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  • 8/15/2019 Boom Folha de S. Paulo

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    ab4 ilustríssima H H H DOMINGO, 1° DE MARÇO DE 2015 DOMINGO, 1° DE MARÇO DE 2015 H H H ilustríssima 5ab

    L IT E R AT U R A

    Àsvésperasdagrandeexplosão

    JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHAilustração DECO FARKAS

    NASDÉCADASDE 1960e1970,ummovimentoreescreveuo lugardaliteratura latino-americana nocenáriointernacional.Amparadopordezanosdepesquisas,umjor-nalista espanhol quer reescreversuahistória.

    RESUMO Livro lançadopor jornalista catalão reú-ne informações sobre ochamado boom da litera-turalatino-americana, queteria tido lugar em Barce-lona, nos anos 1960 e 70.Arquivos guardados nosEUA, contudo, mostramque a troca de correspon-dência e a intensa articu-lação entre os autores da-

    tamjá dadécadade 1950.

    Comoescritores searticularam paracriaro boomliterário latino-americano

    seu acervo —as de número 305 e306—somentepoderiamser aber-tas dois anos após sua morte. Oconteúdodessascaixasé decisivopara a reconstrução da pré-his-tória do boom, pois guardam acorrespondência de Fuentes comDonoso, García Márquez e JulioCortázar, além de incluir nomescomo Octavio Paz, Guillermo Ca-breraInfante,Roberto FernándezRetamare ElenaPoniatowska.

    A leitura cruzada desse mate-rialestimulanovasabordagensdoboom:trata-sedecombinararelei-tura dos romances com o estudodetalhadodacorrespondênciaedarecepção crítica —e vale recordarque,entremuitosoutrosacervos,aBibliotecaFirestonetambém abrigaosarquivosdeVargasLlosa,Dono-so,Jorge Edwardse SergioPitol.

    Ora,XaviAyénparece acreditarqueumasucessão de“acasos”te-riaresultadoem“algoque chama-remosboom”.A correspondênciadeCarlosFuentespermitesupor ocontrário, na medida em que su-gere um esforço deliberado paraacriaçãode umnovolugarparaoautorlatino-americano.

    INTENCIONAL A melhor ma-neira de entender essa dimensãoconsiste em acompanhar as ini-ciativasdeFuentesnessesentido.

    A primeira carta trocada entreFuentese JulioCortázar (1914-84)foi iniciativa do mexicano. Em 16de novembro de 1955, convida oescritorargentinoparaum projetocomum: “Suponho que já estará

    emsuasmãosoprimeironúmeroda‘Revista Mexicanade Literatu-ra’:noshonrariacontar coma suacolaboraçãoparaum dosfuturos.Todosconhecemossuaqualidadedeescritor;porEma,suaqualida-dedeamigo.Contarcomosenhorrenderiaesta duplacolheita”.

    Apesar do cerimonioso empre-godopronomedetratamento“se-nhor”(nooriginalespanholreferi-do pelo “usted”), que perdurariapor algum tempo, a colaboraçãocomeçou de imediato e nunca foiinterrompida:Cortázarrespondeuno dia 21 de dezembro, enviandoumcontoparapublicação.E,apar-tir desse momento, a correspon-dênciasetransformounumlabora-tóriode ideias,discussões literáriase,sobretudo, inaugurouumespaçodeleituranadacordialdaobradooutro.Essepontoéfundamental:a

    franquezacríticaéa marca-d’águadonúcleodurodoboom.

    Foiassimque,em cartade 7desetembro de 1958, Cortázar nãohesitou em criticar duramente aestruturado romanceque lançouinternacionalmente o nome deFuentes, “La Región Más Trans-parente”. No juízo do argentino,que ainda não era o autor de “OJogodaAmarelinha”(1963),Fuen-tes“incorreunomagnícopecadodohomemdetalentoqueescreveseuprimeiroromance”,istoé, “co-locouummundoem500páginas,concedeu-seo prazerdecombinaroataquecomogozo,aelegiacomopaneto,a sátiracomanarrativapura”.Eseguia:“Nãotenhoopre-conceito dos ‘gêneros literários’:umromancesempreéum baúnoqual colocamos um pouco de tu-do. Porém, Carlos, a não ser paraos que conhecem como o senhoroseu México,todoo princípiodolivro(...)provoca muitocansaço”.

