueles de Canelli, que são exploradores da Divisão S.

Marco, acertaram um pouco dos nossos, e antes de fuzilar, eles estudaram bem bem e

tiraram a roupa de todos eles. Em seguida se vestiram com a roupa deles e à moda deles,

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com um lenço azul no pescoço. E assim acontecem encontros muito estranhos, e sempre

sobra um morto, e o morto é sempre nosso. Depois ouvimos dizer que tem uma

imensidão de espiões em movimento sobre as Langhe, especialmente em Valle Belbo. E

nós quando encontramos civis pelas estradas daqui binoculamos bem antes de nos

deixar ultrapassar. E de noite lhes damos o altolà e fazemos ele vir adiante batendo as

mãos sobre a cabeça. Alguns agricultores vêm nos dizer que hoje no pátio passou um tal

que era certamente um espião e que pena que não tivessem partigiani nas redondezas.

Cosmo diz que de agora em diante vamos andar sempre compactos, e vamos inquirir nu

todo civil um pouco suspeito, às custas de fazê-lo eletrocutar pelo vento congelado das

Langhe. Eu desde pequeno acreditava que os espiões tivessem obrigatoriamente uma

certa cara que se devesse reconhecer à primeira vista. Agora mudei de ideia, porque

nunca vi uma daquelas caras que falam sozinhas, e no entanto os espiões existem,

porque sobre as Langhe estão acontecendo coisas que não se explicam que com os

espiões.

Uma semana antes do Natal estamos em cinquenta partigiani reunidos na bifurcação

Manera. Cada um olha se o outro é ainda mais mal vestido, depois nos olhamos em face

e esperamos quem é o primeiro a dizer que assim não se pode mais continuar. Tem dois

deles que ainda vestem as bermudinhas de verão e batem joelho contra joelho com um

barulho que nós ficamos todos calados pra melhor ouvir. Até que os dois colocam uma

mão entre as pernas e ficam assim curvados. Cosmo lhe pergunta porque não se fazem

dar um par de calças velhas de algum agricultor, mas eles dizem que não é coisa de

partigiani, não seria mais um uniforme. Tem o partigiano Delio que lhe dá vontade de

fumar, e tira fora a seda e uma pacote de trinchado. E tome-lhe no charuteiro, nós

voamos todos em cima dele, Delio foge por baixo de nós, apanhamos ele de novo, lhe

rasgaram o pacote e o tabaco cai lá embaixo. Apanhamos do chão, fio por fio, como as

galinhas. Delio nos chama de covardões, joga no chão as sedas e destrói elas embaixo

dos pés. Nós o evitamos com uma ombrada, levantamos as sedas lamacentas chamando-

lhe de bastardo egoísta. Cosmo, que não fuma, diz que somos tão ignorantes e que lhe

damos nojo. Acabado de fumar, o partigiano Nuvolari começa a rodar com a mão

estendida, dizendo que ele faz a colheita das pontas de cigarro. Mas a colheita é magra,

porque quase todos embolsam a própria.

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Chega o mensageiro Pucci, chega de depois de Castino, diz ele. Teve sorte, porque em

Ponte Belbo as sentinelas fascistas o pararam, lhe perguntaram onde ia, porque não

estava na escola aprendendo aritmética. Isso não nos comoveu, para nós o importante é

saber que eles estão parados a seis quilômetros daqui, no vale. Nós não sabíamos.

Este pedaço de gente de treze anos que é Pucci nos faz ficar quietos e em silêncio. Antes

porém Nuvolari lhe perguntou alto se é verdade que ele tinha feito uma bela missão e

assim Moretto por prêmio fez ele dormir com a Meris. Depois diz: – Prestem atenção no

que diz o Comandante de Divisão. Vistam-se todos como civis. Enfurnem as armas e

munições. Debandem todos pelas colinas, em três ou quatro por fazenda. Ajudem os

agricultores a trabalhar, e assim as pessoas sustentam vocês com mais prazer. Quem não

quer passar o inverno sobre as Langhe, desça pra planície, na cidade, e fique escondido

ou, se mesmo não pode, se entregue ao serviço de trabalho. Não será considerado

desertor. Voltará nas colinas quando o tempo melhorar, na primavera. Para aqueles que

ficam, boa sorte e reunião em S. Donato para o 31 de janeiro. Mandou dizer o

Comandante. E Pucci parte de novo, para ir dar o grito em algum outro lugar. Ali na

hora, diante da pergunta de Cosmo, ninguém disse que desce. Mas depois, dias após dia,

ficamos sempre em menor número.

