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    Unidade

    3

    BIOÉTICA: princípios e aplicações

    OBJETIVO DESTA UNIDADE:

    Conceituar os princípios bioeticistas e suas propriedades por

    meio da aplicação a casos selecionados.

    Princípios em Bioética

    Os princípios fundamentais da Bioética passaram

    a ganhar destaque a partir da publicação do

    The Belmont Report, publicado pela National

    Commision for the Protection of Human Subjects

    of Biomedical and Behavioral Research. Tal

    relatório, gerado em 1978, na secção B,aponta justamente para esses princípios,

    grafados como: o respeito às pessoas, a

    benecência e a justiça.

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    The Belmont Report, traduzido como Relatório Belmont, é o produto

    de uma investigação que durou de 1974 a 1978 após o relato de três

    casos ocorridos em solo americano: a) em 1963, no Hospital Israelita

    de Doenças Crônica, em Nova York, foram injetadas células cancerosas

    vivas em idosos doentes, com ns de experimentação cientíca e sem

    conhecimento e consentimento desses pacientes; b) entre 1950 e 1970,no Hospital Estadual de Willowbrook, em Nova York, injetaram o vírus da

    hepatite em crianças com deciência mental, nas mesmas condições do

    caso anterior; e, c) Em 1932, no Estado do Alabama, no que foi conhecido

    como o caso Tuskegee, 400 negros com sílis foram recrutados para

    participarem de uma pesquisa de história natural da doença e foram

    deixados sem tratamento. Em 1972 a pesquisa foi interrompida após

    denúncia no The New York Times. Restaram 74 pessoas vivas sem

    tratamento, a maioria latinos, negros e empobrecidos.

    O Governo e o Congresso norte-americano constituíram, em 1974, a

    National Comission for the Protection of Human Subjects of Biomedical

    and Behavioral Research. Foi estabelecido, como objetivo principal

    da Comissão, identicar os princípios éticos “básicos” que deveriam

    conduzir a experimentação em seres humanos.

    A esses princípios foram acrescentados depois os princípios de não-

    malecência e a transformação do princípio do respeito às pessoasem princípio de autonomia. Discute-se junto a isto as questões do

    consentimento e da representação responsável.

     Princípio de autonomia

    O primeiro princípio (o respeito às pessoas) é também conhecido,

    conforme Clotet (2003, p.23), como princípio da autonomia.

    Este princípio “[...] exige que aceitemos que elas [as pessoas] se

    autogovernem, ou sejam autônomas, quer na sua escolha, quer nos

    seus atos” (CLOTET, 2003, p.24).

    Clotet (2003) faz uma síntese desse princípio nos seguintes tópicos:

    a) O autogoverno das pessoas;

    b) Autonomia de escolha e de ação;

    c) Respeito do médico à vontade do paciente ou à do seu

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    representante;

    d) Respeito aos valores morais e crenças do paciente;

    e) Domínio do paciente sobre sua própria vida;

    f) Limite às intromissões aos tratamentos;

    g) Respeito à individualidade.

    Clotet e Kipper (in COSTA; GARRAFA; OSELKA, 1988, p.37-51) ligam

    o princípio da autonomia ao princípio da pessoalidade, para o qual a

    denição de pessoa é de suma importância.

    Mas, o que vem a ser pessoa?

    Clotet (2003) enumera algumas reexões, baseadas na opinião de Jean

    Bernard:

    […] a pessoa é uma individualidade biológica, um serde relações psicossociais, um indivíduo para os juristas.Contudo, ela transcende essas denições analíticas.Ela aparece como um valor, [...] Nos problemas éticosdecorrentes do processo das pesquisas biológicas emédicas devem ser respeitados todos os homens e ohomem todo (BERNARD apud Clotet, 2003, p.55).

    Outra opinião considerada por ele é a de Kant, para o qual:

    […] os seres racionais são chamados de pessoasporque a sua natureza se diferencia como m em si

    mesma; quer dizer, como algo que não pode ser usadosomente como meio, e, portanto, limita nesse sentidotodo capricho e é um objeto de respeito (KANT apud CLOTET, 2003, p.55).

    No entanto o conceito de pessoa não é ainda um conceito unívoco.

    Há muitas discordâncias em torno dele, em especial, quando entra em

    pauta o problema da hominização, que por sua vez se liga diretamente

    à questão do aborto.

     Princípio de Beneficência

    O princípio da benecência, de acordo com Clotet (2003, p.24), requer

    “[...] que sejam atendidos os interesses importantes e legítimos dos

    indivíduos e que, na medida do possível, sejam evitados danos”. Esse

    autor associa este princípio à noção de bem-estar, cuja fundamentação

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    remonta a Hipócrates: “usarei o tratamento para o bem dos enfermos,

    segundo minha capacidade e juízo, mas nunca para fazer o mal e a

    injustiça” (HIPÓCRATES apud CLOTET, 2003, p.25).

    Alguns autores consideram que ao procurar fazer o bem a pessoa

    necessariamente estará evitando o mal, daí concluírem que a outra facedo princípio da benecência é a não-malecência. No entanto, outros

    autores e declarações o pressupõem como um princípio independente.

     Princípio de Não-Maleficência

    Autores como Garcia (1998) colocam este princípio como o primeiro

    princípio da Bioética, ao lado do princípio da justiça – que não somente

    ele, mas muito outros autores o compreendem como um princípio

    transversal aos demais.

    Para García (1998), o dever de não causar danos a outros é superior

    ao de beneciá-los. Ele faz uma distinção entre princípios públicos e

    privados: os princípios da autonomia e da benecência são privados, ao

    passo que os princípios de não-malecência e justiça são públicos. Isso

    porque compreende a benecência ligada diretamente ao sistema devalores religiosos, culturais, políticos e econômicos – portanto, privados.

    E completa que um ato de benecência pressupõe liberdade, donde se

    liga à autonomia. No entanto, a níveis éticos que obrigam a todos, são

    deveres públicos, dentre estes estão a justiça e a não-malecência.

     Princípio de Justiça

    O quarto princípio, o da justiça, na acepção de Clotet (2003, p.25),

    “[...] exige equidade na distribuição de bens e benefícios no que

    se refere ao exercício da medicina ou área da saúde”. Desse modo,

    este princípio coloca Bioética em discussão direta com o Direito

    (especialmente, com o Biodireito) e com as políticas públicas voltadas

    para a gerência do poder e distribuição das garantias individuais no

    tocante à vida, saúde e morte.

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    Contudo, o que vem a ser isto, a justiça, não é uma denição consensual

    e comporta inúmeras contradições, algumas das quais inconciliáveis.

