BIASI-RODRIGUES, B. A diversidade de gêneros textuais no ensino - um novo modismo

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Bernardete Biasi-Rodrigues

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1 IntroduoPesquisas muito recentes tm revelado novas concepes e tipologias de gneros textuais/discursivos na esfera das interaes verbais, mas o assunto ainda tem sabor de novidade nos materiais didticos e entre os professores que atuam no Ensino Fundamental. Ao manusearmos algumas das colees de livros didticos de Lngua Portuguesa mais atuais, que se enquadram na classificao estelar do MEC, podemos constatar uma grande variedade de gneros textuais encabeando as propostas de atividades em compreenso, produo e anlise lingstica. A pergunta que nos colocamos, ento, se essa nova prtica est se construindo em favor da eficcia comunicativa ou apenas um novo modismo com velhos pretextos. Para respond-la, apresentamos, inicialmente, algumas concepes de gneros textuais e tipologias, a seguir, avaliamos o tratamento dado ao assunto nos Parmetros Curriculares Nacionais - PCNs e em algumas colees de livros didticos para o 3 e 4 ciclos do Ensino Fundamental.

2 As concepes de gnero e tipo textualA tipologia tradicional apia-se numa classificao tridica para os gneros textuais no-literrios: narrao, descrio e dissertao. Esta a que vem sendo praticada na Escola e tratada nos livros didticos em geral at os nossos dias. As teorias mais recentes, porm, esto mostrando que essa classificao no d conta das diferentes prticas sociais atravs da linguagem, ou seja, no contempla os inmeros gneros textuais, mas apenas modalidades ou formas de organizar as informaes nos mais variados gneros, que podem ocorrer, no raramente, de forma combinada. Atualmente a obra que tem sido referncia obrigatria para o reconhecimento dos gneros e para a elaborao de quadros tipolgicos a de Bakhtin (1992, p.281). O autor enquadra os gneros discursivos em duas classes: os gneros primrios (simples) - a conversao oral cotidiana e a carta pessoal - que so constitudos em circunstncias de comunicao verbal espontnea; e os gneros secundrios (complexos) - o romance, o teatro, o discurso cientfico e o discurso ideolgico, entre outros - que aparecem em circunstncias dePERSPECTIVA, Florianpolis, v.20, n.01, p.49-64, jan./jun. 2002

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uma comunicao cultural mais complexa e relativamente mais evoluda, principalmente escrita: artstica, cientfica, sciopoltica(BAKHTIN, 1992, p. 28). Alm disso, Bakhtin (1992,p.28) aponta trs aspectos que caracterizam os gneros em geral: o contedo ou seleo de temas; o estilo ou escolha dos recursos lingsticos; e a construo composicional ou formas de organizao textual. Essa caracterizao tem motivado muitos pesquisadores envolvidos com a anlise de gneros a descrever as estratgias de seleo e distribuio do contedo e as escolhas de recursos lingsticos, reveladas na superfcie textual em instncias de interao verbal. Segundo Meurer (1998), a organizao retrica de um texto diz respeito ao conjunto de recursos que o escritor usa para indicar ao leitor como seu texto se organiza e qual a funo ou funes das vrias partes em relao ao todo. Nas concepes mais recentes de gnero discursivo - muitas das quais inspiradas em Bakhtin (1992, p.28), ou de gnero textual - denominao que vem ganhando espao na literatura sobre o tema, est se realando principalmente a sua dimenso social. A linguagem verbal uma ao social (MILLER, 1984) e a noo de audincia, ou de uma audincia potencial, sem dvida, um fator determinante dessa ao. O sentido de audincia exerce influncia direta nas escolhas que o falante/escritor faz, quando em situaes de produo: seja do tpico, da quantidade e do balanceamento das informaes (mais ou menos explcitas), das estratgias de organizao do texto em termos de seleo lexical e de relaes semntico-sintticas, seja do estilo e do registro mais adequados para criar textualidade e interagir com o provvel ouvinte/leitor. Quando as situaes comunicativas so mediadas pela escrita, o escritor precisa saber lidar com parmetros de organizao textual relativos a cada gnero, para distribuir as informaes no seu texto de acordo com esses parmetros e com convenes que reconhece como sendo daquele gnero e que, muito provavelmente, sero reconhecidos pela sua audincia potencial. Embora a preocupao com a audincia venha adquirindo cada vez mais importncia na literatura e nos manuais didticos, ainda carece de maiores cuidados nos meios escolares, mesmo de nvel superior. Conforme bem coloca Long (1990, p.73), mesmo quePERSPECTIVA, Florianpolis, v.20, n.01, p.49-64, jan./jun. 2002