Naquela noite mesmo a meeira nos dá uma fatia de gordura de porco, nós o fazemos

derreter, e Cosmo engorda o seu Mas e nós os nossos mosquetes. As pistolas ficamos

com elas, porque vão ser úteis, especialmente se tivéssemos que cruzar com espiões. No

escuro entramos no castanheiro, com Cervellino que traz a trouxa das armas e eu com a

pá. Eu começo a cavar onde manda Cosmo. Mas é a primeira vez que cavo, e arremesso

areia nas pernas de Cosmo que com uma faca está fazendo sinais sobre uma árvore.

Assim Piccàrd vem, me afasta, me humilha e cava ele. Em seguida saímos do

castanheiro, Cosmo vem por último e diz nas nossas costas que ele faz um outro

caminho. Nos viramos, Cosmo diz que vai descansar por alguns dias em uma casa de

Neive, onde ele tem o amor, e se não sabíamos agora sabemos. Tá bom, Cosmo, nós três

você vai encontrar sempre na Langa. Tchau, Cosmo, um abraço pra namorada e quando

puder fala também de nós para ela. Na Langa começamos imediatamente a trabalhar.

Piccàrd mexia a polenta, eu levava os cestos de caroço de milho e jogava no fogo

quando a meeira me dava sinal, e Cervellino tirou seis baldes de água do poço.

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De manhã vamos passear, três desocupados, pela estrada de Montemarino. A meeira

não deixou a loba vir com a gente, porque diz que todos sabem que é a loba da Langa, e

os espiões vão acabar vendo ela com a gente e imediatamente mandando a república

para a Langa. Cervellino que vai na frente para e nos faz parar também colocando uma

mão contra o nosso peito. Depois estende a outra mão em direção à bifurcação Manera e

na mira do seu dedo vemos uma carroça vir à bifurcação, com sobre ela poucas mas

estranhas pessoas. Param na frente da pensão e desmontam apontando as armas. São

republicanos, quatro, e um tem os cabelos vermelhos e a metralhadora. Oh se não

tivéssemos enfurnado as espingardas, diz Piccàrd. Eu digo que corro imediatamente lá

em cima pra desenterrá-los. Mas Piccàrd diz que não conseguiria em tempo, mão nas

pistolas e no chão atrás daquelas cássias e atenção àquilo que vai acontecer.

Lá embaixo na bifurcação aqueles quatro dão a volta redonda, e aquele ruivo parece o

mais enfurecido. Pela estrada de Benevello desce com as mãos no bolso e sem arma que

se veja o partigiano Charlot. Nós três nos apiamos nas mãos e estamos para lhe dar um

grito animalesco, quando Charlot vê quem tem na frente, arranca as mãos do bolso, voa

de lado entre a estrada e o fosso e rola ladeira abaixo como um pião revirado. Aqueles

quatro bem que correram pra beira e miraram nele uma dúzia de vezes, mas não atiram

porque tinha que ter sempre um morrinho ou um pulo que o cobre. E aqui em cima

Piccàrd diz que são bons militares, porque o bom militar você vê se estraga ou não

estraga os tiros e pelo não fazer barulho, se possível.

Agora voltam pra bifurcação, o ruivo recuado pra não perder de vista aquela ladeira, em

seguida entram na pensão. Como soubemos depois, na pensão estavam os partigiani

Cervo, Diego, Balin e Saratoga, e jogavam scopa dell’asso270

, com nada mais armados

do que seus lenços azuis. Aquele da metralhadora chega nas costas de Cervo e lhe enfia

a ponta da metralhadora entre os dois tendões do pescoço. Esta é uma das tantas

brincadeiras que fazemos entre nós partigiani, brincadeira animalesca, mas não a mais

animalesca. E Cervo mexe o pescoço, joga uma carta e diz: – E para com isso, cretino! –

Mas aquele empurra ainda mais e Cervo com a cabeça imprensada para baixo vê Diego

e Balin e Saratoga que se fastaram com as cadeiras e têm a boca aberta e as mãos altas e

as cartas que escorregam lá de cima uma a uma.

270

Nome do jogo.