    Fuentes acatou as ressalvas, esuaspalavrasnão foramprotoco-lares.Pegue-sea cartaenviadaaoargentinoem 17de maiode1972:

    “(...)Aguilarcomeça apublicartodas as minhas obras; como setrata do que os saxões chamam‘denitiveedition’,desejoquecon-tecom osmelhoreselementoscrí-ticose,paraisso,peçosuaautori-zação para incluir a maravilhosacarta que você escreveu em 1958(jáse passaram14anos!)sobre‘LaRegiónMásTransparente’.Vocêserecordará que é uma carta críticae,paramim,umsupremoexemplo

    doquedevesero exercíciocríticoemnossos países.”O circuito criado pelo intenso

    carteio não apenas antecedeu aoboomcomotambémajudouade-toná-lo.Antesde conquistaropú-blico, os autores submeteram-sea uma crítica interna de grandealcance. Em cartas memoráveis,FuenteseGarcíaMárquezdiscuti-ramoprocessodeescritade“CemAnos de Solidão”. No dia 15 deabril de 1966, Fuentes não disfar-çouseu encantamento:“Suaspri-meiras 70 páginas de CEM ANOSDE SOLIDÃO são magistrais (...).Que voo, mestre, que sabedoria,quehumor!(...) AAméricaLatina,culturalmente, passou da utopiadafundaçãoàepopeiadaencarna-çãoedestaaomitodore-conheci-mento,dare-conquista:suaspági-nassãoastrêscoisas,atotalidade

    donossomundo”.Além disso, inúmeros projetos

    foramarticuladospor meiodessatrocade opiniões.

    Noâmbitodo boom,muitosro-mancesdiscutiramagurado dita-dorlatino-americano.Porexemplo,MarioVargasLlosalançou“Conver-sanoCatedral”(1969);AugustoRoaBastos produziu “Eu, o Supremo”(1974);AlejoCarpentier escreveu“ORecursodo Método”(1974);GabrielGarcíaMárquezpublicou“OOuto-nodo Patriarca”(1975).

    Simplescoincidência?Ou teriasidouma iniciativacomum? Umamissivade Fuentes,enviadaa Cor-tázarem6de maiode1967,permiteumesclarecimentodenitivo:

    “Escrevo para você em acor-do com Mario Vargas. Há pouco,emParis,Marioe eufalamoscomentusiasmo do ‘Patriotic Gore’de Edmund Wilson e pensamosque nossos países prestavam-semuitoaumavisãodessetipo.Ela-borando a ideia, pensamos numvolumecoletivoque,como títulode‘Los Benefactores’,‘Los Padresdela Patria’,ou algosimilar,reu-nisse a crônica negra dos nossospatriarcasinverossímeis:comodizMario, uma espécie de ‘vidas pa-ralelas’grotescas”.

    PROJETO COLETIVO Estacarta é preciosa, já que permiteacompanhar,passoapasso,ospri-mórdiosdaformaçãodeum proje-to coletivo especíco: o romancedo ditador. Em sentido amplo, opróprioboompodeserrelidones-

    samesma chave.García Márquez respondeu a

    consulta com entusiasmo. Eis acartaqueremeteuaFuentesem 5dejunhode 1967.

    “Mestrequerido,aideiaéboaeénecessáriolevá-laadiante.Acre-dito,issosim,quesedeveescrever,sem exceção, sobre um tirano deseupróprio país.Assim,se dispõedemaiorautoridade,maisdireito,e há menos inconvenientes parachegaraondesedeve.”

    Nodia12dejulho,ofuturoautorde“OOutonodoPatriarca”voltouaotema:“Sobretudo,quesejaumditador para cada país. Enm, omais importante é que o projeto

    vai adquirindo uma forma estu-penda”. De fato, pois, se o livrocoletivonuncaveioàluz, emcom-pensação,umasériederomancesfundamentaisconheceusuagêne-senessatrocadecartas.

    Em24denovembrode1970,di-rigindo-seaGarcíaMárquez,Fuen-tesvoltouàcarga,imaginandoou-tratarefa coletiva.

    “Acaba de passar por MéxicoJorgeLavellicomumapropostain-decorosa(...). Produzirumagran-derevistamusicallatino-america-na, de conteúdo crítico e político(...).Pensamosquearevistapodeserfeitapormeiodeesquetes(...).E a melhor maneira de fazê-lo érecorreravocê, Mario,Julio,Alejopara a redação dos esquetes e assugestõesmusicais.”

