BOLETIM CONTEÚDO Boletim JURÍDICO N. 690 · por políticos e cada voto dispensa fundamentação,...

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BOLETIM CONTEÚDO JURÍDICO N. 690

(Ano VIII)

(30/8/2016)

 

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BRASÍLIA ‐ 2016 

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Boletim Conteúdo Jurídico n. 690 de 30/08/2016 (ano VIII) ISSN

 ‐ 1984‐0454 

ConselhoEditorial 

COORDENADOR GERAL (DF/GO/ESP) - VALDINEI CORDEIRO COIMBRA: Fundador do Conteúdo Jurídico. Mestre em Direito Penal Internacional Universidade Granda/Espanha.

Coordenador do Direito Internacional (AM/Montreal/Canadá): SERGIMAR MARTINS DE ARAÚJO - Advogado com mais de 10 anos de experiência. Especialista em Direito Processual Civil Internacional. Professor universitário

Coordenador de Dir. Administrativo: FRANCISCO DE SALLES ALMEIDA MAFRA FILHO (MT): Doutor em Direito Administrativo pela UFMG.

Coordenador de Direito Tributário e Financeiro - KIYOSHI HARADA (SP): Advogado em São Paulo (SP). Especialista em Direito Tributário e em Direito Financeiro pela FADUSP.

Coordenador de Direito Penal - RODRIGO LARIZZATTI (DF/Argentina): Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino - UMSA.

País: Brasil. Cidade: Brasília – DF. Contato: [email protected] WWW.CONTEUDOJURIDICO.COM.BR

   

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SUMÁRIO

COLUNISTA DO DIA

 

30/08/2016 Leonardo Sarmento 

» Pós‐impeachment: Defesa de Dilma proporá golpe ao STF apostando em 

"conluio" caso a Presidente reste impichada?

ARTIGOS  

30/08/2016 André Beltrão Gadelha de Sá » Evolução histórica do aborto 

30/08/2016 Raquel Terezinha Araújo 

» Audiência de Custódia e sua importância para o Direito Penal brasileiro 

30/08/2016 Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior 

» Considerações acerca da tutela provisória de urgência de natureza antecipada requerida em 

caráter antecedente no Novo Código de Processo Civil 

30/08/2016 Alessandra Kruger 

» Diálogo das fontes e a proteção dos usuários de serviços públicos pelo Código de Defesa do 

Consumidor 

30/08/2016 Janaína Coutinho Mattos 

» O programa de governo eletrônico brasileiro e seus desafios 

30/08/2016 Antonio Braga da Silva Júnior 

» O (in)ativismo do Supremo Tribunal Federal quanto à definição da base de cálculo do adicional de 

insalubridade 

30/08/2016 Natécia Alves de Araújo 

» A unidade do ordenamento jurídico com base entendimento de Norberto Bobbio 

MONOGRAFIA 

30/08/2016 Marcelo Bicalho Lara » Crítica à criminalização da eutanásia e do suicídio assistido no Projeto de Lei do Senado nº 236/12

 

 

 

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PÓS-IMPEACHMENT: DEFESA DE DILMA PROPORÁ GOLPE AO STF APOSTANDO EM "CONLUIO" CASO A PRESIDENTE RESTE IMPICHADA?

LEONARDO SARMENTO: Advogado. Professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista do jornal Brasil 247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV.

No Brasil, grande parcela da doutrina segue a paradigmática

opinião do eminente PAULO BROSSARD que, na esteira da doutrina americana, reputa o instituto como possuidor de feição claramente política, originando-se de causas políticas, objetivando resultados políticos, bem como instaurado e julgado segundo critérios políticos, embora não exclua, obviamente, a utilização de critérios jurídicos.

Na mesma linha seguem juristas como THEMÍSTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI, que impele ser o impeachment um processo político, tanto no direito público americano, como no direito público brasileiro, não assumindo, por consequência, a conotação de processo penal ou de procedimento “quase-criminal”.

Já no julgamento do MS nº 20.941-DF, o Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE manifestou sua posição sobre o que chamou de “natureza primacialmente política do instituto”, considerando os atos praticados pelos órgãos do parlamento neste tipo de processo como, embora possuindo forma e eficácia jurisdicionais, essencialmente políticos.

Na decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no MS nº 21.623-DF, trata o processo de impeachment como político-penal. No mesmo writ, entretanto, o Ministro CELSO DE MELLO não só admitiu ao impeachment uma natureza eminentemente política,

 

 

 

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como reconheceu à sanção, neste tipo de processo, uma índole político-administrativa.

Embora ainda persista a divergência carreada de forte conveniência político-partidária, não nos aventa razoável sustentar qualquer tipo de natureza penal para o instituto do impeachment ou mesmo natureza mista, político-penal quando falamos do mérito e não do procedimento. Trata-se de julgamento no qual, embora utilizando critérios jurídicos (procedimento), é decidida com base puramente política a conveniência ou não de manter um governante no cargo. Basta que aquele tenha procedido, conforme o art. 9º, 7 da Lei nº 1079/50, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento, de modo incompatível com o decoro, a honra e a dignidade do cargo, o que permite ao julgador uma discricionariedade tão ampla que só pode ser decidida a punição com base em critérios políticos. Essa excessiva abrangência da discricionariedade valorativa do órgão político julgador indica, então, possuir o instituto, em nosso sistema jurídico, natureza eminentemente política.

Inconteste em decorrendo o processo de impeachment de um “juízo de conveniência”, político em sua essência, é que se costuma dizer que o Judiciário não pode interferir na decisão de mérito proferida pela Câmara dos Deputados e, depois, pelo Senado Federal. Admite, contudo, a atuação do Supremo Tribunal Federal no processo quando a adoção de regra procedimental violar direito de defesa do acusado, visto que o procedimento recebe expressa tutela constitucional revestindo-se de uma natureza judicialiforme.

Pois, apesar de todo exposto, apostará a defesa de Dilma na tentativa de se judicializar o mérito do processo de impedimento por meio de recurso (ação) perante o Supremo Tribunal Federal, na tentativa de subverter o comando constitucional e tergiversar com a essência constitucional do instituto do impedimento. Aposta a defesa da Presidente possuir maioria ideológico-partidária no STF comprometida com a causa do Partido dos Trabalhadores capaz de desfazer a decisão final do Senado Federal a partir da análise do mérito do processo de impedimento – a existência ou não do crime de responsabilidade.

 

 

 

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O processo de impedimento, talvez a medida mais democrática de previsão constitucional que nosso Diploma Maior de 1988 incorporara, possibilita que um governo que se desvia de seu sentido de probidade administrativa praticando crime de responsabilidade reste, a partir de um procedimento constitucional rígido, protagonizado pelos representantes eleitos pelo povo (Câmara dos Deputados – 1º juízo de admissibilidade e Senado Federal – 2º juízo de admissibilidade e julgamento do mérito) avalie a conveniência ou inconveniência de se manter no cargo mandatário acusado pelo cometimento do referido crime.

Representaria um GOLPE no Estado Democrático inadmitir a possibilidade da destituição de um governo eleito que se desvia do interesse público que o elegeu com fins de auto-locupletar-se apenas por haver em certo momento através do sufrágio alcançado uma momentânea maioria que o legitimava.

Quando o governo se desvia do interesse público que o elegeu e aquela maioria episódica alcançada pelo sufrágio não mais existe, quando a ampla maioria da sociedade clama por sua destituição, legitima-se a partir, que seus representantes eleitos para tal mister, que compõem o Congresso Nacional – Câmara e Senado – delibere sobre a perda dessa legitimidade superveniente, e caso entenda, segundo seu juízo político, pela ocorrência de crime de responsabilidade, delibere e decida pela retirada do mandato que perdera a legitimidade para sufragar o poder. A sociedade não pode ser escravizada por uma escolha infeliz (sufrágio), e com maiores razões quando dolosamente foi levada à erro de cognição quanto a realidade dos fatos.

Caso a Constituição de 1988 não previsse a possibilidade democrática de se discutir o impedimento possibilitaria que governos com o fulcro de alcançar seus fins eleitoreiros deliberadamente mentissem, levando a erro de cognição todo os eleitores que a eles confiram seus votos, possibilitando que em seus mandatos se desviassem do pacto social pré-eleitoral que motivou e legitimou seus sucessos nas urnas. Há sim um grau de fidúcia necessário entre os representantes eleitos e os representados que os elegeram que deve restar reafirmado durante todo o mandato.

 

 

 

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Nossa Constituição perfez todas as linhas principais do processo de impedimento e com a recepção da Lei 1079/50, a partir do filtro constitucional proposto pelo Supremo Tribunal Federal, formatou-se nos termos constitucionais cada passo do procedimento que deliberará e julgará se o mandatário praticou ou não crime de responsabilidade.

Insta inconteste que o procedimento deve obedecer todas as garantas constitucionais outorgadas à defesa do mandatário impichado, como o contraditório, a ampla defesa e o devido processo constitucional, quando procedimento possui sim características judicialiforme.

Quanto ao mérito, conforme já assentamos, haverá um juízo políitico-discricionário sobre a existência ou inexistência do crime de responsabilidade, e deste objetivo constitucional não se pode afastar, tanto não se trata de uma decisão judicial que é tomada por políticos e cada voto dispensa fundamentação, quando sabemos que as decisões judiciais hão sempre de ser fundamentadas.

Incabível nos termos constitucionais a tentativa de se judicializar o mérito do impedimento – o julgamento quanto à existência ou não do crime de responsabilidade – pois retirar-se-ia todo o formato democrático do instituto quando não mais os representantes do povo decidiriam sobre o mandato do impichado eleito pelo povo, mas ativistas de toga não eleitos pelo povo e sim indicado por governantes que funcionariam como déspotas, quando golpeariam a Constituição de 1988 retirando a competência constitucional do Poder Legislativo sobre a questão meritória que se faz explícita e inafastável.

O julgamento final de mérito muito se assemelha ao que temos no tribunal do júri, quando os jurados (juridicamente leigos) decidem pela existência ou inexistência de crime doloso contra a vida. No julgamento do impedimento representantes do poder legislativo eleitos pelo povo (juridicamente leigos) decidirão segundo os seus conhecimentos e convicções se o mandatário impichado praticou ou não crime de responsabilidade. Em ambos a presidência da sessão caberá a um juiz de toga, quando para o

 

 

 

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julgamento do impedimento caberá ao ministro do Supremo Tribunal Federal.

Por obvio, assim como no tribunal do júri que não se exige dos jurados juridicamente leigos conhecimento jurídico para que condenem ou absolvam o acusado pela prática de homicídio doloso contra a vida, no julgamento de impedimento também não se exige conhecimento jurídico para que se absolva ou condene o mandatário pela prática de crime de responsabilidade.

E qual seria a diferença? A diferença é clara e precisa. A decisão do tribunal do júri por tratar-se de matéria jurídico-penal – crime comum (crime doloso contra a vida) – admite, especificamente, expressamente, que se recorra da decisão ao tribunal (2ª instância), quando os senhores de toga poderão rever a decisão posta pelo júri. Diferentemente dispôs sabiamente o constituinte originário no tocante ao processo de impedimento, que não previu qualquer possibilidade recursal da decisão política de mérito do Senado Federal exatamente por não se tratar de um crime comum, mas uma das hipóteses de crime de responsabilidade elencada como ato político-funcional que atente contra a probidade da Administração, jamais atos tidos como de crime comum estranhos ao exercício político-funcional do mandatário.

Assim nestes termos, quando o mandatário praticar crime comum responderá perante a justiça competente e não perante o Senado Federal como no caso de pratica de crime de responsabilidade, respeitadas às imunidades constitucionais previstas. Percebe-se que o sistema constitucional é redondo, possui uma unidade coesa, complementar e que se identifica.

Vale dizer, exempli gratia, exatamente como ocorreu no caso Collor, que restou condenado pelo Senado Federal pelo crime de responsabilidade e tempos depois absolvido pelo Supremo Tribunal Federal no tocante ao crime comum que restara acusado.

Com isso, queremos firmar que “cada um no seu quadrado” há de se manter em respeito aos lindes da Constituição Federal de 1988. Inadmissível a ideia que apostaríamos no melhor estilo “Mãe

 

 

 

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Dináh” da propositura de recurso (ação) por parte da defesa da Presidente judicializando o mérito do impedimento perante o Supremo Tribunal Federal a partir de uma possível condenação do impichado perante o Senado Federal.

Tentativa neste talante é tentativa de GOLPE à Constituição Federal de 88, que previu o início e o fim do processo de impedimento, quando este tem seu fim com a condenação ou absolvição do impichado pelo Senado Federal, sob pena do princípio Democrático, do princípio Republicano, do princípio da Separação dos Poderes restarem absolutamente vilipendiados com a capacidade de se instaurar a maior crise entre os “Poderes da República” da história deste país e a assunção de um super poder acima dos demais e da própria Constituição, que seria um Poder Judiciário semelhante ao Poder Moderador encetado na Constituição de 1824, em particular o Supremo Tribunal Federal absolutamente sem freios, absoluto por foca divina. Para assuntos que não são de sua competência “menos é mais”, assim deve proceder um Judiciário parcimonioso e respeitador dos seus limites constitucionais

Pleito da defesa da presidente em caso de condenação pelo Senado Federal perante o Supremo Tribunal Federal deve ser inteiramente inadmitido de pronto pela mais absoluta incompetência constitucional do STF para apreciação da matéria. Da mesma forma, caso a Presidente reste absolvida pelo Senado Federal, mesma sorte deverá ter a demanda que porventura reste dirigida à Corte Maior que procure discutir o mérito de sua absolvição.

Retirar a decisão final do Senado Federal aceitando a judicialização do mérito sem que a Constituição tenha previsto referida possibilidade recursal (ou de ação) representaria um ativismo judicial odioso inteiramente sem base constitucional (processo descrito do início ao fim de CRFB/88 suplementado pela Lei 1079/50 já constitucionalmente filtrado pelo Supremo como dito), o que revelar-se-ia o mais factível exemplar de um torpe GOLPE perpetrado em conluio por quem tem por dever maior exatamente o de guarda da Constituição, assim o Supremo Tribunal Federal.

 

 

 

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Ao Supremo Tribunal Federal cabe a interpretação das normas constitucionais, mas jamais como o fito de interpretar lhe está autorizado o direito de criar normas que não existem. A função criativa normativa cabe ao Poder Legislativo competente, salvo exceções constitucionais expressas.

Notem que o constituinte sabiamente atentou-se ao equilíbrio necessário para que reste tomada da decisão final, quando permite ao Supremo Tribunal Federal (Judiciário) cuidar das garantias constitucionais no tocante a defesa do impichado (devido processo constitucional) na Câmara e no Senado no que atine ao procedimento. Assim STF promoveu uma filtragem constitucional de todo o procedimento de impedimento, atendendo aos freios e contrapesos para que se tome a melhor decisão democrática. Mas não apenas, pois conferiu também a Presidência do julgamento do impedimento no Senado Federal não ao Presidente do Senado, mas ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, que não influenciará no mérito do impedimento, mas assegurará que a defesa da Presidente reste amplamente tutelada.

Resta evocar que a única demanda que seria constitucionalmente viável posteriormente a decisão final do Senado Federal atenderia ao tocante do procedimento, caso não restasse assegurada a ampla defesa da Presidente, situação que nos aparenta quase lúdica tendo em vista, conforme já fizemos lembrar e reiteramos, todo o procedimento sofreu a filtragem constitucional do Supremo e o julgamento é presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal exatamente para colocar ordem nos trabalhos e fazer com que o due processo of law não reste mitigado, mas sim inteiramente assegurado.

No que toca ao mérito, caso provocado, ao Supremo apenas caberá o constitucional "silêncio eloquente" de se abster. Apesar de todo exposto confiamos que o melhor entendimento no que concerne ao único direito admissível, o respeito à Constituição, há de prevalecer entre os insignes ministros do Supremo Tribunal Federal.

Principais artigos da Constituição Federal de 1988 que se relacionam com a discussão:

 

 

 

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Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

I - a existência da União;

II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;

III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV - a segurança interna do País;

V - a probidade na administração;

VI - a lei orçamentária;

VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.

Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido ajulgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.

§ 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:

I - nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal;

II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.

§ 2º Se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o

 

 

 

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afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo.

§ 3º Enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão.

§ 4º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.

Enfim, que a supremacia da Constituição reste respeitada, que a supremacia popular a partir de uma decisão final dos representantes do povo reste assegurada, sem que fins ideológico-partidários ilegítimos tomem a Corte Maior e aniquilem o Estado Democrático de Direito por meio de um Golpe antidemocrático. Reiteramos para que não existam dúvidas: ao STF só é dado judicializar procedimento, jamais o mérito do impedimento - crime de responsabilidade, conforme discorremos à exaustão. Como o processo seguiu em exatos termos o procedimento que passou por prévio filtro do STF, não enxergamos como o STF possa pretender por lógicas razões tentar alterar o que previamente dispôs.

 

 

 

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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO ABORTO

ANDRÉ BELTRÃO GADELHA DE SÁ: advogado criminalista, especialista em Direito Penal, Processual Penal e Segurança Pública pela FESP/PB.

1. Atitude dos Primeiros Povos

A questão da vida intra-uterina como valor social perde-se na penumbra das eras. Evidencia-se preocupação com a preservação da integridade física do feto ou embrião nos documentos mais antigos da história humana na terra.

No decorrer da história, o aborto foi (e vem sendo) provocado por vários métodos diferentes e seus aspectos morais, éticos, legais e religiosos são objeto de intenso debate em diversas partes do mundo. É uma das práticas que mais revela diversidade em seu tratamento através do tempo. Em certas épocas e regiões não é punido. Noutras épocas e em outros povos, é duramente castigado, chegando mesmo à pena de morte.

Papiros, no Egito Antigo, revelaram práticas obstetrícias realizadas há mais de 5 mil anos. Por obstetrícia entenda-se uma série de regras a seguir durante a gravidez, visando o bem-estar físico tanto da mãe como do novo ser[1]. O Código de Hamurabi, de 1700 anos antes de Cristo, trazia em seu texto forte represália contra quem fizesse uma mulher abortar, sancionando penas que variavam desde multa em dinheiro, até mesmo à morte. O aborto neste código era um crime cometido contra a mulher e considerava-se o maior prejudicado o marido, já que a mulher não passava de uma propriedade sua.

 

 

 

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A bíblia, em seu livro de Êxodo (1000 anos antes de Cristo), assinalava que: “Se numa rixa entre dois homens, um bater numa mulher grávida de sorte que a faça abortar, mas fique viva, o culpado compensará o dano de acordo com aquilo que o marido lhe impuser e os juízes julgarem”. A maior preocupação era com o prejuízo econômico causado ao marido da gestante, reflexo do pensamento da época sobre os direitos (em verdade, a falta deles) das mulheres.

Destarte a existência de leis que salvaguardavam a integridade física da gestante na antiguidade, havia apenas, como preservação da integridade física da gestante e da vida intra-uterina, um mero reflexo, um direito condicionado a outro direito que se julgava mais relevante; no caso, o direito econômico do marido da vítima. Como consequência do pensamento reinante na época, não se encontrava neste período qualquer menção à respeito do aborto praticado pela própria gestante. Não havia previsão legislativa para o aborto auto-induzido. A proteção oferecida à vida intra-uterina contra um agente estranho, de um terceiro que queria lhe provocar qualquer dano, é bastante diferente daquela apresentada para protegê-lo da própria pessoa que o está gerindo. Esta última prática tornou-se alvo de debates somente séculos mais tarde, apesar da antropologia afirmar com convicção que o aborto é presente desde à Antiguidade.

Foi com renomados estudiosos Antigos, como Sócrates e Aristóteles, ao pregarem a utilidade do aborto como meio de contenção do aumento populacional, que este passou a ser visto sob outra ótica. Surpreendentemente, Aristóteles sugeria que fosse praticado o aborto antes que o feto tivesse recebido sentidos e vida, sem especificar, contudo, quando se daria este momento. É elementar que não o soubesse, pois com a tecnologia disponível na época se tornava impossível precisar tal momento[2]. Sócrates também admitia o aborto, sem outra justificativa que não a própria liberdade de opção pela interrupção da gravidez. Nelson Hungria considera Aristóteles como antecessor das ideias defendidas por Malthus muitos séculos após a existência do sábio grego.

 

 

 

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No período da República Romana, a prática abortiva foi considerada um ato imoral, todavia tendo larga utilização entre as mulheres, principalmente entre aquelas que se preocupavam com a aparência física, o que neste período histórico possuía uma grande importância no meio social (herança do tempo do Império). Assim sendo, cresceu monstruosamente o número de abortos a ponto dos legisladores passarem a considerá-lo um ato criminoso. Como consequência criou-se a Lei Cornélia, onde passava-se a punir a mulher casada com pena de morte caso esta consentisse com a prática abortiva. Em relação a quem praticasse o ato aplicava-se a mesma sanção, com a possibilidade de abrandamento caso a gestante não falecesse em decorrência das manobras abortivas nela praticadas[3]. Passou-se a criminalizar tal conduta apenas porque entendia-se que esta prática era uma ofensa ao direito do marido à prole esperada, não havendo intenção de resguardar a vida intra-uterina. O aborto não levantava problemas éticos e o direito era influenciado pela tese estóica do feto como pars viscerum matris (“parte das entranhas maternas”). Comprova-se tal idéia o fato da meretriz, mulher livre, poder livremente abortar – não havia o marido, sujeito do direito tutelado, para ser prejudicado. Ocorre que, segundo Maurizio Mori:

A mudança de mentalidade e costumes somente ocorreu com o cristianismo, que vetou categoricamente o aborto por considerá-lo contrário à soberania de Deus sobre a vida humana e sobre o processo generativo[4].

Foi com a adoção do cristianismo e com a agregação de seus valores pelas sociedades que o adotaram (a Romana inclusa), que inseriu-se a concepção que trazemos até hoje, de que o embrião/feto é uma vida e tem seu direito resguardado desde o momento de sua concepção. Como bem coloca Matielo, "Além do mais, sendo o homem criado à imagem e semelhança de Deus, não deveria então, ter o poder de vida e morte sobre os demais, atributo este exclusivamente do Criador".

 

 

 

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2. Da Primeira Represália ao Aborto Até a Primeira Tentativa Bem Sucedida de Legalizá-lo

Ao contrário do Velho e do Novo Testamento, os escritos dos cristãos são repletos de passagens que condenam o aborto. A primeira clara condenação do aborto na literatura cristã se encontra em um livro do século I, chamado Didaché, também conhecido como O Ensinamento dos Doze Apóstolos. O texto diz claramente:"Não matarás a criança por aborto. Não matarás aquilo que foi gerado". Foi a religião cristã que sedimentou a ideia de que a destruição da vida intra-uterina equivale a destruição de uma vida humana em formação.

            Curiosamente, havia uma distinção no direito canônico entre 

feto animado e inanimado, como nos revela Fragoso:

Admitia‐se que o feto passava a ter alma 40 a 80 

dias  após  a  concepção,  conforme  fosse  do  sexo 

masculino ou feminino. A distinção foi  repudiada por 

S. Basílio (374 d. C) (...). Somente com a Constituição 

Apostólica  Sedes,  de  Pio  IX,  em  1869,  aboliu‐se  a 

distinção  entre  o  feto  animado  e  o  inanimado, 

impondo‐se as mesmas penas em qualquer caso[5]  

            À luz do pensamento acima exposto, conforme a idade do feto, 

passar‐se‐ia a tipificar a destruição de sua vida como aborto, caso já fosse 

“animado”.  Se  este  fato  ainda  não  tivesse  ocorrido,  não  configuraria 

crime. Interessante notar que além de existir uma diferença temporal de 

40  dias  entre  a  “animação”  do  feto  masculino  e  do  feminino,  era 

impossível com a tecnologia da época revelar o sexo do feto antes de seu 

nascimento.  De  acordo  com  este  pensamento,  Santo  Agostinho  não 

considerava o aborto um assassinato, mas uma perversão[6]. 

            Após a queda do Império Romano é fácil reconhecer a imediata 

influência do pensamento cristão nas leis sobre o aborto. No século sexto 

os visigodos adotaram a pena de morte para quem quer que fornecesse 

drogas para provocar aborto. A mulher, se fosse escrava, seria punida por 

meio de castigos físicos; se fosse livre, seria degradada. No século seguinte 

 

 

 

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a pena de morte passou a valer tanto para o vendedor da droga como para 

o marido da gestante, caso este ordenasse ou consentisse no crime. 

            A condenação à prática abortiva durante a Idade Média variava 

muito de um lugar a outro. Às vezes aplicavam‐se sanções penais muito 

severas, outras vezes, muito brandas; em certos locais não havia sequer 

regulamentação, sendo a questão valorada de acordo com os costumes 

sociais; já em outros era prática corrente e aceita, pois se pensava que o 

feto se tornava humano somente após o nascimento. Em face do poder 

exercido  pela  Igreja,  que  trazia  consigo  um  direito  canônico 

extremamente repressivo e punitivo ao aborto, as nações que eram mais 

submissas às suas ideias ‐ o que envolvia aspectos não apenas ideológicos, 

mas  econômicos  e militares  ‐    puniam  tal  prática mais  severamente, 

enquanto as que não eram tão influenciadas tendiam de uma forma geral 

a serem mais brandas no tratamento a esta questão.  

            A situação relativa ao aborto tendeu para a homogeneidade 

apenas após a revolução francesa. A situação jurídica mudou radicalmente 

com a  lei  inglesa de 1803 que começou a punir severamente o aborto. 

Interdição análoga aconteceu com o Code Napoleón  (1804), que  foi de 

imediato  adotado  como modelo  por  outras  legislações  européias. Um 

processo similar se deu nos Estados Unidos, onde praticava‐se o aborto 

em todos os estágios da gravidez, passando em 1828, no estado de Nova 

York, a regulamentação e criminalização. Ocorre que, segundo Maurizio 

Mori: 

Nas primeiras décadas do  século  XIX, notou‐se 

que  qualquer  intervenção  cirúrgica  (inclusive  o 

aborto) era muito arriscada e  frequentemente  fatal 

para as pacientes. Graças a essa observação  clínica 

proibiu‐se, portanto, o aborto, assim como todas as 

outras  intervenções  cirúrgicas,  a  fim  de  proteger  a 

vida das mulheres[7]. 

            Percebe‐se que o combate à prática abortiva tinha como tutela 

apenas a saúde da gestante, numa tentativa de  limitá‐la e conter o alto 

índice  de mortalidade  que  a  acometia.  Não  se  tinha  como  finalidade 

última a preservação da integridade física intra‐uterina, mas apenas a da 

 

 

 

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gestante.  Pelo  princípio  da  precaução,  como  não  se  possuía  recursos 

tecnológicos  para  se  fazer  uma  intervenção  cirúrgica  com  baixo  risco, 

optou‐se por proibi‐la para evitar danos maiores a quem recorresse a tal 

prática – princípio atualmente largamente utilizado no direito ambiental 

para  tutelar o meio ambiente em situações que não  tenham contornos 

científicos  ainda  claramente  delimitados.  A  sustentabilidade  desta 

argumentação  se  dava  exclusivamente  no  sentido  da  incapacidade 

tecnológica  presente  na  época  não  prover  um  aborto  seguro.  Em 

decorrência lógica, caso ocorresse um avanço tecnológico que permitisse 

uma prática segura, passar‐se‐ia a admiti‐lo. Este foi um dos fatos serviu 

de justificativa à primeira lei permissiva do aborto, influenciada também 

pelas teorias Malthusianas e Neomalthusianas, como se verá adiante. 

            Mesmo tendo‐se saído da idade média e mergulhado na era 

Iluminista, com o renascimento científico, a  igreja católica ainda era um 

óbice à progressão das ideias à respeito do aborto e da reprodução, pois 

ainda lhe restava muito poder. Pela forte repressão exercida por esta nas 

liberdades de pensamento, muito tempo se passou até que algo de novo 

surgisse à respeito não só do tema aborto, mas de qualquer teoria que 

visasse  interferência  de  qualquer  grandeza  no  que  diz  respeito  à 

reprodução humana, assunto até então repleto de tabus e superstições, 

“sagrado”, portanto inatingível pela lógica humana. 

            Foi somente com a teoria de Thomas Malthus, em 1798, que 

se iniciou o campo de discussões dentro da área de interferência até então 

completamente  protegida  e  dominada  pela  igreja  e  tutelada  pelas 

legislações  da  maioria  dos  países  (proibindo  qualquer  intervenção 

cirúrgica).  A  idade média  tinha  ficado  para  trás  e  o  pensamento  dos 

iluministas traziam novamente o resgate dos  ideais  filosóficos há muito 

esquecidos.  Preocupado  com  o  crescimento  populacional  acelerado, 

Malthus publicou uma série de  ideias alertando sobre a  importância do 

controle de natalidade, afirmando que o bem‐estar populacional estaria 

intimamente relacionado com crescimento demográfico do planeta. Era 

alertado que o crescimento desordenado acarretaria a falta de recursos 

alimentícios  para  a  população,  gerando  como  consequência  a  fome. 

Malthus trouxe a questão do problema do aumento populacional e dos 

meios para  conter ou estagnar este aumento. Como  solução para este 

 

 

 

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impasse propunha: a sujeição moral de retardar o casamento; a castidade 

antes do casamento, e ter somente o número de  filhos que se pudesse 

sustentar. 

            Já os neomalthusianos, ao atualizarem a teoria proposta por 

Malthus, propunham a difusão de  todos os processos de  limitação dos 

nascimentos,  ou  seja,  que  os  meios  contraceptivos  fossem  utilizados 

largamente como forma de evitar a gravidez, tendo por finalidade última 

conter  o  crescimento  populacional.  Esta  consciência  foi  desencadeada 

pela escassez de alimentos que o mundo passava no início do século XIX, 

aliada  a  teorias  que  previam  o  esgotamento  dos  recursos  naturais  do 

planeta, caso a taxa de natalidade não fosse controlada. O primeiro livro 

escrito sobre meios contraceptivos foi feito por Robert Dade, na América 

do Norte, e chamava‐se “Moral Physiology”. 

                        Percebe‐se  que  apesar  das  teorias  Malthusiana  e 

Neomalthusiana  não  mencionarem  a  palavra  aborto,  apenas  meios 

contraceptivos  ‐ meios que não possibilitariam o  início da gravidez, ou 

seja, o  surgimento de um novo  ser  ‐ há profunda  ligação de ambos os 

estudos com o aborto. Este  já era  largamente conhecido e praticado no 

país de origem de ambos estudos, a Inglaterra. A aplicação das teorias de 

controle populacional implicava inevitavelmente em aumento da prática 

abortiva,  revelando‐se  como  grandezas  diretamente  proporcionais.  A 

consolidação das teorias de controle populacional causariam, fatalmente, 

o aumento do número de interrupções voluntárias da gravidez. 

            A primeira crítica violenta de que se tem notícia às leis vigentes 

no mundo (que eram não permissivas, como visto acima) sobre o aborto 

apareceu em 1910 no sexto volume dos "Estudos sobre a Psicologia do 

Sexo" do britânico Havelock Ellis, um dos pioneiros da sexologia. 

            Havelock afirmava naquela obra que: "não se pode mais permitir 

a discussão da validade do controle (de natalidade), porque ele é um fato 

consumado e tornou‐se parte de nossa moderna moralidade". Depois de 

apresentar  evidências  de  que  o  aborto  ilegal  estava  amplamente 

disseminado na  Inglaterra, na América, na França e na Alemanha, diz o 

estudioso que "sua condenação somente é encontrada no Cristianismo, e 

 

 

 

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é devido a conceitos teóricos". Na obra ainda se ridicularizava um escritor 

francês que se referia ao direito da criança não nascida como "um direito 

sagrado e imprescritível, direito que nenhum poder poderá revogar". Os 

não nascidos, argumentava Havelock, ainda não são parte da sociedade 

humana e por consequência não só  temos o direito de matá‐los, como 

ainda  a  posição  contrária  seria  "um  vestígio  de  antigos  dogmas 

teológicos". Dizia o autor que “o que há de 'direito irrevogável' no embrião 

é o mesmo que há de direito irrevogável no espermatozoide”. 

            Mesmo com o amadurecimento das ideias à respeito do aborto, 

muito  se  demorou  para  colocá‐las  abertamente  em  pauta  devido  a 

costumes e represálias morais e sociais. Nos Estados Unidos, a escritora 

Margareth  Sanger,  num  livro  sobre  controle  da  natalidade,  em  1921, 

intitulado Motherhood  in Bondage, expressou algumas opiniões sobre o 

aborto.  Até  aquela  época  o  movimento  americano,  para  não  atrair 

animosidades, tinha sido muito mais  ferreamente oposto a tratar deste 

assunto do que o movimento  inglês e europeu, não obstante ter sido o 

primeiro país a sancionar lei permissiva da prática em questão. 

                       Foi somente em 1967, no estado do Colorado, nos Estados 

Unidos da América, que foi aprovada a primeira lei permissiva do aborto. 

Entre 1967 e 1970 cerca de metade dos estados americanos legalizaram o 

aborto. Nenhum deles, porém, a pedido (voluntário). O aborto somente 

seria  legalmente  concedido  até  um  determinado  estágio  da  gestação, 

geralmente em torno do primeiro trimestre da gravidez, e se preenchidas 

uma  série  de  restrições  legais,  variáveis  de  estado  para  estado. 

Entretanto, chegou‐se a um máximo em 1973 por ocasião da decisão do 

casoRoe  versus Wade[ ] pelo qual a Suprema Corte de  Justiça obrigou 

todos os estados americanos a adotarem a prática do aborto a pedido 

durante  todos  os  nove meses  da  gravidez.  Naquele  país,  a  aborto  se 

tornou um direito constitucional da mulher, posição que perdura até os 

dias atuais, apesar de estar em pauta projeto de lei que proíbe tal prática 

em períodos avançados da gravidez[9] 

3. Situação Atual do Aborto Perante a Comunidade Internacional

 

 

 

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            Em todo o mundo, segundo dados da OMS, das 210 milhões de 

gestações que ocorrem  todo ano, entre 46 a 55 milhões, ou  seja 22%, 

culminam em abortos. Destes, cerca de 30 milhões de procedimentos são 

obtidos  legalmente  e  20  milhões  ilegalmente.  Por  dia  são 

aproximadamente 126 mil. 78% dos abortos são realizados em países em 

desenvolvimento e os restantes 22% em países desenvolvidos[10].

Aproximadamente 97 países, com cerca de 70% das mulheres do mundo, tem leis que permitem a estas o aborto clinicamente assistido. Noventa e três países, com cerca de 30% da população feminina, proíbem o aborto ou permitem o aborto apenas em situações especiais como deformações do feto, violações (estupro dentre elas) ou risco de vida para a mãe – nosso país se inclui neste último grupo. Conforme exposto, todos os anos cerca de 20 milhões de abortos são realizados em países onde esta prática é restringida ou proibida por lei – portanto, praticados ilegalmente, na clandestinidade. Segundo a OMS, temos que:

One of the main limitations in getting accurate estimates of unsafe abortion is not only the lack of data in countries where abortion is illegal, but also the under-reporting and miscoding of cases, even in countries with liberal abortion policies. Nineteen million unsafe abortions are estimated to have taken place worldwide in the year 2000, 98% of which are estimated to occur in countries in development.[11].

Analisando-se os dados, percebe-se que 30 milhões de abortos anuais são realizados nos 70% dos países que permitem sua prática, e cerca de 20 milhões são praticados nos 30% restantes que não o permitem, trazendo a conclusão que o número de abortos praticados é proporcionalmente maior nos países em que é proibido por lei, do que naqueles que é legalizado. Desta informação percebe-se que de forma alguma a legalização do aborto se mostrou como um estímulo a sua prática desenfreada nos países que a adotaram, da mesma forma que sua criminalização não

 

 

 

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funcionou sob hipótese alguma como forma de coibição da prática abortiva.

Na União Européia, o debate jurídico à respeito do aborto sempre procurou, em geral, evitar a questão de saber se o feto é ou não pessoa, para concentrar seus esforços sobre a necessidade de conter a praga do aborto clandestino. Por sua legislação não permissiva[12], vinha ocorrendo morte de milhares de mulheres em decorrência da prática de aborto clandestino. Dos vinte e sete países que a compõem atualmente, todos têm legislação que permitem o aborto voluntário. Alguns, como Portugal, são bastante recentes nesta questão.

Na França, o aborto (legalizado em 1975) é permitido até as doze semanas a pedido da mulher caso não tenha razões para ser mãe - razões sociais ou econômicas. Existe um período de ponderação obrigatório (mínimo de 8 dias). No caso de gestante menor de 18 anos, há de ter consentimento de um dos pais ou de um representante legal. Exige-se em qualquer circunstância o aconselhamento da mulher. Permite-se tal prática após as 12 semanas apenas em caso de risco de vida ou saúde física da mulher ou risco de malformação do feto, sendo neste caso necessária a certificação escrita de dois médicos.

Portugal, como dito, foi um dos últimos países europeus a legalizar o aborto. Em razão da proibição ocorria um verdadeiro fluxo migratório de gestantes portuguesas para países vizinhos que permitiam sua prática, percebeu-se a ineficiência da legislação que condenava o aborto (tecnicamente denominado em Portugal como interrupção voluntária da gravidez), e foi proposto um referendo em 2007 para sua legalização. A partir deste, passou-se a permiti-lo até a décima semana de gravidez a pedido da mulher, independentemente de suas razões. Pode ser realizada no sistema nacional de saúde ou, em alternativa, em estabelecimentos de saúde privados autorizados.

Em sua lei nº 16/2007 indica que é obrigatório um período mínimo de reflexão de três dias e tem de ser garantido à mulher "a disponibilidade de acompanhamento psicológico durante o período de reflexão" e "a disponibilidade de acompanhamento por técnico

 

 

 

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de serviço social, durante o período de reflexão", quer para estabelecimentos públicos, quer para clínicas particulares. A mulher deve ser informada "das condições de efetuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da mulher" e das "condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à maternidade". Também é obrigatório que seja providenciado "o encaminhamento para uma consulta de planejamento familiar."

Em caso de violação sexual o aborto é permitido até àsdezesseis semanas (não sendo necessário que haja queixa policial). Permite-se até às vinte e quatro semanas em caso de malformação do feto. Em qualquer momento há permissão caso ocorra risco de vida para a gestante ("perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida") ou no caso de fetos inviáveis. As mulheres que tenham realizado uma interrupção voluntária da gravidez ou tenham tido um aborto espontâneo em Portugal têm direito a licença por um mínimo de 14 dias e um máximo de 30 dias. O aborto provocado por terceiros sem consentimento da grávida é punível com 2 (dois) anos de prisão, e com 3 (três) no caso de haver consentimento. Estas penas são majoradas em caso de "morte ou ofensa à integridade física grave da mulher grávida", ou no caso de ser prática habitual. A própria mulher grávida que faça uma interrupção voluntária da gravidez ilegal é punível com 3 (três) anos de prisão.

Na China, assim como no Brasil, o aborto é considerado um crime. Em 1979, o governo chinês instituiu a política do filho único, numa tentativa de conter o aumento populacional. De acordo com tal política, o Estado bancaria todas as despesas básicas (saúde, educação, lazer) do primeiro filho do casal, mas apenas do primeiro. Caso optassem por ter outro, teriam que arcar com todas as despesas, sem nenhuma espécie de ajuda estatal no que diz respeito aos pontos citados, objetivando atuar como uma forma de desestímulo ao segundo filho. O grande problema que maculou esta política foi o fato de naquele país, um filho homem ter possibilidades muito maiores de emprego e de, consequentemente, “lucrar” mais que uma mulher, além de não existir por lá alguns institutos da

 

 

 

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Seguridade Social, como a aposentadoria. Perante a lei nacional chinesa resta como obrigação do filho (homem, portanto) mais velho prover a subsistência dos pais na velhice destes. Ora, se só se podia ter um filho(a), sendo o do sexo masculino mais propenso a dar lucro e ainda restar a este a obrigação de cuidar dos pais na idade avançada, percebe-se o porquê deste país possuir atualmente trinta e sete milhões de homens a mais que mulheres[13]. O aborto seletivo, mesmo tipificado como crime, foi a resposta encontrada pela sociedade chinesa para adequar-se à política do filho único.

Nos Estados Unidos, de forma geral, o aborto é permitido em qualquer estágio da gravidez, variando um pouco de um estado para outro, sendo entretanto, permitido em todos – como visto em tópico anterior, trata-se de um direito constitucional. Neste país são praticados por ano aproximadamente um milhão e trezentos mil abortos (dados do ano 2000), contabilizando três mil e setecentos por dia. Dentre os motivos, 1% são de violação ou incesto, 6% são de potenciais problemas de saúde (mãe ou feto); e 93% oriundos de razões sociais diversas (criança não desejada ou inconveniente, por exemplo). Interessante que nos EUA, país que tem 320 milhões de habitantes, o número anual de abortos está em 730 mil, enquanto no Brasil, com 200 milhões de habitantes, o número está em 850 mil.

O aborto na Austrália é permitido irrestritamente, funcionando nos mesmos moldes dos Estados Unidos. É um de seus procedimentos cirúrgicos mais comuns, mesmo com legislação variável por território, isto pelo fato de todos os Estados daquele país serem a favor do aborto legal e seguro. Há um alarde enorme criado pela corrente opositora à respeito do aumento de sua prática abortiva, posto que este número cresceu significativamente nas últimas décadas. Os críticos alegam que devido à legalização – ocorrida na nos anos 1970 – criou-se um estímulo ao aborto voluntário e que consequentemente está levando o país a uma crise demográfica e a um grave problema de saúde pública. Ocorre que na Austrália houve de fato um significativo aumento de sua prática desde a época em que foi legalizado (duplicou-se o número de

 

 

 

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procedimentos), mas o que revelam os dados é que mesmo com este crescimento, a média australiana de abortos por nascidos vivos ainda continua mais baixa que a média mundial. Como exposto no anexo I[14] deste trabalho, percebe-se que a taxa australiana é menor, v. g., que a americana, russa ou austríaca. Atualmente 23% das gravidezes australianas resultam em abortos[15].

          Na América Latina, apenas Cuba, México, Guiana e Porto Rico 

permitem sem restrições o aborto, sendo esta conduta criminalizada em 

todos os demais. Segundo pesquisa divulgada em 2008 pela Organização 

Mundial de  Saúde,  seis milhões de mulheres praticam aborto  induzido 

todos os anos na região. A estimativa é de um aborto de risco para cada 

três nascidos vivos. Deste total, cerca de 1,4 milhão são brasileiras e uma 

em cada 1.000 gestantes morre em decorrência do aborto,  isto em face 

da grande maioria dos procedimentos serem  ilegais, portanto  feitos na 

clandestinidade,  frequentemente  em  condições  perigosas  e  insalubres. 

Como resultado, a região enfrenta um problema sério de saúde pública 

que ameaça às vidas das mulheres, põe em perigo sua saúde reprodutiva 

e impõe uma tensão severa aos já sobrecarregados sistemas jurídicos e de 

saúde. De acordo com pesquisas acadêmicas, de todos os abortos ilegais 

praticados  anualmente  no  Brasil,  cerca  de   mil  levam mulheres  a 

serem  internadas  no  Sistema  Único  de  Saúde  com  complicações 

decorrentes daquela prática. Como bem observa Emmerick:

As estimativas do número de internações pós-abortamento, de mutilações e de mortes de mulheres, oriundas do aborto clandestino e inseguro na região são demasiadamente altas, o que faz com que o fenômeno do aborto clandestino seja considerado um paradoxo dentro do paradigma dos direitos humanos e da democracia[16].

          Além de ser um paradoxo dentro de um estado democrático de 

direito,  negligenciado  pelo  Estado  brasileiro,  a  prática  do  aborto 

clandestino  vai  de  encontro  aos  direitos  humanos  e  democracia, 

revelando  uma  sociedade  desigual  e  injusta,  tanto  por  configurar  um 

 

 

 

        25 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.56677 

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grave problema de saúde pública, como pelo tratamento jurídico dado à 

questão,  que  fere  o  princípio  da  dignidade  da  pessoa  humana,  valor 

intrínseco a qualquer ser humano.

4. O Tratamento do Aborto no Brasil

No Brasil, o crime de aborto foi tratado pela primeira vez no Código 

Criminal do Império de 1830, onde não se previa o delito praticado pela 

própria  gestante, mas  sim  tido  como  criminal  a  conduta praticada por 

terceiro, com ou sem o consentimento daquela. Tal prática estava incluída 

nos crimes contra a segurança da pessoa e da vida, conforme previsto nos 

artigos 199 e 200:

“Art. 199 – Ocasionar aborto por qualquer 

meio empregado anterior ou exteriormente com 

o consentimento da mulher pejada. Pena: Prisão 

com  trabalho  de  1  a  5  anos.  Se  o  crime  for 

cometido  sem  o  consentimento  da  mulher 

pejada. Penas dobradas”. “Art. 200 – Fornecer, 

com  o  consentimento  de  causa,  drogas  ou 

quaisquer meios para produzir o aborto, ainda 

que  este  não  se  verifique.  Pena:  Prisão  com 

trabalho  de  2  a  6  anos.  Se  esse  crime  foi 

cometido por médico, boticário ou cirurgião ou 

ainda praticante de tais artes. Penas dobradas”. 

