Biografia 4 ............................actualizado..+++++++++

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Biografia pessoal. – 1 - Chamo-me Afonso José e nasci no ano de 1929. Nasci em Angola, numa pequena vila situada à beira mar, onde viviam apenas umas centenas de europeus. Esse local distava cerca de 6 km do Lobito. Era um sítio quente e húmido infestado de mosquitos de todos os tipos. A vila recebera o nome do grande rio que a banhava e que ali desaguava no Oceano Atlântico. A vila era habitada por europeus e por africanos que trabalhavam na indústria do açúcar, numa grande açucareira de nome Cassequel, que ficava situada numa das margens desse caudaloso rio que fornecia a sua água para o fabrico do açúcar. O rio Catumbela possuía nas suas margens muitos canaviais e hortas e era infestado de enormes e perigosos crocodilos, que punham em risco a vida de quem incautamente se aproximasse das suas margens. Meu pai teve uma pequena casa de comercio e residência na vila, aonde transacionava os artigos de que os habitantes necessitavam para viver. Meu irmão mais velho, chamado Américo, era apenas filho de meu pai e tinha quinze anos quando eu nasci. Era filho de uma africana com quem meu pai vivera antes de se casar. Meu outro irmão mais velho, também filho legítimo de meus pais, tinha apenas mais dezoito meses do que eu e foi-lhe posto o nome de José Emanuel. Para além disso meu pai possuía também uma filha ilegítima, chamada Matilde que obtivera de outra mulher africana com quem convivera e que sofrera na sua infância de uma paralisia infantil que a deixara aleijada de uma perna. Meu pai adoptou legalmente os seus dois filhos mestiços a quem deu o nome de família e enviou-os para Portugal para estudarem. Minha avó materna, que se chamava Gertrudes Rosa, veio pela primeira vez para Luanda com o marido de quem teve dois filhos, um rapaz a quem deram o nome de Raul Machado e minha mãe, que se chamava de Felismina Machado. Meu tio nasceu em Luanda em Março de 1890 e minha mãe se não estou em erro, terá nascido em 1891. Minha avó regressou a Portugal com os dois filhos, com o propósito de os educar a nessa altura tirou o curso de parteira, profissão que veio a exercer em Portugal. Regressou mais tarde a Angola para se encontrar com o marido, que entretanto, se juntara a uma mulher africana de quem teve vários filhos mestiços. Minha avó era uma senhora educada e de grande carácter, sendo muito conhecida pela sua grande bondade, embora tivesse sofrido um choque emocional inesperado, como é natural,

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Biografia pessoal. – 1 -

Chamo-me Afonso José e nasci no ano de 1929. Nasci em Angola, numa pequena vila situada à beira mar, onde viviam apenas umas centenas de europeus. Esse local distava cerca de 6 km do Lobito. Era um sítio quente e húmido infestado de mosquitos de todos os tipos. A vila recebera o nome do grande rio que a banhava e que ali desaguava no Oceano Atlântico. A vila era habitada por europeus e por africanos que trabalhavam na indústria do açúcar, numa grande açucareira de nome Cassequel, que ficava situada numa das margens desse caudaloso rio que fornecia a sua água para o fabrico do açúcar. O rio Catumbela possuía nas suas margens muitos canaviais e hortas e era infestado de enormes e perigosos crocodilos, que punham em risco a vida de quem incautamente se aproximasse das suas margens. Meu pai teve uma pequena casa de comercio e residência na vila, aonde transacionava os artigos de que os habitantes necessitavam para viver. Meu irmão mais velho, chamado Américo, era apenas filho de meu pai e tinha quinze anos quando eu nasci. Era filho de uma africana com quem meu pai vivera antes de se casar. Meu outro irmão mais velho, também filho legítimo de meus pais, tinha apenas mais dezoito meses do que eu e foi-lhe posto o nome de José Emanuel. Para além disso meu pai possuía também uma filha ilegítima, chamada Matilde que obtivera de outra mulher africana com quem convivera e que sofrera na sua infância de uma paralisia infantil que a deixara aleijada de uma perna. Meu pai adoptou legalmente os seus dois filhos mestiços a quem deu o nome de família e enviou-os para Portugal para estudarem.

Minha avó materna, que se chamava Gertrudes Rosa, veio pela primeira vez para Luanda com o marido de quem teve dois filhos, um rapaz a quem deram o nome de Raul Machado e minha mãe, que se chamava de Felismina Machado. Meu tio nasceu em Luanda em Março de 1890 e minha mãe se não estou em erro, terá nascido em 1891. Minha avó regressou a Portugal com os dois filhos, com o propósito de os educar a nessa altura tirou o curso de parteira, profissão que veio a exercer em Portugal. Regressou mais tarde a Angola para se encontrar com o marido, que entretanto, se juntara a uma mulher africana de quem teve vários filhos mestiços. Minha avó era uma senhora educada e de grande carácter, sendo muito conhecida pela sua grande bondade, embora tivesse sofrido um choque emocional inesperado, como é natural, foi no entanto capaz de o compreender e perdoar. Qualquer outra mulher na sua situação teria certamente odiado para sempre o marido e desprezado os seus filhos. Porém nada disso aconteceu e ao tê-lo perdoado, ajudou-o até, a criar e a educar uma das filhas, a quem protegeu e tratou como verdadeira filha trazendo-a consigo para Portugal e a quem deu depois uma educação esmerada e o curso de professora primária. Minha mãe, quando era viva, falava-me muitas vezes da sua irmã Leonor com imenso carinho, tratando-a sempre pela minha querida Leonor. Para além da Leonor, minha mãe possuía ainda uma outra irmã mais velha chamada Laura. Minha falecida mãe, que se chamava Felismina e suas irmãs Laura e Leonor tiraram todas o curso do magistério primário e todas se tornaram professoras primárias.

Minha mãe e a Leonor tiraram também ambas o curso de música no Conservatório Nacional. Minha mãe era uma pianista eximia e a Leonor dedicara-se ao violoncelo e era violoncelista. Mais tarde tanto a Leonor como a Laura morreram ambas vítimas de tuberculose, uma doença que nesse tempo constituía uma verdadeira epidemia e fazia grande razia de vidas em Portugal.Minha mãe voltou a África acompanhada de minha avó, já depois de crescida, tendo conhecido meu pai no Lobito, em casa de um casal amigo de meu pai. Meu pai rapidamente se - 2 -

enamorou de minha mãe, embora existisse entre eles uma grande diferença de idades e de instrução. Incentivados e encorajados por esse casal amigo de meu pai ficaram noivos e rapidamente se casaram. Nesse tempo, em Angola, a vida não era nada fácil. Angola era uma colónia muito atrasada e em início de formação, com uma população de europeus muito baixa e onde existia um grande atraso civilizacional. Numa altura, em que existia na Colónia, uma grande falta de jovens europeias, qualquer mulher branca suficientemente esbelta e bem parecida, rapidamente se via cercada de pretendentes com boas situações económicas e só não se casaria bem, se quisesse permanecer solteira ou não soubesse escolher entre os seus vários pretendentes.Depois de casados meu pai e minha mãe ficaram a viver na Catumbela e minha mãe embora fosse professora primária, nunca veio a exercer a sua profissão porque meu pai que era suficientemente rico e não precisava disso, nunca o quis consentir. Compreendo que talvez fosse para ela um pouco difícil, ter tirado dois cursos e ter acabado por aceitar a situação de simples dona de casa. Todavia os tempos eram diferentes e a maior parte das mulheres sonhava arranjar bons casamentos e não desdenhava ser dona de casa. Em pouco consistiriam as suas tarefas domésticas, pois havia uma enorme profusão de mão de obra doméstica e uma grande oferta de concorrentes para esses trabalhos caseiros.A casa comercial que meu pai e os sócios possuíam na Catumbela, era um estabelecimento de tamanho médio mas bem afreguesado, que transacionava bens alimentares, panos e roupas e que comprava também os produtos agrícolas que os africanos cultivavam e que habitualmente vendiam. O milho, o feijão,a batata, o óleo de palma, a cera e as peles de animais selvagens eram os produtos que os africanos mais transacionavam com os europeus e que constituíam a maior base da sua permuta. Em 18 Abril de 1927 os meus pais foram brindados com o seu primeiro filho, a quem deram o nome de José Emmanuel. O parto de meu irmão foi realizado pela nossa avó Gertrudes, que nessa altura vivia em casa de meus pais. Minha avó exultou com o nascimento do seu primeiro neto e votou-lhe um grande amor e afeição. Depois, em 19.10.1929 nasci eu, que recebi o nome de Afonso José, num parto normal também realizado por minha avó. Catumbela não era uma terra saudável e o seu clima quente e húmido era difícil de suportar pelos europeus e a presença de milhares de mosquitos principalmente depois do pôr do Sol tornava as noites uma verdadeira aflição. Ninguém podia dormir fora de uma rede mosquiteira e o quinino era nessa ocasião o antídoto habitual que todos tinham de tomar para evitar os ataques de malária. As nuvens de mosquitos que se levantavam dos pântanos que circundavam o rio Catumbela eram um flagelo tormentoso, que ameaçava a vida de todos os habitantes. Para se poder comer sem se ser assaltado pelos mosquitos, a maioria anófeles, tinha de se desinfetar a sala das refeições uma hora antes de jantar e manter depois a sala em quase completa escuridão. À hora das refeições tinham de se colocar as pernas dentro de sacos vazios de açúcar. O quinino era um medicamento que se podia comprar em qualquer estabelecimento comercial e que era fabricado na Holanda e fornecido em frascos de 50 a 100 comprimidos envoltos com capa de açúcar.Mantenho na minha memória uma viva recordação da casa e de todos os seus espaços, principalmente do quintal e do jardim. Minha mãe tinha uma enorme paixão pelos cravos e cultivava-os em celhas que mandava fazer com os barris de vinho vazios. As celhas eram colocadas em cima de tijolos para facilitar a escorrência das águas de rega. Nesses tijolos furados refugiavam-se muitas vezes perigosos lacraus que podiam criar graves problemas às pessoas. Nem eu nem meu irmão podíamos ir sozinhos para os quintais. Éramos sempre acompanhados por um ama seca que deveria vigiar-nos constantemente. Apesar disso fui vítima de um grande acidente, por distração do ama seca. Na minha inocência e ingenuidade peguei num pequeno regador com água e fui regar uma fogueira acesa. Desequilibrei-me e caí sobre as brasas da fogueira tendo queimado horrivelmente uma das mãos. Fui socorrido por meu pai que ouviu os meus gritos lancinantes. De imediato fui levado ao hospital onde me trataram e fiquei com a mão enfaixada durante vários dias até que as queimaduras sarassem. - 3 -

Para que os meus dedos não cicatrizassem ligados uns aos outros o enfermeiro que me tratou colocou-me talas de madeira entre os dedos. Ao atingir os cinco anos de idade minha mãe não quis continuar a viver na Catumbela devido à severidade do clima. Nessa altura a sociedade de que o meu pai fazia parte, já possuía uma casa comercial no planalto do Huambo e uma grande fazenda agrícola perto da Vila de General Machado, na província do Bié. O nome dessa fazenda era Chanhora e dedicava-se à agricultura, à fruticultura e à pecuária. Eu e meus pais ainda ali fomos passar uma temporada.Qualquer criança gosta de poder divertir-se com coisas do campo gozando de uma liberdade quase incondicional, andar de pés descalços, chapinhar na água dos córregos, apanhar fruta das árvores, comê-la ainda semi madura e observar os animais da fazenda a pastar e a crescer. A fazenda tinha um grande pomar com milhares de laranjeiras, tangerineiras, limoeiros, goiabeiras, mamoeiros e outras frutas. Possuía também um enorme pombal habitado por grandes bandos de buliçosas pombas. Era um verdadeiro paraíso no meio do mato onde a água era pura e transparente e o ar limpo e carregado de oxigénio. Ali passámos dias de verdadeiro sonho e de paz.Ali viveu e morreu um sócio de meu pai natural da Curia, a quem, não sei porque estranha razão, os africanos puseram a alcunha de Chicuamanga ( o corvo). Morreu relativamente novo. A morte deste sócio vitimado por um cancer no fígado, foi muito sentida pelos restantes sócios da firma. Alguns anos mais tarde, morreu com diabetes um outro sócio e irmão mais velho de meu pai. Com a morte destes seus dois sócios meu pai ficou sozinho à testa da firma. No inicio, depois destas duas mortes meu pai teve de conduzir sóziho os negócios da Catumbela, do Huambo, e da Fazenda agrícola. Calculo que tenha sido um período muito difícil da sua vida comercialNova Lisboa possuía um clima ameno de planalto e gozava de uma temperatura moderada, mas no verão africano tinha o inconveniente de ser uma cidade muito chuvosa. Chovia tanto que a cidade e a região foram apelidadas de “penico do céu”. Nova Lisboa era também a cidade dos cosmos selvagens que floriam por toda a cidade e pelos campos circundantes. Embora meu pai tivesse de fazer diversas viagens para dar assistência aos negócios, o seu quartel general foi sempre a cidade do Huambo. A firma em Nova Lisboa prosperou grandemente e dava para suportar os défices comerciais dos outros negócios.Eu e meu irmão fomos crescendo protegidos por nossa mãe que sempre nos procurou orientar da melhor forma. Durante o período da Escola Primária frequentamos as escolas oficiais de Nova Lisboa, que tinham uma grande capacidade de ensino e eram servidas por excelentes professores que sabiam ensinar e preparar as crianças que lhes eram confiadas. Durante todo esse tempo, nunca perdemos ano algum. O sistema de ensino dessa época determinava a necessidade de um exame de admissão ao Liceu no final do curso primário. Em Nova Lisboa não faziam esse exame. Esse exame tinha de ser feito em Sá da Bandeira no Liceu Diogo Cão. Quando meu irmão José precisou de o fazer para ingressar no Liceu, pôs-se a questão da deslocação à cidade de Sá da Bandeira que distava de Nova Lisboa 400 km aproximadamente. Meu pai por não poder ausentar-se do seu negócio para ir a Sá da Bandeira, falou com um amigo seu o Sr. Francisco Barata para que ele nos levasse a Sá da Bandeira no seu ford descapotável de 4 cilindros. No carro viajaram outros colegas de meu irmão, entre os quais se encontrava Lúcio Lara, que mais tarde haveria de se juntar ao MPLA. Fizemos uma excelente viagem até Caluquembe, muito embora a estrada não estivesse grande coisa. Nessa altura todas as estradas de Angola eram de terra batida e eram muito mal conservadas pelos cantoneiros regionais. Tinham buracos e em muitas zonas atravessavam terrenos argilosos que ficavam praticamente transformados em lameiros intransitáveis quando caiam chuvadas fortes e copiosas. A viagem, como já referi, decorreu sem qualquer problema até Caluquembe, mas passou rapidamente a uma viagem tormentosa quando se abateu sobre nós uma tremenda chuvada acompanhada de relâmpagos e trovões.Enquanto minha mãe terrivelmente assustada rezava continuamente invocando Santa Marta, por causa da trovoada e do vento que assobiava, partindo galhos e ramos de árvores, meu - 4 -

irmão e os colegas riam-se às gargalhadas contando anedotas uns aos outros. O condutor já estava francamente irritado com o comportamento dos jovens do banco de trás e ameaçava parar o carro para lhes partir a cara. Minha mãe estava sempre a rezar e a invocar santa Marta em voz alta, e eu estava tolhido de medo entre minha mãe e o condutor. A capota de lona do carro enchia-se com frequência de água e fazia um bojo sobre a cabeça do condutor, que de tempos em tempos a esvaziava com pancadas súbitas na base. A certa altura o motor do carro começou a falhar, porque as velas estariam molhadas ou a bomba da gasolina deixara de funcionar. Presumindo que o defeito era da bomba o Sr. Barata parava o carro e ia soprar na boca do depósito para que a gasolina chegasse melhor ao carburador. Numa dessas ocasiões, olhei para cima, para o bojo de água que a capota acumulara, e resolvi imitar o gesto que vira fazer ao condutor. Por grande azar estava nessa altura o condutor a soprar no bocal do depósito. Claro está que dei um banho terrível ao Sr. Barata. A reacção não se fez esperar e não levei uma série de chapadas porque a minha mãe me defendeu a gritar para que ele não me batesse, dizendo que eu não fizera isso de propósito.Com o motor afogado e o carro atolado num tremendo lamaçal tivemos de ser de lá tirados por um trator, seguindo depois noutro carro que nos veio socorrer. Eram assim as viagens desses tempos de ouro, verdadeiras e gostosas aventuras que jamais se conseguem esvair das nossas memórias.Entendo ser boa altura para falar um pouco de meu pai. Meu pai era um beirão de gema, nascido e criado em Arganil, que partiu para África (Angola) com a idade de 16 anos. Quando os barcos de passageiros chegavam ao Lobito, os emigrantes jovens que vinham para África para trabalhar e ganhar dinheiro, eram fortemente disputados pelos comerciantes da costa que desejavam abrir feitorias no interior da colónia. Vivia-se uma época em que o interior de Angola estava inteiramente por explorar e era puro sertão. Os feitores tinham de se instalar nos locais do interior designados pelos comerciantes, para criarem os seus futuros entrepostos comerciais. O objectivo era atrair os africanos que transacionavam borracha, cera, mel, tabaco enrolado e marfim, trocando-os por armas, pólvora, facas, enchadas, vinho, aguardente cobertores, panos, peixe seco salgado, enviando depois para a costa, para as empresas para quem trabalhassem, os produtos adquiridos aos africanos. Era uma vida difícil e muito arriscada que exigia, muita saúde, robustez e coragem, pois esses homens ficavam no interior do sertão, cercados de africanos e sem a protecção de ninguém. Meu pai contou-me impressionantes episódios da sua vida no sertão. Não duvido que todos esses jovens tivessem de ser homens de barba muito rija. Meu pai chegou a contar-me que por duas vezes teve de abandonar a casa e tudo o que possuía, para poder salvar a própria vida e que foi mesmo devido à lealdade de alguns empregados africanos que se conseguiu salvar. Estes episódios ocorreram principalmente na altura em que os alemães do Sudueste Africano, hoje Namíbia, começaram a aliciar e armar os africanos do Sul de Angola para disputar a soberania da região a Portugal. Apesar de todas estes graves problemas meu pai consolidou a sua vida comercial e acabou por se fixar na Catumbela construindo a sua estabilidade económica. A Catumbela foi o ponto de partida de todo o seu projecto comercial que por fim se veio a consolidar no Huambo e que atingiu o auge entre 1937 e 1950.Posso dizer que tive uma infância feliz. Deveria ter cerca de 10 anos quando comecei a passear sozinho pelos arredores da cidade, numa completa inocência desprevenida, levando num dos bolsos uma fisga rudimentar que eu mesmo fabricara e no outro umas quantas pedras apropriadas para servirem de munições. Com o tempo tornei-me um experiente atirador à fisga e quando regressava a casa, ao fim do dia, trazia quase sempre os bolsos cheios de pássaros mortos e, quantas vezes, a minha roupa toda suja e rota para desespero de minha mãe. Nessa altura, eu era um rapazinho estouvado que não dava ouvidos a ninguém e era incapaz de me controlar e emendar. Minha mãe pedia frequentemente a meu pai para intervir e para me castigar. Meu pai açoitava-me então com a sua pesada mão, mas eu não tinha conserto e sempre que conseguia escapar-me de casa voltava ao mato pelas veredas que tão bem conhecia. O mato para mim era uma verdadeira paixão por tudo aquilo que punha ao

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meu alcance, e eu não avaliava riscos nem ameaças. Minha mãe vivia em permanente estado de preocupação comigo e com meu irmão, mas muito mais comigo que nunca lhe dava ouvidos nem tréguas. Para nos afastar das tentações próprias da nossa idade e inexperiência, comprou-nos patins, raquetas de ping pong e de ténis, uma bicicleta, armas de pressão de ar, sem que isso tivesse produzido em nós qualquer resultado. Essas coisas todas escapavam a meu pai que tinha de estar concentrado no seu negócio. A minha permanente indisciplina refletiu-se como não podia deixar de ser no meu comportamento escolar e nos meus resultados académicos. Ao entrar no Liceu, comecei a pagar o preço da minha anarquia e desobediência. Os maus resultados obtidos ao longo do tempo, foram-se acumulando lenta mas progressivamente e projetaram-se todos nos últimos anos do meu curso secundário. Reprovei nos exames de 6º ano que fui fazer a Sá da Bandeira. Consegui apenas ser aprovado na disciplina de história. A minha falta de aproveitamento fez com que meu pai me retirasse a sua confiança e para acabar de vez com as minhas atitudes levianas obrigou-me a trabalhar. Quero esclarecer que uma das causas do meu insucesso escolar se devia também ao facto de eu ter entrado numa puberdade agitada. Eu e meu irmão, José que também não conseguira ser bem sucedido nos estudos, frequentávamos com uma assiduidade quase cronométrica o cinema do Ruacaná e os bailes e matinées dançantes do Sporting Clube do Huambo e do Atlético Clube do Huambo, que decorriam normalmente aos sábados e aos domingos. Aos sábados recolhíamos a casa por volta das 3 e 4 horas da manhã. Tínhamos então muitas amizades tanto de rapazes como de raparigas e divertíamo-nos à tripa forra. Durante esse tempo e com algum dinheiro que juntei comprei uma bicicleta nova e uma arma caçadeira calibre 12 de dois canos, e na companhia de outros bons amigos, organizei um grupo de caça. Um desses bons amigos era um rapaz com a minha idade, cuja mãe dirigia uma loja de permuta no mato, numa zona muito rica em caça miúda. Para nos deslocarmos para o local, em que viviam, nos fins de semana, partíamos à sexta feira, numa camioneta ligeira que eles possuíam para transportar os sacos de milho e de feijão que compravam aos agricultores africanos e para transportar todos os artigos destinados à sua permuta comercial com os indígenas. As nossas expedições cinegéticas eram cuidadosamente preparadas e levávamos sempre connosco um grande suprimento de alimentos para preparar as nossas refeições no mato. Normalmente íamos em grupos de 4 ou 5 europeus, e levávamos também connosco uns dois ou três auxiliares africanos que conheciam bem a região e que, juntamente com outros elementos africanos locais se juntavam depois a nós para poder guiar-nos de noite até aos locais em que a caça se concentrava. Escolhíamos então na mata ou na planície, um ponto bem localizado, perto de uma linha de água potável e aí assentávamos o nosso acampamento. Alguns dos africanos que conheciam bem a região levavam-nos para perto dos seus aldeamentos, pois sabiam que no final da expedição, quando nos retirássemos definitivamente iríamos distribuir uma grande quantidade de carne dos animais que tivéssemos abatido.As peças de caça mais abundantes na região, eram as cabras de mato e os nuces. Não constava que fosse uma região de feras perigosas, mas , em qualquer mato africano, existe sempre uma grande quantidade de chacais, raposas e hienas. As hienas eram as feras que mais receio nos causavam, por serem muito intrometidas e abusadoras, gostando imenso de roubar as presas abatidas pelos predadores e pelos caçadores. Apesar de serem animais verdadeiramente repulsivos que nos seguiam à distância, nunca se aproximavam muito de nós. Mesmo assim são animais detestados pelos próprios africanos a quem muitas vezes roubam cabritos e criação miúda. Ao regressarmos ao Huambo transportávamos sempre uma grande quantidade de animais mortos que depois distribuíamos pelos amigos e que também vendíamos a estranhos para ajudar nas despesas feitas. Estas excursões cinegéticas eram feitas mais para nos divertirmos e confraternizarmos do que propriamente para caçar.Foi mais ou menos nessa altura também, que eu e meu irmão começamos a aprender a conduzir para poder obter as nossas cartas de condução. Essas lições não eram ministradas por escolas de condução, porque nessa altura não as havia. As pessoas tinham de se preparar aprendendo a guiar com carros emprestados ou carros alugados sem condutor. No nosso caso,