    Evocamos o trabalho de Chaïm Perelman, Ética e Direito, para elucidar isso.

    De acordo com Perelman (1996), a sua teoria da justiça não busca

    uma concepção sublime de justiça que deva ser mais venerável queas demais; logo, se não há a justiça mais venerável também não há a

    justiça única e verdadeira. Isso porque, o conceito de justiça não é um

    conceito indiferente. Além do mais, trata-se de um dos conceitos mais

    confuso, mais dotado de emotividade.

    Dentre os muitos conceitos possíveis de justiça estão:

    A justiça como dar a cada qual a mesma coisa

    Todos devem ser tratados da mesma forma, sem levar em conta

    nenhuma das particularidades que as distinguem. Desse modo, a justiça

    perfeita é a morte, que não considera ninguém mais privilegiado.

    Essa concepção é a única que trabalha com uma concepção de justiça

    puramente igualitária. Todos os seres aos quais se deseja aplicar a

    justiça fazem parte de uma só e única categoria essencial.

    Essa fórmula não pode ser tomada como um humanitarismo igualitário,

    pois a categoria essencial à qual ela se aplica não é a “todos os homens”

    mas apenas a “alguns”.

    Não sendo um humanitarismo igualitário, essa fórmula de justiça

    constitui um meio de fortalecer as relações de solidariedade entre os

    membros de uma classe que se considera incomparavelmente superior

    aos outros habitantes do país.

    Essa concepção ca modicada com a aplicação do conceito de justiça

    formal para a fórmula “a cada membro da mesma categoria essencial,a mesma coisa”.

    A justiça como dar a cada qual segundo seus méritos

    Deve-se dar um tratamento proporcional a cada um de acordo com

    a proporção de uma determinada qualidade intrínseca, ao mérito da

    pessoa humana. Essa justiça pesa os méritos de cada um. Não sendo

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    fácil decidir a justa recompensa ou o justo castigo aqui na Terra, estes

    cam para uma vida no além.

    Essa concepção exige uma proporcionalidade entre o mérito e o trato

    dado aos que fazem parte da mesma categoria essencial.

    Essa categoria essencial é denida quanto ao mérito e quanto ao grauem que possui tal mérito. Assim, para serem tratados da mesma forma,

    dois seres têm que possuir o mesmo mérito no mesmo grau.

    As noções de recompensa e punição devem corresponder às noções

    de mérito e demérito nos seus graus proporcionalmente equivalentes.

    Para julgar da mesma forma, aplicando essa concepção de justiça, dois

    seres devem não só ter o desejo de aplicar a mesma concepção da

    justiça concreta, mas ainda terem a mesma representação dos fatossubmetidos às suas apreciações.

    Um julgamento pode ser qualicado de injusto se:

    • Aplicar uma fórmula de justiça concreta que não é aceita;

    • Conceber a mesma fórmula de modo diferente;

    • Fazer uma representação inadequada dos fatos;

    • Infringir as prescrições da justiça formal que exigem que

    se trate da mesma forma os seres que fazem parte de uma

    mesma categoria essencial.

    A justiça como dar a cada qual segundo suas obras

    Deve-se tratar proporcionalmente a cada um de acordo com o resultado

    de suas ações.

    Essa concepção de justiça considera que fazem parte de uma mesma

    categoria essencial aqueles cuja produção ou cujos conhecimentos têmigual valor aos olhos do juiz. Se, colocando-se em certo ponto de vista,

    certas obras ou certos conhecimentos são considerados equivalentes,

    cumpre tratar da mesma forma os autores dessas obras ou aqueles

    cujos conhecimentos são examinados.

    Ela está por trás dos exames ou concursos, das noções de “salário

    justo”, “preço justo” etc. e não se aplica a obras que necessitam, em

    sua execução, de habilidades especiais ou de genialidade.

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    As obras precisam ser da mesma natureza para que esse critério possa

    ser aplicado.

    A justiça como dar a cada qual segundo suas necessidades

    Deve-se procurar diminuir os sofrimentos que resultam da

    impossibilidade de satisfazer às necessidades essenciais de quem as

    carece. Tratar da mesma forma aqueles que fazem parte da mesma

    categoria essencial do ponto de vista de suas necessidades.

    Essa fórmula se aproxima da caridade. Mas, o que a diferencia da

    caridade é que, ao passo que a caridade considera as necessidades

    do indivíduo tomado em sua individualidade, a justiça toma as

    necessidades do indivíduo como necessidades coletivas do grupo no

    qual está inserido.

    Toda justiça social se fundamenta nesta concepção.

    As necessidades levadas em consideração são as “necessidades

    essenciais”. Dizer quais são estas não é algo que todos concordam.

    É necessário estabelecer uma hierarquia das necessidades do indivíduo

    para priorizar as que devem ser supridas mais imediatamente.

    A justiça como dar a cada qual segundo sua posição

    Deve-se tratar os seres humanos conforme pertençam a uma ou outra

    determinada categoria de seres. Esta é uma concepção aristocrática de

    justiça.

    Não se trata de uma concepção universalista da justiça, mas reparte

    os homens em categorias de seres diferentes, que devem ser tratados

    diferentemente.

    Embora não acredite numa hierarquia dos seres, esta concepção de justiça

    defende que ser justo é tomar atitudes diferentes para com membros de

    classes diferentes e tomar atitudes iguais para com membros de classes

    iguais, uma vez que pertençam à mesma categoria essencial.

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    A noção de classe não é necessariamente social, mas pode envolver

    critérios como: cor da pele, língua, religião, estado civil etc.

    Esta concepção de justiça exige um equivalente entre o posto, os

    direitos e as responsabilidades, anal, a “nobreza obriga”.

    A cada qual segundo o que a lei lhe atribui

    Deve-se dar a cada um aquilo que está na lei, na forma que a lei

    determina. Anal, ser justo é aplicar as leis do lugar.

    Cada sistema jurídico é uma variante dessa concepção de justiça.

    Essa concepção de justiça não é moral, mas jurídica: o juiz não pode

    escolher uma concepção de justiça, mas lhe cabe tão somente aplicara regra estabelecida. Em moral se aplicam as regras da consciência aos

    fatos, em direito se qualicam os fatos.

    Em direito moderno, as duas instâncias, a que determina as categorias

    e a que as aplica, são rigorosamente separadas; em moral, estão unidas

    na consciência.

