BOURDIEU a Causa Da Ciencia - Como a História Social Das Ciencias Sociais Pode Servir Ao Progresso...

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A causa da ciência Como a história social das ciências sociais pode servir ao progresso das ciências 1 Pierre Bourdieu A história social das ciências sociais não é uma especialidade dentre outras. Ela é o instrumento privilegiado da reflexi- vidade crítica, condição imperativa da lucidez coletiva e individu- al. Sem dúvida, ela pode também servir para o ressentimento e a má-fé, quando dela se esperam apenas satisfações sem o perigo da indignação e da denúncia retrospectivas, ou os benefícios as- segurados por uma defesa sem riscos de boas causas passadas. Mas, realmente, ela só encontra sua justificação quando conse- gue atualizar os pressupostos inscritos no princípio dos empre- endimentos científicos do passado, os quais perpetuam, freqüen- temente no estado implícito, a herança científica coletiva, os pro- blemas, os conceitos, os métodos ou as técnicas. Apenas a anamnésia permitida pelo trabalho histórico pode resgatar a amnésia da gênese, que implica, quase inevitavelmen- te, numa relação rotineira à herança, convertida, no essencial, em doxa disciplinar; apenas ela é capaz de fornecer a cada pesqui- sador os meios de compreender suas opções teóricas mais funda- . Publicado em Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 106-107, de março de 1995, este texto retoma alguns temas de uma comunicação apresentada em 1989 no Colóquio de Chicago sobre "Social Theory and Emerging Issues in a Changing Society", publicada sob o título "Epilogue: On the Possibility of a Field of World Sociology", in P. Bourdieu e J. Coleman (ed.), Social Theory for a Changing Society, Boulder-San Francisco-Oxford, Westview Press, New York, Russell Sage Foundation, 1991.A presente tradução foi feita por Gabriel Femandes, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC e revisada por Tamara Benakouche, professora do mesmo Programa. A publicação foi autorizada por Actes de la Recherche en Sciences Sociales, pelo que agradecemos.

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  • A causa da cinciaComo a histria social das cincias

    sociais pode servir ao progresso das cincias 1

    Pierre Bourdieu

    A histria social das cincias sociais no uma especialidadedentre outras. Ela o instrumento privilegiado da reflexi-vidade crtica, condio imperativa da lucidez coletiva e individu-al. Sem dvida, ela pode tambm servir para o ressentimento e am-f, quando dela se esperam apenas satisfaes sem o perigoda indignao e da denncia retrospectivas, ou os benefcios as-segurados por uma defesa sem riscos de boas causas passadas.Mas, realmente, ela s encontra sua justificao quando conse-gue atualizar os pressupostos inscritos no princpio dos empre-endimentos cientficos do passado, os quais perpetuam, freqen-temente no estado implcito, a herana cientfica coletiva, os pro-blemas, os conceitos, os mtodos ou as tcnicas.

    Apenas a anamnsia permitida pelo trabalho histrico poderesgatar a amnsia da gnese, que implica, quase inevitavelmen-te, numa relao rotineira herana, convertida, no essencial,em doxa disciplinar; apenas ela capaz de fornecer a cada pesqui-sador os meios de compreender suas opes tericas mais funda-

    . Publicado em Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 106-107, de maro de1995, este texto retoma alguns temas de uma comunicao apresentada em 1989no Colquio de Chicago sobre "Social Theory and Emerging Issues in a ChangingSociety", publicada sob o ttulo "Epilogue: On the Possibility of a Field of WorldSociology", in P. Bourdieu e J. Coleman (ed.), Social Theory for a Changing Society,Boulder-San Francisco-Oxford, Westview Press, New York, Russell Sage Foundation,1991.A presente traduo foi feita por Gabriel Femandes, doutorando do Programade Ps-Graduao em Sociologia Poltica da UFSC e revisada por Tamara Benakouche,professora do mesmo Programa. A publicao foi autorizada por Actes de la Rechercheen Sciences Sociales, pelo que agradecemos.

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    mentais, como a adeso, freqentemente tcita, a teses antropo-lgicas raramente enunciadas que fundam suas grandes escolhastericas e metodolgicas (particularmente em matria de filoso-fia da ao), ou suas simpatias e antipatias epistemolgicas paracom autores, modos de pensamento e formas de expresso. Ela o instrumento mais indispensvel e impiedoso para uma crticade paixes e interesses que podem se esconder no carter preten-samente irrepreensvel da metodologia mais rigorosa.

    A cincia social tem o privilgio de poder eleger por objetoseu prprio funcionamento e, assim, de tornar conscientes os limi-tes que se impem sua prtica cientfica; ela pode, no caso, servir-se da conscincia e do conhecimento que possui das suas funes edo seu funcionamento para tentar suprimir alguns dos obstculosao progresso da sua conscincia e do seu conhecimento. Assim, lon-ge de arruinar seus prprios fundamentos, como se tem ditofreqentemente, condenando-os ao relativismo, uma tal cincia re-flexiva pode, ao contrrio, fornecer os princpios de uma Realpolitikcientfica, visando assegurar o progresso da razo cientfica.