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tanto eu como meu irmão, alugávamos os carros a particulares que se dedicaram a explorar esse tipo de negócio. Os carros eram alugados à hora e os alunos aprendiam por si mesmos guiando dentro e fora da cidade. Não havia qualquer tipo de fiscalização nem ninguém era penalizado por guiar sem licença de condução. Os alunos, logo que se sentissem à vontade na condução propunham-se para exame e alinhavavam uns quantos conhecimentos do código de estradas. Quando fiz o meu exame, a primeira tentativa foi verdadeiramente rocambolesca e por isso fiquei reprovado no exame de ligeiros, tendo passado apenas no exame de moto. Isso aconteceu porque fui fazer exame com uma carrinha de caixa aberta ainda por cima emprestada. Vejam o que se passou nesse exame. O examinador, pessoa muito conceituada na cidade, tinha fama de ser uma pessoa muito exigente e rigorosa, e todos os examinandos temiam principalmente quando se encontrava mal disposto. Penso que no dia em que eu fui fazer o meu exame ele estaria com boa disposição, porque de contrário me teria reprovado, tanto no exame anterior de moto como no de automóvel. No exame de automóvel era seu hábito levar os examinandos para um local da cidade à entrada do Bairro do Ferrovia, muito perto de um viaduto, onde existia uma dupla fileira de enormes eucaliptos. Essa fileira de eucaliptos ladeava uma estrada apertada. Era aí que ele fazia a prova de marcha à rè. Se alguém batesse num só eucalipto já sabia que reprovava. Quando ele me mandou arrancar para fazer a prova, já o céu estava a ficar cinzento escuro e saltou do céu um relâmpago descomunal que deu lugar a um ribombo medonho que fez tremer tudo. As comportas do céu abriram-se de imediato e desabou uma chuva torrencial. O examinador, que estava fora da cabine da carrinha correu a refugiar-se na cabine, mas não conseguiu fechar o vidro da janela.O elevador estava avariado e não funcionou. Encharcado e furioso virou-se para mim e perguntou num tom colérico: você não sabia que isto não funcionava? Minha resposta pronta: não não sabia. Então a carrinha não é sua perguntou sempre furioso? Não, não é minha é emprestada. Entretanto a chuva amainou progressivamente até parar. Vá, disse-me ele em tom um tanto conciliatório: faça lá a marcha à rè. Nessa altura o motor parou por completo. Tentei várias vezes repô-lo em funcionamento. Mas foi sempre em vão. Entretanto o arranque cedeu e deixou de funcionar. A bateria tinha-se descarregado completamente. E agora, perguntou ele? Agora, disse eu meio encafifado, só se empurrarmos. Então vamos tentar, disse ele. Foi aí que a cena se tornou ainda mais patética. O examinador agarrou-se à traseira da carrinha e pôs-se a empurrar, mas o motor continuou parado. Virou-se novamente para mim e perguntou em voz bem alta: você tem a certeza que esta carrinha tem gasolina? Não, não tenho, respondi, peguei a carrinha emprestada e não perguntei nada ao dono. De facto a carrinha não tinha gasolina, esgotara o depósito completamente. Fomos então os dois arranjar gasolina para poder sair dali.Pelo caminho disse-me com um ar muito chateado, olhe eu vou ter que reprová-lo. Vá-se preparar melhor e traga um carro decente e com gasolina. Vou aprová-lo apenas no exame de moto. Considerei-me então um indivíduo com muita sorte por ter tirado a carta.Quando lá voltei pela 2ª vez já fiz uma prova sem percalços e fui aprovado. Meu irmão José obteve a sua licença de condução antes de mim. Conheci em Nova Lisboa um moço, filho de uma família tradicional, que teve de comparecer a exame de condução mais de 6 vezes para conseguir ficar aprovado. Tudo por uma questão de teimosia, pois sempre que o examinador lhe perguntava como resolveria uma pane, em que o carro parasse e se negasse a trabalhar, lhe respondia que ia chamar um mecânico. Esta sua resposta irritava de tal forma o examinador, que era sempre reprovado. Na semana seguinte lá estava ele a fazer o exame de novo e a dar a mesma resposta. Nessa altura era muito comum alugarmos carros sem condutor aos fins de semana, para nos deslocarmos aos bailes ou festas da Caála, da Vila Nova, da Bela Vista, do Bailundo, da Calenga do Lépi e de outras pequenas povoações dos distritos do Huambo e do Bié. Normalmente íamos com os carros cheios de conhecidos e

- 7 -amigos de Nova Lisboa. Nem sempre a nossa visita ou presença nessas localidades era desejada, pois os rapazes dessas localidades não gostavam muito que lhes fôssemos disputar

as garotas com quem habitualmente dançavam ou com quem até namoravam. Em algumas situações chegava mesmo a haver cenas de pancadaria fora dos salões de baile.Nessas deslocações para fora do Huambo cheguei até a arranjar algumas namoradas. Na minha última tentativa para terminar o 6º ano dos liceus enamorei-me furiosamente duma moça de Sá da Bandeira com quem felizmente, por uma unha negra não tive de casar por me ter fracassado uma tentativa de rapto. Foi uma aventura rocambolesca que me obrigou a sair de Sá da Bandeira para não ser vítima de represálias por parte do pai e a refugiar-me uma semana em Benguela. Graças à minha boa sorte o rapto da moça não se chegou a realizar e alguns dias depois descobri que essa jovem não namorava apenas comigo. Namorava também com um rapaz de Benguela que estava a estudar em Sá da Bandeira. A descoberta desse facto foi para mim uma surpresa que me indignou bastante, porque eu era mesmo maluco por ela.Durante a minha ausência de Nova Lisboa mantive-me sempre em contacto com a minha mãe, que me enviou fundos para eu poder regressar a casa e apaziguou os ânimos do meu pai.Fui então trabalhar para o balcão da loja que meu pai tinha no Huambo, onde permaneci até ser chamado para frequentar a Escola de Sargentos em Luanda.Eu e outros rapazes da minha idade, fomos então frequentar a Escola de Quadros Militares em Luanda, no ano de 1950. Foi meu companheiro de viagem o então locutor do Rádio Clube do Huambo, António Freire que comigo fez o curso de sargento miliciano até ao fim. Foi tudo muito interessante, porque ficámos na mesma camarata, tendo eu o nº 25 e o Freire o nº 24.Foi também muito interessante termos encontrado em Luanda, também incorporados, dois rapazes nossos amigos e conhecidos, o João Azevedo e o Artur Diogo da Silva, que tinham deixado de viver em Nova Lisboa. Tanto um como o outro ficaram também na nossa camarata.As instalações da Escola de Quadros Militares em Luanda, ficavam situadas num edifício antigo situado perto do Palácio do Governo. Os mancebos incorporados, cerca de 60, foram divididos em 2 grupos de 30 que ocuparam as duas cavernas disponíveis nas instalações da escola. O comandante da Escola era um capitão, de nome Prazeres, indivíduo de carácter extremamente rigoroso que manifestou muitas vezes bastante prazer em castigar os recrutas. O segundo comandante da escola era um tenente bastante humano e simpático, de nome Cadete, que assumira o compromisso de preparar uma classe de ginástica automática, para exibir na data da visita a Luanda do Sr, Junkers, um antigo Governador do vizinho Congo Belga. Eu fazia parte dessa classe e, por ter sido introduzida uma alteração sequencial nos movimentos, enganei-me e fiz um movimento errado. O instrutor apitou de imediato para fazer parar a classe. Assim que nos detivemos, o tenente Cadete disparou: 25 seu burro, estás a dormir? O 25 era eu. Fiquei profundamente revoltado por ter sido classificado de burro e resolvi parar, deixando de fazer qualquer outro movimento. O tenente Cadete perguntou-me: 25, porque paraste? Respondi em tom revoltado; “Porque não estou habituado a ser tratado dessa forma” Infelizmente eu não tinha reparado que o capitão Prazeres estava debruçado numa das janelas do 1º andar.Tenente Cadete, chamou o capitão em voz alta, quando tiver acabado a aula de ginástica, mande-me esse recruta cá acima pois quero falar com ele. Como eu tinha perfeita consciência de quem era o Capitão Prazeres em termos de disciplina, senti logo um terrível calafrio em toda a coluna vertebral. Sabia que ia ser punido, facto que poderia destruir a possibilidade de vir a ser promovido a cabo aspirante. Subi as escadas da escola com as pernas a tremer para ir falar com o capitão e o coração a bater agitadamente. Ao entrar no gabinete fui recebido com grande frieza pelo comandante que me atirou de imediato com uma pergunta demolidora. Conheces o regulamento militar recruta? Conheço, embora não muito bem. Achas que cumpriste com a principal regra de um militar? Sabes qual é? Sei, meu capitão. Pega aí neste regulamento e lê-me em voz alta os deveres de um militar. Entre esses deveres figurava o de ter de obedecer perfeitamente às ordens dadas por um superior. Tu achas que obedeceste?Acho que sim, meu capitão. Então viraste para o lado contrário e achas que obedeceste?

- 8 -Bem, eu enganei-me por ter havido uma mudança no exercício e fi-lo sem me aperceber do erro. Bom, bom, vou aplicar-te uma punição para passares a ser mais cuidadoso e prestares mais atenção às ordens. Vou aplicar-te 10 dias de detenção e espero não ter que te castigar

novamente para não perderes o curso de sargentos. Dez dias de detenção nessa altura tinham o inconveniente de ser agravados com 30 dias de proibição. Nessa altura eu costumava ir passar os sábados e os domingos a casa da família Albuquerque, onde podia conviver com o Luis, o Augusto, a Fátima e a Milú. Era uma excelente família que vivera em Nova Lisboa e com convivera bastante. O injusto castigo que me foi aplicado, teve o condão de espicaçar o meu zelo, e fez-me redobrar de esforços para refazer a minha reputação e banir o risco de reprovar. Concentrei-me de tal forma nos estudos, que no final do curso consegui obter um inesperado 3º lugar. Aos mais destacados recrutas do curso foi dado o privilégio de poder escolher aonde desejavam fazer os seus estágios militares de formadores de recrutas; Luanda ou Nova Lisboa. Escolhi então Nova Lisboa, por ser de Nova Lisboa e fizeram-me companhia o António Freire, o Faria, o Artur Diogo da Silva, o Marques e dois outros colegas cujos nomes não me recorda agora. Antes de partirmos para Nova Lisboa e de encerrarmos a nossa estadia em Luanda fizemos um exercício de fogo real no Morro dos Veados. Lembro-me que no 2º ou 3º dia da nossa estadia em campanha, rebentou a Guerra da Coreia. A Guerra da Coreia foi um conflito militar entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte, que teve inicio em 25 de Junho de 1950 e terminou em Julho de 1953, e em que os Estados Unidos, a Inglaterra, a Austrália e a Nova Zelândia se envolveram profundamente ao lado da Coreia do Sul, contra a Coreia do Norte apoiada pela Rússia e pela China e que deu origem â divisão da Coreia em dois países, separados pelo paralelo 38. A Coreia do Norte acabou por se transformar num país comunista e a Coreia do Sul num país capitalista. Ao falar neste encarniçado conflito onde tantos americanos e australianos perderam a vida, lembro-me, com alguma frequência, duma figura pouco simpática que existia na Escola de Quadros de Luanda, o 1º sargento Castro. Era um sujeito bastante antipático e de fundo cruel. Coisa que adorava imenso fazer era a de bater com o tubo do morteiro nos ombros dos recrutas, por saber que as argolas de aço que prendiam os botões de cabedal das divisas, se enterravam na carne dos ombros causando dores verdadeiramente lancinantes. Todos os alunos da escola o consideravam um sargento lateiro. Infelizmente o exército estava cheio destas criaturas mal formadas de carácter que tinham prazer em tornar a vida difícil aos recrutas.

A classificação que tirei no final do curso, foi uma verdadeira surpresa para os meus superiores e para os meus colegas. Com um castigo de 10 dias de detenção às costas, a minha nota de comportamento militar era muito baixa. Mesmo assim, de um total de 60 alunos, fiquei classificado em 3º Lugar. Isso deu-me a possibilidade de optar entre Luanda e Nova Lisboa para fazer o estágio de 1º cabo miliciano furriel como instrutor de uma recruta de soldados africanos. Cerca de metade dos alunos da Escola de Quadros foi também para o Huambo.Devido à falta de oficiais milicianos como instrutores de recruta, os cabos milicianos mais graduados ocuparam esses lugares. Na décima segunda Companhia, a qual integrei, o oficial comandante era um capitão já idoso, de nome Freitas. Era uma pessoa doente que ficava de baixa com frequência. Quando isso acontecia eu tinha de assumir o comando da Companhia inteira apoiado nos meus colegas. Além das aulas de ginástica, conduzia a Companhia nas marchas, exteriores ao quartel. Os cabos milicianos tinham igualmente de prestar serviço de oficiais de dia e quando escalados para esse trabalho tinham de dormir no quartel e zelar pela disciplina de todos os recrutas. Era frequente haver mortes de recrutas durante a noite. Apareciam mortos nas suas camas e disso só tínhamos consciência durante a chamada matutina. Havia muitos casos de meningite epidémica que era a doença que mais atacava os recrutas e que mais baixas causava. Quando isso acontecia, era ao oficial de dia que competia conduzir o processo todo, até ao sepultamento do recruta. Os caixões que se utilizavam eram bastante rústicos e eram todos feitos na carpintaria do quartel.

- 9 -O tempo de incorporação da recruta indígena tinha uma duração de meio ano e terminava quando os recrutas juravam bandeira, altura em que se fazia uma festa aberta ao público.Quero referir, que durante este período de tempo conheci uma moça açoriana de corpo verdadeiramente escultural mas francamente feia. Apareceu de repente em Nova Lisboa. Era

aparentada com um inspector do CFB e veio viver para Angola certamente para arranjar um namoro e poder casar-se. Nessa altura, eu possuía uma motocicleta Francis Barnett com a qual me deslocava todos os dias para o batalhão de caçadores, que ainda ficava muito distante da minha casa. O meu primeiro encontro com essa moça aconteceu durante uma das minhas deslocações para o batalhão. Encontrei-a caída da bicicleta, a limpar os joelhos e com o volante da bicicleta todo torto. Via-se perfeitamente que andava ainda muito mal de bicicleta e que perdia o equilíbrio com frequência. Foi esse o nosso primeiro contacto, um encontro muito casual proporcionado por uma simples queda de bicicleta. Apresentámo-nos um ao outro, tendo ficado a saber que chegara a Nova Lisboa havia apenas três dias, para viver na companhia de uma irmã casada. Embora feia era uma moça alegre, simpática e extrovertida.O que nela mais me impressionou foi o corpo que possuía. Uma verdadeira Venus de Milo. Pena era que a sua cara, não correspondesse em nada ao belo corpo que possuía. Passámos a encontrar-nos depois com alguma frequência e num desses passeios eu fui mostrar-lhe o horto florestal, um lugar onde a Câmara de Nova Lisboa cultivava flores e plantas para os jardins da cidade. Era um lugar bonito e romântico, que atraía muitos visitantes e aonde se podiam comprar ramos de flores. Depois de alguns encontros pedi-lhe namoro o que rapidamente aceitou. Eu teria nessa altura os meus vinte e um anos e era um moço atraente. Dois dias depois de lhe ter pedido namoro, ela acabou por me dizer que o cunhado me queria conhecer e falar comigo, para oficializar o nosso namoro. Devo confessar que essa ideia não me agradou absolutamente nada, pois vi nela a intenção de me quererem amarrar a um compromisso. Então resolvi dar o fora discretamente deixando de comparecer a futuros encontros. E, assim terminou esse passageiro episódio da minha vida.Depois de desmobilizado comecei a trabalhar na firma de meu pai como empregado de balcão. Aí me mantive até à altura de ser chamado a ocupar um lugar no Caminho de Ferro de Benguela, no Departamento de material.Um ano depois de começar a trabalhar no CFB, conheci a Gabriela Bettencourt, durante uns bailes de carnaval do Atlético Clube do Huambo. Era uma moça que tinha emigrado para Angola, para viver com uma irmã casada e também para se empregar como professora. Tinha feito em Portugal o curso de professora na Escola Infantil João de Deus, e desejava empregar-se na sua especialidade profissional. Era uma moça muito alegre e muito bem formada, com uma educação moral bem vincada, que tinha todos atributos para se tornar uma excelente esposa. Apesar de não ter sido para mim, devo confessá-lo, uma conquista fácil, pois afirmou-me muitas vezes que não viera para Angola para namorar e para casar, mas sim para trabalhar e ajudar a irmã mais velha a cuidar de seus dois filhos, com a convivência que se estabeleceu entre nós, acabámos por nos vir a apaixonar um pelo outro. O nosso namoro decorreu sempre de uma forma tranquila, serena e edificante, porque, de facto, a Gabriela era uma moça excepcional e de grande formação moral. De todas as moças que namorei, direi, sem qualquer pequena dúvida, que foi a mulher mais completa que encontrai em toda a minha vida e tenho ainda hoje imensa pena de a ter perdido. Acredito plenamente que seria, para mim, uma verdadeira dádiva divina e que em boa verdade eu nem sequer a merecia. Naquela altura eu era novo e imaturo demais para poder perceber e avaliar o seu verdadeiro valor.Por não ter conseguido empregar-se na sua profissão em Nova Lisboa, teve de aceitar um emprego fora do Huambo. Foi trabalhar então como professora para uma Missão Protestante situada numa localidade chamada Chissamba que ficava situada na linha férrea do CFB, a uns dez quilómetros da Catabola, não muito longe da cidade do Bié. Eu, na altura em que ela me disse que ia trabalhar fora do Huambo, fiquei altamente aborrecido com ela e quis opor-me à sua partida, o que não consegui. A partir dessa altura acabámos o nosso namoro. Estive muito tempo sem ter notícias suas, mas um dia, talvez um ano mais tarde, encontrei no Hotel Bimbe

- 10 -uma moça que também era professora na Chissamba e que me deu notícias dela. Vim então a saber que ela se encontrava bem mas que estava sentimentalmente a sofrer muito, por ter muitas saudades minhas. Disse-me que ela guardava ainda, como recordação do nosso namoro, um chapéu de papel que tínhamos usado nos bailes de carnaval do Atlético. Aproveitei a oportunidade para a encarregar de lhe levar cumprimentos meus e para lhe

enviar um recado. O recado era apenas a pedir-lhe que me escrevesse, porque eu também sentia muitas saudades dela. Umas duas semanas talvez, se passaram até que eu viesse a receber uma carta sua. Respondi-lhe prontamente e a partir daí reatamos o nosso namoro. Um mês ou dois depois de termos reatado o nosso namoro, a Gabriela recebeu uma carta da mãe a pedir-lhe que regressasse a Portugal, pois estava muito doente e a necessitar da sua companhia. Pouco tempo permaneceu no Huambo. Seguiu rapidamente para Luanda e de Luanda para Lisboa. Durante a sua permanência no Huambo a nossa paixão voltou a reacender-se. Quando ela partiu para Lisboa, foi portadora de uma carta minha para a mãe solicitando-a em casamento. Nessa altura da minha vida eu já me encontrava a trabalhar no CFB, no Departamento de Material e já estava a ganhar o suficiente para me poder casar. Vivia então em casa de minha mãe, uma bela moradia geminada, pois minha mãe tinha-se separado de meu pai e eu não desejava que ela vivesse sozinha. Recebia com muita frequência as cartas da Gabriela, em que com muito entusiasmo e alegria, me relatava que estava a preparar o seu enxoval para o nosso casamento. A perspectiva de que a Gabriela viesse a ter de viver com minha mãe era sem dúvida um risco grande que eu corria, pois minha mãe era uma pessoa muito possessiva e autoritária que provavelmente não teria feitio para se afeiçoar à minha jovem esposa, muito embora a Gabriela fosse uma moça de grande nível moral e tivesse uma educação esmerada. Minha mãe era reconhecidamente uma pessoa de feitio muito difícil e no fundo era ela a dona da casa. Havia todos os ingredientes para envenenar o bom relacionamento de minha mãe com a minha futura mulher. Aliás, bem cedo, e durante o nosso noivado, comecei a perceber que minha mãe manifestava uma certa má vontade para com a Gabriela. As coisas não podiam dar certo, mas era um risco que eu não me importava de correr para me poder casar o mais depressa possível. Um acontecimento imprevisto, aliado à minha falta de maturidade e bom senso, fez com que o meu casamento com a Gabriela se tivesse perdido. (Eu estava longe de imaginar os trágicos reflexos que esse acontecimento viria a ter na minha vida). Há coisas que nós não temos a capacidade de avaliar e de impedir. O que veio a acontecer teve muito a ver com a minha volubilidade de jovem inexperiente e vaidoso. Quis o destino que viesse morar para a frente da nossa casa, um casal que possuía uma filha jovem (16 anos apenas), muito bela e atraente.A minha atenção foi rapidamente despertada pela beleza da jovem que, por sinal, também se chamava Gabriela. Eu estava noivo e devia ter permanecido firme. O facto é que, como acabei de dizer, eu era um jovem muito volúvel e deixei-me impressionar rapidamente pela beleza dessa jovem loura. Aos poucos comecei a derrapar e a deixar-me seduzir e como essa moça começou a demonstrar um crescente interesse por mim, sem quase dar por isso percebi que tinha começado a gostar dela. Pareceu-me então que deveria tomar uma atitude esclarecedora em relação à minha noiva, mas, à medida que o tempo passava, sentia cada vez menos coragem de o fazer. A verdade é que eu tinha verdadeira vergonha do que estava a fazer. Era uma declarada deslealdade que não se ajustava nada à minha maneira de ser. Resolvi então escrever uma carta à mãe da minha noiva para esclarecer toda a situação. Qualquer pessoa que se queira colocar no meu lugar pode imaginar a grande dificuldade que teria em fazê-lo, depois das coisas terem chegado ao ponto a que chegaram. Andei muitos dias a imaginar a melhor maneira de poder apresentar a situação à mãe da minha noiva, porque na verdade eu não tinha coragem de a explicar directamente à Gabriela. A última carta que recebera dela, transportava uma longa lista dos objectos e roupas que tinha adquirido para completar o seu enxoval. Ao lê-la fiquei verdadeiramente arrasado e senti-me um autêntico miserável. Nesse mesmo dia redigi a carta para a mãe, na qual não escondi nada. Confessei que tinha fraquejado profundamente e pedia perdão à mãe e à filha pelo desgosto que