    O critério da aplicação da justiça legal não torna o juiz (isolado como

    pessoa ou como conjunto na jurisprudência) em mero “operador do

    direito”, mas um interprete e interferidor da lei: um analisa os fatos a

    partir de sua concepção subjetiva do mundo (o juiz), o outro dissipa

    as noções confusas e equívocas da lei, estabelecendo o costume ou o

    desuso (a jurisprudência).

    A concepção de justiça que norteia a fórmula “a cada qual o que a lei

    lhe atribui” é uma noção de justiça estabelecida pelos detentores do

    poder (seja o povo ou o tirano).

    Estudos de caso em Bioética

    Os casos selecionados nos ajudarão a compreender como esses princípios

    funcionam na prática. Eles foram tirados de importantes fontes, algumas

    elaboradas especialmente com essa função, outras precisaram sofrer

    pequenas adaptações. Em todos os casos será aplicado a seguinte

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    investigação (evidente que nem todas as perguntas se aplicam a todos

    os casos, no entanto procure aplicá-las em maior número possível):

    Dados do contexto:

    • Qual a questão, decisão, problema ou conito bioético envolvido?

    • Quem é o responsável por tomar as decisões nesse caso?

    • Quais são os fatos? Quais as circunstâncias importantes envolvidas

    na situação?

    • Quem são as pessoas envolvidas?

    • São conhecidos os valores de cada um dos envolvidos?

    • Quais as prioridades que cada um dos participantes?

    Alternativas e Acordos

    • Existe algum acordo prévio sobre decisões nesta situação?

    • Quais são as alternativas no atual curso de ação?

    • Quais as consequências, para cada um dos participantes em cada

    uma das alternativas?

    Princípios e Direitos envolvidos

    • Quais os princípios (Benecência, Não-Malecência, Autonomia e

    Justiça) envolvidos?

    • Quais os direitos humanos (individuais, coletivos ou de Estado)

    envolvidos? Como eles se relacionam entre si?

    Casos possíveis de serem relacionados à atual situação

    • Quais são os caso possíveis de serem relacionados a presente

    situação?

    • Quais foram as alternativas consideradas e as consequências que

    ocorreram?

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    Além dessas questões, cada caso pode vir com questões adicionais

    e outras podem ser elaboradas a partir da reexão que cada mente

    permitir.

     Caso 1 - Ética em pesquisa

    Um estudo de intervenção seriada com a participação de prossionais

    do sexo foi iniciado com o objetivo de avaliar o impacto de se adicionar

    a distribuição do preservativo feminino ao sistema de distribuição

    do preservativo masculino, mensurado em termos de mudanças na

    proporção de atos sexuais protegidos pelo uso de preservativos. A

    utilização do preservativo foi avaliada através de entrevistas com osparticipantes da pesquisa, com questionamentos sobre a aplicação de

    medida de proteção nas últimas 10 relações sexuais. Essa mensuração

    deverá ser realizada em 5 momentos distintos: duas vezes, logo após as

    mulheres terem participado de atividades de promoção e distribuição

    de preservativos masculinos; e 3 vezes, após a promoção e distribuição

    dos dois preservativos: feminino e masculino.

    O principal pesquisador, uma pessoa que conta com a conança e

    respeito das prossionais do sexo envolvidas, explicou que as mulherescaram muito interessadas em participar de um estudo sobre a utilização

    de preservativos femininos, uma vez que esta situação proporcionaria

    o livre acesso a este método inovador de dupla proteção.

    A primeira etapa de avaliação sobre a utilização de preservativos foi

    completada conforme o planejado. Análises preliminares dos dados

    revelaram que os participantes relataram o uso do preservativo

    masculino em mais de 95% dos atos sexuais. Após avaliar a abordagem

    e as técnicas utilizadas pelos entrevistadores, uma segunda etapa de

    entrevistas foi concluída. Em conformidade com os dados anteriores, foi

    observado um alto índice de utilização do preservativo masculino. Surgiu,

    então, a preocupação de que a introdução de um produto novo poderia

    ter um efeito negativo sobre a utilização de preservativos masculinos.

    Além disso, não há real garantia de que haverá a disponibilidade e

    nanciamento de preservativos femininos após o término da pesquisa,

    ainda que os mesmos sejam considerados muito positivos.

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    (Extraído de Ministério da Saúde. Capacitação paraComitês de Ética em Pesquisa.  Brasília/DF: Ministérioda Saúde/Secretaria de Ciência, tecnologia e insumosestratégicos/Departamento de Ciência e Tecnologia,2006, v. 2. p.115).

    Questão adicional

    Com relação ao caso descrito, qual seria a melhor maneira de se

    proceder? Continuar o estudo conforme planejado? Encerrar o estudo?

    Suspender temporariamente o estudo até que possa ser assegurada

    a disponibilidade de preservativos femininos caso seja comprovado o

    sucesso de sua utilização?

     Caso 2 - Executivos americanos retardam envelhecimento com hormônios

    Executivos e prossionais nos Estados Unidos vêm procurando um

    polêmico e caro tratamento de reposição hormonal para combater

    efeitos normalmente associados ao estresse e ao envelhecimento.

    Com pouco mais de 30 anos, o executivo americano J.G. começou a se

    sentir deprimido e ansioso. Tinha diculdades para dormir, sua libido

    já não era mais a mesma e, por mais que se esforçasse na academia

    e cuidasse da alimentação, não conseguia atingir os resultados que

    queria.

    “O trabalho também ia mal. Ter que lidar com o estresse, e a competição

    ampliava os sintomas, quando não era combustível para eles”, conta o

    executivo, que pediu para não ter seu nome divulgado. “Isso acabava

    com o desejo e ambição de ser bem sucedido”, disse.

    Depois de tentar tratamentos com antidepressivos e ansiolíticos,

    J.G. aceitou o conselho de um colega de academia e começou a fazer

    reposição hormonal por conta própria.

    Mesmo sem consultar um médico, experimentou tomar uma pequena

    dose de testosterona, um hormônio secretado pelos testículos

    do homem e em menor quantidade pelos ovários da mulher. Sua

    concentração no corpo masculino diminui com a idade e devido a

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    problemas de saúde. “Tomei minha primeira dose e, uau, pareceu que

    tudo deu uma volta de 180 graus”, disse o executivo à BBC Brasil.

    Desconado de que poderia estar sofrendo com os sintomas do

    declínio de testosterona em seu corpo, procurou um médico. Após

    alguns exames, ele receitou uma terapia de reposição hormonal.

    Atualmente com 40 anos, J.G. segue com o tratamento. Duas vezes

    por semana, injeta em si mesmo pequenas doses de testosterona e

    garante que sua vida melhorou em vários aspectos. “Pergunte à minha

    namorada modelo de 27 anos”, brinca o executivo, que dirige uma

    consultoria de administração de capital de risco em Nova York.