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Trouxeram os quatro para fora, Cervo está levando tanto chute no traseiro, depois

sobem eles na carroça, dois na frente dirigindo e o ruivo e o quarto atrás com as armas

no crânio dos nossos quatro. E descem sem freios em direção a Ricca. Aqui é certo que

os levam até Alba, e em Alba depois dão fim em todos quatro, pro cemitério. E Cervo e

Diego, Balin e Saratoga são todos de Alba. Piccàrd pula de pé e diz que precisamos

seguí-los e enquanto isso procurar pelas colinas um partigiano com uma qualquer arma

longa. E eis que da colina de Benevello vem barulho de carro, e aparece, a passos lentos,

um caminhãozinho, e atrás, a pé, uma grupo de partigiani. E daqui de cima se veem

marcas de azul. Descemos gritando, e gritando escalamos pela subida de Benevello, mas

eles não escutam até que chegamos muito perto e dizemos tudo, nos segurando na

grama pra não cair de novo lá embaixo. É o Comandante de Divisão com Moretto e os

outros armigeri reforçados pelo pelotão Ceng. O Comandante diz a Ceng para ir à caça

com todos os seus, pegue o atalho, detenha-os a todo custo, talvez atirar no cavalo. E

Ceng parte com atrás os seus em fila indiana, e nós nos colocamos com as costas na

parede daquela igreja desconsagrada que tem em Benevello, o Comandante, nós três, os

armigeri e a mensageira Claudia. E começamos a fazer apostas, chegam neles, não

chegam neles, e Claudia pergunta a todo minuto quando é que vamos ouvir Ceng

atirando. Eu olho de soslaio o Comandante, não o vejo desde aquele dia das execuções.

Deixou mesmo crescer a barba, e tem um punhal na cintura, atrás.

Passam quinze minutos, passa meia hora, depois vêm as mosquetadas e disparos, e cada

barulho Moretto faz: – Nós, eles, nós... – mas não sei mesmo como ele saiba. Foi pouca

coisa, depois silêncio. E o Comandante diz que está feita. Pasa uma outra boa meia hora,

em seguida desemboca em uma curva aquela carroça, sobe a passos lentos, e em volta

estão aqueles de Ceng que avançam serelepes. Quando a carroça sai da penúltima curva,

vemos muito bem que aqueles quatro estão em cima da carroça, dobrados em dois,

aquele ruivo no meio, e atrás dele está Cervo, ereto, e lhe bate no crânio com os dedos

dobrados, e as batidas se ouvem até aqui em cima, como estivesse esculpindo. A mior

parte dos armigeri corre ao seu encontro gritando. Quando os fazem chegar à igreja e

lhes jogam no chão como sacos, aqueles quatro não têm mais cara, mas vê-se que são

muito jovens. E aqueles que lhes espancaram por todo o caminho, perguntam ao

Comandante quando se começa a espancá-los. O Comandante diz que vai se fazer a

coisa no fechado, dentro da igreja que tanto é desconsagrada. Ceng arrasta os quatro em

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direção à igreja, e atrás todos nós a multidão para conquistar os primeiros lugares.

Moretto como sempre é o primeiro, e antes ainda da soleira, chega do lado do ruivo e,

como é pequeno, dá uns pulinhos apoiando-se nos ombros dele e lhe bate na cabeça o

carregador do Sten, um pulo e uma pancada. E diz que assim que estiver na igreja

arruma logo um banquinho.

Dentro depois aqueles quatro estão logo com as costas no pavimento, e os espancam

Cervo, Diego, Balin e Saratoga, precedência de direito. Mas depois vão em cima deles

dois, três, quatro levas de partigiani. E batem do jeito que dá dá. Em seguida da

multidão se separa um partigiano com sangue no nariz, um outro partigiano que cospe

sangue e apalpa os dentes bambos, um outro com um olho tapado. Entra o partigiano

Charlot, todo manco, porque rolando daquele jeito torceu o tornozelo. Vem adiante

segurando alto em cima da cabeça uma estaca que deve ter extirpado em alguma vinha,

e grita: – Abram, abram! – aqueles partigiani que estão no serviço escorregam de lado e

descobrem os quatro. Charlot bate a estaca, não perde um golpe, onde quer que onde

quer que pegue dá sempre certo. Agora Ceng grita a Charlot para se afastar porque tem

o Comandante chegando. Nós todos olhamos pra porta, e entra o Comandante com uma

cara tutta pelo e cuoio, o casaco de pele puxado até as orelhas, para, roda o cinturão em

torno à cintura de modo que o punhal que ficava pendurado atrás venha pra frente, na

metade. E ele deixa cair uma mão no punhal, a lâmina vai tocar o fundo da bainha,

fazendo tchiac. Oh, nos mete medo. O menos moribundo daqueles quatro se levanta

chorando sangue, fica de joelhos e grita: – Mãe! Pai! Chega, Comandante! Perdão e