- 11 -certamente lhes estava a causar. Que reacção poderia provocar a minha carta? Era absolutamente natural que fosse a pior possível e eu esperava uma resposta que me classificasse como um verdadeiro canalha. Quando a resposta daquela idosa senhora chegou, fiquei com medo de a abrir e de a ler. Que coisas terríveis iria eu ler, que nomes maus me chamariam e com inteira razão? Ao abrir o envelope tremiam-me as mãos e ainda hesitei

algum tempo antes de ler as duas páginas que me eram dirigidas. Nada do que eu havia pensado aconteceu. A carta era de uma correcção e de uma dignidade impressionantes.Era uma carta escrita pela mãe e que me dizia que a filha tivera um choque terrível e que não se encontrava em condições de me poder escrever. Nessa carta, cujo conteúdo nunca poderei esquecer, a mãe agradecia-me a frontalidade e a coragem que eu tivera em explicar a situação que me ocorrera e dizia-me que apreciava a minha sinceridade e que ma agradecia. Para ela, aquilo que mais prezava era a felicidade da filha e essa felicidade nunca seria possível se ela casasse com alguém que pudesse ter o coração comprometido com outra mulher. Ao acabar de ler a carta desta mãe de educação exemplar senti um tremendo nó na garganta e os meus olhos embaciaram-se com lágrimas. Jamais poderia imaginar uma coisa assim, um comportamento tão nobre. Foi a maior bofetada de luva branca que apanhei na minha vida.Pouco tempo depois deste episódio casei-me. Não me casei com a mulher que Deus escolhera para mim e por isso vim a sofrer as consequências do meu erro. A minha jovem esposa não recebera da mãe a preparação de mulher e de esposa que precisava de ter recebido. Era uma menina com 16 anos apenas que nem sabia como estrelar uns ovos e a mãe era uma mulher de uma velhacaria e maldade insuportáveis. O casamento não foi do agrado da minha sogra que vivia agarrada à filha como uma lapa e que queria dominá-la completamente. Por uma estranha razão que nunca consegui perceber, D.Julia, pois era este o nome daquela que viria a ser a minha futura sogra, armou, uma semana antes do nosso casamento uma cena mais do que suficiente para deitar tudo a perder. Se não tivesse havido a pronta e enérgica intervenção do marido, o nosso casamento não se teria realizado. Como já referi, eles moravam do outro lado da minha rua, mesmo em frente à casa em que eu morava. Quando isto aconteceu já tinha começado a ser anunciado na igreja o nosso casamento. A minha jovem noiva tinha adquirido o hábito de me ver todos os dias de manhã, antes de eu partir de bicicleta para o trabalho. No dia em que as coisas se passaram eu encontrava-me a tomar o café da manhã e minha mãe saiu, por uns minutos apenas, para me ir comprar pão fresco. A Gabriela entrou por uns escassos cinco ou dez minutos em nossa casa para me ver e para me falar. Quando regressou a casa dos pais foi duramente espancada pela mãe, que se aproveitou da sua curta estadia em minha casa para levantar a calúnia de que eu abusara sexualmente dela e que ia mandar sujeitar a filha a um exame médico. Uma acusação desta natureza só podia partir de uma mente doentia e perversa, ou até levantar grandes suspeitas a respeito da própria dignidade noiva. Esta atitude surpreendeu-me e horrorizou-me de tal forma que, me revelou o tipo de pessoa com que teria de lidar e para um principio de relacionamento entre genro e sogra não podia ser melhor.A nossa lua de mel foi passada na cidade de Benguela, num hotel de boa qualidade, situado muito perto da bem conhecida Praia Morena. Foi um tempo feliz e muito agradável. Fomos para o litoral de comboio. O relacionamento de um casal que realmente se ame é algo de maravilhoso, porque é um tempo de descobertas românticas e de um ajustamento sexual. Depois que regressamos ao Huambo a Gabriela deixou logo de ter regras, sinal mais do que evidente que havia engravidado. Foi dessa sua primeira gravidez que nasceu a minha filha Marília Filomena que, no momento em que escrevo estas linhas já se encontra com 59 anos de idade. Ao regressar de Benguela eu e a Gabriela fomos viver para casa de minha mãe. Depressa começaram os problemas de relacionamento com minha mãe, que rapidamente revelou uma grande falta de tolerância e de paciência para com a sua jovem nora. Com o andar do tempo tudo se complicou ainda mais e eu tomei a decisão de arranjar casa própria. Aluguei então

- 12 -a casa modesta, perto do meu serviço, e mobilei-a com o mínimo indispensável. Não permanecemos muito tempo nessa casa e com o nascimento da Marília, fomos viver novamente para perto da minha mãe. Já não consigo recordar-me como minha sogra acabou por vir novamente viver connosco, e como foi possível consentir que isso viesse a acontecer,

pois durante o período de gravidez da Gabriela a mulher do administrador do Concelho do Huambo que era uma pessoa do relacionamento íntimo da minha sogra chamou-me um diapara me dar uma notícia deveras preocupante. Vou tentar reproduzir aquilo que ela directamente me comunicou: “Olhe Sr. Afonso, quero avisá-lo muito em segredo, que a sua sogra está tentando convencer a Bélinha a tomar umas coisas para abortar. Apanhado assim de surpresa fiquei sem saber o que responder. Apenas balbuciei, como é que a senhora sabe disso? Soube-o da própria boca da sua sogra. Como sabe, ela vem visitar-me quase todos os dias e foi ela que mo confidenciou. Quando me senti refeito dessa surpreendente notícia disse-lhe: Olhe, faça-me então um favor. Diga a essa senhora que se isso vier a acontecer pode ter a certeza de que a acusarei de crime e a farei sentar no banco dos réus e que deixarei de imediato de viver com a Gabriela. Creio que a minha atitude determinada conseguiu por um travão ao maquiavélico plano premeditado pela perversa criatura. Fiquei meio desvairado e assustado ao ter de constatar que tinha em casa uma pessoa com um coração diabólico. Para não comprometer a Dª Armanda, creio que era este o seu nome, não tirei satisfações à minha sogra mas na noite desse mesmo dia disse à minha mulher: Olha Gabriela quero dizer-te uma coisa muito importante: não andes a esconder-me nada. Estou informado que a tua mãe te está a querer convencer a fazeres um aborto. Já ficas a saber que se vieres a abortar, coloco-te a ti e a tua mãe no banco dos réus e separo-me de ti. Vê bem o que fazes e não sejas estúpida.Não quero que fales nisto a tua mãe. Eu por enquanto não tomarei medidas contra ela, mas a partir deste momento ela fica em observação apertada e fica marcada para a primeira coisa grave que vier a fazer. Tornou-se extremamente difícil para mim, conviver com ela a partir dessa altura, pois reconhecia que tinha uma declarada inimiga dentro de minha casa, e que nada de bom poderia esperar dela. Para além da frieza com que comecei a tratá-la a partir dessa altura, a sua presença em minha casa tinha-se tornado extremamente desagradável. Já não consigo recordar-me bem do que veio a acontecer depois, mas sei que foi uma interferência desagradável da sua parte, numa altercação havida entre mim e minha mulher, que me fez perder as estribeiras e disse-lhe que arranjasse para onde ir, pois eu não a queria a viver mais connosco por acha-la uma pessoa verdadeiramente abominável. Nesse mesmo dia saiu de minha casa e foi instalar-se na casa da filha mais velha, numa pequena quinta afastada da cidade alguns dez quilómetros. Minha mulher deu à luz, algum tempo depois, uma linda menina, forte e bonita a que pusemos o nome de Marília Filomena. Cresceu sadia e desenvolveu uma linda cabeleira loura encaracolada.Minha mulher voltou a engravidar. Os planos perversos de minha sogra não cessaram, porque o seu objectivo, um objectivo egoísta e estúpido de que não queria desistir era separar a Gabriela de mim para passar a viver com ela. Uma segunda gravidez da filha contrariava de alguma forma a execução desses planos maldosos e por isso voltou à carga para convencer a filha novamente a cometer um aborto. Fui avisado disso por intermédio da minha cunhada, com quem ela estava a viver. Uma vez mais, e felizmente que assim foi, a Gabriela já começara a libertar-se da influência dominante da mãe. A ideia, era dar-lhe a beber umas mezinhas com ervas abortivas preparadas por africanas. Ainda hoje não consigo perceber como é que eu consegui conviver com esta senhora e pude perdoar-lhe várias vezes as suas pérfidas e ingratas atitudes.Cerca de dois anos depois de me casar, meu pai teve necessidade de que eu o fosse ajudar a tomar conta da firma. A firma encontrava-se numa má situação financeira devido à prática de muitos erros. Um dos maiores erros da empresa era o da exagerada concessão de crédito aos clientes. Havia muitos clientes que se abasteciam de toda a espécie de géneros alimentares, de

- 13 -roupas, calçado e de artigos diversos, e que o faziam através de um sistema de crédito bastante vicioso. Chamo-lhe vicioso porque, muitos consumiam para além das suas possibilidades financeiras e acumulavam débitos que não tinham possibilidade de pagar.A parte das cobranças estava a cargo de meu irmão Américo, que usava de uma grande condescendência e não se preocupava muito com o volume dos débitos dos clientes. Era uso naquele tempo fazer-se todo o fornecimento de bens e mercadorias através de uma caderneta

onde se registavam a crédito todos os bens fornecidos. Ao fim de cada mês fazia-se a soma de tudo o que fora fornecido ao cliente, valor que se juntava ao que o cliente já tivesse em débito na caderneta. Normalmente as amortizações feitas mensalmente pelos clientes eram sempre menores do que aquilo que tinham consumido. Isso tinha como consequência um aumento sempre imparável dos débitos. Dessa forma o activo da empresa estava em grande parte comprometido e parado nas mãos dos clientes. Isto fazia com que não se gerassem valores suficientes para satisfazer os compromissos da empresa por reconstituição de stocks, letras de prazo fixo e despesas de administração, vencimentos de empregados e consumos de água e electricidade.A escrita comercial da empresa estava sempre atrasada porque a firma não possuía guarda livros e era movimentada pelo meu irmão Américo que não conseguia ter tempo para estar ao balcão durante o dia e fazer simultaneamente a escrita. A escrita era então feita de noite num verdadeiro estado de cansaço físico que induzia ao sono e aos erros.Na altura em que meu pai me pediu para assumir a responsabilidade da cobrança, eu fiz um estudo da sua situação e rapidamente verifiquei que tinha chegado a um estado verdadeiramente lastimável. Não havia outra solução senão a de começar a restringir os créditos aos clientes que não pagassem mais do que aquilo que consumiam, até que as suas contas estivessem reguladas. Esta medida não agradou a muitos dos clientes que abusavam do crédito e também não agradou a meu irmão Américo. Meu irmão Américo tinha uma visão diferente da minha e achava que o lucro era função directa do volume de vendas mensal, mesmo que os clientes ficassem a dever grande parte do que compravam. A verdade é que, quando a firma necessitava de liquidez para poder adquirir os bens ou pagar os compromissos assumidos, não havia dinheiro disponível para o poder fazer. Havia até vários clientes que estavam mais de dois meses sem pagar nada e achavam-se no direito de ser tratados com toda a cortesia. Meu pai aceitou perfeitamente as medidas que teríamos de impor a essas pessoas.Meu irmão Américo não as aceitou e ficou indignado com elas. Isso foi a causa de um grande desentendimento entre nós que perdurou algum tempo.A nossa firma, para além dos clientes individuais, negociava também com alguns pequenos comerciantes que possuíam casas no interior, nas localidades do mato e que permutavam bens com os agricultores africanos. Os agricultores africanos necessitavam de ser abastecidos de panos para vestirem, de objectos de uso agrícola e doméstico, de petróleo, de óleo de palma, de peixe marinho salgado, de vinho, de arroz, de açucar, de café, de carne seca, de fósforos e de sal, e era nessas pequenas lojas que os podiam transacionar. Algumas dessas lojas, vendiam também bicicletas e seus acessórios, máquinas de costura e várias ferramentas.Em troca desses artigos que suscitavam o interesse dos africanos era feita a troco de dinheiro mas nem sempre era o dinheiro que apoiava as transações. Os produtos da terra eram também uma importante moeda de troca. Meu Pai importava muitos artigos de origem metropolitana, principalmente tecidos em peça e louças de utilidade doméstica, bem como azeite, vinho, queijo, frutos secos, roupa feita, chapéus, capacetes coloniais, linhas para coser, missangas, enxadas indígenas, machados, cutelaria de alumínio e de aço inox, utensílios de cozinha, especiarias e conservas de peixe, louça de ferro esmaltado e de alumínio, sementes, algodão empacotado, roupa de lã, perfumes e cremes, sabões e sabonetes, castanhas, ameixas e figos secos, azeitonas enlatadas, salsicharia de qualidade, doces e compotas. Lembro-me de uma situação bastante complicada, criada por uma encomenda de louça e de tecidos que chegaram à Alfândega do Huambo, numa ocasião em que as nossas

- 14 -disponibilidades financeiras se encontravam esgotadas e que teve de ficar retida na alfândega por não termos dinheiro para pagar os direitos alfandegários. Meu pai desempenhava nessa altura o cargo de Presidente do Grémio Distrital dos Retalhistas do Huambo, uma agremiação que transacionava produtos comerciais com as firmas associadas, a preços mais moderados. Meu pai era uma pessoa que granjeara grande reputação de honestidade e que era tido por toda a gente como um dos maiores comerciantes do Huambo. O Grémio Distrital dos Retalhistas do Huambo mantinha uma relação comercial regular com uma empresa

fornecedora de vinho, e outros produtos alimentares, que representava os vinhos das Caves Aliança. Não sei que tipo de problema se criou entre o Grémio dos Retalhistas e a Sociedade Vinícola do Lobito, mas penso que deveria ter sido um problema grave, pois meu pai ficou altamente preocupado com ele, e passou uma semana altamente perturbado. De tal forma foi grave, que a sua grande preocupação veio a originar um acidente rodoviário de que resultou a sua morte por acidente. Tudo se passou da seguinte forma; meu pai aguardava a todo o momento por uma carta do Lobito, que trouxesse a solução do problema. O estafeta africano da nossa firma já se tinha deslocado aos correios para ver se a carta teria chegado, mas regressou de mãos vazias. Meu pai, no cúmulo da sua ansiedade, resolveu ir pessoalmente ao correio, não fosse a distribuição do correio ter sido feita com atraso. Pegou na sua bicicleta, pois sabia muito bem andar de bicicleta, e saindo pela porta traseira montou na bicicleta e partiu. Nesse momento a firma estava em inventário e eu encontrava-me no estabelecimento a colaborar com os empregados. Nem sequer me cheguei a aperceber que meu pai tinha saído. Ouvimos então o barulho causado por uma súbita travagem de carro, logo seguido de um som de colisão e de queda. Não sabia do que pudesse tratar-se. Corri para uma porta da frente do estabelecimento, abri-a rapidamente e vi uma carrinha parada na rotunda e uma bicicleta estendida no asfalto. Em baixo da parte frontal da viatura estava um corpo caído, no chão. Era o corpo de meu pai que acabara de ser atropelado. Corri alarmado para o local e ainda ajudei a retirar o corpo de meu pai. Com a ajuda do motorista da carrinha, erguemo-lo do solo e colocámo-lo em cima da carroceria. Meu pai estava a sangrar por um ouvido, mas despertou e começou a falar. Queria levantar-se de imediato, dizendo que não era nada, que estava bem. A sua verdadeira preocupação era ir aos Correios.Rumámos de imediato para o hospital. Nessa altura não podíamos contar com a disponibilidade de uma ambulância e tínhamos de tomar decisões imediatas. Quando chegámos ao hospital não havia nenhum médico no hospital e fomos atendidos pelo enfermeiro. Meu pai continuava lúcido e a falar e não queria ficar no hospital. Queria ir para casa. Colocaram-no em cima de uma marquesa e taparam-no com um lençol. Obrigaram-no a permanecer deitado. Até esse momento meu pai conservava no rosto as suas cores naturais.Meia hora depois, quando o Dr.Amaral chegou ao hospital, meu pai tinha perdido a consciência e já estava macilento e amarelo como um limão. O médico começou a examiná-lo e disse-me para ir rapidamente à farmácia aviar uma receita dos medicamentos de que ia necessitar. Quando regressei o médico deu-me uma má notícia. Meu pai tinha fracturado a base do crânio e estava já a fazer uma hemorragia na espinal medula e em estado de coma.Seriam umas quatro horas da tarde quando meu pai deu entrada no hospital. Meu pai lutou entre a vida e a morte e depois um longo sofrimento acabou por falecer por volta das três horas da madrugada.Minha mãe e meu pai estavam separados judicialmente quando se deu a sua morte. Apesar de tudo, achei que deveria participar a minha mãe a sua morte. Fiquei profundamente chocado e revoltado com a atitude que ela tomou na presença do cadáver de meu pai. Não derramou uma única lágrima e durante a sua presença na casa mortuária do hospital, dirigiu-se ao cadáver de meu pai invectivando-o e regozijando-se com a sua morte. Foi uma cena lamentável, terrivelmente degradante, que nunca consegui nem conseguirei esquecer.O enterro de meu pai, para o qual encomendei um caixão de chumbo (urna fechada e soldada) foi uma cerimónia impressionante. Quase toda a cidade de Nova Lisboa compareceu ao seu funeral. Todos os meus irmãos não compareceram à cerimónia do seu enterro, pois estavam

- 15 -ausentes do Huambo. O corpo de meu pai permanece ainda, ao que suponho, em Angola, no cemitério da cidade do Huambo, num jazigo tumular e, em talhão adquirido. Nessa altura da minha vida, sofri um golpe tremendo e senti-me só e amedrontado. Meu pai, apesar de ter, na altura da sua morte, 79 anos de idade, era uma companhia reconfortante e a falta da sua presença, teria para mim uma forte repercussão negativa no meu ânimo. Eu tinha perfeita consciência de que os credores da firma não me tratariam com a mesma consideração e respeito, como o fariam com ele. A firma, devido à grave situação financeira a que chegara, teve de solicitar ao Banco de Angola um empréstimo de seiscentos mil escudos, empréstimo

que teve de ser caucionado com a hipoteca da nossa propriedade urbana (talhão e todas as benfeitorias nele edificadas). O valor real da propriedade, situada na Avª 5 de Outubro, era bem superior ao valor do empréstimo e a sua superfície ocupava meio quarteirão, com uma área de cerca de 3.600 m2. O talhão apenas, sem as construções, valia bem mais do que os seiscentos mil escudos. Uma das decisões que tomei de imediato, foi a de expor o nosso problema a todos os nossos credores e a de lhes solicitar uma moratória. A facilidade com que consegui a sua anuência demonstrou bem a consideração que nos votavam.Na altura em que tudo isto se passou a firma possuía um grande volume de cobranças, mas como encerrara toda a sua actividade comercial, muitos dos nossos devedores, não podendo contar com mais fornecimentos, deixaram de nos pagar os seus débitos. A situação complicou-se ainda mais para mim, pois a morte de meu pai, veio detonar o problema das partilhas por herdeiros. Os herdeiros de meu pai eram os meus três irmãos e minha mãe. Não tendo qualquer possibilidade de gerar valores resolvi propor aos nossos credores a liquidação dos seus créditos, entregando-lhes mercadoria ao preço de custo, preço de inventário. Também dessa vez consegui levar os credores a concordarem com essa solução. Como a firma possuía mercadoria num valor que excedia o valor global dos seus débitos a credores, o remanescente de toda a existência inventariada, teria de ser entregue a herdeiros. Fiz três tentativas de divisão por herdeiros sem ter obtido a sua aceitação. Todas essas tentativas me obrigaram a outros tantos inventários e listagens. A conclusão final a que cheguei é que nenhum dos herdeiros estava disposta a colaborar e a aceitar as partilhas. A firma estava encerrada e não gerava valores e eu estava a transformar-me num prisioneiro da situação. Era uma situação absolutamente inaceitável para mim, pois se a prolongasse sacrificaria todo o meu futuro e mais tarde, minha mãe e meus irmãos acusar-me-iam de ter delapidado o activo da firma e prejudicado a sua herança. A partilha por herdeiros ficou assim definitivamente bloqueada. Resolvi então suspender todo o processo e ir para Luanda à procura de um emprego. Porém o património da empresa não podia ficar abandonado. Era necessário arranjar alguém para procurador. Esse alguém não podia ser uma pessoa qualquer. Tinha de ser alguém honesto e com capacidade para assumir essa melindrosa e desagradável função. Eu possuía nessa altura um amigo de reputada honestidade. Era uma pessoa já bastante idosa, um comerciante do Huambo que gozava de excelente reputação na cidade. Era o proprietário das instalações em que a nossa firma instalara a sua filial do Bairro de Nossa Senhora de Fátima na cidade alta. O seu nome era Boaventura Rodrigues. Foi-me bastante difícil fazê-lo aceitar o cargo de meu procurador, mas insisti tanto que, mesmo com alguma má vontade acabou por aceitar. Confesso que, conhecendo-o muito bem, quase não acreditei na possibilidade de o convencer. Ainda hoje me espanta como foi isso possível. Mal cheguei a Luanda comecei imediatamente a procurar um emprego. Respondi a uns dois ou três anúncios, entre os quais se encontrava um anúncio da Cimianto de Angola, que procurava alguém com conhecimentos administrativos e com prática de serviço de escritório. O anúncio exigia que o candidato tivesse o curso geral dos liceus. Respondi a esse anúncio enviando em anexo o meu curriculum académico e profissional. Entre as várias propostas que receberam selecionaram a minha, por ser aquela que mais qualificações apresentava. O vencimento que a Cimianto oferecia era de quatro mil escudos. Na entrevista que me fizeram disse-lhes que achava o vencimento baixo para a responsabilidade do serviço que teria de desempenhar. Depois de alguma disputa resolveram pagar-me cinco mil escudos. Aceitei o emprego e

- 16 -comecei a trabalhar uns dias depois. O serviço constava da fiscalização de faturas de fornecedores, registo de stocks adquiridos e determinação de preços médios a integrar nos cálculos dos preços finais de fabrico. Alguns dos funcionários que já trabalhavam na empresa não aceitaram muito bem que eu tivesse sido admitido com um salário superior aos seus e no início trataram-me com alguma frieza. Aos poucos, à medida que me foram conhecendo melhor e depois de algum tempo de convívio mudaram inteiramente de atitude. A forma como me adaptei ao trabalho que me foi confiado, foi objecto de louvor por parte da administração da Cimianto.

Ao fim de uns oito ou dez meses de emprego na Cimianto, apareceu-me a excelente oportunidade de me poder empregar na Petrofina. A Petrofina era uma empresa Belga que tinha obtido do Governo português a concessão para poder explorar hidrocarbonetos líquidos em vários locais da grande bacia sedimentar do Rio Quanza. Concorri a um lugar que se abriu no Departamento de Sondagem e produção e devido ao facto de ter bastantes conhecimentos de francês e de inglês, e de poder falar razoavelmente essas duas línguas, posto que de forma um tanto colegial, fui rapidamente admitido. O meu trabalho consistia em contactar com os chefes de sonda e dos campos de produção para receber informações diárias sobre a actividade desenvolvida nos campos e com ela elaborar os relatórios diários que tinham de ser comunicados aos gabinetes de sondagem e de produção. Era um trabalho muito interessante.A verdade é que o contacto com os toolpushers (chefes de sonda) nem sempre era fácil e agradável, principalmente quando os toolpushers eram holandeses e falavam um péssimo inglês americanizado. Muitos deles eram pessoas grosseiras e quase intratáveis que se alcoolizavam frequentemente e que com muita facilidade perdiam a paciência e passavam ao insulto. Mas como a necessidade é a mãe do engenho a tudo me habituei e, depois de os conhecer melhor já os conseguia compreender perfeitamente. Os relatórios diários das sondas eram os mais trabalhosos e difíceis de preencher pois abundavam neles termos técnicos da gíria dos sondadores que variavam de nacionalidade e de cultura. Lidei com sondadores franceses, belgas, dinamarqueses, ingleses, canadianos, americanos, italianos e portugueses, e todos eles tinham formas distintas de se comunicarem. Os relatórios finais dactilografados eram preenchidos em francês e tinham de ser distribuídos aos gabinetes técnicos durante o período da manhã. Os relatórios diários davam então lugar a relatórios semanais e relatórios mensais onde se apresentava a síntese de toda a actividade de sondagem e de produção de cada mês.Todos os poços perfurados nas diferentes estrutras produtivas tinham as suas fichas técnicas, como se de um bilhete de identidade se tratasse, onde deveriam constar todas as suas características técnicas e todo o material usado na sua construção. Estas fichas técnicas tinham de ser permanentemente actualizadas. Não se realizava nenhuma operação de limpeza ou alteração num poço petrolífero sem que a respectiva ficha fosse consultada antes e actualizada depois. A limpeza da tubagem productiva de um poço tem de ser feita periodicamente, para evitar o seu estrangulamento e entupimento. A parafina líquida existente no petróleo líquido tem tendência a aderir à tubagem e a estreitar drasticamente o seu diâmetro interno. Existe um equipamento especializado para o fazer, cujo funcionamento exige a intervenção de pessoal especializado. Há companhias especializadas nesse tipo de equipamento que formam operadores para o utilizar.A minha vida profissional na Petrofina, depois Petrangol, desde que fui admitido sofreu constantes evoluções. Durante todo o tempo que permaneci no Departamento de Sondagem e de Produção tratei sempre de assuntos de natureza técnica ligados às sondas, aos poços e aos campos produtivos. Tive ainda a meu cargo a organização da biblioteca técnica do Departamento e o cálculo de toda a produção da Petrangol. Durante o último ano que estive no Departamento técnico colaborei com os engenheiros do Serviço de verificação das pressões de fundo dos poços, para cálculo das reservas ainda disponíveis nas estruturas produtivas.Os últimos anos que permaneci na Companhia, fui transferido para o Serviço de Material e fui chefiar a secção de inventários da empresa. Com a intensificação da Guerra Colonial e a