    No fundo, desejava-se ampliarao máximo o público leitor: esse

    Sem dúvida, Barcelona,com sua importanteindústria editorial, teveum papel catalisador,mas recorde-se que“Cem Anos de Solidão” saiu inicialmentena Argentina

    “Alegra-me mais quea América Latinase tenha convertidosubitamente em umdos grandes mercadosde livros do mundo”,escreveu García Márquez em 1967

    A correspondênciase transformou numlaboratório de ideias,discussões literárias e,sobretudo, inaugurouum espaço de leituracrítica nada cordialda obra do outro

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    Em“AquellosAñosdelBoom:GarcíaMárquez,VargasLlosayelGrupodeAmigosqueloCam-biaron Todo” [RBA, 26€, 880págs., R$ 31,15 em Kindle ], de2014, Xavi Ayén se propôs a umexaustivoestudo,compostoa par-tir de uma miríade de entrevistascom personagens-chave da gera-ção do boom —autores, editores,agentese críticosliterários.

    Ganhador do Prêmio Gaziel deBiograaseMemórias2013,olivrodeAyén,queseimpõecomorefe-rência indispensável pela quan-tidade de informações reunidas,

    deixaadesejar,porém, noquesitointerpretativo,aotentarofereceranarrativadenitivaacercadeumageração privilegiada como “umabonitahistória”quese passouemsuacidade —“valedizer, Barcelo-na”.Essaéumameiaverdadequemaisobscurecedo queilumina.

    MEIAVERDADE Écertoqueal-gunsdos maisdestacadosnomesdo movimento xaram residên-cianacidadecatalã.O colombia-no Gabriel García Márquez (1927-2014) e o peruano Mario VargasLlosa, porém, mudaram-se paraBarcelona depois de publicaremobras que possibilitaram a emer-gênciadoboom,respectivamente,“Cem Anos de Solidão” (1967) e“ACidadeeos Cachorros”(1963).

    Esse simples dado cronológi-co é importante porque ajuda a

    nuançar a ideia de que o boomtenhasurgidoa partirdeumabem-sucedida estratégia de mercado,liderada por uma agente literáriade dimensões míticas —CarmenBalcells—edivulgadaporpodero-saseditorasespanholas,destacan-do-seoempenhodeCarlosBarral,daSeixBarral.

    Sem dúvida, Barcelona, comsua importante indústria edito-rial, teve um papel catalisador,como continuaria tendo, inclusi-venapromoçãodo últimograndefenômeno literário latino-ameri-cano —o chileno Roberto Bolaño

    (1953-2003),cujoêxitointernacio-nalfoifavorecidopelaatuaçãode-

    cididadeJorge Herralde,editordaAnagrama. Contudo, recorde-seque “Cem Anos de Solidão” saiuinicialmente na Argentina, pelaEditorialSudamericana.

    Enãoétudo.O mexicano Carlos Fuentes

    (1928-2012), nome incontornávelna história do boom, nunca mo-rouemBarcelona;alémdisso, seuromance“LaRegiónMásTranspa-rente”foilançadoem1958—umadécadaantesdoêxodolatino-ame-ricanoà cidadecatalã.Sem negli-genciar a energia de Balcells e aredetransnacionalproporcionada

    pelaseditorasespanholas,oboompossui uma arqueologia própria,queprecisa serreconstituída.

    Vejamos.

    ARQUIVOS Melhor:consultemososarquivosde Fuentes,que seen-contramnacoleçãodemanuscritoselivrosrarosda BibliotecaFiresto-ne,da Universidadede Princeton,nosEstadosUnidos.Aimportânciadesseacervopodeser avaliadape-laspalavrasde JoséDonoso (1924-96),destacadoautorchilenoe res-ponsávelpeloprimeirorelatosobreo movimento, “Historia PersonaldelBoom” (1972):“CarlosFuentesfoio primeiroagenteativoe cons-ciente da internacionalização doromance hispano-americano dadécadade 1960”.

    Oautormexicanomorreuem15demaiode 2012,eduascaixasde

    Arquivosde autoresrelevantes

    pertencemaosEUAESCREVER SOBRE os auto-res do boom envolve umaquestão delicada: a expor-tação dos arquivos dos maisimportantes autores latino-americanosparauniversida-desnorte-americanas.

    CarlosFuentesreconheceuessadiculdadeemcarta en-viada a Gabriel García Már-quezem29demarçode1974:“Emfevereiro viajamosparaWashington com uma bolsadoInstitutoSmithsonianedaBibliotecado Congressoparautilizar o grande acervo his-pano-americanodaBibliote-ca,o melhordo mundo”.

    Fuentes rematava a es-crita de “Terra Nostra” —omaisambiciosoromancedoautor; publicado no ano se-

    guinte, obteve o relevantePrêmioRómulo Gallegosem1977. A temporada em Wa-shingtonajudoualastrearotexto;anal,naspalavrasdeFuentes, “sigo o preceito domestre Buñuel: não há ima-ginaçãosem história”.Esta,o autor mexicano buscavanaBibliotecado Congresso.