    A ambgua situao da cincia social

    O campo cientfico um microcosmo social, parcialmenteautnomo em relao s necessidades do macrocosmo no qualse encontra inserido. , num certo sentido, um mundo social comoos outros e, semelhana do campo econmico, conhece relaesde fora e lutas de interesses, coalizes e monoplios, e at im-perialismos e nacionalismos. No entanto, apesar do que dizemos defensores do "programa forte" na Sociologia da cincia, ele tambm um mundo parte, dotado de suas prprias leis de funci-onamento. Todas as propriedades que o campo cientfico tem emcomum com os outros campos revestem-se nele de formas espe-cficas: por exemplo, por mais obstinada que nele possa ser acompetio, esta mantm-se submissa se no a regras explcitas,pelo menos a regulaes automticas como as que resultam docontrole cruzado entre os concorrentes as quais tem por efeitoconverter os interesses sociais, tais como o apetite por reconheci-mento, em "interesses do conhecimento"; ou a libido dominandi,

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    que sempre uma parte da libido sciendi, em libido scientifica,amor puro verdade, com base no qual a lgica do campo, funci-onando como instncia de censura e princpio de sublimao,designa seus objetos legtimos e as legtimas vias de os alcanar.As pulses sublimadas que definem essa libido especfica aplicam-se a objetos tambm altamente depurados, e por mais violentosque estes possam ser, elas so inseparveis na sua prpria exis-tncia e na forma de sua satisfao do reconhecimento prticodas exigncias inscritas no funcionamento social do campo ondepodem encontrar tal satisfao.

    Segue-se que o rigor dos produtos cientficos depende fun-damentalmente do rigor dos limites sociais especficos que re-gem sua produo; ou, mais precisamente, do grau em que asregras ou as regularidades que governam o microcosmo cientfi-co e que determinam as condies nas quais as construes cien-tficas so produzidas, comunicadas, discutidas ou criticadas, soindependentes em relao ao mundo social, a suas demandas, asuas expectativas ou a suas exigncias.

    O campo das cincias sociais est numa situao muito di-ferente da dos outros campos cientficos: pelo fato de que eletem por objeto o mundo social e que pretende produzir dele umarepresentao cientfica, cada um dos seus especialistas est emconcorrncia no somente com outros cientistas, mas tambmcom os profissionais da produo simblica (escritores, polticos,jornalistas) e, mais amplamente, com todos os agentes sociaisque, com foras simblicas e sucessos desiguais, trabalham paraimpor sua viso do mundo social (usando meios que vo do me-xerico, do insulto, da difamao ou da calnia aos libelos, panfle-tos ou s tribunas livres, para no falar das formas de expressocoletivas e institucionalizadas de opinio, como o voto). Isso cons-titui uma das razes pelas quais esse especialista no consegueobter, to facilmente quanto os outros cientistas, o reconheci-mento do monoplio do discurso legtimo sobre seu objeto, quereivindica por definio, pretendendo a cientificidade. Seus con-correntes do exterior, mas tambm por vezes do interior, podemsempre apelar ao senso comum, contra o qual se constri a repre-sentao cientfica do mundo. Eles podem, inclusive, fazer esse

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    apelo recorrendo ao modo de validao de opinies corrente napoltica (principalmente quando a autonomia do campo polticotende a anular-se face a uma demagogia populista, que finge con-ceder a todos o poder e o direito de julgar tudo).

    Assim, do ponto de vista do grau de autonomia em relao apoderes externos, pblicos ou privados, a cincia social situa-se ameio caminho entre dois limites: de um lado, os campos cientfi-cos mais "puros", como a matemtica, onde os produtores s tmcomo nicos clientes possveis os seus concorrentes (os quais, ten-do a mesma aptido e o mesmo interesse em produzir eles prpri-os tais produtos, so pouco propensos a aceit-los sem exame); dooutro, os campos poltico ou religioso, ou ainda o jornalstico, ondeo julgamento dos especialistas cada vez mais submetido ao vere-dicto do nmero, sob todas as suas formas plebiscito, sonda-gem, ndices de venda ou audincia que d aos profanos o poderde escolher entre produtos que eles no esto necessariamente altura de avaliar (e, menos ainda, de produzir).

    Tem-se, pois, que lidar com duas lgicas completamenteopostas: a do campo poltico, onde a fora das idias dependesempre da fora dos grupos que as aceitam como verdadeiras; e ado campo cientfico que, em seus estados mais puros, s conhecee reconhece a "fora intrnseca da idia verdadeira", qual sereferia Spinoza. No se decide um debate cientfico por umafrontamento fsico, por uma deciso poltica ou por um voto, e afora de uma argumentao depende em grande parte, sobretu-do quando o campo fortemente internacionalizado, da confor-midade das proposies ou dos procedimentos s regras de coe-rncia lgica e de compatibilidade com os fatos. Ao contrrio, nocampo poltico o que triunfa so as proposies que Aristteles(em Os Tpicos) chama de endxicas, isto , aquelas s quais se obrigado a recorrei porque as pessoas que contam gostariam quefossem verdadeiras; e tambm porque participando da doxa, dosenso comum, da viso ordinria, que tambm mais divulgadae mais largamente partilhada, tem-se a favor o nmero. A estettulo, mesmo quando perfeitamente contrrias lgica ou ex-perincia, essas "idias-foras" podem se impor, porque contamcom a fora de um grupo e porque elas no so nem verdadeiras

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  • nem provveis, mas plausveis no sentido etimolgico do termo isto , prprias a receber a aprovao e o aplauso da maioria 1 .