- 17 -drástica diminuição da minha segurança e a de minha família, tive de abandonar o território de Angola. Quando apresentei o meu pedido de demissão ao Engº Bandeira Vieira, então director da Companhia, fui instado a reflectir melhor e a ficar e foi-me oferecido o cargo de Chefe de Serviço de Importação da Refinaria, cargo que a Companhia tinha o objectivo de criar. Nessa altura eu já tinha tomado a decisão de sair de Angola e de ir viver para a Rodésia e por isso declinei a oferta. Depois de ter acertado as minhas contas com a Petrangol e de ter depositado os valores que me pagaram, na minha conta bancária, solicitei às autoridades competentes a conversão em divisas estrangeiras dos valores que depositei no Banco, por ter declarado que saia de Angola

definitivamente. Muito perto de metade do valor depositado foi-me concedido alguns dias depois, mas a outra metade só poderia ser transferida por parcelas mensais que terminariam no dia da independência de Angola. Foi com esse dinheiro e algumas divisas compradas no mercado, que emigrei para a Rodésia, onde previamente tinha obtido um Permit de Residência. Nessa altura eu possuía um automóvel Peugeot 404 a diesel, que deixara em Sá da Bandeira à guarda de um velho amigo. Durante a minha estadia em Sá da Bandeira eu negociei com uma oficina local, uma reparação completa ao motor, a substituição dos 4 amortecedores, e a colocação de pneus novos, porque tencionava viajar por terra para Salisbúria. Minha mulher e o meu filho Pedro já se encontravam alojados em casa desse meu amigo e aguardavam que eu regressasse a Sá da Bandeira para partirmos então para o nosso destino. Ao regressar a Sá da Bandeira estava perfeitamente convencido que iria encontrar o carro perfeitamente preparado para poder iniciar a minha longa viagem através da África do Sul, percorrendo uma longa distância até poder atingir a fronteira da Rodésia. Porém não foi isso que aconteceu, porque ao chegar a Sá da Bandeira, o meu amigo não tinha providenciado a reparação do carro por ter perdido a chave da viatura. Essa inesperada ocorrência atrasou uma semana a minha saída de Angola. Contrariando a vontade do meu amigo que me desejava reter em Sá da Bandeira a todo o custo, parti no dia em que me entregaram a viatura reparada, logo a seguir ao almoço. Hoje acredito que essa minha decisão foi verdadeiramente providencial. Uma voz interior, silenciosa e repetitiva, dizia-me: parte hoje, parte quanto antes. As viagens de automóvel através das estradas angolanas tinham-se tornado muito perigosas, mesmo no Sul de Angola, onde se pensava de uma forma geral que houvesse muito mais segurança e menos ataques terroristas. Na realidade isso tinha deixado de ser verdade e a insegurança era geral, porque os nacionalistas dos diferentes movimentos de libertação já estavam espalhados por todo o território angolano e operavam com uma grande liberdade de movimentos. Nesse período da guerra o nosso exército perdera o controlo efectivo de grandes extensões do território angolano, e os grupos de elementos nacionalistas disseminavam-se pelo terreno perfeitamente à vontade. As acções desses grupos eram da inteira responsabilidade dos seus comandantes e tudo dependia da sua exclusiva vontade e do seu caracter particular. Uma família de europeus no meio do mato, estava praticamente à mercê da sorte e não podia contar com qualquer segurança. Nesta altura estava a decorrer no Quénia a conferência de Nakuru, que tinha o objectivo de fazer com que os três movimentos de libertação angolanos se entendessem, para a nomeação de um governo de transição nacional que pudesse contemplar o interesse dos três partidos.As conversações já se arrastavam sem grandes progressos havia dias. Este período de negociações fez diminuir sensivelmente a actividade belicosa dos movimentos, que suspenderam temporariamente os seus conflitos partidários para poder chegar a acordo.Precisamente no dia em que a Oficina concluiu a reparação da minha viatura e ma entregoudecidi meter-me à estrada sem mais nenhuma perda de tempo. O meu amigo procurou convencer-me a adiar a minha partida para daí a uma semana, mas eu mantive a minha decisão e parti, logo a seguir ao almoço. O percurso a percorrer até atingir a fronteira do Sudoeste Africano, era de cerca de quatrocentos quilómetros. Era uma estrada magnífica de asfalto, com um piso impecável, pois fora acabada de construir havia apenas três anos. Eu conhecia esse percurso perfeitamente, pois já o tinha percorrido duas vezes, quando fora - 18 -passar férias ao Sudoeste Africano e à Africa do Sul. Partimos de Sá da Bandeira (Lubango) logo a seguir ao almoço. Eu contava chegar a Santa Clara (posto fronteiriço) entre Angola e a Namíbia, por volta das cinco horas da tarde. Pelo caminho tínhamos de atravessar Vila Pereira de Eça, uma povoação relativamente pequena onde certamente encontraríamos elementos militares de algum dos Movimentos de Libertação. Uns quilómetros antes dessa povoação, um militar da Unita, portador de uma arma G3, surgiu na estrada e mandou-nos parar. Aproximou-se da minha janela e perguntou-me para onde me dirigia. Disse-lhe que ia para Santa Clara, para seguir depois para o Sudoeste Africano e para a África do Sul. E que vai fazer à África do Sul? Questionou-me de seguida. Respondi-lhe com naturalidade e sem vacilar que minha mulher estava muito doente e que ia para a África do Sul para ser operada. Meu carro estava

muito abarrotado de malas e de embrulhos e creio que isso despertou a sua curiosidade. Mas vai embora de Angola para sempre? Respondi-lhe que não, que tencionava voltar assim que minha mulher tivesse sido operada e estivesse fora de perigo. Disse-lhe também que previa estar na África do Sul mais do que um mês e que era essa a razão porque levava tanta coisa no carro. Perguntou-me então se eu tinha alguma arma em meu poder. Respondi-lhe que não, que não era portador de nenhuma arma, o que de facto não era verdade, pois eu transportava de facto uma pistola 7,65 que tinha escondido num canto morto da carroceria, por debaixo do banco traseiro. Para o distrair e para me furtar a mais perguntas que me pudessem comprometer, dirigi-lhe a seguinte questão. Sabe soldado, eu sou seu irmão e estou filiado no seu movimento, para o qual até tenho contribuído regularmente. Veja o meu cartão por favor.Eu possuía de facto um cartão como simpatizante e contribuinte da Unita. A partir dessa altura a sua atitude para comigo mudou radicalmente. Perguntei-lhe então se tinha cigarros. Eu sabia que havia uma escassez dramática de cigarros e por essa razão antes de sair de Luanda, compre vários pacotes de cigarros, por acreditar que me poderiam ser extremamente úteis nalgumas situações que me pudessem vir a surgir. Não, irmão, não temos cigarros. O irmão tem alguns cigarros? Sim, ainda me restam alguns e posso dispensar-te um pacote. O seu rosto iluminou-se subitamente e a partir desse momento, até me aconselhou a passar com muita prudência por Vila Pereira de Eça, pois sabia que tinha havido uma escaramuça na Vila entre elementos do MPLA e da UNITA. Felizmente consegui ultrapassar Vila Pereira de Eça sem qualquer tipo de incidente e algum tempo depois cheguei a Santa Clara. Tinha a Namíbia ao meu alcance se conseguisse atravessar a fronteira. No posto de polícia de fronteira em Santa Clara, eu tinha um sargento conhecido que costumava conferir a minha documentação sempre que por ali passava. Dirigi-me a ele para lhe mostrar toda a minha documentação, mas ele disse-me apenas isto: Olhe, não quero nem posso ver nada. Eu já não mando aqui nada. Quem manda aqui agora são esses soldados que aí estão fora. Tem de se dirigir a eles. Pode ser que tenha sorte e o deixem passar, mas não lhe posso garantir nada. Dirigi-me então para a cancela fronteiriça e fui ter com um soldado do MPLA. Voltei uma vez mais a ser sujeito a uma série de perguntas. Certamente o meu carro carregado de coisas mostrava bem que eu estava fugindo de Angola. Repeti a desculpa que tinha dado ao elemento da Unita, que levava minha mulher para a África do Sul para ser operada e que teria de lá ficar bastante tempo até que ela recuperasse. Era uma desculpa esfarrapada que não o convenceria. Aproveitei habilmente um momento de silêncio que se fez entre nós, para lhe dizer que era um simpatizante do MPLA e mostrei-lhe o meu cartão de identificação, que provava que eu até já tinha contribuído várias vezes para o movimento. Depois muito descaradamente perguntei-lhe se precisava de cigarros. Na realidade os cigarros eram, na ocasião, algo de raro e precioso que ajudava a resolver situações embaraçosas. Dei-lhe duas embalagens completas de maços de cigarros. Ficou tão satisfeito que até me aconselhou, antes de abrir a cancela fronteiriça, que rasgasse o cartão do MPLA para que as autoridades de fronteira do Sudoeste Africano não o viessem a descobrir e não me

- 19 -impedissem de entrar no território. Ao transpor a cancela que me separava da liberdade fui inundado de um sentimento inexplicável de alívio.A polícia de fronteira do Sudoeste foi extremamente exigente para consentir a minha entrada no território, por pensar que eu iria para me refugiar no Sudoeste Africano. A apresentação de toda a documentação oficial do Ministério de Emigração da Rodésia relativa à minha permissão de residência na Rodésia, foi fundamental para me liberarem. Lembro-me que me foram concedidos apenas oito dias para atravessar todo o território do Sudoesta. Antes disso porém, quiseram saber se eu era portador de alguma arma de fogo. Respondi-lhes que sim. Pediram-me que a submetesse à imobilização da culatra, o que não podia deixar de consentir e rapidamente o fizeram introduzindo-lhe um arame de aço dobrado e selado.Eram cerca de seis horas da tarde com o sol a declinar no horizonte quando iniciei a viagem para fazer a travessia completa do Sudoeste Africano a caminho da Rodésia.

A longa estrada que atravessa todo o território do Sudoeste, que eu já conhecia bem, era uma pista sempre recta , de grande qualidade, que por razões de ordem estratégica os sul africanos construíram em todo o território, de forma a permitir a sua utilização pela força aérea em caso de necessidade militar. Tratava-se de uma verdadeira pista que, naquele momento, se encontrava quase sem frequência rodoviária. A excelente qualidade da estrada era de tal natureza que se podia viajar com perfeita segurança a velocidades bastante altas. Eram cerca de oito horas da noite quando fiz a primeira paragem do percurso, já depois de ter ultrapassado Ondangua, a primeira povoação do Sudoeste. Teria nessa altura percorrido cerca de uns 120 ou 129 km. O céu, sem lua, era um dossel intensamente negro pejado de estrelas.O deserto, com o seu ar limpo e rarefeito proporciona aos viajantes um espectáculo deslumbrante, um verdadeiro e mágico dossel de estrelas em que se conseguiam ver todas as constelações do hemisfério Sul e em que se podia perceber a Via Láctea em todo o seu esplendor. Liguei nessa altura o rádio do carro para poder viajar com música e sintonizei uma estação que tinha um sinal muito forte e nítido. No momento em que o fiz ignorava por completo a sua proveniência. Pude vir a sabê-lo, no momento em que interromperam a música para iniciar as notícias. Com grande espanto meu que pensava estar a ouvir Windhoek ou Vinduque a capital da Namíbia, verifiquei que se tratava de Luanda. Fiquei ainda mais surpreendido quando ouvi que a conferência de Nakuru, no Kénia, se tinha saldado num rotundo fracasso e que o período de tréguas entre os movimentos nacionalistas angolanos, tinha terminado e que tinham sido dadas ordens para se encerrarem todas as fronteiras de Angola. A guerra entre os movimentos nacionalistas já tinha recomeçado e já havia combates em Luanda e noutras localidades. Meu coração pulou de emoção, porque eu tinha atravessado a fronteira duas horas antes. Percebi então de imediato, que a voz misteriosa que me dissera para partir de imediato, era uma voz sobrenatural e que a ela devia a nossa salvação. Ficou ainda mais vincada em mim a convicção de que Deus estava a cuidar de mim. Percebi então, também, que estava a ser abençoado e protegido e isso inundou-me de coragem.A travessia da fronteira da Rodésia foi-nos extremamente facilitada pela polícia de fronteira, assim que lhe apresentei o nosso permit de residência. Perguntaram-me então se eu transportava alguma arma comigo. Respondi afirmativamente e apresentei-lhes a minha pistola 7,65 que tinha sido selada na fronteira do Sudoeste Africano, em Ochicango. Foi-me imediatamente devolvida em estado de poder funcionar. Fiquei muito bem impressionado com o acolhimento que me dispensaram. Deram-me um mapa rodoviário mostrando todo o percurso que teria de fazer para chegar a Salisbúria. Em Salisbúria fomo-nos hospedar num hotel de três estrelas que eu já conhecia e onde as diárias eram muito razoáveis.No dia seguinte de manhã fui apresentar-me logo ao Departamento de Emigração, onde tive de preencher os formulários que eram exigidos aos emigrantes recém-chegados. Perguntaram-me se eu preferia alugar um flat mobilado, ou um flat vazio, pois os emigrantes acabados de chegar tinham direito, durante dois meses, a ocupar flats mobilados. No final desse período de tempo teriam de mudar para flats vazios que deveriam mobilar a seu gosto, com mobília adquirida na cidade. Optei pela primeira opção. Recordo-me que o custo desse flat era de 50 dólares rodesianos por mês. Atribuíram-me um flat de duas assoalhadas completamente

- 20 -apetrechado de tudo, incluindo frigorífico, fogão a gás canalisado, esquentador eléctrico de água e até televisão a preto e branco. O flat que nos atribuíram ficava situado em Mabelreign, a uns escassos três quilómetros do centro de Salisbúria. Os rodesianos e os emigrantes europeus não viviam na cidade, mas sim em bairros periféricos, que estavam completamente apetrechados de todo o equipamento de segurança, de uma estrutura comercial completa, de espaços de lazer (jardins, cafés, restaurantes, pubs, cortes de ténis, pistas para pedestres e ciclistas, piscinas, campos de golf, postos médicos de prontos socorros e escolas infantis.) Percebi então de imediato que os rodesianos eram profundamente organizados e exigiam desfrutar de uma certa qualidade de vida. Era tudo profundamente diferente do que se passava em Angola.Ao chegar a Salisbúria nós trazíamos connosco a roupa que tínhamos nos corpos e nas malas, os objectos de uso quotidiano e alguns dos objectos que tínhamos conseguido transportar no nosso carro. Grande parte dos nossos utensílios domésticos tinham sido embalados em 4

malas de porão e despachados por terra para um transitário de cargas de Salisbúria. Em boa verdade nada de essencial nos faltava para nos podermos sentir confortavelmente na Rodésia.Pouco tempo depois de termos chegado comecei a trabalhar, como viajante vendedor, para uma firma que se dedicava ao comércio atacadista de produtos alimentares para europeus e africanos. Felizmente havia na cidade de Salisbúria um mercado muito grande de retalhistas do ramo alimentar, que operavam em todos os bairros residenciais. Muitos desses comerciantes eram de nacionalidade grega. Alguns desses comerciantes vendiam também vários artigos de interesse para a população africana, tais como peixe seco, amendoim torrado, carne seca e outros itens alimentares. Era, de uma maneira geral, fácil estabelecer contactos e relações comerciais com estes comerciantes, que se abasteciam através dos representantes locais das firmas abastecedoras. Depois de um certo relacionamento era comum criar amizades que facilitavam bastante as vendas a estas firmas do mercado retalhista. No início, enquanto não estivesse criada uma rede de contactos e conhecimentos não se podiam antecipar resultados.Mas esse era um risco a considerar e a ter de aceitar e não existiam outras opções. Não me podia esquecer que eu era um emigrante entre muitos outros e que era também um refugiado que fora forçado pelas circunstâncias a deixar a minha terra para me refugiar e fixar num país de acolhimento. As leis vigentes na Rodésia davam aos emigrantes um prazo de cinco anos para viverem e trabalharem no país sem a obrigatoriedade de colaborar na defesa do território. Ao fim de cinco anos de permanência no país qualquer emigrante masculino teria de ser incorporado no exército nacional. Os emigrantes que já tivessem ultrapassado os 50 anos de idade teriam de prestar também a sua colaboração nos serviços auxiliares, ou seja na polícia, na guarda civil, ou nos bombeiros. Os primeiros meses de estadia na Rodésia, devido ao grande apoio concedido aos emigrantes pelo Departamento de emigração, eram muito amenizados e muitos refugiados angolanos e moçambicanos encontraram onde trabalhar em firmas rodesianas. Fiquei deveras surpreendido com a facilidade e rapidez que tive em que me instalassem o telefone em casa. Requisitei-o e ao próprio Departamento de Emigração e em menos de 24 horas tinha-o instalado. A firma rodesiana com a qual comecei a trabalhar, em regime independente, vendia uma grande variedade de produtos de alimentação e de utilidade geral, tanto para europeus como para africanos. Isso permitiu-me realizar comissões suficientes para me poder manter. Nessa altura minha mulher ainda não começara a trabalhar.Nosso filho tinha sido colocado numa cresce infantil que não ficava muito longe de nossa casa. A nossa situação na Rodésia foi melhorando sempre progressivamente à medida que nos íamos adaptando e adquirindo conhecimentos. Muitos outros portugueses, nossos conhecidos de Angola, foram entretanto começando a chegar e a instalar-se como emigrantes nas mesmas condições de nós, e foi-se assim formando, em Mabelreign, um núcleo de angolanosque aos fins de semana se reunia para conviver. Quando saí de Angola, não sabia nada a respeito do paradeiro de meu irmão José. Os seus negócios com Angola e com Moçambique tinham sido interrompidos devido à Guerra Colonial que grassava nesses antigos territórios ultramarinos. Imensamente preocupado com o facto,

- 21 -escrevi para a minha cunhada Nina, em Guimarães para que me indicasse o seu paradeiro. Minha cunhada respondeu-me dizendo que ele estava bem mas que, de momento, não podia revelar-me o seu paradeiro. Que tivesse paciência e que esperasse mais algum tempo pois ele iria escrever-me. Fiquei muito mais intrigado e apreensivo ainda com a resposta, mas aguardei. Um ou dois meses mais tarde recebi então uma carta de meu irmão, oriunda de S.Paulo, no Brasil. Era um envelope grosso cheio de cartas postais de S.Paulo e da Baixada Santista preenchidas no verso, relatando-me que fora para o Brasil e que estava já a trabalhar em S.Paulo numa grande firma de portugueses que se dedicava à venda de peças e acessórios para automóveis. Viajava constantemente para fazer a cobertura comercial de uma extensa área do território brasileiro situada no Estado de Minas Gerais. Que estava encantado com o Brasil e com o seu extraordinário poder económico e que era ali que queria ficar e trabalhar. Os postais, com fotografias da grandiosa cidade de S.Paulo e da baixada Santista, revelando o esplendor da flora da Serra do Mar, eram de facto sugestivos e encantadores. Aproveitava a

ocasião para me encorajar a sair de África, pois o Continente africano tinha pegado fogo e deixara de ter interesse para os europeus, apesar de todo o amor que lhe pudéssemos ter.Realmente naquele momento, África tinha perdido todo o interesse, pois os riscos para sobreviver às perseguições e ódios racistas era imensos, e tudo estava a agravar-se dia após dia. Minha mulher ficou encantada com as notícias recebidas de meu irmão e começou a pensar que o melhor seria irmos também para o Brasil. Eu sentia-me muito bem na Rodésia e a minha vida toda tinha sido passada em África. Dificilmente concebia a possibilidade de algum dia sair de África para ir viver para outro continente. Amava profundamente o Continente Africano, a sua fauna e a sua flora, o seu clima, os seus mistérios, a diversidade etnográfica das suas imensas superfícies, as imensas e maravilhosas recordações de Angola, desse imenso território que me vira nascer, que vira nascer todos os meus filhos, que também vira nascer minha mãe, que fora a terra que meu pai amara. Angola marcara a minha vida para sempre e a ele desejaria voltar um dia, se pudesse. Vivi na Rodésia um período extraordinariamente agradável da minha estadia em África. Na realidade, nessa altura, a vida na Rodésia era de grande qualidade. Nada faltava na Rodésia, a vida era barata, abundante em tudo e apesar do território se encontrar em guerra, havia uma enorme segurança. O território era densamente habitado por dois grupos étnicos. O maior grupo era o dos Shonas e o menor o dos Ndebele. Os shonas são na Rodésia (hoje Zimbabué) um grupo étnico maioritário, mas, num passado não muito distante foram menos poderosos que os ndebeles e foram dominados por eles. Os shonas não possuíam grandes tradições guerreiras e viviam dedicados à pastorícia e à agricultura. Os ndebeles eram tribus guerreiras que guerreavam e escravizavam os shonas. Devido à sua implantação em zonas férteis da Rodésia os shonas proliferaram e tornaram-se prósperos e hoje são na Rodésia a etnia dominante. A prosperidade agrícola da Rodésia foi uma consequência do mérito agrícola dos ingleses e da paz que se implantou no território.A Rodésia foi considerada nas décadas de 50 a 70 o celeiro da África central. Recordo-me também de ter visto nas estradas da Rodésia, inúmeras e gigantescas pilhas de sacos de milho, por não haver silos suficientes para guardar o grão colhido. A Rodésia chegou a ser o maior exportador de milho do Continente Africano e tinha clientes de toda a África . A carne de bovino que se podia adquirir nos talhos do país era de uma qualidade maravilhosa e tinha um preço relativamente baixo. A diversificação do clima nas diferentes regiões do país permitia a cultura de todo o tipo de árvores frutíferas (mesmo das espécies Mediterrânicas). A inflacção anual no último ano da nossa permanência na Rodésia foi de apenas 1%.Durante a minha permanência na Rodésia surgiu-me um negócio espectacular que eu por timidez não soube aproveitar e que, se tivesse feito me daria muito dinheiro a ganhar. Foi-me oferecida a possibilidade de adquirir rands de ouro puro ao preço de dois mil e quinhentos escudos cada moeda. Podia adquirir a quantidade que quisesse. Tive receio de fazer esse negócio e perdi essa excelente oportunidade. Um ano mais tarde soube que as moedas de 1 rand sul africano, em ouro, se tinham valorizado várias vezes e que com elas me teria sido possível valorizar o capital investido, cerca de 6 vezes.