O Código Penal da República do ano de 1890, por sua vez, diferente 

do  Código  Criminal  de  1830,  retratou  pela  primeira  vez  o  aborto 

provocado pela própria gestante, diferenciando o aborto em que ocorre a 

expulsão ou não do feto, sendo que, caso houvesse a morte da gestante, 

a pena seria agravada: 

“Art. 300  ‐ Provocar aborto haja ou não a 

expulsão do produto da concepção. No primeiro 

caso: pena de prisão celular por 2 a 6 anos. No 

segundo  caso:  pena  de  prisão  celular  por  6 

meses  a  1  ano.  §1º  Se  em  consequência  do 

Aborto,  ou  dos  meios  empregados  para 

provocá‐lo, seguir a morte da mulher. Pena de 

 

 

 

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prisão  de  6  a  24  anos.  §2º  Se  o  aborto  foi 

provocado  por  médico,  parteira  legalmente 

habilitada para o exercício da medicina. Pena: a 

mesma  procedente  estabelecida  e  a  proibição 

do exercício da profissão por tempo igual ao da 

reclusão”. 

“Art. 301 Provocar Aborto com anuência e 

acordo da gestante. Pena: prisão celular de 1 a 

5  anos.  Parágrafo  único:  Em  igual  pena 

incorrera  a  gestante  que  conseguir  abortar 

voluntariamente, empregado para esses fim os 

meios; com redução da terça parte se o crime foi 

cometido para ocultar desonra própria”. 

“Art.  302  Se  o  médico  ou  parteira, 

praticando o aborto legal, para salvar da morte 

inevitável, ocasionam‐lhe a morte por imperícia 

ou negligencia. Penas: prisão celular de 2 meses 

a 2 anos e privado de exercício da profissão por 

igual tempo de condenação”. 

Em conclusão, o Código Penal de 1940 especificou a prática abortiva 

em sua parte especial, Título I, que trata dos “Crimes Contra a Pessoa”, e 

no  capítulo  I  do mesmo  título,  que  trata  dos  “Crimes  Contra  a  Vida”, 

conforme  artigo  124  (a  gestante  assume  a  responsabilidade  pelo 

abortamento),  artigo  125  (o  aborto  é  realizado  por  terceiro  sem  o 

consentimento da gestante) e artigo 126 (o aborto é realizado por terceiro 

com o consentimento da gestante), sendo que o artigo 127 se referiu a 

forma qualificada da prática delitiva. 

Por fim, o artigo 128, em seus dois incisos, trouxe, exclusivamente, 

as causas exclusivas da ilicitude, ou mais conhecido como sendo o “aborto 

legal”. 

“Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou 

consentir  que  outrem  lho  provoque:  Pena  – 

detenção, de um a três anos”. 

 

 

 

        27 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.56677 

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  “Art.  125  –  Provocar  aborto,  sem  o 

consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 

três a dez anos”. 

“Art.  126  –  Provocar  aborto  com  o 

consentimento da gestante: Pena – reclusão, de 

um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica‐se a 

pena  do  artigo  anterior,  se  a  gestante  não  é 

maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil 

mental,  ou  se  o  consentimento  é  obtido 

mediante fraude, grave ameaça ou violência”. 

“Art.  127  – As  penas  cominadas  nos  dois 

artigos anteriores são aumentadas de um terço, 

se,  em  consequência  do  aborto  ou  dos meios 

empregados para provoca‐lo, a gestante  sofre 

lesão  corporal  de  natureza  grave;  e  são 

duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe 

sobrevém a morte”. 

“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado 

por médico: I – se não há outro meio de salvar a 

vida da gestante;  II –  se a gravidez  resulta de 

estupro  e  o  aborto  é  precedido  de 

consentimento da gestante ou, quando incapaz, 

de seu representante legal”. 

A  respeito deste último Código, BITENCOURT  (2007, p. 129)  cita 

que: 

“O  código  Penal  de  1940  foi  publicado 

segundo a cultura, costume e hábitos na década 

de 30. Passaram mais de 60 anos, e, nesse lapso, 

não foram apenas os valores da sociedade que 

se  modificaram,  mais  principalmente  os 

avanços  científicos  e  tecnológicos,  que 

produziram  verdadeira  revolução  na  ciência 

médica.  No  atual  estágio,  a  medicina  tem 

condições  de  definir  com  absoluta  certeza  e 

 

 

 

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precisão,  eventual  anomalia,  do  feto  e, 

consequentemente, a viabilidade da vida extra‐

uterina.  Nessas  condições,  é  perfeitamente 

defensável  a  orientação  do  anteprojeto  de 

reforma da parte especial do Código Penal, que 

autoriza  o  aborto  quando  o  nascituro 

apresentar  graves  e  irreversíveis  anomalias 

físicas ou mentais, ampliando a abrangência do 

aborto eugênico ou piedoso”. 

Portanto, o nosso país  se encontra na minoria que  criminaliza o 

aborto, apenas admitindo a exclusão da ilicitude da conduta em casos que 

envolvam risco de vida da gestante, gravidez decorrente de estupro e mais 

recentemente, através de um julgado do STF com repercussão geral, por 

anencefalia do feto. 

Existe  um  verdadeiro  caos  em  relação  ao  tratamento  da 

determinação de quando ocorre o início da vida pela legislação brasileira, 

pois para o Código Civil  tem‐se  a proteção desde  a  concepção, para  a 

Constituição  Federal  existe  a proteção  (não  absoluta)  à  vida, mas  sem 

precisar o momento. Para o Código Penal, onde ocorre a criminalização da 

prática do abortamento, também não há nenhuma  indicação precisa de 

quando a vida humana passaria a ser juridicamente tutelada, mostrando 

o atraso da nossa legislação no tratamento desta questão importantíssima 

que tem se mostrado um problema de saúde pública desde que se tem 

registro. 

O legislador brasileiro tem que criar conceitos bem definidos para 

o  tratamento da questão, pois a nossa  legislação arcaica não  tem  sido 

efetiva para a  repressão à prática do abortamento,  tanto que estamos 

com índices mais elevados do que países em que sua prática é permitida. 

Tal  posicionamento  tem  repercussão  direta  em  bens  jurídicos 

extremamente  relevantes,  como  a  saúde  pública  e  a  dignidade  da 

gestante. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

 

 

 

        29 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.56677 

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Código penal. Decreto‐Lei Nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.  In: 

VADE Mecum. 3. ed. São Paulo: Editora Rideel, 2006. 

BULOS, Uadi Lamêgo. Comentários à constituição federal. 5. ed. São 

Paulo: RT, 2008. 

DINIZ, Débora. Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais. Disponível em <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v5/abortsele.html> Acesso em 20 de out. de 2009.

EMMERICK, Rulian. Aborto, (Des)criminalização, direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008.

ENCICLOPÉDIA Brasileira Mérito, 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, v.14

JOHNSTON, Robert. Global Abortion Summary. 2000-2007, 2008. Disponível em <http:/www.oms.org>. Acesso em 14/09/2009.

KALSING, Vera Simone. O movimento em defesa da vida na votação do aborto legal no Rio Grande do Sul Disponível em <http://www.sociologos.org.br/textos/outros/aborto.htm.> Acesso em 10 de out. de 2009.

LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. Curitiba: Juruá, 2009.

LOREA, Roberto Arriada. Acesso ao aborto e liberdades laicas. Rio de Janeiro: Horizontes Antropológicos vol.12. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-1832006000200008&script=sci_arttext.> Acesso em 02 de set. de 2009.

PACHECO, Eliana Descovi. O aborto e sua evolução histórica. Disponível em <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3764/O-aborto-e-sua-evolucao-historica>. Acesso em 05 de agost. de 2009.

 

 

 

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NOTAS:

[1] ENCICLOPÉDIA Brasileira Mérito, 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, v.14

[2] Cf: Veremos que a teoria de Aristóteles tem muito a ver com a teoria proposta nesta monografia, mais adiante, no capítulo IV.

[3] MATIELO, Fabrício Zamprogna. Aborto e o direito penal. 3 ed. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto, 1996.

[4] MORI, Maurizio. A moralidade do aborto. Brasília: Unb. p. 19, 1997.

[5] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. v.2. p. 132.

[6] HISTÓRIA, Aventuras na. O aborto na história v.7. São Paulo, Abril, 2008.

[7] Op. cit. Nota 4.

[8] Cf: Intensa batalha jurídica ocorrida no Texas em 1973, que culminou na descriminalização do aborto em todo o país.

[9] Fabrício Brito. Aborto nos EUA Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u106563.shtml> Acesso em 10/10/2009.

[10] JOHNSTON, Robert. Global Abortion Summary. 2000-2007, 2008. Disponível em <http:/www.oms.org> Acesso em 14/09/2009.

[11] HEALTH, Mundial Organization of. Cf: Trad. feita pelo pesquisador: uma das principais limitações em se obter estimativas precisas sobre o aborto inseguro (ilegal) é não apenas a falta de dados em países onde o aborto é ilegal, mas também os casos omissos e não catalogados, até em países com política de legalização do aborto. Dezenove milhões de abortos ilegais foram estimados mundialmente no ano 2000, 98% dos quais estima-se que aconteceram em países em desenvolvimento.

[12] Cf: Resquícios do Código Napoleônico.

[13] Cf: este número representa 25% da população brasileira.

 

 

 

        31 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.56677 

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[14] Cf: ver anexo I na última página desta monografia.

[15] TOMKINS, James. Abortion an health. Disponível em <http://www.betterhealth.vic.gov.au> Acesso em 20/10/2009.

[16] EMMERICK, Rulian. Aborto, (Des)criminalização, direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2008, p. 37.

 

 

 

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AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DIREITO PENAL BRASILEIRO

RAQUEL TEREZINHA ARAÚJO: GRADUADA EM CIÊNCIAS CONTÁBEIS PELA UNIMONTES, 1999 E PÓS GRADUADA EM DIREITO PÚBLICO E DIREITO DAS RELAÇÕES SOCIAIS PELA FACULDADE CATÓLICA DE UBERLÂNDIA, 2008, SERVIDORA DO QUADRO EFETIVO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAIS DESDE 2003.

RESUMO: O  presente  artigo  tem  por  objetivo  expor  a  importância  da 

expansão da audiência de custódia no ordenamento jurídico brasileiro. A 

audiência  de  custódia  nasceu  na  Convenção  Americana  de  Direitos 

Humanos, no qual o Brasil é signatário desde o ano de 1992 e mostra‐se, 

até então, como uma possível solução para reduzir a população carcerária 

brasileira. A principal finalidade da audiência de custódia é a humanização 

do preso, ou seja, ela visa garantir que o preso seja tratado de forma mais 

humana e, neste caso, se dá com a apresentação do preso em flagrante a 

um juiz de direito o mais rápido possível, para que assim o mesmo tenha 

seus direitos resguardados. 

Palavras‐chave:  Redução  da  População  Carcerária.      Humanização  do 

Preso.   Projeto Audiência de Custódia. 

INTRODUÇÃO

Este tema suscitou a necessidade imperiosa da pesquisa, uma 

vez que o mesmo é muito atual no ordenamento jurídico brasileiro e, em 

razão dos seus benefícios que serão demonstrados no decorrer do artigo, 

é de grande relevância a pesquisa para o mundo acadêmico. 

O  presente  artigo  visa  demonstrar  a  importância  da 

implementação da audiência de custódia em todo o território brasileiro, 

 

 

 

        33 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.56677 

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uma vez que a mesma atualmente só é utilizada em uma pequena parcela 

dos  processos  penais  brasileiros,  discutindo  alguns  pontos  como  a 

dificuldade de sua implementação e os benefícios que a mesma acarretará 

para toda sociedade brasileira. 

DESENVOLVIMENTO 

A audiência de custódia está prevista na Convenção Americana 

de Direitos Humanos, que é mais conhecida como “Pacto de San José da 

Costa Rica”, em seu artigo 7º item 5: “Toda pessoa presa, detida ou retida 

deve  ser  conduzida,  sem  demora,  à  presença  de  um  juiz  ou  outra 

autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”. 

Este tratado foi ratificado pelo Brasil no ano de 1992 e, segundo 

o  Supremo  Tribunal  Federal,  tratados  internacionais no qual o Brasil  é 

signatário  ingressam  em  nosso  ordenamento  jurídico  com  “força”  de 

norma jurídica supralegal, ou seja, hierarquicamente os tratados só ficam 

abaixo de normas constitucionais. Apesar de o Brasil ser signatário deste 

tratado desde o ano de 1922,  foi  somente no ano de 2015 que o CNJ 

(Conselho Nacional de Justiça), em parceria com o Ministério Público e o 

TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo), criaram o “projeto audiência de 

custódia”  para  que  assim  o  preso  em  flagrante  seja  apresentado  com 

rapidez a um Juiz de Direito. 

Devemos observar que o Pacto de San José da Costa Rica deixou 

o prazo para o preso ser conduzido até ao Juiz em aberto, pois, o mesmo 

apenas  estabelece  que  deve  ser  conduzido  sem  demora.  No  Brasil  o 

procedimento adotado é que o preso em flagrante deverá ser conduzido 

em no máximo vinte e quatro horas, e, em razão deste prazo, surgiram 

muitos  questionamentos  pelo  fato  de  que  o  número  de  audiências 

aumentaria  substancialmente  e  não  haveria  juízes  suficientes  para 

presidir as mesmas. 

O que  se  visa na  audiência de  custódia  é  a humanização do 

preso e o contato de um Juiz de Direito com o mesmo. Ou seja, a audiência 

traz consigo circunstâncias que o “processo”  jamais irá conseguir passar 

para o Juiz e, por  isso a  importância deste contato do Juiz com o preso. 

Nas palavras de Aury Lopes Jr e Caio Paiva., "O contato pessoal do preso 

 

 

 

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com o juiz é um ato da maior importância para ambos, especialmente para 

quem está sofrendo a mais grave das manifestações de poder do Estado.". 

Busca‐se com isso o mais importante para o direito penal, que 

é evitar prisões  injustas. Devemos  ter em mente de que a  limitação da 

liberdade do indivíduo deve ser utilizada em ultima ratio. A Constituição 

Federal em seu artigo 5º  inciso LXVI  já nos diz: “ninguém será  levado à 

prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com 

ou  sem  fiança”,  e  se  há  outras  maneiras  de  punir,  que  assim  sejam 

utilizadas. 

Atualmente, a regra é que o preso somente exerce o “direito à 

audiência” no  final da  instrução processual, e com  isto, na maioria dos 

casos,  o  mesmo  já  ficou  encarcerado  por  meses.  Ora,  se  não  há 

necessidade  de  o  manter  encarcerado,  este  detento  está  então 

carregando um ônus para ele que possivelmente será irreversível. 

O  CNJ  divulgou  uma  pesquisa  na  qual  a  atual  população 

carcerária brasileira é de cerca de 710.000 (setecentos e dez mil) detentos. 

Com  isso, observamos o alto valor que é desembolsado todos os meses 

pelo  Estado  para manter  estes  presos.  Tendo  em  vista  que  em  nosso 

cenário atual convivemos com a superlotação carcerária e, que um preso 

chega a custar para o Estado cerca de R$ 3.000,00, a audiência de custódia 

seria de grande avanço, tanto social quanto econômico. 

O site do Conselho Nacional de Justiça fornece um gráfico que 

mostra  que,  na maioria  dos  Estados,  quando  se  utiliza  a  audiência  de 

custódia, o índice de prisão preventiva cai cerca de 50% e em alguns até 

maior que isso, o que representa, sem dúvida alguma, um grande avanço 

social. Hoje convivemos com uma realidade em que as celas, em quase 

todos os presídios brasileiros, que deveriam conter cerca de oito presos 

chegam a ser utilizadas por trinta ou até mais. E é assim que observamos 

a  importância e  imediatidade da audiência de custódia ser adotada em 

todo o Brasil e se tornar uma regra e não uma exceção. 

CONCLUSÃO 

 

 

 

        35 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.56677 

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Pelo exposto no presente artigo, e observando o atual cenário 

carcerário brasileiro, mostra‐se totalmente necessário expandir para todo 

o Brasil a audiência de  custódia,  visto que os benefícios que a mesma 

acarretará  são  enormes,  dentre  os  quais  a  diminuição  da  população 

carcerária, que além de ser desumano, acarreta um ônus financeiro para 

o Estado muito grande. Ônus este que poderia ser evitado e até mesmo 

revertido em melhorias nos próprios presídios. 

É  necessário  então,  que  o  Estado  se  esforce  para  que  a 

audiência de custódia se expanda o mais rápido possível, pois convivemos 

todos os dias com prisões que poderiam ser evitadas e, quando o bem 

jurídico tutelado é a liberdade de um indivíduo não há o que se falar em 

erro, mas como tudo está sujeito a falhas é dever do Estado minimizar ao 

máximo  as  chances  destas  prisões,  pois  as  mesmas  apodrecem  todo 

Estado Democrático de Direito. 

REFERÊNCIAS 

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, Convenção Americana 

de Direitos Humanos (“Pacto de San José de Costa Rica”), 1969. 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do 

Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. 

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Audiência de Custódia. Disponível 

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evolucao‐processo‐penal>. Acesso em: 24 de julho 2016. 

 

   

 

 

 

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CONSIDERAÇÕES ACERCA DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA DE NATUREZA ANTECIPADA REQUERIDA EM CARÁTER ANTECEDENTE NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

CLÁUDIO RICARDO SILVA LIMA JÚNIOR: Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Ex-Assessor judicial da Justiça Federal da 5ª Região (TRF-5). Ex-Assessor jurídico do Ministério Público Federal (MPF) na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5)

Resumo: Analisam-se os aspectos controvertidos do procedimento da tutela provisória de natureza antecipada requerida em caráter antecedente no Novo Código de Processo Civil, envolvendo a problemática acerca das hipóteses de estabilização da decisão concessiva da antecipação.

Palavras-chave: Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Tutela provisória. Tutela de urgência. Tutela antecipada. Tutela antecedente. Estabilização da tutela antecipada. Procedimento.

Abstract: This article analyzes the controversial aspects of the procedure for interim protection Early nature required in previous character in the New Code of Civil Procedure, involving the issue about the chances of stabilizing the concessive decision of anticipation.

Keywords: Brazillian New Code of Civil Procedure. Interim protection. Emergency protection. Injunctive relief. Antecedent protection. Injunctive relief stabilization. Procedure.

1. Introdução

 

 

 

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Inovação do CPC/2015, a tutela provisória, tida como gênero a abranger as tutelas de urgência e evidência, é um dos temas que mais tem despertado o interesse da doutrina nacional na atual fase de construção teórica e jurisprudencial do direito processual pátrio. Mais especificamente, têm os processualistas demonstrado preocupação em relação o tratamento conferido pelo Novo Código de Processo Civil à tutela de urgência de natureza antecipada requerida em caráter antecedente, que contempla o instituto da estabilização dos efeitos da decisão concessiva da antecipação da tutela. O problema reside no caráter truncado do texto do Novo CPC, que, no ponto, dá margem a dúvidas e revela incongruências de ordem sistêmica, tornando tormentosa a sua aplicação prática.

Neste breve estudo, são examinados os dispositivos do Novo CPC que regem o procedimento da tutela provisória de natureza antecipada requerida em caráter antecedente, demonstrando-se omissões e contradições legislativas que revelam a necessidade de ajuste por parte do intérprete. Após, é apresentada a compreensão da doutrina majoritária em torno do tema, de sorte a fixar um panorama elucidativo do procedimento a ser adotado e das hipóteses de cabimento da estabilização da decisão interlocutória que concede a antecipação dos efeitos da tutela.

2. A problemática jurídica da tutela antecipada requerida em caráter antecedente no Novo CPC: estabilização da decisão interlocutória e procedimento cabível vinculados ao comportamento das partes

A matéria se encontra regulada nos artigos 303 e 304 do Novo Código de Processo Civil. Na dicção do Código, requerida pelo autor a tutela antecipada em caráter antecedente, dois regramentos distintos se apresentam, a depender da decisão do Juízo acerca do pleito antecipatório. Se o juiz negar a tutela antecipada (art. 303, § 6º, do Novo CPC), o autor terá 5 (cinco) dias para emendar a inicial e efetuar o pedido da tutela final. Nessas circunstâncias, se o autor efetuar o aditamento, o processo seguirá o rito comum; se, contudo, o demandante quedar-se inerte, a petição inicial será indeferida e o processo será extinto sem resolução do mérito. De outro lado, se o juiz conceder a tutela antecipada (art. 303, § 1º, c/c art. 304, do Novo CPC), o autor terá 15 (quinze) dias, ou o prazo que o juiz fixar, para

 

 

 

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aditar a inicial e requerer a tutela final. Igualmente, se o autor proceder ao aditamento, requisitando o julgamento do mérito em caráter final, o processo seguirá o rito comum, ao passo que, deixando de protocolar o pedido, estabelece o Código que o processo deverá ser extinto sem resolução do mérito.

A celeuma fica por conta do art. 304, do Novo CPC, o qual dispõe que, se o réu não “recorrer” da decisão concessiva da tutela antecipada, esta se tornará estável, somente podendo ser alterada por ação própria, a ser proposta no prazo de até 2 (dois) anos, operando-se a respectiva estabilização ainda que o processo em que foi deferida a antecipação seja extinto sem resolução do mérito, por ausência de pedido de tutela final pelo autor. O dispositivo se limita a instituir a regra em comento, passando, a partir daí, a, tão somente, explicitar o direito de qualquer das partes de promover a ação que visa à alteração da decisão antecipatória estabilizada e a asseverar que a estabilização não produz os efeitos da coisa julgada material, que com ela não se confunde. Em decorrência, o Código acaba por deixar em aberto questões importantes em matéria de procedimento, vez que estabelece efeitos diversos para ações ou omissões de autor e réu sem proceder a uma integração das normas respectivas, tornando a tarefa de aplicação dos dispositivos de difícil implementação prática.

Para demonstrar o que se afirma, suponha-se que o réu, pretendendo evitar a estabilização da decisão concessiva da tutela antecipada, recorra da interlocutória, interpondo agravo de instrumento, que é admitido e submetido a julgamento pelo Tribunal. Alterada a decisão para negar o pedido de antecipação dos efeitos da tutela efetuado em caráter antecedente, e deixando o autor de aditar a inicial com o pedido de tutela final, o processo deverá ser extinto sem resolução do mérito? Ou, mantida a decisão, confirmando-se na instância recursal a antecipação deferida em primeiro grau, estabiliza-se a tutela antecipada? O Novo CPC não esclarece essas questões.

No primeiro caso, poder-se-ia cogitar de uma resposta afirmativa à luz de uma aplicação analógica do art. 303, § 6º, do Novo CPC, já que a decisão em primeiro grau passaria a ser negativa da antecipação da tutela. Restando silente o autor quanto ao pedido de tutela final, e, uma vez

 

 

 

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alterada a decisão pelo Tribunal para negar o pedido antecipatório, a situação cairia na hipótese fática prevista no mencionado dispositivo, pelo que se poderia entender que, não obstante o momento processual não mais coincidisse plenamente com aquele previsto na lei, a situação passaria a merecer o tratamento ali dispensado, por ser esse o efeito previsto para a conjugação da ausência de pedido de tutela final com a negativa da antecipação pretendida.

Na segunda hipótese, a estabilização poderia ser aventada, a despeito da interposição de recurso, por se imaginar que, inexistindo o pedido de tutela final, o processo acabaria por ser extinto sem resolução do mérito e, uma vez confirmada a decisão antecipatória, não haveria porque não se operar o efeito da estabilização, já que não apenas houve decisão antecipatória como ela foi mantida por um colegiado da segunda instância, sepultando-se, de vez, a dúvida quanto ao cabimento da antecipação, no âmbito de um exame sumário da matéria, como o requerido pelo autor em sua petição inicial. Isto é: se o autor somente requereu um juízo antecipatório, superficial, da questão, a este tipo de cognição estaria adstrito o Judiciário, que teria entregue o resultado do julgamento às partes mediante duas decisões (de primeiro e segundo graus), em desfavor do réu. Ultrapassado o prazo legal sem o pedido de tutela final, o processo seria extinto sem resolução do mérito, em atenção ao disposto no Novo CPC. E, quanto à decisão antecipatória mantida pela segunda instância, seria ela acobertada pelos efeitos da estabilização, cabendo ao réu, caso quisesse desconstituí-la, propor a ação mencionada no § 4º, do art. 304, do Novo CPC, levando a discussão – aí sim – a um juízo de cognição exauriente, apto à formação de coisa julgada material. O que teria o condão de afastar a estabilização, portanto, nessa perspectiva, não seria a interposição pura e simples do recurso por parte do réu, mas a alteração do teor da decisão pelo tribunal, pois, uma vez reformada a decisão de primeiro grau para indeferir a antecipação, não mais haveria conteúdo decisório material a ser estabilizado.

As interrogações ilustram o vazio normativo deixado pelo Novo CPC no trecho em que regula a matéria, pelo que os rumos do processo nas diferentes situações aventadas acabarão por ser preenchidos pela interpretação criativa da comunidade jurídica. Nesse contexto, a doutrina

 

 

 

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majoritária (Cassio Scarpinella Bueno, Daniel Mitidiero, Fredie Didier Jr., Teresa Arruda Alvim Wambier e Daniel Assumpção, dentre outros) pacificou o entendimento de que, interposto o recurso contra a decisão concessiva da antecipação da tutela em caráter antecedente, o processo segue seu rito comum na primeira instância. Ademais, defendem os autores que não é necessário “recurso” propriamente dito. O que o Novo CPC teria pretendido estatuir foi que qualquer impugnação (contestação, pedido de reconsideração, ou simples manifestação, formulada no bojo de qualquer petição), insurgindo-se contra a decisão antecipatória da tutela, seria suficiente para a continuidade do processo em cognição exauriente. Daniel Assumpção chega a defender que o réu poderia deixar de impugnar a decisão concessiva da antecipação da tutela, mas requerer que ela não fosse estabilizada, porque pretenderia obter juízo de cognição exauriente, o que seria suficiente para o prosseguimento do feito sem estabilização da tutela antecipada. A conclusão da doutrina predominante se funda nas perspectivas de racionalização da jurisdição, economia processual, coerência sistêmica, processualística de resultados e técnica pragmática. O raciocínio formulado visa a evitar o desperdício de jurisdição e, ao mesmo tempo, a salvaguardar o espírito da alteração normativa, respeitando ao máximo a vontade do legislador e a teoria processual, sem perder de vista a realidade forense e a função instrumental do processo.

O texto do Novo CPC dá a entender que seria possível a seguinte situação: em não requerendo o autor a tutela final e recorrendo o réu da decisão antecipatória da tutela, não haveria estabilização porque o réu recorreu e não haveria prosseguimento do processo para julgamento de mérito na primeira instância porque o autor não requereu a tutela final. Isso faria com que, proferida a decisão do tribunal no recurso, caso se mantivesse a decisão antecipatória da tutela, o processo seria extinto sem resolução do mérito (porque o autor não pediu tutela final) e a decisão concessiva da tutela antecipada não seria estabilizada (porque o réu a impugnou). O resultado seria que todo o trabalho de julgamento realizado teria sido inútil (ou, no máximo, de utilidade temporária), pois a decisão antecipatória perderia seus efeitos com a extinção do processo sem resolução do mérito. E o poder de impedir isso estaria apenas nas mãos do autor, que, ficando inerte e não requerendo a tutela final, ocasionaria a perda da eficácia da decisão favorável a ele mesmo, sem que o Judiciário

 

 

 

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nada pudesse fazer a respeito. Essa conclusão seria contrária à própria finalidade do instituto, que foi precisamente evitar o desperdício de jurisdição, conferindo eficácia potencialmente permanente à decisão proferida em cognição sumária. Diante desse quadro, para que se alcançasse um resultado harmônico e coerente com o sistema, duas soluções seriam possíveis.

Opção 1: Conferir estabilidade à decisão que concede a tutela antecipada, ainda que o réu dela tenha recorrido, desde que o tribunal a confirme e dessa decisão não caiba mais recurso. Do ponto de vista teórico, que distingue claramente a cognição judicial sumária da exauriente e vincula a função judicial ao pedido autoral, essa interpretação se mostraria harmônica e lógica, pois, em não cabendo mais recurso, a questão estaria coberta pelo manto da indiscutibilidade e, embora em cognição sumária, faria todo o sentido falar-se em “estabilização” do decisum. Visto que o autor não requereu tutela final, não deveria o processo prosseguir para conceder uma tutela que não foi solicitada. O feito deveria ser extinto sem resolução do mérito, com estabilização da decisão contrária ao réu, que poderia rever essa decisão em ação própria, a ser proposta no prazo de 2 (dois) anos. Essa é a solução mais consentânea com as bases teóricas do direito processual, na medida em que fixa procedimentos independentemente do comportamento das partes e respeita o primado básico do princípio dispositivo. O problema dessa interpretação é que esbarra na literalidade do texto legal, o qual afirma que somente se opera a estabilização se da decisão que conceder a tutela não for interposto o recurso respectivo (art. 304, caput, do Novo CPC). Um efeito tão forte quanto a estabilização da tutela antecipada somente deve decorrer de norma legal expressa. Ademais, a estabilização constitui exceção, que deve ser interpretada restritivamente. Por conseguinte, esta opção, embora consistente com os demais valores do sistema, revelar-se-ia problemática, já que o texto que restou aprovado, nitidamente, trafega em sentido contrário.

Na realidade, a melhor solução seria que qualquer decisão conferida em caráter antecedente (e, portanto, em cognição sumária) – seja deferindo, seja indeferindo a tutela antecipada –, caso não solicitado o pronunciamento exauriente, fosse acobertada pelo efeito da estabilização,

 

 

 

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somente podendo ser alterada por ação própria (essa, sim, fundada em cognição exauriente). Pela forma como foi implantado o instituto, talvez tenha sido esta a vontade do legislador, o qual, contudo, utilizou mal as palavras, falou o que não queria e disse menos do que devia. O que parece ter sido a intenção do legislador foi construir um sistema genérico de estabilização de decisões fundadas em cognição superficial, a serem proferidas em processo autônomo e independente de um conhecimento profundo da lide, que poderiam ser alteradas por decisão de cognição exauriente, no prazo de 2 (dois) anos, em similitude com o prazo decadencial da rescisória. É uma ideia bela e louvável. Nos casos de urgência, a parte passaria a ter o direito de requerer, autonomamente, tanto uma cognição exauriente quanto uma cognição superficial. Em sendo solicitado apenas o julgamento superficial, a este o juiz estaria adstrito, sendo-lhe vedado proferir pronunciamento de cognição exauriente. Isso porque, para a resolução da questão de caráter urgente, realmente, pouco importa resolver toda a matéria em caráter definitivo, o que pode ser deixado para momento posterior e mais oportuno – e isso caso as partes não se dêem por satisfeitas com a solução sumária da controvérsia, hipótese em que a decisão provisória se converteria em definitiva.

Quando emergem questões urgentes, não há tempo para uma ampla instrução probatória, mas, somente, de fato, para uma cognição sumária, com base nas provas e argumentos que as partes já possuem. Essa compreensão fez com que o legislador admitisse, no Novo CPC, que todo um processo, do início ao fim, fosse fundado exclusivamente em cognição sumária, situação que era impensável no CPC/73, em que o juízo superficial, em sede de pedido de antecipação dos efeitos tutela, somente poderia ser operado no bojo de uma ação de conhecimento, de cognição exauriente, e, em matéria de tutela cautelar, embora possível processo autônomo antecedente, estava este sempre atrelado a um feito principal, por força do princípio da instrumentalidade. A grande inovação, portanto, residiu não em estabilizar a decisãoconcessiva da antecipação da tutela, mas em estabilizar uma decisão (seja qual for o seu conteúdo), fundada em cognição não exauriente. Outra não é a razão de ser da estabilização: se a cognição é profunda, admite-se, desde já, a formação de coisa julgada material, passível de modificação, tão somente, nas excepcionalíssimas hipóteses da ação rescisória – afinal, a questão foi discutida à exaustão; se

 

 

 

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a cognição é sumária, não se opera a formação de coisa julgada, abrindo-se ampla possibilidade de discussão da matéria em exame profundo do mérito, mas admite-se que a decisão seja estabilizada e permaneça produzindo efeitos se as partes não levarem a discussão a um processo de cognição exauriente no prazo de 2 (dois) anos – afinal, a discussão foi superficial e não exauriu o exame probatório, o que se deu por força da necessidade de resolução imediata de matéria urgente.

Conforme já asseverado, porém, o problema dessa perspectiva é que não encontra amparo legal. Em verdade, o que o legislador do CPC/2015 acabou por construir foi um sistema que mistura cognição sumária com exauriente e sujeita a eficácia da estabilização à existência ou não de pronunciamento do réu. Daí o problema da primeira opção, que, embora, resolva de forma lógica a situação aventada, contraria a literalidade do texto legal.

Opção 2: Entender que, ainda, que não haja pedido expresso de tutela final por parte do autor, caso a decisão concessiva da tutela antecipada seja impugnada pelo réu, o juízo deve entregar cognição exauriente, pelo que o processo deve prosseguir na primeira instância com o julgamento de mérito da demanda. Essa posição procura respeitar o texto legal, segundo o qual a tutela antecipada somente se estabiliza se o réu não recorrer da decisão concessiva. Funda-se, ademais, na percepção de que, se houve resistência à antecipação da tutela, o réu, provavelmente, intentará a ação de cognição exauriente, no prazo de 2 (dois) anos, que permite alterar a decisão interlocutória estabilizada. Isto é, se o réu pode, em ação própria, forçar o autor a discutir a questão em cognição exauriente, porque não poderia fazê-lo desde já, no feito em que se encontram as partes, economizando-se tempo e promovendo-se a solução definitiva da controvérsia? Exigir do réu que intentasse nova ação, com nova petição inicial, cópias de peças dos autos do processo anterior, novo recolhimento de custas, e nova citação, sem que este tivesse demonstrado inércia ou resignação em face da decisão que lhe foi desfavorável, seria impor ônus desnecessário ao demandado – e tudo ao livre talante do autor, para quem, no mais das vezes, será suficiente a decisão antecipatória estabilizada. Ademais, poder-se-ia assumir, na esteira da tradição legislativa brasileira, que o pedido de tutela antecipada estaria intimamente ligado a um pedido

 

 

 

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hipotético de tutela final, de modo que, nas específicas circunstâncias aqui aventadas, seria possível estender o pedido de tutela antecipada para abranger um pedido de tutela final. Trata-se, sem dúvida, de uma mitigação ao princípio dispositivo, uma vez que não houve pedido expresso de tutela final, e o Novo CPC, precisamente no ponto, faz uma distinção substancial entre os dois tipos de pedido, prevendo, inclusive expressamente, a sanção de extinção do processo sem resolução do mérito para o caso de ausência de pedido expresso de tutela final. Contudo, por uma questão de coerência com o sistema e com a própria finalidade do instituto, necessário se faz o ajuste interpretativo e, nesse cenário, atribuir o efeito de estabilização contra o texto legal parece mais grave do que atribuir cognição exauriente a um pedido de cognição sumária, sobretudo quando se considere que isso ocorreu por força de uma irresignação do réu, o qual teria o poder de submeter a questão à cognição exauriente em ação própria.

Essa foi a opção adotada pela doutrina majoritária e pelos magistrados que participaram das discussões da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM sobre o Novo CPC. O Enunciado 28 da ENFAM estabelece:

“Admitido o recurso interposto na forma do art. 304, do NCPC, converte-se o rito antecedente em principal para apreciação definitiva do mérito da causa, independentemente do provimento ou não do referido recurso.”

Isto é, para os magistrados que participaram do evento, independentemente de pedido expresso do autor pela tutela final, havendo recurso interposto pelo réu, converte-se o rito antecedente em principal e o processo deve seguir na primeira instância para julgamento do mérito, entregando o juiz cognição exauriente.

Na realidade, é de se reconhecer que, em matéria de antecipação dos efeitos da tutela, mormente quando presente a possibilidade de estabilização, quem ganha na decisão interlocutória não tem interesse em cognição exauriente; quem perde na interlocutória, contudo, quer rediscutir a questão, e, de preferência, em cognição exauriente, pois lhe permite maior liberdade probatória. Para a sociedade e o Judiciário o mais interessante é

 

 

 

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a cognição exauriente, pois sepulta-se de vez a questão, gerando pacificação social e certeza jurídica, com economia de custos. E o legislador, por mais criticável que seja a postura do ponto de vista da plástica procedimental, não construiu um sistema rígido de processos autônomos fundados em cognição superficial. Assim, é possível e chega até a fazer sentido interpretar que a cognição sumária deva ser exceção e que a insurgência do réu contra a decisão possa levar o processo a um juízo de cognição exauriente.

3. Conclusão

Até à presente data, estando o Novo CPC em vigor há apenas 4 (quatro) meses e meio, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal ainda não tiveram a oportunidade de se posicionar sobre o assunto, como, de resto, ocorre com a quase totalidade dos outros temas polêmicos do novel diploma. Estima-se que se levará cerca de uma década para pacificar na jurisprudência as principais questões trazidas pelo novo Código – talvez menos, haja vista a racionalização da jurisdição superior operada pela vinculação precedencial, que em si mesma é outra novidade do sistema. Contudo, por certo, em breve, devem-se formar, ao menos, precedentes locais sobre a matéria, que tende a sedimentar-se no sentido propugnado pela doutrina majoritária.

Para a doutrina dominante, como visto, se o autor requerer a tutela final ou se réu se insurgir contra a decisão que defere a tutela antecipada, mediante recurso ou impugnação perante o Juízo de primeiro grau, esta não se estabilizará e o processo prosseguirá na primeira instância sob o rito comum, para julgamento da tutela final, com decisão do mérito da causa, em cognição exauriente. Independentemente de haver pedido autoral de tutela final, portanto, se o réu impugnar a decisão concessiva da antecipação dos efeitos da tutela, o processo deve prosseguir com o julgamento de mérito da demanda, como se houvesse pedido de confirmação por sentença nos autos. Nessa perspectiva, somente ocorrerá a extinção do processo sem resolução do mérito com o fenômeno da estabilização da decisão concessiva da tutela antecipada se, cumulativamente, o autor não requerer a tutela final e o réu não impugnar de qualquer modo a decisão interlocutória.

 

 

 

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Referências

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NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8. ed. Salvador: JusPodium, 2016.

PALARO, Tainá de Souza. Tutelas provisórias no novo CPC. Disponível em: <http://tainapalaro.jusbrasil.com.br/artigos/216435324/tutelas-provisorias-no-novo-cpc> Acesso em: 04 ago. 2016.

PINTO, Rodrigo Tegani Junqueira. Tutela Antecipada no Novo Código de Processo Civil. Disponível em <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=16214&revista_caderno=21> Acesso em: 04 ago. 2016.

TALAMINI, Eduardo. Tutela provisória no novo CPC:panorama geral Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI236728,81042-Tutela+provisoria+no+novo+CPC+panorama+geral> Acesso em: 04 ago. 2016.

YARSHELL, Flávio Luiz. A tutela provisória (cautelar e antecipada) no novo CPC: grandes mudanças? (II). Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/a-tutela-provisoria-cautelar--e-antecipada-no-novo-cpc--grandes-mudancas-ii/15645> Acesso em: 04 ago. 2016.

 

 

 

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DIÁLOGO DAS FONTES E A PROTEÇÃO DOS USUÁRIOS DE SERVIÇOS PÚBLICOS PELO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

ALESSANDRA KRUGER: analista judiciária no TRF4, graduada com láurea acadêmica em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do RIo Grande do Sul, bolsista CAPES e DAAD para intercâmbio de graduação na Universidade de Giessen, Alemanha, LL.M. (Master of Law) pela Saarland University, Alemanha, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

RESUMO: O presente artigo busca investigar se o método do diálogo das fontes – frequentemente constante da jurisprudência das Cortes Superiores - é adequado à interpretação e solução da dicotomia consumidor-usuário de serviço público. Busca-se responder se seria possível proteger o usuário aplicando-se a disciplina do consumidor sempre que o direito público for omisso em fazê-lo, buscando-se a realização do interesse público.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. A (superável) dicotomia entre direito público e privado A. Caracterização dos serviços públicos – entre o direito público e o direito privado B. Diferenciação entre consumidor e usuário de serviços de energia elétrica 2. O diálogo do CDC com as leis aplicáveis aos serviços públicos de fornecimento de energia elétrica A. A pós modernidade e a necessidade de diálogo com vistas à proteção do consumidor/usuário B. A aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos usuários finais de energia elétrica por meio do diálogo das fontes. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem a pretensão de abordar a dicotomia consumidor–usuário, mormente em vistas aos serviços de energia elétrica, iniciando com a visão pós-moderna da separação entre direito público e

 

 

 

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direito privado, que será defendida já estar superada em muitos aspectos. Inicia-se uma apresentação desta dicotomia e com ilações sobre a noção de serviços públicos[1], ressalvando desde já que não é o propósito do presente trabalho esgotar o tema, que refugiria ao âmbito deste estudo. Na sequencia, apresentar-se-á sumariamente a disciplina aplicada a cada uma destas figuras, consumidor de serviços privados e usuário de serviços públicos, comparando-se a conceituação de consumidor fornecida pelo Código de Defesa do Consumidor com aquela contida nas legislações relativas aos serviços de energia elétrica.

Por fim, e este é o objetivo a que se propõe o presente estudo, será defendida a enorme contribuição que se extrai do diálogo das fontes, na forma como desenhado pelo mestre de Heidelberg, Prof. Erik Jayme, e a nós alcançado pela Prof. Claudia Lima Marques, como método de solução das problemáticas surgidas na aplicação do Código de Defesa do Consumidor a usuários de serviços públicos. O presente estudo segue o plano francês, dividindo-se em duas grandes partes, e tem como marco teórico a obra do Prof. Erik Jayme Identité Culturelle et Integration: Le Droit International Privé Postmoderne. [2]

Conforme já identificou Larenz,[3] as normas jurídicas não se colocam lado a lado sem qualquer ligação entre si, mas em um contexto de interrelações múltiplas umas com as outras.[4] Assim, a ordem jurídica como um todo coerente é regida pelos mesmos pensamentos jurídicos, princípios ou valores, a maioria já expressos na nossa Constituição, que devem justificar a escolha do intérprete na aplicação das leis.[5]

Em consonância com essa necessidade de o jurista atentar para o cânone da totalidade do ordenamento jurídico[6], a Teoria do Diálogo das Fontes permite a conjugação de leis infraconstitucionais para sua aplicação no caso concreto ou a prevalência de uma, atentando-se para os valores consagrados na Constituição, de humanidade, dignidade e proteção dos hipossuficientes, através dos três tipos de diálogos nomeados pelo Prof. Erik Jayme, que serão expostos mais adiante.

Veja-se que ao tratarmos da figura do usuário, estamos adentrando um dos pilares do direito público, referente aos serviços

 

 

 

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públicos. O direito público tem toda a sua base no princípio da legalidade, imposto seu respeito pela Administração no artigo 37 da Constituição Federal, pelo que poderia ser questionada a “relativização” de suas normas imperativas pelo método do diálogo das fontes. Justamente por esta razão, a jurisprudência ainda é bastante tímida na aplicação irrestrita do Código do Consumidor aos usuários de serviços públicos de energia elétrica, embora uma gradativa mudança pode ser percebida nos anos recentes.