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(...) o conselho mais tradicional dado aos estudantes escritores sobre o(s) leitor(es) seja No esquea a sua audincia!, dentro do contexto da sala de aula, tal conselho, provavelmente, tem sido sempre suprfluo para a maioria dos estudantes, porque eles esto conscientes da sua real audincia - o professor, que atribui a nota para o seu texto escrito e, ultimamente, para o seu desempenho como um todo.

um novo modismo? De fato, essa uma realidade que no se pode negar e que repercute na qualidade da produo escrita no ambiente escolar, restringindo o seu domnio e impedindo uma prtica efetiva de variados gneros ou o reconhecimento da sua fora comunicativa em instncias de uso especficas. Para que a noo de audincia deixe de ser fico entre os estudantes como membros efetivos de uma comunidade discursiva, o professor no pode ser o nico interlocutor de seus alunos. Segundo Martin (1989, p. 62-63), a linguagem um recurso de fundamental importncia na construo da experincia humana e aprender sobre linguagem significa aprender a fazer escolhas. E todas as escolhas so polticas. Ns no escrevemos ou falamos somente para passar o tempo. A dimenso da habilidade de persuadir no se restringe, portanto, ao orador, envolve tambm o interlocutor, pela sua reao, e o prprio discurso, pelos seus mecanismos de persuaso. Inevitavelmente, a escolha de um gnero determinada pelas instncias sociais de uso, que envolvem as necessidades imediatas dos interactantes, os objetivos e efeitos pretendidos pelo locutor e as convenes que regulam cada esfera comunicativa. Em vista disso, os pesquisadores dedicados a atualizar a concepo de gnero textual e definir critrios em busca de uma tipologia, reacendem o conceito clssico de retrica, recuperando os trs componentes defendidos por Aristteles: o falante ou escritor; o discurso, ele mesmo; e a audincia. Assim, para Williams (1996, p. 27), uma definio contempornea de retrica deve levar em conta que o controle consciente da linguagem proporciona um efeito pretendido numa audincia. Mantm-se, portanto, o carter persuasivo da linguagem verbal, ou seja, o sucesso da ao verbal medido pelo efeito que causa na audincia, por ganhar a adeso desta e no s por transmitir informaes consideradas relevantes pelo falante/escritor.PERSPECTIVA, Florianpolis, v.20, n.01, p.49-64, jan./jun. 2002