- 22 -Todos os emigrantes europeus entrados no território Rodesiano tinham direito a importar uma viatura nova ou usada, legalizada em seu nome, sem ter de pagar direitos aduaneiros. O meu Peugeot, foi legalizado ao abrigo dessa lei. Minha mulher, que nessa altura já se encontrava a trabalhar na Anglo American Corporation, com escritório em Salisbury, precisava de um carro para se poder deslocar de casa para o serviço. Aproveitei a oportunidade para, ao abrigo dessa lei, me deslocar a Pretória onde recentemente tinham chegado grupos de refugiados angolanos, que levaram consigo os seus pertences, para poder comprar um carro usado em bom estado. Encontrei então um refugiado que possuía uma viatura Renault 4 em muito bom estado e que desejava vender, pois o Governo da África do Sul não tinha facilitado a fixação dessas pessoas na África do Sul como emigrantes. Foi uma atitude feia e condenável, pois a maioria dos angolanos que fugiu pelo Sul de Angola e entrou no Sudoeste Africano, transportou consigo todos os bens que possuía convencida que o Governo Sul Africano iria facilitar a sua legalização como emigrantes. Muitos levaram camionetas de carga e tractores agrícolas que acabaram por ter de vender ao desbarato. O facto de estar a adquirir uma

viatura em segunda mão de alguém que muito provavelmente não iria obter um permit de residência para poder ficar a viver na África do Sul, poderia ter-me servido desse pretexto para fazer baixar o preço de compra da viatura. Eu achei que isso seria indesculpável e não me aproveitei da situação. Paguei pelo carro o preço que me pediu. Regressámos a Salisbury, eu e o amigo que comigo viajara para poder trazer o carro comprado. Encontrei em Pretória no Campo de refugiados, algumas pessoas conhecidas em situações verdadeiramente desesperadas, que me pediram para ver se eu conseguiria fazê-las fixarem-se como emigrantes na Rodésia. Tomei nota dos seus nomes e profissões e prometi interessar-me pelo assunto. Dada a falta de documentos dos interessados e porque não possuíam valores que lhes permitissem a fixação no território da Rodésia não me foi possível fazer nada de concreto.Um encontro absolutamente inesperado, numa rua de Salisbury fez-me encontrar uma pessoa que havia trabalhado comigo em Luanda. Chamava-se Jósé Manuel Correia da Silva. Fora chefe da Contabilidade da Petrangol em Luanda, mas eu já o conhecia de Nova Lisboa. Depois da grande e natural surpresa que o encontro me causou, soube que ele tinha vindo refugiar-se na Rodésia. Estava hospedado num hotel de duas estrelas acompanhado de um filho. Perguntei-lhe o que estava a fazer nesse momento. Na realidade estava à procura de um emprego para ele e para o filho, mas disse-me que estava tudo muito difícil e que não tinha ainda nada em vista. Para o manter distraído resolvi oferecer-lhe a oportunidade de se deslocar comigo nas minhas viagens pelos arredores de Salisbury. A natureza super alegre deste meu amigo tornava-o uma companhia bastante agradável. Ele possuía um reportório enorme de anedotas e de histórias que sabia contar com muita piada. Em Luanda, segundo me contou, dedicava-se ao negócio de distribuidor de gasolina e possuía um posto de abastecimento muito afreguesado. Também tinha uns vendedores de doces de amendoim por sua conta, que vendiam nuggets de amendoim a clientes africanos. Era um doce muito popular que era conhecido pelo nome de pé de moleque e que era confeccionado com açúcar e amendoim descascado e torrado. Lembrámo-nos então que esse tipo de iguaria poderia ter bastante interesse para o mercado africano da Rodésia, e que, devido à excelente qualidade do açúcar e do amendoim rodesianos poderia ser facilmente fabricado. Falei então com os meus patrões rodesianos da Laing & Cª sugerindo-lhes a possibilidade de se fazer uma experiência comercial no mercado da Rodésia. Para isso era necessário que o produto fosse atractivo na sua apresentação e não fosse demasiado caro. Sugeriram então que fosse apresentado sob a forma de um tablet quadrado com uns 8 cm de lado e revestido com celofane transparente. Fiquei radiante de alegria por perceber que estavam realmente interessados em comercializar essa iguaria, e que talvez isso fosse um ponto de partida para que esse meu amigo e o filho se pudessem empregar. Meu amigo recebeu a notícia com muito entusiasmo e prontificou-se a fabricar algumas amostras para iniciar a experiência de comercialização. Mandou fazer então uma lâmina cortadora de forma cilíndrica que permitisse cortar com algum rigor a pasta do nugget. Na semana seguinte levei aos meus patrões alguns exemplares do produto já

- 23 -acondicionados. A embalagem teria evidentemente de ser melhorada para tornar o produto mais atractivo. A partir dessa altura estava aberto o caminho para que o meu amigo e os donos da firma entrassem em contacto e estabelecessem as suas futuras relações comerciais. Foi uma grande surpresa para mim constactar que não podiam chegar a um acordo por culpa das exigências do meu amigo. Meu amigo queria impor-lhes o filho, também como gerente da fábrica com as mesmas regalias do pai. Isso não foi aceite e com razão.Eu ainda tentei concertar tudo fazendo ver ao Zé Manuel que essa exigência era inconcebível. Assim abortaram e nunca mais se reencetaram as negociações entre as duas partes, para o lançamento do pé de moleque na Rodésia.Alguns meses mais tarde chegou à Rodésia um outro angolano, que segundo vim a saber depois, conseguira sair de Angola com um lote de diamantes em bruto. Foi-me apresentado por uns amigos que o conheciam e que julgavam que eu estava em posição de o poder aconselhar a fazer os seus investimentos. Penso que essa convicção errada resultava do facto de eu ter sido um dos angolanos a chegar primeiro ao país. No fundo eu estava tão em branco como qualquer outro. Aproveitei a oportunidade para lhe falar da tentativa que eu fizera para

lançar o negócio do noggat de amendoim. O assunto despertou nele um interesse com que eu não contava. Quis então conhecer o plano do Zé Manel em pormenor. Desta vez o meu amigo já tinha desistido da ideia de impor o filho. As negociações chegaram a frutificar e pouco tempo depois estava montada a fábrica dos produtos derivados do amendoim torrado. Os produtos foram batizados com o nome genérico de Brasilian Sweets e ganharam até uma bonita imagem de marca. A fábrica arrancou numa das zonas industriais da cidade, apetrechada com todo o material necessário ao bom desempenho da sua actividade. Os produtos que começou a produzir, todos baseados no amendoim e no açúcar, constavam de tablets de noggat torrado de amendoim, sacos de 250 gm de amendoim torrado, descascado e salgado, sacos de 250 gm de amendoim com piri-piri, sacos de amendoim torrado revestido de açucar colorido caramelizado, sacos de 500 gm de amendoim torrado com casca e sacos de amendoim selecionado meio torrado, sem sal e sem casca. O meu amigo José Manuel baseava o seu sucesso na garantia de que todos os seus produtos se mantinham inalteráveis nas prateleiras de venda e nos locais de armazenamento durante pelo menos o período de um ano como resultado de um produto secreto neles incorporado. O que na realidade veio a acontecer foi que todos os produtos em cuja composição havia integração de açúcar, começaram a melar e a aglutinar após dois e três meses apenas perdendo toda a sua apresentação comercial. Este facto determinou a substituição rápida de todos os produtos vendidos aos retalhistas, sem que se tivesse podido restabelecer a confiança neles e na marca. Apesar de todas as substituições efectuadas os produtos da Brazilian Swweets perderam grande parte da sua credibilidade no mercado e nos consumidores. Este desagradável episódio comercial fez com que o proprietário da fábrica e o gerente se desentendessem fortemente. Para complicar a sua relação, o filho do meu amigo, que frequentava a fábrica com grande regularidade para poder estar junto do pai, declarou que ia lançar um outro produto no mercado, tendo por base o amendoim moído e açucarado.Tratava-se de uma grotesca falta de lealdade para com a Brazilian Sweets, por ser um produto concorrente ao nosso. O conhecimento deste facto fez com que o Sr.Vasco decidisse de imediato que o filho do Zé Manel ficaria, a partir daí, sem o direito de acesso à fábrica. A medida não foi do agrado do pai.Alguns dias depois deixámos de o ver e viemos a saber que andava a comprar roupa para seu uso, com cheques falsos . Soubemos ainda, na semana seguinte, que tinha comprado uma passagem de avião e que partira para o Brasil. Quando perguntei ao pai por ele, declarou-me que não sabia nada do filho nem para onde tinha ido . Percebi que era uma descarada mentira.Alguns dias depois foi o pai que desapareceu sem deixar rasto nem dar explicações a ninguém.Os procedimentos tanto do filho como do pai vexaram-me profundamente. Depois de todo o meu empenho em ajudá-los tratava-se de uma profunda ingratidão.

- 24 -Mais revoltado ficou ainda o proprietário da fábrica, que ficou com o menino nos braços e teve de abandonar o negócio com um grande prejuízo por ter perdido todo o investimento. Felizmente o investimento em equipamentos foi recuperado, pois depressa apareceu um paquistanês que assumiu o negócio com o propósito de transformar a fábrica dos doces numa fábrica de billtong. O billtong na Rodésia e na África do Sul era um negócio com muitos consumidores africanos e maumetanos. O Billtong era uma carne de bovino ou de caça temperada com sal e especiarias diversas, que se punha a secar em tiras e que depois de seco se empacotava e se vendia a peso. Era um alimento muito energético que se consumia como carne seca e que tinha muitos apreciadores. O Billtong para os maometanos tinha de ser preparado com a carne de animais mortos e degolados, para obedecer aos seus preceitos religiosos. O billtong não podia ser preparado com carne proveniente de animais que não tivessem sido devidamente sangrados. Era um produto com muita procura se obedecesse a essas condições de preparação, porque a população maometana da Rodésia, da Zâmbia, da Tanzânia e de Moçambique era de facto muito numerosa. Se não fosse o billtong o prejuízo do Sr. Vasco teria sido bem maior. Para mim, o encerramento da Brasilian Sweets terminou com

um negócio que me poderia ter proporcionado um resultado comercial espectacular se o Sr. Correia da Silva não se tivesse comportado desonestamente e fosse uma pessoa séria. A minha relação de amizade com o Sr. Vasco, poderia ter ficado irremediavelmente comprometida, mas, manteve-se no entanto intocável porque eu, em nenhuma ocasião, tomei partido pelo Sr. Silva.Privado por isso da comercialização lucrativa dos produtos da Brasilian Sweets procurei de imediato compensar essa perda, com novas representações. Consegui encontrar então um português com uma firma bem implantada na Rodésia, que importava e comercializava licores, e vinhos portugueses de qualidade e que, para além disso, possuía também a representação exclusiva das canetas BIC, um artigo que já fabricava sob licença em Salisbúria. A sua firma, Fernando Paredes, era também distribuidora de refrigerantes infantis, engarrafados em embalagens de plástico transparente, com o formato de brinquedos. Tratava-se de um artigo que já tinha alcançado grande popularidade no público infantil rodesiano e que era praticamente transacionado em toda a Rodésia, sendo abundantemente adquirido tanto por europeus como por africanos, principalmente no Verão. Com esses dois produtos e com a ampliação constante das minhas áreas comerciais compensei a perda da Brasilian Sweets.Apesar de todas as contrariedades e do estado de guerra que também se vivia na Rodésia, sempre me foi possível movimentar-me à vontade por todo o país para poder contactar os meus clientes. Nessa altura, o diesel, era relativamente barato e o meu Peugeot 404 não consumia muito e era muito resistente e confiável em qualquer estrada e em qualquer terreno. Admiti um ajudante africano para me acompanhar nas longas viagens que fazia. Os empregados africanos, na Rodésia, eram muito activos e trabalhadores e normalmente tinham uma boa preparação profissional. Frequeentavam escolas profissionais que os preparavam eficientemente para desempenharem as suas funções. Admiti então um ajudante ainda novo, que teria no máximo uns vinte e dois anos, cujo nome era Edmund. Era um rapaz interessante a quem sempre paguei um vencimento acima do que a lei estabelecia para a sua profissão. Edmund falava perfeitamente o inglês, era afável e simpático, vestia-se bem e era bastante eficiente no seu trabalho de ajudante. Chegava ao serviço às 8:00 h em ponto, dirigia-se à cozinha onde tomava o seu pequeno almoço, pegava nas chaves do carro e iniciava o seu trabalho limpando cuidadosamente todo o interior do carro, verificando os níveis de óleo e de água do motor e do depósito de água dos limpa vidros, via também a pressão dos pneus e o bom estado da sinalização eléctrica. Caso a viatura se encontrasse suja lavava-a com a ajuda da mangueira da canalização geral. Depois dirigia-se a casa e ia buscar as minhas pastas e todo o mostruário de vendas. Às 8:30 h o carro estava então perfeitamente preparado para partirmos. Aos fins de semana, sábados entre as 12:30 h e as 13:00 h acabava todo o seu trabalho podia sair. Não quero deixar de referir, que invariavelmente me pedia que lhe fornecesse a crédito uma ou duas caixas de canetas BIC para as vender na área comercial

- 25 -africana da sua residência. Era um tipo de ajuda que aproveitava sempre para poder aumentar os seus proventos semanais. Quando regressava ao trabalho regularizava escrupulosamente as suas contas.À medida que o tempo ia decorrendo a situação política e militar da Rodésia ia-se complicando. Os nacionalistas africanos liderados por Roberto Mugabe cresciam em poder e estavam a causar grandes problemas ao exército Rodesiano. A Declaração Unilateral de Independência de Ian Smith, nunca foi reconhecida pela Inglaterra e pelo mundo. Portugal e a África do Sul eram dos poucos países que reconheceram a U.D.I. A Rodésia encontrava-se isolada, como isolados estavam também Portugal e a África do Sul. Se as fronteiras geográficas da Rodésia não fossem formadas, a Leste por Moçambique, a oeste por Angola e a sul pela República da África do Sul, a Rodésia não teria qualquer hipótese de subsistência. O papel da África do Sul na defesa da Rodésia foi determinante, pois nunca obedeceu ao bloqueio determinado pela Inglaterra e apoiou sempre quer militarmente quer economicamente o governo rodesiano de Yan Smit. Foi isso que permitiu que Smith e os europeus liderassem a Rodésia durante tanto tempo.

A evolução política que o mundo inteiro desejava para todo o Continente Africano era a da Independência. O Colonialismo estava condenado a desaparecer. A República da África do Sul era o único país independente reconhecido pelo mundo, mas nela o poder encontrava-se maioritariamente nas mãos dos europeus. Essa situação também não era de forma alguma do agrado dos países que formavam a União Africana e a ONU e não se esperava que pudesse prevalecer. Mais tarde ou mais cedo o poder político na República da África do Sul teria de mudar de mãos e não havia nada que o conseguisse contrariar.Yan Smith fez tudo o que estava ao seu alcance para conseguir garantir os direitos dos rodesianos brancos, e criar dentro da Rodésia um Governo multirracial que permitisse a continuação da convivência entre africanos e europeus e assegurasse o desenvolvimento económico do país a partir dos seus fabulosos recursos naturais. Uma das tentativas desenvolvidas por Smith foi a de escolher um líder shona politicamente moderado para nele delegar a representatividade da maioria africana no futuro parlamento do país. Esse líder era um bispo cristão de nome Abel Muzorewa, que gozava da simpatia de muitos shonas. Na verdade já era tarde demais para o fazer. A guerra e os sucessos da luta dos nacionalistas deram a Robert Mugabe uma popularidade maioritária junto dos shonas, porque ele prometera aos seus simpatizantes arrebatar as propriedades aos europeus e fazer a redistribuição da terra pelos africanos. Roberto Mugabe era um racista confesso e odiava os rodesianos brancos e nunca chegou a aceitar uma repartição do poder com os europeus. Felizmente enquanto nós vivemos na Rodésia predominou sempre a administração europeia na Rodésia. Em Salisbúria em Bulawayo e nos meios urbanos mais desenvolvidos da Rodésia houve sempre a possibilidade de poder viver em segurança, embora os rumores da guerra nacionalista se fossem avolumando continuamente e causando algum mal estar. Todas as cartas que eu recebia do meu irmão, do Brasil, me davam conta de que a sua vida nesse grande país estava correndo muito bem e que se encontrava a trabalhar para uma grande firma atacadista de peças e acessórios de automóveis, cujos donos eram portugueses. Estava muito feliz porque estava a trabalhar naquilo que sempre gostara de fazer e em que era um verdadeiro especialista, como representante vendedor de peças e acessórios de automóveis, para uma imensa área comercial do estado brasileiro de Minas Gerais. Percorria milhares de quilómetros visitando continuamente um enorme número de clientes dentro da área que a firma lhe atribuira. Era um trabalho duro e um tanto desconfortante que o obrigava a estar ausente de S.Paulo durante longos períodos de tempo. Por vezes mais de 30 dias. Todavia ele dizia-me que estava a gostar de viver no Brasil e do que estava a fazer. Em 1976, data em que os factos se estavam a passar, o Brasil tinha grandes problemas de inflação, e isso era algo que atrapalhava bastante as pessoas que, como nós, não estavam habituadas a esse tipo de problema. Como esse fenómeno económico já existia no Brasil havia anos, o país tinha-se adaptado a ele e os brasileiros tinham-se ajustado a essa realidade, criando os mecanismos - 26 -próprios para continuar a trabalhar a viver e a ganhar dinheiro. O Brasil é um país à escala continental e muitos dos seus estados são maiores que muitas das nações que existem na Europa e no mundo. O Brasil é por isso um país que os europeus, que emigravam e ainda emigram para ele, têm bastante dificuldade em perceber e aceitar. Na altura em que eu lia com atenção essas cartas de meu irmão, muitas das suas afirmações eram sem dúvida muito reais e verdadeiras. Meu irmão aconselhava-me a sair o mais depressa possível de África onde alastrava um tremendo e incontrolável ódio racial e, segundo ele, os europeus tinham deixado de poder viver em segurança em qualquer território onde se estivessem a travar lutas nacionalistas. Esse era sem dúvida o caso da Rodésia onde a Declaração Unilateral de Independência de Smith, não iria ter possibilidade de permanecer, logo que a situação política da República da África do Sul mudasse para as mãos do ANC. A luta que os europeus estavam a travar em África a Sul do Equador para a sua sobrevivência política, estava condenada a um insucesso total e a segurança de qualquer europeu aí poder ficar e prosperar era nula. Nas suas cartas, meu irmão também me encorajava a sair da Rodésia quanto antes e me dizia que gostava que eu rumasse ao Brasil onde rapidamente poderia organizar-me com a sua ajuda. Minha mulher, que já passara anos agitados em Luanda, no auge da guerra colonial, e que

experimentara grandes sustos, encorajou-me a sair da Rodésia antes que a situação se complicasse mais. Aceitei com muita dificuldade a ideia de ter de deixar a Rodésia onde a vida me sorrira e onde passei um tempo delicioso. Aquela era de facto a África que eu amava, a natureza com a qual eu me identificava plenamente, o Continente em que eu nascera e que fazia parte do meu eu biológico. Mas, por razões de ordem familiar eu não devia ser egoísta, não podia sujeitar minha mulher e meu filho a um futuro incerto e a riscos que, a passos largos, se avizinhavam de todos os europeus que teimassem em permanecer no país. As minhas últimas noites na Rodésia, foram noites de insónia e desconforto. Eu tinha a perfeita noção de que não havia futuro para nós numa Rodésia sob administração africana, porque os nacionalistas africanos da ZANU odiavam tanto os rodesianos como os emigrantes portugueses. A razão desse ódio ligava-se ao facto do exército português, em luta em Moçambique contra a Frelimo, prestar apoio aos exércitos rodesiano e sul africano que enfrentava os nacionalistas da ZANU na zona fronteiriça de Moçambique. Quero referir aqui um episódio vivido por mim em Untali, na fronteira de Moçambique. Umtali era uma cidade rodesiana, na linha de fronteira da Rodésia com Moçambique. Era uma zona montanhosa, que fazia parte das grandes montanhas de Vumba. Eu costumava visitar essa cidade de tempos a tempos, com propósitos comerciais. Em Umtali ligavam-se as linhas férreas de Moçambique e da Rodésia e havia aí uma importante estação ferroviária de fronteira. Umtali estava também ligada a Salisbúria e a Bulawayo por linha férrea, sendo esta última, a segunda cidade mais populosa e mais comercial da Rodésia. Fiz uma vez esse percurso ferroviário, um ou dois anos antes, para ir visitar a feira de Bulawayo. Era já, nessa altura, uma cidade muito importante onde se situavam a Solusi University, o Bulawayo Polytechnic Collegee o Christian Brothers College. Realizava-se também aí a feira Industrial e Comercial da Rodésia. Umtali era também uma cidade com bastante atividade turística por ficar implantada numa área cénica muito interessante devido à sua orografia. O que se passou então nessa minha viagem: Desloquei-me de carro a Umtali, acompanhado do Edmond (o meu ajudante africano) para contactar os comerciantes locais com o objectivo de lhes apresentar os produtos da Brasilian Sweets. À hora do almoço dirigi-me a para o restaurante de uma lanchonete que servia refeições à la carte com o propósito de almoçarmos. Quero antecipar desde já a informação de que o Edmond se vestia tão bem como qualquer europeu. Sentamo-nos os dois na mesma mesa. Percebi que o Edmond estava a manifestar um certo desconforto, mas não sabia porque razão. O gerente ou patrão do restaurante, chamou um dos seus empregados de mesa africanos, e disse-lhe qualquer coisa que eu não consegui perceber mas que se devia referir a mim pelo facto de ele ter apontado para a nossa mesa. Esse empregado dirigiu-se então à nossa mesa, trazendo consigo a lista dos pratos, mas antes de se dirigir a mim dirigiu-se ao meu ajudante e disse-lhe em inglês, para

- 27 - que eu o pudesse perceber, que ele não podia estar ali, pois não era europeu. Notei o grande embaraço e perturbação do Edmond. Interrompi o empregado e disse-lhe: diga ao seu patrão que este Sr é meu empregado e que fui eu que o convidei para almoçar comigo e quero que ele permaneça comigo à mesa. O empregado retirou-se para levar a minha resposta ao patrão.Minutos depois o patrão dirigiu-se à nossa mesa, cumprimentou-me cordialmente e disse isto: O Senhor é certamente estrangeiro e desconhece os nossos costumes e as nossas leis. Esse senhor africano não pode frequentar o restaurante, temos para os clientes africanos lugares separados. Isto são leis que temos de respeitar rigorosamente e eu não posso infringi-las. Se um fiscal entrar no restaurante serei multado e terei de me explicar perante as nossas autoridades. Respondi-lhe então com a maior calma possível: Olhe meu amigo, pois eu não irei comer no seu restaurante se o meu ajudante não puder acompanhar-me. Sim, eu sou de facto estrangeiro e não estou habituado a segregar os africanos. Os senhores estão a cometer um erro grosseiro porque estão a querer ignorar que os tempos estão a mudar e que os ventos da mudança sopram com muita força e deitam por terra conceitos e atitudes ultrapassadas. Respondeu-me com serenidade: O senhor tem razão mas eu não posso infringir a lei. Depois desta resposta nada mais nos restou do que abandonar o restaurante.

