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1 GENTE SINGULAR SOBRE O AUTOR Manuel Teixeira Gomes [1860-1941] Manuel Teixeira Gomes (Vila Nova de Portimão, 27 de maio de 1860 – Bougie, Argélia, 18 de outubro de 1941) foi o sétimo presidente da Primeira República Portuguesa, entre 6 de outubro de 1923 e 11 de dezembro de 1925. Filho de José Libânio Gomes e Maria da Glória Teixeira Gomes, foi educado pelos pais, até entrar no Colégio de São Luís Gonzaga, em Portimão. Aos dez anos foi enviado para o Seminário Maior de Coimbra e posteriormente matriculou-se em Medicina, na Universidade de Coimbra. Cedo desistiu do curso, contrariando a vontade do pai. Muda-se então para Lisboa, onde pertence ao círculo intelectual de Fialho de Almeida e João de Deus. Mais tarde, conhecerá outros vultos importantes da cultura literária da época, como Marcelino Mesquita, Gomes Leal e António Nobre. O apoio do pai, que decide continuar a custear a vida boémia do filho, permite a Teixeira Gomes desenvolver uma forte tendência para as artes, nomeadamente na literatura, não deixando contudo de admirar a escultura e a pintura, tornando-se amigo de mestres como Columbano Bordalo Pinheiro ou Marques de Oliveira. Fixado no Porto, aí conheceu Sampaio Bruno, iniciando a sua colaboração em revistas e jornais, entre eles O Primeiro de Janeiro e a Folha Nova. Depois de se reconciliar com a família, viaja pela Europa, Norte de África e Próximo Oriente, em representação comercial para negociar os produtos agrícolas produzidos pelas propriedades do pai (frutos secos, nomeadamente amêndoa e figo), o que alarga consideravelmente os seus horizontes culturais. Republicano convicto, vem a exercer, após o 5 de Outubro de 1910, o cargo de ministro plenipotenciário de Portugal em Inglaterra. A 11 de outubro de 1911 apresenta as suas credenciais ao rei Jorge V do Reino Unido, em Londres, onde se encontrava a família real portuguesa no exílio. Eleito Presidente da República a 6 de agosto de 1923, viria a demitir-se das suas funções a 11 de dezembro de 1925, num contexto de enorme perturbação política e social. A sua vontade em dedicar-se exclusivamente à obra literária foi a sua justificação oficial para a renúncia. A 17 de dezembro embarca no paquete holandês “Zeus” rumo a Oran, na Argélia, num auto- -exílio voluntário, sempre em oposição ao salazarismo. Morre em 1941 e só em outubro de 1950 os seus restos mortais voltaram a Portugal, numa cerimónia que veio a tornar-se provavelmente na mais controversa manifestação popular, ocorrida na já então cidade de Portimão, nos tempos do salazarismo. No funeral estiveram

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GENTE SINGULAR SOBRE O AUTOR • Manuel Teixeira Gomes [1860-1941] Manuel Teixeira Gomes (Vila Nova de Portimão, 27 de maio de 1860 – Bougie, Argélia, 18 de outubro de 1941) foi o sétimo presidente da Primeira República Portuguesa, entre 6 de outubro de 1923 e 11 de dezembro de 1925. Filho de José Libânio Gomes e Maria da Glória Teixeira Gomes, foi educado pelos pais, até entrar no Colégio de São Luís Gonzaga, em Portimão. Aos dez anos foi enviado para o Seminário Maior de Coimbra e posteriormente matriculou-se em Medicina, na Universidade de Coimbra. Cedo desistiu do curso, contrariando a vontade do pai. Muda-se então para Lisboa, onde pertence ao círculo intelectual de Fialho de Almeida e João de Deus. Mais tarde, conhecerá outros vultos importantes da cultura literária da época, como Marcelino Mesquita, Gomes Leal e António Nobre. O apoio do pai, que decide continuar a custear a vida boémia do filho, permite a Teixeira Gomes desenvolver uma forte tendência para as artes, nomeadamente na literatura, não deixando contudo de admirar a escultura e a pintura, tornando-se amigo de mestres como Columbano Bordalo Pinheiro ou Marques de Oliveira. Fixado no Porto, aí conheceu Sampaio Bruno, iniciando a sua colaboração em revistas e jornais, entre eles O Primeiro de Janeiro e a Folha Nova. Depois de se reconciliar com a família, viaja pela Europa, Norte de África e Próximo Oriente, em representação comercial para negociar os produtos agrícolas produzidos pelas propriedades do pai (frutos secos, nomeadamente amêndoa e figo), o que alarga consideravelmente os seus horizontes culturais. Republicano convicto, vem a exercer, após o 5 de Outubro de 1910, o cargo de ministro plenipotenciário de Portugal em Inglaterra. A 11 de outubro de 1911 apresenta as suas credenciais ao rei Jorge V do Reino Unido, em Londres, onde se encontrava a família real portuguesa no exílio. Eleito Presidente da República a 6 de agosto de 1923, viria a demitir-se das suas funções a 11 de dezembro de 1925, num contexto de enorme perturbação política e social. A sua vontade em dedicar-se exclusivamente à obra literária foi a sua justificação oficial para a renúncia. A 17 de dezembro embarca no paquete holandês “Zeus” rumo a Oran, na Argélia, num auto- -exílio voluntário, sempre em oposição ao salazarismo. Morre em 1941 e só em outubro de 1950 os seus restos mortais voltaram a Portugal, numa cerimónia que veio a tornar-se provavelmente na mais controversa manifestação popular, ocorrida na já então cidade de Portimão, nos tempos do salazarismo. No funeral estiveram