Defende-se, no presente estudo, justamente a validade do método do diálogo das fontes para o direito administrativo também, o que possibilita uma maior aproximação da figura do usuário de serviços de energia elétrica aos direitos conferidos aos consumidores em geral, mormente em razão de sua hipossuficiência frente ao prestador de serviço, tendo sempre como Leitmotiv a concreção dos preceitos constitucionais. 1. A SUPERÁVEL DICOTOMIA ENTRE DIREITO PÚBLICO E PRIVADO

A. Caracterização dos serviços públicos – entre o direito público e o direito privado

O sistema jurídico romano-germânico desde sempre reconheceu uma divisão nos ordenamentos jurídicos, separando os regimes de direito público e de direito privado, cada qual com características, princípios, sujeitos, funções e objetivos diversos. Já nas Institutas de Justiniano (I., 1.4.) se declarava que o direito público dizia respeito ao modo de ser do Estado Romano, e o direito privado aos interesses dos particulares.[7]

Segundo o jurista Hely Lopes Meirelles, o direito público interno regula precipuamente os interesses estatais e sociais, e só reflexamente se ocupa da conduta individual, enquanto que o direito privado tutelaria predominantemente os interesses individuais, assegurando, assim, a coexistência das pessoas em sociedade e a fruição de seus bens.[8] Ou seja, se explica uma diferenciação entre as normas de direito público e as de direito privado, pois aquelas buscam o bem comum dos indivíduos em sua coletividade, enquanto que o direito privado é oferecido aos particulares para que estes possam alcançar o seu bem individual, nas suas relações recíprocas.[9]

 

 

 

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Justamente por esta razão é que afirma Cirne e Lima que a relação jurídica de direito público se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente, portanto, não pode ser afastada em prevalência de interesses particulares.[10] A distinção entre direito público e privado não quebra, contudo, a unidade da ordem jurídica, pois se trata de dois aspectos fundamentais de uma mesma ciência.[11]

O advento, então, do Estado de Direito, após a queda da maior parte das ditaduras e o restabelecimento da democracia, garantiu uma aproximação acelerada desses dois campos do direito, sob a iluminação das Constituições Sociais. Neste ponto, direito público e direito privado passaram a se mostrar como duas faces de uma mesma moeda, devendo ambos promover os direitos fundamentais e tutelar a dignidade humana. Desta forma, a autonomia da vontade nas relações privadas cede um pouco do seu espaço para a intervenção estatal, consolidando-se o reconhecimento da necessidade de intervenção ativa do Estado em setores específicos, buscando justamente os fins aludidos: promover os direitos fundamentais e tutelar a dignidade.[12]

A partir de então, tanto o direito público quanto o direito privado se desenvolvem como instrumentos de realização dos fins consagrados na Constituição, não sendo atribuído a nenhum sujeito direito ou poder para a satisfação de seus interesses exclusivos e egoístas. Ambos ramos do direito passam a ter natureza instrumental, de realização dos direitos fundamentais, e não de locupletamento individual do seu titular.[13] O interesse público, em um Estado Democrático, consiste, assim, na vontade da maioria eventual e também na garantia aos interesses da minoria, segundo parâmetros constitucionalmente fixados.[14]

Entretanto, as diferenças entre os dois regimes são indiscutíveis, justamente em vista da referida finalidade cogente das relações de direito público.[15] O regime de direito público disciplinaria poderes, deveres e direitos vinculados diretamente à supremacia e à indisponibilidade dos direitos fundamentais, os quais deve promover.[16] A manifestação da vontade do Estado se faz, portanto, de regra, de forma unilateral, tendo em vista o interesse estatal, do coletivo. Mesmo quando as situações jurídicas se formam acaso por acordo, o regime

 

 

 

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jurídico a que se sujeitam é, em consequência, o estatutário, e as partes são hierarquicamente diferentes, situadas em uma relação vertical.[17] Por outro lado, o regime de direito privado seria norteado pela autonomia da vontade, traduzida principalmente nos institutos da propriedade e do contrato, autonomia na escolha de valores a realizar e na disponibilidade dos interesses em conflito.[18]

Esta dicotomia está presente quando se compara o usuário de um serviço público a um consumidor de um serviço privado. Aquela relação é tipicamente vertical, enquanto esta tenta ser horizontal, independente da vulnerabilidade de uma das partes. Entretanto, em muitos pontos já se faz possível uma aproximação dessas figuras, justamente quando se busca a promoção de direitos fundamentais e da dignidade. Por esta razão, conforme se argumentará, o método adequado para o entrosamento dessas legislações específicas é justamente o diálogo das fontes, sob a égide dos princípios constitucionais.

Algumas definições mais amplas de serviço público consideram como tal toda atividade exercida pelo Estado para a satisfação de necessidades públicas.[19] Outros autores restringem este conceito àquelas atividades prestadas pela administração, não Estado, excluindo, consequentemente, as atividades jurisdicional e administrativa.[20] Nesta linha, o jurista Marçal Justen Filho, seguindo essa linha mais restritiva, nos provê com uma definição bastante minuciosa de serviços públicos, aduzindo ser uma “atividade pública administrativa de satisfação concreta de necessidades individuais ou transindividuais, vinculadas diretamente a um direito fundamental, insuscetíveis de satisfação adequada mediante os mecanismos da livre iniciativa privada, destinada a pessoas indeterminadas, qualificada legislativamente e executada sob regime de direito público."[21]

De qualquer maneira, é o próprio Estado quem escolhe quais atividades serão consideradas como serviços públicos[22] - rol que se ampliou consideravelmente com a introdução do Estado Social, como se viu -, estando eles para nós elencados no Art. 21, incisos X, XI, XII, XV e XXIII, e 25 §2º. As atividades não definidas como públicas constitucionalmente seguem pertencentes ao setor privado, pelo que a

 

 

 

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distinção efetiva entre serviços públicos e privados é constitucional. Os serviços de energia elétrica, cujo regime definido pela ordem constitucional brasileira será mais adiante trazido, estão incluídos neste rol, nomeadamente no Art. 21, inciso XII, letra “b”.

A qualificação de uma atividade como serviço público pressupõe, como se vê do rol referido, o vínculo com os direitos fundamentais, mas é também indispensável a inadequação dos mecanismos da livre iniciativa privada para a satisfação das necessidades correspondentes,[23] juízo este realizado, novamente, pelo constituinte. A Constituição Federal dispõe que incumbe ao Poder Público a prestação dos serviços públicos, devendo lei dispor sobre o regime de concessão e permissão, bem como sobre a fiscalização destes, os direitos dos usuários, a política tarifária e a obrigação de manter serviço adequado, conforme se lê expressamente do Artigo 175 da Constituição Federal.

Ao longo do tempo, o instituto do serviço público tem experimentado diversas crises, tendo alguns autores inclusive proclamado sua morte.[24] Uma das maiores causas dessa crise é sem dúvida a evolução tecnológica, responsável pela alteração da configuração dos serviços públicos, mormente no tocante aos monopólios naturais, como é o caso da energia elétrica. Uma característica marcante do novo serviço público reside na dissociação entre as atividades de regulação e de prestação do serviço público, sendo a competência para a regulação retirada dos prestadores do serviço. Para tanto são criadas entidades administrativas autônomas, as agências reguladoras, que disciplinam o desempenho dos serviços, a fim de assegurar a imparcialidade, democratização e transparência em sua gestão[25], com vistas, principalmente, a preservar a concorrência, beneficiando usuários.

Com a introdução da concorrência na prestação de serviços públicos antes considerados como monopólios naturais do Estado[26], cresce o número de concessionários e permissionários atuando na prestação destes serviços, e aumenta a dificuldade de controle da relação destes com os usuários, gerando uma necessidade de se conferir a estes últimos direitos e prerrogativas mais efetivas e exequíveis. Em face ao usuário, o concessionário se posiciona como se fosse o próprio Estado. As relações

 

 

 

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jurídicas com os usuários não apresentam natureza contratual. Não obstante, os concessionários estão obrigados a respeitar os direitos dos usuários e prestar-lhes o serviço adequado, assim como todas as informações necessárias a sua boa fruição.[27]

A maioria derradeira da doutrina não vislumbra o abandono do instituto dos serviços públicos, justamente em razão da tarefa do Estado de promover os direitos fundamentais. Justamente em razão do caráter de essencialidade ligado aos serviços públicos, regem-se estes por uma série de princípios específicos, alguns legalmente colocados e outros doutrinária e jurisprudencialmente encontrados, sendo principalmente os princípios da continuidade, igualdade, universalidade, neutralidade, isonomia, mutabilidade. Alguns outros são considerados como "novos princípios", como o da adequação da prestação do serviço, transparência, ausência da gratuidade (subsidiado), modicidade tarifária, estes presentes em normas narratórias da Lei 8.897/95 a qual regula a concessão e permissão de serviços públicos.[28]

Entretanto, a onda de privatizações iniciada globalmente na década de 90, trouxe consigo uma consciência da possibilidade de prestação de determinados serviços públicos pelos particulares, entendendo-se benéfica a introdução da concorrência em setores que antes eram considerados monopólios naturais.[29]Consequência inevitável deste movimento uma adequação do conceito de serviço público e da sua regulação; somado ao valor pós-moderno de proteção do consumidor hipossuficiente, surge um cenário no qual os usuários dos serviços públicos – prestados por particulares com um certo nível de discricionariedade -, vêm a merecer proteção em um mesmo nível à dos consumidores de serviços particulares.

No ponto, merece destaque a lição do jurista Juarez Freitas, que delimita ser serviço público todo aquele essencial para a realização dos objetivos fundamentais do Estado Democrático, não podendo o Estado prescindir de sua adequada prestação, justamente porque considerado, num dado contexto histórico, como essencial à consecução de seus fins. Assim, tudo o que transbordasse da essencialidade não deveria ser reputado como

 

 

 

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serviço público, ainda que o seja nominalmente, nos dias que correm, por força normativa.[30]

Relativamente à mudança na visão e estrutura dos serviços públicos, pode se trazer, exemplificativamente, a experiência europeia que deixou o conceito de “serviços públicos”, fortemente influenciado pelo direito francês, passando a englobá-los no conceito de “serviços de interesse econômico geral”. Traço relevante desta noção é que não é o regime jurídico aplicado, nem o vínculo com o Estados que os definem, mas a configuração de um interesse econômico geral.[31] A Comunicação da Comissão Europeia sobre os Serviços de Interesse Geral na Europa, de 1996,[32] já deixava claro que, a despeito da adoção do modelo de economia aberta, a União está também fundamentada na solidariedade e igualdade de tratamento, concretizadas também pelos serviços de interesse econômico geral.

No novo contexto comunitário, de privatizações, liberalização, abertura á concorrência e internacionalização dos contratos públicos, o Estado vai abrindo mão da sua responsabilidade de execução (Erfüllungsverantwortung), a qual tende a ser substituída por uma responsabilidade de garantia de prestação (Gewährleistungsverantwortung), e por fim por mera responsabilidade de controle e fiscalização (Beobachtungsverantwortung).[33] Isto demonstra que a vinculação dos serviços de interesse geral (para nós inseridos no conceito de serviços públicos) não necessariamente devem estar vinculados somente ao regime de direito público, sendo possível o diálogo também com normas de direito privado, como é o caso do Código de Defesa do Consumidor.

Atendendo à orientação Constitucional, contida no Art. 175, inciso III, de se garantir o direito dos usuários, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), no seu artigo 6º, dispõe ser direito básico do consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral, e obriga ao fornecimento de serviços adequados, eficientes, seguros e contínuos, dispondo inclusive sobre a reparação de danos, no artigo 22 do diploma. Entretanto, as figuras do usuário e do consumidor não são coincidentes, e nem a figura do “consumidor” de energia elétrica contida

 

 

 

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na legislação setorial é idêntica àquela provida pelo CDC, pelo que cabe analisar a sua distinção mais aproximadamente. B. Diferenciação entre consumidor e usuário de serviços de energia elétrica

Conforme visto, a dicotomia rígida entre o Direito Público e o Direito Privado já não faz o mesmo sentido de outrora, sobretudo em virtude do recente fenômeno da constitucionalização do Direito em geral. A dignidade da pessoa humana passa a ser o princípio fundamental, de que todos os demais princípios derivam e que norteia todas as regras jurídicas, conduzindo a uma “personalização do direito administrativo”[34], voltado primordialmente à proteção da dignidade individual dos cidadãos.

O advento do Estado de Direito Democrático significou que supremacia do interesse público não pode significar a supressão de interesses privados. Um dos mais graves atentados ao interesse público consiste no sacrifício prepotente, desnecessário ou desarrazoado de interesse privado.[35] Nesse ponto, a distância entre direito público e privado é reduzida, porquanto ambos devem respeitar e buscar concretizados os preceitos fundamentais e a dignidade, devendo aqueles receber maior proteção por parte do Estado, cuja dignidade não pode ser protegida ou realizada por seus próprios esforços e com recursos individuais isolados.[36]

Em uma visão de serviços públicos mais adequados à realidade pós-moderna, é atribuído ao usuário um papel central, sendo os serviços voltados para a concretização da dignidade destes. É necessário reconhecer-se que o serviço é prestado em favor de um usuário, o qual detém direitos subjetivos e pode reclamar sua satisfação.[37] A supremacia do interesse público sobre o privado, que poderia opor-se à extensão dos direitos dos consumidores aos usuários, defendida por grande parte da doutrina, não parece ser suficiente para afastar o diálogo, uma vez que, no contexto constitucional atual, a tutela da dignidade de cada um dos cidadãos jamais poderá ser olvidada, nem mesmo em atenção ao interesse coletivo.[38]

 

 

 

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A doutrina usualmente utiliza-se da expressão usuário para indicar todos os sujeitos que, em tese, possam a vir a utilizar-se do serviço público.[39] Distingue-se do consumidor por vários motivos que se irá expor, este definido no CDC, Art. 2º, como "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final."[40]

Há duas principais correntes de definição do conceito de consumidor, sendo uma restritiva,[41] segundo a qual consumidor será somente aquele que de fato e sob o ponto de vista econômico retira do mercado de consumo determinado bem ou serviço, enquanto que uma corrente “maximalista” pretende estender a aplicação do CDC a todos os agentes do mercado de consumo, bastando, para tanto, que o bem ou serviço seja retirado de fato do mercado.[42] Esta última conceituação se aproxima do que a legislação do setor de energia elétrica engloba em consumidor. O perigo de uma ampliação do conceito é que, como consequência, a proteção conferida pela jurisprudência é reduzida quando também aplicável a agentes de mercado menos vulneráveis.

A noção de consumidor acompanha as relações comerciais privadas, atuando como um controle à suas práticas, ao lado do direito concorrencial.[43] Tradicionalmente, são diferenciados ambos os conceitos, pois a noção de consumidor pressupõe a hipossuficiência, econômica e jurídica, que é dita inexistente nas relações de serviço público, não podendo a posição do usuário ser caracterizada como de fragilidade frente ao prestador de serviços, uma vez que é ele o destinatário desta prestação.[44] Entretanto, conforme será argumentado, tomando-se por exemplo o serviço de fornecimento de energia elétrica a usuários finais, esta compreensão já em muito se distancia da realidade observada e paulatinamente compreendida por nossos tribunais. Nas palavras de Juarez de Freitas, “a luta pela eficácia social do princípio da proteção do consumidor de serviços públicos implica, antes de mais, o reconhecimento técnico e fático da vulnerabilidade dos usuários”.[45]

Neste ponto, importa destacar que a posição jurídica de um usuário de serviço público monopolizado, marcado por liberdade bastante restrita do prestador, é distinta daquela ocupada por um usuário de serviço prestado em regime que assegure ao concessionário liberdade mais ampla

 

 

 

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na definição dos termos, pois nesses reduz-se a intensidade das garantias públicas ao usuário e amplia-se o regime próprio das relações de consumo. Nos serviços monopolizados, o controle público é, em regra, muito maior, diante da ausência de concorrência, dificultando a aplicação do direito do consumidor à relação.

Já nos serviços prestados em caráter de concorrência, atualmente a maioria, o regime a que será submetido esta relação não deixará de ser de direito público, mas abre-se mais espaço para o diálogo com as normas aplicáveis aos consumidores de direito privado, e mesmo com o direito da concorrência, cujo objetivo primordial é também a proteção dos consumidores.[46] Nestes casos, o Direito do Consumidor atua como uma espécie de segunda face do Direito antitruste, buscando-se em todos os casos evitar as distorções produzidas pelos mecanismos de mercado, assim como ocorre nos serviços privados.[47]

Indiscutível o caráter de verticalidade na relação entre usuário e prestador do serviço público, devendo-se sempre conciliar, por conseguinte, as prerrogativas administrativas e a proteção do consumidor, sob a égide da Constituição. Entretanto, em uma compreensão pós-moderna da necessidade de proteção dos hipossuficientes, é necessário estabelecer-se uma ponte entre a situação estatutária e a relação de consumo.[48] Este já tem sido o reconhecimento do STJ, da existência de uma relação de consumo na prestação de serviços públicos por delegação[49]. A questão da proteção do usuário deve, inclusive, ser considerada entre os fatores determinantes da magnitude do risco que assume o prestador, da mesma forma o custo da proteção do CDC é computada nos cálculos de um prestador de serviço aos consumidores.[50]

No caso dos serviços de energia elétrica, deve-se atentar para a utilização, na legislação setorial, do vocábulo “consumidor”, pelo qual são designados os grandes consumidores, os quais têm a possibilidade de escolher o fornecedor de energia. Neste sentido os artigos 15 e 16 da Lei 9074/95 (Lei geral das concessões). A Resolução Normativa 414/2010 da ANEEL, que estabelece as condições gerais de fornecimento de energia elétrica, no seu artigo 2º, XVII, traz definições específicas dos diversos tipos considerados de consumidores, quais sejam:

 

 

 

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XVII – consumidor: pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, legalmente representada, que solicite o fornecimento de energia ou o uso do sistema elétrico à distribuidora, assumindo as obrigações decorrentes deste atendimento à(s) sua(s) unidade(s) consumidora(s), segundo disposto nas normas e nos contratos (...)[51]

Portanto, deve-se ter em conta que, ao falar-se aqui em extensão da proteção do CDC aos usuários do serviço de energia elétrica está-se referindo tão somente àqueles usuários que também se poderiam enquadrar na definição restritiva do Art. 2º do CDC, ou seja, aqueles que sejam destinatários final do serviço, e não intermediários da comercialização.

Veja-se que o STJ já restringiu a aplicação do CDC somente aos usuários finais dos serviços de energia elétrica, explicitando que, “não sendo a empresa destinatária final dos bens adquiridos ou serviços prestados, não está caracterizada a relação de consumo”.[52] Em que pese o artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor não faça esta distinção, a jurisprudência têm, acertadamente, pautado-se pelo espírito deste Código, e sua intenção de proteção aos hipossuficientes, que seriam os usuários finais, podendo-lhes, assim, garantir uma proteção mais ampla. Portanto, no presente estudo, ao falar-se em “consumidor de energia elétrica”, toma-se o conceito à luz da interpretação que lhe deu o STJ, significando aquele usuário final do serviço, em um verdadeiro exercício de diálogo com o Código de Defesa do Consumidor.

Ambos os conceitos, de consumidor e usuário, partem de matrizes constitucionais diversas: a defesa do consumidor é referida como princípio da ordem econômica no artigo 170, V, e como um dos direitos e deveres individuais e coletivos no artigo 5, XXXII. Já os direitos dos usuários vêm garantidos constitucionalmente nos artigos 150, §3º e 175, II. Já a previsão de um código de defesa dos direitos dos consumidores veio presente no Art. 48 ADCT. Por outro lado, na EC. 19/1998, no art. 27, fez-se alusão a uma lei de defesa dos direitos do usuário de serviços públicos, o que claramente indicaria a inaplicabilidade, na íntegra, do código

 

 

 

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destinado aos consumidores, em razão das divergências entre as duas figuras.

Há, ainda, ainda uma distinção econômica entre as duas figuras: consumidor é aquele que vai ao mercado procurar, segundo uma relação de oferta e preço. Esta escolha não se estende ao usuário, que faz uso de uma mercadoria essencial à sua existência, independentemente de preço, oferta ou escassez.[53] De uma leitura dos dispositivos constitucionais, portanto, vê-se que, enquanto que o consumidor é um agente da economia de mercado, o usuário é tão somente destinatário de um serviço público.[54] Justamente esta fragilização do usuário, em não poder prescindir do serviço prestado, por exemplo, o de fornecimento de energia elétrica, é que torna a dicotomia entre direito público e direito privado superável, para fins de lhe garantir uma proteção conforme o princípio constitucional da dignidade humana.

Na lição de Konrad Hesse, a Constituição transforma-se em força ativa se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se fizerem-se presentes, na consciência geral, a vontade de Constituição.[55]Conforme reconhece o renomado jurista, entre a norma fundamentalmente estática e racional e a realidade fluida e irracional, existe uma tensão necessária e imanente que não se deixa eliminar.[56] No presente caso, então, a inexistência de uma lei específica que garanta proteção dos usuários pelo menos equivalente ao Código do Consumidor, impõe-se, em atenção à vontade da Constituição de proteção da dignidade humana,[57] a superação da dicotomia entre o direito público e o privado, neste ponto, para alcançar-se aos usuários de serviços públicos a proteção já garantida aos consumidores na legislação ordinária.

Assim sendo, o diálogo entre as leis aplicáveis a um e a outro se faz útil e inclusive necessário à garantia de direitos fundamentais e da dignidade, levando-se para o regime do usuário figuras da proteção consumeirista, sempre que se fizer sentir a omissão do direito público em determinado caso. Importante é que se possibilite a incorporação do modo de pensar trazido com o Código de Defesa do Consumidor para o serviço público. Conforme bem observa a autora Bibiana Graeff Pinto, o status de consumidor não substitui o de usuário, mas este último seria protegido tanto

 

 

 

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pelo direito dos serviços públicos quanto pelo direito do consumidor.[58] Nas palavras da autora, “os usuários de serviços públicos devem ser considerados como usuário-consumidor”, recebendo uma proteção suplementar do direito do consumidor.[59]

Conforme se viu, nossa Constituição demanda a proteção dos consumidores e dos usuários, sempre buscando-se a afirmação da dignidade humana, mas também garante as prerrogativas da Administração Pública para a concreção do interesse público, o qual difere do interesse particular de cada um dos usuários. A Carta Fundamental, portanto, manda direito público e direito privado dialogarem, para a concreção dos direitos fundamentais.

Quando se desce ao plano das leis infraconstitucionais, contudo, têm-se aquelas que regulam os serviços públicos e direito dos usuários – como exemplo principal a Lei 8.987/95, que regula as concessões e permissões e, pertinente ao presente estudo, a Lei 9.074/95, que regula a concessão dos serviços públicos inclusive o de energia elétrica, bem como as demais legislações setoriais-, e o Código do Consumidor, com alguns dispositivos considerados típicos de direito administrativo, mas a maioria voltada à regulação das relações privadas. A aplicação de uma ou outra lei a um determinado caso não é conflito passível de ser resolvido pelas regras de solução de conflito de leis dadas pela lei civil, necessitando de um método mais adequado a resolução dos casos concretos atentando-se para a dignidade e outros preceitos fundamentais, que, conforme se verá, é o método da teoria das fontes.

O desenvolvimento da força normativa da Constituição não depende, como reconhece Hesse, só do conteúdo da Constituição, mas também de sua práxis. A concepção de vontade de Constituição deve ser partilhada por todos os partícipes da vida constitucional,[60] no que desponta a importância da recente tendência jurisprudencial na questão, mormente no tocante aos serviços de fornecimento de energia elétrica, conforme se verá na sequencia. 2. O diálogo do CDC com as leis aplicáveis aos serviços públicos de fornecimento de energia elétrica

 

 

 

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A. A pós modernidade e a necessidade de diálogo com vistas à proteção do consumidor/usuário

O método da teoria das fontes foi detalhadamente apresentado à Comunidade Internacional pelo Prof. Erik Jayme, da Universidade de Heidelberg, em 1995, na Conferência de Direito Internacional de Haia, inserindo-se na tradição da visão sistemática do direito, ao ratar da coerência do direito posto, mas atualizada por uma visão cultural do direito e uma nova perspectiva humanista.[61] Foi com sucesso e gradual aceitação introduzido no direito brasileiro pela jurista Prof. Claudia Lima Marques, aparecendo hoje reiteradamente em decisões importantes das Cortes Superiores.

Os critérios clássicos para a solução de antinomias foram positivados na Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942, no Artigo 2º. São eles (i) a anterioridade, que determina a retirada da lei anterior do sistema pela lei mais recente, (ii) a especialidade, critério pelo qual a lei especial derroga a lei geral se regular inteiramente a matéria da anterior geral e (iii) a hierarquia, pelo que a lei hierarquicamente superior, determinada por critérios formais, afastaria a lei inferior. A técnica tradicional de solução de conflitos determina, assim, necessariamente a aplicação de uma única norma, excluindo-se da aplicação a normal conflitante, segundo tais critérios.

Entretanto, referida solução mostra-se insuficiente e ineficaz nos tempos pós-modernos, principalmente por duas razões. Primeiramente, porque identifica-se a necessidade de o direito concretizar os direitos fundamentais e, especialmente, a dignidade humana, tidos como Leitmotive, valores a nortear o caos legislativo atual.[62] O que nos leva à segunda razão da insuficiência das regras clássicas de solução de conflitos de lei, o que o autor Ricardo Luiz Lorenzetti denomina a “Era da desordem”, em razão do fenômeno da decodificação[63], chegando a referir ao fenômeno do “big bang legislativo”.

O fenômeno da Codificação surge historicamente como uma reação justamente como forma de conter-se o ativismo judicial, sinônimo, à época, da tirania dos juízes, apoiando-se, consequentemente,

 

 

 

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no positivismo Kelseniano. A evolução social e mormente a criação do Estado de Direito trouxeram de volta a necessidade de se interpretar as leis de forma a concretizar os novos preceitos constitucionais, demandando dos juízes serem mais do que a Bouche de la Loi, como defendia Montesquieu.[64]

O Professor Erik Jayme elenca três características do nosso tempo, quais sejam, a velocidade, a ubiquidade e a liberdade.[65] Consequência desta velocidade, principalmente, é o surgimento de novas leis em forma de microssistemas, leis esparsas, produção legislativa intensa. Por consequência, os tempos pós-modernos não mais admitiriam uma monossolução, como a proposta por nossa Lei de Introdução do Código Civil, mas demandariam o que o professor denominou diálogo: a superação de paradigmas substituída pela convivência dos paradigmas.[66]Assim, não mais se faria necessária a supressão de uma das normas na aplicação ao caso concreto, mas o juiz escutaria o diálogo destas, aplicando-as simultaneamente, complementariamente ou subsidiariamente.

Três são os diálogos possíveis entre duas ou mais normas, conforme explicado pelo mestre de Heidelberg. Pode-se observar (i) um diálogo sistemático de coerência, quando uma lei serve de base conceitual para a outra, (ii) um diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade, quando uma lei complementa e acrecenta à aplicação de outra, e (iii) o diálogo de coordenação e adaptação sistemática, em um diálogo de influências recíprocas ou com a transposição das conquistas doRichterrecht de um campo do direito ao outro.[67] Este dialogo é possibilitado, e justificado, pelos elementos que o Professor Erik Jayme ensina como característicos do direito pós-moderno: o pluralismo, a comunicação, a narração e o retorno aos sentimentos.[68] O pluralismo se refere tanto a uma diversidade de estilos e valores, somados à tolerância crescente entre as pessoas, quanto a uma diversidade de fontes legislativas para regulação do mesmo fato, e traz consigo a exigência que “lês situations différentes soient traitées différemment”[69].

A narração é o elemento base da teoria do diálogo das fontes, referindo-se às normas, cada vez mais presentes nos ordenamentos

 

 

 

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jurídicos atuais, que em lugar de imporem obrigações, apenas descrevem valores e motivos, aos quais necessariamente deve atentar o intérprete em caso de conflitos de leis. O retorno aos sentimentos delineia a forma como deve ser conduzido esse diálogo. Trata-se do retorno aos valores humanos, a salvaguarda da identidade cultural, da dignidade, dos preceitos fundamentais, que devem ser os motivos condutores do ordenamento jurídico e de sua aplicação.[70] O diálogo das leis deve, assim, alcançar a finalidade narrada em ambas as normas aplicadas, sob a luz da Constituição de seu sistema de valores.[71]

A aplicação do método do diálogo das fontes ao direito administrativo pode inicialmente ser questionada, porquanto este se subordina, como regra, à legalidade estrita. Entretanto, também nesta matéria observa-se a aplicação jurisprudencial, paulatinamente crescente, do referido método.[72],[73] Aqui argumenta-se a necessidade de uso do método do diálogo das fontes para a resolução de antinomias entre os regimes aplicáveis aos usuários de energia elétrica e consumidores, visando garantir àqueles a proteção que lhes é constitucionalmente assegurada, com aplicação subsidiária do código do consumidor, nos pontos em que a legislação de direito público é omissa. Em muitas hipóteses, conforme se verá, esse diálogo entre direito privado e direito público é plenamente possível, conduzindo a soluções aceitáveis dentro do método, como sendo aquelas que garantem maior proteção aos hipossuficientes e promovem a dignidade humana.

De início, é necessário reforçar a diferença entre as figuras do usuário e consumidor, sendo o diploma da lei 8.078/90 (consumidor) aplicável inicialmente aos consumidores de serviços privados. Referida lei dispõe de dois dispositivos aplicáveis diretamente aos usuários de serviços públicos, notadamente os artigos 6º, X, e 22º.[74]

Afora estes dispositivos, a Lei 8.987/1995, que regula as concessões e permissões de serviço público, dedica alguns de seus dispositivos à proteção dos usuários, frente aos concessionários e permissionários, os quais com os usuários se relacionam como se o Estado fossem, mormente o Art. 7º. Essa aplicação do CDC aos usuários deve ser, então, adicional à proteção conferida pelo direito público, e é adequada

 

 

 

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sempre que houver algum espaço de liberdade aos prestadores (permissionários ou concessionários). Não se pode olvidar, porém, que referida aplicação deve ter sempre atenção ao fato de que os contratos com a Administração Pública jamais perdem seu caráter de verticalidade, reservadas à Administração faculdades que desequilibram o contrato.[75]

O artigo 4º, VII do CDC declara ser um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo a “racionalização e melhoria dos serviços públicos” e o art. 6º, X, do CDC prevê que é um direito básico do consumidor “a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral”. Estas normas narrativas estabelecem um norte ao diálogo entre as leis aplicáveis, quando em conflito, conforme ensinamentos do mestre Erik Jayme.

Adentrando, no próximo ponto, especificamente a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos usuários finais de energia elétrica, verificar-se-á a possível superação da dicotomia entre as figuras de usuário e consumidor, devendo garantir-se àqueles a proteção que lhes é constitucionalmente garantida e que, à vista das peculiaridades do serviço, que não permite a escolha do fornecedor pelos pequenos consumidores, deve somar a proteção já legislada do direito público à proteção do consumidor em geral, por meio do diálogo das fontes.

B. A aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos usuários finais de energia elétrica por meio do diálogo das fontes

A atividade de fornecimento de energia elétrica foi durante muito tempo considerada indivisível e um monopólio natural. A evolução tecnológica assistida permitiu perceber-se, contudo, que em algumas fases dessa cadeia de serviços seria possível introduzir-se o regime de concorrência, como é o caso da atividade de geração da energia e de comercialização da energia, remanescendo como monopólios naturais as atividades de transmissão e distribuição desta, que dependem de uma só rede.

 

 

 

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Na década de 90, então, o setor de energia elétrico brasileiro experimentou a desestatização e privatização, mormente nos setores de geração e distribuição de energia. Assim, o Estado deixou paulatinamente de ser o executor dessas atividades de interesse público e passou a ser o regulador, criando-se a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), mediante a Lei 9.427/96, com a função de precipuamente fazer surgir um mercado, garantindo a livre entrada de novos interessados, sua permanência e a troca de bens e serviços entre eles.[76] Mais recentemente, surgiram as licitações para a compra e venda de energia, destacando-se o papel da CCEE – Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, onde a compra de energia é negociada em leilões ou mediante contratos bilaterais.

De acordo com a legislação setorial, conforme já explanado, consumidores são aqueles que compram em grande quantidade, negociam energia elétrica, tendo a possibilidade escolher o fornecedor. Esse “consumidor” é aquele que paga um preço pela energia, diferente do usuário final, pequeno consumidor, que paga uma tarifa, integralmente regulada pelo Poder Concedente e acompanhada pela ANEEL.

A Lei nº 9.427/96, que criou a ANEEL, em seu artigo 3º, V, prevê que a esta compete dirimir, em âmbito administrativo, as divergências entre concessionárias e entre elas e os consumidores, o que significa afirmar que ela constitui o único âmbito administrativo de fazê-lo.[77] Há, no âmbito legislativo, uma preocupação com o discurso oficial em garantir a neutralidade das Agências Reguladoras, em razão do alto risco de captura destas pelas pressões políticas e econômicas. Por esta razão, o direito de participação do consumidor é considerado digno de tutela, e é, ao menos formalmente, garantido pela legislação setorial em vigor (Lei 9.427/96 e Decreto 2.335/97).

Existem Conselhos de Consumidores de Energia Elétrica, criados pelas concessionárias e permissionárias, que são constituídos por consumidores voluntários de todas as classes, inclusive residencial, bem como representantes dos órgãos de proteção e defesa do consumidor. Da mesma forma, o Operador Nacional do Sistema elétrico (ONS) conta com a participação de pequenos consumidores, porém sem direito a voto.[78] Entretanto, em razão da complexidade dos serviços, a

 

 

 

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participação é dificulada, uma vez que os consumidores participantes são em sua maioria leigos nos assuntos eminentemente técnicos, o que requer ainda um avanço na garantia deste direito.[79]

A legislação específica traz já normas que fazem menção à defesa do consumidor, como é o caso da Lei n. 9.478/97, que dispõe sobre a política energética nacional, que estabelece, no art. 1º, III, o objetivo de “proteger os interesses do consumidor quanto ao preço, qualidade e oferta dos produtos”.

Ademais, a Resolução ANEEL n. 414/2010 traz pormenorizadamente algumas garantias aos pequenos consumidores, quais sejam: especificação das informações mínimas que devem constar da fatura, elencando um total de 15 itens (art. 119), garantia aos consumidores residenciais de baixa renda a possibilidade de parcelamento de débito (art. 118), garantia de instalação de medidores gratuitamente às famílias de baixa renda (art. 74).

Especificamente no que tange o corte de energia elétrica, a proteção do consumidor inadimplente não é a mesma verificada no âmbito de outros serviços públicos, como é o caso de fornecimento de água. Ao contrário do que usualmente dispõe a legislação sobre o serviço de fornecimento de água, a obrigatoriedade de fruição não foi imposta pelas normas vigentes para o setor elétrico, tendo cada usuário o direito de optar por ter ou não acesso ao serviço, razão pela qual não se aplica ao setor necessariamente os mesmo fundamentos do corte no fornecimento de água.[80]

A lei prevê uma proteção nesse sentido, um tratamento diferenciado, somente para os "consumidores" que sejam prestadores de serviços públicos (Art. 17 da Lei 9.427/96[81]); ainda assim, determina que apenas seja comunicado o poder público responsável antes de proceder-se o corte. Diverge da posição adotada pelo STF quanto ao serviço de água, que proibiu o corte do fornecimento.[82] Mesmo com relação a estes prestadores de serviços essenciais, portanto, a interrupção do fornecimento de energia elétrica é entendida legal, após a notificação referida no art. 17 da Lei nº 9.427/96.[83] Contudo, a recente jurisprudência do Tribunal

 

 

 

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Regional Federal da 4ª Região, já vem reconhecendo a impossibilidade de corte no caso de consumidor de baixa renda que necessite do fornecimento de energia elétrica para sua sobrevivência, mediante aparelhos. Nesse sentido cumpre transcrever:

MANDADO DE SEGURANÇA. SUSPENSÃO DO SERVIÇO DE ENERGIA ELÉTRICA POR INADIMPLEMENTO. IMPOSSIBILIDADE. ESPECIAL CONDIÇÃO DE SAÚDE DO USUÁRIO. Não se trata de deferimento de fornecimento de energia elétrica de forma gratuita, pois é dever da impetrada fornecer o serviço e do usuário cumprir com a contraprestação, ou seja, adimplir os seus encargos, para que se possa manter o equilíbrio financeiro da atividade econômica. O que se está assegurando na presente ação é a continuidade do serviço, tendo em vista a particularidade relacionada à saúde do cônjuge da impetrante, sem impossibilitar a cobrança de eventual dívida pelas vias legais pertinentes. (TRF4, APELREEX 5002558-84.2010.404.7201, Terceira Turma, Relatora p/ Acórdão Maria Lúcia Luz Leiria, D.E. 23/09/2011).

Veja-se que permeia tal decisão o reconhecimento de que no conceito de serviço público se busca justamente garantir o princípio da dignidade da pessoa humana, especialmente pelo atendimento às populações de baixa renda.

A despeito do reconhecimento, na própria legislação específica, de alguns direitos aos usuários, em muitos pontos ainda se faz necessário diálogo com o Código de Defesa do Consumidor, conforme inclusive é reconhecido pela Corte Superior de Justiça, como é o caso da inversão do ônus probatório, calcada no art. 42, parágrafo único do CDC, garantida aos usuários de serviço de energia elétrica,[84] da restituição em dobro dos valores cobrados erroneamente,[85] ou a aplicação de penalidade pelo PROCON a distribuidora que tenha efetuado corte no fornecimento indevidamente.[86]

 

 

 

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Conforme se vê, mesmo a disciplina processual da defesa do consumidor é integralmente aplicável ao usuário, podendo ser aplicáveis à tutela dos usuários as ações disponíveis no CDC, no art. 83, garantindo-se, assim, a eficaz tutela de sua dignidade. No atinente à defesa do consumidor de serviços públicos em juízo, da mesma forma, esta poderá ser exercida individualmente ou de modo coletivo, conforme possibilita o art. 81 do CDC.

Outro exemplo possível de aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos usuários de energia elétrica, através do diálogo das leis, poder-se-ia elencar o direito do usuário de obter a prevenção – não apenas da reparação – dos danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos, sem que seja necessário haver dano previamente, conforme previsto no CDC, art. 6º, VI. Pode-se pensar, a título de exemplo, em exigir o conserto de uma fiação que ameace cair sobre trausentes. Não há qualquer previsão deste tipo na legislação administrativa, contudo, esta aplicação respeitaria os dispositivos constitucionais, atendendo à concreção da dignidade humana sem, contudo, desrespeitar os imperativos do direito público, pelo que o diálogo se mostra possível e adequado.

Desta exposição de vê que, no âmbito dos serviços públicos de energia elétrica, o diálogo da legislação setorial com o CDC não é somente possível, mas já é reconhecido pelas Cortes Superiores, pensando-se a tutela destes usuários em termos de consumidores, à égide dos princípios constitucionais. Mormente nos espaços de liberdade dos prestadores do serviço, há um afastamento do direito público, e a aplicação das normas do consumidor na tutela dos vulneráveis faz-se imprescindível.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se conclui é que o método das fontes é adequado a interpretação e solução da dicotomia consumidor-usuário, mormente o diálogo de complementaridade / subsidiaridade. Isto quer dizer que deve-se proteger o usuário aplicando-se a disciplina do consumidor sempre que o direito público for omisso em fazê-lo, e na medida em que não impeça a concreção do fundamento deste, que é a realização do interesse público. É

 

 

 

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necessário ter-se em mente que a aplicação das normas do direito do consumidor não pode ser feita aos usuários de serviço público na mesma extensão que das relações privadas, nas quais não existem interesses transcendentes àquele das partes.[87] Os interesses coletivos devem ser, por certo, sopesados, mas a dignidade do usuário deve ser prevalente, como única maneira de concretizar-se o texto constitucional.

Conforme visto, estamos presenciando uma alteração do Estado prestador para um Estado regulador,[88]concentrando-se a Administração Pública na tarefa de regular, fiscalizar e sancionar os prestadores dos serviços públicos, que passam a ser pessoas jurídicas de direito privado. É uma tentativa de tornar a atuação do Estado mais eficiente, reduzindo custos para a sociedade. Entretanto, esta delegação dos serviços públicos, que passam a ser prestados por empresas privadas, com espaço de liberdade relativamente ao modo de prestação, aproxima-os cada vez mais dos serviços privados e, consequentemente, a figura do usuário à do consumidor.

A dicotomia entre direito público e direito privado não se mostra mais inquebrantável; pelo contrário, as duas áreas convergem cada vez mais na concretização dos fins constitucionais maiores, dentre eles a dignidade da pessoa humana. Neste ponto, a força normativa da Constituição, reconhecida por Hessen, impõe que sejam garantidos aos usuários de serviços públicos os mesmo direitos dos consumidores, mormente quando a atuação questionada do concessionário/permissionário se inserir neste espaço de discricionaridade do prestador.

Estas considerações demonstram a importância do diálogo das fontes entre as normas de direito público protetoras dos usuários, e o Código de Defesa do Consumidor, diálogo este que deve ocorrer visando a maior proteção dos direitos humanos e da dignidade, como Leitmotiv de sua aplicação. No presente estudo foram abordados, especificamente, os serviços de energia elétrica, prestados sob a égide da Lei 9.427/96. Conforme visto, esta já traz em seu corpo a previsão de alguns direitos aos usuários; são, porém, ainda mais restritos do que aqueles garantidos aos consumidores, razão pela qual os tribunais já aplicam, em vasta jurisprudência, o Código de Defesa do Consumidor, quando cabível. Veja-

 

 

 

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se que, nesta aplicação, não há uma subversão do regime de direito público, nem o afastamento de seus princípios basilares, mas justamente a acomodação dos direitos do consumidor-usuário dentro deste, em um verdadeiro exercício de diálogo.

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NOTAS:

[1] Eros Robert o Grau defende a utilização do vocábulo “noção” de serviços públicos, em lugar de “conceito”, quando busca-se a significação da expressão serviço público. GRAU, Eros Roberto. Constituição e serviço público. In: GRAU, Eros Robert; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Direito Constitucional – estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 264.

[2] JAYME, Erik. Identité Culturelle et Integration: Le Droit International Privé Postmoderne, 251. Recueil des Cours de la Academie de Droit International de la Haye, 33, 1995.

[3] LARENZ, Karl; CANARIS, Claus-Wilhelm. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. 3ª ed. Berlin: Springer, 1995, p. 263.

[4] Conforme bem coloca o Prof. Juarez Freitas, “a interpretação jurídica é sistemática, ou não é interpretação”. FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 74.

[5] No dizer de Pontes de Miranda, “Essa exigência de sistematicidade do Direito atende à necessidade de coerência e consistência, na conduta

 

 

 

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humana, máxime no que concerne a vida em relação.” DE MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1 de 1969. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 39.

[6] BETTI, Emilio. Interpretação da lei e dos atos jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. XLIX.

[7] BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo. Vol. I. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 42.

[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 38.

[9] BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo. Vol. I. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 46.

[10] CIRNE LIMA, Ruy. Sistema de Direito Administrativo Brasileiro. Porto Alegre: Editora Santa Maria, 1953.

[11] BANDEIRA DE MELLO, Op. Cit. p. 44.

[12] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 47.

[13] Ibidem.

[14] JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Sao Paulo: Malheiros, 1999. p. 122.

[15] Sobre essa distinção, merece ser mencionada a exposição de Norbert Achterberg, que cataloga as mais significativas teorias sobre a separação entre direito público e direito privado como sendo (i) a Subjektionstheorie (teoria da sujeição), (ii) aInteressentheorie (teoria do interesse), (iii) Subjektstheorie (a teoria do sujeito), e (iv) Schwachwaltertheorie (a teoria do mandato), sendo esta última defendida pelo autor porquanto as relações de direito público necessitariam de pelo menos um dos sujeitos legitimado como mandatário do interesse comum. ACHTERBERG, Norbert. Allgemeines Verwaltungsrecht. Heidelberg: Decker & C. F. Müller, 1985. p. 3.

[16] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 46.

 

 

 

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[17] Idem, p. 40.

[18] Idem, p. 45-46.

[19] CRETELLA JUNIOR, José. Administração Indireta Brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 1980. p. 55-60.

[20] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 364. Já Celso Antônio Bandeira de Mello define os serviços públicos como "atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou quem lhe faça vezes, sob regime de direito público - porquanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais - instituídos pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo." Para a caracterização de um serviço público, na visão mais moderna do autor (apresentada na edição de 2002 do seu Curso de Direito Administrativo, p. 628), exigir-se-ia a possibilidade de fruição singular deste, excluindo deste conceito mais restrito os chamados serviços uti universi (como o exercício do poder de polícia), os quais teriam regime distinto dos aplicáveis aos serviços públicos stricto sensu, justamente porque nestes estaria presente a figura do usuário, ausente naqueles. BANDEIRA DE MELLO, CELSO ANTÔNIO. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 628.

[21] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 596.

[22] No dizer do mestre CIRNE LIMA, “A definição do que seja, ou não, serviço público pode, entre nós, em caráter determinante, formular-se somente na Constituição Federal e, quando não explícita, há de ter-se como suposta no texto daquela. A lei ordinária que definir o que seja, ou não, serviço público, terá de ser contrastada com a definição expressa ou suposta pela Constituição.” CIRNE LIMA, Ruy. Pareceres (Direito Público). Porto Alegre: Sulina, 1963. p. 122.

[23] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 598.

[24] Como corajosamente constatou o autor espanhol Gaspar Ariño Ortiz, o serviço público foi um instrumento de progresso e socialização;

 

 

 

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contudo, após ter cumprido sua função, seu ciclo estaria terminado, sendo impossível embalsamar o instituto, pois hoje mudaram os pressupostos econômicos e sociais, políticos e culturais que permitiram o nascimento e desenvolvimento desse instituto. A consequência disso, segue o autor, seria a necessidade de abrir-se caminho a novas realidades, mais competitivas, mais inovadoras, melhorando os serviços e a prestação. O autor fala em "desideologizar" a política econômica, dentro de um novo modelo de regulação econômica. ARIÑO ORTIZ, Gaspar. Sobre el significado actual de la noción de servicio público y su régimen jurídico. In: ARIÑO ORTIZ, Gaspar; DE LA CUÉTARA MARTÍNEZ, Juan Miguel; y MARTÍNEZ LÓPEZ-MUÑIZ, J. L. Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 22-23.

[25] BARCELOS, Betina. O poder normativo das agências reguladoras no direito norte-americano e no direito brasileiro: um estudo comparado. Trabalho apresentado sob a orientação do Prof. Dr. Almiro do Couto e Silva para obtenção do título de mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2008. p.10.

[26] Nesse sentido, o Artigo 16 da Lei 8.897/95 faz referência à ausência de exclusividade nas concessões e permissões, preconizando a concorrência também em setores que antes eram entendidos como monopólios estatais.