No regresso a Salisburia tentei por todos os meios consolar a revolta do meu ajudante e disse-lhe: Tem paciência porque tudo isto mudará brevemente. Vocês vão ter direito a viver com dignidade quando alcançarem a independência. Já nada a pode evitar.Resolvi dizer algo sobre este triste episódio por me parecer oportuno mencioná-lo nestas memórias. Episódios desta natureza, que se praticaram durante anos, criaram um grande antagonismo entre europeus e africanos e a maioria dos europeus pressentia bem o grau de intolerância com que teriam de contar logo que o poder africano se pudesse afirmar.Essa foi também uma das razões que me levou a decidir deixar a Rodésia.À medida que a data para deixar a Rodésia e partir para Portugal, para depois seguir para o Brasil se aproximava, o meu coração ficava cada vez mais perturbado e triste. Deixar de vez o Continente Africano que eu amava sinceramente, para ir para qualquer outro continente era algo em que nunca tinha pensado e que não me agradava nada. Mas havia um imperativo muito forte para ter de o aceitar. Eu não era responsável, apenas pela minha vida. Era responsável pela vida de mais duas pessoas que confiavam em mim. Fiel ao seu compromisso, as autoridades cambiais da Rodésia garantiram-me a transferência de todas as divisas com que eu tinha entrado no país. Essa transferência levou algum tempo a concretizar-se, pois foi feita através de um Banco Suiço, primeiro para a Europa e depois para o Brasil. Parti triste e amargurado deixando para trás o continente onde nascera e vivera feliz durante 45 anos. Um outro motivo de grande tristeza foi ter de me separar dos meus amigos de quem possuía excelentes memórias e do meu fiel Koriak, o collie escocês, que fora um companheiro admirável do meu filho Pedro durante todo o tempo que estivemos a viver na Rodésia. Antes de partir procurei arranjar-lhe um lar onde ficar, um lar onde tivesse a companhia de crianças.Consegui interessar uma família rodesiana que o acolheu, com a promessa de me darem notícias amiudadas dele, mas infelizmente nunca cumpriram essa promessa. Permaneci em Portugal o tempo suficiente para conviver com os meus filhos do 1º casamento e antes de seguir para o Brasil ainda tentei emigrar para o Canadá ou para a Austrália. Eram dois países em que eu depositava mais confiança e que me parecia poderem garantir-me um futuro melhor. Aproveitei a minha estadia em Portugal para regularizar o meu estado civil, obter a certidão de divórcio e casar-me com a Ofélia.Cheguei ao Brasil, mais propriamente a S.Paulo, onde era aguardado pelo meu irmão José, em Julho de 1976. O Brasil estava então sob um Governo militar e tinha como presidente o General Ernesto Geisel, eleito em 1974 e que, se haveria de manter no poder até 1979. Geisel governou o Brasil com mão de ferro num período em que o país esteve sujeito a uma inflação galopante, e em que teve praticamente de enfrentar o fim do milagre de desenvolvimento brasileiro. Geisel foi um presidente de transição entre a ditadura militar e a democratização da vida política nacional. - 28 -Quando cheguei ao Brasil, embora a inflação fosse já elevada, mesmo assim achei que o custo de vida no Brasil era bastante inferior ao da Europa e lembro-me que fiquei muito animado ao constactá-lo.Cheguei ao Brasil sozinho. A Ofélia e o Pedro permaneceram em Portugal em cada de um irmão da Ofélia. O voo que me transportou para o Brasil fez a sua primeira aterragem na cidade brasileira do Recife. Esse foi o meu primeiro contacto com o Brasil. Meu irmão aguardava-me no aeroporto de Congonhas, acompanhado de uma moça brasileira com quem estava a viver. Depois das calorosas saudações das boas vindas com que meu irmão me recebeu, partimos do aeroporto para a cidade de S.Paulo. Embora tivesse podido contemplar do ar, antes da aterragem, a grandeza daquela verdadeira megalópole, admirando-me com a enorme concentração dos seus enormes arranha céus, tive então a oportunidade de ver tudo mais de perto. O ar estava extremamente poluído com os gases libertados pelo grande movimento automóvel e havia um verdadeiro matraquear de ratés produzidos pelos escapes dos carros. Havia um intenso e generalizado cheiro a álcool no ar, proveniente da queima do etanol incorporado na gasolina. O Brasil estava mergulhado no consumo do álcool de cana que principiara a ser incorporado na gasolina. Os motores dos carros ainda não estavam suficientemente adaptados para um consumo perfeito do etanol e, por isso, a combustão dos

motores era imperfeita, dando lugar às combustões nos escapes das viaturas. Essa era na realidade a explicação para tantos ratés. Meu irmão já tinha providenciado um quarto onde me hospedar. Era no hotel J.K, que era propriedade de um simpático casal português. Durante todo o tempo que lá permaneci fui sempre muito bem tratado. O hotel ficava bem no centro da cidade de S.Paulo, perto do largo do Arouche e da Avenida D.João. Bem perto situava-se também a rodoviária de S.Paulo, de onde partiam todos os ónibus para o interior do estado paulista. A Rodoviária de S.Paulo era também um enorme centro comercial, onde se podia comer e encontrar tudo o que se pudesse desejar. A cidade era um verdadeiro formigueiro humano que fervilhava de gente e onde se podia ser assaltado e roubado num abrir e fechar de olhos. Uma coisa que logo de início me deixou mal impressionado foi a aparência bélica da polícia. Todos armados até aos dentes com revólveres de grande calibre e com uma grande quantidade de munições. Pistolões do tamanho daqueles que usavam eu só ainda os tinha visto nos filmes do far-west, na América. Nessa zona da cidade havia muitas lanchonetes e restaurantes e a comida não era cara. A comida, substancial e simples e apoiava-se principalmente no feijão, no arroz, no bife de vaca, nas salsichas e no frango e na polenta de milho. Ao fim de algum tempo as pessoas habituavam-se a esse tipo de alimentação e até a preferiam. É evidente que uma cidade multifacetada como S.Paulo possuía restaurantes de grande qualidade onde se podia comer, comida ocidental e oriental proveniente de toda a cozinha internacional. Havia também uma grande variedade de alimentos cozinhados ao ar livre, nas ruas e avenidas da cidade. A alimentação era profusa e estava ao alcance de todas as bolsas não havendo sinais de fome ou escassez de alimentos.Quando cheguei ao Brasil, abri uma conta no Bradesco onde depositei o dinheiro de alguns cheques de viajem que tinha conseguido em Lisboa. A minha transferência de divisas da Rodésia estava por chegar. Eu não estava com uma necessidade ingente de começar a trabalhar pois tinha o suficiente para me poder aguentar durante uns tempos. Possuía nessa altura um depósito razoável em escudos numa delegação do Banco Espírito Santo, situada na Rua do Comércio em Lisboa e acreditava que ela fosse mais do que suficiente para me manter no Brasil sem necessidade de começar a trabalhar imediatamente. Sempre que necessitava de cruzeiros negociava com alguns portugueses um ou dois cheques em escudos, o que nessa altura era facílimo de conseguir. A Avenida S.João à noite, redobrava de movimento e era um gigantesco centro de prostituição e de droga. A multidão de prostitutas e de homossexuais que invadia a Avª era quase inacreditável. À mistura com as prostitutas andavam multidões de travestis que dificilmente se poderiam distinguir delas e que enganavam muitos homens.

- 29 -Meu irmão tinha um apartamento no largo do Arouche, que ficava perto do hotel J.K., mas trabalhava na Vila Romana na Avª Catão. Logo que cheguei poderia ter começado a trabalhar imediatamente na Ginjo, empresa onde meu irmão trabalhava, mas não o quis fazer. Para tomar uma decisão eu precisava de estar já instalado em S.Paulo e ter a família a meu lado. Estava com a preocupação de não me precipitar. Talvez pudesse entreter-me com algo em S.Paulo e não tivesse necessidade de me ausentar de casa e da família por tanto tempo como acontecia com meu irmão. Por espírito de família eu apostava mais nessa solução do que em qualquer outra. O primeiro emprego que arranjei através de anúncio publicado no Jornal de S.Paulo, foi o de ir vender a famosa enciclopédia britânica. Isso fez-me apenas perder tempo, porque apesar da Enciclopédia Britânica ser um excelente produto, o facto de ser cara e de ser em inglês restringia de imediato a possibilidade de venda. Os clientes para esse tipo de produto pertenciam a uma faixa muito reduzida da população, por questões de cultura e por não dominarem o inglês. Ao fim de um mês de trabalho concluí que não valia a pena insistir. Acabou por ser para mim uma experiência frustrante.Respondi então a um anúncio do Consórcio Remaza e passei a vendedor de consórcio. Ainda consegui alguns resultados, mas nada que me desse para perspectivar uma actividade

contínua e compensadora. A minha experiência no Consórcio Remaza teve grandes reflexos na minha vida como a seu tempo mostrarei. Minha mulher e meu filho chegaram a S.Paulo antes do Natal. Foi então, a partir da sua chegada ao Brasil, que eu decidi arranjar algo que me pudesse garantir alguma estabilidade económica. Estava em pé a oferta que me fora feita por um dos principais patrões da Ginjo, o Sr. António Ramos. Lançar-me à estrada no Estado de Minas Gerais com os catálogos da Ginjo e começar a vender peças e acessórios de automóveis. Era nisso que meu irmão trabalhava e ganhava a vida. Eu teria de fazer o mesmo. Ia ser muito duro certamente, como de facto foi, mas era a única opção que tinha nessa altura. Decidi então aceitar o repto.Não sei se por ter simpatizado comigo desde o princípio, António Ramos decidiu admitir-me e posso dizer que excedeu as facilidades que costumava conceder a vendedores. Duma forma geral os vendedores que entravam para a Ginjo era-lhes concedido um financiamento para comprar uma viatura Volkswagen, normalmente um fusca 1.300 que teriam de amortizar com uma fracção das suas comissões. A mim foi-me concedida a possibilidade de comprar uma Brasília 1600 para começar o meu trabalho em Minas Gerais. Foi-me também concedido um período experimental e uma excelente área de trabalho. Fui colocado ao lado de um vendedor experiente da firma, pessoa perfeitamente identificada com os produtos e com as necessidades da clientela. A Ginjo tinha acabado de fazer um acordo com a GM para vender peças e acessórios de toda a extensa linha da Chevrolet e colocara essa linha nas minhas mãos. Eu precisava apenas de observar as técnicas de vendas do Nelson e familiarizar-me com a extensa gama de produtos. Para além do material da Chevrolet eu ficaria também com a possibilidade de vender grande parte dos produtos da Ford, da Mercedes Benz e Volkswagen bem como a linha geral de produtos de carácter comum (velas, amortecedores, correias de todos os tipos, material eléctrico, tapetes de borracha, cintas e calços de travão, óleo de travões, produtos de limpeza e embelezamento para automóveis, protectores de carter, baterias, lâmpadas de todos os tipos, bombas de água……. Com um arsenal tão grande e com uma área tão extensa eu tinha a obrigação de triunfar.A minha primeira viagem comercial para a Ginjo foi uma experiência interessante que serviu para me apresentar a vida no interior do Brasil. Algumas das estradas secundárias que tinha de percorrer, eram de péssima qualidade. Além de não serem asfaltadas estavam num estado de péssima conservação. Muitos buracos por tapar e uma impressionante quantidade de lama devido às intensas chuvas, faziam delas verdadeiras ratoeiras para os automóveis. Apesar de más, a circulação era intensa e os gigantescos camiões de carga Volvo e Scania, sempre ultra carregados, destruíam o seu piso e revolviam continuamente o seu barro. Uma viagem longa entre duas povoações consumia várias horas de condução e deixava o corpo moído. Nem

- 30 -todas as localidades do Brasil possuíam hospedagens ou hotéis que proporcionassem um conforto razoável aos seus hóspedes. Havia mesmo muitas povoações onde não existiam albergues ou pensões e noutras podiam apenas encontrar-se quartos modestos e muito mal mobilados. Grande parte das regiões que eu trabalhava ficavam situadas em zonas afectadas pela perigosa doença de Chagas, e os viajantes que dormissem nesses quartos podiam ser mordidos pelo bicho barbeiro, uma espécie de percevejo selvagem (um triatoma) que tem o habito de se introduzir e esconder nas fendas das paredes de barro e madeira, de onde sai a coberto da escuridão para sugar sangue das suas vítimas. Nem todo o bicho barbeiro se encontra contaminado pelo tripanossoma cruzi que é o parasita transmissor da doença, mas a maioria está. O tripanossoma vive no intestino do triatomídeo e é excretado nas fezes do parasita. Normalmente o triatoma morde a sua vítima e costuma defecar a seguir. A picada do bicho barbeiro produz um certo prurido e a vítima ao coçar-se introduz então o parasita na corrente sanguínea. A doença de Chagas transformou-se no Brasil num verdadeiro problema de saúde pública onde existe mesmo uma forte contaminação. A doença causa danos irreversíveis no sistema circulatório e no sistema nervoso. É uma doença de difícil tratamento.Numa área específica da grande zona comercial que eu cobria, a doença de chagas estava fortemente disseminada e matava muitas vítimas.

O risco de contrair malária era também muito grande devido à abundância de mosquitos que existia por toda a parte. Recordo-me de ter dormido um dia num pequeno e manhoso quarto de uma pensão à beira da estrada e de ter passado uma noite tenebrosa atacado por nuvens de mosquitos. Quando se fez dia pude ver a verdadeira extensão dessas picadas. Cheguei a ter medo de vir a ter um ataque agudo de malária, mas felizmente isso não aconteceu. Algumas das manhosas pensões em que nos hospedávamos dispensavam-nos uns quartos muito pequenos e rudimentares, onde pouco mais havia de que uma cama de ferro para solteiro, um lavatório de ferro forjado, um espelho rectangular, um jarro com água e um penico com tampa. A água não era canalizada, era escassa e a maior parte das vezes estava ligeiramente suja. Mas, para quem chegava moído pela estrada isso quase não interessava e dormia-se a noite de um sono. Às sete horas da manhã já era dia, lavava-se a cara, tomava-se um café forte, comia-se uma bucha com marmelada e às oito já se estava a rodar de novo na estrada, caso não houvesse clientes para visitar.Felizmente nem todos os lugares eram assim, mas pensões e hotéis bons e cómodos não havia muitos. A minha alimentação era frugal mas abundante e não posso considerar que fosse cara.O comercial brasileiro era um prato quase perfeito e saboroso devido à boa carne que existia em todo o Estado de Minas Gerais e todos os restaurantes o apresentavam com grande qualidade e abundância. Ao longo das rodovias mais frequentadas que ligavam os centros urbanos mais desenvolvidos, havia uma grande profusão de churrasqueiras de excelente qualidade.Recordo-me que num determinado dia, em que visitei pela primeira vez uma localidade desconhecida, tive uma avaria elétrica no dínamo de arranque da brasília e fui obrigado a ter de permanecer nessa localidade até ao dia seguinte. Uma das grandes vantagens de possuirmos uma viatura Volkswagen era o facto de nunca nos faltar onde adquirir material de reparação, para ela, fosse qual fosse a avaria em questão e mecânicos qualificados para efectuarem essas reparações. Como a reparação só ficou concluída ao fim do dia resolvi passar a noite nessa localidade. Por não haver aí nenhuma pensão tive de alugar um quarto a um particular. Arranjei então um quarto de fundo de quintal, mal mobilado e que pouco mais teria do que uns quatro metros quadrados. Felizmente possuía luz eléctrica, mas por não ter interruptor, a luz acendia-se e apagava-se subindo acima de um banco e desenroscando a lâmpada. Depois de jantar recolhi-me ao quarto com a intenção de actualizar o livrão de peças, com a última remessa dos novos preços da Ginjo. O quarto não tinha janela nenhuma. A renovação do ar fazia-se por baixo da porta de entrada, que deveria ter uns 40 cm a mais do que a porta. Estava uma noite quente e húmida e dentro de muito pouco tempo os insectos, a

- 31 -maior parte borboletas nocturnas começaram a invadir o quarto e a cirandar de um lado para outro. A presença desses importunos insectos tornou-se tão intensa que decidi desistir de fazer a actualização. Teria de ficar para outra ocasião. Como estava uma noite muito quente e muito húmida, deitei-e sobre a cama ficando apenas de slips. O calor estava de facto opressivo Puz-me de pé sobre o colchão e desenrosquei a lâmpada para apagar a luz. Fiquei numa espécie de vigília esperando pelo adormecer. Comecei então a sentir que havia algo físico e de tamanho médio, que se começava a deslocar sobre o meu torax, uma coisa que me parecia pegajosa. Que seria? Comecei a ficar em sobressalto mas não quis entrar em pânico. Pensei que poderia ser uma cobra, um sapo, uma tarântula grande. Eu tinha receio que um movimento brusco pudesse levar o corpo desconhecido a reagir e a defender-se, mordendo. Tinha de fazer qualquer coisa, não podia ficar naquela situação. Levantei então o meu braço direito e coloquei a mão em concha para dar um brusco impulso de expulsão a esse corpo estranho que me intrigava. Aproximei a mão do misterioso corpo e repentinamente desferi sobre ele um golpe repentino. Senti a palma da minha mão encostar-se a essa massa estranha durante uma fracção de segundos antes que ela se projectasse na parede. Levantei-me então de sopetão pondo-me de pé sobre o colchão tentando localizar a lâmpada para a enroscar. Quando a luz se acendeu tive ainda tempo de ver uma enorme ratazana a fugir pela abertura da porta. Já não consegui dormir e passei a noite numa desagradável vigília com um olho fechado e outro aberto. Aquela enorme ratazana subira certamente para o meu peito com o

propósito de me morder e de me roer algum pedaço de carne. Ouvi falar de casos de pessoas que passaram por situações idênticas a quem as ratazanas roeram parte das orelhas e dos lábios e que durante o sono não se apercebiam de que estavam a ser roídas. Assim que me levantei e pude tomar o café da manhã, parti do local para uma nova etapa da minha viagem comercial. A região em que eu estava a viajar era de facto muito atrasada, pois aconteceu que na próxima localidade em que pernoitei também não havia nenhuma hospedagem com quartos individuais disponíveis e tive de pernoitar num edifício muito parecido com um curral, e em que os quartos eram apenas espaços divididos por paredes de meia altura. A parte superior dessas instalações era formada por uma cobertura de colmo e havia um espaço sem parede, aberto e exposto ao ar livre. Em cada espaço havia duas camas de solteiro que ficavam completamente encostadas à parede e no meio das camas um espaço comum que ligava com a saída desse pequeno recinto e onde aos pés de cada cama existia um penico com tampa. Era um sítio muito propício à existência do terrível barbeiro, o maldito transmissor da doença de Chagas. Podem fazer uma pequena ideia da tranquilidade com que me deitei nessa noite. Quando acordei, ainda antes do nascer do sol, espreguicei-me na cama. Nesse preciso momento, uma pequena rã verde saltou da cabeceira para os pés da cama e ficou agarrada à parede. Tinha dormido com aquele singular companhia. À medida que progredia na minha viagem e que tomava conhecimento do que viria a ser a minha vida de vendedor de peças de automóveis, e os sacrifícios que me estariam reservados comecei a pensar que não tinha estômago para os suportar por muito tempo. Eu dava um grande apreço ao convívio familiar e habituara-me a ter sempre a minha família perto de mim. Meu filho Pedro estava muito jovem ainda, e eu sentia imenso a sua falta e tudo o que eu mais desejava era vê-lo crescer a meu lado. Minha esposa, com a minha ausência, ficava condenada a viver uma vida sem muito sentido e sem grande segurança. As cartas que dela recebia não me animavam nada e chegou ao ponto de me dizer que não queria continuar a viver assim e que, se eu não voltasse para S.Paulo, um dia chegaria a casa e já não os encontraria, nem a ela nem ao Pedro. Todos estesfactos reunidos começaram a fazer-me perceber que o dinheiro, não era, de modo algum, por si só, capaz de me tornar feliz. Reconheci então que o melhor seria regressar a S.Paulo e procurar um emprego que me permitisse ficar ao lado da família. Decidi então escrever uma carta ao Sr. António Ramos revelando-lhe a intenção de desistir do lugar. António Ramos respondeu a essa carta de imediato, dizendo-me que em S.Paulo, a empresa não tinha a possibilidade de me encaixar e que S.Paulo era uma cidade difícil onde eu nunca arranjaria

- 32 -nada que se parecesse com aquilo que estava a fazer e onde conseguisse ganhar tanto dinheiro.Esqueci-me de relatar aqui um episódio passado também na minha 2ªa viagem, que me mostrou nitidamente os riscos que qualquer vendedor, girando pelo sertão de Minas Gerais poderia correr de um momento para o outro. Os vendedores da Ginjo levavam sempre consigo um razoável número de duplicatas para efectuar a sua cobrança. Em regiões menos desenvolvidas onde não existia rede bancária os vendedores não podiam transferir o dinheiro para a sede e tinham de o conservar em seu poder. Por vezes havia uma razoável acumulação de valores na posse do viajante. Esse dinheiro era um poderoso chamariz que expunha os vendedores ao risco de assalto. Eu não ignorava esse risco. Na 2ª viagem que fiz e em que me foram entregues várias duplicatas, comprei um revolver de alarme e elaborei um plano mental para me poder defender em caso de assalto. Esse revolver de alarme funcionava com cargas explosivas que reproduziam em perfeição o estampido de um tiro de revolver verdadeiro. O meu pano era este: Se alguma vez eu visse atravessada na estrada uma abatize de árvore, ou grandes pedras barrando a passagem, pararia, abandonaria o carro, entraria na mata e começaria a disparar, para fazer saber ao assaltante que também estava armado e com isso dissuadi-lo de me perseguir. Esperaria então, escondido, o tempo que fosse necessário para que o assaltante fizesse a pilhagem da viatura, e logo que tudo acalmasse completamente, retomaria a minha marcha. Felizmente nunca precisei de por este plano em execução.

Visitei um dia uma localidade de nome Salinas, situada na divisa do Estado da Bahia. Atendi aí um cliente e quando acabei de o fazer eram apenas 15:00h. Na localidade não existia mais nenhuma casa de peças e não existia também nenhuma hospedaria. Perguntei a um residente a que distância ficava a próxima localidade. Respondeu-me que a uns 50 km. O dia só morreria por volta das 6:30h. Pensei então que conseguiria, fácil e confortavelmente chegar a esse local ainda antes do pôr do sol. Meti-me então a caminho mas depressa me apercebi que tinha acabado de me envolver numa perigosa aventura. De todas as estradas que percorri durante a minha 2ª viagem nunca encontrei nada de tão ruim. A estrada era uma verdadeira picada que deixara de ter assistência e o mato invadira grande parte da estrada. O leito da estrada era de cascalho de quartzo branco e solto, muito cheio de arestas cortantes. A estrada era extremamente estreita e não consentia a inversão de marcha. Não havia nenhuma outra solução senão a de prosseguir para a frente, galgando os buracos e o cascalho. Os pneus da brasília levantavam o cascalho que batia violentamente na chaparia que protegia a parte inferior da viatura. O carro não progredia. A velocidade máxima que eu conseguia obter não passaria de uns 5 km hora. Quando a noite caiu eu ainda estava a lutar dentro deste verdadeiro túnel verde. Não podia fazer a mínima ideia do local onde me encontrava e quantos quilómetros teria percorrido. Só havia uma coisa que realmente me preocupava era atingir a povoação que me tinham indicado. Mergulhado numa mata agressiva, rodeado de uma escuridão total, a minha preocupação verdadeira era assinalar uma luz que me pudesse guiar e tranquilizar. Estava prestes a cair em desespero e comecei a sentir medo. Eu tinha perfeita consciência que o medo se poderia transformar em pânico e então tudo se complicaria imenso. Tive grande receio de que se me acabasse o combustível, e que de um momento para o outro me rebentassem os pneus pela extrema fricção que estavam a sofrer no cascalho. A minha sensação era a de que estava a subir um morro, mas que não era capaz de chegar ao topo. Desejava a todo o custo atingir o ponto mais alto da estrada e poder lançar uma vista circundante, que detetasse qualquer sinal de luz, por mais débil que fosse. Nunca senti tanto a sensação de me encontrar só, perdido e abandonado numa noite eterna.A minha alma estava gritando por socorro sem saber de onde me poderia vir esse socorro. Andei ainda um pouco mais, talvez no topo do próprio monte. A estrada estava agora bastante molhada e começaram a aparecer de onde em onde poças de água. Naquela zona do morro havia chovido fortemente. Voltei a apagar as luzes e a perscrutar a noite em meu derredor. De súbito descobri uma luz a grande distância. O meu coração deu um salto de alegria e a minha

- 33 -esperança começou a regressar. Comecei então a perceber que a estrada mudara de configuração, que já não era um leito de cascalho, mas um declive suave e constante.Fui descendo sempre com o motor engatado em 2ª até atingir a base do morro.Aqui esperava-me uma surpresa desagradável. Vi que ao longo da estrada se deslocava um cavaleiro com uma arma a tiracolo. Quem poderia ser àquela hora da noite e o que faria naquele lugar solitário? A primeira sensação que me ocorreu foi a de que fosse um assaltante. E se fosse de facto um assaltante estaria ali à minha espera para me assaltar e roubar. Senti, confesso-o, um verdadeiro aperto intestinal. O inventário das minhas possibilidades de escapar a esse assalto era totalmente fraco. Aceitei prontamente a ideia de não resistir e de entregar ao assaltante todo o dinheiro que tinha, das duplicatas cobradas aos clientes. Apesar de todas essas dramáticas conjeturas, interiormente nunca deixei de clamar pela proteção divina. A medida que a distância entre mim e o misterioso cavaleiro se encurtava, o meu coração batia mais descompassadamente. Quando me encontrava a uns 30 ou 40 metros, vi que a arma que trazia atravessada nos ombros era uma caçadeira de dois canos. No momento em que estava a procurar avaliar melhor a estranha personagem, reparei que a seu lado caminhava uma mulher com uma criança no regaço. Era um sinal positivo e encorajador. Podia tratar-se de um vaqueiro que acompasse a mulher e o filho, por razões que poderiam estar relacionadas com a saúde da criança. O meu dever seria abrandar a minha marcha e perguntar a esse homem se precisava de ajuda. Mas eu estava tão amedrontado e tão

rebentado que não tive coragem para o fazer, e o que eu quis mesmo foi sair dali para fora o mais depressa possível. Nessa noite consegui hospedar-me com alguma dificuldade e desconforto numa pequena hospedaria. Acordei com o corpo todo moído dos saltos que dei no carro e procurei recompor as minhas forças com a ajuda de café. Depois de abastecer e vender uns calços de travões e umas velas de ignição para motor, parti para alcançar a via rápida (rodovia nacional Rio/Bahia já a caminho de S.Paulo. A minha ânsia de chegar a S.Paulo era de tal natureza que eu passei a contar todos os marcos quilométricos que me separavam de S.Paulo. A partir desse momento já não parei mais senão para comer e para dormir. Nessa altura da minha 2ª viagem eu já tinha decidido deixar a actividade de vendedor de peças e acessórios de auto e regressar para junto dos meus.Antes de encerrar o relato de alguns episódios da viagem desejo regressar ao início dessa minha atividade para registar aqui o que se passou quando viajei de autocarro ao encontro do Nelson para ser introduzido na minha área comercial. Parti de S.Paulo para me ir encontrar com o Nelson em Caratinga. Parti de S.Paulo ao cair da tarde. O autocarro só partiu de S.Paulo depois das 18:00h da tarde, já a luz natural estava começando a diminuir. Estava um dia nublado e chuvoso. A chuva acompanhou-nos sempre durante todo o percurso da Dutra, até chegarmos a Volta Redonda. O autocarro só penetrou, noite feita, no Estado de Minas Gerais.A chuva acompanhou-nos sempre. A primeira paragem que fizemos foi num restaurante da estrada. Foi a paragem programada para a janta. Os restaurantes de estrada apresentavam várias opções alimentares e procuravam atender a todas as bolsas. Havia passageiros (poucos) que jantavam no restaurante, mas a maioria comia aos balcões onde havia uma grande abundância de alimentos, sanduiches de queijo, sandes mistas, sandes de carne assada, pão com chouriço, uma enorme variedade de salgados com preços mais moderados, tudo regado a cerveja, vinho e café com leite. À hora fixada pelo condutor do autocarro voltámos a partir. O meu próximo destino era Caratinga onde teria de me encontrar com o Nelson. A nossa chegada a Caratinha estava programada para as primeiras horas do dia seguinte. Nunca consegui conciliar o sono em viagens de autocarro e apenas consegui dormitar ligeiramente. A viagem, embora em boa rodovia não estava a ser confortável, porque o autocarro também o não era. Num determinado momento do nosso percurso alguém, na estrada, solicitou ao nosso autocarro que parasse. O motorista imobilizou o autocarro e saiu para ir falar com algumas pessoas que estavam reunidas na estrada a falar em voz alta. Quando voltou, voltaram também com ele quatro outras pessoas que arrastavam o corpo de uma pessoa