piedade, Comandante! Os outros três fazem como ele, menos o gritar, em seguida o

Comandante diz: – Eu não toco em vocês, porque sou oficial, mas tenho vontade de

partir a todos quatro o coração com este punhal. – E o ruivo desmaia, cai pra frente, com

o nariz sobre um sapato do Comandante, Bandiera, um dos de Ceng, dá um passo pra

frente bate continência, pede ao Comandante que seja ele a fuzilar os quatro, com a

metralhadora. O Comandante arranca o sapato de baixo do nariz do ruivo, o retira com a

ponta ensanguentada, em seguida diz: – Eu daria nas tuas mãos, Bandiera, mas eles têm

muitos dos nossos em Alba e em Canelli. Vamos fazer uma troca. Um outro desmaia. O

Comandante olha pra ele, dá pra ler na cara dele que entendeu que ele desmaiou pelo

alívio e quase quase muda de ideia, depois diz: – Vamos fazer uma troca, qualquer dia

desses. Para estes quatro quero dez dos deles. Se eles não aceitam dez, vou fazer oito.

Se não aceitam nem oito, estes aqui são teus, Bandiera.

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A céu aberto o Comandante dá as ordens. Quatro de Ceng peguem aqueles quatro,

levem a uma fazenda isolada e fiquem com eles até que não será combinada a troca.

Descarregar o caminhãozinho na igreja, se não o caminhãozinho não sobe a subida da

Langa, e voltar amanhã de manhã pra recarregar. Vamos todos para a Langa, e partimos

de novo às duas dessa noite, Claudia irá conosco e amanhã de manhã da Langa vai a

Cortemilia pra levar aquele recado que ela sabe. Em seguida o Comandante diz que é

preciso fazer provisões, para não pesar sobre Fazenda da Langa que já dá tanto. E os

armigeri se dispersam pelas colinas, mirando nas fazendas.

O Comandante, Claudia, Moretto e nós três nos movemos a pé em direção à Langa. Diz

Moretto que esse de hoje é um verdadeiro golpe alla partigiana. Mas eu digo que

quando poucos republicanos ousam subir até a bifurcação Manera e aprontar aquilo que

vez em quando aprontam, é mal sinal para nós, e este é só o começo. O Comandante não

fala, mas deve pensar como eu. De todo lado nos perseguem os armigeri, levando cada

um uma galinha com um pescoço longo assim. Depois tem uma gritaria nas nossas

costas, da bifurcação o armigero Fodretta grita que está subindo uma carroça e poderia

ser um espião. Voltamos, estamos na bifurcação com a carroça, o velho que está nela

diz que é o dono da pensão de Borgomale, um armigero o reconhece, o velho diz que

volta do mercado de Alba e procura o partigiano Beppe de Alba, para lhe dar uma carta

da sua família. Beppe sou eu, pego a carta, obrigado, embolso, vou ler na Langa com

conforto e prazer.

No pátio da Langa corre a meeira, faz uma meia reverência ao Comandante, depois

chega na ladeira, vê a multidão dos armigeri e de Ceng, e coloca as mãos na cabeça.

Vou em separado, tiro do bolso a carta, mas o pátio está cheio de partigiani que

depenam as galinhas. E a meeira vira pra ver se alguma se parece com as suas, depois

diz que o Comandante e seu seguimento se hospedam na casa grande, os demais no

estábulo com Beppe, Cervellino e Piccàrd. Entro embaixo da varanda, vou pra dentro do

carro, me sento para ler, com a cabeça e as folhas saindo pela janela, porque escurece. É

uma carta da minha irmã, que agora que eu não estou é a escrivã da família:

Querido Beppe,

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nós todos bem, ainda que um pouco aflitos, porque a república daqui sabe que você é

partigiano e poderia se vingar em cima de nós. Recebemos teu recado do casaco de pele.

Mamãe encomendou imediatamente, acho que vai ficar até bastante elegante. O difícil

vai ser fazer passar pelo bloqueio, mas esperamos fazer chegar em ti de todo modo e o

quanto antes. Enquanto isso vai em Valdivilla no senhor... dono da fazenda... Esteve em

casa até sábado passado, e a mamãe lhe deu mil liras e um par de meias pra ti. Em cada

meia você vai encontrar dois maços de cigarro. Vá com certeza. Sabe aquela tua

fotografia grande que tem na sala de jantar? Vieram os republicanos para nos fazer a

perquisição e cobriram ela de cuspes, depois começaram a gritar que você era um

traidor e um bastardo. Então a mamãe disse a eles que ela pode dizer que você não é um

bastardo. Procura uma maneira de nos fazer saber do que você precisa. A mamãe te diz

para dormir protegido e com um olho só, pra não querer sempre ser o primeiro, e quer

que você faça algumas noites as orações.