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presentes as suas duas filhas, Ana Rosa Teixeira Gomes Calapez e Maria Manuela Teixeira Gomes Pearce de Azevedo.

in http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Teixeira_Gomes

Como Teófilo, também Teixeira Gomes marcou mais a literatura do que a política. Aos 23 anos sente-se mais social-democrata. A sua vida política ao serviço da República começa em 1911 e prolonga-se até 1918, no espinhoso cargo de Ministro dos Estrangeiros em Londres. Em circunstâncias adversas, visto as verbas disponíveis para o seu cargo serem escassas, Manuel Teixeira Gomes paga do seu bolso a um secretário inglês para o ajudar nas tarefas quotidianas. Fazer com que a nossa velha aliada reconhecesse a jovem e ainda pouco estável República não era tarefa fácil, mesmo para um homem de grande cultura como Manuel Teixeira Comes. Isto porque a família real britânica se encontrava ligada por laços familiares e amizade à última rainha portuguesa, D. Amélia, e ao último rei, seu filho, D. Manuel II, então exilados no palácio de Richmond. Mas a simpatia e “charme” de Teixeira Gomes eram tais que, ao fim de muitos anos em Londres, já a família real o convidava para o palácio com toda a naturalidade. Esteve no Palácio de Balmoral, na Escócia, e sabe-se que a rainha Alexandra o convidou para lhe decorar o gabinete oriental do Palácio de Buckingham. Quando Sidónio Pais ocupa a Presidência, chama-o a Portugal e demite-o do cargo no início de 1918. Então Teixeira Gomes fixa-se novamente no Algarve, como administrador de propriedades. Toda a sua obra literária está repassada de figuras algarvias (é considerado o escritor do Algarve). A primeira namorada era de Ferragudo, personagens suas são de Aljezur ou Bensafrim, “Sabina Freire” é uma viúva de Portimão. De 1919 a 1923 voltará a ocupar o cargo de diplomata em Madrid e Londres. “Manuel Teixeira Comes é uma exceção no panorama dos presidentes da 1.ª República. Todas as noites jogava às cartas com o seu secretário. Quanto a mim acho-o um ‘Corto Maltese’ (com mais uns anos) que passa pelo Palácio de Belém até concluir que uma tarefa não era para ele. Diria: ‘A política longe de me oferecer encantos ou compensações converteu-se para mim, talvez por exagerada sensibilidade minha, num sacrifício inglório. Dia a dia vejo desfolhar, de uma imaginária jarra de cristal, as minhas ilusões políticas. Sinto uma necessidade, porventura fisiológica, de voltar às minhas preferências, às minhas cadeiras e aos meus livros.” (do prefácio do livro de Joaquim António Nunes Da Vida e da Obra de Teixeira, 1976) Resigna ao cargo em 1925 e parte para Bougie, na Argélia, que ele considerava “uma Sintra à beira-mar”.

