Bourdieu leitor de Weber: pistas para uma gênese do conceito de campo

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    Revista Cadernos de Cincias Sociais da UFRPE

    BOURDIEU LEITOR DE WEBER: PISTAS PARA UMA GNESE DO CONCEITO DE CAMPO

    Vincius Manrique Cavalcanti2

    RESUMO

    Este ensaio trata da influncia de Max Weber na formulao de um conceito central no referencial terico de Pierre Bourdieu: o conceito de campo. Ferramenta central nos escritos do socilogo francs, mostramos que este conceito tributrio da leitura que Bourdieu realizou dos escritos sobre sociologia da religio de Weber. Para realizar a exposio desse processo de herana sociolgica, partimos do momento em que Bourdieu realiza, pela primeira vez, a sistematizao do conceito no ensaio interpretativo de sociologia da religio de Weber. Do momento em que o conceito surge pela primeira vez at o momento em que , pela primeira vez sistematizado, h um perodo de amadurecimento no qual a apropriao e a interpretao da obra de Weber foram, no mnimo, fundamentais. Procuramos, ento, destrinchar como se deram a apropriao e a interpretao da obra de Weber, feitas por Bourdieu, para a formulao do conceito de campo. Palavras-chave: Bourdieu. Weber. Campo. Conceito.

    2. Mestrando do Programa de Ps- Graduao em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: [email protected]

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    BOURDIEU READER OF WEBER: CLUES TO A GENESIS OF THE CONCEPT OF FIELD

    ABSTRACT

    This essay deals with the influence of Max Weber in the formulation of a central concept in the theoretical framework of Pierre Bourdieu: the concept of field. Central tool in the writings of the French sociologist, we show that this concept is a tributary of reading that made Bourdieu of Webers writings on the sociology of religion. To accomplish the exposure of this process of sociological heritage, we start from the moment that Bourdieu held for the first time the concept in its first systematic form. From the moment that the term first appears until the moment it is first systematized, there is a period of maturation, in which the appropriation and interpretation of Webers work was at least essential. We then try to unravel how was the appropriation and interpretation of Webers work made by Bourdieu to the formulation of the concept of field.Keywords: Bourdieu. Weber. Champ. Concept.

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    1. Introduo

    bastante patente a influncia da obra de Max Weber na de Pierre Bourdieu. Procuramos, neste trabalho, delinear, especificamente, a contribuio do pensamento weberiano para a formulao de um conceito fundamental no aparato terico bourdieusiano: o conceito de campo. A inteno aqui , portanto, procurar traar quais principais elementos do pensamento de Max Weber foram utilizados na formulao de um dos mais importantes conceitos de Bourdieu. Essa aproximao no intuito de compreender a gnese deste conceito amplamente justificada pela centralidade que o conceito de campo possui no pensamento bourdieusiano. Ademais, como iremos explorar mais frente, foram escassas as vezes em que o prprio Bourdieu se empenhou em realizar uma arqueologia do conceito de campo e mais raras ainda aquelas em que ele se props tentar exp-lo de maneira sistemtica, no sentido de uma teoria geral dos campos. Assim, o presente trabalho pretende ser uma contribuio no propsito de esclarecer e fornecer pistas para localizar a origem deste conceito no que concerne contribuio de Weber para isso.

    Desse modo, num primeiro momento, seria necessrio localizar os principais elementos do aparato conceitual weberiano que formam a base sobre a qual Bourdieu se apoiar para a elaborao do seu conceito-chave. Esta base so, sem dvida, os escritos sobre sociologia da religio de Weber, apesar de este no ser propriamente um socilogo da religio e de sua teoria no intentar, pura e simplesmente, um conhecimento do prprio fenmeno religioso, mas sim uma sociologia do racionalismo, como mais tarde haveremos de concordar com a tese de Pierucci (2005). De fato, a partir da leitura do captulo dedicado sociologia da religio, no primeiro volume de Economia e Sociedade, que Bourdieu realiza a primeira elaborao clara e sistemtica do seu conceito. Procuraremos, ento, dar um panorama do que seria esta sociologia da religio e o que de fato perseguido com ela.

    O segundo ponto se voltar propriamente para a elaborao do conceito de campo em Bourdieu, procurando traar a leitura que este fez da sociologia da religio de Weber, mostrando as rupturas e as interpretaes que faz desta no intuito de elaborar o seu conceito. Situar a inteno de Bourdieu ao formular o conceito de campo, no sentido de revelar as contradies e os impasses dos quais o autor procurava se desvencilhar, igualmente importante para compreender

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    esse processo de herana sociolgica.

    2. Sociologia da religio weberiana

    Para uma adequada compreenso de certos autores, faz-se necessria uma constante remisso histria de constituio da sua prpria obra, quando no da sua prpria biografia pessoal. Max Weber est, sem dvida, entre esses autores. No realizar esse movimento de compreenso da obra de um modo mais hermenutico no sentido, minimamente, de tomar notcia da histria da sua constituio pode, no caso de Weber, levar a erros grosseiros e fatais.3