    GarcíaMárquezantecipouo dilema, imaginando umasolução à altura da criativi-dade de seus personagens.Emcartaendereçadaa Fuen-tes, em 2 de novembro de1968, acrescentou uma no-ta maliciosa: “o autor destacartacerticaqueelaé apó-crifaepor issonãoé vendá-vel a Harvard”.

    Ironias à parte, recente-mente os arquivos de GarcíaMárquez foram adquiridospela Universidade do Texas,emAustin.Aliás,aí, oCentroHarryRansom tambémabri-gaos arquivosde JamesJoy-ce,JorgeLuisBorges,WilliamFaulkner,compondo,assim,umrepositórioincontornávelnahistóriadaliteraturadase-gundametadedo século20.

    BRASILEIROS A Bibliote-caBeinecke,daUniversidadeYale, concentra alguns dosmais importantes arquivosdasvanguardasdoséculo20;porexemplo,os manuscritosdeEzraPoundeFilippoTom-maso Marinetti lá se encon-tram.Esãoimportantesparaospesquisadoresbrasileiros,pois,nospapéisdePound,hácartas decisivas dos jovenspoetasconcretos,anuncian-doseuprojetoestético.

    O acervo de Marinetti dis-põedeumacoleçãodelivrosde modernistas brasileiroscom dedicatórias eloquen-tes.Naesferapública,todosprocuravamseafastar doin-cômodoitaliano; nocircuitofechado das correspondên-cias,a cordialidadereinava.

    A Biblioteca Firestone,da Universidade de Prince-ton, segue uma estratégiasemelhante. Vale dizer, de-senvolvem-seestratégiasdeaquisiçãodeacervosaparen-tados, permitindo o cruza-mentodedadose oaprovei-tamento ideal do tempo deimersãonoarquivo.Nocasoda minha pesquisa, o êxitodainiciativaéevidente,poisapresença,nomesmoespa-ço, dos arquivos de CarlosFuentes, Mario Vargas Llo-sae JoséDonoso,GuillermoCabrera Infante e Emir Ro-dríguez Monegal —para -car apenas nesses nomes—tornaolocalumareferênciaobrigatória para todo estu-dioso interessado em rees-creverahistóriadoboom.

    eraosentidodosesforçosdospro-tagonistas do boom. Em janeirode 1967, como se intuísse o êxitoqueaguardava“CemAnosde So-lidão”,queserialançadoem maiodo mesmo ano, García Márquezescreveua Fuentes.

    “O romance latino-americanobateutodosos recordesdevendanoanopassadonaColômbia(...).Os livros mais vendidos foram ‘ACidadeeosCachorros’,‘OJogodaAmarelinha’e‘A MortedeArtemioCruz’...Tambémemprimeirolugarcaram ‘O Século das Luzes’ [deAlejo Carpentier] e os meus. Istoquerdizerquenossopúblicoestárespondendomuito bem.”

    Embreve,não apenasopúblicolatino-americano, mas, num dia-pasão que surpreendeu a todos,Macondo conquistaria o mundo.Atalpontooprojetotriunfouque,emcartade2dedezembrode1967,GarcíaMárquezpôde armar.

    “‘CemAnos’continuavendendocomosalsichaejásaiaquartaedi-ção.Claroqueissome alegra,po-rémmealegra maisquea AméricaLatina se tenha convertido subi-tamenteemumdos grandesmer-cados de livros do mundo. Paramim, o famoso boom não é tantoum boom de escritores, mas umboomde leitores.Quemaravilha!”

    E O BRASIL? Em de maio de1970,NélidaPiñondissetudoemcarta a Mario Vargas Llosa, de-nindo-se como “uma escritorabrasileira,destepaíssurpreenden-temente marginalizado do mara-

    vilhoso processo de conquistainternacional, que ora invade aAméricahispânica”.

    A autora de “A República dosSonhos” (1984) destacou-se pelacriaçãodevínculossólidose per-manentescomouniversohispano-americano.Porisso, emseu livro,XaviAyénprincipiao capítuloemque fala das mulheres escritorasemumgrupodehomemdedican-docinco páginasà suaresidênciaem Barcelona. A história familiardaescritoraajudaaentenderesselaço, mas não explica a força desuapresença,construídapormeiode um intercâmbio sistemático eprodutivo com diversos autoresdospaíses vizinhos.

    Não terá chegado a hora deemular esse gesto, inaugurandoumanovaeradediálogocomasli-teraturashispano-americanas?