[27] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 616.

[28] Ibidem.

[29] IMMENGA, Ulrich et. al. (Orgs.) Die Liberalisierung der Energiemärkte in Europa. Baden-baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 2003. p. 33.

[30] FREITAS, Juarez. Estudos de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 1997. p.33 – 34.

[31] CONRADO, Régis da Silva. Serviços públicos à brasileira: fundamentos jurídicos, definição e aplicação dos serviços. Tese apresentada para a obtenção do grau de doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011. p. 99.

 

 

 

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[32] UNIÃO EUROPEIA, Comissão. Os serviços de interesse geral na Europa. Jornal Oficial das Comunidades Europeias, C 281, 26 set. 1996, f. 3-12.

[33] ESTORNINHO, Maria João. Direito Europeu dos Contratos Públicos. Coimbra: Almedina, 2006. p. 88.

[34] FREITAS, Juarez. Regime dos serviços públicos e a proteção dos consumidores. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Ed. 3, 2001. p. 123.

[35] JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003. p. 35.

[36] JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de interesse público e a “personalização” do direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público. Sao Paulo: Malheiros, 1999. p. 136.

[37] PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Usuários de serviços públicos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 12.

[38] Humberto Bergmann Ávila refuta a existência de um princípio constitucional de supremacia do interesse público sobre o privado, sustentando que essa inexistente supremacia não pode ser sequer havida como postulado explicativo do direito administrativo brasileiro, e que a relação entre os interesse público e privados seria baseada no postulado da reciprocidade de interesses, poderando-os de acordo com a sistematização das normas constitucionais. ÁVILA, Humberto Bergmann. Repensando o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular. In: SARLET, Ingo Wolfgang. O direito público em tempos de crise. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1999. p. 126. Fábio Medina Osório, contrapondo-se à tese avultada por Humberto Ávila, defende ser a administração pautada, finalisticamente, pela perseguição inafastável do interesse público, que é, nesse medida, superior ao interesse privado, notadamente quando se trata de restringir direitos individuais. Tal princípio revelar-se-ia como uma norma instituidora de outras norma, valores e fins legislativos. OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito administativo brasileiro? Revista dos Tribunais, ano 88, vol. 770, dez. 2009. São Paulo: Parma, 1999. p. 88. Ressalva o autor, contudo, que essa supremacia não se traduz na possibilidade de arbítrio dos agentes públicos e tampouco significa que a Administração Pública possa atuar com a mesma liberdade conferida aos

 

 

 

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particulares, antes, pelo contrário, traduz limitações ainda mais rígidas à atividade administrativa. Idem, p. 75.

[39] JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003. p. 549.

[40] Mais detalhadamente sobre o conceito jurídico de consumidor ver: BENJAMIN, Antonio Herman V. O conceito jurídico de consumidor. In: MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Orgs.) Doutrinas Essenciais do Direito do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 935-954.

[41] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor : o novo regime das relações contratuais. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 99.

[42] BONATTO, Cláudio. MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões controvertidas no código de defesa do consumidor : principiologia, conceitos, contratos atuais. 4. ed. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2003. p. 72.

[43] JUSTEN FILHO, Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003. p. 595.

[44] Ibidem.

[45] FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. São Paulo. Malheiros, 2009. p. 148.

[46] PEREIRA, Cesar A. Guimarães. Usuários de serviços públicos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 40 ss.

[47] JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003. p. 555. Nesse sentido ver também COMPARATO, Fábio Konder. A proteção do Consumidor. Importante capítulo do Direito Econômico. In: MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Orgs.) Doutrinas Essenciais do Direito do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 167-186.

[48] Em uma interpretação do Art. 3º, §2º do CDC, as suas normas somente podem ser aplicadas a consumidores de serviçosuti singuli, prestados individualmente mediante

 

 

 

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remuneração, escluíndo-se, assim, os serviços uti universi, e aqueles prestados gratuitamente. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 486.

[49] "Entre o usuário da rodovia e a concessionária, há mesmo uma relação de consumo, com o que é de ser aplicado o artigo 101 do Código de Defesa do Consumidor". REsp 467.883/RJ, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. 3ªT. DJ 1.9.2003.

[50] SALOMONI, Jorge Luis. Teoría General de los servicios públicos. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2004. p. 396.

[51] O dispositivo ainda classifica várias tipos de consumidores, de acordo com a sua capacidade de compra, nas seguintes categorias: a) consumidor especial: agente da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, da categoria de comercialização, que adquire energia elétrica proveniente de empreendimentos de geração enquadrados no § 5odo art. 26 da Lei no 9.427, de 26 de dezembro de 1996, para unidade consumidora ou unidades consumidoras reunidas por comunhão de interesses de fato ou de direito cuja carga seja maior ou igual a 500 kW e que não satisfaçam, individualmente, os requisitos dispostos nos arts. 15 e 16 da Lei no 9.074, de 7 de julho de 1995; b) consumidor livre: agente da CCEE, da categoria de comercialização, que adquire energia elétrica no ambiente de contratação livre para unidades consumidoras que satisfaçam, individualmente, os requisitos dispostos nos arts. 15 e 16 da Lei no 9.074, de 1995; e c) consumidor potencialmente livre: pessoa jurídica cujas unidades consumidoras satisfazem, individualmente, os requisitos dispostos nos arts. 15 e 16 da Lei no 9.074, de 1995, porém não adquirem energia elétrica no ambiente de contratação livre.

[52] AgRg no REsp 916.939/MG, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 04/11/2008, DJe 03/12/2008.

[53] DERANI, Cristiane. Privatização e serviços públicos. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 76

 

 

 

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[54] No tocante a uma maior proteção do usuário, relativamente ao consumidor, pelo direito público, tem-se como exemplo a responsabilidade dos prestadores: as pessoas jurídicas de direito privado que prestam serviços públicos submetem-se à responsabilidade objetiva. Se agente de concessionária de energia elétrica, em atividade de reparação de cabos elétricos, provoca danos a terceiros, a entidade sujeitar-se-á à responsabilidade objetiva, porquanto agindo em delegação do Estado. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Responsabilidade civil das pessoas de direito privado prestadoras de serviços públicos. In: FREITAS, Juarez. Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 147.

[55] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 5.

[56] Idem, p. 10. Após o surgimento do Staatsrecht e do Estado Constitucional, nenhuma disposição jurídico-civil pode estar em contradição com a Lei Fundamental, e todas precisam ser interpretadas em seu espírito, sendo que o os direitos fundamentais passam a reger toda a vida jurídica de um estado. HESSE, Konrad.Verfassungsrecht und Privatrecht. Heidelberg: C. F. Müller Juristischer Verlag, 1988. p. 58.

[57] Esse direito começou a ser desenvolvido no plano internacional (NR: Declaração Universal dos Direito do Homem, art. XXI.2: "Todo homem tem igual direito de acesso ao serviço público de seu país".), o que se coaduna com o diálogo das fontes. Se trata de um reconhecimento de direitos humanos. CASSAGNE, Juan Carlos. El Contrato Administrativo. Buenos Aires: LexisNexis, 2005. p. 275. No Estado pós-moderno, se inicia um movimento jurídico que soleniza o compromisso da gestão pública com resultados que assegurem a concretização dos direitos fundamentais, sem exclusões, nem discriminações, pelo só fato de serem direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, e não favores ou liberalidades do Estado. PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marinês Restelatto. Políticas Públicas nas Licitações e Contratações Administrativas. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 24. Juarez Freitas também propõe a constitucionalização efetiva das relações administrativas, no intuito de promover uma expansão da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais. p.24. FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à boa administração pública e a constitucionalização das relações administrativas brasileiras.Interesse Público, ano 12, n. 60, mar./abr. 2010. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 13-24.

 

 

 

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[58] PINTO, Bibiana Graeff Chagas. La gestion des services publics de distribution et d'assainissement de l'eau: etude comparée en droit français et brésilien. Dissertação de Doutorado. UFRGS, 2008. p. 289.

[59] Idem, p. 308.

[60] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 22.

[61] MARQUES, Claudia Lima. O “diálogo das fontes” como método da nova teoria geral do direito, p.23. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Diálogo das fontes – Do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

[62] MARQUES, Claudia Lima. Direito na pós-modernidade e a teoria de Erik Jayme. p. 29. In: Oliveira Júnior, José Alcebíades (Org.). Faces do multiculturalismo: teoria - política - direito. Santo Ângelo: EDIURI, 2007.

[63] LORENZETTI, Ricardo Luiz. A era da desordem e o fenômeno da decodificação. p. 341 - 376. In: MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Orgs.) Doutrinas Essenciais do Direito do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 397.

[64] Afirmou Montesquieu: “[...] os juízes da nação são apenas, como já dissemos, a boca que pronuncia as palavras da lei, são seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor”. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2005. p.175. Uma visão mais adequada da realidade pós-moderna é resumida por François Rigaux, quando aduz que: “O juiz tornou-se o árbitro de todos os conflitos de leis que os legisladores não puderam ou não quiseram resolver.” RIGAUX, François. A lei dos juízes. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 337.

[65] JAYME, Erik. O Direito Internacional Privado do novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização. p. 5. In: MARQUES, Claudia Lima; ARAUJO, Nadia de (Orgs.). O novo Direito Internacional: Estudos em homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

 

 

 

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[66] MARQUES, Claudia Lima. Direito na pós-modernidade e a teoria de Erik Jayme. p. 31. In: Oliveira Júnior, José Alcebíades (Org.). Faces do multiculturalismo : teoria - política - direito. Santo Ângelo: EDIURI, 2007.

[67] MARQUES, Claudia Lima. Superação das antinomias pelo diálogo das fontes. p. 709. In: MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno (Orgs.) Doutrinas Essenciais do Direito do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

[68] JAYME, Erik. Identité Culturelle et Integration: Le Droit International Privé Postmoderne, 251. Recueil des Cours de la Academie de Droit International de la Haye, 33, 1995, p. 247.

[69] Idem, p.251.

[70] Idem, p. 261.

[71] MARQUES, Claudia Lima. O “diálogo das fontes” como método da nova teoria geral do direito, p.29. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Diálogo das fontes – Do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

[72] MIRAGEM, Bruno. Eppur si muove: Diálogo das Fontes como método de interpretação sistemática. p. 105. In: MARQUES, Claudia Lima (Coord.). Diálogo das fontes – Do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

[73] A exemplo, os julgados: STJ, RMS 29.183-RS, rel. Min. Herman Benjamin, 2ª T., DJe 31.08.2009, (ii) STJ, REsp 1.139.554-RS, rel. Min. Castro Meira, 2ª T., DJe 09.10.2009, (iii) STJ, REsp 1.094.218-DF, rel. Min. Eliana Calmon, 1ª Seção, DJe 12.04.2011, voto vencido do Min. Castro Meira

[74] “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.”

“Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

 

 

 

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Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.”

[75] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.p. 485.

[76] SOUTO, Marcos Jurena Villela. Direito Administrativo em debate: 2ª série. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

[77] ARAGÃO, Alexandre Santos. Agências Reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 298.

[78] GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. O serviço público e a Constituição brasileira de 1988. São Paulo: Malheiros, 2003. p.359.

[79] Idem, p. 361.

[80] CÂMARA, Jacinto Arruda. Tarifa nas concessões. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 89.

[81] Art. 17. A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que preste serviço público ou essencial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Executivo Estadual. Parágrafo único. O Poder Público que receber a comunicação adotará as providências administrativas para preservar a população dos efeitos da suspensão do fornecimento de energia, sem prejuízo das ações de responsabilização pela falta de pagamento que motivou a medida.

[82] STF, RE 94320, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Segunda Turma, DJ 03-11-1981

[83] PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. ENERGIA ELÉTRICA. UNIDADES PÚBLICAS ESSENCIAIS, COMO SOEM SER HOSPITAIS; PRONTO-SOCORROS; ESCOLAS; CRECHES; FONTES DE ABASTECIMENTO D'ÁGUA E ILUMINAÇÃO PÚBLICA; E SERVIÇOS DE SEGURANÇA PÚBLICA.

 

 

 

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INADIMPLÊNCIA. SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO. SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL. (...) Com efeito, ainda que se trate o consumidor de ente público, é cabível realizar-se o corte no fornecimento de energia elétrica, mesmo no caso de prestação de serviços públicos essenciais, como a educação, desde que antecedido de comunicação prévia por parte da empresa concessionária, a teor do art. 17 da Lei nº 9.427/96. Tal entendimento se justifica em atendimento aos interesses da coletividade, na medida em que outros usuários sofrerão os efeitos da inadimplência do Poder Público, podendo gerar uma mora continuada, assim como um mau funcionamento do sistema de fornecimento de energia (...)".EREsp 845.982/RJ, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 24/06/2009, DJe 03/08/2009.

[84] AgRg no REsp 1098876/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/09/2009, DJe 26/04/2011

[85] AgRg no REsp 1296139/MS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/02/2012, DJe 05/03/2012

[86] Ementa: “ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INTERRUPÇÃO NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. APLICAÇÃO DE MULTA PELO PROCON. PROCEDIMENTO LEGAL PARA APLICAÇÃO DA PENALIDADE. PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. OBSERVÂNCIA. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS FORMAIS DO ATO ADMINISTRATIVO. ANÁLISE DE REDUÇÃO DO VALOR DA MULTA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA.” RMS 22.585/RN, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/03/2009, DJe 02/04/2009.

[87] JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo: Dialética, 2003. p. 558

[88] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações nos serviços públicos. REDAE, n. 1, fev./mar./abr. 2005. Disponível em: <http:direitodoestado.com>.

 

 

 

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O PROGRAMA DE GOVERNO ELETRÔNICO BRASILEIRO E SEUS DESAFIOS 

 

JANAÍNA COUTINHO MATTOS: Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, graduada em Tecnologia em Processamento de Dados pelo Centro Universitário de Ciências Gerenciais - UNA, pós-graduada em Gestão de Segurança da Informação pela Universidade FUMEC, Gerenciamento de Projetos pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá, Gestão Estratégica da Tecnologia da Informação pela Universidade Estácio de Sá e Gestão Pública pela Faculdade Internacional Signorelli.

Resumo: A importância da Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) nas organizações privadas e públicas, nos dias de hoje, é indiscutível. A Administração Pública deve utilizar os recursos de TIC para a melhoria da prestação do serviço público, proporcionando maior retorno à sociedade. O governo eletrônico, proporciona a um maior número de cidadãos acesso a um conjunto de serviços e a informações oferecidos por meios eletrônicos. Essa maior acessibilidade proporciona aos cidadãos um governo mais transparente e democrático. Maiores controle social, qualidade de serviços prestados, eficiência na gestão pública, interação entre a sociedade e o governo são proporcionados pelo governo eletrônico. No Brasil o Programa de Governo Eletrônico Brasileiro surgiu no ano 2000 e segue um conjunto de diretrizes que atuam junto ao cidadão, na melhoria da sua própria gestão interna e na integração com parceiros e fornecedores. O Programa de Governo Eletrônico Brasileiro é um avanço no processo de modernização da Administração Pública, mas enfrenta desafios para ser acessível e utilizado por maior número de brasileiros, como melhorar a acessibilidade do portal eletrônico do governo federal, aumentar o interesse do cidadão no Programa de Governo Eletrônico Brasileiro e aumentar o interesse do cidadão no Programa de Governo Eletrônico Brasileiro. Este artigo apresenta um estudo do Programa de Governo Eletrônico Brasileiro e de seus desafios. O objetivo deste trabalho é demonstrar os desafios do Programa de Governo Eletrônico Brasileiro. Neste artigo a Administração Pública é conceituada e são citados os seus desafios; o governo eletrônico é definido; é citado o histórico do governo eletrônico brasileiro, suas diretrizes, estrutura e os desafios enfrentados.

 

 

 

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Palavras-chave: Administração Pública, governo eletrônico, Programa de Governo Eletrônico Brasileiro.

Abstract: The importance of the Information and Communication Technology (ICT) in private and public organizations, these days, is indisputable. Public administration should use the ICT resources to improve the provision of public service, providing greater return to society. The e-government, provides a greater number of people access to a range of services and information offered by electronic means. This greater accessibility gives citizens a more transparent and democratic government. Greater social control, quality of service, efficiency in public management, interaction between society and the government are provided by e-government. In Brazil the Brazilian Electronic Government Program emerged in 2000 and follows a set of guidelines that work with the citizens in improving their own internal management and integration with partners and suppliers. The Electronic Brazilian government program is a step forward in the modernization of public administration, but faces challenges to be accessible and used by more Brazilians how to improve the accessibility of the electronic portal of the federal government to increase the interest of the citizen in the Program Brazilian Electronic government and increase the interest of the citizen in the Electronic Brazilian government Program. This article presents a study of the Brazilian Electronic Government Program and its challenges. The objective of this study is to demonstrate the challenges of Electronic Brazilian Government Program. In this article the Public Administration is conceptualized and its challenges are cited; e-government is defined; is cited the history of Brazilian e-government, its policies, structure and the challenges faced.

1. Introdução A relevância deste artigo consiste em demonstrar a importância do

Programa de Governo Eletrônico Brasileiro e seus desafios.

A TIC é apoiadora e viabilizadora das mudanças necessárias para uma melhor relação entre o cidadão e o governo.

O desafio de aprimorar os usos da TIC no poder executivo brasileiro envolve questões que vão muito além da tecnologia como as pessoas, estruturas, processos e, sobretudo, o conhecimento. Eles devem ser articulados para que os recursos de informática de fato respondam adequadamente às aspirações da Administração Pública e da sociedade seja no que se refere à eficiência e eficácia de processos administrativos,

 

 

 

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seja na melhoria da prestação de serviços públicos, das condições para exercício do controle social e da participação popular [CEPIK, 2014].

A TIC é imprescindível para o fortalecimento da Administração Pública, pois contribui para a modernização do serviço público.

De acordo com Lins (2009, p. 135) “um bom planejamento de TIC na Administração Pública tem sido visto como fator crítico de sucesso não só para a elaboração do orçamento anual e das ações gerenciais, mas também para buscar o mecanismo de alinhamento entre as áreas usuárias e a área da tecnologia”.

O governo eletrônico disponibiliza informações à sociedade com maior transparência e eficiência fazendo uso da TIC.

Segundo Chain (2004, p. 17) “o desenvolvimento do governo eletrônico fortalece a democracia e acelera a competitividade da economia, em que o conhecimento e a organização eficiente são cada vez mais importantes”.

A importância da modernização dos serviços prestados pelo governo cada vez mais se consolida. O governo eletrônico é questão preponderante na melhoria e otimização da prestação do serviço público.

De acordo com Guimarães (2015) outros aspectos que incentivaram o surgimento do governo eletrônico foram a necessidade das administrações aumentarem sua arrecadação e melhorarem seus processos internos e as pressões da sociedade para que o governo otimizasse seus gastos e agisse com transparência, qualidade e de modo universal na oferta de serviços aos cidadãos e às organizações em geral.

Sendo assim, o objetivo geral deste artigo é demonstrar a importância do governo eletrônico brasileiro e seus desafios para o futuro.

Os objetivos específicos deste artigo são conceituar Administração Pública e citar seus desafios; definir governo eletrônico; citar o histórico do Programa de Governo Eletrônico Brasileiro, suas diretrizes, estrutura e desafios enfrentados.

2. Fundamentação Teórica

2.1 Administração Pública

 

 

 

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De acordo com Madeira (2010, p.22) “Administração Pública é a atividade de gestão dos interesses e das necessidades em benefício da coletividade.”

Cada vez é maior a demanda da sociedade por maior qualidade e transparência na prestação do serviço público.

O setor público é o maior provedor de serviços em todo o mundo e a agregação de valor ao serviço público gera um impacto positivo em milhões de pessoas. Conhecer o cidadão e suas necessidades representa a primeira etapa de atendimento de suas expectativas [LINS, 2009].

A Administração Pública deve objetivar atender aos anseios e necessidades da sociedade.

A TIC é essencial nesse novo modelo de administração, uma vez que permite não apenas a melhor alocação dos recursos públicos e a intercomunicação entre os órgãos governamentais e sociedade, mas também o redesenho de processos de governo, de modo a atender as necessidades dos usuários e a ampliar os meios de acesso aos serviços públicos e à própria administração [CEPIK, 2014].

A utilização de melhores práticas na Administração Pública, como por exemplo, o uso da TIC é um fator essencial. Entre as vantagens do uso da tecnologia estão padronização de processos, menor uso de papel, aumento da produtividade e redução de custos.

Segundo Lins (2009, p. 52) “deve haver o alinhamento da prestação de serviço com a necessidade dos cidadãos, através da incorporação da tecnologia no processo de prestação de serviços e da disponibilização de tecnologias para redirecionar o cidadão ao serviço mais apropriado”.

É necessário também o aprimoramento da qualidade dos serviços prestados para tornar a Administração Pública mais eficiente.

Segundo Lins (2009, 46) “para a melhoria dos serviços públicos há de existir consciência do usuário, diminuição das restrições orçamentárias, maior transparência e agenda da reforma no setor público”.

A sociedade demanda cada vez mais a melhoria dos serviços públicos porque apesar da alta carga tributária brasileira, o retorno de serviços para a população é baixo e demanda melhoria da qualidade.

Os grandes desafios colocados nos dias atuais para a gestão pública são: aprender com exemplos mundiais e nacionais de rápidos avanços na gestão pública, suportada por melhoras de processos, transparência, maior qualidade e agilidade no atendimento ao cidadão; trabalhar fortemente no desenvolvimento da sinergia entre governos nos níveis federal, estadual e

 

 

 

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municipal; tratar adequadamente a abrangência nacional da gestão pública em um país continental; adequar programas de governo pautados em horizontes de execução de longo prazo e que precisam de continuidade técnica e política; investir em programas de desenvolvimento para o gestor público atual e futuro com o foco de visão de longo prazo e no desenvolvimento de competências estratégicas; aproveitar boas práticas da iniciativa privada, adaptando-as à aplicação ao setor público e buscar nos melhores recursos necessários e identificar qual o melhor momento e forma de envolvê-los [LINS, 2009].

2.2 Governo eletrônico

2.2.1 Definição

O governo eletrônico como movimento mundial começou após o lançamento do Mosaic, o primeiro browser que permitiu uma navegação fácil pela web, em agosto de 1993. O movimento se formalizou em janeiro de 1999, quando Al Gore, vice-presidente norte-americano na época, abriu o 1º Fórum Global sobre Reinvenção do Governo em Washington, com a presença de representantes de 45 países [CHAIN, 2004].

O surgimento da Internet mudou o mundo, as relações de trabalho, o comportamento das pessoas. Desta forma foi necessária também a mudança da relação entre cidadãos e governo.

Segundo Chain (2004, p. 245) governo eletrônico é:

“o conjunto de serviços e acesso a informações que o governo oferece aos diferentes atores da sociedade civil por meios eletrônicos e que proporcionam diminuição de custos de operação, pela melhoria de sua própria gestão interna e do processo de fornecimento; aumento considerável da transparência nas ações e mudança na forma como as pessoas verão o governo pela mudança na interação com o cidadão”.

O governo eletrônico também diminui as distâncias entre os poderes Executivo ou Legislativo e a população, permitindo a interação sem a necessidade de deslocamento.

O governo eletrônico não é somente um governo informatizado. É um governo aberto e ágil para melhor atender a sociedade. Deve usar as tecnologias da informação e telecomunicação para ampliar a cidadania, aumentar a transparência da gestão e a participação dos cidadãos na fiscalização do poder público e democratizar o acesso aos meios eletrônicos [CHAIN, 58].

 

 

 

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O governo eletrônico atende a três determinações básicas da democracia que são a transparência, a responsividade e prestação de contas.

O governo necessita de uma estrutura para atender o cidadão, por maior ou menor que essa estrutura pois atender o cidadão é um papel vital para a manutenção do Estado moderno de direito e essa estrutura tende a ser afetada nos dias de hoje pela tecnologia da informação [ROVER, 2010].

O governo eletrônico aprimora a qualidade dos serviços prestados e fortalece a participação popular no governo, tornando a Administração Pública mais eficiente.

De acordo com Chain (2004, p.17) O governo eletrônico fortalece as instituições democráticas porque facilita o controle social do aparato do Estado pelos cidadãos e pela sociedade civil organizada.

A sociedade precisa ter acesso facilitado às informações do Estado, para que possa saber como os recursos dos impostos estão sendo aplicados.

Diminuir o número de pessoas que procuram os órgãos públicos é uma das grandes vantagens do governo eletrônico.

De acordo com Endler (2000, APUD Damian, 2014):

os serviços públicos na internet devem proporcionar: (1) redução de gastos com infraestrutura e funcionalismo; (2) maior sincronia no processo alcançada pelo uso intensivo da tecnologia da informação; (3) redução de perdas por transporte já que estas podem ser quase totalmente eliminadas com o uso de infraestruturas de telecomunicações seguras e estáveis; (4) redução de perdas por espera já que o serviço estará ao alcance da mão, disponível sempre que for solicitado.

O governo eletrônico tem como objetivos democratizar o acesso a informações e dinamizar a prestação dos serviços públicos.

Segundo Chain (2004, 16) “o governo eletrônico é uma poderosa ferramenta de reforma administrativa do Estado, uma vez que facilita a transparência, a eficiência na entrega dos serviços públicos, a luta contra a corrupção e a individualização do atendimento aos cidadãos”.

São fatores de sucesso para o governo eletrônico: definir uma estratégia localizada no cidadão, atuar no ponto de atendimento e nos processos de retaguarda, obter forte apoio político e organizacional, efetuar investimentos estratégicos, adotar uma postura colaborativa, garantir o

 

 

 

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envolvimento da sociedade civil e o desenvolvimento da democracia eletrônica, definir objetivos claros e monitorar a sua implementação, definir padrões técnicos comuns de interoperabilidade, celebrar parcerias com o setor privado e implementar técnicas de CRM nos portais de Administração Pública [CHAIN, 2004].

2.3 Programa de Governo Eletrônico Brasileiro

O Programa de Governo Eletrônico Brasileiro surgiu no ano 2000, quando foi criado um Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de examinar e propor políticas, diretrizes e normas relacionadas às novas formas eletrônicas de interação, através do Decreto Presidencial de 3 de abril de 2000 [PORTAL DO GOVERNO ELETRÔNICO DO BRASIL, 2015].

O governo eletrônico no mundo já havia se formalizado em 1999.

De acordo com o Portal do Governo Eletrônico do Brasil (2015) “o Programa de Governo Eletrônico Brasileiro conta com um Comitê Executivo e oito Comitês Técnicos responsáveis pelo desenvolvimento das políticas e ações definidas nos princípios e diretrizes estabelecidas para toda a Administração Pública Federal”.

O Programa de Governo Eletrônico Brasileiro democratiza o acesso a informações e dinamiza a prestação serviços públicos aos cidadãos.

O desenvolvimento de programas de governo eletrônico brasileiro tem como princípio a utilização da TI para ampliar o acesso à informação, expandir discussões e dinamizar a prestação de serviços públicos com foco na eficiência e efetividade das funções governamentais [PORTAL DO GOVERNO ELETRÔNICO DO BRASIL, 2015].

O portal do governo eletrônico brasileiro (figura 1) disponibiliza acesso de vários serviços à população como o Portal de Convênios do Governo Federal e Portal de serviços do Governo Federal.

 

 

 

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Figura 1 – Portal do governo eletrônico brasileiro

Fonte: Portal do governo eletrônico do Brasil, 2015

O Portal de serviços do Governo Federal (Figura 2) disponibiliza vários serviços úteis à população nas categorias Abastecimento, Administração, Administração financeira, Agropecuária, Água, Alimento, Ambiente e saúde, Comércio e Serviços, Comunicações, Cultura, Difusão Cultural, Economia e Finanças, Educação, Educação à distância, Educação básica, Educação superior, Emergências e Urgências, Encargos financeiros, Esporte e Lazer, Finanças, Habitação, Humanização na saúde, Indústria, Lazer, Meio ambiente, Patrimônio Cultural, Pecuária, Pessoa, Previdência Social, Profissionais da educação, Proteção e Benefícios ao Trabalhador ,Proteção social, Relações Internacionais, Saúde, Saúde dos portadores de ,deficiências, Segurança e Ordem Pública, Trabalho, Transportes ,Turismo e Urbanismo como Consulta Situação do Requerimento de Benefício Previdenciário, informações sobre o Programa de Financiamento Estudantil (Fies) e Alteração de Endereço no CPF, entre vários outros.

 

 

 

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Figura 2 – Portal de serviços do Governo Federal

Fonte: Portal do governo eletrônico do Brasil, 2015

O Portal de Compras do Governo Federal propicia a integração do governo federal com seus parceiros e fornecedores.

O governo eletrônico brasileiro pretende a transformação das relações do Governo com os cidadãos, empresas e também entre os órgãos do próprio governo de forma a aprimorar a qualidade dos serviços prestados; promover a interação com empresas e indústrias; e fortalecer a participação cidadã por meio do acesso a informação e a uma administração mais eficiente [PORTAL DO GOVERNO ELETRÔNICO DO BRASIL, 2015].

O portal do governo eletrônico brasileiro tem como foco a prestação eletrônica de serviços ao cidadão.

Segundo o Portal do governo eletrônico do Brasil (2015) “no Brasil, a política do Governo Eletrônico segue um conjunto de diretrizes que atuam em três frentes fundamentais: junto ao cidadão, na melhoria da sua própria gestão interna e na integração com parceiros e fornecedores”.

O Programa de Governo Eletrônico Brasileiro é um avanço no processo de modernização da Administração Pública.

De acordo com Portal do governo eletrônico do Brasil (2015), as diretrizes gerais de implantação e operação do Governo Eletrônico são:

A prioridade do Governo Eletrônico é a promoção da cidadania; A Inclusão Digital é indissociável do Governo Eletrônico;

 

 

 

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O Software Livre é um recurso estratégico para a implementação do Governo Eletrônico;

A gestão do conhecimento é um instrumento estratégico de articulação e gestão das políticas públicas do Governo Eletrônico;

O Governo Eletrônico deve racionalizar o uso de recursos; O Governo Eletrônico deve contar com um arcabouço integrado de

políticas, sistemas, padrões e normas; Integração das ações de Governo Eletrônico com outros níveis de

governo e outros poderes. Segundo Chain (2004, p.55) “é necessário assegurar a continuidade

e a consolidação do programa como política de Estado”.

3. Desenvolvimento

3.1 Desafios do Programa de Governo Eletrônico Brasileiro

Apesar dos inúmeros benefícios oferecidos pelo governo eletrônico, muitas barreiras ainda precisam ser vencidas. Em sua pesquisa, West (2004, APUD Damian, 2014) identificou o seguinte:

Há uma série de dificuldades a serem superadas, como a preocupação dos cidadãos com relação à privacidade e à segurança dos sites do governo; a falta de recursos para atender as necessidades de populações especiais, como os deficientes e pessoas que não falam inglês; a indisponibilidade de computadores e da internet a necessidade de educar o cidadão quanto à existência de serviços e informações on-line; e o custo da infraestrutura do governo eletrônico.

O programa de governo eletrônico precisa ser mais bem aproveitado pela sociedade, que deve usufruir da melhor forma de todos os recursos disponíveis.

Outro desafio, de acordo com Villela (2003) é a necessidade de atuação dos governos

em um novo cenário que é marcado por exigências impostas pelos cidadãos e pela própria multiplicidade e velocidade de desenvolvimento das soluções tecnológicas, que acabam impondo aos gestores públicos a realização de uma análise ainda mais criteriosa dos objetivos, estratégias e metas dos governos para o uso das inúmeras possíveis soluções tecnológicas.

 

 

 

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3.1.1 Melhorar a acessibilidade do portal eletrônico do governo federal

Conforme Silva (2016):

“A expansão do governo eletrônico vem abrindo debates relativos a novas expressões de cidadania e participação da sociedade civil. Contudo, o potencial democrático das TICs somente terá reais perspectivas de concretização caso o governo eletrônico seja pensado sob uma ótica que leve em consideração as diferentes realidades culturais, sociais, políticas e econômicas da sociedade brasileira, a exemplo das dificuldades enfrentadas pelas pessoas com deficiência”.

A pouca acessibilidade de portais impede pessoas com deficiência visual de acessar as informações contidas neles, mesmo possuindo equipamentos e softwares avançados para essa finalidade.

A implementação de sites governamentais deve necessariamente passar pela questão da acessibilidade digital. A tecnologia pode funcionar como um meio para atingir a igualdade material, tendo como meta a inclusão política das pessoas com deficiência, pois, acessando sites governamentais acessíveis, é possível trazer a informação e a comunicação e, como consequência, a participação política dessas pessoas [SILVA, 2016].

Problemas como a falta de uniformidade na estrutura das páginas e de atalhos que facilitem a navegação são impecilhos para uma navegação com acessibilidade.

De acordo com Silva (2016):

um país que se preocupa com a situação das pessoas com deficiência deve implementar as condições necessárias para que elas possam se afirmar como verdadeiros sujeitos de direito. É por isso que, ao mesmo tempo que se defende que o governo eletrônico traz a possibilidade de uma nova expressão de cidadania a esses indivíduos, entende- se que o primeiro passo é o planejamento e desenvolvimento de portais governamentais preocupados com a acessibilidade. Sem acessibilidade, sequer se pode falar em concretização dos direitos fundamentais de participação política das pessoas com deficiência, uma vez que o acesso

 

 

 

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é a primeira condição de possibilidade para a participação.

3.1.2 Vencer a dificuldade de implantação da Inclusão Digital

A sociedade moderna se constitui pela divisão social, mas procura não mostrar essa divisão, suas contradições e conflitos inatos. Por outro lado, o avanço das democracias permitiu o reconhecimento dessa ambiguidade e a aceitação do caráter incerto e incompleto das ações políticas (ROVER, 32).

A desigualdade social sempre existiu no Brasil e sempre existirá. Mas ela não pode se tornar uma barreira intransponível no acesso às informações pelos menos favorecidos.

Segundo Takahashi (2000, APUD Rover, 2010):

do ponto de vista dos riscos que envolvem o desenvolvimento do governo eletrônico, evidentemente, o mais imediato e realista é a não realização do seu objetivo básico, a universalização dos seus serviços, ou melhor, a não consecução da condição para isto que é o acesso universalizado ao governo eletrônico. A forte exclusão digital deve ser atacada por todos os lados, com inteligência e sem trégua.

Desta forma, a TIC pode ser considerada um instrumento de construção e exercício da cidadania.

Segundo Rover (2010, p. 14), “um dos fatores que dificultam a construção do governo eletrônico é a falta de uma política eficiente que minimize o fato de que os equipamentos eletrônicos são caros para a maioria da população mundial”.

A inclusão digital, para ser realmente efetiva, precisa abranger o dispositivo para conexão, o acesso à rede e o domínio da ferramenta que ele necessita utilizar.

Uma forma de ajudar a promover a inclusão digital seria, em relação a grupos específicos dos excluídos, uma tarefa inicial de competente identificação dos possíveis envolvidos em um movimento de inclusão e demarcação de suas necessidades, desde sociais até informacionais. Feito isso, o seguinte seria garantir a participação em todo o processo da comunidade envolvida, líderes comunitários, instituições de ensino e quaisquer entidades que tenham alguma conexão e interesse nesse processo de inclusão. Em estágio mais avançado o investimento na

 

 

 

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formação e coordenação da rede dos interessados no processo, principalmente as próprias comunidades envolvidas, haja vista a potencialidade de intercâmbio de informações e de experiências [ROVER, 2010].

3.1.3 Aumentar o interesse do cidadão no Programa de Governo Eletrônico Brasileiro

A gestão pública tem que se preparar para novas formas de buscar a interação e motivar a sociedade a participar efetivamente interagindo com a administração. Alguns setores da Administração Pública estão procurando interatuar com os cidadãos, buscando retornos para desenvolver suas políticas públicas [ROVER, 2010].

È necessário fazer uso de recursos que possam motivar e estimular os usuários a utilizarem o portal do governo eletrônico com mais frequência.

As novas TICs e os conceitos e abordagens conseguidos com a implementação do governo eletrônico apresentam enorme possibilidade de avançar, de devolver à sociedade o acervo de informações do qual o Estado seja o principal detentor, na forma de acesso ampliado ao conhecimento, melhores serviços, maior transparência de gestão pública e melhor qualidade do processo de elaboração e controle de políticas públicas [CHAIN, 2004].

Fatores que podem aumentar o interesse dos cidadãos para acessar o portal do governo eletrônico são disponibilizar mais informações de interesse dos cidadãos e divulgar os serviços oferecidos.

São princípios para guiar quanto o trabalho intenso e conflitos inevitáveis nos fazem perder o caminho estratégico: estudar experiências nacionais e internacionais, desenvolver a estratégia e as prioridades, criar novos programas, aplicar novos programas com projetos piloto, somar esforços com programas bem-sucedidos, integrar horizontal e verticalmente, G2G – intranet dos governos, G2B – extranet com fornecedores e investidores, G2C – internet personalizada com os cidadãos, coletivizar o acesso à Internet, democratizar o conteúdo e o acesso, reformar a Administração Pública, quebrar silos e a intermediação, procurar eficiência e eficácia, aumentar a transparência e atacar a corrupção, ouvir o cidadão, envolver os stakeholders, criar alianças, comunicar-se estrategicamente com o público, integrar o governo eletrônico com o uso de SACs e call centers, fomentar a alfabetização digital, proteger o ambiente tecnológico e as informações [CHAIN, 2004]..

 

 

 

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O cidadão precisa também ter facilidade no acesso às informações desejadas, para que mesmo o usuário menos ambientado com a ferramenta não se perca no emaranhado de informações disponibilizadas.

Segundo a análise de serviços de sites de governo eletrônico feita por Damian (2013, 895), foi destacada a necessidade de disponibilizar mais serviços, a importância da existência dos aspectos relacionados à segurança e à privacidade e a necessidade de utilizar recursos que possam motivar e estimular os usuários a utilizarem o site com frequência.

4. Conclusão

A Administração Pública cada vez precisa mais se modernizar para atender às necessidades da sociedade.

As informações e conhecimentos têm que circular com velocidade e para isso as barreiras de comunicação precisam ser eliminadas.

A TIC tem grande importância nos dias atuais tanto nas organizações privadas quanto públicas. Ela é uma ferramenta de apoio às decisões, geradora de diferencial no mercado competitivo em que vivemos.

O governo eletrônico utiliza a TIC para democratizar o acesso a informações e melhorar a prestação serviços públicos aos cidadãos.

O Programa de Governo Eletrônico Brasileiro é um grande avanço para a sociedade brasileira. Ele é um prestador de serviço eletrônico aos cidadãos, que aumenta a participação popular e fortalece a Administração Pública.

A importância deste artigo consiste em demonstrar os desafios enfrentados pelo Programa de Governo Eletrônico Brasileiro para que ele cumpra o seu papel de tornar a Administração Pública mais eficiente.

Para uma maior abrangência do Programa de Governo Eletrônico Brasileiro é necessário melhorar a acessibilidade do portal eletrônico do governo federal, vencer a dificuldade de implantação da Inclusão Digital e aumentar o interesse do cidadão no Programa de Governo Eletrônico Brasileiro.

A importância do Programa de Governo Eletrônico Brasileiro é muito grande e ele precisa ser mais bem aproveitado por todos. Os cidadãos com dificuldades de acessibilidade precisam que o portal tenha recursos para adequados para permitir seu acesso; cidadãos menos favorecidos economicamente precisam da inclusão digital, que precisa abranger o dispositivo para conexão, o acesso à rede e o domínio da ferramenta e os cidadãos em geral necessitam que os serviços que eles precisem acessar estejam disponíveis no portal de forma fácil e simples, para que eles tenham interesse em utilizar a ferramenta.

 

 

 

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Para um aumento do escopo deste estudo, pode haver uma análise detalhada do portal eletrônico do governo federal, incluindo uma pesquisa com os cidadãos sobre quais os serviços que gostariam que estivessem disponibilizados e quais os problemas que enfrentam para acessar as informações que necessitam. Desta forma, poderiam ser tomadas medidas para adequar o portal eletrônico do governo federal às reais necessidades da sociedade brasileira. Referências Bibliográficas

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O (IN)ATIVISMO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUANTO À DEFINIÇÃO DA BASE DE CÁLCULO DO ADICIONAL DE INSALUBRIDADE

ANTONIO BRAGA DA SILVA JÚNIOR: Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

RESUMO: O artigo examinará, sob o prisma do ativismo judicial, a postura do Supremo Tribunal Federal diante da omissão do Poder Legislativo em regulamentar o direito à contraprestação por trabalho em ambiente insalubre, especialmente após o advento da vedação constitucional de vinculação do salário mínimo para qualquer fim (artigo 7º, inciso IV, da Constituição da República). Será analisada a evolução jurisprudencial constitucional acerca da base de cálculo do adicional de insalubridade, com enfoque na Súmula Vinculante n.º 4 do STF, na decisão do STF em sede da Reclamação n.º 6.266 DF e suas repercussões sobre a Súmula n.º 228 do TST. Consecutivamente, será observado que o Supremo Tribunal Federal deixou de adotar uma postura ativista no tocante à concretização do direito fundamental do trabalhador à contraprestação digna e a um ambiente de trabalho salubre, inclusive desautorizando uma incursão ativista por parte do Tribunal Superior do Trabalho quanto ao tema.

PALAVRAS-CHAVE: Ativismo Judicial. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Superior do Trabalho. Base de cálculo do adicional de insalubridade.

ABSTRACT: The article will examine, in the light of judicial activism, the position of the Supreme Court about omission of Legislative Power in regulate the health risk premium, especially after the article 7º, IV, of Constitution. It will analyze the constitutional jurisprudential evolution about the health risk premium, focusing the binding legal precedent n.º 4, the Supreme Court decision in the case file n.º 6.266-DF and the repercussions in precedent n.º 228 from Superior Labor Court.

 

 

 

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Consecutively, it will observe that the Supreme Court failed to take an activist stance regarding the implementation of the fundamental right of a healthy working environment, including disallowing an activist incursion by the Superior Labor Court on the subject.

KEYWORDS: Judicial Activism. Supreme Court. Superior Labor Court. Health risk premium.

INTRODUÇÃO

Um dos grandes avanços da Constituição da República de 1998 corresponde à robustez dos direitos sociais em seu corpo, que figuram inclusive como fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil. Para a efetividade desses nobres direitos, mostra-se necessário o exercício em conjunto das atribuições funcionais de todos os Poderes constituídos, de modo a interpretar as diretrizes constitucionais, regulamentar esses direitos e garantir-lhes aplicação concreta.

O presente artigo enfrentará o comportamento do Poder Judiciário perante a regulamentação do adicional de insalubridade, verba esta devida ao trabalhador que se submete a condições insalubres em seu ambiente de labor. Mais especificamente, será analisada a postura do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior do Trabalho diante da omissão do Poder Legislativo em regulamentar a contento o direito trabalhista relativo à contraprestação por atividade em ambiente insalubre.

A primeira parte do trabalho abordará a contextualização do ativismo judicial, desde o surgimento da expressão até suas concepções doutrinárias e principais características, de modo a expor a intrínseca relação do instituto com a efetividade dos direitos fundamentais carentes de implementação.

Em seguida será analisada a celeuma criada pelos entendimentos judiciais no tocante à base de cálculo do adicional de insalubridade do trabalhador brasileiro, com enfoque no exame crítico das decisões do Supremo Tribunal Federal acerca da concretização desse direito caro à saúde do trabalhador brasileiro.

 

 

 

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I – ATIVISMO JUDICIAL

São grandes as discussões modernas quanto ao novo papel que o Poder Judiciário vem assumindo diante do neoconstitucionalismo. A nova ordem constitucional inaugura uma fase dirigente e compromissória do direito constitucional, publicizando espaços antes reservados exclusivamente ao interesse privado. Consoante Lênio Luiz Streck, de um ordenamento jurídico meramente legitimador das relações de poder passa-se atualmente a um direito com potencial transformador da realidade social. Para o autor, o fenômeno do neoconstitucionalismo proporciona um ordenamento constitucional robusto, pervasivo, altamente condicionador das esferas de poder, capaz até mesmo de influenciar diretamente as relações sociais.[1]

Luiz Prieto Sanchís, em um interessante poder de síntese, ensina que esse novo constitucionalismo é marcado pelas seguintes características:

más princípios que regras; más poderación que subsunción; omnipotência de la Constituición em todas las áreas jurídicas y en todos los conflictos minimamente relevantes, en lugar de espacios exentos en favor de la opción legislativa o reglamentaria; omnipotencia judicial en lugar de autonomia del legislador ordinário; y, por último, coexistencia de una constelación plural de valores, a veces tendencialmente contradictórios, en lugar de homogeneidad ideológica em torno de un puñado de principios coherentes entre sí y em torno, sobre todo, a las sucesivas opciones legislativas.[2]

Nesse cenário fértil ao intenso protagonismo judicial na esfera social é que se intensificam as discussões acerca do denominado ativismo judicial. Surgida inicialmente nos Estado Unidos da América, a expressão ativismo já nasce envolta de definições e abordagens díspares e desarticuladas. E essa diversidade de abordagens é em grande parte explicada pelo enfoque da discussão, em regra associado à subjetividade crítica relacionada a

 

 

 

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atuações e performances do Poder Judiciário diante de assuntos politizados.[3]

Nesse sentido, há que se destacar de plano o caráter multidirecional da expressão ativismo judicial, sem relação linear com ideologias ou apreciações sobre a correção das decisões judiciais enquanto tais. O ativismo judicial não tem corpo político.[4]Ora o repudiam por afrontar aspirações políticas, ora o invocam por desejar uma postura ativa do Judiciário na implementação de direitos suplicados.