    certo que para a elaborao pela primeira vez, do conceito de campo em sua forma mais sistemtica, Bourdieu parte basicamente do captulo sobre a sociologia da religio, no primeiro volume de Economia e Sociedade, alm de, minoritariamente, outros textos da mesma obra (Bourdieu, 2005b: 80). H de se notar, porm, que o conceito de campo claramente tributrio da teoria da autonomizao e da racionalizao das esferas de valor de Weber4. Apesar de esse tema estar evidentemente presente na sua conceituao, estranho o fato 3. Para notcia da obra de Weber recorremos ao texto de Friedrich H. Tenbruck: Max Webers Werk - 1975. Mais popular a traduo inglesa deste artigo, que data de 1980 e foi publicada no British Journal of Sociology: The Problem of Thematic Unity in the Works of Max Weber, que d uma verdadeira virada nos estudos sobre Weber na metade da dcada de 70, ao retirar o foco de Economia e Sociedade como sendo a Hauptwerk weberiana. Tambm tomamos por base o livro de Antnio Flvio Pierucci sobre o conceito de desencantamento do mundo em Weber: O Desencantamento do Mundo: todos os passos do conceito em Max Weber. So Paulo: Editora 34, 2005.4. Naturalmente, so diversas as correntes de pensamento que tiveram influncia sobre Bourdieu e, por conseguinte, sobre a formulao do seu conceito de campo. Vale lembrar que Bourdieu tratado como um autor de sntese pela histria da sociologia, de modo que necessariamente difcil e contraditrio dizer que tal ou qual autor ou corrente de pensamento foi o mais decisivo e determinante na sua obra. O que procuramos aqui mostrar quais aspectos do pensamento weberiano tiveram maior peso na elaborao sistemtica inicial do seu conceito de campo, procurando destrinchar os passos desse processo de herana sociolgica. Nesse mesmo conceito, podemos entrever a influncia importante de outras correntes de pensamento. Por exemplo, o aspecto das lutas e disputas que fazem parte da dinmica dos campos no poderia deixar de remeter a Marx e, por conseguinte, aos economistas ingleses, apesar da noo de luta j estar fortemente presente na ontologia weberiana. Ou o dilogo com a tradio fenomenolgica, principalmente na figura de Husserl, fundamental para a elaborao do conceito de doxa basicamente o consenso que rege o campo em determinado momento histrico que Bourdieu desenvolver na sua maturidade intelectual, principalmente no livro Meditaes Pascalianas.

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    de que Bourdieu, no artigo sobre a interpretao da teoria da religio de Max Weber, como veremos mais frente, no faa referncia explcita aos escritos em que essa teoria da autonomizao est exposta de maneira mais madura e sistematizada na obra de Weber: a Considerao Intermediria.5 Juntamente com os ensaios A psicologia social das religies mundiais6 , Cincia como vocao7 e a Introduo do autor8 , esses trabalhos constituem o quarteto de ouro dos ensaios terico-reflexivos de Weber (PIERUCCI, 2005: 90). nesses escritos que se encontra o cerne da sua teoria da racionalizao e da autonomizao das esferas de valor.

    O impulso que levou Weber a dedicar uma parte bastante considervel da sua obra ao estudo sistemtico e histrico-comparativo das principais religies mundiais no foi apenas o interesse estritamente sociolgico pelo fenmeno religioso. O estudo das religies serviu, antes, como um instrumento para compreender um fenmeno, religioso em sua origem, mas que se autonomiza em relao a ela e se transforma em um processo muito mais amplo.

    O que Weber tem em vista, portanto, nos estudos comparativos de sociologia da religio, o prprio processo de racionalizao, em sua forma ocidental

    5. Die Zwischenbetrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen religiser Weltablehnung. Escrito em 1913 e publicado, sem alteraes, originalmente, em 1915, no Archiv fr Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (revista dirigida por Weber e Sombart), entre os ensaios sobre as ticas religiosas da China e da ndia. Este escrito possui, na verdade, trs verses, segundo Pierucci (2005: 137): a primeira, j referida, publicada no Archiv em 1915, uma segunda, e a terceira, como captulo final do primeiro volume dos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religio - 3 volumes - (Gesammelte Aufstze zur Religionssoziologie (GARS) 3 Bnde- , no qual aparece tambm a importantssima segunda verso da tica Protestante e o Esprito do Capitalismo. Apenas nas duas ltimas verses que Weber acrescenta o vocbulo teoria ao ttulo do ensaio. A traduo para o portugus ficou: Rejeies Religiosas do Mundo e suas Direes (citado nas referncias), enquanto uma traduo completa, ao p da letra, seria: Considerao Intermediria: nveis e direes da rejeio religiosa do mundo. Ao longo deste trabalho vamos nos referir a este texto como Considerao intermediria, seu nome original. 6. Escrita em 1913, , na verdade, uma introduo (Einleitung) a uma srie de estudos publicados por Weber no Archiv, em outubro de 1915, sob o ttulo de tica Econmica das Religies Mundiais (Wirtsschaftsethik der Weltreligionen). Aparece no Brasil na coletnea de escritos Ensaios de Sociologia.7. Wissenschaft als Beruf. Conferncia realizada em 1917, em Munique (publicada em 1919).8. Vorbemerkung (Introduo do autor). Trata-se da introduo geral de Weber aos Ensaios Reunidos de Sociologia da Religio (ERSR - GARS) (1920). Frequentemente publicada no Brasil como introduo tica Protestante e o Esprito do Capitalismo.

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    especfica. Pierucci destaca bem esse ponto no seu elucidativo passo a passo, do conceito de desencantamento do mundo na obra de Weber (PIERUCCI, 2005). Como anuncia Weber na Considerao Intermediria: Antes de mais nada, uma busca como esta em Sociologia da Religio deve e quer ser ao mesmo tempo uma contribuio tipologia e sociologia do prprio racionalismo (WEBER apud PIERUCCI, 2005: 17 e ss). , portanto, na inteno de rastrear em sua origem e desenvolvimento o processo de racionalizao - em sua peculiar vertente ocidental - e o paralelo processo de desencantamento do mundo que Weber dedica boa parte do seu projeto intelectual ao estudo comparativo-sistemtico das religies mundiais9.

    O estudo da esfera religiosa privilegiado por Weber na sua busca obsessiva pela explicao da origem do racionalismo ocidental, pois nessa esfera que se d a produo do sentido, ou seja, a esfera que prope uma explicao racional desde a sua origem, em contraposio explicao mgica - sobre os problemas e males da existncia e do mundo. Como esfera de produo de sentido, , por conseguinte, a esfera que possui maior poder de manipulao, inculcao, alterao, numa palavra, de influncia sobre a conduta de vida individual. A explicao mgica j disponibiliza uma explicao para a origem dos males do mundo, mas no da forma racional e desencantada que a explicao religiosa o faz: uma das diferenas fundamentais o corpo de funcionrios especializados de que esta dispe. A explicao religiosa (teodiceia) mais racional, portanto, em sua essncia que a explicao mgica vem atender, desta maneira, essencialmente, s demandas da necessidade de explicaes sobre a origem do mal do mundo e do sofrimento10.