    Apesar dos elogios ao tratamento, alguns médicos têm dúvidas quanto

    à ecácia e eventuais danos colaterais do uso de hormônios, que

    poderiam incluir câncer e problemas no coração.

    • Hormônios

    A deciência de testosterona entre homens pode estar ligada a

    problemas congênitos, doenças, estresse e efeitos colaterais de certos

    medicamentos. Além disso, a partir dos 30 anos de idade, inicia-se um

    declínio gradual da produção do hormônio no organismo.

    A maior parte da testosterona utilizada em terapias de reposição

    hormonal é produzida em laboratório a partir de vegetais como soja e

    inhame.

    Embora o tratamento mais comum para a deciência de testosterona

    causada por problemas de saúde seja a reposição hormonal, não

    há estudos conclusivos sobre a ecácia da injeção do hormônio no

    combate a sintomas normalmente associados à idade.

    Mesmo assim, um grande número de médicos defende os benefícios

    do tratamento no combate ao envelhecimento. Eles vêm oferecendo

    terapias de reposição hormonal a pacientes que se queixam de fadiga,

    de diculdades para perder peso, de concentração e de redução da

    libido.

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    Entre eles está Lionel Bissoon, que cou conhecido por desenvolver

    um tratamento para celulite e atualmente administra um programa de

    reposição hormonal para homens e mulheres em sua clínica em Nova

    York.

    Segundo ele, até meados da década passada, a maior parte de seuspacientes era formada por mulheres entre 45 e 69 anos. Mas a situação

    se inverteu. Atualmente, cerca de 85% é de homens entre 30 e 69 anos,

    muitos deles executivos de Wall Street.

    “As maiores queixas dos homens são fadiga, cansaço e diculdades de

    concentração. Alguns reclamam de dores musculares. Muitos não têm

    interesse em sexo. Alguns sentem que não são mais quem costumavam

    ser”, disse Bissoon à BBC Brasil.

    O médico conta que, após uma bateria de exames, o paciente pode

    iniciar o tratamento. A reposição hormonal pode ser feita por meio de

    injeções, adesivos ou via oral. O próprio paciente aplica suas doses de

    testosterona.

    “Eu ensino meus pacientes a se aplicarem, é bem fácil. Não é possível

    para um executivo ocupado ter que ir a um consultório para tomar uma

    injeção duas ou três vezes ao mês, não é prático”, diz.

    • Custos

    O grande interesse dos homens por tratamentos de reposição hormonal

    não se restringe a Nova York.

    Na lial que serve os Estados americanos da Carolina do Sul e da

    Carolina do Norte da rede de clínicas Cenegenics, por exemplo, 68%dos pacientes são homens entre 35 e 70 anos.

    “Está se tornando mais comum homens mais jovens, com pouco mais

    de 30 anos (procurarem o tratamento)”, diz Michale Barber, médica e

    diretora-executiva da Cenegenics Carolinas.

    Embora a aplicação dos hormônios possa ser feita pelo próprio

    paciente, é necessário que ele passe por um acompanhamento

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    14/27Curso de Bioética2

    periódico por médicos e seja submetido a exames regularmente, o que

    pode aumentar os custos do tratamento.

    Para realizar um tratamento hormonal de combate aos efeitos do

    envelhecimento na Cenegenics, é preciso desembolsar em média US$

    1 mil por mês.

    “Os nossos pacientes estão pagando pelo acesso a médicos,

    siologistas, nutricionistas e acompanhamento de laboratório”, diz

    Barber.

    Com 20 centros médicos espalhados pelos Estados Unidos e mais de

    20 mil pacientes, a Cenegenics usa como garoto-propaganda o médico

    Jeffry Life, que atua na empresa e é paciente do programa de combate

    aos efeitos do envelhecimento.

    Para mostrar os resultados do tratamento, a empresa usa fotos e

    vídeos ao estilo “antes e depois” de Life. Na primeira foto, o médico

    aparece com um corpo comum para um homem de meia-idade. A outra

    é uma dessas imagens que à primeira vista parecem montagens (a

    empresa garante que não é) e mostra a mesma pessoa com um corpo

    de siculturista.

    • Câncer

    Apesar dos efeitos aparentemente milagrosos, ainda restam dúvidas

    sobre a segurança dos tratamentos de reposição hormonal para

    combater os efeitos do envelhecimento em homens saudáveis.

    Embora os médicos adeptos da terapia garantam que ela é segura

    e pode prevenir doenças, outros apontam que ela pode estimular o

    desenvolvimento de câncer de próstata e causar problemas cardíacos.

    Além disso, pesquisas apontam entre os possíveis efeitos colaterais do

    tratamento atroa dos testículos e infertilidade, problemas hepáticos,

    retenção de líquidos, acne e reações de pele, ginecomastia (crescimento

    anormal das mamas em homens) e apneia do sono.

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    Embora tratamentos do tipo estejam sendo utilizados nos EUA desde a

    década de 1990, há poucos estudos amplos sobre seus efeitos e riscos.

    Em 2009, o National Institute of Health dos Estados Unidos deu início

    a um amplo estudo sobre os efeitos do tratamento de reposição de

    testosterona em homens acima de 65 anos. Os primeiros resultados,no entanto, devem ser divulgados só em junho de 2015.

    Enquanto isso, um relatório publicado em 2004 pelo Instituto de

    Medicina da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, órgão

    de consultoria do governo americano, alerta para a falta de pesquisas

    conclusivas sobre o tema.

    “Apesar da crescente popularidade do tratamento com testosterona,

    não há uma quantidade considerável de dados que sugiram a ecáciada terapia de testosterona em homens mais velhos que não se

    encaixam na denição clínica de hipogonadismo. Além disso, os efeitos

    da testosterona na próstata e suas implicações para o câncer inspiram

    cuidados no uso não terapêutico extensivo”, diz o documento.

    BBC Brasil: Executivos nos EUA tentam retardarenvelhecimento com hormônios. Disponível em: . Acesso em 18 jun. 2012.

     Caso 3 - Caso E.M

    No início de junho de 1989 me foi encaminhado de uma importante

    cidade do interior o menino E.M, então com um ano e dois meses

    de vida e história de infecções de repetição. A suspeita clínica era de

    brose cística, doença genética que cursa com diarreias e infecções

    respiratórias. A escolha de meus serviços se deveu ao fato de ter

    prestado atendimento médico ao lho de um casal amigo dos pais,

    com diagnóstico de deciência transitória de IgA secretória e com o

    qual havia obtido ótimos resultados clínicos.