Em busca de uma sistematização do significado, Bradley Canon foi pioneiro ao propor “índices” que definissem o grau de ativismo de uma decisão judicial. Em síntese, diz o autor que uma decisão judicial será mais ativista quanto mais: 1- interferir em processos democráticos (majoritarismo); 2 - alterar interpretações jurídicas assentes (estabilidade interpretativa); 3-interpretar a constituição de modo contrário ao seu significado original (fidelidade interpretativa); 4- fizer política substantiva, por exemplo, política econômica, em afronta ao processo político democrático (processo democrático); 5 - fizer política própria em vez de valorizar a discricionariedade de outros órgãos ou indivíduos (políticas específicas); 6- suplantar decisões de outros órgãos ou indivíduos (disponibilidade de um produtor de política alternativo).[5]

Em que pese o intuito de sistematização conceitual promovido por Bradley Canon, possibilitando analisar de modo mais objetivo quais são as condutas promovidas pelo Poder Judiciário que se associam ao ativismo judicial, nota-se que a abordagem do autor, além de apontar para um forte subjetivismo, ainda se dava de maneira generalizante. Pelos critérios de Canon, praticamente toda decisão judicial no contexto do neoconstitucionalismo poderia ser taxada de ativista. Logo, o instituto ainda carecia de uma definição propriamente dita.

No anseio de conceituar o ativismo judicial, o doutrinador norte-americano Craig Green define ativismo como “o abuso do poder não supervisionado que é exercido fora dos limites do papel judicial”.[6] Na doutrina nacional, o mesmo sentido é seguido pelo professor Elival da Silva Ramos, para quem o ativismo é caracterizado como “o exercício da função

 

 

 

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jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento”[7]. Segundo os referidos doutrinadores, a expressão ativismo judicial possui sinalização claramente negativa, por importar a desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes.

Malgrado o cunho negativo associado ao termo, relacionado em regra com ação do Poder Judiciário fora dos limites de sua competência, há por outro lado definições neutras, em que se observa a nítida vigilância epistemológica em desassociar o conceito de eventuais valorações. É o caso, por exemplo, da definição de Luiz Roberto Barroso, que leciona:

(...) depurada essa crítica ideológica – até porque pode ser progressista ou conservadora – a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.[8]

Segundo o professor Paulo Gustavo Gonet Branco, há ainda posicionamentos que enaltecem o ativismo judicial, como é o caso do entendimento do Ministro Celso de Mello ao sustentar que o ativismo judicial é uma resposta da Corte Constitucional a provocações formais da sociedade a partir de mecanismos criados pela Constituição para neutralizar o caráter lesivo das omissões do Congresso ou do Executivo.[9]

Observa-se que essas oscilações conceituais do ativismo judicial residem nas dificuldades e variações atinentes à interpretação constitucional, já que a caracterização de uma decisão como ativista ou não parte de uma complexa posição sobre qual é a leitura acerca dos direitos fundamentais e do papel dos Poderes constituídos em efetivá-los. Essa indefinição relacionada com o ativismo associa-se, então, com a subjetividade própria da interpretação do texto constitucional. [10]

Nesse contexto, mais importante do que buscar a definição precisa da expressão ativismo judicial é notar sua estreita relação com a eficácia imediata dos Direitos Fundamentais. É notório que o cenário ideal para as interferências ativistas dos Tribunais ocorre quando os poderes políticos

 

 

 

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democraticamente constituídos estão enfraquecidos. Quando os Poderes Legislativo e Executivo omitem-se em suas funções constitucionais, muitas vezes por falta de interesse político específico ou em razão de o assunto envolver medidas políticas impopulares, abre-se espaço para a atuação judicial em prol da efetividade de Direitos Fundamentais carentes de implementação.

É a partir dessas premissas que analisaremos a seguir a celeuma constitucional protagonizada pelo Supremo Tribunal Federal na definição da base de cálculo do adicional de insalubridade dos trabalhadores brasileiros.

II – O STF PERANTE A DEFINIÇÃO DA BASE DE CÁLCULO DO ADICIONAL DE INSALUBRIDADE

Previsto no artigo 192 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT[11] pela Lei n.º 6.514, de 22 de dezembro de 1977, o adicional de insalubridade, devido ao trabalhador em percentuais de 10, 20 ou 40% a depender do grau de insalubridade a que está submetido, foi idealizado tendo por base de cálculo “o salário-mínimo da região”.[12] Ao interpretar o referido artigo em conjunto com o artigo 76 da CLT[13], o Tribunal Superior do Trabalho, ainda em 1985, editou a Súmula n.º 228, entendendo que “O percentual do adicional de insalubridade incide sobre o salário-mínimo de que cogita o art. 76 da Consolidação das Leis do Trabalho”, exceto se por lei própria ou norma coletiva o trabalhador perceber salário profissional, ocasião em que o adicional de insalubridade será sobre este calculado, conforme Súmula n.º 17 do mesmo Tribunal.

Contudo, com a promulgação da Constituição da República de 1988, que trouxe em seu bojo o artigo 7º, inciso IV, vedando expressamente a vinculação do salário mínimo para qualquer fim, iniciaram-se as discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da constitucionalidade da base de cálculo do adicional de insalubridade.

Por meio do RE nº 236.396/MG[14], publicado em 20/11/1998, o Supremo Tribunal Federal, que até então defendia o uso do salário mínimo como base de cálculo da verba salarial, passa a entender que o cálculo do

 

 

 

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adicional de insalubridade com base no salário mínimo afrontaria o artigo 7º, inciso IV, da Constituição da República.

Após sucessivos julgados em que se assentava que qualquer vinculação ou indexação de valores de vencimentos ao salário mínimo seria inconstitucional, o Supremo Tribunal Federal – STF, em sessão plenária realizada no dia 30/4/2008, aprovou a Súmula Vinculante n.º 4[15], consagrando entendimento no sentido de que "o salário mínimo não pode ser usado como indexador de base de cálculo de vantagem de servidor público ou de empregado, nem ser substituído por decisão judicial".

A partir daí acirram-se as discussões doutrinárias e jurisprudenciais acerca da base de cálculo do adicional de insalubridade celetista, em busca da melhor interpretação aplicável ao trabalhador brasileiro. A redação da Súmula Vinculante n.º 4 causou intenso incômodo no âmbito trabalhista, na medida em que vedava o cálculo do adicional de insalubridade com base no salário mínimo, como também, pela sua parte final, vedava a interpretação judicial tendente a calculá-lo com base na totalidade do salário contratual do trabalhador. Ante o limbo jurídico criado pela falta de lei que definisse outra base de cálculo ao adicional de insalubridade e pela vedação criada a interpretações judiciais que definissem base de cálculo alternativa, não havia opção prática viável à definição de como seria calculado o direito fundamental do trabalhador estampado no artigo 7º, XXIII, da Lei Maior[16].

Em uma atitude nitidamente ativista, com o objetivo de suprir uma lacuna legal que já deveria estar solucionada pelo Poder Legislativo desde 1988 com o advento da vedação constitucional de vinculação do salário mínimo (artigo 7º, IV, da CF), o Tribunal Superior do Trabalho - TST entende por bem alterar sua Súmula n.º 228, que passou a dispor que:

SUM-228 ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. BASE DE CÁLCULO (Res. 148/2008, DJ 04 e 07.07.2008, republicada no DJ 08, 09 e 10.07.2008). A partir de 9 de maio de 2008, data da publicação da Súmula Vinculante nº 4 do Supremo Tribunal Federal, o adicional de insalubridade será

 

 

 

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calculado sobre o salário básico, salvo critério mais vantajoso fixado em instrumento coletivo.[17]

A interpretação do TST pautava-se pela redação do artigo 7º, XXIII, da CF, ao entendimento de que referido dispositivo fixa “adicional de remuneração” para atividade insalubre assim como o faz para atividade perigosa, sendo possível então, ante a omissão legal, firmar a aplicação analógica da base de cálculo do adicional de periculosidade (art. 193, §1º, CLT[18]) ao adicional de insalubridade. O objetivo da Corte trabalhista, frise-se, era assegurar efetividade ao direito fundamental do trabalhador, dando voz aos princípios da vedação do retrocesso social e, mais especificamente, da irredutibilidade da remuneração, uma vez que o legislador há muito mantinha-se inerte à demanda pela fixação de outra base de cálculo que respeitasse a vedação de indexação do salário mínimo.

Entretanto, mais recentemente, o então Presidente do STF Min. Gilmar Mendes, ao conceder decisão liminar na Reclamação n.º 6.266 DF proposta pela Confederação Nacional da Indústria - CNI, suspendeu a aplicação da Súmula n.º 228 do Tribunal Superior do Trabalho na parte em que determinava a incidência do adicional de insalubridade sobre o salário básico. Na decisão foi estampado que a Súmula Vinculante n.º 4 obsta a indexação da base de cálculo da insalubridade pelo salário mínimo, além de obstar, também, ante a falta de previsão legal, que decisão judicial (leia-se, Súmula 228 do TST) substitua o que o artigo 192 da CLT preconizava originalmente. Assentou o ministro, na oportunidade, que:

Com efeito, no julgamento que deu origem à mencionada Súmula Vinculante n° 4 (RE 565.714/SP, Rel. Min. Cármen Lúcia, Sessão de 30.4.2008 - Informativo nº 510/STF), esta Corte entendeu que o adicional de insalubridade deve continuar sendo calculado com base no salário mínimo, enquanto não superada a inconstitucionalidade por meio de lei ou convenção coletiva.

Dessa forma, com base no que ficou decidido no RE 565.714/SP e fixado na Súmula Vinculante n° 4,

 

 

 

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este Tribunal entendeu que não é possível a substituição do salário mínimo, seja como base de cálculo, seja como indexador, antes da edição de lei ou celebração de convenção coletiva que regule o adicional de insalubridade.

Logo, à primeira vista, a nova redação estabelecida para a Súmula n° 228/TST revela aplicação indevida da Súmula Vinculante n° 4, porquanto permite a substituição do salário mínimo pelo salário básico no cálculo do adicional de insalubridade sem base normativa.

Ante o exposto, defiro a medida liminar para suspender a aplicação da Súmula n° 228/TST na parte em que permite a utilização do salário básico para calcular o adicional de insalubridade.[19]

Registre-se que o último andamento processual da Reclamação nº 6.266 DF é datado de 17/03/2014, sendo que até o presente momento, junho de 2016, a ação ainda não foi julgada definitivamente.[20]

Observe-se, daí, que o STF, ao retomar o entendimento de utilização do salário mínimo como base de cálculo do adicional de insalubridade, agiu em contradição à sua própria Súmula Vinculante nº 4. E, mais que isso, desautorizou a posição ativista do Tribunal Superior do Trabalho, que, à época da alteração da sua Súmula n.º 228, buscava afirmar seu compromisso com a valorização do trabalho e a justiça social. Optou nossa Corte Constitucional por uma atitude conservadora, quando poderia se valer de uma posição ativista que garantisse a efetividade do direito constitucional dos trabalhadores a uma contraprestação digna, condizente com os males que a condição de insalubridade lhes causa.

Nada mais contraditório – para não dizer frustrante – poderia advir de uma Corte que se autointitula “guardiã da Constituição” e que, nesse sentido, deveria dar a palavra final em temas constitucionais a ela trazidos. No caso da fixação da base de cálculo do adicional de insalubridade, a última palavra do STF na verdade foi por nós recebida como

 

 

 

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penúltima.[21] Ao se declarar a nulidade do artigo 192 da CLT por inconstitucionalidade, mas se omitir ao passo seguinte de integração da norma protetiva laboral que naquele momento se tornava “oca”, o STF insistia na persistente omissão do legislador – que frise-se, data desde 1988 com o advento do art. 7º, IV, na Constituição.

Um leitor curioso e igualmente incomodado com a posição passiva do STF (na esteira da lentidão intencional do Poder Legislativo) poderia questionar: e hoje, o que o legislador tem proposto para cobrir essa lacuna na normatividade do adicional de insalubridade do trabalhador brasileiro? Nada! – é a pronta resposta que a rede de proteção do trabalhador se envergonha de dar, mas que de modo algum causa espanto porque espelha a composição imensamente majoritária de representantes patronais hoje no Congresso Nacional.

É clarividente, então, que na decisão liminar havida na Reclamação n.º 6.266 DF o STF se posicionou de modo limitativo - e, porque não dizer, relapso - ao poder criador do juiz e ao ativismo judicial do TST. Diante da inércia do Poder Legislativo em regulamentar o direito fundamental dos mais de 70 milhões de trabalhadores formais, nossa Corte guardiã da Constituição da República preferiu seguir a mesma atitude inerte, abrindo mão de uma posição audaz capaz de garantir um patamar salarial mais digno aos trabalhadores submetidos a condições insalubres e, consequentemente, capaz de desestimular a manutenção de ambientes insalubres pelos empregadores.

Em contraste com os posicionamentos progressistas do TST, nota-se que o STF vem reiteradamente assumindo uma posição insistentemente conservadora no tocante ao Direito do Trabalho, tal como se observou mais recentemente com o entendimento de aplicação da prescrição quinquenal em vez da trintenária às cobranças de valores não depositados no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS (ARE n.º 709212[22]), bem como com o curioso reconhecimento de repercussão geral relacionado à terceirização versada na Súmula n.º 331 do TST (RE n.º 603397[23]). A constatação que se segue, então, é que o nosso principal intérprete da Constituição continua a adotar uma postura que ignora a supremacia e a eficácia imediata dos direitos fundamentais trabalhistas, em contraste com

 

 

 

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a posição ativista que se espera de uma Corte Constitucional no contexto do neoconstitucionalismo.

CONCLUSÃO

A partir da análise da evolução jurisprudencial constitucional acerca do adicional de insalubridade, culminada com a edição da Súmula Vinculante n.º 4 do STF, e adiante da perpetuação da omissão legislativa em regulamentar o direito após o advento da Constituição da República de 1988, foi possível notar o vácuo jurídico que envolvia o tema. Formava-se, então, um cenário típico para o ativismo judicial, a fim de se garantir a efetividade do direito fundamental trabalhista à contraprestação digna por trabalho em condição insalubre.

Em que pese a demanda por uma incursão ativista ter sido inicialmente suprida pelo Tribunal Superior do Trabalho mediante alteração da sua Súmula n.º 228 no ano de 2008, essa posição ativista veio em seguida a ser expressamente suspensa por decisão do então Presidente da Suprema Corte em sede da Reclamação n.º 6.266 DF.

Viu-se que o Supremo Tribunal Federal deixou de adotar uma postura mais ativista no tocante à concretização do direito fundamental do trabalhador. Mesmo diante da insistente omissão do Poder Legislativo em definir nova base de cálculo ao adicional de insalubridade, após vinte e seis anos do advento da vedação constitucional de vinculação do salário mínimo (artigo 7º, IV, da CF), nossa Corte Constitucional entendeu por bem seguir o exemplo de omissão lesiva e abster-se de chamar para si a responsabilidade de proporcionar contraprestação digna ao labor insalubre, furtando-se, consequentemente, da oportunidade de desestimular a manutenção de ambientes em condição afrontosa à saúde dos trabalhadores. Foi perdida – ou deixou-se passar – uma grande oportunidade de valorização do trabalho humano e de justiça social.

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[1] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 2-3.

 

 

 

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[2] SANCHÍS, Luis Prieto. Iusticia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2003. p. 117.

[3] GREEN, Craig. An Intellectual History of Judicial Activism. Emory Law Journal, Vol. 58, n.º 5, p. 1195-1263. 2009, p. 1198.

[4] CANON, Bradley C. Defining the dimensions of judicial activism. Judicature, vol. 66. n. 6, 1983. p. 247.

[5] Idem. Ibidem. p. 239.

[6] GREEN, Craig. An Intellectual History of Judicial Activism. Emory Law Journal, Vol. 58, n.º 5, p. 1195-1263. 2009, p. 1222.

[7] RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 129.

[8] BARROSO, Luís Roberto . Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo, 2010. p. 10. Disponível em <http://www.oab.org.br/editora/revista/revista_11/artigos/constituicaodemocraciaesupremaciajudicial.pdf >. Acesso em 28/06/2016.

[9] BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Em busca de um conceito fugidio – o ativismo judicial. In: FELLET, André

et al (orgs). As novas Faces do Ativismo Judicial. Salvador: Podium, 2011, pp. 387-402 .

[10] VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.). Ativismo Jurisprudencial e o Supremo Tribunal Federal. Laboratório de Análise Jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá. 2009. p. 21.

[11] CLT, art. 192- O exercício de trabalho em condições insalubres, acima dos limites de tolerância estabelecidos pelo Ministério do Trabalho, assegura a percepção de adicional respectivamente de 40% (quarenta por cento), 20% (vinte por cento) e 10% (dez por cento) do salário-mínimo da região, segundo se classifiquem nos graus máximo, médio e mínimo.

[12] Antes mesmo da Lei n.º 6.514/77 já se fala em adicional por serviço insalubre calculado com base no salário mínimo. A Lei nº 185/1936 previa a fixação da remuneração da insalubridade em até

 

 

 

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50% do salário mínimo. O Decreto-Lei nº 2.162/1940, por sua vez, estipulava os percentuais mínimo (10%), médio (20%) e máximo (40%), igualmente calculados sobre o salário mínimo local ou regional. Havia, ainda, o entendimento do Supremo Tribunal Federal veiculado na Súmula n.º 307, editada em 13/12/1963, segundo a qual “é devido o adicional de serviço insalubre, calculado à base do salário mínimo da região, ainda que a remuneração contratual seja superior ao salário mínimo acrescido da taxa de insalubridade”.

[13] CLT, art. 76 - Salário mínimo é a contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador, inclusive ao trabalhador rural, sem distinção de sexo, por dia normal de serviço, e capaz de satisfazer, em determinada época e região do País, as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte.

[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 236.396-5/MG. Adicional de insalubridade: vinculação ao salário mínimo, estabelecida pelas instâncias ordinárias, que contraria o disposto no art. 7º, IV, da Constituição. Relator: Min. Sepúlveda Pertence. Publicado no DJ de 20/11/1998. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia>. Acesso em 29/06/2016.

[15] A Súmula Vinculante n.º 4 foi idealizada a partir do julgamento do Recurso Extraordinário n.º 565.714/SP, interposto por policiais militares paulistas. Os autores requeriam que o cálculo do adicional de insalubridade, previsto pela Lei Complementar n.º 432/85 de São Paulo, passasse a ser calculado com base no total dos vencimentos dos servidores, e não com base apenas no salário mínimo. A ministra relatora Carmen Lúcia ressaltou em seu voto que é constitucionalmente proibida a vinculação de qualquer tipo de vencimentos, abonos, pensão ou indenizações ao salário mínimo, motivo por que o art. 3º, § 1º, da Lei Complementar paulista n.º 432/85 não teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Por outro lado, entendeu ser juridicamente impossível “estabelecer que a base de cálculo do adicional de insalubridade será a remuneração ou o vencimento, sob pena de estarmos a atuar como legislador positivo”. Para evitar que os servidores deixassem de perceber a verba por falta de base de cálculo, a Relatora argumentou na parte final de seu voto que o adicional de insalubridade deveria continuar a ter como base de cálculo o salário

 

 

 

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mínimo segundo o valor vigente na data do trânsito em julgado do recurso extraordinário, até que lei específica posterior viesse a regular a matéria. Mencionado voto foi acolhido por unanimidade, ocasião em que foi deliberada a necessidade de edição de Súmula Vinculante a esse respeito.

[16] CF, art. 7º, XXIII - adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei;

[17] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula n.º 228, atualmente suspensa por decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, conforme Resolução n.º 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012. Disponível em < http://www.tst.jus.br/sumulas>. Acesso em 29/06/2016.

[18] CLT, art. 193, §1º - O trabalho em condições de periculosidade assegura ao empregado um adicional de 30% (trinta por cento) sobre o salário sem os acréscimos resultantes de gratificações, prêmios ou participações nos lucros da empresa.

[19] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar na Reclamação 6266/DF. Decisão monocrática do Ministro Gilmar Mendes, Presidente. Publicado no DJ de 05/08/2008. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia>. Acesso em 30/06/2016.

[20] Andamento processual disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=6266&classe=Rcl&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M>. Acesso em 30/06/2016.

[21] GOMES, Fábio Rodrigues. Direitos fundamentais dos trabalhadores: critérios de identificação e aplicação prática. São Paulo: LTR, 2013. p. 280-283.

[22] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo n.º 709212. Recurso extraordinário. Direito do Trabalho. Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Cobrança de valores não pagos. Prazo prescricional. Prescrição quinquenal. Art. 7º, XXIX, da Constituição. Superação de entendimento anterior sobre prescrição trintenária. Inconstitucionalidade dos arts. 23, § 5º, da Lei 8.036/1990 e 55 do Regulamento do FGTS aprovado pelo Decreto 99.684/1990. (...)

 

 

 

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Declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex nunc. Relator: Min Gilmar Mendes. Publicado no DJe-032, de 18/02/2015 . Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia >. Acesso em 30/06/2016.

[23] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário n.º 603397. Administrativo. Responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas em face do inadimplemento de empresa prestadora de serviço. Exame da constitucionalidade do art. 71, § 1º, da lei 8.666/1993. Existência de repercussão geral. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia >. Acesso em 30/06/2016.

 

 

 

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A UNIDADE DO ORDENAMENTO JURÍDICO COM BASE ENTENDIMENTO DE NORBERTO BOBBIO

NATÉCIA ALVES DE ARAÚJO: Advogada graduada na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.

RESUMO: O objetivo desse trabalho é analisar a unidade do Ordenamento Jurídico, especialmente, com base no pensamento e nas obras de Norberto Bobbio, enfatizando como essa unidade é construída. Para tanto, foi feita a análise das fontes do direito, da construção escalonada do ordenamento, dos limites formais e materiais a que ele se submete traçando um paralelo sobre a importância da norma fundamental na construção da unidade e coerência do ordenamento e expondo até quando o direito se ergue com base na força ponderando o pensamento citado por Norberto Bobbio de que o direito como ele é, parece ser fruto dos mais fortes e não dos mais justos.

PALAVRAS‐CHAVE  1. Unidade do Ordenamento  2.  Fontes do Direito  3. 

Norma fundamental.

Sumário: 1. Fontes reconhecidas e fontes delegadas. 2. Tipos de fontes e formação histórica do ordenamento. 3. As fontes do Direito. 4. Construção gradual do ordenamento. 5. Limites materiais e formais. 6. A norma fundamental. 7. Direito e força. 8. Conclusão. Referências bibliográficas.

 

 

 

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1. Fontes reconhecidas e fontes delegadas Para  dissertar  a  respeito  da  unidade  do  ordenamento  é 

importante que se tenha em mente a conceito de ordenamento jurídico. 

Encontrar apenas uma definição que abranja em grande parte a realidade 

desses sistemas complexo de normas não é fácil, mas usaremos aqui uma 

explanação bem didática posta por Tércio Ferraz,

“Em princípio, um ordenamento é um conjunto 

de  normas. O  ordenamento  jurídico  brasileiro  é  o 

conjunto  de  todas  as  suas  normas,  em  que  estão 

incluídas  todas  as  espécies  que  mencionamos  ao 

classificá‐las.  No  entanto  não  apenas.  Nele  estão 

contidos critérios de classificação, como é o caso das 

classificações legais das coisas (Código Civil Brasileiro 

de 1916, arts. 43 ss e Código Civil de 2002, arts. 79 ss) 

(...)  Concretamente,  seu  repertório  não  contém 

apenas  elementos  normativos,  mas  também  não 

normativos.” [1] 

Como vimos, então, o ordenamento é a união de todas as normas 

que regem o país, porém essas  leis são em número quase  incalculáveis, 

porque diariamente novas delas são criadas, outras atualizadas e algumas 

modificadas,  inviabilizando  o  controle  minucioso  do  ordenamento,  a 

prova dessa mutabilidade é o vade mécum o qual é um compêndio que 

tenta  reunir  todos  os  códigos  de  um  país  para  facilitar  seu  acesso, 

entretanto o mesmo  torna‐se desatualizado poucas semanas e até dias 

após ser posto nas prateleiras. 

 Esse número exorbitante de normas  tem como causa a criação 

compulsória  delas,  as  quais  muitas  vezes  entram  em  vigor  sem  uma 

função definida ou com sentido vago como é o caso de algumas que vem 

fazendo  referências  do  tipo:  “A  lei  número  X  reafirma  o  que  a  Y  diz”, 

porém, às vezes, a Y tem conteúdo inválido ou refere‐se também à outra 

lei  e,  até  mesmo,  está  desatualizada,  essa  espécie  de  criação  é 

constantemente  criticada  por  juízes,  docentes  e,  inclusive,  por  alguns 

legisladores.  Contudo,  o  que  não  se  pode  por  em  questão  é  a  real 

 

 

 

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necessidade  de  criação  ou  adaptação  (através  de  emendas,  decretos, 

regulamentos, etc.) de leis úteis, porque, como já foi dito, elas precisão se 

ajustar a realidade vigente na Nação, é inadmissível, por exemplo, que o 

Brasil  ou  outro  país  com  tecnologia  semelhante  não  possua  ainda  um 

regimento para o “mundo virtual”, aí cabe bem o questionamento a cerca 

da criação de normas inúteis no lugar das que são por demais necessárias, 

a exemplo disso,  como  se pode  tentar por em  vigor uma Emenda que 

afirma que  todo brasileiro  tem direito  a  lutar pela  sua  felicidade,  algo 

obvio, fato que foi proposto pelo senador do PDT‐DF Cristovão Buarque 

em 2010 e não se fazem leis que rejam o uso da internet? 

Ainda é fundamental pontuar que o dilema de se detectar todas 

as leis de um ordenamento tem como origem sua fonte. Como a maioria 

deles, inclusive o brasileiro, não advém de apenas uma fonte seu leque se 

expande  rapidamente,  a  esse  tipo  de  ordenação  dar‐se  o  nome  de 

ordenamento  jurídico  complexo  fazendo  oposição  ao  que  possuem 

apenas uma fonte que é o simples, sobre as fontes será mais esclarecido 

à frente. Porém, é de se imaginar que é muito raro um ordenamento em 

que de  fato  vogue  a  lógica de haver  apenas duas partes o  autor dela, 

geralmente  os  legisladores  ou  legislador  no  caso  de  uma  monarquia 

absolutista, por exemplo, porque não pode haver uniformidade, ele pode 

ter recebido comandos de terceiros seguido outros caminhos e mais uma 

série de fatores que não lhes permite ser guiado por uma única fonte; em 

relação aos destinatários da norma  também não há como garantir que 

eles sejam fieis apenas ao que foi determinado pelo legislativo, porque as 

pessoas são diretamente  influenciadas pelos costumes e esses  também 

constituem fontes do direito, são as fontes formais não estatais. 

Pondo em vista, então, a importância incalculável das normas e do 

ordenamento  numa  sociedade  até  como  forma  de  diminuir  a 

complexidade  e  com  isso  também  a  angustia  dos  cidadãos  perante  as 

incertezas do futuro e de solucionar os problemas sociais como nos explica 

Miguel Reale, 

“Mas se o sistema legal pode ter casos omissos, 

o ordenamento  jurídico não pode deixar de  conter 

soluções para todas as questões que surgirem na vida 

 

 

 

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de  relação.  É  o  princípio  da  plenitude  da  ordem 

jurídica positiva, mais um dos postulados da  razão 

prática  jurídica  (...).  Donde  se  conclui  que  o 

“ordenamento jurídico”, que é o sistema das normas 

em  sua  plena  atualização,  não  pode  ter  lacunas  e 

deve  ser  considerado,  em  seu  todo,  vigente  e 

eficaz.”[2] 

 Mesmo que se tentasse não seria possível delegar todo o poder 

de criar um ordenamento  jurídico a um único órgão ou  instituição, pois 

esse não seria capaz de legislar sobre todas as áreas de um Estado e por 

isso  não  liquidaria  a  expectativa  da  população  para  determinada 

ordenação. Sendo assim o ordenamento  tão  fundamental, entrarão em 

pauta  agora  quais  as  maneiras  mais  recorrentes  de  construí‐lo, 

frequentemente, são utilizados dois métodos: a recepção e a delegação. 

Explicaremos  por  ordem,  mas  essas  duas  técnicas  não  agem 

separadamente; as que vêm de fontes reconhecidas são aquelas prontas, 

ou seja, não necessitou de uma elaboração de acordo com os processos 

previstos  pelo  país  nem  ser  feita  por  autoridades  competentes  locais, 

pode vir de outros conjuntos normativos como é o caso da Constituição 

brasileira de 1891 que teve várias de suas  leis copiadas da Constituição 

norte  estadunidense  de  1787,  inclusive,  o  próprio  nome  que  foi 

estabelecido  para  o  Brasil  naquela  época  fazia menção  ao  do  país  da 

América do Norte e era Estados Unidos do Brasil. 

Porém,  o  caso mais  clássico  da  recepção  são  os  costumes  elas 

“nascem”  da  sociedade,  dessa  forma  a  partir  do  momento  em  que 

legisladores levam em consideração os hábitos da sociedade (vale lembrar 

que  esses  costumes  considerados  não  são  os  contra  legem)  em  suas 

resoluções  ele  inclui  um  sistema  dentro  do  outro  e  acrescenta  ao 

ordenamento tornando‐o mais opulente. Já que o costume é produzido 

pela população e a mesma usufrui da norma, pensou‐se em  transmitir 

também a ela s função de criadora do ordenamento, isto é, seria dado à 

mesma a delegação de formular normas assim como um legislador, mas 

há aí uma confusão conceitual, se as fontes delegadas têm que ser feitas 

como pode dar a população a tarefa de criar um costume se esses devem 

 

 

 

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surgir  de  maneira  espontânea?  Concluímos,  então,  que  os  costumes 

devem ser, de fato, uma fonte reconhecida. Será exposto agora as fontes 

delegadas, sobre elas é possível afirmar que antes de tudo é entregue ao 

legislador a missão de fazer leis mais universais que abranjam temas gerais 

e elas  são em menor número apesar  ser  serem mais  importantes, pois 

funcionam  como  alicerces  para  as  demais  que  serão  criadas  como  diz 

Maria Helena Diniz: 

“Logo,  é  fonte  jurídica  a  norma  superior  que 

regula  a  produção  da  norma  inferior.  Assim,  a 

Constituição é a fonte das normas gerais, elaboradas 

pelo Poder Legislativo, pelo Poder Executivo e por via 

consuetudinária;”[3]  

A atribuição de fazer as leis mais específicas as quais completam o 

ordenamento  fica  com  os  órgãos  do  executivo  que  destrincham  de 

maneira mais minuciosa atingindo alvos em particular. Existe ainda uma 

fonte que pode ser encaixada nas duas fontes, não de maneira simultânea 

que é a fonte particular, aquela concebida ao cidadão comum, mas que 

não é o costume, essa fonte pode ser reconhecida, porque o Estado aderi 

às leis que as pessoas criaram individualmente para pautar suas relações, 

contudo  se o poder  estatal decidir que  a população deve  regular  seus 

negócio criando leis para regimentar essas situações, obedecendo, é claro, 

a uma norma superior, como já foi dito, a fonte particular assume caráter 

delegado. A definição dessa questão ainda não  foi posta, mas o que se 

percebe é que as duas definições são acontecem dependendo de que julga 

o acontecimento momentâneo, mas isso não interferem na aplicação da 

fonte particular. 

2.Tipos de fontes e formação histórica do ordenamento

O  caso  anterior  nos  mostra  que  ainda  existem  algumas 

indefinições com relação a que fonte pertence determinado poder, essa 

complicação pode ser resolvida, mas para  isso é necessário verificar sua 

estrutura e seu ponto de origem. A origem, como já dissermos se tratar de 

um  ordenamento  complexo,  é  diversa, mas  há  em  cada  norma  ou  lei 

ordinária um traço de uma  lei maior, fazendo uma comparação didática 

 

 

 

        127 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.56677 

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podemos dizer que assim como um juiz sempre tem que se vincular à lei 

em  suas  decisões  não  podendo  ele  dar  veredictos  contrariando‐a  as 

normas de um ordenamento devem  seguir  a Constituição do país, por 

exemplo, e não pode ferir os direitos fundamentais nela expressos.

A  definição  sobre  a  que  fonte  determinada  norma  realmente 

pertence  está  relacionada  também  às  razões  históricas  de  cada 

ordenamento as quais serão aqui expostas. O primeiro viés histórico a se 

considerar são as marcas sociais de outros ordenamentos anteriores ao 

vigente, desse modo quando se cria uma ordenação não é possível que se 

apague  as marcas  deixadas  pelos  diversos  gêneros  que  constituem  a 

sociedade,  um  caso  que  foi  bastante  recorrente  em  ordenamentos 

passados é o fato de a sociedade ser extremamente machista e as leis do 

Brasil  refletiam  essa  questão  moral  a  partir  do  momento  em  que 

reafirmava  a  posição  inferior  das mulheres,  privando‐a  de  dezenas  de 

direitos,  entretanto  se  os  legisladores  da  época  tentassem  criar  leis 

propondo a igualdade entre os sexos, certamente elas não teriam eficácia 

social. 

Portanto, é perceptível que o novo ordenamento carrega em si de 

maneira  nítida  ou maculada  traços  dos  antigos  e  da  sociedade  atual, 

percebe‐se  que  fatores  externos  ao  poder  normativo  agem  o 

influenciando,  sendo  essa  a  fonte  reconhecida.  Já  o  outro  elemento 

histórico tem relação com fatores internos e se constitui quando o próprio 

pode legislativo opta por tornar‐se complexo, ou seja, ele mesmo delega 

a outros poderes a responsabilidade de formular normas estabelecendo 

aí a  fonte delegada, prevendo assim que com a desconcentração dessa 

função o Estado consiga dar conta da demanda pela atualização e criação 

das normas do ordenamento, a  responsabilidade cedida a esses outros 

órgãos,  porém,  é  subordinada  ao  legislativo,  esse  mecanismo  é  uma 

espécie de autolimitação, como diz Bobbio, porque os legisladores é que 

nomeiam quem poderá compor as leis, isto é, ele mesmo divide o encargo 

e subordina os encarregados. 

Podemos fornecer exemplos clássicos de ordenamentos formados 

por estruturas complexas de recepção e delegação, são eles os contratos, 

 

 

 

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representados pelos dois autores contratualistas mais importante que são 

Hobbes e Locke, sobre o contratualismo nos fala Bonavides: 

“Como a constante do contratualismo social é o 

problema  da  melhor  forma  de  organização  da 

Sociedade,  da  melhor  maneira  de  governar  os 

homens e de achar na razão valores que legitimem, 

com mais  força  e  invulnerabilidade,  o  princípio  da 

autoridade,  partiram  todos  os  contratualistas  do 

clássico e célebre confronto do estado de natureza 

com o estado de sociedade.” [4] 

Os  jusnaturalistas,  aqueles  que  acreditam  na  existência  de  um 

ordenamento além do positivo que tem garantias universais e que foram 

criadas pela natureza ou por deus, defendem que o poder civil venha do 

contrato  social  e,  portanto,  do  contratualismo  como  foi  exposto 

anteriormente, porém há dois tipos os quais se diferencial pela  fonte e 

formação  histórica,  começaremos  pelo  de  Hobbes  o  qual  tem 

características de um ordenamento delegado, porque para ele quando o 

soberano assumia o poder o povo deveria delegá‐lo  todo  faculdade de 

criar e anular leis e a população, então, abdicaria de qualquer direito pela 

proteção, pois segundo a visão hobbesiana se alguém dentro do Estado 

pudesse  limitar  o  poder  do  soberano,  ele  não  seria  soberano,  já  que 

haveria algo que o dominaria. Sendo assim, o poder  seria autolimitado 

pelo próprio soberano e ele “apagaria” os resquícios de antigos direitos 

para  governar  de  acordo  com  sua  posição,  logo,  percebe‐se  que  esse 

contrato depende de limites internos, fazendo parte da fonte delegada. 

Contudo,  o  contrato  para  Locke  tinha  uma  fonte  oposta,  a 

reconhecida,  porque  diferentemente  do  anterior  ele  propunha  que  o 

soberano  governasse  para  garantir  que  os  direitos  naturais  de  cada 

cidadão fossem respeitados, então ele teria que receber em seu contrato 

esses tais direitos naturais que para ele eram essenciais e emanavam não 

dele, mas de limites externos, já existiam na sociedade. Portanto, nota‐se 

que nesse último contrato o ordenamento já começa limitado por outro 

ordenamento  social,  isto é, precisa atender a  regras que estão ditadas 

pelo inconsciente popular. 

 

 

 

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3.As fontes do Direito

Para se conhecer um ordenamento é importante que se saiba de 

onde ele veio, nesse caso, de que fonte ou fontes ele partiu. Os tipos são 

variados podem ser formais (estatais ou não estatais), materiais, dentre 

outras, porém o que de fato constituiu o escopo dessa discussão é outra 

problematização. Nessa perspectiva, Bobbio nos explica a importância da 

problemática das fontes:

“(...)  o  problema  das  fontes  do  direito  diz 

respeito à validade das normas jurídicas. Uma norma 

é válida (isto é, existe juridicamente) se for produzida 

por  uma  fonte  autorizada,  ou,  em  outros  termos, 

pode remontar a um dos fatos ou atos competentes 

ou  capazes,  segundo  o  ordenamento,  de  produzir 

normas jurídicas.” [5] 

Como um conjunto de normas o ordenamento  se destaca, pois 

não é apenas um guia comportamental e regulador da população sendo 

dito aí como de caráter comportamental; ele também dirigi a criação das 

leis ou normas, ou seja, estabelece regras a serem seguidas para que uma 

lei  tenha  validade  e  vigência,  essas  são  ditas  normas  estruturais.  A 

importância dessas normas é indiscutível, visto que se não houvesse uma 

maneira de garantir que todas as leis de um código, por exemplo, tivessem 

seguido  os  mesmos  procedimentos  de  formulação  realizados  por 

autoridades  competentes  não  teria  como  garantir  a  unidade  do 

ordenamento  já  que  cada  lei  seria  feita  de  uma  maneira  tal  qual  a 

comissão  de  legisladores  decidisse  e  isso  causaria  um  caos  ao 

ordenamento,  porque  muitas  leis  não  teriam  eficácia  jurídica,  nem 

vigência e outras características fundamentais. 

As normas, principalmente, de um ordenamento se caracterizam 

por  serem  imperativas,  ou  seja,  ordenarem  algo  a  alguém,  logo  são 

ditas normas  imperativas, elas  se dividem em de primeira  instância de 

segunda instância, Bobbio explica rapidamente sobre essas primeiras que 

também se subdividem em proibitivas e permissivas: 

 

 

 

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“Os  imperativos  se distinguem,  como  veremos 

melhor no último capítulo, em imperativos positivos 

e  negativos,  ou  seja,  em  comandos  de  fazer  e  em 

comandos de não fazer (esses últimos são chamados 

habitualmente  de  ‘proibições’).  Um  exemplo  dos 

primeiros: ‘O usufrutuário deve restituir as coisas que 

constituem  objeto  de  seu  direito  ao  término  do 

usufruto...’  (art.  1001  do  Código  Civil  italiano);  o 

exemplo  dos  segundos:  ‘  O  proprietário  não 

pode  praticar  atos  que  tenham  por  objetivo 

unicamente causar dano ou moléstia ao outro’ (art. 

833 Código Civil italiano).”[6] 

As  de  segunda  instância  se  dividem  em  maiores  habilidades, 

especificamente, em nove que serão postas de maneira bem taxativa, pois 

trata‐se  de  algo  bem  conceitual,  mas  que  sua  função  pode  ser 

naturalmente percebida até pela nomenclatura dos mesmos. 

1‐  Normas  que  mandam  ordenar;  2‐Normas 

que  proíbem  ordenar;  3‐  Normas 

que  permitemordenar;  4‐  Normas  que  mandam 

proibir;  5‐  Normas  que  proíbem  proibir;  6‐  Normas 

quepermitem  proibir;  7‐  Normas  que  mandam 

permitir; 8‐ Normas que proíbem permitir; 9‐ Normas 

que permitem permitir. 

4.Construção gradual do ordenamento

É  fundamental  iniciar  dizendo  que  sem  essa  construção 

escalonada não haveria como se construir um ordenamento com unidade, 

com coerência, porque a unidade se faz de uma hierarquização normativa 

por  isso a nomenclatura escalonada que teve como autor Kelsen, sobre 

isso ele nos fala:

“A ordem  jurídica não é um sistema de normas 

jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas 

ao lado das outras, mas é uma construção escalonada 

de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. 

 

 

 

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A sua unidade é produto da conexão de dependência 

que resulta do fato de a validade de uma norma, que 

foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar 

sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, 

é  determinada  por  outra;  e  assim  por  diante,  até 

abicar  finalmente  na  norma  fundamental  ‐ 

pressuposta.  A  norma  fundamental  ‐  hipotética, 

nestes  termos  ‐  é,  portanto,  o  fundamento  de 

validade  último  que  constitui  a  unidade  desta 

interconexão criadora.”[7] 

Essa  teoria  que  Kelsen  propôs  explica  como  se  chega  a  um 

ordenamento unitário, sendo ele complexo, pois ao tratar do simples não 

há  dificuldades  já  que  ele  provém  de  apenas  uma  fonte,  então 

praticamente não há como se criar uma contradição dentro de  leis que 

tiveram o mesmo ponto de partida, porém já se as fontes forem diversas 

a contradição está naturalmente presente, portanto criou‐se essa teoria 

unitária buscando uma ordenação coesa e coerente. A proposta como já 

foi inicialmente explicada pelas palavras de Hans Kelsen acima é que todas 

as  normas  inferiores  sejam,  de  alguma maneira,  dependentes  de  uma 

superior  e  essa  não  seria  subordinada  a  nenhuma  outra,  pois  ela 

constituiria a norma fundamental, ou seja, a base de todo o ordenamento, 

essa norma fundamental não existe concretamente, isto é, de fato, ela é 

simplesmente pressuposta. 

 Nessa  perspectiva,  tomando  o  exemplo  ilustrativo  de  Enrique 

Aftalión é como se o ordenamento jurídico fosse um triângulo equilátero 

(para alguns autores vale a ideia de pirâmide) em que um vértice estaria 

tangente ao “chão” de modo que os outros dois estariam para cima, como 

uma  espécie  de  funil,  o  vértice  que  toca  o  “chão”  seria  a  norma 

fundamental e tudo que tivesse acima dele (o corpo do triângulo) fosse 

derivando daquele ponto primordial e expandindo como um  leque, mas 

sem  perder  a  derivação  direta  ou  indireta  com  a  norma  fundamental. 

Contudo não se pode afirmar que a composição estrutural desse modelo 

de  norma  num  formato  triangular  seja  uniforme  para  todos  os 

ordenamentos,  porque  dentro  dessa  figura  há  várias  subdivisões; 

conforme  o  tipo  de  norma  daquele  país  há mais  espaço  para  as  leis 

 

 

 

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ordinárias que são as ditas leis comuns ou até “inferiores” que compõe o 

Código Civil, por exemplo, ou para as constitucionais as quais representam 

as normas presentes na Constituição Federal e são ditas superiores, há 

ordenações com mais subdivisões normativas, pois os estados e as cidades 

podem criar suas leis, sendo essas mais específicas para a realidade local 

como é o caso de cidades como São Paulo que possui leis as quais versão 

até  sobre  o  sobrepeso  nas mochilas  escolares  das  crianças  (um  tema 

muito  específico  e  subjetivo  para  ser  pauta  de  uma  lei  Federal)  ou 

ordenamentos mais curtos como o que vigora na Venezuela, por exemplo, 

que é uma Nação unitária, ou seja, as únicas leis vigentes são as federais, 

portanto não existe um padrão para a composição interna desse modelo, 

mas o que existe em todos eles é a hierarquização, garantindo a unidade. 

Pode‐se perceber que a hierarquização  faz  com que as normas 

deixem de ser apenas um conjunto de leis e sejam um ordenamento delas, 

sendo assim o nome ordenamento é muito adequado, porque passa, de 

fato, a  ideia de ordem, da existência de normas superiores e de outras 

inferiores  e  da  obediência  destas  àquelas.  A  hierarquia  é,  então,  de 

deveras importância para a unidade de qualquer estrutura, não apenas de 

uma ordenação de leis, mas também, por exemplo, na política seguindo a 

ordem crescente prefeito, governador, presidente, num núcleo  familiar 

relação filhos e pais e numa Nação sendo os estados subordinados à União 

e  isso ocorre mesmo nos Estados  federativos em que as unidades que 

compõe o país  têm mais autonomia em  relação à dos países unitários, 

porém ainda assim existe a  limitação de poder de cada estado expressa 

quando na Constituição há a determinação de que as  leis estaduais não 

podem desrespeitar as leis federais e assim por diante. 