    9. Desse modo, no Economia e Sociedade a obra principal de Weber, mas, sim, parece que se deve dar mais ateno aos seus Ensaios Reunidos de Sociologia da Religio (GARS), cuja edio e organizao se dedicava quando da sua morte (1920). Nesse sentido, o texto de Friedrich H. Tenbruck - supracitado - contribui enormemente para apagar o erro, muito comum at a poca, de considerar Economia e Sociedade como a Hauptwerk de Weber. Economia e Sociedade , muito mais, um compndio sistemtico de sociologia encharcado de conhecimento historiogrfico -, o qual no necessariamente deve ser visto como obra principal e como centro de uma possvel unidade temtica da obra de Weber. Muito mais sentido tem, de fato, ver nos GARS a reunio dos esforos de uma vida inteira e entender a teoria de Weber na direo de uma teoria geral do processo de desencantamento do mundo.10. Ver, a este respeito: Weber, 2002b: 191 e ss. Especialmente ilustrativo o trecho: Tratando o sofrimento como sintoma de desagrado aos olhos dos deuses e como um sinal de culpa secreta, a religio

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    Apesar de Bourdieu no fazer, no texto que trataremos abaixo, referncia explcita teoria da autonomizao das esferas de valor de Weber, este tpico central para a gnese do conceito de campo. Neste texto intermedirio (pois o ensaio Considerao Intermediria foi, de fato, publicado originalmente entre os ensaios sobre o confucionismo e sobre o hindusmo na srie de ensaios reunidos sob o ttulo tica Econmica das Religies Mundiais), Weber desenvolve da melhor maneira a teoria da racionalizao e da autonomizao das esferas de valor. Em busca dos motivos que originaram as ticas religiosas de rejeio do mundo e de quais as possveis direes que tomaram, Weber faz uma anlise das tenses especficas de cada esfera de valor com as ticas religiosas das principais religies mundiais.

    O elemento bsico que orienta essa empreitada o fato de que as religies de salvao, ou seja, todas as religies que prometem a seus fiis a libertao do sofrimento (WEBER, 2002b:229), esto em tenso com as ordens e valores do mundo 11. s diferentes ticas religiosas correspondem, segundo Weber, modos diferentes de busca de salvao. Esses tipos de busca podem ser classificados em dois, a saber, a busca mstica pela salvao e a busca asctica pela salvao. Essa tipologia das buscas de salvao pelas vias mstica ou asctica fundamental na relao de maior ou menor rejeio das ticas religiosas com os valores especficos de cada esfera de valor, havendo de se considerar que essa tenso, assinala Weber, foi maior tanto mais as religies foram verdadeiras religies atendia psicologicamente a uma necessidade muito geral. Os afortunados raramente se contentam com o fato de serem afortunados. Alm disso, necessitam saber que tm o direito sua boa sorte. Desejam ser convencidos de que a merecem e, acima de tudo, que a merecem em comparao com os outros. Desejam acreditar que os menos afortunados tambm esto recebendo o que merecem. A boa fortuna deseja, assim, legitimar-se (WEBER, 2002a: 192). O tpico da funo da religio na legitimao das desigualdades sociais (explicao racional baseada em argumentos extraterrenos) j se insinua aqui em Weber; tpico que ser bem caro a Bourdieu tambm na sua anlise do campo religioso, como pontuamos mais frente. 11. Tomamos como certo o pressuposto de que uma grande frao, especialmente importante para o desenvolvimento histrico, de todos os casos de religies profticas e redentoras viveu no s num estado agudo como permanente de tenso em relao com o mundo e suas ordens (Weber, 2002b: 229). E ainda, de forma mais reveladora: A religio da fraternidade sempre se chocou com as ordens e valores deste mundo, e quanto mais coerentemente as suas exigncias foram levadas prtica, tanto mais agudo foi o choque. A diviso tornou-se habitualmente mais ampla na medida em que os valores do mundo foram racionalizados e sublimados em termos de suas prprias leis. E isso o que importa, aqui (WEBER, 2002b: 231). Grifo nosso.

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    de salvao, assim como foi tanto maior quanto mais racional foi a tica em princpio e quanto mais ela se tenha orientado para valores sagrados interiores como meios de salvao (WEBER, 2002b:229).

    A chave para a compreenso do processo de autonomizao das esferas de valor est, portanto, nessa tenso existente que se torna cada vez mais aguda quanto mais o processo de racionalizao avana - entre a tica religiosa e as esferas de valor. Assim formula Weber:

    Na verdade, quanto mais avanou a racionalizao e sublimao da posse exterior e interior das coisas mundanas no seu sentido mais amplo tanto mais forte tornou-se a tenso, por parte da religio, pois a racionalizao e sublimao consciente das relaes do homem com as vrias esferas de valores, exteriores e interiores, bem como religiosas e seculares, pressionaram no sentido de tornar consciente a autonomia interior e lcita das esferas individuais, permitindo, com isso, que elas se inclinem para as tenses que permanecem ocultas na relao, originalmente ingnua, com o mundo exterior. Isso resulta, de modo geral, da evoluo dos valores do mundo interior e do mundo exterior no sentido do esforo consciente, e da sublimao pelo conhecimento. Esta conseqncia muito importante para a histria da religio (WEBER, 2002b:230).

    Aqui retratado o processo de perda de espao da tica religiosa na regulao e no direcionamento da conduta de vida individual, que ocorre cada vez de modo mais crescente e intenso com o advento da modernidade. O pathos da religio, que produzia a unidade das vrias esferas da conduta de vida, implodido, e o indivduo moderno obrigado a se ver defrontado com os diversos ethos das vrias esferas de conduta da vida, os quais, como aponta Weber no ensaio em questo, no s no mais fazem referncia ao ethos especificamente religioso, mas esto em constante e aguda tenso com ele. A exemplo do caso do aumento da tenso entre a esfera poltica e a esfera religiosa com o advento do Estado burocrtico, o qual possui suas prprias leis de funcionamento e regulao e cujo fim ltimo a salvaguarda da distribuio interna e externa de poder (regido

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    basicamente pelo pragmatismo da raison dtat) - fim este que vai de encontro aos preceitos de qualquer religio universalista de salvao (WEBER, 2002b: 233).