    O casal tinha outro lho, uma menina de três anos de idade, saudável. O

    pai era engenheiro, com característica de inventor de novos utilitários

  • 8/15/2019 Bioética AULA 3.pdf

    16/27Curso de Bioética4

    domésticos. Era irrequieto e tinha diculdades em se rmar numa

    empresa. Preferia trabalhar por conta própria. Já a mãe era professora

    e parecia ter como objetivo maior de sua vida se dedicar aos lhos e ao

    marido. Praticavam a sua religião.

    A gestação de E.M havia transcorrido sem anormalidade. O parto haviasido natural, com APGAR de 9 no primeiro minuto e de 10 no quinto

    minuto. Pesava 3.200 gramas e media 50 centímetros. Seu perímetro

    cefálico era de 34 centímetros. Até os dois meses de vida sua saúde

    havia sido perfeita. A partir de então apresentava diarreias de repetição,

    frequentemente tinha monilíase oral e eosinolia no hemograma.

    Com 7 meses de vida teve sua primeira broncopneumonia. Com 1

    ano, sua primeira infecção do trato urinário. Tinha história de atopia

    e frequentemente apresentava crises de sibilâncias, diagnosticadas

    como asmáticas. Mamou no seio materno até quase completar 9

    meses de vida, quando teve de ser desmamado, porque a mãe precisou

    ser submetida a mastectomia esquerda por tumor mamário maligno.

    Não havia outros dados relevantes na história familiar, alimentar,

    mesológica, mórbida e de desenvolvimento. Havia sido imunizado de

    acordo com as recomendações das autoridades sanitárias locais.

    Ao primeiro exame físico apresentava desnutrição ponderal, mas

    não estatural. Tinha sinais de atopia, monilíase oral, balanopostite,distenção abdominal, sibilos e roncos à ausculta pulmonar e discreto

    edema palpebral à esquerda.

    Na primeira internação zemos o diagnóstico de infecção do trato

    urinário, com pequeno reuxo vésico-uretral à esquerda, monilíase

    oral e perineal, balanopostite, atopia com crises de asma, desnutrição

    com décit ponderal apenas, importante eosinolia no hemograma

    e afastamos verminose e brose cística. Embora não se falasse muito,

    na época, em imunodeciências, quer congênitas, quer adquiridas,

    afastamos AIDS e os níveis séricos das imunoglobulinas mostraram níveis

    baixos de IgA, normais de IgM e IgE e níveis de IgG nos limites inferiores

    da normalidade. Tratamos as patologias de acordo com as rotinas do

    serviço à época e combinamos nova avaliação em dois meses.

    Durante esta primeira internação já percebi muito claramente a

    preocupação da mãe com a possibilidade de haver alguma relação

  • 8/15/2019 Bioética AULA 3.pdf

    17/27Unidade 3 |  Bioética: princípios e aplicações 75

    entre a doença do lho e o fato de ele haver mamado em seu seio, já

    com câncer. Tentei de todas as maneiras demover essas ideias de sua

    cabeça e a estimulei a continuar o acompanhamento com seu médico

    assistente, apesar dos problemas de seu lho.

    A partir de então vivemos uma intensa relação médico-paciente-família,com altos e baixos e que culminou com o óbito de E.M, nas vésperas do

    Natal de 1994. como não posso relatar toda esta interação, vou me ater

    apenas aos fatos mais relevantes para mim, para E.M e para sua família.

    No início de novembro de 1989, fechamos o diagnóstico de

    hipogamaglobulinemia, doença congênita que evolui com infecções

    de repetição das vias aéreas, aparelho digestório e aparelho urinário.

    Não havia tratamento curativo disponível. As infecções de repetição

    poderiam ser atenuadas com infusões repetidas de plasma, oupreferentemente de imunoglobulinas (ainda muito caras e raramente

    disponíveis em nosso meio naquela época). Estes pacientes apresentam

    uma incidência maior de doenças neoplásicas. O desfecho natural

    dessa imunodeciência, naquele momento, era o óbito por infecção

    ou neoplasia.

    No início de 1990, o pai, sempre muito irrequieto à procura de soluções

    para seu lho, conseguiu viabilizar a vinda de imunoglobulinas de

    São Paulo e iniciamos com esta abordagem terapêutica inovadora

    e que encheu a todos nós de novas esperanças. Até setembro de

    1990 conseguimos mantê-lo relativamente bem com a infusão de

    imunoglobulinas, mesmo não tendo conseguido controlar as diarreias

    e as crises de asmas. Foram, então, feitas várias tentativas de controle

    das diarreias com o gastroenterologista do serviço, também sem

    resultados satisfatórios.

    Em setembro de 1990, eu e o pai iniciamos um estudo sistemáticodas possibilidades terapêuticas para o problema de E.M na rede

    internacional de informações médicas (Medline). De novidades

    encontramos a possibilidade do uso de colostro de vaca para o controle

    das diarreias. Mais uma vez o pai tornou possível essa terapêutica e

    novamente sem grande sucesso. Nesta época, pela primeira vez, nosso

    gastroenterologista conseguiu demonstrar a infestação maciça com o

    criptosporidium no tubo digestório e que provavelmente perpetuava

  • 8/15/2019 Bioética AULA 3.pdf

    18/27Curso de Bioética6

    os episódios de diarreia. O único tratamento possível era o uso da

    roxitromicina, que instituímos, com resultados pobres.

    No início de 1991 apareceu a primeira crise. Os pais começaram a se

    sentir inseguros em relação às possibilidades terapêuticas e eu, além

    disso, comecei a me sentir impotente em relação à doença de E.M.Concordamos, então, que talvez fosse bom procurar a avaliação e

    opinião de um especialista renomado de São Paulo, o que veio a se

    concretizar em julho de 1991. Muitos exames, muitas avaliações e o

    mesmo diagnóstico e a mesma abordagem terapêutica. Tratava-se,

    sem dúvida, de um caso difícil, sem possibilidades de cura naquele

    momento. Foi sugerido manter as infusões de imunoglobulinas

    e ganhar tempo. Talvez pudessem aparecer novas soluções. Esta

    avaliação em São Paulo foi bastante desanimadora. Nova avaliaçãoem 1992 conrmou a primeira avaliação. Eu e a família preferimos, a

    partir daquele momento, não conversar muito sobre o futuro de E.M.

    Decidimos nos preocupar com o presente.