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Cabe acrescentar que novas formas genricas vm sendo institudas nesse final de sculo e que a tecnologia da informao se desenvolve cada vez mais rapidamente, ampliando a complexa rede de possibilidades de intercomunicao global. Em face disso, a noo de audincia ganha outra dimenso, e novas convenes so acordadas entre os membros dessa comunidade discursiva globalizada. Quem quiser dela fazer parte precisa estar preparado para participar de um novo e sofisticado processo de intercmbio verbal, apropriando-se das estratgias adequadas de conduo de informaes em contextos especficos. Os estudos tipolgicos atuais tm revelado uma gama variada de critrios classificatrios, na inteno de cobrir a diversidade de gneros que so praticados efetivamente na sociedade contempornea. Dos pesquisadores que vm trabalhando nessa rea, selecionamos alguns para ilustrar as novas tendncias e tambm para evidenciar a terminologia empregada no tratamento do assunto. Silva (1997 ,p. 79, grifo meu) em artigo publicado na revista Alfa, inicia o seu resumo com a seguinte frase: este artigo apresenta reflexes sobre os gneros do discurso e/ou tipos de texto, defendendo a preferncia dos lingistas pela expresso tipo de texto, pelo fato de o termo gnero estar tradicionalmente atrelado a estudos literrios. Em sua proposta para uma tipologia de textos, a autora apresenta trs critrios classificatrios, um formal, outro funcional, e um terceiro, associando os dois primeiros. O primeiro toma por base a concepo de Schiffrin (1994) para estruturas discursivas, entendidas como modos de organizao de informao, que representariam as potencialidades da lngua, as rotinas retricas ou formas convencionais que o falante tem sua disposio na lngua quando quer organizar o discurso (SILVA, 1997, p.89). Assim uma classificao de natureza formal, que leva em conta as estruturas disponveis na lngua, corresponde em linhas gerais ao que tradicionalmente se identifica como gneros do discurso: estruturas narrativas, descritivas, expositivas, expressivas, procedurais e dialgicas (SILVA, p. 90, grifo meu). O segundo critrio funcional e volta-se para o uso dessas estruturas em situaes reais de comunicao, em que se produzem unidades comunicativas, correspondentes a tipos relativamente estveis de enunciados (Cf. BAKHTIN, 1992), por exemplo, a conferncia, a estria, a piada, a reportagem policial, o editorial, a carta etc.PERSPECTIVA, Florianpolis, v.20, n.01, p.49-64, jan./jun. 2002

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Entre essas unidades destaca-se a estria, que ilustra, tipicamente, a concretizao de uma estrutura narrativa, e a receita, de uma estrutura procedural (SILVA, 1997, p.91). Um terceiro critrio de classificao, que associa os dois primeiros, resulta em categorias mais complexas de gneros discursivos, como a carta e a conversa, unidades discursivas onde diversas unidades menores ou estruturas discursivas coexistem (idem, p. 94). Outra referncia sobre o tema Marcuschi (1999, p.27) que, em texto ainda indito, intitulado Por uma proposta para a classificao dos gneros textuais, sugere a expresso gneros comunicativos em substituio a tipos textuais e justifica:Textos so artefatos ou fenmenos que exorbitam suas estruturas e s tm efeito se se situarem em algum contexto comunicativo. Assim, o termo comunicativo ao lado da expresso gnero daria a qualificao mais adequada.

O autor apresenta extensa escala de gneros comunicativos orais e escritos, preenchendo um continuum que vai desde os mais prototpicos da fala, as conversaes, aos mais prototpicos da escrita, os acadmicos. Sua proposta por uma tipologia conjunta para a fala e a escrita, a partir de uma anlise multidimensional (Cf. Biber, 1988), de um conjunto de caractersticas detectadas em formas prototpicas da fala e da escrita, que permitem desenhar uma classificao de gneros textuais dentro de um continuum. Uma ltima referncia que convm fazer obra de Kaufman e Rodrguez (1995, p.12) voltada para o ensino de gneros textuais. As autoras apresentam uma seleo de gneros que aparecem com maior freqncia na realidade social e no universo escolar. Essa seleo apoiada em dois critrios de classificao - trama e funo. As tramas correspondem s seqncias ou modalidades discursivas que se revelam na estrutura dos textos descritiva, argumentativa, narrativa e conversacional, e estas so cruzadas com quatro funes informativa, expressiva, literria e apelativa. Alguns gneros so definidos pelas autoras a partir desses critrios para subsidiarem projetos de atividades escolares para o nvel bsico ou fundamental. Por exemplo, um artigo de opinio tem trama argumentativa e funoPERSPECTIVA, Florianpolis, v.20, n.01, p.49-64, jan./jun. 2002

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apelativa; uma carta tem trama narrativa e funes informativa, expressiva e apelativa; uma reportagem tem trama conversacional e funo informativa. Como se pode perceber por essa amostra, o quadro classificatrio que as autoras apresentam no esgota as possibilidades de combinaes e pode falhar se usado sem levar em conta outras dimenses de anlise.