    Os dois princpios de hierarquizao

    Segue-se que no campo das cincias sociais, como no cam-po literrio, onde se defrontam o "puro" e o "comercial", os pro-dutores podem se referir a um ou a outro dos dois princpios dehierarquizao e legitimao opostos o princpio cientfico e oprincpio poltico que se opem sem conseguir impor uma do-minao completa. Assim, por exemplo, diferentemente do quese passa nos campos cientficos mais autnomos (onde hoje nin-gum mais sonharia em sustentar que a Terra no gira), as propo-sies logicamente inconsistentes ou incompatveis com os fatospodem perpetuar-se e mesmo prosperar, assim como seus defen-sores, desde que sejam dotadas, no interior e no exterior do pr-prio campo, de uma autoridade social susceptvel de compensarsua insuficincia ou insignificncia. Isso tambm ocorre em rela-o a problemas, conceitos ou taxionomias: certos pesquisado-res podem, por exemplo, converter problemas sociais em proble-mas sociolgicos, importar para o discurso cientfico conceitos(profession, papel etc.) ou taxionomias (individual/coletivo,achievement/ascription etc.) diretamente tirados do uso corrente eeleger como instrumentos de anlise noes que necessitam serelas prprias analisadas.

    preciso, pois, interrogar-se sobre os obstculos sociais nunca completamente ausentes, mesmo nos campos cientficosmais autnomos que se opem instaurao do nomos cientfi-co como critrio exclusivo de avaliao de prticas e de produtos.

    A ambigidade de certas discusses com pretenso cientfica ocorridas publi-camente aparece muitas vezes quando o pblico sai do papel passivo queordinariamente lhe reservado para manifestar sua aprovao a um ou outrodos debatedores por aplausos mais ou menos entusiasmados; e a violncia daintruso tirnica no sentido de Pascal dos profanos repercute quando umdos participantes recorre ao procedimento retrico que Schopenhauer consi-derava como tipicamente desleal e que consiste em enderear ao adversrioum argumento ao qual este ltimo s poder responder empregando argumen-tos incompreensveis para os espectadores.

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    A raiz comum de todos esses obstculos autonomia cientfica e completa dominao do princpio cientfico de avaliao ou dehierarquizao o conjunto de fatores capazes de impedir o jogoda livre concorrncia cientfica entre pares, isto , entre os detento-res do domnio mnimo das aquisies coletivas da cincia social,o qual a condio de entrada nos debates propriamente cient-ficos; ou seja, o conjunto de fatores capazes de favorecer a en-trada no jogo, seja como jogadores, seja como rbitros (atravs,por exemplo, de um certo tipo de crtica jornalstica), de intrusosdesprovidos desta competncia e inclinados a introduzir normasde produo e de avaliao extrnsecas, como as do senso co-mum ou do "bom senso".

    Os conflitos que ocorrem nas cincias sociais (e que soinvocados, por vezes, para lhes recusar o estatuto de cincias)podem assim pertencer a duas categorias completamente dife-rentes. Na primeira, a dos conflitos propriamente cientficos, aque-les que se apropriam das aquisies coletivas de sua cincia seopem entre si, segundo a lgica constitutiva da problemtica eda metodologia diretamente decorrentes dessa sua herana, aqual os une at nas suas lutas para conserv-la ou ultrapass-la(eles nunca so to fiis herana quando nas rupturas cumulati-vas com essa mesma herana, rupturas cuja possibilidade e ne-cessidade esto inscritas nela prpria); eles se confrontam numadiscusso regulada, operando, a propsito de problemticas ri-gorosamente explicitadas, conceitos claramente recortados e m-todos de verificao inequvocos.

    Na segunda categoria, a dos conflitos polticos de dimen-so cientfica, conflitos que so sem dvida socialmente inevit-veis e cientificamente analisveis, produtores cientificamente ar-mados so levados a confrontar-se a produtores que, por razesdiversas, como idade, insuficincia de formao ou desconheci-mento das exigncias mnimas da profisso de pesquisador, en-contram-se desprovidos de instrumentos especficos de produ-o, mas que se descobrem estar mais prximos das expectativasprofanas e mais capazes de satisfaz-las (este o fundamento dacumplicidade que se estabelece espontaneamente entre certospesquisadores decadentes, deslocados ou incapazes e alguns jor-

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    nalistas que, ignorantes das problemticas especficas, reduzemas diferenas de competncia a diferenas de opinio poltica,religiosa etc. propensas mtua relativizao2).

    Consenso poltico e conflito cientfico

    No conflito propriamente cientfico, no h nada, nenhumobjeto, nenhuma teoria, nenhum fato, que uma interdio socialpossa excluir da discusso; mas, no existe arma exclusivamentesocial, nenhum argumento de autoridade e mesmo nenhum po-der simplesmente universitrio, que no seja excludo, de direitoe de fato, do universo de meios susceptveis de ser trazidos discusso. Segue-se que nada est mais longe, apesar das apa-rncias, desta espcie de guerra de todos contra todos masrigorosamente regulada, na escolha das armas e golpes legti-mos que o working consensus de uma ortodoxia acadmica. esta ortodoxia que os socilogos americanos, nos anos 60 e, emcerta medida, os defensores franceses da "Nouvelle Histoire", ten-taram estabelecer, apoiando-se em poderes propriamente soci-ais, inicialmente em instituies de ensino, em instncias de pu-blicao oficiais, em associaes profissionais e mesmo no aces-so aos recursos necessrios pesquisa emprica.