Marisa.

P.S. Nos deram de presente um filhote. Os donos de antes o chamavam de Michelangelo,

nós o chamamos de Micky.

Em que ano está minha irmã? Segundo do ginásio? Aquele quanto antes lhe soprou

certamente meu pai. Aquele retrato é uma ampliação da foto que eu tinha feito para a

carteirinha da Universidade. A minha cara de 1940, e tinha uma minha colega de Liceu

que achava aquela cara doce e altiva. Vai entender. As orações, mamãe querida, eu

esqueci. Tanto para dizer, tento o Pai Nosso e três vezes engasgo em venha a nós o

vosso reino, e não me lembro de mais nenhuma palavra.

Agora está escuro, aquela no fundo do pátio me parece Claudia e creio que olhe na

direção do carro. Desço, se ouve o caminhãozinho que se agarra palmo a palmo na

subida da Langa, rangendo. E depois os faróis que fazem caminho no céu, uma ponte

sobre as colinas, enfim círculo nas paredes da Langa. Atravesso o pátio para ir no

estábulo e da casa grande desemboca uma algazarra enorme e alguém chama Claudia,

Claudia. Mas Claudia entrou correndo no estábulo, e quando sentamos na mesa Claudia

senta à minha direita. E me tenta por todo o jantar, fazendo-se palpar as pernas para que

eu sentisse a seda das meias-calças, apontando o indicador no profundo das coxas e

dizendo que amanhã eu poderia muito bem acompanhá-la a Cortemilia. Eu digo alto que

amanhã vou a Valdivilla e talvez Cervellino e Piccàrd vêm comigo. Piccàrd e Cervellino

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que parecem não ver nada dizem que vão. Então Claudia me sussura que ela dorme na

casa grande e a esquadra Comando desocupa às duas. Lá está a meeira que me olha,

batendo as pálpebras frequente demais. Depois Claudia vai na casa grande e nós três

vamos dormir. Acontece a briga de sempre por quem deve dormir no meio, mas essa

noite não cedo porque preciso me levantar clandestinamente. Estão lá embaixo no pátio

os homens de Ceng que começam o turno da noite e brigam pelos turnos. Eu não fecho

o olho, a julgar pela respiração Piccàrd e Cervellino devem dormir bem. Depois de

muito, depois que ouve quatro substituições, há um grande barulho, bate a porta de ferro

da casa grande, juntos gritam e correm todos. Eu me levanto, pegos os sapatos na mão e

procuro no escuro as pupilas daqueles dois. Quando estou na porta Cervellino faz: – Vai

esquentá-la né? – e Piccàrd: – Você não tem medo que ela tenha sarna?

No pátio me atropela um chi va là não tanto convicto. É um armigero que dorme no

caminhãozinho. Digo que vou fazer xixi e finjo fazer, em seguida roçando as paredes

chego na porta de ferro, empurro, entro e subo. Tento na primeira cama. Tá escuro breu,

mas não deve ser aqui, não ouço respirar, entretanto vou tatear a cama. Da soleira do

segundo quarto, tem no fundo do escuro um chaminha verde que é o lampião que morre,

e Claudia dorme aqui. Pula sentada na cama e ela também de diz o chi va là. Depois diz

ah, vem, e se deita de novo. Me pede para não baixar imediatamente as calças, senta

aqui na borda, me conta como ela fez pra acabar entre os partigiani. Uma história muito

longa para o meu caráter e a minha condição. Depois me dá lugar na cama, e assim vejo

que embaixo do cobertor ela jaz sobre a nua rede metálica. Preciso fazer um pouco de

joguinho, porque ela quer assim. Me diz que sou o primeiro partigiano de cueca que

não lhe fazia rir e que depois do fato não lhe dá nojo. Me diz que amanhã vou com ela

em Cortemilia. Repito pra ela que amanhã preciso ir em Valdivilla. Ela me diz que se

vou com ela até Cortemilia, me deixa fazer réplica pelo caminho, no primeiro bosque

que vemos. Eu digo que a réplica fazemos aqui e instântanea, ela me diz que estou

perdido, e lutamos. Quando uma moça aperta as pernas, não tem mais diabo que lhes

arreganhe. Quando já perdi a esperança e lhe digo Claudia, você é uma cristo, Claudia

se deixa ir, com um suspiro como tivesse saído alguma coisa de dentro dela.