in http://www.leme.pt/biografias/portugal/presidentes/gomes.html

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A sua obra é marcada pelo naturalismo e simbolismo e reflete sempre a presença de um contínuo prazer ou a sua busca como a chave para a felicidade dos mortais. Manuel Teixeira Gomes distinguiu-se como um visualista poderoso, exprimindo a paisagem com a mais sábia manipulação das cores. Teixeira Gomes simbolizava o republicanismo, a pluralidade política e a sua vida e obra não faziam de si um menino de coro. A mulher idealizada pela religião e pela moral durante a ditadura era contrariada pelo erotismo e sensualismo latentes de MTG, que não era nem moralista nem imoralista, mas amoralista. Segundo o próprio: “Uma das maiores virtudes do verdadeiro artista consiste na faculdade de exprimir os seus mais íntimos sentimentos sem receio de opinião pública nem dos preceitos da moral estabelecida”. Teve duas obras proibidas pelo Estado Novo: Novelas Eróticas (1934) e Maria Adelaide (1938). SOBRE A OBRA • Coletânea de contos com um título que deriva do seu texto mais cómico, surpreendente e excêntrico, Gente Singular é um baú de personagens e situações medíocres, extravagantes, ridículas, grotescas e fantásticas, descritas ora de forma naturalista, ora através de uma crítica mordaz (eivada de um humor sarcástico, negro ou puro) e “emolduradas”, por vezes, na caricatura. E 7, um dos símbolos numéricos da perfeição, foi o número de contos escolhido para abarcar com largueza e síntese este mosaico “anormal” tornado perfeito pelo pintor de paisagens físicas e humanas que é Manuel Teixeira Gomes. Apetece também dizer que verdadeiro romantismo em Gente Singular (a paixão cega do narrador pela femme fatale que é Leonor em “Jogos de Bolsa”, platónica n’”O Álbum” e doentia em “O Triste Fim do Major Tatibiate”) é mera coincidência. O que nos parece mais verosímil é o fascínio pelo lado grotesco dever-se, por um lado, como o próprio narrador (autodiegético) o afirma, à conceção de que “[…] o vício é, na arquitetura da sociologia, o grande encanto da vida quando, bem entendido, se pratique sem crápula” e de que “Sem arte, a volúpia é vulgar e a luxúria odiosa” (em “Sede de Sangue”), mas também e sobretudo porque estas histórias servem de metáfora a um Portugal agónico, através de um modus vivendi interesseiro ou demente da burguesia rica e gente “nobre” do seu Algarve (sem, contudo, esquecer as figuras endinheiradas de Amesterdão, que conhecera ao longo das suas viagens de negócios). Daí as críticas ao culto das aparências, às autoridades eclesiásticas, policiais e jornalísticas, entre outras, e o facto de a beleza da descrição da paisagem alternar com o humor e a corrosiva ironia. Senão, vejamos: “D.ª Joaquina Eustáquia Simões d’Aljezur” – e apesar de o narrador relativizar o conceito de loucura e até ao final do conto parecer ter dificuldade em ter uma opinião consistente acerca dela –, é uma protagonista singular, visto que suscita, simultaneamente, pena e repulsa. Representará ela todos os miseráveis e escravos de loucura no nosso país entregues a si mesmos?

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No conto “Jogos de Bolsa” far-se-á a alusão à perdição, secular e universal, dos homens causada pelas mulheres e pelo vício do jogo? Em “Gente Singular” as personagens não assumem a forma de caricatura de um povo que sofre de infantilismo, através sobretudo da figura de um dos mais destacados membros da sociedade como um padre, e supostamente responsável pelo bem espiritual coletivo? N’“O Álbum” parece que o interesse financeiro e individual, acima de tudo e de todos, faz com que o marido de Matilde permite que esta o traia… A história de “Sede de Sangue”, enredo inspirado em factos verídicos, parece relembrar- -nos as tragédias e segredos que o jornalismo oculta aos leitores por poderem constituir uma ameaça à “ordem pública” e, assim, todas as verdades ocultadas ou escamoteadas no país de então. Em “O Triste Fim do Major Tatibiate” a crítica ao clero faz-se não só porque tem amantes, mas porque não se coíbe de explorar até ao fundo a loucura do major no manicómio para ter motivo nos sermões de domingo. Assim se destapa a falta de vocação, baixeza e indignidade desta classe social. Coincidência ou não, a verdade é que o conto com o título assustador de “Profecia certa” prova como a infelicidade amorosa de uma pessoa destrói a sua vida e a daqueles que a rodeiam. E se o retrato sociológico, pela pena da literatura, deste país pequeno de tamanho e mentalidade pode deixar o leitor agoniado, a verdade é que o estilo portentosamente visualista (as imagens de Ruínas de Milreu, em Estói, a paisagem do barrocal de S. Brás, entre outras, são extraordinariamente coloridas e vivas), impressionista, sensualista e esteticizante (a vida, para o escritor, era um objeto de contemplação estética e a arte a fonte de emoções sensuais), irónico, de aversão pelo discurso moralizante e sempre longe de artifícios balofos, mas ansiando a exatidão do que é mais fiel ao venusto e ao grotesco (daí, por vezes, o uso de linguagem popular), despertam nele o desejo do extremo posto: a luz helénica (dos homens, da justiça e dos sítios) e um estilo de vida que permita fruir a beleza das suas paisagens.