3 Gneros textuais e ensino3.1 O tratamento dos gneros nos PCNs A concepo de gneros discursivos que subjaz s orientaes para o ensino de Lngua Portuguesa nos Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs) a professada por Bakhtin (1992) e reproduzida quase ipsis literis no texto do documento, no item intitulado Discurso e suas condies de produo, gnero e texto: Os gneros so, portanto, determinados historicamente, constituindo formas relativamente estveis de enunciados, disponveis na cultura. So caracterizados por trs elementos: - Contedo temtico: o que e o que pode tornar-se dizvel por meio do gnero; - Construo composicional: estrutura particular dos textos pertencentes ao gnero; - Estilo: configuraes especficas das unidades de linguagem derivadas, sobretudo, da posio enunciativa do locutor; conjuntos particulares de seqncias que compem o texto etc. (BAKHTIN,1992, p. 21, grifo meu). Essa abordagem terica, que conduz a uma nova perspectiva de tratamento de interaes pela linguagem, adotada em substituio taxonomia tradicional, trilogia clssica conhecida e praticada na escola: narrao, descrio e dissertao. No entanto, os autores dos PCNs no apresentam qualquer justificativa para a mudana, apenas esclarecem, em nota de rodap, o que so as seqncias, um novo construto terico advogado por Adam (1987, p.21). Eis o texto da nota:As seqncias so conjuntos de proposies hierarquicamente constitudas, compondo uma organizao interna prpria de relativa auPERSPECTIVA, Florianpolis, v.20, n.01, p.49-64, jan./jun. 2002

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tonomia, que no funcionam da mesma maneira nos diversos gneros e nem produzem os mesmos efeitos: assumem caractersticas especficas em seu interior. Podem se caracterizar como narrativa, descritiva, argumentativa, expositiva e conversacional .

No decorrer do documento, o termo gnero empregado sem qualquer atributo (discursivo ou textual), demonstrando uma familiaridade no uso desse termo que, muito provavelmente, no correspondida pelos leitores, pois certamente muitos deles sequer tiveram tempo de digerir a novidade. Temos a considerar que a substituio proposta no pode ser assimilada pelos professores do ensino fundamental num passe de mgica, nem a adoo da nova nomenclatura. Como complemento nova concepo de gnero, os PCNs apresentam uma seleo deles em dois quadros: Gneros privilegiados para a prtica de escuta e leitura de textos ( BRASIL, 1998 p. 54) e Gneros sugeridos para a prtica de produo de textos orais e escritos (Ibid, p. 57). Tal seleo precedida do seguinte esclarecimento:(...) foram priorizados aqueles [gneros] cujo domnio fundamental efetiva participao social, encontrando-se agrupados, em funo de sua circulao social, em gneros literrios, de imprensa, publicitrios, de divulgao cientfica, comumente presentes no universo escolar (Ibid, p. 53).

A proposta de abordagem dos PCNs para os gneros discursivos com base em Bakhtin , com certeza, louvvel e abre perspectivas para o tratamento da linguagem como ao social, realando o continuum das prticas scio-interacionais que se estabelecem na e pela linguagem. O que est faltando, a nosso ver, a formulao de uma proposta que realce a ativao do conhecimento de gneros estabelecidos socialmente e na comunidade discursiva do aluno, seguida do exerccio de anlise e reconhecimento das propriedades comunicativas e formais de cada um, realando seus efeitos comunicativos, em funo dos interlocutores nas situaes reais de comunicao. Sem isso, corre-se o risco de continuarmos incorrendo na artificialidade das produes textuais, executadas como tarefa escolar e destinadas ao leitor-professor-avaliador.