  Deixando  os  exemplos  mais  distantes  do  Direito  e  entrando 

novamente no ordenamento jurídico podemos mostrar claramente como 

a  hierarquização  se  faz  dentro da  ordenação  das  leis. Dessa  forma,  as 

normas  superiores  podem  ser  ditasprodutoras,  são  aquelas  já 

mencionadas  como  sendo  as  estruturais,  isto  é,  as  que  regulam  a 

produção  de  normas,  não  fazendo  menção  ao  comportamento  das 

pessoas essas são em menor número, porém mais  importantes, porque 

dizem que determinada norma pode permitir, pode proibir, pode ordenar, 

 

 

 

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etc.; as outras são as de execução que versão sobre as regras de conduta 

da sociedade, diz o que deve fazer ou o que não se deve fazer. 

 Entre esse duas estão algumas que são intermediárias, isto é, de 

produção  e  de  execução,  isso  porque,  em muitas  situações  é  possível 

perceber que essas normas são simultâneas, não havendo como separá‐

las. Portanto, há juristas que defendem ser o sentido maior das relações 

do direito e também do ordenamento a correspondência entre o poder de 

delegar um dever de alguns e de outra parte de receber esse dever como 

ordem  a  se  cumprir,  logo mostrando  isso  numa  situação  hipotética  o 

cidadão deve sujeitar‐se à sentença de um juiz quando ele determina, por 

exemplo, para um caso de assalto uma prisão de três anos, ao passo que 

o  juiz  deve  tomar  como moldura  (como  propunha  Kelsen)  o  que  foi 

decidido  entre  os  legisladores  e  posto,  nesse  caso,  no  código  penal, 

exemplificando que a lei diz que para assalto a pena é de dois a oito anos 

de reclusão e por fim os legisladores devem ter levado em consideração 

no momento da  construção dessa  lei que na Constituição do país está 

determinado que seja proibido roubar.  

5. Limites materiais e formais

Visto a importância da hierarquia para o ordenamento agora é 

necessário  que  se  veja  outro  item  indispensável  para  que  ele  seja 

unificado,  estamos  nos  referindo  aos  limites  do  ordenamento.  Dessa 

forma, é preciso esclarecer que quando se limita o que cada lei deve versar 

e como o legislador deve criá‐la já se faz menção à hierarquização, porque 

é mister que se tenha uma ordem no procedimento criativo, já que seria 

impossível atingir a unidade se todos pudessem  legislar sobre tudo, não 

havendo  um  critério  de  seleção  do  legislador  e  nem  sobre  que  área 

específica ele falará e criará a lei.

  Sendo  assim,  a  primeira  questão  é  quem  limita  o  poder 

Legislativo? A resposta é simples e já vem sendo respondida ao longo do 

texto,  é  o  poder  constitucional  com  suas  leis  constitucionais  ou  como 

também  foram referidas as chamadas “normas estruturais”. Em geral o 

poder  constitucional  fala  de  dois  tipos  fundamentais  de  limitação  das 

normas:  a  de  conteúdo  e  a  de  forma.  Nesse  sentido,  o  primeiro  faz 

 

 

 

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referência á responsabilidade do legislador, isto é, evita que ele crie leis 

que não foram destinadas a sua função, fugindo do seu campo de atuação 

o qual já é predefinido ou que fira alguma determinação constitucional; o 

segundo está ligado à forma, ou seja, ao modo como cada lei é preparada, 

ao  ritual que deve  ser  respeitado por  todos os  legisladores para que a 

norma  tenha  validade,  pondo  em  vista  isso  quem  dita  esse  rito  de 

produção  é  o  próprio  ordenamento,  como  já  foi  dito  no  parágrafo 

anterior, no poder constitucional, entretanto vale lembrar que os critérios 

de  validade  variam  conforme  o  tipo  de  norma,  logo  satisfazendo  os 

procedimentos determinados para  a produção de uma norma  ela  será 

integrada ao ordenamento e dita válida, caso contrário não será aceita e 

não entrará em vigor. 

Exemplificando  esses  limites  temos  para  os  de  conteúdo  a 

seguinte  situação, quando na Constituição  Federal  vem a ordem  como 

existe no art. 23 “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito 

Federal e dos Municípios: VII‐ Preservar as florestas, a fauna e a flora;”, 

isso  quer  dizer  que  se  o  legislativo  não  criar  leis  que  garantam  essa 

preservação  ou  que  formulem  leis  as  quais  abram  espaço  para  o 

desmatamento  como  faz  o  Código  Florestal  que  está  em  tramite  no 

Congresso Nacional no  ano  de  2012,  ele  ferirá os  limites  de  conteúdo 

estabelecidos pelos princípios Constitucionais. No caso dos limites formais 

temos  como  exemplo  diversas  situações  em  que  se  pode  infringir  as 

decisões tanto dos legisladores com relação ao rito de elaboração quanto 

dos  juízes  que  extrapolam  as  determinações  legislativas,  etc.  poremos 

como exemplo aqui a primeira questão, então comecemos dizendo que o 

congresso  brasileiro  é  bicameral,  porque  envolve  a  manifestação  de 

vontade  de  duas  câmaras  legislativas  para  a  produção  das  normas 

jurídicas,  as  normas  que  se  submetem  a  esse  procedimento  são  as 

emendas  à  Constituição  Federal,  as  leis  federais  complementares, 

ordinárias e delegadas,  as medidas provisórias, os decretos  legislativos 

federais e as resoluções comuns das duas casas do Congresso Nacional. 

  Todas  essas  normas  são  apreciadas  pelas  duas  Câmaras 

(deputados  e  senadores),  em  conjunto ou  separadamente, mas  se por 

algum  acaso  uma  norma  não  for  analisada  por  nenhuma  dessas 

instituições  (excetuando  as  exceções,  em  casos  em  que  o  presidente 

 

 

 

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precisa,  por  questões  de  soberania  nacional  estabelecer  uma  lei 

emergencial, por exemplo) a lei não será válida, pois desrespeitou‐se uma 

etapa  estabelecida  para  a  criação. No  entanto,  com  relação  aos  juízes 

extrapolarem as determinações da lei o caso torna‐se mais comum, pois 

apesar de como afirma Goffredo Telles, 

“A experiência  jurídica é a vivência daquilo que 

uma  comunidade  qualifica  de  jurídico,  em  certo 

momento histórico e num determinado lugar. (...). A 

norma promulgada pelo governo  legítimo é o único 

dogma  da  ciência  jurídica,  é  o  ponto  de  partida  e 

fundamento de toda ação do jurista.”.[8] 

Sabe‐se que não é assim que a Ciência do Direito procede, por 

diversas vezes os  juízes não só criam  leis acima do que diz a decisão do 

legislativo por lhe ser conveniente fazer isso, mas porque em muitos casos 

a própria lei deixa lacunas as quais obrigam os julgadores a solucionar da 

melhor forma a situação, porém essa solução pode transcender à  lei,  já 

que a mesma não versa sobre o determinado assunto que o juiz precisa 

decidir, mas  ele  jamais  poderá  transgredir  a  Constituição,  dando  uma 

sentença  que  condene  algum  cidadão  à  pena  de morte,  por  exemplo. 

Logo,  é  possível  perceber  que  no  judiciário  quando  um  julgador  não 

cumpre  somente  o  que  está  nos  códigos  ainda  assim  seu  veredicto  é 

válido,  o  que  não  aconteceria  no  legislativo, mostrando  que  há  uma 

flexibilidade maior  quanto  a  esse  poder,  sobre  isso  há,  inclusive,  uma 

nomenclatura  especial  que  é  o  “juízo  de  equidade”  o  qual  dar  ao  juiz 

exatamente  essa  liberdade  de  versar  sobre  temas  fora  dos  limites  de 

conteúdo, contudo o uso desse artifício não é muito comum, mas existe. 

Devido ao maior respeito aos limites formais, tanto no âmbito do 

Legislativo como do Judiciário alguns defendem que os  limitas de forma 

são  mais  importantes  que  os  de  conteúdo,  justifica‐se  também  essa 

posição, porque dentro de nossa sociedade há a mentalidade de que o 

Direito é uma ciência de conduta humana, isto é, tem como objetivo guiar 

substancialmente  o  comportamento  humano  a  forma  como  ele  deve 

proceder diante de um fato social e não que ele fazer determinado fato, 

por  exemplo,  no  Art.  236.  Do  Código  Civil  diz  que:  “sendo  culpado  o 

 

 

 

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devedor, poderá o credor exigir o equivalente, ou aceitar a coisa no estado 

em  que  se  acha,  com  direito  a  reclamar,  em  um  ou  em  outro  caso, 

indenização das perdas e danos.” Como se pode perceber esse art. diz qual 

a conduta que um credor deve ter diante de um devedor e não que alguém 

deve  ser  devedor  e  outro  credor.  Vendo  por  esse  campo  pode‐se  até 

pensar de maneira que ponha a forma acima do conteúdo, mas de acordo 

com os cânones do direito essa não é uma atitude correta, portanto essas 

duas formas de limitação são equivalentes. 

6. A norma fundamental

Muito se questiona sobre a norma fundamental, isso ocorre, pois 

pouco se sabe sobre ela, exatamente porque ela não existe na realidade é 

apenas pressuposta, portanto é difícil  imaginar que a base de  todo um 

ordenamento e, por conseguinte, de todas as normas do país, sejam elas 

ordinárias ou constitucionais, provém de um conceito que não pode ser 

palpado como a Constituição Federal, por exemplo, a qual muitos pensam 

ser a norma fundamental. Nesse sentido, essa norma está acima de todas 

as outras para garantir a unidade á ordenação  jurídica e fundamentar o 

princípio de validade das leis, e não há ordenamento que não possua essa 

norma fundamental, ela reside no poder constituinte também designado 

de poder originário, isso significa que quando em um país se decide criar 

uma nova Constituição forma‐se uma Assembleia Nacional Constituinte a 

qual deve ter em sua composição representantes de todas as classes da 

sociedade para atender aos anseios da população como um todo e isso é 

feito a partir do momento em que o próprio povo elege quais devem ser 

os criadores do Código que irá gerir todos os outros, estamos falando da 

Constituição.

  Então,  para  que  a  decisão  tomada  por  essa  assembleia  tenha 

validade o povo precisa aceitar e se submeter ao que foi acordado entre 

os legisladores, por isso esse poder constitucional é pressuposto, porque 

os legisladores imaginam que a população irá, de fato, sujeitar‐se às regras 

por eles idealizaram. Essa norma fundamental é bastante importante na 

medida em que evita que as normas vão se sobrepondo indistintamente 

em importância e nunca se chegue à ideia base de um ordenamento, ela 

 

 

 

        137 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.56677 

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simplesmente  está  acima  da  constituição  e  acima  dela  não  há  mais 

nenhuma.  Além  os  fatores  postos  anteriormente,  a  lei  fundamental  é 

essencial, pois ela determina se uma norma é, de fato, válida, ou seja, se 

pertence ao ordenamento jurídico e para pertencer, já dissemos, é preciso 

obedecer  ao  rito  de  elaboração  feito  pela  autoridade  competente 

(estabelecido  nas  normas  estruturais)  e  guiar  e  comportamento  dos 

cidadãos de acordo com as determinações estabelecidos na Constituição 

(normas de conduta), logo sendo a norma válida cabe, então, á sociedade 

segui‐la e quem assim não fizer está sujeito a sanção que é aplicada pelo 

juiz. O julgador, portanto, deve ser fiel a norma que e considerada válida, 

entretanto isso nem sempre acontece entre a população, a prova disso é 

que muitas leis não atingem a eficácia social, isto é, seu conteúdo não é 

obedecido pela população ou por parte dela. 

Como  foi  exposto  no  início  desse  tópico  há  ainda  muito 

questionamento e dúvida, ou até, descrença na norma fundamental que 

se deve, principalmente, ao fato de ele não ser concreta e também não 

ter bases concretas, esse último argumento não poder ser válido contra a 

norma  fundamental,  porque  por mais  que  alguns  autores  ou  juristas 

defendam  que  por  trás  da  lei  fundamental  existam  leis  fora  do 

ordenamento positivo que a guiem essa ideia não pode ser sólida, pois tira 

a primazia da lei fundamental, deixando ela de ter esse caráter originário. 

Mesmo  assim,  iremos  expor  o  pensamento  de  teóricos  que  designam 

poderes a outras fontes e defendem serem essas outras fontes a base da 

lei fundamental (o nome lei fundamental está sendo usado nessa situação 

mais como caráter didático, já que, como dissemos, se se admite uma lei 

acima da fundamental, a lei considerada fundamental perde esse título). 

 A primeira teoria atribui ao poder divino a faculdade de autorizar 

a fixação de normas, isso pode ser observado, por exemplo, na França na 

época de Luiz XIV, esse rei que atribuía a  legitimidade de seu governo a 

deus e através desse suposto poder que deus o deu para governar ele teria 

a  liberdade de fazer tudo dentro do Estado ao ponto de dizer a célebre 

frase  “o  Estado  sou  eu”,  e  a população  francesa  teria que  acatar  suas 

decisões,  porque  desrespeitá‐las  seria  desrespeitar  a  vontade  da 

divindade. A segunda doutrina concede às leis da natureza a excelência de 

ser superior à norma fundamental e a justificativa está presente na teoria 

 

 

 

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do  jusnaturalismo  democrático,  defendido  por  pensadores  como 

Rousseau, Hegel e Locke, para ela o poder de designar leis ou de criar o 

direito  justo vem da vontade de  todos os homens não de uma minoria 

nem  de  deus,  entretanto  para  se  conciliar  todas  essas  vontades  era 

necessário  um  conjunto  de  pessoas  responsáveis  por  votar  os  desejos 

mais adequados para fazê‐los valer e oficializar um governante o qual teria 

a função de administraria as leis e seria também guiado pela razão assim 

como  todos  os  homens  que  criaram  as  leis  primárias.  Uma  terceira 

explicação repousa no fato de esse poder constituinte surgir do contrato 

entre  as  partes  que  formam  um  estado,  ou  seja,  o  governante  e  os 

governados,  isso  é  bem  visível  dentro  das  teorias  contratualistas  que 

foram  expostas  no  tópico  de  tipos  de  fontes  e  formação  histórica  do 

ordenamento,  pois  na  hobbesiana,  por  exemplo,  a  população  entrega 

todos os seus direitos para um soberano que não pode ter seus poderes 

limitados e tem o encargo de criar todas as leis, o governado, por sua vez, 

se quiser ter segurança deve obedecer ao que é determinado por ele, pois 

a  lei  fundamental  está  exatamente  nessa  obediência  às  leis  e, 

consequentemente, ao contrato. Essa última parece ser muito pertinente, 

mas o que  se pode dizer dentro do direito e baseado no que defendia 

Kelsen  em  sua  Teoria  Pura  do  Direito  a  norma  fundamental  não  tem 

fundamento,  no  sentido  de  não  está  baseada  em  nenhum  outro 

ordenamento. 

7. Direito e força

É  importante  esclarecer  que  a  norma  fundamental  só  existe, 

porque a população aceitou se submeter a ela, e como já adiantemos um 

pouco  no  tópico  passado  essa  submissão  está  relacionada  ao  poder 

constituinte ou poder último do ordenamento. Então, pergunta‐se em que 

consiste  esse  poder?  A  resposta  também  já  foi  tangenciada  no  ponto 

anterior, porém será mais bem explicada aqui. Dessa forma, quando um 

país decide  convocar uma Assembleia Nacional Constituinte que  tem a 

única função de formular uma Constituição para aquela Nação, deve haver 

determinados  acordos  implícitos,  o  principal  deles  reside  no  fato  de  a 

população  ter  que  aceitar  o  que  foi  decidido  pelos  que  vão  redigir  os 

comando desse código maior que é Constituição. Por conter as normas 

 

 

 

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que regem o país muitos acreditam ser a Constituição a Lei Fundamental, 

porque o que está presente nela será usado para fazer todos os demais 

Códigos e leis, de modo que esses não desrespeitem Aquela. Mas, o que 

faz com que a população de determinado país em Assembleia Nacional 

aceitasse as decisões que dela emanaram?

 Essa pergunta tem duas respostas fundamentais, primeiramente, 

porque as pessoas que a compõe devem ser eleitas pelo povo (daí o aval 

da  sociedade para que os eleitos  tenham  liberdade para  fazer  as  leis), 

geralmente,  são  os  políticos  os  escolhidos,  nela  devem  constar 

representantes  de  todos  os  estratos  sociais  de  modo  que  as  classes 

defendam  seus  pareceres  e  interesses  particulares  e  também  versem 

sobre  leis universais  como o Art. 5º da Constituição Brasileira que diz: 

“Todos  são  iguais  perante  a  lei,  sem  distinção  de  qualquer  natureza, 

garantindo‐se  aos  brasileiros  e  aos  estrangeiros  residentes  no  País  a 

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à 

propriedade,  nos  termos  seguintes  (...)”;  como  segunda  instância 

fundamental para que a sociedade aceite as determinações está a força 

desse poder, contudo ao mencionar força pode‐se pensar em violência, 

força física e não é essa a força que queremos fazer menção, porém, às 

vezes, como ocorreu na Revolução Francesa o uso da força física para a 

formação da Assembleia Nacional  foi necessário, mas depois da guerra 

civil, período em que a violência prevaleceu, instaurou‐se a Constituição e 

com ela estava, então, a força do poder originário, uma força política que 

dá  unidade  ao  ordenamento  jurídico.  Logo,  percebe‐se  que  o  Direito 

precisa  da  força  para  realizar‐se,  pois  o  poder  a  que  ele  repousa  é 

coercitivo, porém não se pode confundir a simples  força com a coação 

como explica Reale, 

“Na realidade, não há como confundir coação e 

força,  sendo  aquela,  como efetivamente é,  a  força 

disciplinada,  exercida  nos  limites  legitimados  pela 

tutela necessária de bens da convivência.  (...). Para 

que  se  possa,  por  conseguinte,  falar  em  coação, 

mister é que a interferência da força se verifique para 

fins  de  Direito  e  com  base  em  uma  norma  que 

legitime a sanção, o que demonstra que, longe de ser 

 

 

 

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Boletim Conteúdo Jurídico n. 690 de 30/08/2016 (ano VIII) ISSN

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a coação a nota determinante do Direito, sem este 

ela seria logicamente impensável.”[9] 

Apesar  de  precisar  da  força  não  se  pode  simplificar  o  Direito 

caracterizando‐o  majoritariamente  por  ela,  porque  grande  parte  dele 

também consenso cordialidade. Então, a grande função da coação seria 

fazer o direito realmente funcionar de modo que a população não tente 

se  eximir  de  respeitá‐lo,  pois  é  exatamente  aí  que  reside  um  dos 

fundamentos  da  ordenação  de  um  país  que  é  a  eficácia  social. Nesse 

sentido, uma lei ordinária pode não ter eficácia social, ou seja, a população 

pode não cumpri o que ela determina, mas um ordenamento jamais pode 

não  ter  eficácia  social,  portanto  é  necessário  usar‐se  da  força  e  aí 

constando o poder último para garantir o cumprimento do ordenamento. 

Alguns temem que o Direito passe a se confundir com a força, porque a 

própria  norma  fundamental  baseia‐se  a  na  obediência  que  pode  ser 

reforçada  através  da  força,  mas  isso  não  deve  acontecer,  pois  a  lei 

fundamental permite que os detentores do poder utilizem a  força para 

garantir  a  eficácia  do  ordenamento,  mas  não  defende  o  uso 

indiscriminado dela, pautado apenas no desejo de usá‐la. 

 Os que  temem  essa  confusão  entre direito  e  força podem  ter 

baseado seus pensamentos no que diz Kelsen e defende Aff Ross, os quais 

de maneira  radical  afirmam  que  o  Direito  é  apenas  um  conjunto  de 

normas que limitam o uso da força, o que, como pode ser visto hoje, não 

corresponde a realidade,  já de, de  fato, o direito é coercitivo,  inclusive, 

essa é uma das características que o distingue da Moral, mas não se pode 

resumir  esse  conjunto  tão  complexo  a  um  limitador  de  força,  afinal 

quando se determina em um código que é proibido matar, por exemplo, 

não  se  está  limitando  uma  força,  pelo  contrário  está  se  impondo  um 

condição  para  que  seja  respeitada  e  a  força  não  precise  ser  aplicada, 

porém  é  claro  de  uma  pessoa  tenta  tirar  a  eficácia  dessa  lei 

desrespeitando‐a ela precisa ser punida para que não estimule outras a 

repetir esse ato. 

 Porém, por não reduzir o direito à força não significa que algumas 

normas  não  versem  sobre  a  aplicação  da  força  nas  sanções,  esse  tipo 

existe e são ditas normas secundárias e Kelsen defendia que o Direito era 

 

 

 

        141 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.56677 

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apenas  o  exercício  da  regulação  de  força,  porque  acreditava  que  só 

existam  essas  normas  secundárias,  daí  seu  aparente  equívoco  quando 

resume  o  ordenamento  às  simples  normas  secundárias.  Portanto,  é 

correto  dizer  que  o  Direito  regula  a  sociedade,  guiando  seu 

comportamento, mediante  a  força, mas  não  está  correto  dizer  que  o 

objetivo  daquele  que  formula  a  lei  é  legislar  sobre  a  força  e  em  que 

proporção utilizá‐la. 

8. Conclusão: 

Conclusivamente temos que a maioria dos países do mundo são 

regidos por um ordenamento jurídico do modo como o conhecemos, ou 

seja, uma reunião de normas das diversas áreas do direito as quais tendem 

a abranger quase todos os atos, comportamentos e atividades praticadas 

pelas pessoas que compõe ou que estão em seu território e ainda buscam 

reger  os  fatos  ocorridos  fora  de  seu  território, mas  que  envolvam  um 

nacional. 

Sendo  assim,  é  possível  notar  que  o  ordenamento  jurídico  se 

propõe a reger um Estado e sua população, ou seja, o ordenamento é a 

base de um  povo e ele estabiliza as relações sociais e garante, pelo menos 

em parte, o sentimento de segurança jurídica o qual permite a sociedade 

viver dentro dos padrões de “normalidade”. 

Por  isso a construção do Ordenamento deve  ser  sóbria,  razoável e 

justa, devendo respeitar os limites formais e materiais estabelecidos para 

que possa gozar de eficácia e vigência. A respeito desse tema abordou‐se 

também a duvida de onde o ordenamento tira seu fundamento legal e o 

que  faz ele ser obedecido pelos cidadãos, nesse ponto  falamos sobre a 

ideia de norma  fundamental baseado no entendimento explicitado por 

Norberto Bobbio em suas obras. 

Finalizamos com o  tópico Direito e Força o qual se desenvolveu 

buscando, principalmente, encontrar resposta para a incogitada de como 

e  por  que  a  população  de  um  determinado  país  aceita  e  obedece  às 

decisões  tomadas na Assembleia Nacional Constituinte  formada  com o 

intuito exclusivo de criar a Constituição norma fundamental que guiará um 

país até que uma nova ordem jurídica se estabeleça. 

 

 

 

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Referências bibliográficas 

Fonte primária: 

BOBBIO, Norberto. A unidade do ordenamento jurídico. In: BOBBIO, 

Norberto. Teoria geral do direito. Tradução: Denise Agostinetti; revisão da 

tradução:  Silvana  Cobucci  Leite.  2ª  edição.  São  Paulo: Martins  Fontes, 

2008, p. 189 – 218 

Fonte secundária: 

BOBBIO,  Norberto.  O  positivismo  jurídico,  lições  de  filosofia  do 

Direito. Editora: Ícone, São Paulo, 1995. 

BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 1º ed. Editora Edipro, 

2001. 

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10º ed. Malheiros Editores. 2000. 

DINIZ, Maria Helena. Compêndios de introdução à ciência do direito. 

22ª ed. Saraiva. São Paulo, 2011. 

FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, 

decisão, dominação. 6ª Ed. Editora Atlas, 2010 

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. MACHADO, João Baptista. 

São Paulo, 6ª Ed., 1999. 

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19º ed. Editora Saraiva. São Paulo, 

1999. 

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25º ed. Editora Saraiva 

2001. 

TELLES  JR.,  Goffredo.  O  direito  quântico.  5º  ed.  São  Paulo, Max 

Limonad, 1971 

NOTAS:

 

 

 

        143 Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.56677 

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 ‐ 1984‐0454 

[1] FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6ª Ed. Editora Atlas, 2010. P. 145-146

[2] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25º ed. Editora Saraiva 2001. P. 181

[3] DINIZ, Maria Helena. Compêndios de introdução à ciência do direito. 22ª ed. Saraiva. São Paulo, 2011. P. 300

[4] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10º ed. Malheiros Editores. 2000. P. 68

[5] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico, lições de filosofia do Direito. Editora: Ícone, São Paulo, 1995. P.161

[6] BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. 1º ed. Editora Edipro, 2001. P. 109

[7] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. MACHADO, João Baptista. São Paulo, 6ª Ed., 1999. P. 155

[8] TELLES JR., Goffredo. O direito quântico. 5º ed. São Paulo, Max Limonad, 1971. P. 415-33

[9] REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19º ed. Editora Saraiva. São Paulo, 1999. P. 673

  

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CENTRO UNIVERSITÁRIO DE SETE LAGOAS- UNIFEMM

Unidade Acadêmica de Ensino de Direito- UEDI Curso de Direito

MARCELO BICALHO LARA

CRÍTICA À CRIMINALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA E DO SUICÍDIO ASSISTIDO NO PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 236/12

SETE LAGOAS 2016

  

MARCELO BICALHO LARA

CRÍTICA À CRIMINALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA E DO SUICÍDIO ASSISTIDO NO PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 236/12

Monografia apresentada à Unidade Acadêmica de Direito, do Centro Universitário de Sete Lagoas-UNIFEMM, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito. Área de concentração: Direito Constitucional, e Bioética Orientador: Prof. Luciana Lima do Amaral

SETE LAGOAS 2016

  

CENTRO UNIVERSITÁRIO DE SETE LAGOAS- UNIFEMM Unidade Acadêmica de ensino de Direito- UEDI

Curso de Direito

MARCELO BICALHO LARA

CRÍTICA À CRIMINALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA E DO SUICÍDIO ASSISTIDO NO PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 236/12

Monografia apresentada à Unidade Acadêmica de Direito, do Centro Universitário de Sete Lagoas-UNIFEMM, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Sete Lagoas, de de 2016. Aprovado com a nota __________. BANCA EXAMINADORA: ______________________________________________________ ORIENTADOR: Prof. ______________________________________________________ AVALIADOR: Prof. ______________________________________________________ AVALIADOR: Prof.

  

RESUMO

O trabalho tem como objetivo geral analisar, à luz da Constituição da República de 1988, a

criminalização da eutanásia e do suicídio assistido no Projeto de Lei do Senado n. 236/2012,

bem como a interpretação segundo a qual, de acordo com o Código Penal atualmente em vigor,

a eutanásia consiste em homicídio praticado por relevante valor moral. O marco teórico consiste

nos princípios da dignidade e da autonomia na concepção de Direito como integridade,

encontrada na obra de Ronald Dworkin, com os títulos O império do direito, e Domínio da

Vida. Foi utilizada metodologia lógico-dedutiva, realizando pesquisa bibliográfica e

investigação teórica. Os principais resultados e conclusões apontam pela inconstitucionalidade

da criminalização da eutanásia e do suicídio assistido pelo Projeto de Lei do Senado n.

236/2012, e pela inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a eutanásia e o suicídio

adequam-se como condutas tipificadas no Código Penal vigente, na medida em que violam os

princípios da autonomia e da dignidade da pessoa humana. A descriminalização da eutanásia e

do suicídio assistido é menos danosa que a não-legalização, e mostra-se coerente com a

concepção de Direito como integridade.

Palavras chave: Eutanásia; Suicídio Assistido; Autonomia; Dignidade da pessoa humana.

  

ABSTRACT

The work has as main objective to analyze, in the light of the 1988 Republic Constitution, the

criminalization of euthanasia and assisted suicide in the Senate Bill no. 236/2012, as well as the

interpretation that, according to the Criminal Code currently in force, euthanasia consists of

murder committed by relevant moral value. The theoretical framework consists of the principles

of dignity and autonomy in law as design integrity, found in the work of Ronald Dworkin, with

the titles Law´s Empire, and Life´s Dominion. It was used logical-deductive methodology,

conducting literature and theoretical research. The main results and conclusions indicate the

unconstitutionality of criminalization of euthanasia and assisted suicide by Senate Bill no.

236/2012, and the unconstitutionality of interpretation that euthanasia and suicide suit up as

typified conducts the in the current Penal Code, to the extent that violate the principles of

autonomy and dignity of the human person. The decriminalization of euthanasia and assisted

suicide is less damaging than non-legalization, and appears to be consistent with the conception

of law as integrity.

Keywords: Euthanasia; Assisted suicide; Autonomy; Dignity of the human person.

  

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................. 7 2 ENTRE A VIDA E A MORTE: aspectos religiosos, filosóficos e jurídicos

acerca da eutanásia e do suicídio assistido....................................................... 9

2.1 Eutanásia............................................................................................................. 9 2.1.1 Conceito............................................................................................................... 9 2.1.2 Classificações da eutanásia................................................................................ 9 2.1.3 Breve histórico.................................................................................................... 112.1.4 Eutanásia no Código Penal brasileiro.............................................................. 142.2 Ortotanásia e distanásia..................................................................................... 152.3 Suicídio assistido................................................................................................. 162.3.1 Conceito............................................................................................................... 162.3.2 Suicídio assistido no Código Penal brasileiro.................................................. 172.4 Considerações sobre vida e morte.................................................................... 192.4.1 Questões religiosas............................................................................................. 192.4.2 Aspectos filosóficos............................................................................................ 232.5 A eutanásia e o suicídio assistido no Projeto de Lei 236/12 do Senado........ 282.5.1 A eutanásia no Projeto de Lei 236/12 do Senado........................................... 282.5.2 O suicídio assistido no Projeto de Lei 236/12 do Senado............................... 313 PRINCÍPIOS ENVOLVIDOS.......................................................................... 333.1 Autonomia........................................................................................................... 343.2 Dignidade da pessoa humana........................................................................... 364 DA INCONSTITUCIONALIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DA

EUTANÁSIA E DO SUICÍDIO.....................................................................

404.1 Constitucionalidade e inconstitucionalidade.................................................. 404.2 Da inconstitucionalidade da criminalização da eutanásia e do suicídio

assistido no Projeto de lei 236/12 do Senado...................................................

424.3 Da inconstitucionalidade da interpretação da eutanásia e do suicídio

assistido como condutas tipificadas no Código Penal vigente.......................

484.4 Violação dos princípios da dignidade e da autonomia na concepção de

Direito como integridade...................................................................................

515 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 536 CONCLUSÃO.................................................................................................... 55 REFERÊNCIAS................................................................................................. 57

7  

  

1 INTRODUÇÃO

Desde os primeiros passos da humanidade, a vida em coletividade foi um imperativo para a

sobrevivência de nossa espécie e do domínio sobre as forças naturais. A vida fora de uma

coletividade estaria constantemente ameaçada e sujeita a fatores adversos de um ambiente

selvagem, seja para aquisição de alimento, água, proteção, e demais demandas de subsistência.

Haja vista a vida em coletividade ser uma necessidade, as relações e interações humanas

acabam por tornarem-se invitáveis e fazem parte do cotidiano de seus membros. As

consequências dessas relações frequentemente resultam em conflitos, sejam entre os membros

da comunidade entre si, sejam entre estes e a organização política a qual pertencem.

Nesse contexto, observamos em nosso país e no mundo o acalorado debate acerca da

admissibilidade ou não da eutanásia e do suicídio assistido. Se de um lado há a vigorosa defesa

dos princípios que fundamentam a própria República brasileira e sua Constituição, não menos

vigorosa é a oposição conservadora cuja interpretação é de que a vida é um valor absolutamente

indisponível, sagrado.

Entre as vítimas desse conflito estão pessoas fragilizadas ante um quadro de doença terminal,

ou padecendo de doenças degenerativas, cujo sofrimento físico ou psíquico converte uma vida,

ora feliz e repleta de significado, em verdadeiro suplício. Com a legislação em vigor, que pouco

possibilita o respeito à autonomia da vontade, perdem a capacidade de decidir sobre qual fim

seria coerente com sua história existencial.

Há muito se reconhece a necessidade de reformar o Código Penal brasileiro, que, quanto a sua

parte especial, não passou por uma grande reforma, desde sua promulgação, em 1940, embora

tenham ocorrido em seu texto alterações pontuais. Atualmente, encontra-se em tramitação no

Congresso Nacional um Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 que visa a reformar o Código

Penal. Esse projeto criminaliza a eutanásia, definindo-a em um tipo autônomo, no art. 122.

O trabalho busca responder às perguntas:

a) A criminalização da eutanásia e do suicídio assistido pelo Projeto de Lei do Senado n.

236/2012 é constitucional?

8  

  

b) A interpretação segundo a qual a eutanásia, conforme o Código Penal atualmente em

vigor, consiste em homicídio praticado por motivo de relevante valor moral é

constitucional?

O trabalho tem como objetivo geral analisar, à luz da Constituição da República de 1988, a

criminalização da eutanásia e do suicídio assistido no Projeto de Lei do Senado n. 236/2012,

bem como a interpretação segundo a qual, de acordo com o Código Penal atualmente em vigor,

a eutanásia consiste em homicídio praticado por relevante valor moral.

O marco teórico consiste nos princípios da dignidade e da autonomia na concepção de Direito

como integridade, encontrada na obra de Ronald Dworkin, com os títulos O império do direito,

e Domínio da Vida.

Desenvolver-se-á o trabalho, de forma a possibilitar o re(pensar) da eutanásia, oferecendo novos

subsídios críticos acerca das concepções de vida e morte. Realizar-se-á reflexão sobre os

aspectos religiosos, filosóficos e jurídicos da eutanásia. Posteriormente, abordar-se-á os

princípios da autonomia e da dignidade humana. Em seguida, enfrentar-se-á a questão

específica da eutanásia e do suicídio assistido no Projeto de Lei n. 236/2012, à luz da

Constituição da República de 1988 e do marco teórico.

Utilizar-se-á metodologia lógico-dedutiva, realizando pesquisa bibliográfica e investigação

teórica.

9  

  

2 ENTRE A VIDA E A MORTE: aspectos religiosos, filosóficos e jurídicos acerca da

eutanásia e do suicídio assistido

2.1 Eutanásia

2.1.1 Conceito

Segundo Silva (2014, p. 877), eutanásia é “derivado do grego eu (bom) e thanatos (morte) quer

significar, vulgarmente, a boa morte, a morte calma, a morte doce e tranquila.”. E,

juridicamente, “entende-se o direito de matar ou o direito de morrer, em virtude de razão que

possa justificar semelhante morte, em regra provocada para término de sofrimentos”.

O conceito utilizado por Goldim (2010, p. 30) é mais adequado, porém ainda não completo,

sendo a eutanásia entendida como “a antecipação voluntária da morte de um paciente,

promovida por um terceiro, habitualmente, mas não obrigatoriamente, um médico”.

Na mesma linha segue Martini (2010, p. 33) eutanásia “consiste no ato de facultar a morte a um

indivíduo cujo estado de doença é crônico e, portanto, incurável, normalmente associado a

sofrimento físico e psíquico”.

Para Oliveira Júnior (2010, p. 36) a eutanásia é a “antecipação da morte do doente terminal,

atenuando-lhe o sofrimento e dores intoleráveis, com a contribuição efetiva de alguém,

ministrando-lhe, por exemplo, uma droga”.

Carvalho (2011, p. 642) equipara a eutanásia ao homicídio piedoso, e que consiste na “morte

provocada para evitar o sofrimento de uma doença havida incurável”.

2.1.2 Classificações da eutanásia

É importante limitar os conceitos e as classificações dos objetos do presente estudo, eutanásia

e suicídio assistido, haja vista existirem uma gama de interpretações disponíveis, que podem

variar de acordo com a corrente científica que as analisam. Guimarães (2008, p. 99) aponta pela

diferenciação entre eutanásia própria e a imprópria, senda a primeira:

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a provocação da morte piedosa, por ação ou inação de terceiro, de que se determine encurtamento da vida, em caso de doença incurável que acometa paciente terminal a padecer de profundo sofrimento. Abarca ela, portanto, a provocação da morte por ação (eutanásia própria em sentido estrito, ou eutanásia ativa) ou por inação (eutanásia passiva).

Para o referido autor, para que se configure a eutanásia própria é obrigatório que se preencha

os seguintes requisitos: “morte provocada; por ação ou omissão de terceiro; em razão de piedade

ou compaixão; sujeito passivo sujeito a doença incurável; em estado terminal; que padeça de

profundo sofrimento; e que a ação provoque encurtamento do período natural da vida”,

Guimarães (2008, p. 100).

Outro conceito da eutanásia própria, de abrangência maior que a anteriormente citada, é de SÁ

(2001, p. 67), “é a conduta, através de ação ou omissão do médico, que emprega, ou emite,

meio eficiente para produzir a morte em paciente incurável e em estado grave de sofrimento,

diferente do curso natural, abreviando-lhe a vida”.

Ressalta-se que não existe consenso absoluto acerca dos requisitos para a definição da eutanásia

própria, não obstante haver requisitos que são comumente defendidos. Para Guimarães (2008,

p. 99), há a necessidade da configuração do estado terminal, portanto, em tese, não seria

admitida eutanásia para aqueles portadores de doenças crônicas e/ou degenerativas, que ainda

teriam maior sobrevida. Já SÁ (2001, p.67), não estipula a obrigatoriedade de um quadro

terminal, que poderia ser estipulado em curto e médio prazo, uma vez que a moderna medicina

é capaz de manter uma pessoa em situação vegetativa, sem perspectiva de melhora, por décadas

inclusive. Sobre tal divergência, acompanhamos a posição desta última autora.

A eutanásia imprópria é explicada por Guimarães (2008, p. 106) como segue:

Há práticas que, por contarem com alguns dos requisitos que configuram a eutanásia, se apropriam do termo, ainda que não possam ser admitidas, em maior ou menor grau, como práticas eutanásticas propriamente ditas. Algumas delas podem se assemelhar, em um ou outro aspecto, à eutanásia própria, sendo que outras nem dela se aproximam e, a despeito de não merecerem, de qualquer modo, o uso do termo, ainda assim dele se apropriam, pelos mais variados motivos, sejam eles políticos, sociais ou econômicos, ou mesmo em razão do uso costumeiro ou de classificações usadas por historiadores.

Portanto, a eutanásia imprópria consiste na apropriação do termo “eutanásia” para referir-se a

situações diversas da apontada como a “eutanásia própria”, sem observância concomitante de

requisitos como morte provocada; por ação ou omissão de terceiro; em razão de piedade ou

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compaixão; sujeito passivo sujeito a doença incurável; em estado terminal; que padeça de

profundo sofrimento; e que a ação provoque encurtamento do período natural da vida,

Guimarães (2008, p. 100).

Como exemplo, identificar a antecipação da morte de alguém que goze de boa saúde física, mas

que sofre de depressão (doença curável), como “eutanásia”, consiste na apropriação inadequada

do termo “eutanásia”, logo, está-se diante da “eutanásia imprópria”.

De grande importância é a distinção entre a eutanásia ativa e a eutanásia passiva. Para SÁ

(2001, p. 67) “a intenção de realizar a eutanásia pode gerar uma ação, daí tem-se a ‘eutanásia

ativa’, ou uma omissão, ou seja, a não realização de ação que teria indicação terapêutica naquela

circunstância - ‘eutanásia passiva’”. Dessa posição depreende-se que a eutanásia ativa decorre

de uma ação que antecipará a morte, enquanto a eutanásia passiva decorre de uma omissão que

igualmente antecipará a morte.

A eutanásia pode ser classificada, também, segundo a vontade do paciente, podendo ser

voluntária ou involuntária, como expõe Guimarães (2008, p. 147), “é voluntária quando o

próprio paciente solicita ao agente que pratique a conduta eutanástica, enquanto é involuntária

quando a decisão é tomada por outrem que não o doente, por não se encontrar em condições de

decidir”. Importante ressaltar que esta decisão, quando o paciente não tem capacidade ou

condições de decidir, só cabe aos representantes legais, e na ausência destes, pessoas de

estreitos vínculos afetivos.

2.1.3 Breve histórico

Os conceitos mencionados referem-se ao entendimento atual, entretanto a prática da

antecipação da morte em determinadas situações acompanham a própria história humana e não

necessariamente tinham caráter misericordioso. Segundo Goldim (2004), diversos povos na

antiguidade, como os celtas, tinham o costume em que os filhos provocassem a morte dos pais

quando estes estivessem velhos e doentes. Cita, ainda, que na Índia “os doentes incuráveis eram

levados até a beira do rio Ganges, onde tinham as suas narinas e a boca obstruídas com o barro.

Uma vez feito isto eram atirados ao rio para morrerem”, Goldim (2004).

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Segundo DOWBIGGIN1 (2003, apud PROCON.ORG, 2013) os gregos e os romanos antigos,

500 anos (a.C.) até primeiro século(d.C.), tendiam a ser tolerantes com o infanticídio

(especialmente em Esparta), eutanásia e o suicídio assistido. Por não existir uma crença na vida

humana como valor superior, inerente e individual, os médicos pagãos frequentemente

realizavam abortos, e homicídio piedoso, voluntário ou involuntário. O autor lembra que

embora houvesse a proibição pelo juramento de Hipócrates de fornecer qualquer droga letal,

mesmo a pedido, poucos médicos gregos e romanos seguiam tal juramento com fidelidade.

A associação THE LIFE RESOURCES CHARITABLE TRUST (2011) ressalta que durante a

Idade Média, na Europa, os dogmas do cristianismo, condenavam a eutanásia pela mesma razão

do judaísmo, uma vez que a vida humana era criada por deus, pertencia somente a este criador,

e não aos indivíduos. A morte seria um “decreto de deus e não do homem”. Entretanto, neste

mesmo período, lembra Sá (2001, p. 66), que “davam-se aos guerreiros feridos um punhal

afiadíssimo, denominado misericórdia, que lhes servia para evitar o sofrimento prolongado da

morte e para não caírem nas mãos dos inimigos”. A autora destaca ainda que “o polegar para

baixo dos Césares era uma permissão à eutanásia, facultando aos gladiadores uma maneira de

fugirem da morte agônica e da desonra”, Sá (2001, p. 66). Ou seja, mesmo no período de maior

domínio dos dogmas religiosos sobre a vida na sociedade europeia, ainda assim, a antecipação

da morte era possível sob determinadas condições.

Ressalta-se, consoante aponta Sá (2001, p. 66), que o conceito da eutanásia, próximo da

concepção atual, foi dado pelo filósofo inglês Francis Bacon no século XVII, derivando do

grego “eu (boa), thanatos (morte), podendo ser traduzido como ‘boa morte’, ‘morte apropriada’,

morte piedosa, morte benéfica, fácil, crime caritativo, ou simplesmente, direito de matar”.

Os séculos XVII e XVIII, marcados pelo Renascimento e a Reforma protestante, tiveram como

consequência a afronta à autoridade dominante pela Igreja Católica na Europa em diversos

assuntos éticos, entre eles a eutanásia, como expõe MANNING2 (1998, apud PROCON.ORG,

2013).

                                                            1 DOWBIGGIN, Ian. A merciful end: The euthanasia movement in modern America. Oxford University Press, 2003.  2 MANNING, Michael. Euthanasia and Physician-assisted Suicide: Killing Or Caring? Paulist Press, 1998.

13  

  

Apesar de o tema ter sido objeto de análise por importantes teóricos, como Martinho Lutero,

Thomas Morus, David Hume, como aponta Goldim (2000), é a partir do século XIX que a

eutanásia e o suicídio assistido passam a ser propostos como possibilidades aceitáveis perante

o Direito. Em 1870, nos Estados Unidos, de acordo com MANNING² (1998, apud

PROCON.ORG, 2013), a ampliação da utilização da morfina como analgésico, propiciou para

que Samuel Williams defendesse o uso dessa substância não apenas para alivio de uma dor

terminal, mas para intencionalmente antecipar a morte do paciente. Tal proposta recebera

bastante atenção pelas publicações médicas e científicas à época, não obstante, a maioria dos

médicos ainda se posicionava contrária à eutanásia.

Em 1895, na Alemanha, “durante a discussão do seu plano nacional de saúde, foi proposto que

o Estado deveria prover os meios para a realização de eutanásia em pessoas que se tornaram

incompetentes para solicitá-la”, Goldim (2000).