Enquanto eu estava tamburelando a mensageira Claudia pela terceira vez, alguém voa

pelas escadas, não temos tempo de nos separarmos, entra Piccàrd e eu lhe digo que da

próxima vez bata. Piccàrd fica imóvel e um pouco dobrado olhando para Claudia que se

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enfia novamente as calcinhas, depois me diz vamos nos apressar para ir a Valdivilla,

porque a república está zanzando por estes lados.

Digo: – Quem viu?

Diz Piccàrd: – Ninguém.

E Claudia: – Quem disse que há?

Piccàrd diz que disse um civil de Benevello fugindo.

Digo: – Porque vocês que já estão prontos não vão ver?

E Piccàrd: – Sai pra ver a névoa que tem.

Saímos e o pátio é um lago de leite com dentro sombras que fazem gestos como moscas

no mel. Da varanda vem o barulho enxuto do caminhãzinho que não pega porque está

gelado e os dois armigeri cristonano271

. Vem a meeira dizendo que tem um

pressentimento ruim. Percebo do meu lado o pequeno que quer um cigarro. Digo que

dessa vez estou zerado, e ele me diz que se lhe dou dez liras me dá um cigarro e um

punhado de tabaco. Eu lhe dou e assim fumo. Chega Cervellino, e Piccàrd diz para

partir imediatamente. Mas Cervellino diz que ele não vem, sente dor de garganta tanto

que dói pra falar e vai ficar na Langa perto do fogo. Agora o motor ligou, estronda que a

república não pode não ouvir, os armigeri manobram o caminhãzinho pra colocar com a

fuça em direção à estrada de Montemarino. Claudia diz que vai com eles de carro até a

bifurcação Manera, em seguida de lá desce pra Campetto. Enfia um pé entre os raios da

roda e com a outra perna pula por cima da parte lateral. É bonito ver que uma garota que

foi tamburelada a noite toda ainda faz destas espargatas. A meeira corre pra janelona e

pede aos dois armigeri para carregar dois sacos de farinha para o forno de Manera, que

assim economiza de mandá-los com a carroça. Os armigeri dizem que sim, e a meeira

diz que vão montar também sua sobrinha e o pequeno para a entrega no forno. O

pequeno tem onze anos e nunca andou de carro. Sobe a carga, Claudia, a sobrinha e o

pequeno despedem com a mão, e o caminhãozinho escorrega em direção ao fim do pátio.

Tatatata, um disparo breve, de sabe-se lá onde, de sabe-se lá quem. O caminhãozinho

para, fica suspenso entre o plano e a descida enquanto dura o eco do disparo, depois

desce.

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Invocam Cristo.

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Piccàrd diz ao seu irmão para vir com a gente. Cervellino diz que ele não se move, ao

invés disso nós que vamos, procuramos para ele na farmácia de Mango umas pastilhas

de potassa, porque a dor de garganta está aumentanto e vai coincidir com o ouvido

esquerdo. Eu digo Cervellino, vem embora com a gente. Cervellino diz para não encher

mais, vai pra cozinha de todo jeito. Eu digo a Piccàrd pra fazê-lo vir dizendo-lhe como

irmão mais velho, mas Piccàrd diz que daquele papel nunca conseguiu comandá-lo. Vai

à portinhola e ouço ele dizer: Tchau, Ettore. Eu e Beppe voltamos de tarde. Fica com a

loba por perto.

E vamos embora, nadando na névoa, bebendo-a. Não vemos onde colocamos os pés,

mas não erramos certo caminho. E aquela famosa Manera-Mango, antes de nós, a

reconhecem nossos solados. Não vemos a face das fazendas, nos dizem que estamos

passando o latido dos cães. Chegamos em Mango, a praça é como o pátio da Langa hoje

de manhã. Digo a Piccàrd que devem ser dez, um civil que passa ouve e nos corrige que

é mais de meio-dia. Quatro horas pra uma estrada que precisa de duas, sem a névoa.

Descemos à pensão pra comer um prato fiado, já que não tem mais destacamento e nem

refeitório. Entramos na sala comum pedindo linguiça, e tem um grupo de civis todos de

pé falando de república e de Fazenda della Langa. E Piccàrd vai no meio do grupo que

lhe se fecha em torno e pergunta o que tem pra falar tanto de Fazenda da Langa. E um

lhe diz nada, só que na Langa esteve a república. E Piccàrd se levanta na ponta do pé

para me olhar na cara para além daquelas pessoas. Chego no meio eu também e

pergunto como fazem eles pra saber, e dizer para nós que da Langa estamos vindo. O

outro diz que pode jurar que na Langa esteve a república e que deve ter acontecido

enquanto nós estávamos no caminho. Diz que aqui as notícias chegam em círculo do

lugar onde a república colocou pedra. Piccàrd a essa altura já está convencido, pergunta

só se houve combate. Aquele diz que não, e Piccàrd sai afastando os outros e eu na sua

cola. Voltamos para a Langa.