    A modernidade inaugura, portanto, um novo politesmo de valores, no qual no mais somente os deuses puramente religiosos entram em confronto. Esse crescente processo de racionalizao tem a ver com o desenvolvimento de um peculiar ethos racional, fenmeno tpico do ocidente, e a localizao da sua origem - que Weber, em seus escritos finais, remonta ao judasmo antigo e a explicao do seu desenvolvimento constituem o centro da empreitada final weberiana. Mas no cabe continuar explorando aqui esse ponto que pode se tornar to amplo. O ponto que deve ser fixado o do processo crescente de racionalizao e de autonomizao das diversas esferas de conduta da vida. Pois este o tpico especialmente importante para a elaborao do conceito de campo de Bourdieu, especificamente no tocante propriedade do campo que o leva rejeio e negao sublimada das demandas especficas dos outros campos mormente, em se tratando do campo de produo cultural, negao das demandas do campo poltico e econmico -, sendo o seu funcionamento e desenvolvimento geridos a partir de leis prprias. Nesse sentido, na anlise da esfera esttica - que, ao lado da esfera ertica, aquela que tende a possuir maior tenso com os valores das ticas religiosas de salvao , Weber escreve o seguinte:

    O desenvolvimento do intelectualismo e da racionalizao da vida modifica essa situao [de uma relao harmoniosa da arte com a tica religiosa]. Nessas condies, a arte torna-se um cosmo de valores independentes, percebidos de forma cada vez mais consciente, que existem por si mesmos. A arte assume a funo de uma salvao neste mundo, no importa como isto possa ser interpretado. Proporciona uma salvao das rotinas da vida, e especialmente das crescentes presses do racionalismo terico e prtico (WEBER, 2002b:234).

    Nesta passagem brilhante, alm da sedutora - e possvel, pensamos - leitura da existncia de um grmen da teoria adorniana da arte como lcus reduzido de emancipao na sociedade administrada (no trecho proporciona uma salvao

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    das rotinas da vida e, especialmente, das crescentes presses do racionalismo terico e prtico), podemos entrever claramente, tambm em grmen, por assim dizer, boa parte da teoria sobre o processo de autonomizao do campo artstico europeu no sculo XIX, como viria a ser formulado por Bourdieu no clssico artigo O Mercado de Bens Simblicos12 , particularmente o trecho: a arte torna-se um cosmo de valores independentes, percebidos de forma cada vez mais consciente, que existem por si mesmos; ora, nada mais temos aqui do que uma das mais importantes propriedades do conceito de campo, como ser formulado por Bourdieu.

    3. Conceito de campo: a herana sociolgica

    Passamos, agora, a analisar propriamente a leitura que Bourdieu empreendeu da obra weberiana na formulao do seu conceito de campo. Aqui, a inteno localizar em que aspectos Weber foi determinante na formulao do conceito visto que este tambm naturalmente tributrio de outras tradies de pensamento sociolgico e, questo inseparvel desta, quais as oposies e os dilemas que Bourdieu pretendeu superar com essa ferramenta terica.

    Acompanhando o processo de construo do conceito de campo, percebemos um amadurecimento entre a primeira vez em que o conceito aparece na obra de Bourdieu e a primeira vez em que surge em sua forma sistematizada, enquanto ferramenta terica geral. Uma olhada na cronologia das obras ajuda a acompanhar melhor esse processo de amadurecimento. O conceito surge pela primeira vez no artigo Projet crateur et champ intellectuel13, texto concludo em 1965, que foi retocado e que no ano seguinte, aparece na Les Temps Modernes com o ttulo invertido, como ficou mais conhecido: Champ intellectuel et projet crateur14. publicado no Mxico em 1967 e aparece no Brasil em 1968.

    12. Texto publicado em 1971 a verso mimeografada na qual se baseia a traduo brasileira de 1970: Le March des Biens Symboliques. Lanne sociologique (Paris), Ano 22 (TROISIME srie), p. 49-126. Temos neste artigo o uso ostensivo do conceito de campo de modo bem desenvolvido, mas tomamos por base, para a nossa presente tentativa de realizar, na parte que cabe a Max Weber, a gnese do conceito de campo, a primeira vez em que o prprio Bourdieu utilizou o conceito de modo sistemtico.13. Projet crateur et champ intellectuel . Paris: Centre de Sociologie Europenne, 40 pgs., mimeografado, 1965.14. Champ intellectuel et projet crateur . Les Temps Modernes (Paris), Ano 22, N. 246 (Edio

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    No entanto, a primeira vez em que o conceito de campo aparece em sua forma sistematizada no ensaio de interpretao da sociologia da religio de Max Weber, publicado em 1971 nos Archives Europennes de Sociologie, intitulado Uma Interpretao da Teoria da Religio de Max Weber15 . Ainda no mesmo ano, o campo religioso objeto de longo artigo que sistematiza ainda mais o conceito: Gnese e Estrutura do Campo Religioso, publicado na Revue Franaise de Sociologie.16 Como se v, o conceito de campo no aparece pela primeira vez no artigo sobre a teoria da religio de Weber, mas nele, vale salientar, que aparece pela primeira vez em sua forma mais sistematizada.