Durante o século XX até a atualidade, a discussão sobre a eutanásia continua a enfrentar

resistência, maior ou menor, de acordo a cultura em que é proposta. Como exemplo, GREZZI3

(1996, apud GOLDIM, 1997) aponta que o Uruguai, em 1934, através de seu Código Penal,

facultava ao juiz exonerar do castigo a pessoa de bons antecedentes, autora de homicídio

efetuado por motivo piedoso, mediante súplica reiterada da vítima. Art. 37: “Del homicidio

piadoso: Los Jueces tiene la facultad de exonerar de castigo al sujeto de antecedentes

honorables, autor de un homicidio, efectuado por móviles de piedad, mediante súplicas

reiteradas de la víctima.”,

Segundo a associação THE LIFE RESOURCES CHARITABLE TRUST (2011), em 1984 a

Suprema Corte da Holanda aprovou a eutanásia voluntária, em determinadas condições, e no

ano 2000, foi finalmente aprovada lei que permite a eutanásia e o suicídio assistido. Segundo

Ponthus (2008), no mesmo sentido seguiu a Bélgica em 2002, e Luxemburgo em 2008. De

acordo com McGreevy (2015), o Estado da Califórnia se tornou o quinto estado americano a

legalizar o suicídio assistido com apoio médico, porém a eutanásia em si, continua vedada.  

2.1.4 Eutanásia no atual Código Penal Brasileiro

                                                            3 GREZZI, Ofelia; Código penal de la República Oriental del Uruguay. Fundación de Cultura Universitaria, 1996.

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Como se observa, não há uma previsão específica que trate da eutanásia, conforme seus

requisitos próprios, esta é, via de regra, considerada homicídio com causa de diminuição de

pena. A causa de diminuição de pena se dá em razão do agente cometer a referida ação impelido

por motivo de relevante valor moral e pode ter a pena reduzida de um sexto a um terço:

Homicídio simples Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão de 6 (seis) a 20 (vinte) anos. Caso de diminuição de pena §1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social, ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. 

Nesse sentido, exprime a Exposição de Motivos do Código Penal:

Art. 39. Ao lado do homicídio com pena especialmente agravada, cuida o projeto do homicídio com pena especialmente atenuada, isto é, o homicídio praticado “por motivo de relevante valor social, ou moral”, ou “sob o domínio de emoção violenta, logo em seguida a injusta provocação da vítima”. Por “motivo de relevante valor social ou moral”, o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso do homicídio eutanásico), a indignação contra um traidor da pátria etc.” (grifo nosso).

Bitencourt (2011, p.71) dispõe dos requisitos para a consideração do relevante valor moral:

Será motivo de relevante valor moral aquele que, em si mesmo, é aprovado pela ordem moral, pela moral prática, como por exemplo, a compaixão ou piedade ante o irremediável sofrimento da vítima. Admite-se, por exemplo, como por motivo de relevante valor moral o denominado homicídio piedoso, ou, tecnicamente falando, a eutanásia. Aliás, por ora, é dessa forma que nosso Código Penal disciplina a famigerada eutanásia, embora sem utilizar essa terminologia.

Da tipificação anterior, Sá (2001, p. 173), aponta ainda, que no Direito brasileiro não há

exigência de que o agente que pratique a eutanásia seja um médico, como o que é tecnicamente

esperado.

2.2 Ortotanásia e Distanásia

A ortotanásia para Martini (2010, p. 34) é definida pela “morte natural sem intervenção

desproporcional que o avanço científico permite, possibilitando ao paciente morte digna, sem

sofrimento, deixando que a vida complete seu curso normal e o menos dolorosa possível.” Para

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o autor, ortotanásia não significa tirar a vida, mas “assegurar o direito de morrer com

dignidade.” Explica que etimologicamente, o termo ortotanásia significa “morte correta: orto:

certo, thanatos: morte, ou seja, o não prolongamento artificial do processo natura” e

complementa “Evitam-se métodos extraordinários de suporte de vida, como medicamentos e

aparelhos em pacientes irrecuperáveis”, Martini (2010, p. 34).

Goldim (2010, p. 30) explica que a melhor forma de descrever a ortotanásia e distingui-la da

eutanásia passiva é a partir do conceito de futilidade, ou seja:

reconhecer que alguns tratamentos são inúteis, sem benefício para o paciente, e que podem ser não iniciados ou retirados. Não é a ortotanásia que deve ser implementada como uma nova prática, mas a futilidade que deve ser evitada. Evitar a futilidade é retirar as medidas inúteis que apenas prolongam, de forma indevida, a vida do paciente.

Goldim (2010, p. 30) distingue a eutanásia passiva da ortotanásia, ao dizer que a primeira

“suprime a implantação de medidas que ainda trariam benefício real para o paciente. Se

intencionalmente elas forem implantadas, irão abreviar a vida do paciente”, enquanto a última

“evita prolongar a utilização desnecessárias de medidas sem benefícios, permitindo que a morte

ocorra em seu devido tempo”.

Guimarães (2008, p. 107) diferencia a eutanásia passiva da ortotanásia da forma que segue: “Na

ortotanásia a omissão ou inação de terceiro não antecipa o desfecho letal em relação ao

momento naturalmente certo da morte, enquanto na eutanásia passiva há essa antecipação”.

Corrobora, igualmente com a constatação de que tais figuras são “geralmente consideradas

sinônimas por vários autores”, Guimarães (2008, p. 107).

A distanásia tem sentido oposto ao da ortotanásia, Oliveira Júnior (2010, p. 36) a descreve

como “a morte lenta e sofrida de um paciente terminal, com a utilização de todo o arsenal

terapêutico, visando, desta forma, prolongar o processo da morte”. MARTIN4 (1998, apud SÁ

2001, p. 68) caracteriza a distanásia como:

encarniçamento terapêutico ou obstinação ou futilidade terapêutica, é uma postura ligada especialmente aos paradigmas tecnocientífico e comercial-empresarial da medicina (...). Os avanços tecnológicos e científicos e o sucesso no tratamento de tantas doenças e deficiências humanas levaram a medicina a se preocupar cada vez

                                                            4 MARTIN, Leonard M. Eutanásia e distanásia: iniciação à bioética. Revista do Conselho Federal de Medicina, p. 171-192, 1998

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mais com a cura de patologias e a colocar em segundo plano as preocupações mais tradicionais com o cuidado do portador das patologias.

Forçoso é concluir que a distanásia não tem efeitos benéficos nem para o sujeito passivo,

tampouco para seus entes próximos, ou mesmo para o Estado.

2.3 Suicídio Assistido

2.3.1 Conceito

Não há grandes divergências acerca do conceito de suicídio assistido, sendo este entendido por

Oliveria Júnior (2010, p. 36) como a situação em que “o próprio paciente passa a ser o agente

ativo, com a orientação e auxílio de um médico ou terceiro”. Para RIBEIRO5 (1999, apud SÁ,

2001, p. 69) “No suicídio assistido, a morte não depende diretamente da ação de terceiro. Ela é

consequência de uma ação do próprio paciente, que pode ter sido orientado, auxiliado ou apenas

observado por este terceiro”.

É muito importante que se aplique a mesma classificação empregada para a eutanásia própria

e a imprópria para o suicídio assistido. O suicídio assistido, que parte da sociedade pretende

exclui-lo da ilicitude criminal, é aquele que obedece a determinados requisitos como aponta Sá

(2001, p. 187): “efetivação (auxílio) da morte por profissional da medicina; o requerimento do

paciente, livre e desimpedido; a iminência da morte e o motivo piedoso”.

Qualquer usurpação do conceito de suicídio assistido, em inobservância dos citados requisitos,

tratar-se-á de suicídio assistido impróprio. E para este tipo penal em vigor não há qualquer

pretensão em descriminalização de conduta.

Um caso marcante para as discussões sobre a aceitabilidade do suicídio assistido, em sentido

próprio, se desenvolveu nas décadas de 1990, nos Estados Unidos, e repercute até os dias atuais,

quando o médico americano, Jack Kevorkian, decide auxiliar, pessoas portadoras de doenças

incuráveis, em estado terminal ou crônico com perspectiva de degradação da situação, em razão

                                                            5 RIBEIRO, Diaulas Costa. Viver bem não é viver muito. Revista Jurídica Consulex n. 29, ano III, v. I, maio de 1999.

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de piedade ou compaixão, a suicidarem, como aponta Teixeira (2010). Segundo o autor, foram

realizadas mais de 130 assistências ao suicídio por Kevorkian.

Segundo Biography.com Editors (2016), Jack Kevorkian foi processado quatro vezes, entre

1990 e 1998, por suas ações, sendo absolvido em três deles, e em um houve a extinção do

processo por falhas processuais. Mesmo com os grandes debates desenvolvidos a partir de seus

atos, Kevorkian desejava não apenas que fosse possível o suicídio assistido, mas também que

a eutanásia fosse descriminalizada, que essa decisão fosse tomada pela Suprema Corte daquele

país. Para atingir seu objetivo, ainda segundo Biography.com Editors (2016), o médico praticou

a eutanásia ativa, através de injeção letal, em Thomas Youk, que sofria de esclerose lateral

amiotrófica, e permitiu que o vídeo contendo a prática da eutanásia fosse apresentado no

programa de televisão 60 minutes, da rede CBS television, em 1998.

Pela prática da eutanásia, foi condenado, em 26 de março de 1999, a 25 anos de prisão por

homicídio, e cumpriu a pena até 1° de junho de 2007, quando foi posto em liberdade por bom

comportamento e por comprometer-se em não mais assistir suicídio, Biography.com Editors

(2016).

2.3.2 O Suicídio Assistido no Código Penal Brasileiro

O suicídio assistido adequa-se à parte final do caput do artigo 122 do nosso atual Código Penal,

“prestar-lhe auxílio para que o faça”, como segue:

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio Art. 122 Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Parágrafo único - A pena é duplicada: Aumento de pena I - se o crime é praticado por motivo egoístico; II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

Para Bitencourt (2011, p. 129), o auxílio representa “uma ‘participação’ ou contribuição

material do sujeito ativo, que pode ser exteriorizada mediante um comportamento, um auxílio

material”.

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O Código Penal atual não distingue o suicídio assistido próprio, de caráter misericordioso, do

suicídio assistido impróprio. Equipara o suicídio assistido ao induzimento e à instigação. O

presente Código não prevê nenhuma causa de diminuição de pena ou de privilégio, quando o

agente auxilia o suicídio alheio, por motivo de relevante valor moral, visando contribuir para

aliviar o sofrimento da vítima que padece de doença. Pelo contrário, institui causa de aumento

de pena, através do inciso II do parágrafo único, se a vítima “tem diminuída, por qualquer causa,

a capacidade de resistência”. A referida causa de aumento de pena pode dar margem à

interpretação de que as pessoas doentes em quadro terminal, ou crônico, estariam inclusas no

rol de pessoas com reduzida capacidade de resistência.

Consoante aponta Bitencourt (2011, p. 125), a lei penal trata o suicídio como “um fato imoral

e socialmente danoso, que deixa de ser penalmente indiferente quando concorre com a atividade

da vítima outra energia individual provinda da manifestação da vontade de outro ser humano”.

Outro ponto da legislação penal que normatiza sobre o suicídio é o inciso II, § 3°, do art. 146:

Constrangimento ilegal Art. 146 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. § 3º - Não se compreendem na disposição deste artigo: I - a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; II - a coação exercida para impedir suicídio.

Depreende-se da referida norma que o legislador limitou a autonomia individual ao deixar de

criminalizar o constrangimento imposto a alguém que está em vias de suicidar. Tal fato é

compreensível para situações em que pessoas que gozam de boa saúde intentam por cabo à suas

vidas em razão de depressão ou outro desequilíbrio psíquico. Como exemplo, é comum

observarmos nos noticiários situações em que bombeiros são acionados para evitar o suicídio

de pessoas que pretendem se jogar de arranha-céus.

Não obstante o ato de heroísmo do exemplo anterior, seria da mesma forma aceitável e lícito

impedir o auxílio ao suicídio de quem se encontra em estado terminal, ou sofrendo dores

terríveis por doença crônica, e que suplica pela abreviação de uma vida que não mais existe

para ele?

19  

  

2.4 Considerações sobre vida e morte

“A convicção de que a vida humana é sagrada talvez ofereça a mais poderosa base emocional

para oposição à eutanásia (...). A Igreja Católica Romana é o adversário mais inflexível, mais

vigilante e, sem dúvida, mais eficiente, tanto da eutanásia quanto do aborto”, Dworkin (2003,

p.275).

A religião e a filosofia permeiam a evolução da espécie humana na intenção de buscar respostas

para questões em que a ciência moderna ainda não obteve resposta, e que, talvez, jamais

encontre em especial as concepções de vida e morte.

O presente estudo não tem a pretensão de esgotar o tema, notadamente por acreditar-se que ele

é ilimitado, cada ser humano, dotado de razão, é capaz de valorar e conceituar a vida ou a morte.

Entretanto, é importante ressaltar alguns aspectos que influenciam diretamente nas discussões

acerca da eutanásia e do suicídio assistido.

2.4.1 Questões religiosas

Como apontou Dworkin, no Brasil, também a Igreja Católica é a instituição vanguardeira na

censura à eutanásia e ao suicídio assistido e, de forma geral, tal posicionamento é acompanhado

pelas diversas instituições Protestantes aqui existentes. Em diversos artigos e estudos, é possível

perceber o posicionamento pró ou contra a eutanásia dos pesquisadores de forma orientada com

sua crença pessoal, por essa razão é importante compreender quais os dogmas e orientações

religiosas dizem respeito à eutanásia e ao suicídio assistido.

Para Oliveira Júnior (2010, p. 36), a Declaração sobre a Eutanásia, da Sagrada Congregação

para Doutrina da Fé, expedida pelo Vaticano em 1980, é um documento pioneiro na orientação

sobre o tema. Na Declaração há o entendimento que a vida tem um caráter sagrado e por essa

razão “ninguém pode dispor dela a seu bel-prazer os crentes veem nela também um dom do

amor de Deus, que eles têm a responsabilidade de conservar e fazer frutificar”, em seguida

estabelece três premissas que norteiam as argumentações defendidas:

20  

  

1. ninguém pode atentar contra a vida de um homem inocente, sem com isso se opor ao amor de Deus para com ele, sem violar um direito fundamental que não se pode perder nem alienar, sem cometer um crime de extrema gravidade. 2. todos os homens têm o dever de conformar a sua vida com a vontade do Criador. A vida é-lhes confiada como um bem que devem fazer frutificar já neste mundo, mas só encontrará perfeição plena na vida eterna. 3. a morte voluntária ou suicídio, portanto, é tão inaceitável como o homicídio: porque tal ato da parte do homem constitui uma recusa da soberania de Deus e do seu desígnio de amor. Além disto, o suicídio é, muitas vezes, rejeição do amor para consigo mesmo, negação da aspiração natural à vida, abdicação frente às obrigações de justiça e caridade para com o próximo, para com as várias comunidades e para com todo o corpo social — se bem que por vezes, como se sabe, intervenham condições psicológicas que podem atenuar ou mesmo suprimir por completo a responsabilidade (grifo nosso). (SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA DOUTRINA DA FÉ, 1980).

Em sequência é exposto que mesmo nos casos que configuram a eutanásia ou suicídio assistido

próprio, tal prática permanece inaceitável.

Pode acontecer que dores prolongadas e insuportáveis, razões de ordem afetiva ou vários outros motivos, levem alguém a julgar que pode legitimamente pedir a morte para si ou dá-la a outros. Embora em tais casos a responsabilidade possa ficar atenuada ou até não existir, o erro de juízo da consciência — mesmo de boa fé — não modifica a natureza deste gesto homicida que, em si, permanece sempre inaceitável. (SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA DOUTRINA DA FÉ, 1980). 

Outro argumento, além da sacralidade da vida, é de que segundo a doutrina católica, vide a

Sagrada Congregação para Doutrina da Fé (1980), “a dor, sobretudo nos últimos momentos da

vida, assume um significado particular no plano salvífico de Deus; é, com efeito, uma

participação na Paixão de Cristo e união com o sacrifício redentor que Ele ofereceu em

obediência à vontade do Pai (grifo nosso)”. Afirmam que existem pessoas que moderam o uso

de medicamentos analgésicos “para aceitar voluntariamente, ao menos uma parte dos seus

sofrimentos e se associar assim com plena consciência aos sofrimentos de Cristo crucificado”,

entretanto reconhecem que este ato “heroico” não é a regra e recomendam “medicamentos

capazes de suavizar ou suprimir a dor, mesmo que surjam efeitos secundários, como torpor ou

menor lucidez”.

Apesar de posicionar-se de forma contrária à eutanásia e ao suicídio assistido, através da citada

Declaração, a Igreja Católica admitiu como legítimos, ou como ato não condenável, atos

característicos da ortotanásia da forma que segue:

— É sempre lícito contentar-se com os meios normais que a medicina pode proporcionar. Não se pode, portanto, impor a ninguém a obrigação de recorrer a uma técnica que, embora já em uso, ainda não está isenta de perigos ou é demasiado onerosa. Recusá-la não equivale a um suicídio; significa, antes, aceitação da condição humana, preocupação de evitar pôr em ação um dispositivo médico desproporcionado

21  

  

com os resultados que se podem esperar, enfim, vontade de não impor obrigações demasiado pesadas à família ou à coletividade. — Na iminência de uma morte inevitável, apesar dos meios usados, é lícito em consciência tomar a decisão de renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. Por isso, o médico não tem motivos para se angustiar, como se não tivesse prestado assistência a uma pessoa em perigo (grifo nosso). (SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA DOUTRINA DA FÉ, 1980).

Um ponto a se destacar, também, da Declaração é um trecho em que o Papa Pio XII admite

uma flexibilidade quanto à utilização de narcóticos para o combate a profundas dores, e esta

utilização pode acabar por antecipar a morte do enfermo, em outras palavras a eutanásia, apesar

de não admitida explicitamente de forma alguma:

Convém recordar aqui uma declaração de Pio XII que conserva ainda todo o seu valor. A um grupo de médicos que lhe tinha feito a pergunta se « a supressão da dor e da consciência por meio de narcóticos (...) é permitida pela religião e pela moral ao médico e ao paciente (mesmo ao aproximar-se a morte e se se prevê que o uso dos narcóticos lhes abreviará a vida », o Papa respondeu: « se não existem outros meios e se, naquelas circunstâncias, isso em nada impede o cumprimento de outros deveres religiosos e morais, sim ».[5] Neste caso, é claro que a morte não é de nenhum modo querida ou procurada, embora, por um motivo razoável, se corra o risco de morrer; a intenção é simplesmente acalmar eficazmente a dor, usando para isso os medicamentos analgésicos de que a medicina dispõe (grifo nosso). (SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA DOUTRINA DA FÉ, 1980). 

Decorridas mais de três décadas desde a publicação da Declaração sobre a Eutanásia de 1980,

não houve mudança sobre o posicionamento da Igreja Católica. De teor semelhante à

Declaração de 1980, João Paulo II, na Carta Encíclica, EVANGELIUM VITAE, de 1995, insiste

na sacralidade e inviolabilidade da vida “Só Deus é senhor da vida, desde o princípio até ao

fim: ninguém, em circunstância alguma, pode reivindicar o direito de destruir diretamente um

ser humano inocente”, Paulo II (1995).

Argumenta contra a eutanásia ao dizer que a experiência do morrer apresenta características

novas, a saber: “a tendência para apreciar a vida só na medida em que proporciona prazer e

bem-estar, o sofrimento aparece como um contratempo insuportável, de que é preciso

libertar-se a todo o custo (grifo nosso)”, Paulo II (1995), e traça uma comparação ao dizer

que, quando a morte “interrompe inesperadamente uma vida ainda aberta para um futuro rico

de possíveis experiências interessantes” esta é absurda, enquanto a morte, que ocorre quando a

existência é tida “já privada de sentido porque mergulhada na dor e inexoravelmente votada a

um sofrimento sempre mais intenso” é uma “libertação reivindicada”, Paulo II (1995).

22  

  

Crítica importante feita por Paulo II (1995), diz respeito à “cultura da morte” caracterizada:

por uma mentalidade eficientista que faz aparecer demasiadamente gravoso e insuportável o número crescente das pessoas idosas e debilitadas. Com muita frequência, estas acabam por ser isoladas da família e da sociedade, organizada quase exclusivamente sobre a base de critérios de eficiência produtiva, segundo os quais uma vida irremediavelmente incapaz não tem mais qualquer valor.

Neste trecho fica clara sua preocupação com possíveis desvios de conduta que poderiam ocorrer

indevidamente em um local em que a eutanásia fosse permitida, respeitadas exigências de

aceitabilidade. Apresenta o receio de uma pressão sobre os idosos ou pessoas debilitadas, ou

mesmo, de uma possível desvalorização da vida.

Ainda na Carta Encíclica em questão, ratifica a possibilidade da ortotanásia a partir da renúncia

do excesso terapêutico:

Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado ‘excesso terapêutico’, ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes. (PAULO II, 1995).

Mais recentemente, o papa Francisco disse aos participantes do Congresso da Associação dos

Médicos Católicos Italianos, em 15 de novembro de 2014, seu ponto de vista sobre a

inviolabilidade da vida, ilicitude e dos riscos da eutanásia em uma cultura do “descarte”:

É um problema científico, porque se trata de uma vida humana e não é lícito eliminar uma vida humana para resolver um problema. Mas não, o pensamento moderno... — Mas, houve, no pensamento antigo e no pensamento moderno, a palavra matar tem o mesmo significado! O mesmo é válido para a eutanásia: todos sabemos que com tantos idosos, nesta cultura do descarte, se pratica a eutanásia escondida. Mas, há também a outra. E isto significa dizer a Deus: Não, o fim da vida sou eu que o decido, como quero. É um pecado contra Deus Criador. Pensai bem sobre isto. (FRANCISCO, 2014). 

A publicação da Igreja Evangélica da Paz, em 23 de outubro de 2014, reflete o posicionamento

das diversas correntes protestante no Brasil ao afirmar que a eutanásia é condenável por ferir a

soberania de deus, portanto a “Eutanásia é uma tentativa do homem de usurpar essa autoridade

de Deus”, e apresenta sua argumentação baseando-se em passagens bíblicas.

E a eutanásia? A verdade decisiva que leva à conclusão de que Deus é contra à eutanásia é a Sua soberania. Sabemos que a morte física é inevitável (Salmos 89:48;

23  

  

Hebreus 9:27). No entanto, só Deus é soberano sobre quando e como a morte de uma pessoa acontece. Jó testifica em Jó 30:23: “Porque eu sei que me levarás à morte e à casa do ajuntamento determinada a todos os viventes”. Em Salmos 68:20, lemos: “O nosso Deus é o Deus da salvação; e a DEUS, o Senhor, pertencem os livramentos da morte”. Eclesiastes 8:8a declara: “Nenhum homem há que tenha domínio sobre o espírito, para o reter; nem tampouco tem ele poder sobre o dia da morte”. Deus tem a palavra final sobre a morte (veja também 1 Coríntios 15:26, 54-56; Hebreus 2:9, 14-15; Apocalipse 21:4). Eutanásia é uma tentativa do homem de usurpar essa autoridade de Deus. (IGREJA EVANGÉLICA DA PAZ, 2014).

DE MORAIS (2013, P. 7) discorre sobre as manifestações evangélicas contra a modificação da

legislação brasileira a respeito da eutanásia entre outras questões:

(...)o importante, ao que nos parece, é perceber que as religiões têm se mostrado mais viva do que nunca, e os indivíduos têm procurado pela transcendência, independente da forma e do conteúdo, e, mais, têm assumido isto em público com repercussões amplamente divulgadas pela mídia na atualidade. Citamos como exemplo as manifestações evangélicas contra a mudança na legislação brasileira a respeito de células-tronco, aborto, eutanásia e união estável entre homoafetivos, agenda de luta da Frente Parlamentar Evangélica em ação “ecumênica” com a bancada católica do Congresso Nacional.

2.4.2 Aspectos filosóficos

A filosofia possui, dentre seus objetos, a análise da vida e da morte, portanto, diversos foram

os filósofos que discorreram sobre tais conceitos e implicações ao longo da história, e vastos

são os conhecimentos já produzidos, Campi (2004, p.7). A presente seção tem como objetivo

identificar uma sistematização, já realizada, acerca das possibilidades de valoração da vida e da

morte, para isso terá como referência os ensinamentos do filósofo do Direito, Ronald Dworkin.

Em sua obra, Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais, o autor teve como

objetivos identificar as razões para haver tantas divergências acerca dos mencionados temas.

Dentre as hipóteses, sistematiza a valoração da vida em três vertentes que não se excluem: a

vida como valor instrumental; a vida como valor subjetivo; e a vida como intrinsecamente

valiosa.

A vida, enquanto valor instrumental, seria mensurada pela utilidade, como aponta Dworkin

(2003, p. 101), “Tratamos a vida de uma pessoa como instrumental quando a avaliamos em

termos de quanto o fato dela estar viva serve aos interesses dos outros: do quanto aquilo que

ela produz torna melhor a vida das outras pessoas, por exemplo”. Neste sentido, a vida de um

24  

  

grande músico, ou de um importante cientista, seria de grande valor enquanto servisse ao

interesse de outras pessoas.

A valoração em caráter subjetivo, diz respeito à valoração da própria vida, explica Dworkin

(2003, p. 101) “Tratamos a vida de uma pessoa como subjetivamente valiosa quando avaliamos

seu valor para ela própria, isto é, em termos de quanto ela quer estar viva, ou de quanto o fato

de estar viva é bom para ela”. Nesse contexto, quando se diz que a vida “perdeu o valor” para

alguém que sofre muito ou está na miséria, está se atribuindo a essa vida um sentimento

subjetivo, Dworkin (2003, p. 101).

Valor oposto ao da instrumentalidade ou utilidade é o valor intrínseco da vida, podendo este ser

compreendido como uma valoração que independe da apreciação de terceiros, como expõe

Dworkin (2003, p. 99), “uma coisa é intrinsecamente valiosa, ao contrário, se seu valor for

independente daquilo que as pessoas apreciam, desejam ou necessitam, ou do que é bom para

elas”.

Dentro do valor intrínseco da vida, o autor fez uma distinção entre o valor incremental, que

definiu como sendo aquilo de que queremos mais, pouco importando o quanto já temos, e o

valor ante o que já existe. Dworkin (2003, p. 102):

Tendemos a tratar desse modo (incremental) o conhecimento, por exemplo. Nossa cultura quer saber sobre arqueologia, cosmologia, e galáxias a muitos milhões de anos-luz de distância - ainda que seja provável que muito pouco desse conhecimento possa ter alguma utilidade prática -, e queremos saber o máximo possível sobre todas essas coisa. Não é assim, porém, que valorizamos a vida humana, que tratamos como sagrada e inviolável. O traço distintivo entre o sagrado e o incrementalmente valioso é o fato de o sagrado ser intrinsecamente valioso porque - e, portanto, apenas quando - existe. É inviolável pelo que representa ou incorpora. Não é importante que existam mais pessoas. Mas, uma vez que uma vida humana tenha começado, é muito importante que floresça e não se perca.

Ante o exposto Dworkin (2003, p. 103) questiona: se a vida humana não tem valor incremental,

ou seja, não é importante que se tenha um maior número de pessoas, por que as pessoas se

importam com a extinção da vida de um indivíduo, em outras palavras, por que a vida recebe

esse caráter de sacralidade ou inviolabilidade (grifo nosso)?

A resposta para Dworkin (2003, p. 103) é de que uma coisa se torna sagrada, ou inviolável, por

meio de dois processos: por associação ou pela história (modo como veio a existir). “O

25  

  

primeiro se dá por associação ou designação. No Egito antigo, por exemplo, certos animais

eram considerados sagrados para certos deuses, (...), era um sacrilégio feri-los”, Dworkin (2003,

p. 103), dá como exemplo, também, as diversas culturas que adotam a mesma postura para seus

símbolos nacionais, como a bandeira. O segundo processo se dá pela história ou modo como

veio a existir:

No caso da arte, por exemplo, a inviolabilidade não se estabelece por associação, mas por sua gênese: o que confere valor a uma pintura não é o que ela simboliza nem aquilo a que está associada, mas o modo como veio existir. Protegemos até mesmo uma tela que não apreciamos muito, assim como tentamos preservar culturas pelas quais não temos nenhuma admiração especial, pois elas corporificam processos de criação humana que consideramos importantes e admiráveis. (DWORKIN, 2003, p. 104).

Esse raciocínio é estendido às espécies individuais, segundo Dworkin (2003, p. 105), o ser

humano não se preocupa com a existência de determinada espécie, necessariamente, por algum

motivo útil, por prazer ou por seu valor incremental, a principal razão é de que nós

“consideramos um grande tipo de vergonha cósmica o fato de uma espécie criada pela natureza

deixar de existir por obra de ações humanas”. Dessa forma, a violação do processo histórico de

criação de algo, tende a criar no indivíduo um sentimento negativo, como a prática de uma

injustiça, seja porque a violação atenta contra a criação humana, criação pela natureza, ou pela

criação divina. A destruição de uma espécie para alguém não religioso pode significar a

interferência nos processos naturais, enquanto para um religioso pode significar um pecado por

atentar contra a criação de deus, Dworkin (2003, p. 105).

Dworkin (2003, p. 105) aponta que o sentimento de preservação de uma espécie atinge uma

forma mais dramática e intensa quando diz respeito à preservação da nossa própria. Quanto ao

processo histórico ou de gênese, há uma preocupação com a preservação dos processos de

criação humanos que se dão pela própria cultura, e com o processo de criação natural, ou pela

criação divina, através da preocupação com a perpetuação da espécie.

O sentimento de sacralidade é reforçado nas pessoas que acreditam no processo de criação

divina, uma vez que no Cristianismo, por exemplo, o homem é concebido como a imagem e

semelhança de deus (MATHEWS, 1996), portanto a sacralidade se dá, também, por processo

de associação.

26  

  

Dworkin (2003, p.111) trata ainda de duas características das nossas convicções sobre o sagrado

e inviolável. A primeira delas é de que, para a maioria das pessoas, existem graus de sagrado,

assim como do maravilhoso, haveria, portanto diferentes níveis de inviolabilidade. E traz alguns

exemplos:

Seria sacrilégio que alguém destruísse uma obra de um artista menor do Renascimento, mas não tanto quanto a destruição de um Bellini. Seria lamentável que uma espécie distinta e bela de ave exótica fosse destruída, mas seria ainda pior que acabássemos com o tigre siberiano. E, ainda que sem dúvida lamentássemos a extinção total de serpentes ou tubarões, nosso pesar talvez fosse ambíguo; poderíamos considerar não tão lamentável a destruição de uma espécie perigosa para nós. (DWORKIN, 2003, p.111).

A segunda característica é que nossas convicções sobre a inviolabilidade são seletivas. “Não

tratamos como inviolável tudo o que é produzido pelos seres humanos. Tratamos a arte como

inviolável, mas não a riqueza, os carros ou a publicidade comercial, ainda que sejam criações

das pessoas”, Dworkin (2003, p.111). Cita ainda outros exemplos, entre os quais, que não

valorizamos todas as coisas que são produzidas por um longo processo natural, como depósito

de carvão ou petróleo, que muitos não se importam com a derrubada de árvores para abrir

espaço para construção de casas, ou com a matança de outros mamíferos para servirem de

alimento.

A justificativa para a existência de níveis de inviolabilidade e de seletividade sobre essas

convicções são explicadas por Dworkin (2003, p. 112) pelas seguintes razões: “Como seria de

se esperar, nossas seleções são configuradas por nossas necessidades e as refletem, e, de

maneira recíproca, configuram e são configuradas por outras opiniões que temos”. E

complementa:

A reciprocidade entre nossa admiração pelos processos e nossa admiração pelo produto é complexa, e para a maioria das pessoas seu resultado não é um único princípio geral do qual fluem todas as suas convicções sobre o inviolável, mas uma complexa rede de sentimentos e intuições. (DWORKIN, 2003, p.112). 

Outra argumentação de Dworkin (2003, p. 120) que nos auxilia na compreensão quanto a

aceitabilidade da eutanásia ou do suicídio assistido diz respeito às expectativas que revestem o

viver. Para o autor, apesar de não ter nenhum fundamento discutir sobre qual vida teria mais

valor dado o caráter subjetivo da valoração, é possível compreender porque determinadas

situações diante da morte causam maior ou menor clamor nas pessoas, e utiliza o seguinte

exemplo:

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A morte de um adolescente é pior que a morte de um bebê, pois a morte daquele frustra investimentos que ele e outros já tenham feito em sua vida - as ambições e expectativas que ela teve, seus planos e projetos, o amor, os interesses e o envolvimento emocional que criou para si e com os outros, e que estes criaram para com ela. (DWORKIN, 2003, p. 120).

Para Dworkin (2003, p. 122), quando a progressão normal da vida se vê frustrada pela morte,

ocorre o desperdício dos investimentos criativos naturais e humanos. “Quão lamentável isso é,

porém - o tamanho da frustração - depende da fase da vida que ocorre, pois a frustração é maior

se a morte ocorrer depois que a pessoa tiver feito um investimento pessoal significativo em sua

própria vida”, e em sentido oposto, será menor “se ocorrer depois que algum investimento tiver

sido substancialmente concretizado, ou tão substancialmente concretizado quanto poderia ter

sido”, Dworkin (2003, p. 122).

Diante de todo o exposto, é possível inferir que nos casos que envolvem a possibilidade da

eutanásia e do suicídio assistido, ambos em sentido próprio, o grau de inviolabilidade

(sacralidade) ou o nível de frustração pela condição já fragilizada estabelece-se em patamares

mais baixos. O quadro de doença terminal, ou situação sanitária crônica, em que não há

esperanças de melhora, por si só, já não mais criará expectativas quantos a possibilidade de um

futuro razoável ou mesmo digno. A antecipação da morte, seja pela eutanásia ou pelo suicídio

assistido, não provocará aumento da frustração em decorrência de desperdícios de

investimentos criativos ou humanos para esses casos.

O diagnóstico de uma doença em estágio terminal, ou ante uma situação crônica, como

anteriormente descrita, pode acabar por provocar frustração semelhante a da própria morte, haja

vista, em ambas as situações, ocorrer o término das expectativas decorrentes dos investimentos

criativos e humanos. Portanto, adiantar a morte de forma a minimizar os sofrimentos do

indivíduo, de acordo com sua vontade, pode não implicar em atentar contra a inviolabilidade

da vida e sua valoração intrínseca.

Por outro lado, levando-se em consideração, a sacralidade da vida por associação, qualquer

interferência no processo de criação divina, é um atentado à vontade de deus, que fez o homem

a sua semelhança, como prega o Cristianismo.

2.5 A eutanásia e o suicídio assistido no Projeto de Lei 236/12 do senado

28  

  

Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 236 (PL 236/12), de 2012, apelidado de Novo

Código Penal, de autoria do ex-senador José Sarney, que pretende substituir o Código Penal da

década de 1940, ainda vigente, Decreto-lei no 2.848, de 07 de dezembro de 1940. O PL 236/12

encontra-se na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, e está sujeito ainda a

modificações diversas conforme tramita pelo processo legislativo regular.

2.5.1 A eutanásia no Projeto de Lei 236/12 do Senado

O PL 236/12 traz uma importante inovação ante a tipificação da eutanásia ao diferenciá-la da

figura do homicídio simples, da forma que segue:

Homicídio Art. 121. Matar alguém Pena – prisão, de seis a vinte anos. Eutanásia Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de doença grave: Pena – prisão, de dois a quatro anos. § 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima. Exclusão de ilicitude § 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

A presente distinção dos tipos é muito importante em razão de serem as condutas bastante

distintas. Na eutanásia, a motivação para adiantar um processo de morte, que já está em vias de

ocorrer, ou por conta de doença muito grave e irreversível, se dá por piedade, ante o pedido do

próprio sujeito. No homicídio simples, via de regra, a motivação não tem caráter piedoso,

tampouco é leveda em consideração a vontade da vítima, ou que esta esteja em estado terminal

ou sujeita a doença irreversível que cause grande sofrimento. Desta feita, não existe nenhuma

razão para que a lei dê o mesmo tratamento penal a condutas tão diversas. Por consequência, a

pena vigente para a eutanásia que é de reclusão, de seis a vinte anos, passa a ser proposta no PL

236/12 como prisão, de dois a quatro anos.

29  

  

É importante destacar que o projeto do Novo Código Penal trata da eutanásia própria, descrita

no capítulo 2 pelo preenchimento dos seguintes requisitos: morte provocada por ação ou

omissão de terceiro, em razão de piedade ou compaixão, sujeito passivo acometido por doença

incurável, em estado terminal, que padeça de profundo sofrimento, e que a ação provoque

encurtamento do período natural da vida. Além dos requisitos da eutanásia própria, o Projeto

elenca como necessários para que se configure a eutanásia que o sujeito passivo seja maior,

imputável e que somente ocorra a seu pedido.

Portanto, o PL 236/12 só considera a eutanásia para o maior de 18 anos de idade, quando este

manifesta sua vontade através de pedido, e que este seja imputável. O conceito de sujeito

imputável pode ser estabelecido, a partir do artigo 26 do Código Penal vigente, como o agente

que era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do

fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, por doença mental ou

desenvolvimento mental incompleto ou retardado.

A presente proposta não estabelece em que momento deve ser realizado o pedido, se deve

necessariamente ser feito em momento logo anterior a prática da eutanásia, ou se seria válido,

por exemplo, o pedido feito anteriormente ao acometimento de um quadro clínico que

provocasse a perda da consciência, seja por manifestação verbal à família ou responsável, seja

por manifestação expressa em documento.

O §1º do art. 122 é, também, inovador e vai ao encontro das reivindicações da parcela da

sociedade que defende menor interferência do Estado na autonomia individual. De acordo com

as circunstâncias do caso, as relações de parentesco ou relações afetivas com a “vítima”, o juiz

deve deixar de aplicar pena.

Referente ao §1º do art. 122 do PL 236/12, cabe destacar que ante uma situação tão grave que

o indivíduo opte pela abreviação de sua vida, preenchidos os requisitos para a eutanásia, é

altamente desejável que a conduta ativa seja realizada por um médico, ou profissional da saúde,

apto a provocar o resultado causando o mínimo sofrimento ao sujeito passivo. Que a eutanásia

transcorra como sua própria definição uma “morte tranquila”, sem sofrimentos adicionais.

30  

  

Pela redação do supracitado parágrafo, depreende-se que a lei somente se refere à hipótese do

juiz deixar de aplicar a pena, quando o sujeito ativo for parente ou tiver estreitos laços de afeição

para com a vítima, permanecendo fora desse núcleo os médicos ou profissionais da saúde

verdadeiramente aptos a proceder a eutanásia, situação esta que não é a desejável. Os médicos,

agindo por determinação do paciente, da família ou daquele que mantém estreita relação de

afeição com sujeito passivo, deveriam figurar entre aqueles cuja pena pode ser afastada de

acordo com o caso concreto. Nesse sentido, Sá (2001, p. 187) aponta como requisito obrigatório

para a eutanásia a “realização do ato pelo profissional da medicina”.

O § 2º trata da exclusão da ilicitude da eutanásia, entretanto, ao avaliar o conteúdo do citado

parágrafo, percebemos que estamos diante a ortotanásia:

Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão (grifo nosso).

No Brasil, a ortotanásia não enfrenta maior resistência e sua aplicação já ocorre sem que

configure ilícito penal, consoante exposto no capítulo 3 recebe inclusive apoio da comunidade

cristã. O próprio Código de Ética Médica, de 2009, apesar de vedar a eutanásia, permite a

ortotanásia, segundo art. 41 e parágrafo único.

É vedado ao médico: Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal (grifo nosso).

Desta forma o projeto do Novo Código Penal vem regulamentar uma situação que já ocorre de

fato sem configurar como ilícito penal.

A Emenda n° 01 propostas pela Comissão Temporária da reforma do Código Penal, com caráter

substitutivo, pretende com seu novo texto manter a tipificação da eutanásia como homicídio

simples e regulamentar a ortotanásia da mesma forma que segue:

Emenda nº 1 – CTRCP (Substitutivo) Homicídio Art. 121. Matar alguém:

31  

  

Pena – prisão, de oito a vinte anos. Homicídio privilegiado 3º A pena é diminuída de um sexto a um terço se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob domínio de violenta emoção, logo em seguida de injusta provocação da vítima. Ortotanásia §6º No âmbito dos cuidados paliativos aplicados a pessoa em estado terminal ou com doença grave irreversível, não há crime quando o agente deixar de fazer uso de meios extraordinários, desde que haja consentimento da pessoa ou, em sua impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão. §7º A situação de morte iminente e inevitável ou de doença irreversível, no caso do parágrafo anterior, deve ser previamente atestada por dois médicos.

Como demonstrado anteriormente, a tipificação da eutanásia como homicídio simples é um

grande retrocesso e incoerência, haja vista tratarem de circunstâncias muito diversas.

2.5.2 O suicídio assistido no Projeto de Lei 236/12 do Senado

O suicídio assistido no PL 236/12 foi tratado originalmente da forma que segue:

Art. 123. Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao suicídio: Pena – prisão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma, e de um a quatro anos, se da tentativa resulta lesão corporal grave, em qualquer grau. § 1º Não se pune a tentativa sem que da ação resulte ao menos lesão corporal grave. § 2º Aplicam-se ao auxílio a suicídio o disposto nos §§1º e 2º do artigo anterior Aumento de pena § 3º A pena é aumentada de um terço até a metade se o crime é cometido por motivo egoístico.

Percebemos grande avanço quando o legislador distingue o suicídio assistido próprio, por

motivos piedosos, das outras modalidades, o induzimento e a instigação ao suicídio. Não é

razoável que se dê o mesmo tratamento penal para aquele que induz ou instiga alguém ao

suicídio, e para aquele que auxilia pessoa em estado terminal, ou com doença muito grave e

irreversível, a pedido desta, a abreviar sua vida, em razão de muitas vezes não ter condições de

praticar tal ato sozinha.

O presente entendimento adequa-se ao §2º do art. 123, “Aplicam-se ao auxílio a suicídio o

disposto nos §§1º e 2º do artigo anterior”, art. 122:

§ 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima. Exclusão de ilicitude

32  

  

§ 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

Apesar da considerável evolução na perspectiva de maior respeito a autonomia individual,

entende-se que em determinadas situações tanto a eutanásia quanto o suicídio assistido devem

ser passíveis de exclusão de ilicitude, e não apenas possibilidade de afastamento de pena.

De maneira retrógrada e inadequada, a Emenda n° 01 propostas pela Comissão Temporária da

reforma do Código Penal, com caráter substitutivo, pretende, também, manter o mesmo

tratamento que vem sendo aplicado ao longo dos anos entre a instigação, indução e o auxílio ao

suicídio.

Emenda nº 1 – CTRCP (Substitutivo) Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio Art. 122. Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao suicídio: Pena – prisão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma, e de um a quatro anos, se da tentativa resulta lesão corporal grave, em qualquer grau. §1º Não se pune a tentativa sem que da ação resulte ao menos lesão corporal grave. §2º A pena é aumentada de um terço até a metade se o crime é cometido por motivo egoístico.

3 PRINCÍPIOS ENVOLVIDOS

A definição do termo “princípio” pode observada por mais de um viés, como aponta Silva

(2014, p.1660):

Derivado do latim principium (origem, começo), em sentido vulgar quer exprimir o começo de vida ou o primeiro instante em que as pessoas ou as coisas começam a existir. É, amplamente, indicativo do começo ou da origem de qualquer coisa. Princípio é também a expressão que designa a espécie de norma jurídica cujo conteúdo é genérico, contrapondo-se à regra ou ao preceito, que é a norma mais individualizada (grifo nosso).

33  

  

Ambos os termos interessam ao Direito, tanto o conceito de princípio enquanto começo ou

origem de qualquer coisa, quanto a ideia de uma norma ou regra de caráter genérico. Nesse

sentido, qual a origem dessas normas ou regras de caráter genérico que regem a convivência

em sociedade?

Para Nader (2014, p. 56) o Direito e a sociedade são mutuamente dependentes. “A sociedade,

ao mesmo tempo, é fonte criadora e área de ação do Direito, seu foco de convergência”, por

essa razão o Direito deve ser estabelecido à imagem desta, conforme suas peculiaridades e

refletindo fatos sociais. O autor descreve os fatos sociais como:

(...) criações históricas do povo, que refletem os seus costumes, tradições, sentimentos e cultura. A sua elaboração é lenta, imperceptível e feita espontaneamente pela vida social. Costumes diferentes implicam fatos sociais diferentes. Cada povo tem a sua história e seus fatos sociais. (NADER, 2014, P. 56).

Nader (2014, p. 56) descreve, ainda, o Direito como fenômeno de adaptação social, que não

pode estar alheio aos fatos sociais. As normas jurídicas devem estar de acordo com as

manifestações do povo. Entretanto, não pode voltar-se contra a natureza social do homem,

“fonte dos grandes princípios do Direito Natural”, ao contrário, entende que o Direito deve

orientar “as maneiras de agir, de pensar e de sentir do povo e dimensionar todo o Jus Positum.

Falhando a sociedade, ao estabelecer fatos sociais contrários à natureza social do homem, o

Direito não deve acompanhá-la no erro”, Nader (2014, p. 57).

Diante dos conceitos apresentados, percebemos que o Direito deve ater-se a sua fonte, a

sociedade, buscando adaptar-se para acompanhar a evolução desta através dos fatos sociais,

sem, contudo, violar os princípios inerentes à natureza social do homem.