    Se preciso abster-se de ver nisso o princpio determinantede semelhantes construes, fica claro que o indiferentismo ticoe poltico de um conservantismo de boa companhia que sepode viver como desapego "objetivo" do "observador imparcial"ou como "neutralidade axiolgica" s pode se reconhecer ou serealizar nas construes tericas e metodolgicas que assegurema respeitabilidade numa evocao frouxamente consensual domundo social e, mais genericamente, em toda a forma de discur-

    2 Os dois princpios de diferenciao no so completamente independentes: asdisposies conformistas que tendem a aceitar o mundo tal como ele , ou asdisposies reticentes ou rebeldes que levam a resistir aos constrangimentossociais, internos e sobretudo externos, e ao rompimento com as evidncias maisamplamente partilhadas no campo e fora dele, certamente no so distribudasaleatoriamente entre os ocupantes de diferentes posies no campo, nem entreas trajetrias que eles utilizaram para atingi-las.

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  • so que, pelo seu formalismo, possa falar do mundo social combase na lgica da denegao como se o no fizesse, ou que, peloseu positivismo, tenda a se ajustar ao registro sem problemas dodado tal como ele se apresentai

    assim que os socilogos americanos acreditaram ter en-contrado nas teorias de Parsons ou de Merton e na metodologiade Lazarsfeld o corpo de doutrina unificado prprio a fundar acomunis doctorum opinio de um corpo bem ordenado de "profissi-onais" imitando o que se considerava ser a caracterstica funda-mental de uma cincia digna deste nome: o consenso da "comu-nidade cientfica"4 . De fato, uma adeso tcita ao conjunto depressupostos indiscutidos sobre os quais repousa a autoridadedos corpos de doutores, telogos ou juristas mas tambm, poruma parte, de historiadores (principalmente da literatura, da artee da filosofia, que no so inclinados a historicizar seus corpus,isto , sua fabricao) se ope diametralmente ao acordo expl-cito sobre os objetos e os pontos de desacordo e sobre os proce-dimentos e os processos susceptveis de serem mobilizados pararesolver os diferendos que esto na origem do funcionamentodos campos cientficos.

    3 Poder-se-ia mostrar que a economia neoclssica apresenta algumas das principaiscaractersticas de uma ortodoxia mimtica da cientificidade (com a especial efic-cia que lhe confere a formalizao matemtica) como, por exemplo, a aceitaotcita de pressupostos indiscutidos a respeito de pontos absolutamente funda-mentais (em matria de teoria de ao, por exemplo).

    4 A teoria das profisses, tal como expressa, por exemplo, no artigo redigido porParsons com esse ttulo, para The International Encyclopedy of Social Sciences(edio de 1968, p. 536-546) pode ser lida como uma profisso de f profissionaldesses "profissionais" que se consideram socilogos: caracterizados, segundoParsons, pela sua formao intelectual e pela autoridade que repousa mais sobrea expertise que sobre o poder poltico, esses profissionais so livres de toda adependncia em relao ao Estado e burocracia governamental, e so guiadosunicamente pela preocupao com o common good. Esta collectivity-orientation,este "desinteresse" e este "altrusmo" prprios a lhes assegurar as mais altasrecompensas materiais e simblicas, que a maior parte das definies de profis-ses mencionam os encontramos tambm na representao mertoniana douniverso cientfico. Em suma, a noo preconstruda de profession, conceito readymade que provocou inumerveis comentrios e crticas, menos uma descriode uma realidade social que uma contribuio prtica construo da Sociologiacomo profession e da profession de cientista.

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  • Com efeito, o working consensus de uma ortodoxia funda-da na cumplicidade social dos doutores tende a exercer umacensura social (disfarada em controle cientfico), seja de manei-ra inteiramente direta, atravs de interdies, por vezes explci-tas, em matria de publicao e de citao; seja mais sorrateira-mente, atravs de processos de recrutamento que privilegian-do, atravs do seu funcionamento em rede e do lobbying, critri-os sociais mais ou menos maquilados em critrios cientficos ouacadmicos tendem a reservar as nomeaes para posiesfavorveis produo e, por essa via, para a competio cien-tfica a certas categorias de agentes definidos em termos pu-ramente sociais, titulares de certos diplomas prestigiados, ocu-pantes de certas posies sociais no ensino ou na pesquisa, ou,ao contrrio, excluindo a priori certas categorias, como por exem-plo, mulheres, jovens ou estrangeiros 5

    Mas, se as transformaes profundas por que passaram ascincias sociais contriburam sem sombra de dvidas para o des-moronamento da ortodoxia, principalmente sob o efeito do con-sidervel crescimento do nmero daqueles que as praticam e es-tudam, suas conseqncias nem sempre estiveram livres de am-bigidades : os efeitos liberadores exercidos pela apario de uma

    5 Sem poder dar exemplos inspirados no campo francs, hoje (os que, em nome doliberalismo, se dedicam a prticas dignas dos regimes mais autoritrios, seriamsem dvida os primeiros a denunciar como "totalitria" qualquer denncia aessas prticas), seria preciso citar aqui toda a passagem do famoso discurso sobre"a vocao e a profisso do cientista", onde Max Weber pe a questo em geralreservada a conversas privadas de saber por que as universidades e as institui-es de pesquisa no selecionam sempre os melhores: afastando a tentao deimputar s pessoas no caso, aos "pequenos personagens das faculdades e dosministrios" a responsabilidade pelo fato de que "um to grande nmero demedocres desempenham um papel incontestvel nas universidades", Weberconvida a pesquisar as razes deste estado de coisas "nas prprias leis da aoconcertadas dos homens", aquelas que, na eleio dos papas ou dos presidentesamericanos, levam quase sempre a selecionar"o candidato nmero dois ou trs",concluindo com uma certa ironia: "O que de causar espanto no que equvo-cos ocorram freqentemente nestas condies, mas antes que [...I se constate,apesar de tudo, um nmero tambm considervel de indicaes justificveis" (M.Weber, Le Savant et le Politique, Paris, Plon, 1959, p. 66-67).