    Desta época até meados de 1994, E.M consultou com vários

    especialistas no país. Todas as tentativas resultavam infrutíferas.

    Alguns medicamentos experimentais que julgamos não trazerem

    riscos maiores que prováveis benefícios, foram mandados buscarno exterior. Instituímos, de forma também inovadora, a nutrição

    parenteral domiciliar, através de um cateter semi-implantado. Nas

    tentativas feitas com consultas ao exterior, havia apenas terapêuticas

    experimentais com transplante de medula óssea. Eis que nesse ínterim,

    a mãe engravida e aparecem novos dramas: esta doença tem caráter

    genético ou familiar? Quais os riscos? O que fazer? Forneci todas as

    informações disponíveis e me mantive neutro em relação ao que fazer

    com a gestação. Os pais decidiram ter o lho, aliás, uma lha, que nasceu

    sadia. Após o nascimento e ainda motivados com as pesquisas com

    transplante de medula, zemos os estudos de histocompatibilidade:

    as duas irmãs eram compatíveis entre si e incompatíveis com o irmão.

    Como o transplante de medula com doadores não aparentados

    apresentavam riscos muito grandes, necessitavam deslocamento

    para o exterior e com benefícios incertos, descartamos a possibilidade

    naquele momento.

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    19/27Unidade 3 |  Bioética: princípios e aplicações 77

    Muitas vezes, nesse período, os pais tiveram problemas com seus planos

    de saúde, que ora não cobria determinados exames ou procedimentos,

    ora venciam as possibilidades de internação. Os pais, muito dedicados

    e criativos, se cercaram de outras famílias com problemas semelhantes

    e conseguiram fornecimento gratuito de imunoglobulinas, através de

    serviços de saúde pública.

    A história de E.M também entrou no âmbito de minha família, tantas

    eram as vezes em que programas familiares tiveram que ser suspensos

    em função dos compromissos com seu cuidado. Outras tantas vezes,

    vendo-me taciturno já perguntavam: Algum problema com E.M?

    Por longo período E.M teve que ser alimentado por sonda nasogástrica,

    que cava permanentemente localizada em seu nariz. Pensamos

    em colocar uma gastrostomia para que seus colegas de colégio nãopercebessem seu problema, mas ele mesmo disse se sentir bem assim.

    Gostava muito de roupas bem coloridas, de passear pelo pátio do

    hospital e de fazer compras na lojinha do hospital. Sempre fazíamos de

    tudo para que pudesse ter esses prazeres. Sempre que possível suas

    irmãs estavam com ele. Como gostava muito de um time de futebol,

    sempre cuidávamos para não fazer procedimentos ou interná-lo

    quando seu time jogava, para que pudesse acompanhá-lo na TV.

    Mas, de repente, E.M desapareceu. Seus pais não entravam mais em

    contato comigo e, aparentemente não haviam entrado em contato

    com nenhum outro médico. Fiquei, por um lado chateado e, por outro

    lado, preocupado. Chateado por talvez não ter conseguido manter a

    conança da família ou não ter atendido as legítimas expectativas.

    Preocupado com os melhores interesses de meu antigo paciente. Após

    três meses, pedi ao pai do paciente que o havia referendado para mim

    e amigo da família, para que averiguasse o que estava acontecendo.

    Eis a surpresa: os pais, sentindo-se cansados e desesperançados,

    haviam decidido não fazer mais nada e entregaram o menino “nas

    mãos de Deus”. Eram muito religiosos, rezavam muito e tinham fé

    de seu Deus faria o melhor por seu lho. Após várias tentativas e

    com muito constrangimento, tive que ameaçá-los com denúncia no

    Conselho Tutelar por maus tratos, caso não voltassem a procurar

    ajuda para seu lho.

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    20/27Curso de Bioética8

    E. M voltou muito desnutrido, com distúrbios hidro-eletrolíticos severos,

    alterações na coagulação sanguínea e infecção severa na perna direita,

    que evoluiu com trombose, arterite e necrose do pé. Após todas as

    medidas terapêuticas cabíveis, constatamos que não havia condições

    de manter aquele pé necrosado, porque estava trazendo grande risco

    de vida para E.M. Propusemos, então, a amputação. Foi penoso paranós e para os pais. Estávamos começando a mutilar o menino. Mas

    era sua única chance de sobreviver e os pais concordaram, após longa

    explicação da necessidade do procedimento para E.M.

    Em julho de 1994, nova internação, desta vez sem alta hospitalar até o

    óbito, em dezembro. Todas as tentativas de controle das diarreias eram

    infrutíferas. As infecções se repetiam. Sobreveio a falência de órgãos:

    os rins não funcionavam direito, o fígado estava comprometido, a

    ventilação mecânica foi instalada e drogas inotrópicas de suporteà circulação foram introduzidas. A evolução do caso clínico parecia

    irreversível e nossa preocupação, minha e da família, passou a ser

    prioritariamente com o conforto de E.M. Os pais ainda alimentavam

    a esperança de levá-lo para casa no Natal, nem que fosse para morrer

    em casa, a casa nova com um quarto especialmente montado para

    cuidar de seu menino. No dia 20 de dezembro pela manhã, ao visitá-

    lo, constatamos que seu quadro clínico era terminal. Mesmo com a

    ventilação mecânica, sua gasometria era péssima. Não urinava mais.

    Estava muito ictérico. As arritmias eram frequentes, seu pulso débil ea perfusão periférica muito comprometida. O abdômen estava muito

    distendido. As pupilas estavam midriáticas e não reagiam à luz. Ao

    aspirar suas vias aéreas superiores, junto com a secreção, veio parte

    de sua mucosa. Os pais, segurando as mãos de seu lho, olharam para

    mim. Foram momentos de silêncio, de reexão e de reavaliações que

    não esquecerei. Após alguns segundos, que pareciam séculos, lhes

    perguntei: Chega? A resposta veio rápida e segura: Chega. Nos vinte

    minutos seguintes foram suspensas as medicações e a ventilação

    mecânica. Os pais, com um choro suave e abraçados acompanharam

    os últimos batimentos cardíacos de seu lho.

    Um ano depois fui visitar a família e fomos colher uvas juntos. Não

    falamos de E.M, mas no abraço que me deram ao me despedir, senti o

    quanto ele estava entre nós.

    (Extraído de CLOTET, J. Bioética: Uma Aproximação. Porto Alegre: EDIPUCRS,

    2003, p.49-54).