Tal entendimento pode parecer óbvio nos dias atuais, entretanto corrente divergente, a

positivista, teve grande influência nos séculos XIX e XX, e ainda hoje encontra adeptos. Nader

(2014, p. 352) apresenta o positivismo jurídico como corrente que:

rejeita todos os elementos abstratos na concepção do Direito, a começar pela ideia do Direito Natural, por julgá-la metafísica e anticientífica. Em seu afã de focalizar apenas os dados fornecidos pela experiência, o positivismo despreza os juízos de valor, para se apegar apenas aos fenômenos observáveis. Para essa corrente de pensamento o objeto da Ciência do Direito tem por missão estudar as normas que compõem a ordem jurídica vigente. A sua preocupação é com o Direito existente. Nessa tarefa o investigador deverá utilizar apenas os juízos de constatação ou de realidade, não considerando os juízos de valor. Em relação à justiça, a atitude positivista é de um ceticismo absoluto. Por considerá-la um ideal irracional,

34  

  

acessível apenas pelas vias da emoção, o positivismo se omite em relação aos valores (grifo nosso).

Em sentido que a aponta pela superação do positivismo jurídico e maior valorização dos

princípios constitucionais (em especial aqueles derivados na natureza humana) nas ordens

jurídicas modernas encontramos o posicionamento de Carvalho (2011, p.19):

O advento do neoconstitucionalismo e a superação do positivismo trouxeram a constitucionalização do Direito, pela irradiação e expansão do seu conteúdo material e axiológico das normas constitucionais, que passaram a condicionar todo o direito infraconstitucional, que deve ser reinterpretado à luz da Constituição. Nessa perspectiva a força irradiante da Constituição, de seus princípios e valores se projeta para dentro de todo o sistema jurídico (grifo nosso).

Sob este moderno enfoque de concepção do Direito enquanto sistema composto por regras e

princípios, buscar-se-á abordar sobre a importância do respeito aos princípios da autonomia e

da dignidade da pessoa humana pelo Estado, e quais suas implicações para a eutanásia e o

suicídio assistido.

3.1 Autonomia

“Palavra derivada do grego autonomía (direito de se reger por suas próprias leis), que se aplica

para indicar precisamente a faculdade que possui determinada pessoa ou instituição, em traçar

as normas de sua conduta, sem que sinta imposições restritivas de ordem estranha.” Silva (2014,

p. 279).

Dworkin (2003, p.315) entende que há um consenso que as pessoas capazes têm direito a

autonomia, sendo este entendido por “direito a tomar por si próprios, decisões importantes para

a definição de suas vidas”.

Estabelecido o conceito de autonomia, Dworkin (2003, p.315) buscou compreender o objetivo

desta, “por que deveríamos respeitar as decisões que as pessoas tomam quando não parecem

atender a seus interesses fundamentais?”, por exemplo, quando uma pessoa fuma está

praticando um ato contrário à sua saúde, por que deve ser concedida autonomia para tal

conduta?

Para Dworkin (2003, p.315):

35  

  

Devemos respeitar as decisões que as pessoas tomam por si próprias, cada pessoa sabe melhor que ninguém, o que faz de seus interesses fundamentais. Apesar de acreditarmos que alguém cometeu um erro ao avaliar quais são seus interesses, a experiência nos ensina que, na maioria dos casos, nós é quem erramos ao pensar assim. A longo prazo, portanto, é melhor reconhecer o direito geral à autonomia e respeitá-lo sempre, em vez de nos reservarmos o direito de interferir na vida de outras pessoas sempre que acreditamos que tenham cometido um erro.

Além da argumentação de que a experiência tem revelado que o melhor a se fazer é reconhecer

e respeitar o direito a autonomia de terceiro, Dworkin (2003, p.319) ressalta o valor da

autonomia, sendo este derivado da capacidade de alguém expressar seu caráter - valores,

compromissos, convicções e interesses críticos e experienciais - na vida que leva.

O reconhecimento de um direito individual de autonomia torna possível a autocriação. Permite que cada um de nós seja responsável pela configuração de nossas vidas de acordo com nossa personalidade - coerente ou não, mas de qualquer modo distintiva. (DWORKIN, 2003, p. 319).

O valor da autonomia “permite que cada um conduza a própria vida, em vez de deixar-se

conduzir ao longo desta, de modo que cada qual possa ser, na medida em que um esquema de

direitos possa tornar isso possível, aquilo que fez de si próprio.”, Dworkin (2003, p.319).

Nesse contexto, Dworkin (2003, p.319) traz situações em que se deve respeitar a autonomia

individual, mas que no Brasil não seriam possíveis, em tese, pela lei infraconstitucional:

Permitimos que um indivíduo prefira a morte a uma amputação radical ou a uma transfusão de sangue, desde que tenha havido uma informação prévia de tal desejo, porque reconhecemos o direito que ele tem de estruturar sua vida de conformidade com seus próprios valores.

Como destacado em capítulo anterior, não se configura constrangimento ilegal “a intervenção

médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se

justificada por iminente perigo de vida”, inciso I, § 3º, art. 146 do Código Penal, portanto é

facultado, e não configura crime, que o médico viole a autonomia do paciente, submetendo-o

ao que a lei não o obriga, ante o perigo de vida, em determinadas situações.

Por fim, Dworkin (2003, p.319) aponta que sua concepção de autonomia centrada na

integridade não pressupõe que as pessoas capazes tenham valores coerentes, ou que sempre

façam as melhores escolhas, ou que sempre levem vidas estruturadas e reflexivas. Reconhece

que as pessoas frequentemente tomam decisões que refletem fraqueza, indecisão capricho ou

mesmo irracionalidade. Entretanto, deve ser respeitada porque a “autonomia estimula e protege

36  

  

a capacidade geral das pessoas de conduzir suas vidas de acordo com uma percepção individual

de seu próprio caráter, uma percepção do que é importante para elas”, Dworkin (2003, p.319).

O princípio da autonomia figura na Constituição brasileira a partir de diversos mandamentos

que disciplinam as liberdades individuais, não obstante cabe destaque ao preâmbulo, ao caput

e inciso II, do art. 5º:

PREÂMBULO Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (grifo nosso);

Apesar do termo autonomia não vir expresso no texto constitucional, pode ser facilmente

deduzido a partir dos comandos que garantem a liberdade para reger-se segundo a consciência

individual, ressalvados os limites legais impostos a fim de assegurar a convivência coletiva.

3.2 Dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana é um dos princípios que fundamentam a República Federativa

do Brasil, registrada no inciso III, do art. 1º, da Constituição de 1988. Este princípio além de

consolidar a sustentação do próprio Estado brasileiro, foi normatizado em diversas passagens

no texto constitucional, como exemplos:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

37  

  

IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.

Para Carvalho (2011, p.584) a dignidade é “um valor que informa a toda ordem jurídica, se

assegurados os direitos inerentes à pessoa humana. Os direitos fundamentais constituem por

isso mesmo, explicitações da dignidade da pessoa humana, já que em cada direito fundamental

há um conteúdo e projeção da dignidade da pessoa”.

Ressalta-se a correlação entre autonomia e a dignidade em diversos conceitos, dentre eles

Carvalho (2011, p.585):

A dignidade da pessoa humana significa ser ela, diferentemente das coisas, um ser que deve ser tratado e considerado como um fim em si mesmo, e não para a obtenção de algum resultado. A dignidade da pessoa humana decorre do fato de que, por ser racional, a pessoa é capaz de viver em condições de autonomia e de guiar-se pelas leis que ela própria edita: todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas, já que é marcado, pela sua própria natureza, como fim em si mesmo, não sendo algo que pode servir de meio, o que limita, consequentemente, o seu livre arbítrio (grifo nosso).

Carvalho (2011, p. 585) completa seu entendimento ao afirmar que a dignidade centra-se na

autonomia e no direito de autodeterminação de cada pessoa, que a dignidade possui também

uma dimensão cultural e histórica, resultante do trabalho de diversas gerações, que lhe

determinam o conteúdo num contexto concreto da conduta estatal e do comportamento pessoal

de cada ser humano.

O conceito dado por DELPÉRÉE6 (1999, apud CARVALHO, 2011, p. 582) dá grande destaque

à liberdade e ao sentido existencial:

O conceito de dignidade humana repousa na base de todos os direitos fundamentais (civis políticos ou sociais). Consagra assim a Constituição em favor do homem, um

                                                            6 DELPÉRÉE, Francis. O direito à dignidade humana. BARROS, Sérgio Resende de; ZILVETI, Fernando Aurélio (Coords.). Direito Constitucional-Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, p. 151-162, 1999

38  

  

direito de resistência. Cada indivíduo possui uma capacidade de liberdade. Ele está em condições de orientar a sua própria vida. Ele é por si só depositário e responsável de sentido de sua existência. Certamente, na prática, ele suporta, como qualquer um, pressões e influências. No entanto, nenhuma autoridade tem o direito de lhe impor, por meio de constrangimento, o sentido que ele espera dar a sua existência. O respeito a si mesmo, ao qual tem direito todo homem, implica que a vida que ele leva dependa de uma decisão de sua consciência e não de uma autoridade exterior, seja ela benevolente e paternalista (grifo nosso).

O conceito apresentado por SARLET7 (2004, apud CARVALHO, 2011, p. 582) destaca as

condições mínimas existenciais e a vedação à condição degradante ou desumana:

a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos (grifo nosso).

A concepção de Dworkin (2003, p.334) acerca da dignidade não difere significativamente das

citadas, não obstante apresentar viés diverso. Apresenta o conceito de que a dignidade é “o

direito a viver em condições, quaisquer que sejam, nas quais o amor-próprio é possível ou

pertinente” e discorre, também, que as pessoas tem o direito de não serem vítimas da

indignidade, “de não ser tratadas de um modo que sua cultura ou comunidade, se entende como

demonstração de desrespeito”. Para o autor “toda sociedade civilizada tem padrões e

convenções que definem essas indignidades, que diferem conforme o lugar e época em que se

manifestam”, Dworkin (2003, p.334).

Dworkin (2003, p.335) apresenta uma teoria na qual há pressuposição de que a indignidade

provoca um sofrimento mental grave:

Existe uma teoria para a qual a indignidade é condenável por ser demasiado contrária a nossos interesses experienciais. Essa teoria pressupõe que a indignidade provoca em suas vítimas um sofrimento mental especialmente grave e característico, do qual as pessoas se ressentem e que as leva, em consequência a sofrer mais com a indignidade do que qualquer outra forma de privação. Além disso, as pessoas às quais se nega a dignidade podem perder o amor próprio que ela protege, e tal recusa, por sua vez, faz com que mergulhem em uma forma mais terrível de sofrimento: o desprezo e a aversão que passam a sentir por si próprias (grifo nosso).

                                                            7 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. rev., atual., e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.

39  

  

Dworkin (2003, p.337) faz ainda um importante questionamento: “Por que a indignidade é uma

modalidade especial de injúria, seja auto-infligida ou infligida por outros, e por que parece ser

pior quando não é reconhecida por sua vítima?”.

Dworkin responde essa pergunta voltando-se ao valor intrínseco - a santidade ou inviolabilidade

- da vida humana. O direito de uma pessoa ser tratada com dignidade é o direito de que outros

reconheçam seus verdadeiros interesses críticos, cuja posição moral torna intrínseca e

objetivamente importante o modo como transcorre sua vida, Dworkin (2003, p.337).

4 DA INCONSTITUCIONALIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA E DO

SUICÍDIO

4.1 Constitucionalidade e inconstitucionalidade

Faz-se necessário esclarecer alguns conceitos acerca do controle de constitucionalidade.

Para Carvalho (2011, p.319), os conceitos de constitucionalidade e Constituição são

indesligáveis. A constitucionalidade tem como pressuposto a supremacia material e formal da

Constituição sobre as leis e os atos do governo e da administração.

40  

  

A forma de se garantir a observância do princípio da constitucionalidade é através do controle

de constitucionalidade, assim definido por Carvalho (2011, p.320): “Controlar a

constitucionalidade é verificar a adequação de uma lei ou de um ato normativo com a

Constituição, nos seus aspectos formais e materiais”.

Para MORAES8 (2003, apud CARVALHO, 2011, p. 320):

(...) controle de constitucionalidade é um juízo de adequação da norma infraconstitucional (objeto) à norma constitucional (parâmetro), por meio da verticalização da relação imediata de conformidade vertical entre aquela e esta, com o fim de impor sanção de invalidade à norma que esteja revestida de incompatibilidade material ou formal com a Constituição.

É fundamental destacar que o controle de constitucionalidade alcança não só o conteúdo

explícito de leis ou atos, mas os próprios direitos fundamentais, como ensina Carvalho (2011,

p.320), “O controle de constitucionalidade alcança também os direitos fundamentais

constitucionalmente protegidos, os quais além de legitimar o Estado, viabilizam o processo

democrático, preservando o Estado de Direito (grifo nosso).”.

A razão para a supremacia da Constituição sobre as normas infraconstitucionais e o porquê de

seu controle é explicada por DINIZ9 (1989, apud CARVALHO, 2011, p. 322): “a supremacia

da Constituição se justificaria para manter a estabilidade social, bem como a imutabilidade

relativa a seus preceitos, daí haver uma entidade encarregada da ‘guarda da Constituição’, para

preservar a essência e os princípios jurídicos”.

Examinados os conceitos de constitucionalidade e seu controle, e a capital necessidade da

supremacia da Constituição sobre as demais normas infraconstitucionais visando à estabilidade

social, procede-se agora a apresentação do conceito de inconstitucionalidade.

Segundo Carvalho (2011, p.324), entende-se por inconstitucionalidade “a desconformidade de

um ato normativo do poder político referente à Constituição. (...) A inconstitucionalidade reside

no antagonismo e contrariedade do ato normativo inferior (legislativo ou administrativo) com

os vetores da Constituição, estabelecidos em suas regras e princípios”.

                                                            8 DE MORAES, Guilherme Braga Peña. Direito constitucional: teoria da constituição. Editora Lumen Juris, 2003. 9 DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 1989.

41  

  

CAETANO10 (1977, apud CARVALHO, 2011, p. 325) entende por inconstitucionalidade o

“vício das leis que provenham de órgão que a Constituição não considere competente, ou que

não tenham sido elaboradas de acordo com o processo prescrito na Constituição ou contenham

normas opostas às constitucionalmente consagradas”.

Carvalho (2011, p.325) aponta pela classificação dos tipos de inconstitucionalidade

identificados na doutrina consoante critérios como o momento, a atuação estatal, o

procedimento ou o conteúdo da norma. Em nosso estudo, duas destas classificações nos são

relevantes, a inconstitucionalidade material e a inconstitucionalidade superveniente.

A inconstitucionalidade material foi assim conceituada por Carvalho (2011, p.327):

Cuida-se de inconstitucionalidade em que o conteúdo do ato se acha em desacordo com o conteúdo da Constituição. Espécie de inconstitucionalidade material que consiste por excesso de Poder Legislativo, traduzida na incompatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos, ou na inobservância do princípio da proporcionalidade. Deve ser pronunciada a inconstitucionalidade das leis que contenham limitações inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais (não razoáveis) (grifo nosso).

O autor faz uma importante consideração ao ponderar sobre uma possível atribuição de

superpoderes ao Judiciário, no exercício do controle de constitucionalidade, quando o Juiz

substitui a vontade do legislador pela sua, com a violação em tese da separação dos Poderes.

Não obstante, Carvalho (2011, p.327) entende que a jurisdição constitucional desempenha um

poder contra majoritário, protetor das minorias e dos direitos fundamentais, contra os excessos

da maioria parlamentar. Entende que ao fazer isso, o órgão judicial controlador da

constitucionalidade não está expressando sua vontade, e sim a vontade do povo, que aprovou

sua própria Constituição e seus destinos, Carvalho (2011, p.327).

A inconstitucionalidade superveniente, como aponta Carvalho (2011, p. 329), verifica-se

quando “nova norma constitucional surge e dispõe em contrário de uma lei ou de outro ato

precedente”.

                                                            10 CAETANO, Marcello. Direito constitucional. Forense, 1977. 

42  

  

Todavia, alerta Carvalho (2011, p. 329) que a maioria dos autores entende não se tratar de

inconstitucionalidade, mas derrogação de direito anterior, a questão resolve-se no âmbito do

direito intertemporal:

Quando se verifica a incompatibilidade formal entre a lei anterior e a norma constitucional nova, ou seja, quando a inovação constante do texto constitucional posterior à lei muda a regra de competência ou espécie normativa idônea para tratar da matéria, não se tem admitido a inconstitucionalidade superveniente. A norma anterior, nada obstante formalmente incompetente com a nova Constituição, é aceita como válida, desde que seja materialmente compatível com o texto constitucional.

Como exposto, o conteúdo normativo infraconstitucional já existente, ao colidir com

dispositivos constitucionais novos, depreendem-se revogados. Nesse contexto, as revogações

expressas não figuram como objeto de maiores discussões, problemas maiores decorrem das

revogações tácitas, ou seja, que são derivadas a partir de cognição e dedução do conteúdo da

norma antiga e da nova. Em último caso, caberão aos órgãos competentes, notadamente o

Judiciário e o Legislativo, realizarem o controle de constitucionalidade.

4.2 Da inconstitucionalidade da criminalização da eutanásia e do suicídio assistido no

Projeto de lei 236/12 do Senado

Antes de defender-se um tema que suscita emocionados debates, por se tratar da vida e o valor

que ela carrega em si, faz-se necessário reforçar determinados pressupostos que nos permitirão

por concluir pela inconstitucionalidade da criminalização da eutanásia e do suicídio assistido

com caráter piedoso.

É capital limitar-se quais os objetos cuja criminalização tanto pelo PL 236/12, quanto pelo

Código Penal em vigor, afrontariam os ditames constitucionais. E são eles a eutanásia própria

e o suicídio assistido próprio (de caráter eutanástico).

Para afastarem-se de uma possível conduta criminosa devem obedecer determinados requisitos:

“efetivação da morte por profissional da medicina; o requerimento do paciente, livre e

desimpedido; iminência da morte e motivo piedoso”, Sá (2001, p. 187).

Para Guimarães (2008, p. 327): “morte provocada por ação positiva de terceiro, que age

motivado por piedade ou compaixão, por se encontrar o sujeito passivo acometido de doença

43  

  

incurável (mal irreversível), em estado terminal, (...) havendo efetivo encurtamento do

período natural da vida, com o consentimento do interessado” (grifo nosso).

Importante destacar que no suicídio assistido a ação positiva é do próprio paciente, não obstante

este não conseguiria o mesmo resultado sem o auxílio de terceiro, portanto respeitados os

mesmos requisitos da conduta eutanástica, não encontramos razões para diferenciá-lo da

eutanásia própria para fins penais.

Concluímos a partir do item 4.1 que a inconstitucionalidade reside “no antagonismo e

contrariedade do ato normativo inferior (legislativo ou administrativo) com os vetores da

Constituição, estabelecidos em suas regras e princípios”, Carvalho (2011, p.324). No mesmo

sentido “leis que contenham limitações inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais (não

razoáveis)”, Carvalho (2011, p.327). Para CAETANO11 (1977, apud CARVALHO, 2011, p.

325), “vício das leis que provenham de órgão que a Constituição não considere competente,

(...) ou contenham normas opostas às constitucionalmente consagradas”.

Depreendemos, também, que o controle de constitucionalidade é muito importante para a

manutenção da supremacia constitucional, haja vista esta ter como função “manter a

estabilidade social, bem como a imutabilidade relativa a seus preceitos, daí haver uma entidade

encarregada da ‘guarda da Constituição’, para preservar a essência e os princípios jurídicos”,

DINIZ12 (1989, apud CARVALHO, 2011, p. 322).

Os objetos do controle constitucional, não se limitam apenas a atos administrativos ou o texto

das normas, como aponta Carvalho (2011, p.320), “O controle de constitucionalidade alcança

também os direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, os quais além de

legitimar o Estado, viabilizam o processo democrático, preservando o Estado de Direito

(grifo nosso).”.

Sob este viés, o controle de constitucionalidade está voltado para a preservação de direitos

fundamentais constitucionalmente protegidos, os quais legitimam inclusive o próprio Estado.

Infere-se que quando a lei penal criminaliza a eutanásia e o suicídio assistido de caráter

                                                            11 CAETANO, Marcello. Direito constitucional. Forense, 1977. 12 DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 1989. 

44  

  

misericordioso está violando os princípios da dignidade da pessoa humana e a autonomia

individual pelas razões adiante expostas.

Como apontado a dignidade da pessoa humana “decorre do fato de que, por ser racional, a

pessoa é capaz de viver em condições de autonomia e de guiar-se pelas leis que ela própria

edita”, Carvalho (2011, p.585).

Para DELPÉRÉE13 (1999, apud CARVALHO, 2011, p. 582), a dignidade humana repousa na

base de todos os direitos fundamentais, marcada pela capacidade de liberdade da pessoa em

orientar sua própria vida, sendo esta depositária e responsável pelo sentido da sua existência,

nenhuma autoridade tem o direito de lhe impor, por meio de constrangimento, o sentido que

espera dar a sua existência.

SARLET14 (2004, apud CARVALHO, 2011, p. 582) entende que cada ser humano

intrinsecamente é merecedor de respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,

por essa razão lhe deve ser garantido um complexo de direitos fundamentais que o livrem de

todo ato de cunho degradante e desumano, além de propiciar participação ativa nos destinos de

sua própria existência.

Dworkin (2003, p.334) aponta que a dignidade é “o direito a viver em condições, quaisquer que

sejam, nas quais o amor-próprio é possível ou pertinente”, e que as pessoas tem o direito de

serem tratadas de um modo que sua cultura ou comunidade, se entende como demonstração de

desrespeito. O autor defende ainda uma teoria de que a indignidade provoca um sofrimento

mental grave, pois a privação dos interesses individuais experienciais à alguém, ou seja,

privação da própria dignidade, pode ocasionar que este indivíduo perca o amor próprio,

mergulhando numa das formas mais terríveis de sofrimento, o desprezo e aversão que passam

a sentir por si próprias, Dworkin (2003, p.335).

Estreitamente relacionado à dignidade da pessoa humana está o princípio da autonomia, que

para Dworkin (2003, p.315), consiste no “direito a tomar por si próprios, decisões importantes

                                                            13 DELPÉRÉE, Francis. O direito à dignidade humana. BARROS, Sérgio Resende de; ZILVETI, Fernando Aurélio (Coords.). Direito Constitucional-Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves Ferreira Filho. São Paulo: Dialética, p. 151-162, 1999 14 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. rev., atual., e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 

45  

  

para a definição de suas vidas”. Para o autor, a autonomia capacita que o indivíduo expresse

seu caráter, valores, compromissos, convicções e interesses críticos e experienciais na vida que

leva. E a importância se traduz no fato de que o reconhecimento do direito individual a

autonomia torna possível a autocriação, “permite que cada um de nós seja responsável pela

configuração de nossas vidas de acordo com nossa personalidade - coerente ou não, mas de

qualquer modo distintiva.”, Dworkin (2003, p.319).

É importante remeter as concepções de Dworkin, sobre a valoração da vida, em seus três

aspectos, enquanto valor instrumental, subjetivo ou intrínseco, destacando-se os últimos dois.

O valor subjetivo diz respeito ao valor que a pessoa confere à própria vida, ou seja, o quanto

estar viva é bom para ela, Dworkin (2003, p. 101).

O valor intrínseco dá-se pela valorização da vida em si mesmo, independente daquilo que as

pessoas apreciam, desejam ou necessitam, ou do que é bom para elas, Dworkin (2003, p. 99).

Esta valoração liga-se a ideia de sacralidade ou inviolabilidade, derivando ou de um processo

de associação, ou pela sua história (o modo como veio a existir), Dworkin (2003, p. 103).

Dworkin aponta que apesar de existir a ideia de inviolabilidade da vida, tal conceito não é

absoluto, podendo existir “graus de sagrado”, e que nossas convicções sobre inviolabilidade

são seletivas, Dworkin (2003, p.111). O que define quão lamentável é a perda de uma vida

humana, ou seja, sua frustração, é o desperdício dos investimentos criativos naturais e humanos.

Ante os conceitos e posicionamentos ora apresentados, é forçoso concluir-se que a

criminalização da eutanásia e do suicídio assistido pelo PL 236/12, seja pela redação original,

seja pela Emenda n° 01 propostas pela Comissão Temporária da reforma do Código Penal,

impede que a pessoa fragilizada ante um quadro terminal, ou doença grave, tenha abreviado o

já limitado tempo que a resta, que a livraria de um intenso sofrimento físico ou psíquico, sendo

esta a sua vontade manifesta.

A criminalização da eutanásia e do suicídio assistido acarreta em inconstitucionalidade na

medida em que veda ao paciente guiar-se pelas próprias normas, em coerência como conduziu

toda a vida, proíbe que esse sujeito determine o momento de sua morte em consonância com

46  

  

sua concepção de dignidade. A coibição estatal constrange o paciente em seu direito de dar a

sua vida o sentido que espera de sua existência.

Os artigos 1º, inciso III, e 5º, caput e inciso III, da Constituição Federal são categóricos quanto

à obrigação do Estado em assegurar a observância dos princípios da autonomia e dignidade da

pessoa humana:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (grifo nosso);

Se o Estado é o garantidor de nossa liberdade, autonomia e dignidade, como pode existir

comando legal que obrigue alguém a ser mantido em situação degradante, típica dos quadros

terminais e doenças crônicas incuráveis?

O filme “Você não conhece Jack”, produzido pela HBO em 2010, baseado na vida do Dr. Jack

Kevorkian, traz uma passagem que nos faz refletir. Um de seus pacientes que o procura para

auxiliá-lo no suicídio trata-se do Sr. Hugh, portador de enfisema pulmonar em estágio bastante

avançado. A razão pela qual solicita ajuda ao Dr. Kevorkian é que mesmo podendo dar cabo a

sua vida por possuir uma arma em casa, não quer terminar sua vida daquela forma, pois sua

esposa teria que limpar e recolher seus restos mortais.

No mesmo sentido, será que o paciente que busca a morte digna, coerente como a forma que

conduziu sua vida e que entende que não deve se submeter à situação degradante, será forçado

ao suicídio sem assistência? Terá que se jogar de um prédio, ou atirar com arma de fogo contra

o próprio corpo? Será este um desfecho compatível com a existência que ele pretendeu para si?

Ou seu direito à morte digna será simplesmente negado?

Segundo Dworkin (2003, p.275) a convicção de que a vida humana é sagrada talvez ofereça a

mais poderosa base emocional para oposição à eutanásia, sendo a Igreja Católica o adversário

mais inflexível, vigilante e eficiente. Tendo como pressuposto o Estado laico na organização

47  

  

política brasileira, ou seja, “que não tem caráter religioso (...). Poder Público que não se vincula

a qualquer confissão religiosa – separação entre a Igreja e o Estado”, Silva (2014, p. 1241), é

razoável a submissão do outro a dogma religioso ao qual não comunga?

Em respeito ao princípio da autonomia e da dignidade, não é possível a admissão a tal

submissão. Se a pessoa acredita que “todos os homens têm o dever de conformar a sua vida

com a vontade do Criador”, ou que “a dor, sobretudo nos últimos momentos da vida, assume

um significado particular no plano salvífico de Deus; é, com efeito, uma participação na Paixão

de Cristo”, Sagrada Congregação para Doutrina da Fé (1980), ela tem todo o direito de orientar

sua vida em coerência com os fins que busca para sua existência, assim como a pessoa que

pensa de forma divergente tem o exato mesmo direito.

Dworkin (2003, p.335) alerta que a submissão à indignidade provoca em suas vítimas um

sofrimento metal especialmente grave, haja vista que a negação da dignidade acarreta na perda

do amor próprio, faz com a que pessoa “mergulhe em uma das formas mais terríveis de

sofrimento: o desprezo e aversão por si própria”.

Por consequência, em caso de aprovação do PL 236/12 com a manutenção da criminalização

da eutanásia e do suicídio assistido, estaremos diante da violação dos princípios constitucionais

da autonomia e da dignidade da pessoa humana, diante de lei que contenha “limitações

inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais (não razoáveis)”, Carvalho (2011, p.327).

Ainda que reconheçamos o grande avanço do legislador no reconhecimento explícito da

ortotanásia como exercício regular da medicina, excluindo seu caráter ilícito, e que conforme o

caso concreto, o juiz pode deixar de aplicar a pena a quem realiza a eutanásia ou auxilia no

suicídio, motivado pela piedade, faz-se necessária a possibilidade da exclusão da ilicitude

conforme o caso concreto.

Para que ocorra o efetivo respeito aos princípios da dignidade e da autonomia daquele paciente,

há de ser possível a conduta eutanástica livre de ilicitude. Tal possibilidade deve assegurar-se

de todos os cuidados legais possíveis para impedir excessos, coibir erros médicos e impedir que

ocorram efeitos da “encosta escorregadia”, argumento pelo qual a legalização da eutanásia pode

dar margem à flexibilização para casos mais duvidosos, Dworkin (2003, p.279).

48  

  

4.3 Da inconstitucionalidade da interpretação da eutanásia e do suicídio assistido como

condutas tipificadas no Código Penal vigente

Diferentemente do subitem anterior, que sustenta a supressão do tipo penal acerca da eutanásia

do art. 122 do PL 236/12 do Senado, defende-se agora a inconstitucionalidade da interpretação

da eutanásia e do suicídio assistido, ambos em sentido próprio, como condutas tipificadas nos

artigos 121 e 122 do Código Penal vigente.

Para que ocorra efetivo respeito à dignidade e autonomia do paciente em estado terminal, ou

sofra com doença crônica grave, é necessário que se dê tratamento análogo ao que foi

reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento

de Preceito Fundamental 54 - Distrito Federal, em 2012. No qual se mostrou inconstitucional a

interpretação da interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos

124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

A parte autora do ADPF 54 foi a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS,

representada pelo então advogado Luís Roberto Barroso. Na petição inicial observamos

fundamentação baseada em três princípios: Dignidade da pessoa humana, analogia a tortura;

legalidade, liberdade e autonomia da vontade; e o direito à saúde.

Acerca dignidade da pessoa humana Barroso (2005, p. 5) apresentou a seguinte argumentação:

O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. Relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito quanto com as condições materiais de subsistência. Aliás, o reconhecimento dos direitos da personalidade como direitos autônomos, de que todo indivíduo é titular, generalizou-se também após a Segunda Guerra Mundial e a doutrina descreve-os hoje como emanações da própria dignidade, funcionando como "atributos inerentes e indispensáveis ao ser humano." Tais direitos, reconhecidos a todo ser humano e consagrados pelos textos constitucionais modernos em geral, são oponíveis a toda a coletividade e também ao Estado (grifo nosso).

Em relação à ADPF 54, Barroso (2005, p. 5) aponta que a violação da dignidade manifesta-se

ao:

Impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de ambas as vertentes de sua dignidade humana. A potencial ameaça à integridade física e os danos à integridade moral e psicológica na hipótese são evidentes. A

49  

  

convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica. A Constituição Federal, como se sabe, veda toda forma de tortura (art. 5°, III) e a legislação infraconstitucional define a tortura como situação de intenso sofrimento físico ou mental (acrescente-se: causada intencionalmente ou que possa ser evitada).

Sobre legalidade, liberdade e autonomia da vontade, Barroso (2005, p. 7) destaca:

A liberdade consiste em ninguém ter de submeter-se a qualquer vontade que não a da lei, e, mesmo assim, desde que seja ela formal e materialmente constitucional. Reverencia-se, dessa forma, a autonomia da vontade individual, cuja atuação somente deverá ceder ante os limites impostos pela legalidade (grifo nosso).

Desta forma, resta claro que a limitação da liberdade e da autonomia individual é definida pelo

princípio da legalidade, e este princípio só é possível com o respeito à ordem constitucional.

Havendo, então, lei em desacordo material ou formal com a Constituição, não deverá esta

restringir a liberdade e a autonomia para as pessoas a quem foi destinada.

Verifica-se a partir da análise da ADPF 54 que há grande semelhança entre as duas situações:

interrupção da vida do feto anencéfalo e interrupção da vida do doente terminal ou daquele que

em razão de doença grave aproxima-se do referido quadro.

Em ambas o que está em jogo não é a vida em si, uma vez que para o feto anencéfalo não há

expectativa de vida, segundo Barroso (2005, p. 2), a anencefalia é “incompatível com a vida

extrauterina, sendo fatal em 100% dos casos”, e para o doente terminal não é razoável que se

classifique a vida apenas em seu caráter biológico, haja vista ser uma vida por vezes desprovida

de dignidade.

Em ambos os casos, a violação da autonomia da vontade dos principais envolvidos, da grávida

e do paciente, resultam em graves ofensas à dignidade, com todas as suas consequências.

Atentam contra a integridade moral, física e psíquica de suas vítimas.

No caso da gravidez de feto anencéfalo a “convivência diuturna com a triste realidade e a

lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar um ser vivo,

podem ser comparadas à tortura psicológica”, Barroso (2005, p. 5).

50  

  

Para o paciente, a redução a um corpo que apodrece e definha-se, insensibilidade acerca de sua

vontade, redução de homem livre à escravo, ou prisioneiro, cujas pessoas decidem sobre sua

pena capital, absoluta impossibilidade de conformar sua vida de acordo e coerência com o que

planejou para sua existência.

Como bem apontou Dworkin (2003, p.335), negar a dignidade a alguém é causar-lhe dos mais

terríveis sofrimentos, é converter o amor próprio em desprezo e aversão por si mesmo.

Haja vista o descompasso entre a evolução dos fatos sociais e a aprovação pelo legislador de

leis aptas a acompanharem, acredita-se ser possível a interpretação conforme a Constituição

Federal de que a eutanásia e o suicídio assistido, respeitados todos os requisitos para a conduta

misericordiosa, não figurem como tipo penais previstos nos artigos 121, homicídio simples, e

122, induzimento, instigação ou auxílio a suicídio.

Na mesma orientação segue Guimarães (2008, p. 338):

Há viabilidade constitucional, seja por meio do balanceamento entre bens jurídicos envolvidos, seja pela apreciação da função do Direito Penal e da finalidade/merecimento da pena, sob a ótica de uma política criminal racional, diante dos fins buscados por um Estado de Direito Social e Democrático, para a proposição e aprovação de norma relativa a eutanásia própria dirigida a uma particular mitigação ou isenção de pena, ou mesmo sua descriminalização. As garantias constitucionais da liberdade, da inviolabilidade da intimidade e da honra, da integridade física e mental, da liberdade de consciência e da dignidade da pessoa tem como consequência o direito à não submissão ou à interrupção de tratamento terapêutico, podendo ser considerada ilícita a intervenção contra a vontade do interessado com plena capacidade intelectiva e totalmente informado de seu estado e do prognóstico de todos os tratamentos possíveis (grifo nosso).

Igualmente Sá (2001, p.186):

Ousamos defender a prática da eutanásia passiva, ou ortotanásia, como legítimo exercício da medicina. E uma vez caracterizada como exercício regular da medicina sequer haveria a necessidade do consentimento do paciente e/ou família. A eutanásia ativa seria possível se preenchidos certos requisitos, quais sejam a efetivação da morte por profissional da medicina; o requerimento do paciente, livre e desimpedido; a iminência da morte e o motivo piedoso. Também defendemos a viabilidade do suicídio assistido desde que incorram os quatro elementos acima citados, quando afirmamos a possibilidade da realização da eutanásia ativa. Ressaltamos a necessidade do profissional da medicina prescrever pílulas e observar o paciente, e não um leigo, porquanto não detém conhecimento médico para agir em caso de emergência (grifo nosso).

4.4 Violação dos princípios da dignidade e da autonomia na concepção de Direito como

integridade

51  

  

Dworkin deixou grande contribuição à ciência do Direito ao informar do princípio da

integridade, sendo que este se divide em dois: integridade enquanto princípio legislativo, que

pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente; e integridade

enquanto princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível seja vista como

coerente nesse sentido, Dworkin (2014, p. 213).

O autor defende que a comunidade que adota a integridade está mais apta a dirimir conflitos e

a ter um direito mais eficiente:

A integridade também contribui para a eficiência do direito no sentido que já assinalamos aqui. Se as pessoas aceitam que são governadas não apenas por regras explícitas, estabelecidas por decisões políticas tomadas no passado, mas por quaisquer outras regras que decorram dos princípios que essas decisões pressupõe, então o conjunto de normas públicas reconhecidas pode expandir-se e contrair-se organicamente, à medida que as pessoas se tornem mais sofisticadas em perceber e explorar aquilo que esses princípios exigem sob novas circunstâncias, sem necessidade de detalhamento da legislação ou da jurisprudência de cada um dos possíveis pontos de conflito. Esse processo é menos eficiente, sem dúvida, quando as pessoas divergem, como é inevitável que às vezes aconteça, sobre quais princípios são de fato assumidos pelas regras explicitas e por outras normas de sua comunidade. Contudo, uma comunidade que aceite a integridade tem um veículo para a transformação orgânica, mesmo que este nem sempre seja totalmente eficaz, que de outra forma sem dúvida não teria. (DWORKIN, 2014, p. 213).

Sob o enfoque da teoria de Dworkin, a violação dos princípios da dignidade e da autonomia

individual atenta contra a concepção de direito enquanto integridade, haja vista afrontar

diretamente coerência da ordem constitucional. Por consequência atentam contra a própria

comunidade, pois dificultam o entendimento coletivo que as regras decorrem de princípios

orientados pelas decisões políticas do passado, reduzindo a importância da integridade

enquanto veículo de transformação orgânica, Dworkin (2014, p. 213).

O respeito à decisão do paciente é uma decisão coerente com os princípios que regem nossa

sociedade, representa a capacidade de expansão e contração das normas a partir dos direitos

fundamentais resguardados pela Constituição. Representa uma atitude construtiva perante o

direito, e demonstra a fraternidade para com o outro, apesar dos interesses e convicções por

vezes divergentes, como ressalta Dworkin (2014, p. 492):

O império do direito é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. (...) É uma atitude interpretativa e auto-reflexiva, dirigida à politica no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais

52  

  

compromissos exigem em dada circunstância. (...) A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções.

Consoante exposto, especialmente em questões que envolvem importantes direitos de terceiros,

faz-se necessária essa atitude auto-reflexiva, inclusive com o exercício de posicionamento no

lugar daquele que se diz prejudicado ou ofendido. Como ensinou Dworkin (2014, p. 492) “é

preciso colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para o futuro,

mantendo a boa-fé com relação ao passado”.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar das críticas à descriminalização da eutanásia e do suicídio assistido, pelo receio de maior

flexibilização dessas condutas para casos duvidosos, pelo receio de ocorrer o descarte dos

idosos pela “cultura da morte”, como apontou o papa João Paulo II em 1995, o que se percebe

dos setores que defendem a descriminalização das referidas ações é uma grande preocupação

para que tais fatos não ocorram. Por essa razão defendem o equilíbrio e a estreita observância

de determinados requisitos de admissibilidade, dentre os autores destacam-se:

Esse argumento (encosta escorregadia) também perde sua força assim que compreendemos que a não-legalização da eutanásia é, em si, danosa a muitas pessoas; então nos damos conta de que fazer o melhor possível para traçar e manter uma linha defensiva, reconhecendo os risco de que outros tracem uma linha diferente no futuro, e tentando nos proteger de tal risco, é melhor abandonar totalmente essas pessoas. Existem riscos tanto na legalização quanto na recusa a legalizar; é preciso atentar para o equilíbrio desses riscos concorrentes, e nenhum deles deve ser ignorado (DWORKIN, 2003, p. 279) (grifo nosso).

Campi (2004, p. 96):

As práticas eutanásticas já ocorrem, seja furtivamente, seja através da aplicação de terapêuticas de duplo efeito, considerada justificável, para os conservadores. O perigo não está em legalizar essa prática, mas que ela permaneça fora da discussão pública, ocorrendo nos hospitais, sem que a comunidade tenha conhecimento. Se há o temor de que sua legalização dê aos médicos muito poder sobre a vida e a morte

53  

  

dos pacientes, mais poder têm eles se não se discute o assunto, pois já dispõem da vida dos pacientes. Em uma unidade de tratamento intensivo, por exemplo, não há controle externo das terapias que eles aplicam ou deixam de aplicar no paciente. São totalmente livres para decidir, baseados apenas em sua opinião. Nossa posição é que legalizar a eutanásia voluntária, estabelecendo critérios rigorosos para a sua prática, criando Comitês de Ética Médica nos hospitais, obrigaria, tanto a equipe médica quanto os familiares, a obterem o consentimento do paciente, não mais podendo praticar atos contrários a sua vontade (grifo nosso).

Guimarães (2008, p. 338):

A possibilidade de erro diagnóstico não deve ser impeditiva, por si só, da aceitação da prática eutanástica, sendo conveniente uma legislação clara e abrangente a definir os limites de responsabilidade do médico em casos de suspensão de tratamentos ou de ministração de drogas. O erro diagnóstico, desde que fora do alcance intelectivo da capacidade humana, não é suficiente para responsabilização penal (grifo nosso).

Sá (2001, p. 181):

Quanto à eutanásia ativa, desde que haja pedido por parte do paciente, feito sem qualquer vício de consentimento; desde que acometido de doença grave e em sofrimento constante e insuportável, físico ou psíquico - o que deverá ser atestado pelo médico do paciente e outros dois que não estejam envolvidos no caso clínico, o ato que abreviará a vida do indivíduo poderá ser praticado, mas, pelo profissional da medicina. Ressalte-se que a realização da eutanásia passiva ou ativa não pode haver qualquer interesse por parte daquele que pratica o ato. A piedade deverá ser um dos motivos determinantes da realização deste (grifo nosso).

Postos tais argumentos, revela-se de menor importância o receio pela legalização da eutanásia

e do suicídio assistido, ambos em sentido próprio, ante a frontal violação da autonomia e da

dignidade do paciente.

A violação de tais princípios, constitucionalmente protegidos, atinge o próprio Estado de

Direito, uma vez que esses conferem sua legitimidade, Carvalho (2011, p.320). A manutenção

no ordenamento jurídico de norma que criminaliza a eutanásia e o suicídio assistido, sem

comportar flexibilização, é incompatível com os direitos fundamentais que fundamentam a

própria República Federativa do Brasil.

54  

  

6. CONCLUSÃO

O trabalho teve como objetivo geral analisar, à luz da Constituição da República de 1988, a

criminalização da eutanásia e do suicídio assistido no Projeto de Lei do Senado n. 236/2012,

bem como a interpretação segundo a qual, de acordo com o Código Penal atualmente em vigor,

a eutanásia consiste em homicídio praticado por relevante valor moral.

O trabalho buscou responder às perguntas:

a) A criminalização da eutanásia e do suicídio assistido pelo Projeto de Lei do Senado n.

236/2012 é constitucional?

b) A interpretação segundo a qual a eutanásia, conforme o Código Penal atualmente em

vigor, consiste em homicídio praticado por motivo de relevante valor moral é

constitucional?

O marco teórico consistiu nos princípios da dignidade e da autonomia na concepção de Direito

como integridade, encontrada na obra de Ronald Dworkin, com os títulos O império do direito,

e Domínio da Vida.

55  

  

Desenvolveu-se o trabalho, de forma a possibilitar o re(pensar) da eutanásia, oferecendo novos

subsídios críticos acerca das concepções de vida e morte. Realizou-se uma reflexão sobre os

aspectos religiosos, filosóficos e jurídicos da eutanásia. Posteriormente, abordou-se sobre os

princípios da autonomia e da dignidade humana. Em seguida, enfrentou-se a questão específica

da eutanásia e do suicídio assistido no Projeto de Lei n. 236/2012, à luz da Constituição da

República de 1988 e do marco teórico.

Utilizou-se a metodologia lógico-dedutiva, realizando pesquisa bibliográfica e investigação

teórica.

Dentre os principais resultados alcançados e conclusões aponta-se:

- A descriminalização da eutanásia e do suicídio assistido é menos danosa que a criminalização

na medida. Para tal é preciso minimizar riscos de realização da eutanásia ou suicídio assistido

em casos que não obedecem a estritos requisitos.

- São requisitos para a eutanásia e o suicídio assistido: o quadro de doença terminal, ou doença

incurável grave em estágio avançado, sofrimento constante e insuportável físico ou psíquico,

atestado por mais de um médico, pedido feito pelo paciente sem qualquer vício de

consentimento ou interesse, ato motivado por piedade ou compaixão. Preferencialmente

realizado por profissional da medicina.

- A criminalização da eutanásia e do suicídio assistido pelo PL 236/12 do Senado mostra-se

inconstitucional ao proibir que o paciente, nas condições supracitadas, exerça sua autonomia e

assegure sua dignidade. Se ele deseja ter um fim coerente com os rumos que definiu sua

existência, e se tal desejo implica em abreviação de uma vida em situação degradante, o Estado

não pode violar sua autonomia e dignidade.

- A fim de garantir a dignidade e autonomia dos referidos pacientes, deveria ser dada, pelo

Supremo Tribunal Federal, interpretação conforme a Constituição Federal de que a eutanásia e

o suicídio assistido não se adequam a tipos penais previstos no Código Penal vigente.

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REFERÊNCIAS

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