    6 Howard S. Becker, num captulo intitulado "What's Happening to Sociology?",do seu livro Doing Things Together (Evanston, Northwester University Press,1986, p. 209), observa que o nmero de socilogos recenseados pela American

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    pluralidade de princpios concorrentes e a intensificao correlativada concorrncia propriamente dita tiveram por contrapartida, nosdiferentes campos nacionais, o reforo dos fatores de heteronomialigados ao crescimento da disperso dos "especialistas", poucofavorvel discusso regulada entre pares, e correlativamente, oreforo da vulnerabilidade s presses, s solicitaes e sinjunes externas que, como em todos os campos, particular-mente forte entre os mais desprovidos de capital especfico?

    Em suma, se o sistema artificialmente unificado e hierar-quizado dos anos 50 cedeu lugar a um sistema "policntrico", comodiz Becker e mais difcil de controlar, porque fragmentado e di-versificado nos EUA como na Frana, o funcionamento do campoainda permanece mais prximo de um campo artstico em via deemancipao das tutelas acadmicas (no qual os adversrios po-dem ir at recusa mtua do direito de existncia), do que o de um

    Sociological Association subiu de 2 364 em 1950, para 15 567 em 1978. Domesmo modo, na Frana, esse nmero teria passado, no mesmo perodo, de200 para 1 000, aproximadamente (a Associao dos Socilogos, que adota umadefinio muita ampla, recenseou 1 678, pblicos ou privados). Para ser maispreciso, em 1949 o CNRS contabilizava apenas dezoito socilogos; em 1967,havia 112 no CNRS, 135 na cole Pratique des Hautes tudes e 290 nos centrosde pesquisa privados, ou seja, ao todo, mais de 500; em 1980, apenas comomembros do CNRS, recenseavam-se 261 socilogos.

    7 As mudanas morfolgicas resultantes da abolio do numerus clausus de fato oude direito que protege um corpo, uma categoria, garantindo assim a raridade deseus membros, esto muitas vezes na origem direta das transformaes doscampos de produo cultural; em todo o caso, elas so a mediao especficaatravs da qual se exercem os efeitos de mudanas econmicas e sociais. Almdisso, a forma e a intensidade de que se revestem e os efeitos que produzemdependem eles prprios do estado da estrutura do campo em que ocorrem. Istoexplica por que preciso rejeitar, como um exemplo tpico de erro de curto-circuito, a explicao que coloca as mudanas ocorridas num campo especializa-do, como o da Sociologia, diretamente em relao com as mudanas globais,como a prosperidade que se seguiu guerra (N. Wiley, "The Current Interregnumin American Sociology", Social Researche, vol. 52, 1, Spring 1985, p. 179-207, emparticular, p. 183); ou ainda, as mudanas constatadas na Sociologia ou na histria,tanto na Frana como na Alemanha, nos anos 70, com as transformaes dohumor poltico por volta de 68, transformaes que esto elas prprias ligadas amudanas morfolgicas nos campos de produo especializados e a inovaesintelectuais favorecidas ou autorizadas pelos efeitos dessas transformaes.

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    campo cientfico avanado 8 . Isso particularmente verdadeiro por-que, pelo menos na Frana, continua a se impor aos especialistasdas cincias sociais (principalmente atravs da demanda de "maitres penser"), o modelo literrio do "criador" singular e original, livrede todo o vnculo de grupo ou de escola, e tambm as normas dochique e da renovao permanente na continuidade, normas queso aquelas do campo da alta-costura e da moda.

    Em virtude da fraqueza dos mecanismos capazes de imporaos participantes um mnimo de reconhecimento mtuo ou, oque d na mesma, a obedincia a espcies de leis da guerra, aconfrontao entre diferentes tradies assume muito freqente-mente a forma de uma guerra total (Randall Colins fala de "warsof metatheories"), onde todos os golpes so permitidos, sejam elesde menosprezo, permitindo economizar na discusso e na refuta-o, sejam eles de fora, fundados no recurso aos poderes sociais(como a supresso de crditos ou de vagas, a censura, a difama-o, o apelo a poderes jornalsticos etc.).

    Efeitos ambguos da internacionalizao

    Quais so ento os mecanismos que poderiam contribuirpara fazer com que as relaes de fora cientficas pudessem seestabelecer sem qualquer intruso das relaes de fora sociais?

    8 "Os socilogos quantitativistas evocam com orgulho "sua revoluo matemtica"e seu alto nvel de realizao em matria de tcnicas estatsticas e englobam porvezes no mesmo desdm todos os outros especialistas, simples minoria noquantitativista to irrisria quanto absurda. Os socilogos marxistas, com a segu-rana que lhes confere o fato de no estarem mais votados ao esquecimento,rejeitam o "positivismo" como o reflexo de uma poca histrica ultrapassada. Ossocilogos histricos (que tambm podem ser marxistas) pleiteiam a unicidadedas configuraes histricas e a necessidade de enraizar todo objeto no seuverdadeiro lugar, em seqncias histricas especficas. Os etnometodlogos re-jeitam a Sociologia do "macrocosmo" como uma conversa fiada desprovida detoda justificao; uma espcie particular de estruturalismo fenomenolgico,humanista e parisiense, e outras "posies" demonstram com grandes refina-mentos filosficos (e uma boa dose de desprezo por seus adversrios filosofica-mente iletrados) que s o seu mtodo permite uma apreenso adequada domundo social" (R. Collins, "Is 1980s Sociology in the Doldrums?", American

    _Numa! ofSociology, vol. 91,6, maio de 1986, p. 1336-1355, em particular p. 1341).