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corpulenta que pouco antes, fora vítima de um desastre rodoviário e que se encontrava inanimada e a sangrar da boca. Essa pessoa foi então colocada no corredor do auto carro para ser transportada para a localidade mais próxima para lhe prestarem socorro. Ela acabou por vir a morrer durante o trajeto, facto que bastante me impressionou. Acredito que por falta de comunicações e transporte imediato ela não tenha sido socorrida a tempo de a poderem salvar. Encontrei o Nelson numa lanchonete da estrada e a partir daí comecei a minha viagem de apresentação e aprendizagem. O Nelson tinha um vasto conhecimento da região e era um vendedor experiente que conhecia a mentalidade e as necessidades da clientela. Depois de algum tempo de observação cheguei à conclusão de que era muito inculto, muito imprevidente e meio trapalhão. Vendia para mostrar números, mas sem se preocupar muito com a segurança das suas vendas. Numa determinada localidade, fez uma venda exagerada a uma firma praticamente falida, que teve depois de vir a devolver toda essa mercadoria à Ginjo por não ter condições para a poder pagar. A partir desse momento o prestígio do Nelson como vendedor desceu bastante no conceito de António Ramos.Ao chegar a S.Paulo fui no dia seguinte procurar António Ramos para lhe confirmar que não desejava continuar a viajar para a Ginjo porque meu filho Pedro era uma criança muito frágil que sofria de muitos ataques de asma e isso tirava-me grande parte do ânimo para viajar. A

Ofélia também se sentia demasiado só em S.Paulo e a vida estava a tornar-se difícil tanto para ela como para mim. Não valia a pena estar a insistir em algo que nos tornava aos três infelizes.António Ramos teve alguma dificuldade em compreender a minha atitude, pois ele tinha apostado em mim fortemente, dando-me condições privilegiadas para poder triunfar e para poder ganhar muito dinheiro. Procurou até fazer com que eu mudasse de ideias, mas eu permaneci inflexível na minha decisão de não voltar a viajar. Na realidade o mercado de emprego em S.Paulo era muito difícil, porque a procura de viajantes ou vendedores era muito menor que a oferta. Em relação à viatura que a firma pusera ao meu serviço foi até muito gentil comigo, pois disse-me que a poderia conservar em meu poder até resolver o meu problema de transporte. Fui então obrigado pela minha nova situação, a adquirir uma viatura usada para poder trabalhar. Comprei por isso um fusca usado, direi até bastante usado, mas que satisfez completamente a minha necessidade de transporte. A partir daí comecei à procura de um novo emprego no ramo de vendas. Respondi a um anúncio de uma empresa atacadista que trabalhava na comercialização de equipamentos para o extenso mercado da restauração. Dada a imensa profusão de firmas existentes na cidade e no Estado de S.Paulo achei que seria uma boa aposta. A firma chamava-se JOVICE e o seu proprietário chamava-se João Vicente. Tive uma curta entrevista com o proprietário que logo me admitiu ao serviço. Fiz um estágio de adaptação ao negócio para me familiarizar com a mercadoria e depois lancei-me ao trabalho com entusiasmo. Depressa me apercebi que se tratava de um negócio bem diferente do das peças e acessórios de automóvel e onde não conseguiria ganhar tanto dinheiro. Todavia, o simples facto de não ter de viajar e de me ausentar de casa mais do que algumas horas, e de poder disfrutar do convívio permanente da Ofélia e do Pedro, já me compensava bastante. Com a minha presença diária em S.Paulo a Ofélia pôde arranjar um emprego de escritório e começar a trabalhar. A minha presença permanente em casa tranquilizou-nos muito e passámos a acreditar mais no futuro. A minha ausência prolongadafizera da Ofélia uma verdadeira prisioneira do lar e tornara-a muito insegura. O Pedro também ganhou bastante com a minha presença em casa. Aos sábados e aos domingos saíamos sempre os dois ou os três, para ir à Praia e para visitar os parques da cidade. Para irmos à praia tínhamos de descer toda a Serra do Mar em direção à Baixada Santista, seguindo então algumas vezes para Ubatuba e Caraguatatuba onde existiam praias deliciosas. Essas visitas à praia ocupavam-nos todo o dia solar e por essa razão tínhamos de almoçar nos restaurantes das praias. No regresso chegávamos a casa à noite, completamente estafados. O Pedro começou a frequentar uma escola infantil na Heitor Penteado, situada uns 100 metros à frente do prédio em que morávamos e que se chamava Toquinho de Gente. No prédio onde

- 35 -morávamos, no 9º andar, habitava também uma família com um menino da idade do nosso filho, com quem depressa o Pedro se relacionou e que passaram a brincar juntos.O mercado da restauração embora fosse muito vasto era também muito visitado por vendedores da concorrência e vender não era assim tão fácil como se podia imaginar. Inicialmente cometi o erro de pensar que conseguiria uma situação privilegiada junto dos proprietários de lanchonetes e restaurantes de nacionalidade portuguesa. Isso não passou de um erro grosseiro. Solidariedade e compras eram duas coisas totalmente diversas e o mercado não era sensível a esse tipo de situações. Na verdade eu passei a ter mais dificuldades financeiras por realizar um volume de vendas bem menor, mas em contra partida sentia-me confiante e feliz por ter garantida a presença constante dos meus familiares. Sempre fui da opinião, que sejam quais forem as circunstâncias com que tivermos de nos deparar uma família deve lutar sempre junta para poder ser verdadeiramente feliz. Deus quer que na nossa vida a união familiar seja um facto essencial e creio bem que abençoa todas as famílias que lutam para conservar esse tipo de união.À medida que o tempo decorria eu ia conseguindo melhorar e ampliar os meus conhecimentos comerciais e passara também a conhecer melhor os produtos que vendia e a forma de os promover mais aos olhos dos clientes.

No prédio em que habitávamos conhecemos uma família cristã que também estivera em Angola e que era formada por dois casais, o Alberto Silva e a Isabel pais de três crianças, o Carlos e a Rute que tinham um filho apenas. Lembro-me que o filho do Carlos era uma criança bastante frágil e com problemas de saúde. Os filhos do Alberto e da Isabel eram crianças perfeitamente sadias e sem problemas. Relacionámo-nos muito de perto com esses casais.Todos eles eram cristãos evangélicos e frequentavam uma Igreja da Assembleia de Deus que ficava localizada numa zona de S.Paulo, chamada Casa Verde.

- 36 -O Alberto e a Isabel costumavam convidar-nos com frequência a comparecermos a um culto de louvor no Domingo para ouvirmos a Palavra de Deus. Num determinado domingo aceitei o desafio e fui visitar a Igreja para conhecer o pastor Delfim. O pastor Delfim era senhor de um grande dom de palavra e, nesse domingo, a sua pregação teve por base a Parábola do Filho Pródigo. (Lucas 15.11-32) Não me recordo da data exata em que visitei a igreja o que reputo de uma falha grave, pois foi o dia em que aceitei o Senhor e em que nasci de novo. A partir dessa data comecei a frequentar a igreja com regularidade, aos domingos. Reconheço que desde essa altura passei por uma grande transformação, que desagradou bastante a minha mulher e que deu origem a muitos problemas de relacionamento entre nós. Ela visitou a igreja algumas vezes mas nunca tomou uma decisão que a levasse a aceitar Cristo como Senhor. A situação entristecia-me bastante e acabava de alguma forma por refletir-se também no Pedro. Ao fim de um certo tempo de frequência na igreja o pastor Delfim convidou-me a matricular-me no Instituto Bíblico e encorajou-me a tornar-me pastor. Não aceitei o seu convite por me parecer que não teria vocação para me poder tornar pastor e também porque isso certamente não me seria possível sem que minha mulher se tivesse também convertido. A Igreja da Casa Verde ainda ficava bastante longe do lugar onde nós habitávamos na Rua Heitor Penteado. A Igreja era frequentada por pessoas humildes daquela zona de S.Paulo e entre essas pessoas havia um numeroso grupo de irmãs que sempre falavam em línguas em voz alta, e que com frequência entravam num estado de excitação quase incontrolável, atirando-se ao chão em transe. Isso causava-me uma grande e desagradável impressão, pois eu via nisso uma forma de se quererem evidenciar e tornar notadas. Algum tempo depois tive a oportunidade de assistir a um culto numa igreja batista situada bem perto de minha casa. Gostei imenso da forma como esse culto decorreu, num ambiente muito espiritual e muito pacífico, bem diferente do ambiente da igreja da Casa Verde. Isso levou-me a tomar a decisão de passar a congregar nessa igreja Batista. A Igreja Baptista do Sumarézinho ficava situada na Rua Heitor Penteado a uns cem metros do bloco de apartamentos onde eu morava. Era pastoreada por um pastor americano muito simpático e talentoso que rapidamente me cativou. Chamava-se David Taylor e a sua família compunha-se de sua esposa Bárbara e por um casal de filhos ainda pequenos. Não era uma igreja grande pois teria no máximo umas sessenta almas. Na igreja eramos todos muito unidos. O pastor David fez um grande esforço para converter minha esposa, mas sem resultado. Minha esposa, não sei porque estranha razão, nunca foi tocada pelo Espírito Santo. A partir da minha conversão, a minha atitude para com a vida e o meu comportamento, sofreram uma profunda alteração. Creio que esse facto não agradou nada a minha mulher, para quem a vida teria certamente um significado bem diferente do que passara a ter para mim. A partir da minha conversão o nosso relacionamento piorou grandemente. Só Deus sabe até que ponto isso poderá ter tido grande influência nas decisões que depois tive de tomar, inclusive a minha decisão de regressar a Portugal. O último emprego que tive antes de regressar a Portugal foi

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como vendedor de equipamento para a industria da restauração. Não posso deixar de mencionar nestas minhas memórias um episódio que me marcou profundamente. A minha falta de experiência na venda desse tipo de equipamento, começou a afetar profundamente a minha situação económica. Houve até um período em que durante algum tempo, as minhas vendas caíram a pique e eu fiquei muito angustiado e deprimido. O episódio que passo agora a relatar teve, acredito bem, uma intervenção Divina. Passou-se tudo num dia em que saí de casa para vender, sem saber para que zona de S.Paulo me havia de dirigir. Ao passar à frente do grande hipermercado “Eldorado”, numa avenida cujo nome já não consigo recordar e ao ver tantas pessoas a entrarem e a saírem carregando sacos e pacotes de compras, senti um enorme aperto na garganta, porque eu não tinha dinheiro para poder comprar fosse o que fosse. Parei o carro um pouco à frente e com os olhos marejados de lágrimas dirigi uma súplica a Deus: ainda me lembro bem da forma como o fiz, foi desta forma: Senhor não sei para onde possa ir para vender alguma coisa, por favor ajuda-me a encontrar um cliente. Guia-me Tu, leva-me Tu pela tua mão. Quando terminei a minha súplica tinha os olhos repletos de lágrimas. Retomei a marcha, mas senti em mim a presença duma estranha força que me passou a orientar:- enveredei por uma estrada estreita, numa zona populosa onde, depois de ter rodado por cerca de umas centenas de metros deparei com um edifício comprido de um andar apenas. Nesse edifício, com o aspeto de armazém abandonado, havia uma porta estreita aberta. Houve então uma voz interior que me aconselhou a entrar por essa porta. Obedeci; o espaço estava quase vazio, mas ao fundo havia uma mesa e nela estava um homem debruçado a revirar folhas de papel. Cumprimentei e pedi licença para entrar. Ouvi a pessoa dizer-me: entre, entre. Entrei e aproximei-me da criatura. Disse-lhe então, olhe desculpe esta minha intromissão. Sinceramente até nem sei bem porque entrei aqui. Eu sou vendedor de equipamento para o comércio da restauração e ando a fazer uma prospeção comercial nesta zona. Interessante, respondeu-me a criatura, fez muito bem em entrar e a sua visita até me parece bastante providencial. Eu tenciono montar um restaurante e churrasqueira neste espaço e ainda não comprei equipamento nenhum. Tenho portanto muito interesse em ver o que pode fornecer-me e certamente vou passar-lhe uma encomenda, se os seus preços me convierem. Olhe, respondi, eu trabalho para uma firma que costuma bater a concorrência em preços. Podemos então ver o que o Senhor aí tem? Resumindo e encurtando para não ser longo demais, nesse dia fiz umas vendas espetaculares, a tal ponto que o dono da empresa me felicitou e confessou até que nunca tinha tido um vendedor que lhe tivesse vendido tanto equipamento. Disse-me ainda uma coisa importante, que nunca esqueci: Olha, vais ganhar umas comissões mais que suficientes para poderes comprar um carro novo.

Seria muito ingrato da minha parte supor que essas vendas espetaculares, não teriam nada a ver com a intervenção de um poder sobrenatural relacionado com o meu angustioso pedido a Deus. Foi assim, que, de repente, a minha economia se equilibrou.Nesta minha autobiografia não quero deixar de mencionar que trabalhei também durante uns meses para uma empresa de S.Paulo de nome Aviquei. Foi sem dúvida uma das minhas mais infelizes experiências no Brasil. O dono desta empresa, de nome Queiroz, de nacionalidade portuguesa, era o modelo perfeito de um vigarista bem acabado. Sem qualquer experiência que o recomendasse, lançou-se descaradamente no fabrico artesanal de fittings para circuitos hidráulicos. Organizou catálogos pomposos, onde exibia uma grande diversidade de equipamento para todos os circuitos hidráulicos, que no Brasil constituíam um mercado vastíssimo e em permanente desenvolvimento. Depois de uns meses de fraca preparação passei a fazer parte do departamento de vendas da empresa, que na verdade não tinha mais do que um vendedor. Algum tempo depois da minha entrada para a firma esse vendedor

- 38 -despediu-se. Fiquei então como único vendedor a empresa. Um ou dois meses depois da minha entrada, o Sr. Queiroz surpreendeu-me ao fazer-me a comunicação de que eu iria ser nomeado chefe do departamento vendas. Mas como, Sr.Queiroz, o Sr. não tem vendedores, pois o único que tinha despediu-se. Eu não posso ser chefe porque não há ninguém para chefiar e para além do mais, não conheço o mercado e nem sequer conheço bem os materiais que o Sr. fabrica. Isso não faz mal, porque depressa aprendes.Munido de um imenso sortido de catálogos fui catapultado de um dia para o outro no grande mercado industrial de S.Paulo. As principais industrias brasileiras de automóveis e de equipamento automóvel situavam-se em S.Bernardo do Campo. A Volkswagen tinha a sua grande fábrica nesta importante área do Estado de S.Paulo. S.Bernardo do Campo fazia parte integrante do grande ABC, um verdadeiro triângulo da industria pesada do Brasil. Entrar na Volkswagen em S.Bernardo do Campo não era tarefa fácil, mas eu consegui ultrapassar essa dificuldade. No equipamento que eu oferecia para os circuitos hidráulicos figuravam as câmaras de compressão, que serviam para estabilizar as pressões hidráulicas nos circuitos hidráulicos, evitando quedas e picos de pressão. Estas câmaras deviam receber uma manutenção quase permanente. A Volkswagen tinha uma quantidade enorme de câmaras hidráulicas nas suas cadeias de montagem e muitas dessas câmaras estavam a precisar de manutenção. Quando os visitei ficaram muito satisfeitos pois estavam com grande dificuldade em conseguir quem lhes fizesse a manutenção das câmaras hidráulicas e na semana seguinte mandaram um camião carregado de câmaras para serem reparadas. Foi nessa altura que descobri que a Aviquei não tinha capacidade para efectuar essas reparações. As câmaras ficaram retidas na Aviquei por mais de 3 semanas sem serem reparadas e chateada com essa atitude a Volks mandou recolher as câmaras.Esta foi apenas uma das muitas figuras tristes porque a empresa passou e eu também.Um dos artigos a que o Queiroz dava um ênfase especial era a mangueira de teflon para altas pressões. Disse-me muitas vezes que tinha o exclusivo desse tipo de mangueira. Mais tarde vim a descobrir que essa sua afirmação não passava de uma grosseira mentira. Foi através de uma visita que fiz ao gabinete técnico que estava ligado ao projeto da grande barragem de Itaupu, que pude constatar que a Aviquei não possuía nenhum exclusivo de mangueira de teflon. Quando visitei o Gabinete de Engenharia encarregado do projeto de Itaupu os Engºs com quem contatei, manifestaram-me um grande interesse em adquirir uma grande quantidade de mangueira para poder instalar nas comportas da barragem. Deram-nos então duas opções à escolha: ou a Aviquei encomendava a mangueira e a faturava depois a eles diretamente, ou, caso preferisse, apresentaria uma fatura proforma CIF com a qual eles obteriam a licença de importação e fariam eles mesmos a importação direta da mangueira. Regressei a S.Paulo empolgado com o tipo de negócio que íamos ter a oportunidade de realizar e o Sr. Queiroz, que certamente nem sequer sonhava com um negócio de tal dimensão felicitou-me pelo sucesso do meu trabalho. A partir desse momento ficou o assunto inteiramente nas suas mãos. Passaram-se cerca de dois meses e não foi dirigida ao fabricante da mangueira nenhuma consulta nem nenhuma pedido de fatura proforma. Soube disso através da Rosana que me confidenciava algumas informações. Resolvi então questionar o Sr. Queiroz sobre o assunto, de uma forma que não comprometesse a Rosana. E assim, numa certa ocasião, entrei no seu gabinete e perguntei-lhe se já havia alguma resposta do fabricante da mangueira, para a barragem de Itaupu. Respondeu-me que ainda não tinha feito nenhuma consulta ao fabricante. Fiquei espantado com a resposta. Perguntei-lhe então porquê, e ele com um estranho sangue frio respondeu-me que eu era um novato no Brasil e não sabia avaliar riscos. Achei a resposta totalmente descabida e disse-lhe que não estava a perceber. Acrescentou então que ele não queria correr o risco de fazer uma encomenda tão volumosa e acabar por ficar com a mangueira em casa. Desculpe, mas não entendo, disse-lhe eu com um ar de espanto. Que risco correria a firma em solicitar ao fornecedor uma fatura proforma em nome do Gabinete Técnico que dirigia o projeto da barragem? Respondeu-me com muito má cara, que não tinha que me dar explicações nenhumas sobre o assunto.

- 39 -Não foi preciso mais nada para que eu tirasse uma conclusão sobre o assunto. O negócio estava completamente perdido. A partir desse momento concluí que a Aviquei era dirigida por um aldrabão e que, portanto era uma empresa que não me interessava.A Rosana, a única empregada de escritório que a firma tinha, que era também uma pessoa que tinha saído de Angola durante a guerra colonial e que me considerava bastante, dava-me sempre, à revelia, cópias de todas as faturas e por elas eu sabia qual era o valor das minhas comissões.Eu já trabalhava na Aviquei havia uns cinco meses e nunca me tinham pago comissões de nada. Decidi então interpelar o Sr. Queiroz sobre o pagamento das minhas comissões.Deu-me a seguinte resposta: Olha, numa das próximas sextas feiras da parte da tarde, vens mais cedo para a firma e falas com o Amauri (o Amauri era o guarda livros) que rapidamente te fará um apanhado das comissões e tas pagará.Baseado nestas instruções decidi fazê-lo logo na próxima sexta feira da semana seguinte.Nesse dia regressei à firma por volta das quatro horas da tarde. Deveriam ser uns cinco horas da tarde quando o patrão chegou. Ao ver-me no corredor perguntou-me porque tinha regressado tão cedo, revelando grande falta de memória. Olhe Sr. Queiroz, hoje é sexta feira e cheguei mais cedo para tratar das minhas comissões como me recomendou. Nada me respondeu, pôs os olhos no chão e seguiu para o seu gabinete. Não se teriam passado ainda uns vinte minutos, veio ter comigo e disse-me: preciso de te falar, vem comigo. Segui-o para a sua sala de reuniões. Sentámo-nos ambos à mesa e teve esta estranha conversa: Olha tenho uma coisa muito importante para te dizer: Tu és o melhor vendedor que eu tive até hoje mas os nossos feitios não se dão e eu chamei-te para te dizer que te vou despedir. Amanhã já não precisas de vir trabalhar. Vou mandar o Amaury pagar-te todos os teus direitos trabalhistas.Dei-lhe a seguinte resposta: Olhe Sr. Queiroz, sabe porque é que os nossos feitios não se dão?Muito simplesmente por isto, porque eu quero receber as minhas comissões e porque o Senhor não mas quer pagar.A partir desse dia deixei a Aviquei que poucas ou nenhumas saudades me deixou.Depois de todas estas experiências frustrantes recordei-me dos bons tempos que passei na Rodésia. No fundo eu continuava a sentir fortemente o apelo de África. Apesar de toda a incerteza política em que a Rodésia e a África do Sul se encontravam envolvidas, eu tinha muitas saudades do Continente Africano. Pensei então em tirar um curso profissional que me pudesse ajudar a emigrar para a África do Sul. Inscrevi-me na Escola Profissional Urubatan para tirar um curso prático de electricidade civil, que abrangia conhecimentos sobre montagens industriais e que me qualificava como Eletricista Instalador e técnico de Manutenção.O curso constava de lições teóricas e de lições práticas. Terminei o curso no dia 08 de Setembro de 1980 com a classificação final de 80. A classificação máxima era de 100. Munido do certificado que a Escola Profissional Urubatan me passou enviei um pedido de Emigração para a República da África do Sul. A resposta do Departamento de Emigração da África do Sul demorou meses a chegar e não me concedeu a autorização para poder emigrar para aquele país. Não sei a razão, porque não me explicaram o motivo porque não aprovaram o meu pedido. Nessa altura a República da África do Sul estava em luta com o ANC, e prestava apoio militar à Rodésia de Yan Smith. Essa situação viria a terminar algum tempo mais tarde, porqueas Nações Unidas estavam declaradamente ao lado dos nacionalistas do ANC e queriam terminar com o domínio branco na África do Sul e abolir o apartheid. Neste meio tempo, Yan Smith tentava a todo o custo através de negociações internas com os políticos africanos, salvar a independência da Rodésia, procurando manter os direitos dos rodesianos brancos, latifundiários agrícolas, que eram em boa verdade os verdadeiros obreiros da independência económica do país. Smith, desejava construir um governo plurirracial, garantindo a presença no Parlamento de uma certa quantidade de deputados europeus. Para o conseguir procurou o apoio de uma figura popular da Zanu, o bispo shona Abel Muzorewa.Nesta altura a Zanu tinha intensificado a sua luta contra os brancos, e estes tinham perdido o apoio da República Sul Africana e as pressões diplomáticas da ONU eram cada vez mais fortes.