    Entre 1965, quando aparece pela primeira vez, e 1971, quando recebe sua forma mais sistematizada e consagrada, o conceito de campo utilizado por Bourdieu em seus artigos de maneira recorrente. Atemo-nos aqui ao artigo sobre a teoria da religio de Weber, de 1971, pelo fato de nele aparecer o conceito pela primeira vez em sua forma mais lcida e sistemtica, com suas propriedades peculiares (pensar relacional, homologia estrutural, lcus de disputa pelo monoplio do poder especfico do campo, entre outras propriedades) e suas intenes de uso. De fato, no por acaso que ao artigo sobre a interpretao da teoria da religio de Max Weber que Bourdieu faz referncia quando se trata de localizar onde o conceito foi elaborado rigorosamente pela primeira vez. Essa

    Especial Problmes du Structuralisme), pgs. 865-906, 1966. Primeira edio brasileira: Campo intelectual e projeto criador. IN: POUILLON, Jean (org.). Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. Tivemos acesso verso espanhola do texto: Campo intelectual y proyecto creador. IN: Problemas del estructuralismo. Siglo XXI: Mxico, 1967. Este texto sobre a dinmica de foras da vida intelectual europeia serviu, a bem dizer, como carto de visitas de Bourdieu na Amrica Latina, sendo de fato o primeiro texto do autor publicado no Brasil (1968). Servindo tambm de influncia admitida para Srgio Miceli que, no curiosamente, defende, em 1978, sob orientao do prprio Bourdieu, sua tese sobre a vida intelectual no Brasil no perodo 1920-45, trabalho de envergadura e que foi um grande impulso para difuso do pensamento bourdieusiano no Brasil. Para mais sobre a recepo de Bourdieu no Brasil, ver artigo sobre a recepo e difuso do conceito de campo literrio no Brasil: Frota e Passiani (2009: 23 e ss).15. Une interprtation de la thorie de la religion selon Max Weber . Archives Europennes de Sociologie. XII, 1, 1971. Edio brasileira: Apndice I: uma interpretao da teoria da religio de Max Weber. IN: BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simblicas. Org. Srgio Miceli. So Paulo: Perspectiva. A primeira edio desta coletnea brasileira de 1974.16. Gense et structure du champ religieux . Revue Franaise de Sociologie. 12-3, pp. 295-334, 1971. Edio brasileira: Gnese e Estrutura do Campo Religioso. In: BOURDIEU, P. A Economia das Trocas Simblicas. Org. Srgio Miceli. So Paulo: Perspectiva.

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    mais uma prova cabal de que Weber foi o autor mais importante na formao do conceito de campo. O prprio Bourdieu, em artigo de 1985, d notcia da gnese do conceito:

    Para construir realmente a noo de campo, foi preciso passar para alm da primeira tentativa de anlise do campo intelectual [o artigo de 1966] como universo relativamente autnomo de relaes especficas: com efeito, as relaes imediatamente visveis entre os agentes envolvidos na vida intelectual sobretudo as interaes entre os autores e os editores tinham disfarado as relaes objetivas entre as posies ocupadas por esses agentes, que determinam a forma de tais interaes. Foi assim que a primeira elaborao rigorosa da noo saiu de uma leitura do captulo de Wirtsschaft und Gesellschaft consagrado sociologia religiosa, leitura que, dominada pela referncia ao campo intelectual, nada tinha de comentrio escolar. Com efeito, mediante uma crtica da viso interacionista das relaes entre os agentes religiosos proposta por Weber que implicava uma crtica retrospectiva da minha representao inicial do campo intelectual, eu propunha uma construo do campo religioso como estrutura de relaes objetivas que pudesse explicar a forma concreta das interaes que Max Weber descrevia em forma de uma tipologia realista. Nada mais restava a fazer do que pr a funcionar o instrumento de pensamento assim elaborado para descobrir, aplicando-o a domnios diferentes, no s as propriedades especficas de cada campo alta costura, literatura, filosofia, poltica, etc. mas tambm as invariantes reveladas pela comparao dos diferentes universos tratados como casos particulares do possvel (BOURDIEU, 2007b: 65-6)17.

    17. The genesis of the concepts of Habitus and Field. Sociocriticism (Pittsburgh, Montpellier), Theories and Perspectives II, n 2, dezembro de 1985, pp. 11-24. Edio em portugus: A gnese dos conceitos de habitus e de campo. In: BOURDIEU, Pierre. O Poder Simblico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

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    Ao que tudo indica, ento somente no artigo de 1971 que Bourdieu se d conta de que pode aplicar essa ferramenta terica, descoberta na anlise da vida intelectual francesa e europeia, s outras esferas - para falar com Weber - da realidade social: a partir da, portanto, que a noo de campo se transforma em conceito geral, com propriedades gerais especficas, apesar de todas as dificuldades de generalizao, como apontaremos mais frente18. No artigo de 1971 - Uma interpretao da teoria da religio de Max Weber -, com o conceito pela primeira vez sistematizado, vemos que Bourdieu se baseia em alguns captulos de Economia e Sociedade para realizar a sua interpretao, mormente no captulo V do primeiro volume, dedicado sociologia da religio. Como notamos acima, curioso que, sendo o conceito de campo to tributrio da teoria weberiana da autonomizao das esferas de valor, Bourdieu no faa referncia, neste ensaio, aos principais textos tericos de Weber sobre o assunto, a exemplo da famosa Considerao Intermediria (Die Zwischenbetrachtung). No entanto, sabemos que esse ensaio, juntamente com o A Psicologia Social das Religies Mundiais (Einleitung), constitui pea central para a compreenso da teoria weberiana da racionalizao e da autonomizao das esferas de valor. Investigamos agora, propriamente, a relao do conceito em sua forma sistematizada com a teoria weberiana exposta nos ensaios sobre sociologia da religio supracitados.

    Observando como surge o conceito - agora realizado na cabea do autor como ferramenta terica geral para investigao do mundo social -, vale

    18. J em sua primeira apario, a noo de campo surge bem encorpada e com muitas das propriedades que mais tarde formaro a base do conceito: Irreductible a un simple agregado de agentes aislados, a un conjunto de adiciones de elementos simplemente yuxtapuestos, el campo intelectual, a la manera de un campo magntico, constituye un sistema de lneas de fuerza: esto es, los agentes o sistemas de agentes que forman parte de l pueden describirse como fuerzas que, al surgir, se oponen y se agregan, confirindole su estructura especfica en un momento dado del tiempo. Por otra parte, cada uno de ellos est determinado por su pertenencia a este campo: en efecto, debe a la posicin particular que ocupa en l propiedades de posicin irreductibles a las propiedades intrnsecas y, en particular, un tipo determinado de participacin en el campo cultural, como sistema de las relaciones entre los temas y los problemas y, por ello, un tipo determinado de inconsciente cultural, al mismo tiempo que est intrnsecamente dotado de lo que se llamar un peso funcional, porque su masapropia, es decir, su poder (o mejor dicho, su autoridad) en el campo no puede definirse independientemente de su posicin en l (BOURDIEU, 1967: 135). Vale notar que j neste artigo se encontram referncias sociologia da religio de Weber e a outros conceitos caros a esse autor mais uma prova de que j as ideias para o uso primeiro do conceito de campo foram tributrias de interpretao da obra de Weber.