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    O que fazer para abolir ou enfraquecer a dualidade de princpiosde hierarquizao que, como se pde mostrar para o caso fran-cs, afeta os pesquisadores mais reconhecidos cientificamente nopas, e sobretudo no estrangeiro, mas que esto afastados deposies de poder relacionadas reproduo do corpo docente ede pesquisadores e, por isso mesmo, dos desdobramentos futu-ros do campo cientfico e de sua autonomia 9 ? Quais so as for-as e os mecanismos sociais sobre os quais poderiam apoiar-se asestratgias cientficas, individuais e sobretudo coletivas, visandoinstaurar, de fato, entre os pesquisadores mais dotados, os meiosmais universais do momento para a confrontao universal, que a condio de avano universal?

    , sem dvida, de uma verdadeira internacionalizao docampo das cincias sociais que se poderia esperar a contribuiomais eficaz para o progresso da autonomia cientfica. Com efeito,as presses da demanda ou dos constrangimentos sociais se exer-cem sobretudo na escala da nao, atravs de todas as solicita-es e de todas as incitaes materiais e simblicas que tm lu-gar no seio do espao nacional: uma vez que grande parte dospoderes sociais (jornalsticos, universitrios, polticos etc.) queconfundem ou contaminam a luta cientfica s existem e subsis-tem em escala nacional (a oposio principal que se verifica emtodos os campos acadmico-cientficos se estabelece entre os"nacionais", detentores do poder sobre a reproduo, e os "inter-nacionais"), a maior parte das oposies fictcias que dividem ospesquisadores se enrazam nas divises locais ou nas formas lo-cais de divises mais gerais.

    Isto posto, o campo das cincias sociais foi sempre internaci-onal, mas sobretudo para o pior e raramente para o melhor. Primei-ramente, porque mesmo nas cincias mais puras, que conhecem,por exemplo, uma concentrao quase monopolstica das instnci-as de publicao e de consagrao, o campo internacional pode sero lugar de fenmenos de dominao, e talvez mesmo de formasespecficas de imperialismo. Em segundo lugar, porque as trocas e especialmente os emprstimos se operam de preferncia sobre

    9 P. Bourdieu, Homo academicus, Paris, Ed. de Minuit, 1988.

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  • a base de homologias estruturais entre as posies ocupadas nosdiferentes campos nacionais, isto , quase exclusivamente entredominantes e dominados (com efeitos anlogos, no interior des-ses dois espaos, de distoro e mal-entendidos). Tudo leva mes-mo a pensar que os obstculos sociais livre troca generalizada fo-ram sem dvida reforados sob o efeito de uma espcie deinstitucionalizao de divises com base poltica.

    Nos anos 50, alguns dos socilogos temporariamente do-minantes podiam formar uma internacional invisvel, fundadaem afinidades forjadas mais a partir de uma razo social do quenuma razo intelectual, que servia de base a uma ortodoxia;hoje, sob o efeito do contragolpe dos movimentos estudantisdos finais dos anos 60 e do traumatismo coletivo que infligi-ram, de Berkeley a Berlin, a toda uma gerao de professores, asconexes at ento informais se transformaram em redes organi-zadas em torno de fundaes, revistas e associaes, e oconservantismo de boa companhia dos guardies da ortodoxiacedeu lugar a profisses de f explcitas e a manifestos ultras deuma verdadeira internacional reacionrial.

    O que novo, o que existe tambm, mas em estado virtu-al e no organizado, uma internacional de outsiders constitu-da por aqueles que tm em comum uma marginalidade em rela-o corrente dominante, como os membros dos movimentosde minorias tnicas ou sexuais. Esses "marginais", que so fre-qentemente calouros, introduzem no campo disposies sub-versivas e crticas as quais, ainda que no sejam suficiente-mente criticadas em termos cientficos, os inclinam a rompercom as rotinas do establishement acadmico; na sua luta contraa ortodoxia, ou contra o que a substituiu, aqui ou ali, eles sem-pre tomam suas armas emprestadas aos movimentos estrangei-ros, contribuindo assim para a internacionalizao do campo

    10 Essas redes so a base de intercmbios de servios (convites, prestao decontas, subvenes) que fazem, por exemplo, com que o recurso a juzes inter-nacionais, principalmente em aes de cooptao, nem sempre seja uma garantiade universalidade.

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    das cincias sociais1 1 ; mas os interesses ligados posio ocu-pada no campo de destino causam distores na seleo e napercepo do emprstimo, seleo ela prpria estruturada se-gundo categorias de percepo e de apreciao associadas a umatradio nacional que, por isso mesmo, so muitas vezes com-pletamente inadequadas (pelo fato de que as obras circulam in-dependentemente do seu contexto, os trabalhos concebidos emrelao a um espao de tomadas de posio determinado sorecebidos por referncia a categorias de percepo construdasem relao a um outro espao, estruturado por outros nomesprprios, outros conceitos escolares em ismos ou ento pelosmesmos, mas investidos de significaes diferentes, etc.).