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    21/27Unidade 3 |  Bioética: princípios e aplicações 79

     Caso 4 - Caso Ryan Gracie

    Preso numa sexta-feira (14/02/2008) sob acusação de roubo, o lutador

    de jiu-jitsu Ryan Gracie foi encontrado morto na manhã do sábado

    seguinte na carceragem do 91º DP (Ceagesp), na Vila Leopoldina emSão Paulo. O médico psiquiatra Sabino Ferreira de Farias Neto, que

    acompanhou o lutador entre a noite de sexta-feira e a madrugada

    do sábado, disse que o exame de urina feito por Gracie após a prisão

    apontou presença de cocaína, maconha e outros medicamentos.

    Segundo o que consta no Boletim de Ocorrência lavrado no 91o  DP,

    Gracie havia sido detido sob acusação de ter roubado o carro de um

    idoso de 76 anos no Itaim Bibi, bairro nobre da zona oeste da cidade

    de São Paulo. O lutador acabou contido por motobóis e foi preso, em

    seguida, pela Polícia Militar. Na delegacia, Gracie chegou agitado e

    dizendo que estava sendo “perseguido” quando foi preso. O delegado

    Aílton Camargo Braga, que registrou a ocorrência, disse à imprensa

    paulista que o lutador dizia que estava sendo perseguido “pelo pessoal

    da favela e pelo PCC [Primeiro Comando da Capital]”.

    Questionado, o advogado Rodrigo Souto disse que desconhecia se

    Gracie apresentava problemas psicológicos, mas armou que ele diziao tempo todo que estava sendo perseguido. Segundo consta, Gracie

    saiu de seu apartamento, no Itaim Bibi, zona sul, às 13h30, gritando que

    precisava fugir.

    O advogado alegou que o lutador não cometeu crime. No entanto,

    testemunhas que presenciaram a ação de Gracie disseram à polícia

    que, além de roubar o Corolla, o lutador agrediu o dono do veículo,

    um senhor de 76 anos, com uma faca de cozinha cortando um dedo da

    mão esquerda da vítima. Com o carro, Gracie andou por pouco tempo,por aproximados 500 metros, e bateu em um banco de concreto sobre

    a calçada.

    Segundo a Polícia, ele ainda tentou roubar outro carro, mas, sem

    sucesso, investiu contra um motoqueiro.

    Quando abordou o motobói, Gracie teria mostrado uma faca e disse

    que era assalto. “Desce da moto, senão eu te mato”, teria dito Gracie. O

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    22/27Curso de Bioética0

    motoqueiro Adriano Souza pegou a encomenda que levaria para Cotia

    (Grande São Paulo), enquanto Gracie subiu na moto sem conseguir

    ligá-la. Outros motobóis pararam no semáforo e encorajaram a vítima

    a não deixar que Gracie levasse o veículo. O dono da moto armou que

    bateu com o capacete na cabeça de Gracie, que caiu e foi imobilizado

    pelo grupo de motociclistas, cerca de 30.

    Foi a terceira vez que o atleta teve problemas com a Justiça. Em 2000,

    passou 18 dias preso no Rio de Janeiro, acusado de esfaquear um

    estudante e, cinco anos depois, teria agredido sicamente um policial

    e ofendido uma delegada do 78º DP, na região dos Jardins, em São

    Paulo. Dessa vez foi a última, seu corpo foi encontrado por volta das

    7h30 na cela, segundo a SSP (Secretaria da Segurança Pública). Ele

    estava sentado em um dos cantos da cela. Os carcereiros encontraram

    o lutador morto na troca de turnos.

    A Polícia Civil abriu inquérito para investigar se o uso de drogas,

    aliado aos medicamentos ministrados por um psiquiatra, podem ter

    provocado a morte de Gracie.

    Segundo o psiquiatra, ele conheceu o lutador há quatro anos, mas

    que este não havia sido um de seus pacientes. Disse ter sido chamado

    na noite da sexta-feira à delegacia pela namorada de Gracie e que

    ministrou ao menos seis tipos de medicamentos ao lutador. Armou,ainda, que ao chegar à delegacia acompanhou Gracie ao IML (Instituto

    Médico Legal) durante a realização do exame toxicológico. Ele queria

    ministrar medicamentos ao lutador, mas precisava saber se Gracie havia

    consumido drogas. Segundo o médico, Gracie precisava ser medicado

    pois “corria o risco de sofrer uma parada cardíaca ou respiratória

    porque estava muito exaltado”.

    Em algumas de suas palavras veiculadas pela imprensa, o médico teria

    dito: “Ele [Gracie] dizia que precisava sair de lá [delegacia] porque acada minuto que casse lá caria mais ‘ssurado’”. Ainda segundo

    esse depoimento, Gracie lhe teria armado na delegacia que injetou e

    aspirou cocaína. Ele armou que cou com Gracie das 22h30 da sexta-

    feira às 5h do sábado. Antes de ir embora, ministrou pelo menos seis

    tipos de tranquilizantes.

    O laudo toxicológico feito pelos peritos indicaram que Ryan consumira

    maconha e cocaína. Os medicamentos que Ryan tomou, depois de preso,

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    23/27Unidade 3 |  Bioética: princípios e aplicações 81

    também aparecem nos laudos: Midazolam, Alprazolam, Prometazina,

    Clozapina, Haloperidol. Todas são substâncias usadas para combater a

    ansiedade e acalmar o paciente. De acordo com o laudo ocial as doses

    dadas foram terapêuticas. Mesmo assim, o promotor que investiga o

    caso, Paulo D´Amico Jr., diz que foi a combinação de remédios, e não

    as doses, que provocou a morte do lutador: “Reunidos num coquetel,afetaram sobremodo a situação do coração do Ryan Gracie. Ele tinha

    um coração já sofrido, sofrido por esse histórico de dependência”.

    Em sua defesa, o psiquiatra Sabino de Farias Neto. disse: “Há 31 anos

    eu atendo pacientes que usam maconha, cocaína, bebida. E uso

    medicações exatamente nesse nível”.

    Segundo a opinião da família, esta foi chamada à delegacia, logo após

    a prisão de Gracie, tendo resolvido convocar um médico que, contrárioà declaração dele, já o havia atendido em outra ocasião: “O doutor

    Sabino foi chamado para para isso, para poder transferir o Ryan para

    um hospital”, contou Flávia Gracie, irmã de Ryan. Mas o ex-campeão

    de Vale Tudo não foi transferido. Ficou na delegacia até ser levado, já

    de madrugada, para fazer um exame no Instituto Médico Legal. Lá,

    ele foi medicado pela primeira vez. “Quando a gente estava no IML,

    o doutor Sabino apareceu com uma bandeja com uma quantidade de

    remédios”, disse Flávia.