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    a pena citar a passagem em que ele aparece pela primeira vez, em sua forma sistematizada, no texto de 1971. Aps apontar, de acordo como o seu programa inicial, que no seria muito difcil realizar uma leitura interacionista dos escritos tericos de Weber, Bourdieu escreve:

    Todavia, a fim de eliminar totalmente as dificuldades encontradas por Max Weber, necessrio operar uma segunda ruptura e subordinar a anlise da lgica das interaes que podem se estabelecer entre agentes diretamente defrontados e, particularmente, as estratgias que os opem construo da estrutura das relaes objetivas entre as posies que ocupam no campo religioso, estrutura que determina a forma que podem tomar suas interaes e a representao que delas possam ter (BOURDIEU, 2005b: 82).

    Nesse ponto, percebemos o centro do movimento da leitura (interpretao) que Bourdieu faz da dinmica dos agentes religiosos como tratado por Weber. Esse movimento vai no sentido de acentuar o carter relacional, no sentido de disputas e lutas, na dinmica desses agentes, sublinhando as disputas pelo poder especfico do campo em questo (religioso) nas suas aes e discursos sobre algo que quer ser natural (esfera do sagrado e extramundano) e, principalmente, o fato de que esses agentes esto situados num espao estruturado em certa medida por eles (o campo) - no sentido de composio e aes -, mas que estrutura e determina suas interaes e as representaes que delas esses agentes venham ter. Esse um ponto fundamental no conceito de campo de Bourdieu. A introduo desse elemento mais relacional na leitura bourdieusiana da dinmica dos agentes religiosos fica mais bem esclarecida num outro ponto da interpretao de Bourdieu. H um fator crucial que este critica em Weber e que aponta de maneira decisiva para como Bourdieu vai entender a dinmica dos agentes da esfera religiosa de modo mais relacional e, portanto, de maneira mais sociolgica. Esse ponto se refere crtica bourdieusiana do conceito de carisma em Weber 19.

    19. Esta crtica feita explicitamente em Bourdieu (2005b: 92 e ss). Miceli (2005: LIII e ss) faz referncia a ela em seu comentrio.

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    Em Weber, o carisma, pea central na sua teoria, surge como uma relao vivida (no sentido de Erlebnis) do pblico com o personagem carismtico. Segundo ele, por carisma deve-se entender uma qualidade considerada como extraordinria [...] que atribuda a uma pessoa. Esta considerada como dotada de foras ou de propriedades sobrenaturais ou sobre-humanas, ou, pelo menos, excepcionais (WEBER apud BOURDIEU, 2005b: 92. Grifos de Bourdieu).20 A crtica vai no sentido de que o conceito teria sido naturalizado por Weber, tornando-se um puro ato de reconhecimento (BOURDIEU, 2005b: 92).

    Bourdieu, no intuito de apontar o duplo aspecto existente na apario da figura carismtica - tomando Durkheim de emprstimo -, pensa que necessrio entender este conceito de modo mais relacional. Ele se preocupa em salientar, desse modo, a necessidade de se pensar o profeta (figura carismtica) tendo como foco a sua relao com os leigos (aos quais direcionada a mensagem religiosa) e o corpo de sacerdotes (contra o qual o profeta se ope) com a devida nfase nas disputas que a se travam -, visto que, caso assim no se faa, no se poder resolver o problema da acumulao inicial do capital de poder simblico que Max Weber resolvia pela invocao (paradoxal, em Weber) da natureza (BOURDIEU, 2005b:93). Apesar de Weber no substantivar o carisma afinal, para ele, o importante como o lder carismtico reconhecido pelos adeptos (dominados carismticos) -, a questo que Bourdieu parece querer resolver em Weber a do surgimento desse lder carismtico (o problema da acumulao inicial do capital de poder simblico), que parece ficar mais bem elucidada quando esse lder situado no campo do qual emerge e contra o qual se constitui. De fato, a compreenso da vida social como luta j central na ontologia weberiana, disso no h dvida. O que Bourdieu faz se esforar por mostrar a dinmica dessas lutas, situando-as no espao social especfico no qual

    20. Nesse ponto, ilustrativo colocar a formulao completa do conceito de carisma: Debe entenderse por carisma la cualidad que pasa por extraordinaria (condicionado mgicamente em su origen, lo mismo se si trata de profetas que de hechiceros, rbitros, jefes de cacera o caudillos militares), de una personalidad, por cuya virtud se la considera em posesin de fuerzas sobrenaturales o sobrehumanas o por lo menos especficamente extracotidianas e no asequibles a cualquier outro -, o como enviados del dios, o como exemplar y, en consecuencia, como jefe, caudillo, guia o lder. El modo como habra de valorarse objetivamente la cualidad en cuestin, sea desde um ponto de vista tico, esttico u outro cualquiera, es cosa en todo lo indiferente en lo que atae nuestro concepto, pues lo que importa es cmo se valora por los dominados carismticos, por los adeptos (WEBER, 1974:193).

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    elas ocorrem o campo, espcie de espao onipresente no qual todo agente deve necessariamente se situar (e ser situado), mesmo que por referncia negativa a ele -, deixando claro, assim, o carter relacional - portanto social - de toda agncia humana.