Sónia Pereira [coord.] COMENTÁRIOS DO CLUBE • Por que é que esta obra é interessante? Porque, para além das razões já apontadas anteriormente, há escritores que crescem aos nossos olhos por certos aspetos das suas vidas e um viajante seduzido pela diferença como era Manuel Teixeira Gomes estimula a curiosidade do leitor sobre os impactos desses intercâmbios culturais na sua verve literária e visão acerca do seu país após o distanciamento físico e temporal face à pátria, permitindo compreendê-la melhor. Por outro lado, o facto de o escritor ter tido obra silenciada pela censura salazarista adensa a curiosidade e admiração pelo autor sensualista e criador literário de uma mulher como Sabina Freire (temperamental, hedonista, sedutora, emancipada, que recusa o puritanismo e a avareza), fazendo deste homem, que também foi Presidente da República, um espírito absolutamente revolucionário porque totalmente livre.

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Para além destes motivos ler MTG é embarcar numa viagem a uma outra época ao sabor de uma linguagem que traz consigo a marca do tempo, mas também e sobretudo uma mundividência rica e erudita, construída a partir de um léxico (feito de arcaísmos e casticismos) e sintaxe fora do comum numa prosa com ritmo, que nos mantém suspensos até ao fim, aproximando-a do leitor através de um discurso feito na 1.ª pessoa. Deliciosa é também a experiência verbal esteticizante que o seu estilo linguístico elegante nos oferece (e como mais nenhum outro autor português a conseguirá, aliás), dado que a sua escrita gera a transformação de pessoas e paisagens descritas em obras de arte, além de acolher generosamente referências ou comparações a mestres e obras de várias correntes.

Sónia Pereira [coord.] EXCERTOS ESCOLHIDOS • [paginação de acordo com a 4.ª edição da Bertrand, de 1988] Contos: “D.ª Joaquina Eustáquia Simões d’Aljezur” p.17 | Elogio à paisagem algarvia p.26 | Relativização do conceito de loucura “Jogos de Bolsa” p.45 | Cómico de situação com um arquimilionário ridículo “Gente Singular” pp. 77-78 | Velório caricatural ou o velório mais louco que possa imaginar… pp.90-91 | Belíssimas descrições de Estói e S. Brás ou a sua pintura com letras “O Álbum” p.107 | Descrição da sua paixão avassaladora por Matilde “Sede de Sangue” p.128 | Combinação de linguagem erudita e popular p.130 | Crítica às autoridades (policiais e jornalísticas) “O Triste Fim do Major Tatibiate” p.155 | Crítica ao clero “Profecia certa” p.164 | A assunção do grande erro amoroso da protagonista por ela própria p.172 | A vingança marital SUGESTÕES DIVERSAS • | Links úteis

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http://www.youtube.com/watch?v=GvzHsP5WTpU&feature=related [curta-metragem sobre a vida de MTG, vista pelos olhos das crianças] | Família de livros Há obras que pelos seus temas, personagens e ambientes conduzem o leitor a estabelecer relações entre elas. Estes diálogos intertextuais podem acontecer com textos mais ou menos afastados no tempo e no espaço e com géneros distintos. Acontece reconhecerem-se as obras matriarcas, as suas descendentes e, dentro destas, as verdadeiramente originais e as epigonais ou, numa linguagem comercial, as marcas brancas. Percursos possíveis a partir de Gente Singular: Explicações de Português, de Miguel Esteves Cardoso As Minhas Aventuras na República Portuguesa, de Miguel Esteves Cardoso A Arte de Ser Português, de Teixeira de Pascoaes As Farpas, de Ramalho Ortigão e Eça de Queirós Poema “Portugal”, de Jorge de Sousa Braga