    Segundo o psiquiatra Marcelo de Mello, o que mais chama a atenção

    é a quantidade de drogas que foram usadas ao mesmo tempo. Uma

    interage com a outra que pode aumentar o numero de efeitos colaterais.

    Nesse caso, principalmente os cardíacos. O coração pode começar a

    bater fora do ritmo, entrar num quadro mais grave, que pode levar a

    parada cardíaca, conforme noticiou Marcelo Feijó De Mello, psiquiatra

    da Unifesp.

    O uso anterior de cocaína pode ter piorado ainda mais o quadro clínico.

    Os problemas de Ryan se agravaram quando ele saiu no IML e voltou

    para uma delegacia. O advogado do médico, Pedro Lazarini Neto, nega

    a culpa de seu cliente.

    (Compilado de várias fontes jornalísticas divulgadas na época do

    acontecimento).

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    24/27Curso de Bioética2

    Considerações sobre o conteúdo da unidade

    Pode-se operar em Bioética com princípios sem ser principialista? Sim.

    Não é a utilização de uma ferramenta que faz o operário.

    Os princípios de Bioética podem ser usados como norteadores,

    balizadores ou diretrizes em muitas abordagens de Bioética. Eles

    não são exclusivos dos principialistas. O que um principialista faz de

    diferenciado é considerar que tais princípios têm existência ontológica.

    Isto é, eles são. Em outras abordagens, eles não são, eles valem. Por

    isso, essa unidade é para apresentar os princípios, não o principialismo

    (que já foi apresentado em unidade anterior). Você poderá escolher

    qualquer abordagem para trabalhar os casos apresentados.

    São 4 princípios a serem considerados, desde o Relatório Belmont:

    a) Autonomia, que pressupõe emancipação e se liga à capacidade

    de decisão ou escolha dos indivíduos. Essa escolha não pode ser

    forçada nem calcada em artefatos obscuros que prejudiquem a

    clareza da decisão. A autonomia deve ser livre e esclarecida;

    b) Benecência, que se liga à ação de fazer o bem. Difere de

    benevolência por seu caráter universal e obrigatório: a benecênciadiz que temos que tratar a todos que estão na mesma situação do

    mesmo modo. Os protocolos são muito importantes para regular

    esse princípio;

    c) Não-malecência, que se liga a duplicidade de não causar danos (a

    regra primeira é sempre não fazer o mal) ou causar danos (fazer o

    mal nos casos em que fazer o mal for necessário. Casos em que se

    deve pesar qual o mal menor e a sua necessidade); e,

    d) Justiça, que, apesar de sua complexidade, é um princípio fácil de

    ser identicado, pois sempre envolve a materialidade de tratar

    os indivíduos que estão na mesma situação sob uma mesma

    concepção arbitrária de justiça.

      Em todos os casos apresentados, um ou todos os princípios se

    aplicam. É importante ressaltar o que é particular de cada um.

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    25/27Unidade 3 |  Bioética: princípios e aplicações 83

    No primeiro caso, nota-se a importância de um julgamento sobre

    a assistência à comunidade pesquisada após o encerramento da

    pesquisa, bem como a intervenção nas condutas já existentes.

    No segundo caso, nota-se a relação entre as questões Bioéticas e

    algumas necessidades contemporâneas: a necessidade de consumirprodutos novos e diferenciados no mercado, a necessidade de

    manter uma aparência juvenil, competitiva e viril, e, principalmente,

    a necessidade que o capitalismo tem de criar novas necessidades.

    Esse caso pode ser uma evidência de que a medicalização da vida vai

    ao encontro de antigos anseios, como a amortalidade (desejo de não

    morrer, mesmo sendo mortal, ou de morrer sem a decrepitude).

    O terceiro caso, bastante complexo, envolve diversas posturas diante

    da possibilidade iminente da morte. Essas posturas são ambivalentese assim o caso deve ser analisado. Observaremos desde aproximações

    com o acolhimento humanizado da morte à prática de distanásia

    e obstinação terapêutica. Rico, é o único caso, dos que foram aqui

    apresentados, que o relato está completo: contexto (com descrição

    dos personagens, inclusive), histórico/anamnese, hipótese diagnóstica,

    procedimentos terapêuticos e desfecho.

    O último caso, de conhecimento da população por sua repercussão

    na mídia, traz à tona a questão da manutenção da autonomia em

    saúde mental e inúmeras questões que estão correlacionadas aos

    procedimentos médicos e policiais em pauta.

    A importância do estudo de casos em Bioética é fundamental, uma vez

    que nessa disciplina não se discutem questões morais abstratas, mas

    casos que realmente aconteceram ou são possíveis de acontecer caso

    alguma decisão não seja tomada.

    RESUMO

    Nesta unidade tomamos conhecimentos dos princípios de Bioética

    e suas denições, a partir daquilo que se conhece como Relatório

    Belmont.

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    26/27Curso de Bioética4

    É importante ressaltar que a descoberta de campos de concentração

    aos moldes nazistas, em pleno solo americano, mostrou ao mundo que

    nenhum país está ileso desses desvios de conduta para com os seres

    humanos. Que precisamos acordar algumas regras de conduta para

    guiar as pesquisas clínicas, laboratoriais e experimentais, bem como

    para guiar a assistência em saúde.

    A existência desses princípios serve, portanto, de norte para as mais

    diversas conferências e declarações que são emitidas em vários lugares

    do mundo. Esses não são os únicos, são apenas os mais repetidos:

    • Princípio de autonomia;

    • Princípio de Benecência;

    • Princípio de Não-Malecência; e,• Princípio de Justiça.

    A operação com esses princípios, como instrumentos ou diretrizes,

    como realidades ontológicas ou valorativas, é importante para guiar as

    condutas em Bioética.

    Quais são os princípios em Bioética denidos a partir do

    Relatório Belmont?

    Qual a diferença entre benecência e não-malecência?

    Quais são as denições de justiça, segundo Perelman?

    Duas dessas concepções são impossíveis aos homens

    aplicarem-nas em sua totalidade. Quais são?

    Escolha um dos casos e procure respondê-lo de acordo

    com as sugestões

    4

    5

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    27/27

    BBC BRASIL: Executivos nos EUA tentam retardar envelhecimento

    com hormônios. Disponível em: . Acesso em 18 jun. 2012.

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    COSTA, S.J.F, GARRAFA, V., OSELKA, G. Iniciação à Bioética. Brasília,

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    MINISTÉRIO DA SAÚDE. Capacitação para Comitês de Ética em Pesquisa. 

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