    Dessa maneira, torna-se claro o ponto fundamental da anlise bourdieusiana, e chave para a compreenso adequada do seu conceito de campo, qual seja o da relao dos agentes com o campo: o agente institui uma posio no campo ao entrar nele, mas que s pode surgir dentro do campo porque havia um campo (pr)disposto em forma de aspiraes, representaes e sentimentos que existem de modo implcito ou inconsciente - ao surgimento daquela posio.21

    O elemento central, portanto, para a compreenso da leitura que Bourdieu realiza de Weber em sua primeira sistematizao do conceito de campo, consiste numa srie de crticas feitas teoria da religio de Weber (para Bourdieu, interacionista), procurando ressaltar as disputas e oposies que permeiam a concorrncia pelo poder religioso, apenas esboado em Weber. Pois se Weber taxado de interacionista por no possuir os instrumentos de pensamento para que pudesse formular de modo sistemtico os princpios que adotava, tambm nele prprio, segundo Bourdieu, que se pode encontrar a chave para fugir das duas explicaes opostas e reducionistas para a elucidao do fenmeno religioso: por um lado, o entendimento da mensagem religiosa como aparecimento sagrado e, por outro, o seu entendimento como reflexo direto das condies sociais e econmicas (BOURDIEU, 2005a:81). por isso que Weber o escolhido na leitura de Bourdieu para sistematizar o seu conceito, pois nele j se encontravam, sua maneira, os elementos para a sntese entre explicaes polarizadas que o conceito de campo pretende operar.

    O movimento que Bourdieu faz, ento, o de situar esses agentes num campo -estrutura estruturada e estruturante - e de direcionar interaes, que

    21. O profeta traz, ao nvel do discurso ou da conduta exemplar, representaes, sentimentos e aspiraes que j existiam antes dele, embora de modo implcito, semiconsciente ou inconsciente. (BOURDIEU, 2005b:92). E ainda: E, para acabar de vez com a representao do carisma como uma propriedade ligada natureza de um indivduo singular, seria necessrio, ainda, determinar, em cada caso particular, as caractersticas sociologicamente pertinentes de uma biografia particular que fazem com que um determinado indivduo se encontre socialmente predisposto a sentir e a exprimir, com uma fora e coerncia particulares, disposies ticas ou polticas, j presentes, de modo implcito, em todos os membros da classe ou grupo de seus destinatrios (BOURDIEU, 2005b: 93-4).

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    pareciam dispersas em Weber, no sentido de desvelar os interesses (muitas vezes inconscientes e que so especficos para cada campo, como o interesse religioso para o caso em questo) dos agentes no jogo de disputas pelo monoplio do poder legtimo de modificar em bases duradouras a viso de mundo e a prtica dos leigos.

    Justamente por se tratar da esfera da produo do sentido da vida, da explicao das mazelas do mundo e do sofrimento, essas explicaes devem estar, ao mximo, aparentemente calcadas na mais simples naturalidade dos fatos. A negao que o campo religioso permanentemente realiza dos determinantes propriamente socioeconmicos a exemplo da sua funo especfica de legitimao social, j farejada e bem exposta por Weber - levada a um grau mais elevado por Bourdieu: Na medida em que os interesses religiosos tm por princpio a necessidade de justificar a existncia numa dada posio social, eles so diretamente determinados pela posio social (BOURDIEU, 2005a:86).

    Aqui, chegamos a uma caracterstica crucial para o conceito em questo, a saber, aquela que diz respeito especificidade das disputas que ocorrem em cada campo: o campo religioso deve sua especificidade ao fato de que busca o monoplio do exerccio legtimo do poder de modificar em bases duradouras a prtica e a viso de mundo dos leigos, realizando o inculcamento de um habitus religioso particular (BOURDIEU, 2005b:88). Devido ao seu carter emprico-operacional, vale dizer, intuitivo, cada campo possui propriedades especficas que no so observadas nos outros campos que compem o mundo social. Da a dificuldade na generalizao do conceito, no sentido de uma teoria geral dos campos. Essas especificidades dizem respeito ao interesse, como dito, propriamente peculiar ao campo, como o interesse religioso em questo, que leva os leigos a esperar de certas categorias de agentes que realizem aes mgicas ou religiosas, aes fundamentalmente mundanas e prticas, realizadas a fim de que tudo corra bem para ti e para que vivas muito bem na terra (BOURDIEU, 2005b: 81-2)22. 22. Ou, formulado de maneira mais geral: Um campo se define entre outras coisas atravs da definio dos objetos de disputas e dos interesses especficos que so irredutveis aos objetos de disputas e aos interesses prprios de outros campos (no se poderia motivar um filsofo com questes prprias dos gegrafos) e que no so percebidos por quem no foi formado para entrar neste campo (cada categoria de interesses implica indiferena em relao a outros interesses, a outros investimentos, destinados assim a serem percebidos como absurdos, insensatos, ou nobres, desinteressados) (BOURDIEU, 1983:120).

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    Uma propriedade que deve se apresentar em todos os campos a de autonomia relativa pelo menos em relao s condies econmicas. Para que se possa falar de um campo religioso, por exemplo, necessrio que se observem algumas condies. A principal delas a ocorrncia de um processo de sistematizao e de moralizao das prticas e das representaes religiosas, correspondente ao processo de constituio de instncias especificamente organizadas com vistas produo, reproduo e difuso dos bens religiosos (BOURDIEU, 2005a:37). Trata-se da necessidade de constituio de um verdadeiro corpus de funcionrios especializados e na produo e difuso das mensagens religiosas.

    Em outra caracterstica fundamental do campo, central para o entendimento da sua lgica, a influncia weberiana novamente essencial e se faz notvel. Esta uma definio que pode ser estendida a todos os campos e que claramente tributria da definio weberiana de Estado. Trata-se da definio do campo como lcus da luta pelo monoplio do poder legtimo especfico ao campo (que est ligado ao interesse especfico vigente no campo). Nesse sentido, a definio da dinmica da concorrncia pelo poder religioso no campo religioso no deixa dvidas de que o conceito uma herana weberiana:

    A concorrncia pelo poder religioso deve sua especificidade (em relao, por exemplo, concorrncia que se estabelece no campo poltico) ao fato de que seu alvo reside no monoplio do exerccio legtimo do poder de modificar em bases duradouras e em profundidade a prtica e a viso do mundo dos leigos, impondo-lhes e inculcando-lhes um habitus religioso particular, isto , uma disposio duradoura, generalizada e transfervel de agir e de pensar conforme os princpios de uma viso (quase) sistemtica do mundo e da existncia (BOURDIEU, 2005b:88).