Ness altura a liderança dos nacionalistas da ZANU, passou para as mãos de Roberto Mugabe, um líder extremista que exigia a independência do Zimbabué e que pretendia excluir os europeus rodesianos da nacionalidade zimbabuana. Os shonas, o grupo étnico mais numeroso e mais influente do Zimbabué, apoiava maioritariamente Roberto Mugabe, que se comprometera com o seu movimento político a espoliar os europeus de todos os seus bens e a distribui-los aos africanos. Esta foi, sem dúvida, a promessa aliciante que virou do avesso toda a África, porque, bem no fundo, os africanos mais não pretendiam do que se apoderar de todos os bens dos europeus, considerando-se legítimos donos de tudo o que lhes pertencia.Face à grande alteração geral do panorama político da África, acabei por desistir do meu regresso ao continente Africano que tanto amava.Abandonei então definitivamente a ideia de regressar a África. Não me posso nunca esquecer, que segundo um critério da lei portuguesa fui considerado como branco de segunda e que, embora tivesse nascido em Angola, nunca seria um cidadão angolano de pleno direito e passaria a ser considerado um angolano de segunda. No Zimbabué seria sempre um estrangeiro conotado com o execrável fascismo português. O risco de vir a ser expulso mais tarde do Zimbabué, destituído de todos os bens e direitos era mais do que 70% provável e eu não queria de forma alguma corrê-lo. Suspendi então todas as iniciativas para regressar a África.A inflação no Brasil era um processo permanente que nos fazia sentir muito inseguros e que me amedrontava bastante. O nosso futuro no Brasil teria de se sujeitar a um dilema preocupante. Ficar e aceitar a situação com todas as suas imprevisíveis consequências, ou procurar emigrar de novo para um país mais estável e mais organizado. Minha esposa, nesse período da nossa vida, encontrava-se empregada numa excelente empresa multinacional, onde se sentia plenamente satisfeita e onde auferia um bom salário. No meu caso particular, que não tinha nada de satisfatório, o problema era totalmente diferente. Eu já tinha passado por várias experiências, sem que nenhuma delas me agradasse e compensasse verdadeiramente. No fundo eu não passava de um free lancer independente, sujeito às comissões que auferisse e às contingências de mercado. Nessa altura eu encontrava-me a trabalhar com uma empresa atacadista no ramo de peças e acessórios de automóveis, apoiado na experiência que adquirira cimo vendedor da Ginjo. Era amigo de um dos seus sócios principais, beneficiando da sua simpatia, e operava no vasto mercado de S.Paulo, mas, em boa verdade, não estrava satisfeito com os resultados obtidos. A empresa, de nome Diancar, não tinha nem de perto nem de longe a importância e dimensão da Ginjo, mas ofereceu-me em contrapartida a possibilidade de trabalhar dentro de S.Paulo. Isso permitia-me ficar junto do Pedro e da Ofélia. A ideia de ter de permanecer para sempre no Brasil sujeitando-me à instabilidade do mercado brasileiro sem um emprego estável e promissor levou-me a pensar no regresso à Europa, de onde talvez conseguisse emigrar para o Canadá ou para a Austrália, pelo facto de dominar razoavelmente a língua inglesa dada a minha experiência de vendedor na Rodésia. Uma razão forte me encorajava a regressar a Portugal, voltar ao convívio dos meus filhos do 1º casamento, que se encontravam todos a viver em Portugal. A Marília, era dos três a que me dera dois netos que eu nem sequer conhecia. Meu filho Luís ia casar-se com uma moça portuguesa e trabalhava nessa altura na Madeira, numa empresa de nome Tecnovia, na construção de estradas. A minha filha mais nova, de nome Cíntia, já me tinha brindado com uma neta (a Liliana) e vivia então em Aveiro. Pensando bem, achei que o melhor para mim, seria estar perto de meus filhos e netos. Esse foi, um motivo forte que me levou a decidir pelo regresso a Portugal. Na altura em que declarei ao meu amigo Federico o intento de regressar a Portugal, ele procurou desencorajar-me dizendo-me que a Diancar estava a contar comigo para montar uma filial em Curitiba aonde eu seria o gerente. Agradeci-lhe a oferta dessa gerência, mas disse-lhe que a minha decisão já estava tomada e que era tarde demais para a alterar. Iniciei então todos os preparativos para regressarmos a Portugal e marquei passagens para viajarmos para Lisboa a bordo do paquete Funchal.No início do mês de Março de 1981 realizámos todos os preparativos para o embarque. O meu velho amigo António Tenreiro, já falecido, fez questão de nos transportar para Santos, onde embarcámos em meados de Março. Nesse mesmo barco, viajaram também dois casais de

angolanos e o meu velho amigo de Nova Lisboa Adalberto Guedes Pinto. A viagem decorreu sem problemas até atingirmos o Arquipélago de Cabo Verde. Ao atingirmos a latitude de Cabo Verde, desencadeou-se então uma forte tempestade no Atlântico, tempestade que permaneceu durante vários dias e que sacudiu violentamente o navio criando uma grande inquietação aos passageiros e aos tripulantes. Foram para mim dias de um imenso mal estar, pois passei o tempo terrivelmente agoniado e a vomitar, pois nunca me dei bem embarcado e não conseguia comer coisa alguma. Já nada tinha para vomitar e por fim já vomitava apenas saliva ensanguentada. Eu ansiava desesperadamente por voltar a colocar os meus pés em terra firme e apesar do mau tempo e da presença constante de um céu de chumbo, os meus olhos perscrutavam o horizonte distante tentando descortinar terra. Quando, o navio se aproximou mais da ilha da Madeira, uma pequena gaivota veio pousar num dos mastros da embarcação. O meu coração pulou de alegria por se tratar de um sinal que nos anunciava que o Funchal já não deveria estar muito longe de nós. Efetivamente, no dia seguinte a tempestade tinha cessado e o sol dissipara a bruma que pairava sobre as ondas. Ao longe, recortados no horizonte, podiam ver-se os contornos da Ilha da Madeira. Fui então sacudido por um verdadeiro frémito de entusiasmo. Mesmo assim continuava tonto e enjoado. Era uma hora da tarde quando o navio atracou no Funchal. Meu filho Luís Jorge, que fora avisado da minha chegada encontrava-se já à minha espera no cais. Ao desembarcar eu parecia flutuar ainda sobre as ondas. Essa sensação só se dissipou umas duas horas depois de ter almoçado. Meu filho Luís levou-nos a almoçar num restaurante típico madeirense onde saboreei uma gostosa posta de peixe espada preto grelhada, um prato muito típico da Madeira. Depois do almoço fomos dar uma volta até à Camacha onde comprámos uma mobília de sala de verga. Ao fim da tarde o nosso navio zarpou a caminho de Lisboa. A tempestade já tinha passado mas o mar continuava agitado. Depois de uns tormentosos 17 dias no mar, jurei a mim mesmo que não voltaria a viajar de barco.Ao chegar a Portugal rapidamente constatei que o país estava mergulhado em crise e ainda não tinha sarado das grandes feridas que a descolonização do seu Ultramar lhe causara. Rapidamente me apercebi que talvez tivesse cometido o maior erro da minha vida. Para não me atormentar desviei esse mau pensamento da cabeça. Afinal eu regressara a Portugal, não com a ideia de ficar, mas de descansar um pouco e emigrar depois para um outro país da Europa, ou talvez para o Canadá, para a Austrália ou para a Nova Zelândia. Ao chegarmos ao porto de Lisboa tínhamos à nossa espera as minhas filhas Marília e Cíntia e o irmão da Ofélia.Ficámos alojados temporariamente em casa da minha filha Marília. Foi uma situação passageira e infeliz, não por ela, mas pelo marido, que só veio a terminar quando adquirimos casa própria no Barreiro. Adquirir, nesse momento, uma casa própria não era nada fácil. A construção estava praticamente parada e a aquisição de uma casa requeria algumas disponibilidades financeiras.O comprador não podia ir habitar a casa sem que primeiro tivesse feito a escritura de compra e para isso tinha de dar uma entrada de 10, 20, ou 30% do valor do imóvel. A razão que nos levou a adquirir um apartamento no Concelho do Barreiro, uma zona vermelha, foi por termos descoberto uma urbanização da Compave em Santo António da Charneca, onde se podiam adquirir os imóveis sem ter de dar qualquer entrada e que consentia a ocupação imediata da habitação mal se assinasse um compromisso de compra. Fomos habitar o apartamento em Março de 1981.A lei portuguesa consentia a qualquer retornado do Ultramar o direito de importar uma viatura sem o pagamento do Imposto de importação. Desloquei-me por isso a Andorra, onde adquiri uma viatura Citroen em 2ª mão, (4 CV) tipo carrinha fechada, na qual viajei de regresso a Portugal. Era uma viatura extremamente cómoda, de consumo muito baixo, e que satisfez durante muito tempo as nossas necessidades de transporte. Uns dias depois de ter chegado a Portugal, um amigo meu, António Reis, que também se refugiara no Brasil em 1975 e que viajou comigo a bordo do Funchal, de regresso a Portugal, deu-me uma informação muito útil.Disse-me que contactara um português de nome Alberto Queiroz, que estava a preparar o lançamento no país de uma firma de consórcio automóvel e deu-me todas as indicações para o

poder encontrar, incluindo o número do seu telefone. A informação caiu como sopa no mel e como eu andava à procura de um emprego e já tinha trabalhado em consórcio automóvel, emS.Paulo, na Remaza, achei que isso me poderia interessar grandemente. No dia seguinte fui a Lisboa às instalações da futura empresa, para ver do que na realidade se tratava. Em boa hora o fiz porque fui recebido pelo sócio principal da firma, que ficou encantado com a minha visita por saber que eu já tinha sido vendedor de consórcio. Era uma pessoa bastante simpática e comunicativa. Nesse momento a firma estava no início e o Sr. Queiroz estava a trabalhar para ultrapassar as burocracias oficiais de início de atividade e para desenvolver o contrato de venda que iria ser usado comercialmente. Nessa altura a firma era formada por dois sócios apenas e o segundo sócio estava ainda a trabalhar no Brasil, onde desempenhava as funções de piloto aviador de uma empresa particular. Soube também que era o homem do dinheiro.A partir dessa entrevista eu fiquei empregado e comecei a trabalhar no dia seguinte.Tem piada que alguns dias antes, numa conversa ocasional, eu dissera ao António Reis, que tinha analisado a situação do mercado automóvel português e que, dada a grande dificuldade em se conseguir financiamento bancário para a compra dos automóveis, me parecia ser uma excelente altura para se implantar o negócio do Consórcio em Portugal. Os bancos financiavam a aquisição de propriedades urbanas, de casa própria e de algumas operações comerciais, mas não financiavam a aquisição de automóveis. Os automóveis tinham de ser adquiridos a pronto pagamento ou só com fortes instrumentos de garantia. Nessa altura havia uma enorme escassez de automóveis novos e a frota automóvel estava grandemente envelhecida. Quando o Consórcio Lider saíu para vender, o negócio ainda era grande novidade em Portugal e as vendas eram fáceis de realizar. Lembro-me perfeitamente que o carro do ano era o Ford Escort 1.1 e toda a gente sonhava possuir um Ford Escort. Dada a experiência que eu adquirira no Brasil no negócio de consórcio, Alberto Queiroz delegou em mim a formação e preparação das equipes de venda. As primeiras equipes de venda foram todas formadas e treinadas por mim.O negócio prosperou rapidamente, principalmente quando o Sr. Queiroz fechou um contrato de fornecimento de um concessionário Ford, que garantiu à Lider o fornecimento dos Escorts necessários para as primeiras assembleias.Para quem não conhece o negócio do consórcio eu aproveito a oportunidade para explicar a essência desse negócio. O consórcio é nada mais nada menos do que uma venda em grupo. Os grupos que o Consórcio Lider formava constavam de 120 participantes cada. Os grupos tinham a duração de 60 meses e estavam planeados para durarem 60 meses, ou seja 5 anos. Ao fim de 5 anos os grupos tinham de estar concluídos e tinham de contemplar os 60 participantes. A administração tinha a obrigação de contemplar 2 participantes por mês, um por sorteio e outro por lance. O sorteio era feito numa esfera armilar onde eram colocadas as bolas com os números dos participantes não contemplados. Os participantes que pretendessem antecipar a obtenção da sua viatura e não quisessem estar sujeitos a sorteio recorriam aos lances. O lance que oferecesse o maior número de mensalidades seria sempre o lance vencedor. Os saldos de caixa de cada grupo, determinavam a possibilidade ou não de poder ser contemplado mais de um participante por lance, por mês. Bastava para isso que o saldo apresentasse, por acumulação do valor das mensalidades, uma importância que pudesse garantir a compra de mais de uma viatura.Cada grupo possuía um instrumento de compensação, a que se chamava, fundo de reserva, e que servia para compensar o saldo desse grupo caso se não viesse a verificar a liquidação de todas as mensalidades. O número máximo de mensalidades consentidas em falta era de duas.O não pagamento da 3ª mensalidade determinava a exclusão do participante e a sua substituição por outro participante que pagasse todas as mensalidades em dívida. Durante as primeiras assembleias da Lider, houve grupos que chegaram a entregar aos participantes 3 viaturas por lance.O sucesso das vendas em grupo suscitou o rápido aparecimento de novas empresas de Consórcio, algumas das quais não souberam honrar as suas obrigações e com isso começaram a descredibilizar o negócio.

A minha ascensão na empresa foi verdadeiramente meteórica e acompanhou a firme e rápida ascensão da Lider. No final do 2º mês de actividade eu já tinha ascendido a chefe de vendas, e formador de vendas. A empresa começou a expandir-se para poder atender à grande procura de posições e teve de montar filiais nas principais cidades do país. A primeira a criar-se foi na cidade do Porto, a segunda em Faro, a terceira em Coimbra, a quarta em Braga, e a última em Aveiro. A estrutura social da empresa dilatou-se bastante, para permitir o aumento de capital da Lider. No final a Lider já contava com 6 sócios e teve de comprar instalações próprias. Para além das filiais que indiquei acima foram ainda nomeados em algumas áreas regionais do país vários agentes. A formação de todo o pessoal de vendas ficou a meu cargo. Os novos sócios da empresa nada ou quase nada percebiam de consórcio, mas foram aprendendo com o exercício dos seus cargos. A Lider ao crescer, cresceram também os seus problemas e, apesar de todas as precauções, uma parte da sua estrutura comercial e administrativa foi contaminada. Os problemas que foram progressivamente surgindo minaram a harmonia social da empresa. Alberto Queiroz, único e verdadeiro técnico de consórcio começou a ter desentendimentos com o sócio com quem organizara a empresa, desentendimentos que acabaram por ser explorados por outros sócios com quem não se relacionava bem. Não sei porque estranha razão decidiu abandonar o cargo que exercia na Lider em Lisboa para, quase num ímpeto mal equacionado, ir montar um outro consórcio em Madrid, sem ter feito qualquer estudo prévio do mercado espanhol. A sua iniciativa foi um verdadeiro fracasso. O mercado espanhol não tinha nem de perto nem de longe as características do mercado português. Os bancos espanhóis financiavam a compra de automóveis e os vendedores espanhóis não trabalhavam à comissão. Quando Alberto Queiroz virou costas ao seu cargo na Lider teve uma longa conversa comigo e pediu-me para assumir a administração de consórcio na Lider. Disse-lhe que não me interessava entrar em conflito com os seus outros sócios, e que eles tinham o direito próprio de escolher a pessoa que o deveria substituir. Queiroz era um bom técnico de consórcio, mas era sumamente casmurro e nunca dava o braço a torcer. Partiu para Espanha determinado a não voltar. Algo de grave se terá passado entre ele e os sócios para que tivesse tomado essa atitude. Nunca o cheguei a saber, porque ele nunca mo disse.Nessa altura a minha posição na Lider foi abalada totalmente porque fiquei praticamente abandonado no mato sem cachorro. A única pessoa que ainda me respeitava por reconhecer o muito que eu tinha feito e lutado pelo lançamento da Empresa e pelo seu desenvolvimento foi o Fernando Subtil que me conhecia bem. Em consequência do que se passou e da hostilidade que os sócios alimentavam por Alberto Queiroz, eu passei a ser persona não grata para todos eles e a simpatia que o Fernando me dedicava não conseguia evitar que eu fosse considerado um alvo a abater. A única coisa que evitava que se desfizessem de mim era o facto de saberem que eu tinha um grande conhecimento de consórcio e gozar da simpatia de quase todos os gerentes das filiais e dos agentes espalhados pelas áreas regionais.Tudo isto me começou a abalar psicologicamente e aos poucos fui dominado por um esgotamento de nervos e por uma enorme depressão nervosa. Passei 23 dias sem conseguir dormir por ter percebido que estava metido numa camisa de onze varas.Tive de recorrer a um neurologista para me conseguir recompor.Algo se passou nessa altura que, sendo contra mim, me ajudou a recuperar a saúde nervosa.Existia na Lider um sub gerente ainda novo, chamado F.Santos, mas que reconhecidamente não gostava nada de trabalhar e que conseguira ganhar a simpatia do Fernando Subtil por lhe ter proporcionado um aconchego sexual com uma das empregadas dos serviços administrativos.Essa empregada madeirense, alvo da cobiça sexual do Fernando, era por sinal muito jeitosa, e mantinha estreita amizade com uma outra moça que secretariava um dos sócios da empresa e que andava de namoro com o F.Santos. Davam-se ambas muito bem e eram confidentes mútuas. À hora de almoço saíam todos para almoçarem juntos. Para pagar o favor ao F.Santos, o Fernando, sem sequer me dizer coisa alguma, resolveu promove-lo a gerente de vendas. Como a gerência de consórcio me pertencera sempre a mim, entendi que estava a ser substituído. Questionei o Fernando sobre o assunto e ele meio embaraçado disse-me que eu

estava esgotado e doente e que precisava de me tratar e de descansar. Como eu reconhecia que a minha posição na Lider não tinha o apoio de nenhum dos sócios restantes, disse-lhe que o melhor era eu desenvolver o meu trabalho fora de Lisboa, ao nível das filiais e das delegações e passar uma temporada no exterior da empresa. Foi isso que comecei a fazer por ter consciência que era o melhor que tinha a fazer para recuperar a minha saúde nervosa.Numa visita que tive a oportunidade de realizar a um agente regional da Lider descobri algo curioso e muito importante. O agente contou-me com muita indignação que era participante de um grupo de consórcio e que entregara ao Sr.F. Santos uma importância em dinheiro para que ele fizesse um lance em seu nome. Já se tinha passado bastante tempo e ele não sabia de nada, porque o Sr. F.S. nada mais lhe dissera sobre o assunto. Percebi de imediato que o F.S. tinha ficado com o dinheiro. Quando regressei a Lisboa fui ter com o Fernando Subtil e contei-lhe o que tinha apurado. Pouco tempo depois soube que a Lider tinha colocado um anúncio num jornal diário para contratar um gerente comercial.Os desentendimentos entre os sócios foram aumentando e a sociedade desfez-se. Alberto Queiroz foi um dos sócios que saíu. O novo gerente comercial, Nicolau Santos, era uma pessoa com grande formação comercial e fez tudo o que era humanamente possível para aumentar as vendas da Lider, mas o desentendimento social que passou a reinar na empresa minou todo o seu esforço e as vendas caíram grandemente. Quando me convenci que a Lider tinha o seu futuro comercial ameaçado e soube que começara a ter problemas de liquidez, comecei a pensar seriamente em organizar um Consórcio diferente, utilizando toda a energia e saber acumulados pela minha experiência no mercado português. Essa foi uma ideia que nasceu e que alimentei na minha mente, durante as minhas viagens e os meus repousos. Decidi que teria de ser um consórcio com características diferentes das que existiam já no mercado concorrente, características inéditas.Falei com alguns dos vendedores da Lider que se encontravam profundamente insatisfeitos com o que se estava a passar na empresa e com agentes confiáveis e corri com coragem o risco de ser traído por algum deles. Pensei que o ideal seria criar um consórcio de marca. Mas qual a marca que poderia prestar-se a colaborar nesse projecto. Havia uma marca japonesa muito popular que tinha um projeto inovador para expandir as suas vendas de viaturas. Essa marca era o popular Toyota e o seu concessionário para Portugal era a empresa Salvador Caetano. A marca japonesa Toyota era uma marca muito conceituada e popular, mas ainda pouco disseminada em Portugal. Em Angola, no tempo em que eu vivia em Luanda as viaturas de turismo e as viaturas comerciais da Toyota eram muito procuradas, pela sua robustez e pelas suas características. Pensei então em interessar a Toyota no sistema de vendas em consórcio e fiz um telefonema ao gerente da empresa em Lisboa, solicitando-lhe uma entrevista. Expus-lhe resumidamente a minha ideia prometendo que lhe exporia tudo em detalhe quando nos encontrássemos. Visitei-o alguns dias depois, no seu gabinete no Prior Velho, meticulosamente preparado com projeções de vendas e expus-lhe com entusiasmo e convicção a verdadeira revolução de vendas que o sistema iria permitir-lhes criar. A minha proposta foi acolhida com entusiasmo e apoiada pelo gerente, mas a decisão final teria de ser da administração da empresa, e a filha de Salvador Caetano desempenhava um papel preponderante em todas as decisões da Administração.Entretanto eu fui dando todos os passos preparatórios para a formação do novo consórcio e consegui que grande parte dos melhores vendedores da Lider se dispusesse a vir trabalhar na nova firma que tínhamos decidido fundar. Não obstante a tarefa da administração de grupos na Lider ter deixado de estar a meu cargo e eu estivesse apenas a exercer as minhas funções na área comercial externa, o meu relacionamento com o novo Gerente comercial era muito cordial. Conhecia em pormenor os problemas que a Administração da Lider lhe estava a causar e ele desabafava o seu descontentamento comigo. Nessa altura o meu feeling mandava-me ser cauteloso, pois se a Administração da Lider viesse a desconfiar que eu estava a preparar-me para lançar um novo consórcio e a arrastar comigo grande parte do seu departamento comercial, a minha continuidade na empresa seria impossível e eu seria despedido na hora. Num dos seus desabafos o gerente disse-me que se encontrasse uma oportunidade de trabalhar com outro tipo de gente, nesse mesmo ramo, sairia de imediato da firma. No dia em

que o gerente me disse isso, eu senti que poderia estar perante uma verdadeira armadilha. Interessava-me bastante cativar o gerente, por ser um elemento de grande valor que poderia agregar ao nosso projeto, mas tinha de ser prudente, porque ele poderia não estar a ser sincero e deitar-nos tudo a perder. Mas fui bastante ousado e com as devidas precauções continuei a sondar o gerente. Havia na Lider um bom vendedor natural de Angola como eu, que eu conhecia desde os bancos da escola e que estava decidido a participar do nosso projeto na qualidade de sócio. Chamava-se Norberto Guedes e viera para Portugal na grande diáspora, fugido à guerra civil de Angola. Era natural do Planalto do Huambo, de uma povoação que se situava ao longo da linha férrea do Caminho de Ferro de Benguela. Era da Vila Nova ou da Bela Vista, não tenho bem a certeza de qual, mas era dessa zona. O Norberto estava minuciosamente a par de tudo e era um elemento confiável com quem eu partilhava o que a par e passo se ia passando.O nome comercial da Firma e o nome do Consórcio já estavam escolhidos, e o contrato de participação já tinha sido redigido. O Consórcio iria ter o nome de Supergrupos. Escolhemos para emblema da firma um trevo de 4 folhas pelo facto de, em certa medida, o consórcio ser para os participantes um negócio de sorte. Os três sócios principais teriam uma participação de capital igual,