    Segue-se que, longe de contribuir automaticamente para oprogresso rumo a um grau de universalizao superior, a evolu-o do campo internacional das cincias sociais na direo deuma maior unidade, atravs principalmente da internacionalizaodas lutas que nele tm lugar, pode apenas contribuir para a difu-so, na escala do universo (isso para evitar o termo particular-mente vicioso de "mundializao"), de pares opostos fictcios,profundamente funestos ao progresso da cincia: entre mtodosquantitativos e mtodos qualitativos; entre o macro e o micro;entre as abordagens estruturais e as abordagens histricas; entreas vises hermenuticas ou internalistas o "texto" e as visesexternalistas o "contexto"; entre a viso objetivista, muitas ve-zes associada ao uso da estatstica, e a viso subjetivista, intera-cionista ou etnometodolgica; ou, mais precisamente, entre umestruturalismo objetivista, comprometido em identificar as es-truturas objetivas atravs de tcnicas quantitativas mais ou me-nos sofisticadas (path analysis, network analysis, etc.) e todas asformas de construtivismo que, de Blumer a Garfinkel, passandopor Goffman, tentaram recuperar, pelos mtodos ditos qualitati-vos, a representao que os agentes fazem do mundo social e a

    11 De um modo geral, as importaes fornecem as melhores armas nos conflitos inter-nos dos campos nacionais, particularmente quando se trata de desacreditar umaposio estabelecida ou creditar uma nova posio e acelerar o processo sempredifcil de acumulao inicial, isto , de subverter a hierarquia social em vigore impornovas leis de formao de preos (sabe-se, por exemplo, o uso que os "cosmopolitas"reais ou supostos podem fazer, nas polmicas, da idia do "atraso" nacional).

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    contribuio que eles trazem sua construo; isso sem falar daoposio, que assume uma forma especialmente dramtica nosEstados Unidos, entre uma "empiria" freqentemente microfrnicae destituda de interrogaes tericas fundamentais, e uma "teo-ria" concebida como uma especialidade parte e reduzida mui-tas vezes a um comentrio compilatrio de autores cannicos oua trends reports escolares de trabalhos mal- lidos e mal digeridos.

    Se as instncias internacionais fossem realmente o instru-mento de racionalizao cientfica que poderiam e deveriam ser,elas deveriam favorecer a conduo de uma pesquisa internacio-nal (pelo menos quanto ao objeto) sobre os determinantes so-ciais (sexo, idade, origem social, trajetria escolar, estatuto uni-versitrio, competncia tcnica especfica etc.) das "escolhas" en-tre os dois termos das diferentes oposies "tericas" e "metodo-lgicas" que levam os pesquisadores a traar divises completa-mente fictcias de um ponto de vista cientfico. Tal pesquisa mos-traria, sem nenhuma dvida (e no corro nenhum risco formulan-do esta hiptese aparentemente arriscada), que grande parte des-sas oposies tm como fundamento apenas as divises sociaisno seio do campo das cincias sociais, as quais exprimem, sobuma forma mais ou menos refratada, as oposies externas. Mas,tenho conscincia de tambm no correr um risco muito grandepredizendo que tenho muito pouca chance de ser escutado pelosresponsveis dessas instncias: por que eles se inquietariam ematribuir funes reais a instncias que lhes parecem suficiente-mente justificadas pelo fato de justific-las por existir? Pode-se,porm, razoavelmente esperar que um jovem pesquisador encole-rizado se apodere um dia do projeto, fazendo descer das nuvens etrazendo-as para a lgica das paixes e dos interesses associadoss diferentes posies no campo, as tomadas de posio ditas "te-ricas" ou "epistemolgicas" sobre as grandes alternativas domomento, nas quais os pesquisadores projetam, sob uma formadireta ou indireta como os homens no seu Deus, segundoFeuerbach as carncias ligadas a sua finitude cientfica.

    Todavia, o que torna difcil (e realmente arriscada) a crticadesses pares sociais maquilados em pares epistemolgicos o fatode que, considerados do ponto de vista do princpio de diferencia-

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    o social, os dois termos (macro/micro por exemplo) raramenteesto no mesmo plano, um deles se situando sempre mais prxi-mo da causa dos dominados (socialmente e tambm, muitas ve-zes, cientificamente) no campo (atravs principalmente das carac-tersticas sociais de seus defensores), e tambm o que bastantemais difcil de ser julgado fora do campo. Desse modo, a opopropriamente cientfica de recusar, em seu princpio mesmo, a al-ternativa que os ope, pode parecer inspirada numa espcie deindiferentismo conservador. Assim, nada mais contrrio ao pro-gresso de uma cincia social autnoma do que a tentao dopopulismo: aqueles que crem "servir a causa" dos dominados hoje, preferencialmente nos EUA, a causa das minorias sexuais outnicas; ou na Frana, nos anos 70, a "causa do povo" abdicandodas exigncias cientficas, por vezes em nome da sua caractersticaelitista ou, mais ingenuamente, do seu vnculo com os engajamentosconservadores, no servem verdadeiramente s causas que elescrem defender, as quais esto relacionadas, pelo menos em parte a nica que cabe a um pesquisador causa da cincia.