    A definio de Estado de Weber foi, portanto, condio sine qua non para a elaborao bourdieusiana de uma das propriedades gerais do campo. Isso porque, como aponta Miceli, tanto para Weber quanto para Bourdieu, a violncia e a fora constituem a ltima ratio do sistema de dominao, o que no impede a nfase concedida por ambos problemtica do simbolismo de que se reveste

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    toda e qualquer dominao (MICELI, 2005: LI). Colocar a nfase nas disputas de doao de sentido - as quais, em suma, caracterizam a dinmica dos campos, disputas estas que no ocorrem somente no plano material, do mercado, mas sim em todas as esferas em que o poder simblico est envolvido - , de fato, apropriar-se e levar a um grau mais elevado uma sociologia da cultura weberiana para a qual a cultura de uma sociedade deve ser construda como resultado da hegemonia de um grupo e dos conflitos entre as foras mestras no curso de seu desenvolvimento histrico (MICELI, 2005:LII).

    Mais tarde, no resultado de um amplo estudo - realizado na dcada de sessenta, na Frana, e que resultou na elaborao da Distino: crtica social do julgamento do gosto, essa, sim, talvez a Hauptwerk de Bourdieu23 - sobre a relao entre os gostos e as preferncias dos indivduos (nos mais variados domnios da cultura, como vestirio, lazer, cinema, msica, teatro, esportes, etc.) e sua posio no espao social, Bourdieu introduz um novo elemento na caracterizao do conceito de campo, de modo que essa luta pelo poder especfico, no mbito dos campos de produo cultural, entendida cada vez mais em termos de uma luta pela distino, cuja lgica dialtica um dos princpios de funcionamento do campo.

    Na pesquisa da qual A distino resultado, a viso dos campos como espaos sociais relativamente autnomos regidos por leis prprias, mas que so estruturalmente homlogos uns aos outros, bem presente. Nesse sentido, Bourdieu entende que toda formao social se estrutura atravs de uma srie de campos organizados hierarquicamente (campo poltico, econmico, cultural, intelectual, campo da produo cultural), cada um deles definido como um espao estruturado com suas prprias leis, seu funcionamento e suas relaes de fora. Cada campo relativamente autnomo, mas estruturalmente homlogo aos outros. Sua estrutura, em dado momento, determinada pelas relaes entre as posies que os agentes nela ocupam. O conceito deve ser entendido, portanto,

    23. La Distinction: critique sociale du jugement , foi publicado em 1979 em Paris (Les Editions de Minuit). A primeira traduo brasileira apareceu com atraso, apenas em 2006 (pela EDUSP, Editora Zouk). A maior parte dos escritos de Bourdieu vinha sendo publicada em forma de artigos, principalmente aps a fundao da sua revista em 1975 (a Actes de la Recherche en Sciences Sociales). Este livro considerado a obra principal de Bourdieu, pois rene os esforos de anos de pesquisa realizadas com a ajuda de sua equipe na Frana, com amplo material emprico. Conceitos que vinham sendo utilizados em seus estudos, tais como habitus, campo e capital, adquirem neste livro forma mais geral e madura.

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    como um conceito dinmico, na medida em que mudanas na posio de um dos agentes provoca, necessariamente, uma mudana na sua estrutura. Pode-se claramente observar, no tratamento da realidade social a partir de esferas que se autonomizam, mas que se relacionam e vivem em tenso umas com as outras, como feito por Weber, uma teoria do mundo social inter-relacionado com espaos menores que so relativamente autnomos e regidos por leis prprias, como detalhamos acima. Essa uma maneira de costurar a realidade sem cair nos reducionismos que se colocam entre a explicao ingnua de um fenmeno e a sua submisso direta s determinaes econmicas e sociais.

    Devido sua natureza prtico-operacional, tendo surgido primariamente da necessidade prtica de dar uma direo pesquisa (BOURDIEU, 2007b:64), o conceito de campo deve ser utilizado na anlise particular, caso a caso, explica Bourdieu (1983:119 e ss)24. Mas isso no leva impossibilidade de se tentar formular uma teoria geral dos campos, tarefa que o prprio Bourdieu deixou incompleta. pelo fato de que o campo deve parte de suas propriedades ao confronto de suas propriedades gerais com cada realidade especfica que se colocam os obstculos formulao de uma teoria geral. As variveis especficas a cada campo, a exemplo do interesse e do capital especficos, alm das variveis nacionais, devem ser levadas em considerao. A conexo com o conceito de tipos ideais de Weber no poderia deixar de ser lembrada e esboada, o qual possui tambm propriedades gerais, mas que s se torna vlido no confronto com a realidade social a ser pesquisada - ponto que poderia ser explorado em outro trabalho.

    4. Concluso

    Seria necessrio acompanhar a evoluo da obra de Bourdieu, praticamente texto a texto, para que se pudesse realizar uma espcie de arqueologia mais percuciente e uma anlise da progressiva evoluo do conceito de campo, um dos grandes legados de Bourdieu para a sociologia contempornea. Isso serviria como uma contribuio para a formulao de uma teoria geral dos campos.

    24. Um dos poucos lugares onde h um esboo de uma teoria geral dos campos em Bourdieu no seu artigo Algumas propriedades dos campos, palestra feita em 1976 na cole Normale Suprieure para um grupo de fillogos e historiadores da literatura.

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    Empreitada que, como vimos, o prprio Bourdieu se escusou de fazer. Aqui, delimitamos o primeiro momento em que o conceito aparece formulado em sua maneira mais sistematizada, procurando mostrar como a leitura que Bourdieu fez da obra de Weber teve a seu peso. De uma noo relativamente densa e intuitiva, como o era no artigo de 1966 sobre o campo intelectual europeu, para a primeira formulao propriamente sistemtica do conceito, no artigo de 1971 sobre a sociologia da religio de Weber, houve um bom perodo de gestao, no qual o amadurecimento da apropriao e a interpretao da obra de Weber tiveram papel determinante.

    Recebido em maro de 2012.Aprovado em maio de 2012.

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