Saímos, em frente à pensão tem a farmácia, paro, faço a Piccàrd: – Vamos comprar as

pastilhas para Cervellino? – Mas Piccàrd não para, me diz sem se virar que Ettore foi

pego na Langa. Eu corro atrás dele e lhe digo que pordeus, Piccàrd, não fale assim. Ele

diz que espera só que eles o tenham encontrado sem armas e que pelo resto ele não tem

mais esperança. O alcanço, lhe digo raivosamente que se engana, e diz isso como por

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superstição. E Piccàrd se vira pra mim com os punhos e me grita que ele é irmão dele e

que pressente no sangue. Em seguida geme seco uma só vez.

Caminhamos separados, com a raiva pelo corpo, devorando a estrada para chegar antes

e ver quem tinha razão e poder dizer ao outro. A névoa ainda estava ali parada, nos dava

prazer que nos impedisse de ficar cara a cara. Na bifurcação de S. Donato Piccàrd

começa a correr, sem falar, mas eu me mantive bem atrás dele e o teria certamente

ultrapassado, se tivesse querido.

Na vista de Serra dei Pini, ou seja, a trinta metros por causa da névoa, tem no pátio tanta

gente em grupo. Nós metemos a mão nas pistolas e avançamos lentos e dobrados em

dois. Mas são agricultores. Nós desembocamos no pátio, um foge se jogando corpo

inteiro no córrego, todos os outros levantam as mãos. Mas nos reconhecem, abaixam as

mãos e nos encontram dizendo baixo Beppe e Piccàrd. E um corre na beira do córrego e

chama: – Bril! Bril, são dos teus! – Quem fugia era o partigiano Bril, do extinto pelotão

de Benevello.

Chega, disse o meeiro da Serra, eles pegaram todos todos, tinha razão Piccàrd, ele

pressentia no sangue, eu pressentia só como partigiano. Pegaram tudo e os animais, o

dano é grande, mas não vamos falar disso quandono meio disso estão homens. As coisas

que toquem fogo. Até a meeira pegaram e levaram embora, e devem ter ferido também

o pequeno, na único disparo que houve em toda a manhã. Pergunto se já foram embora

da Langa. Dizem sabe-se lá, é por isso que estão todos ali, na foz dos córregos, prontos

para fugir. Piccàrd diz que ele vai para a Langa, república ou não. E sai sem olhar se eu

o estou seguindo. Eu o sigo sim e Piccàrd além da pistola colocou pra fora uma granada

que eu não imaginava que tivesse. Subimos filtrando a névoa com os olhos e as orelhas,

mas em cima, em torno à Langa, tem um silêncio tal que Piccàrd começa a gemer: –

Não tem mais ninguém, não tem mais ninguém. Adeus. – Rente às paredes

desembocamos no pátio, e a loba não está mais, não se ouvem cacarejar as galinhas nem

os porcos grunhir de baixo da varanda. Piccàrd vai escancarar a porta do estábulo,

vemos a manjedoura abarrotada de forragem, mas não os dois bois. Entramos na

cozinha, e sob os nossos pés estala toda uma camada de copos e pratos. Arrombaram o

armário e os vitrais do aparador. É de fato embaixo do aparador que tem mais estilhaço

de pratos e de copos e estalam alto. E de cima uma voz chama quem está aí, quem está

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aí. Eu digo que me parece a voz do pequeno e corremos para a escada. Passando pelo

quarto contíguo, vemos voando que o chão está nu e só hoje de manhã cedo desaparecia

sob uma infinidade de batatas. Quando agarramos a escada, o pequeno não parou de

chamar, agora grita por piedade, senhores, sou uma criança sozinha, senhores, não me

façam mais medo. Eu e Piccàrd pulamos na soleira e o pequeno engole o medo. Está na

cama, uma cama terremotada, e se abana os cabelos sobre os olhos marejados. Tira de

cima o cobertor, lhe vemos um tiro na panturrilha, um buraco vermelhoamareloroxo, da

de um lado ao outro. Depois diz que teve sorte, mas que não o pegam andando de carro