    A reduo ao "poltico", acarretada pela ignorncia da lgi-ca especfica dos campos cientficos, implica numa renncia, parano dizer numa desistncia: reduzir o pesquisador ao papel deum simples militante, sem outros fins ou meios que os de umpoltico comum, anul-lo na sua qualidade de cientista capazde colocar as insubstituveis armas da cincia ao servio dos ob-jetivos perseguidos; capaz sobretudo de fornecer os meios decompreender, entre outras coisas, os limites que os determinantessociais das disposies militantes impem crtica e ao mili-tantes (muitas vezes reduzidas a simples inverses das tomadasde posio dominantes e, desse modo, muito facilmente revers-veis como o atestam tantas trajetrias biogrficas) 12 .12 Chama a ateno que Foucault, que ao menos nos Estados Unidos tomou-se o santo

    padroeiro ritualmente invocado (mais do que um maitre penser) de todos osmovimentos subversivos, seja submetido a uma tal reduo por parte de pregado-res da restaurao (cf. James Miller, The Passion ofMichel Foucault, New York, Simonand Scuster, 1993, e a crtica que lhe faz Didier Eribon, Michel Foucault et sescontemporains, Paris, Fayard, 1994, p. 22-30). Mas, ao reduzir todo o pensamentode Foucault sua homossexualidade, eles apenas invertem a posio daqueles queresolveram canoniz-lo s porque ele era homossexual (cf. David Halperin, SaintFoucault, Two Essays in Gay Hagiography, Oxford, Oxford University Press, 1995).

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  • Mas, sobretudo, no preciso esconder que as disposiesreticentes ou rebeldes, ou mesmo revolucionrias, que certospesquisadores importam para o campo, das quais se poderia crerque acarretam inevitavelmente rupturas crticas com a doxa e aortodoxia, podem tambm favorecer a submisso a injunes oua presses externas, cujas palavras de ordem de instncias polti-cas so apenas as mais visveis. Elas s podem engendrar as ver-dadeiras rupturas de uma revoluo especifica quando se associamao domnio das aquisies histricas do campo (num campo ci-entfico muito avanado, os revolucionrios so necessariamenteos capitalistas especficos): a conscincia e o conhecimento daspossibilidades e impossibilidades inscritas no espao dos poss-veis fazem com que este espao aja ao mesmo tempo como siste-ma de constrangimentos e de censuras obrigando a sublimar apulso subversiva em ruptura cientfica e como matriz de todasas solues susceptveis de serem consideradas como cientficasnum dado momento do tempo, e apenas elas.

    Por uma "realpolitik" cientfica

    Assim, o questionamento das ortodoxias e de todos osprincpios de viso e de diviso centrais tem o indiscutvel m-rito de destruir o consenso fictcio que aniquila a discusso,mas pode conduzir a uma diviso em campos antagnicos, fe-chados na convico metaterica da superioridade absoluta decada uma das vises, e ningum deve resignar-se a isso. preci-so, pois, trabalhar na construo de instncias capazes de con-trariar as tendncias fisso anmica inscritas na pluralidadede modos de pensar, favorecendo uma confrontao de pontosde vista estabelecida sob o ponto de vista da reflexividade. Umponto de vista encarado como tal, isto , como uma viso apartir de um ponto, de uma posio num campo, capaz desuperar sua particularidade; isso, principalmente, ao entrar numaconfrontao com diversas vises, confrontao fundada na cons-cincia dos determinantes sociais dessas diferenas.

    Todavia, mais do que uma predicao epistemolgica, mes-mo armada de uma Sociologia reflexiva dos campos de produ-

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    o, de uma transformao da organizao social da produoe da circulao cientficas e, em particular, das formas de trocanas quais e pelas quais se realiza o controle lgico, que se podeesperar um progresso real da razo cientfica nas cincias soci-ais. aqui que pode intervir uma Realpolitik da razo, armadado conhecimento racional dos mecanismos sociais que operamno campo das cincias sociais, tanto em escala nacional comoem escala internacional.

    Semelhante poltica pode notadamente atribuir-se o obje-tivo de reforar todos os mecanismos que contribuem para unifi-car o campo cientfico mundial, favorecendo a circulao cientfi-ca; contrapondo-se ao reino dos imperialismos tericos oumetodolgicos (ou, simplesmente, lingusticos); e combatendo,mediante o recurso sistemtico ao mtodo comparativo (e emparticular mediante uma histria comparada de histrias nacio-nais das disciplinas), a influncia das tradies nacionais ou na-cionalistas, retraduzidas, muitas das vezes, nas divises em es-pecialidades e em tradies tericas ou metodolgicas, ou nasproblemticas impostas pelas particularidades ou particularismosde um mundo social necessariamente provinciano.

    Mesmo que seja Habermas a diz-lo, certamente no huniversais trans-histricos da comunicao; porm, existem semdvida formas socialmente institudas de comunicao que favo-recem a produo do universal. A lgica est inscrita numa rela-o social de discusso regulada, fundada sobre um argumento euma dialtica. Os lugares (topoi) so uma manifestao visvel dacomunidade de problemtica como acordo sobre os espaos dedesacordo, o qual indispensvel para a discusso (em vez de seempreender monlogos paralelos). um tal espao de jogo quese impe constituir, no sobre a base de prescries ou de pros-cries morais, mas criando-se condies sociais para uma con-frontao racional, visando instaurar em escala internacional noo working consensus de urna ortodoxia sustentada na cumplicida-de dos interesses de poder, mas sim uma axiomtica racional co-mum ou, ao menos, um working dissensus fundado no reconheci-mento crtico de compatibilidades e incompatibilidades cientifi-camente (e no socialmente) estabelecidas. Este espao de jogo

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    o lugar de liberdade que a cincia social pode se dar, aplicando-se, resolutamente, a conhecer as determinaes sociais que pe-sam sobre seu funcionamento e esforando-se para instituir osprocedimentos tcnicos e os processos sociais que permitem agireficazmente, isto , coletivamente, no sentido de control-las.

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