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3.2 O tratamento dos gneros nos livros didticos Analisamos trs colees de livros didticos (v. referncias didticas), duas delas contempladas pela classificao do MEC no Guia de Livros Didticos (PNLD 1999). O que encontramos em todos os exemplares ainda so fragmentos de gneros literrios (crnica, conto, romance e teatro), fragmentos de artigos e de reportagens, com o formato original modificado. Exemplo disso um texto composto de seqncias descritivas e narrativas intercaladas, estas em negrito no formato original. O texto, intitulado Bate corao compe a unidade 1 do livro didtico de Cocco e Hailer (1995, p. 17-18, ALP8). Outro exemplo um fragmento de uma pea teatral, cujo contedo no contm qualquer pista que possa justificar o ttulo: No Natal a gente vem te buscar (CCCO; HAILER, 1995, p. 41, ALP6 ). A variedade de gneros explorada nas quatro colees inclui propagandas, histrias em quadrinhos e documentos, como carteira de identidade e certido de casamento, entre outros. Uma certido de casamento reproduzida fielmente tambm num livro da coleo ALP, (Ibid, p. 43, ALP8), com carimbo do cartrio e assinatura do oficial com firma reconhecida. A estrutura do documento e as condies de produo so exploradas em perguntas na seo Explorao, carecendo de uma boa orientao do professor para o reconhecimento desse gnero textual. Na seo de Produo, os autores propem como primeira atividade a confeco de um convite (Ibid, p. 44), nos seguintes termos:Imagine que voc ficou responsvel pela confeco dos convites de casamento dos noivos citados no texto Certido de casamento. H muitas formas de apresentao e estilos possveis. Invente um convite utilizando o estilo, a cor e a forma que quiser. Faa-o em folha avulsa.

H uma lacuna tambm nessa proposta de atividade de produo que pode ser preenchida pelo professor, explorando as caractersticas do gnero convite e examinando em vrios exemplos os aspectos lingsticos e formais. O termo gnero e tudo o que envolve o reconhecimento de um gnero textual/discursivo passam ao largo nas trs colees analisadas. As atividades propostas no exploram as condies de produo ou instncias comunicativas em que os gneros so construdos e praticados, seus propsitos comunicativos e as relaes que se estabelecem em funo desses propsitos entre o produtor (falante/escritor) e o receptor (ouvinte/leitor).PERSPECTIVA, Florianpolis, v.20, n.01, p.49-64, jan./jun. 2002

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claro que o livro didtico no tem o compromisso e nem condies de propor cada tarefa passo a passo ao professor. Este precisa ter embasamento terico e estar preparado para lidar com os novos conceitos e para construir uma nova prtica que atenda atual demanda das interaes comunicativas. Da segunda coleo, Palavras e idias (NICOLA; INFANTE, 1995), selecionamos duas das Atividades de redao e de pesquisa para comentar. Uma delas (8 srie, p. 105), a partir de uma letra de msica de Paulinho da Viola, 14 anos, solicita respostas a algumas questes sobre o texto da msica na subseo Explorando o texto e, em Produzindo o texto, apresenta a seguinte proposta: Uma narrao um texto em que se estabelece uma seqncia de fatos a fim de contar uma histria. O texto que abre este captulo, por exemplo, uma narrao. Voc j deve ter notado que a narrao apresenta alguns elementos importantes: o narrador, os personagens, o cenrio, a passagem do tempo. Agora, voc vai escrever uma narrao relatando fatos acontecidos com uma pessoa em sua atividade profissional. D um ttulo ao seu texto. Em outra unidade do mesmo volume, a subseo Produzindo o texto antecedida por um poema de Manuel Bandeira, essencialmente descritivo e por uma longa explanao sobre descrio, ilustrada com dois trechos descritivos de Afonso Arinos. A proposta de produo a seguinte: Voc vai descrever um prdio ou um monumento de sua cidade. Procure realar aspectos particulares do ser descrito: sua arquitetura, seu passado, as histrias que ele presenciou. Voc notou que os escritores falam de coisas como se tratassem de gente: Jos Cndido de Carvalho nos fala do Engenho do visconde como de um ancio orgulhoso e decadente; Manuel Bandeira chama a cidade de Ouro Preto de avozinha; Afonso Arinos destaca a simpatia da casa do Ouvidor. Faa o mesmo com a coisa que voc vai descrever. Lembrete: dificilmente temos uma descrio pura (s em dicionrios e livros tcnicos); normalmente, a descrio um elemento da narrao ou da dissertao.PERSPECTIVA, Florianpolis, v.20, n.01, p.49-64, jan./jun. 2002