de novo. Teve sorte porque lhe cabiam dois tiros do grande disparo que a república deu,

mas um encontrou a tabaqueira que ele tem sempre no bolso. E diz para olhar embaixo

do travesseiro. Eu levanto a cabeça dele e o travesseiro e tiro a tabaqueira com um

buraco de um lado e um inchaço do outro. Digo que teve sorte sim, mas ele me diz para

lhe devolver a tabaqueira, que eu ia pegar o tacabo dele. E tua mãe? Levaram para Alba,

amarrada com todos os outros com as nossas cordas, em cima da nossa carroça puxada

pelos nossos bois e a loba atrás até a cidade. É dia 21 de dezembro, né, hoje? Estavam

na bifurcação de Manera, esperaram pela gente calculando o barulho do motor, em

seguida nos pararam com um grande disparo, metade no motor e metade no furgão.

Mãos ao alto, eu já estava ferido, e disse: – Cristo, estou ferido. Partigiani e

republicanos, que sequem os culhões de todos dois. – E depois vieram aqui pra cima,

comigo nas costas, sem fazer barulho, um tossiu e o oficial lhe apontou a pistola.

Estavam fora do pátio minha mãe e Cervellino. Minha mãe não digo, mas Cervellino

pegaram como um peixe. Quando lhe gritaram para se render, ainda estava em tempo.

Bastava que desse uma guinada e depois abaixo rolando pela ladeira do castanheiro, e

com a névoa eles tinham um belo tiroteio. Mas Cervellino não foi ágil. Piccàrd diz que

Cervellino não se sentia bem, é claro que não estava ágil, não sentia os reflexos

disponíveis. E depois Cervellino sempre teve azar. Em seguida pergunta se abateram

Cervellino, não, lhe disseram só que lá embaixo em Alba lhe faziam passar a dor de

garganta, mas lá embaixo na bifurcação os dois armigeri lhe pegaram com chute na

barriga e murros nas têmporas. E a Claudia? digo eu. A Claudia só chamaram de grande

puta. Pobre Claudia, penso, agora a fazem passar do oficial a quem tiver de plantão.

Sorte que treinou bem com a gente. Lhe dizemos que se esforce para dormir, lhe digo ai

de você se fumar. Descemos na cozinha, Piccàrd para pra pensar procurando os

estilhaços maiores e triturando com o calcanhar. Em seguida tira o cinturão e me passa

com a coldre e a pistola. Colocando-o nas minhas mãos, me diz que ele desce pra Alba

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pra se entregar, assim pode ser que amenize o destino de Ettore. O acompanho até a

margem do pátio, balançando o cinturão. Na margem se vira e me diz que se ouço um

dos nossos dizendo que Piccàrd é um desertor, lhe quebro a cara. Tá bom, Piccàrd, a

partir de amanhã eu exploro os Comandos pra ver se eles têm gente pra troca. Alguma

coisa a gente vai bem fazer. Tchau Piccàrd.

Agora estou sozinho, só diante do inverno. Tè, tè, lupa!

Cap. VIII

Cosmo tinha dito que ele se emburacava em Neive por alguns dias, e eu desco em Neive

para pedir conselho ao meu comandante Cosmo. Mas em Neive não o encontro na praça,

e paro um tal que sei que nos conhece todos dois. Lhe pergunto onde mora aquela

garota que Cosmo corteja, mas ele me diz que é novidade pra ele que Cosmo namorasse

uma de Neive. Eu zanzo pelo povoado, em uma destas casas deve estar Cosmo, a dúvida

me faz espiar por alguma janela no térreo. Alguma mulhere me ouve por trás dos vidros

e se vira me olhando fixamente, mas eu sorrio, mexo um dedo pra dizer que não é nada

e passo direto. Refaço uma por uma as ruas do povoado, mas com esse frio Cosmo não

está certamente passeando. Cosmo eu vejo sentado no fogo, na cozinha de uma das mais

cômodas casas de Neive, olhando sua namorada cozer e fazendo-se uma bela ideia da

vida de depois. Volto na praça, o olho me cai na planície da olaria e a mente no dia da

Imaculada. Passaram quinze dias, mas me parece que Piccàrd e Cervellino tivessem

feito comigo toda uma longa guerra comigo a partir daquele fato. Não serviu a

Cervellino e a Piccàrd o milagre de sair vivo do dia 8 de dezembro. Cervellino fuzilam

um dia desses, e Piccàrd vão enfiar em alguma brigata nera e vão levar pra ca-[...].272

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Fim da Caderneta IV.