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Nas duas propostas, os autores privilegiam a classificao formal clssica ao solicitar que os alunos produzam uma narrao e uma descrio, vistas como gneros. O curioso que, logo a seguir, propem atividades de pesquisa que propiciam uma situao real de constituio de gneros e de sua representao textual. Em seguida proposta de narrao, os autores orientam para a realizao de uma entrevista, sem qualquer exerccio de reconhecimento do gnero e de seus aspectos estruturais. A relao que a atividade mantm com os textos explorados na unidade apenas temtica. A oportunidade de produo autntica, pela experincia da pesquisa, no devidamente aproveitada. Aps a proposta de descrio, os autores tambm orientam para uma pesquisa sobre cidades histricas e sugerem a produo de um guia com roteiro histrico para os colegas que queiram visitar cada uma dessas cidades. Nesse caso, o foco direcionado para o levantamento do patrimnio arquitetnico, mas a confeco de um guia, que seria o produto da pesquisa, no explorada, perdendo-se novamente a oportunidade de um exerccio de produo autntica. A terceira coleo que analisamos, Nossa palavra (CARVALHO; RIBEIRO, 1998), mais recente e no foi contemplada na avaliao estelar do Guia de Livros Didticos. Os autores tambm apresentam em cada unidade as subsees Pesquisa e Produo de texto. Escolhemos o captulo 8 para comentar. Sob o ttulo Pesquisa, os autores propem uma pesquisa sobre censura, com base numa crnica de Joo Ubaldo Ribeiro, intitulada Cuidado com a censura e sugerem que os resultados devem ser apresentados em forma de debate, seguindo estes passos: 1) Os alunos elegem um colega para ser o coordenador do debate, que dever abrir a discusso e apresentar o tema. 2) Cinco alunos sero escolhidos para a funo de debatedores, que se sentaro lado a lado, de frente para o restante da classe (o pblico), se possvel por trs de uma mesa. Entre eles deve estar o coordenador. 3) Cada debatedor ter dois minutos para apresentar sua posio a respeito dos temas em discusso: a) se considera a cano raPERSPECTIVA, Florianpolis, v.20, n.01, p.49-64, jan./jun. 2002

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cista e; b) se contra ou a favor da censura a ela e a outras formas de manifestao cultural (CARVALHO;RIBEIRO, 1998, p. 173 ). A proposta, no resta dvida, bem orientada e tambm, sem sombra de dvida, uma atividade de produo oral que deve ser incentivada porque envolve os participantes numa situao interativa real: o debate originado de uma pesquisa efetiva sobre o tema proposto. A questo : por que dissociar essa atividade da de Produo de texto, algumas pginas adiante? Nesta os autores solicitam a releitura da crnica de Joo Ubaldo e a resoluo de quatro questes sobre o mesmo tema, a censura. Em seguida apresentam a seguinte proposta para a atividade de produo escrita:A sua tarefa agora escrever uma dissertao sobre o tema Censura e preconceito. (Lembre-se: quando escrevemos um texto em que defendemos uma idia ou um ponto de vista, estamos escrevendo uma dissertao.) O preconceito pode ser racial, moral ou religioso. Pense antes nos argumentos que vai defender (CARVALHO; RIBEIRO, 1998, p. 181).

Essa proposta seguida de uma orientao em sete passos que evidenciam a estrutura tradicional da dissertao: um pargrafo introdutrio, o desenvolvimento e uma pequena concluso. Um claro exemplo de que se praticam ainda alguns equvocos sobre o que produo de textos autnticos e sobre os seus propsitos e efeitos scio-comunicativos. E ainda preciso salientar que o gnero crnica, utilizado como ponto de partida para as duas atividades, no foi explorado ou sequer foi comentado! 3.3 Avaliao do Guia de Livros Didticos O Guia de Livros Didticos (GLD) avalia os livros didticos que foram inscritos no Programa (PNLD/99) com a seguinte classificao: *** recomendados com distino, ** recomendados e * recomendados com ressalvas. O objetivo dessa classificao subsidiar o professor na escolha do livro didtico, lembrando-lhe, porm, que este no o seu nico instrumento de trabalho e que o guia no cobre todos os aspectos positivos, ressalvas ou problemas detectados na anlise de cada livro didtico avaliado.PERSPECTIVA, Florianpolis, v.20, n.01, p.49-64, jan./jun. 2002

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Dos exemplares que analisamos, selecionamos alguns comentrios que apresentamos a seguir. A coleo ALP recebeu trs estrelas para os livros de 5 e 7 srie e duas estrelas para os de 6 e 8. Acerca do livro 6, o guia diz, entre outras coisas, o seguinte: H grande variedade de tipos de texto: sumrio de livro, reprodues de telas, msicas, texto teatral, informativo, humorstico, poemas, entre tantos outros (sobre o ALP, vol. 6, GLD, p. 95). Os comentrios so em grande parte elogiosos, como o que segue:Na perspectiva da pragmtica, o mais importante que a obra trabalha a relao forma/contedo e chama a ateno para a estrutura desses textos em funo de seu uso. Na perspectiva da lingstica textual, h uma proposta visvel de busca da interlocuo leitor/ texto/autor, a partir de questes que propem sensibilizao para a percepo de recursos lingsticos utilizados nos textos (sobre o ALP, vol. 8, GLD, p. 192).

No entanto, a avaliao d realce nomenclatura tradicional e suas prticas correspondentes, como se pode verificar no seguinte trecho:O aluno recebe propostas diversificadas para elaborao de tipos variados, sendo que, neste livro de 8 srie comeam a ser trabalhados, sistematicamente, atividades que conduzam produo de textos dissertativos ou argumentativos (sobre o ALP, vol. 8, GLD, p. 192)

Em todos os comentrios que lemos, no encontramos referncia explcita a gneros, ou seja, nomeados como tais e, s vezes, gneros e seqncias textuais so colocados na mesma categoria, como se pode constatar no trecho abaixo:Nas propostas de redao, faltam orientaes para exerccios de reescriturao, no h propostas que explorem o uso social da escrita, no se observam instrues para os alunos sobre as condies de produo. Entretanto o aluno levado a escrever textos de tipologia variada, como dilogos, narraes, descries, dissertaes, sambas, poemas, textos jornalsticos, entre outras (sobre Palavras e idias, 8 srie, GLD, p. 199-200).

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Esses excertos do Guia de Livros Didticos mostram que as novas concepes de gnero discursivo ou textual no transparecem com propriedade e segurana nos comentrios dos avaliadores e que muito mais no se pode esperar dos autores de livros didticos e de seus usurios, os professores.

4 Comentrios finais visvel, no material didtico selecionado para esta anlise, um movimento no sentido de incorporar uma nova perspectiva de tratar a linguagem, mas no se percebem critrios bem definidos nas abordagens feitas nesses instrumentos de ensino que esto disponveis aos professores e aos alunos. O uso da nomenclatura instvel e os gneros e os tipos de textos ou seqncias so tomados uns pelos outros, numa demonstrao de que a apreenso do novo objeto de conhecimento ainda no se deu por completo. Os aspectos scio-comunicativos (o contexto de produo, a audincia, o veculo) e o reconhecimento das caractersticas formais dos gneros (mecanismos retricos, aspectos lingsticos) no so explorados no processo de apreenso desse conhecimento, ou seja, antes da produo e durante, especialmente nos livros didticos analisados. H lacunas tericas e metodolgicas que precisam ser preenchidas, nos parmetros curriculares e nos livros didticos, para que o ensino com base nos gneros discursivos/textuais no se torne apenas mais um modismo, que s faa reproduzir novos artificialismos. Alm disso preciso investir na formao dos professores, para que possam ter acesso direto ao conhecimento e, conseqentemente, tomar decises e posies bem fundamentadas teoricamente ao selecionar material de ensino e ao definir metodologia de trabalho em sala de aula.

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