Bragança de Miranda-Belo-Feio

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José Bragança de Miranda O retorno do Belo (2005) Num dos seus poemas em prosa Baudelaire conta que estando melancolicamente à janela se apercebera de vendedor de vidros, que apregoava a mercadoria. O poeta mandou-o subir, era um sexto andar, para lhe dizer: «Como? Não tem vidros de cor» vidros rosa, vermelhos, azuis, vidros mágicos, vidros de paraíso? Que falta de pudor! Tens a ousadia de passear nos bairros pobres e nem tens vidros que façam ver a vida bela ». E vai de lhe quebrar os vidros com um vaso, exclamando: «A vida bela! A vida bela!». A beleza ou falta dela começava a fazer os seus estragos, pois tinha-se ausentado da «pesada e suja atmosfera parisiense». Quase imperceptivelmente a beleza desertara do mundo, e agora a arte desesperava na procura de uma vida bela, que mudasse a atmosfera, que a disfarçasse pelo menos. A arte deixava de reflectir o mundo, a mimesis perdia sentido. Era preciso um vidro mágico e já não um espelho, em que o real fosse transfigurado pelos filtros da poesia, coloridos, mágicos, vidro do paraíso. O belo que dominara desde a Grécia e iluminara toda a medievalidade cristã estava a eclipsar-se. A beleza absoluta com que sonhara um Platão, de que tudo participaria estava em fuga do mundo e das coisas. Já só poderia surgir num gesto súbito ou na poesia. Ou nem aí. Os filtros mágicos que são as obras de arte rapidamente começaram a ser absorvidos pela atmosfera do mundo, e tornaram-no ainda menos respirável. O século XIX foi o de uma época obcecada não com o belo, mas com o seu desaparecimento ou com a sua captura pelos senhores do mundo, pelo dinheiro. A beleza torna-se amarga. Basta recordar Rimbaud que diz «Uma tarde, sentei a Beleza nos meus joelhos. Achei-a amarga, E injuriei-a». Não se deixou de fazer boa poesia desse desespero ou dessa amargura! Outros, como John Ruskin agarram-se à memória da beleza, expressa nas catedrais góticas e na estatuária antiga, como um náufrago a um pedaço de madeira! É nos poetas que esta sensação extrema primeiramente se concretiza. As artes, a pintura por exemplo, ainda recusará a Olímpia de Manet acusando-o de imoralidade, como considerará bárbaros os fauves. A academia vide não da memória, mas do arquivo. Os combates de Delacroix ou de Manet contra o cânone da arte era ainda uma convulsão dentro do belo, ou partindo dele. Mas o problema estava longe de ser «estético», apesar do vanguardismo aparentemente pretende-se desestiticizar a arte. Pressentia-se que, por razões algo enigmáticas, a arte se estava a tornar inconveniente para a vida. Esta tendência está claramente presente no dadaísmo e acima de tudo nesse grande metafísico que foi Marcel Duchamp que em 1919 exibe uma Mona Lisa com bigodes e cujos excessivamente famosos ready mades se pretendem absolutamente destituídos de carga estética. Por seu lado, em 1963 Robert Morris que fez acompanhar uma escultura sua de um certificado, reconhecido em notário, no qual se podia ler: «Robert Morris, sendo aquele que fez a construção em metal LITANIES ... por este meio retira da mencionada construção qualquer qualidade e conteúdo estético que possa ter». Cada novo lance cobrindo os anteriores e todos submergidos numa

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estética ,arte,simulacros, pós-modernismo

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José Bragança de Miranda O retorno do Belo (2005)

Num dos seus poemas em prosa Baudelaire conta que estando melancolicamente à janela se apercebera de vendedor de vidros, que apregoava a mercadoria. O poeta mandou-o subir, era um sexto andar, para lhe dizer: «Como? Não tem vidros de cor» vidros rosa, vermelhos, azuis, vidros mágicos, vidros de paraíso? Que falta de pudor! Tens a ousadia de passear nos bairros pobres e nem tens vidros que façam ver a vida bela». E vai de lhe quebrar os vidros com um vaso, exclamando: «A vida bela! A vida bela!». A beleza ou falta dela começava a fazer os seus estragos, pois tinha-se ausentado da «pesada e suja atmosfera parisiense». Quase imperceptivelmente a beleza desertara do mundo, e agora a arte desesperava na procura de uma vida bela, que mudasse a atmosfera, que a disfarçasse pelo menos. A arte deixava de reflectir o mundo, a mimesis perdia sentido. Era preciso um vidro mágico e já não um espelho, em que o real fosse transfigurado pelos filtros da poesia, coloridos, mágicos, vidro do paraíso.

O belo que dominara desde a Grécia e iluminara toda a medievalidade cristã estava a eclipsar-se. A beleza absoluta com que sonhara um Platão, de que tudo participaria estava em fuga do mundo e das coisas. Já só poderia surgir num gesto súbito ou na poesia. Ou nem aí. Os filtros mágicos que são as obras de arte rapidamente começaram a ser absorvidos pela atmosfera do mundo, e tornaram-no ainda menos respirável. O século XIX foi o de uma época obcecada não com o belo, mas com o seu desaparecimento ou com a sua captura pelos senhores do mundo, pelo dinheiro. A beleza torna-se amarga. Basta recordar Rimbaud que diz «Uma tarde, sentei a Beleza nos meus joelhos. – Achei-a amarga, – E injuriei-a». Não se deixou de fazer boa poesia desse desespero ou dessa amargura! Outros, como John Ruskin agarram-se à memória da beleza, expressa nas catedrais góticas e na estatuária antiga, como um náufrago a um pedaço de madeira!

É nos poetas que esta sensação extrema primeiramente se concretiza. As artes, a pintura por exemplo, ainda recusará a Olímpia de Manet acusando-o de imoralidade, como considerará bárbaros os fauves. A academia vide não da memória, mas do arquivo. Os combates de Delacroix ou de Manet contra o cânone da arte era ainda uma convulsão dentro do belo, ou partindo dele. Mas o problema estava longe de ser «estético», apesar do vanguardismo aparentemente pretende-se desestiticizar a arte. Pressentia-se que, por razões algo enigmáticas, a arte se estava a tornar inconveniente para a vida. Esta tendência está claramente presente no dadaísmo e acima de tudo nesse grande metafísico que foi Marcel Duchamp que em 1919 exibe uma Mona Lisa com bigodes e cujos excessivamente famosos ready mades se pretendem absolutamente destituídos de carga estética. Por seu lado, em 1963 Robert Morris que fez acompanhar uma escultura sua de um certificado, reconhecido em notário, no qual se podia ler: «Robert Morris, sendo aquele que fez a construção em metal LITANIES ... por este meio retira da mencionada construção qualquer qualidade e conteúdo estético que possa ter». Cada novo lance cobrindo os anteriores e todos submergidos numa

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situação em que só o desaparecimento das obras de arte poderia debelar, mas que tinha como contrapartida a transformação geral da vida em «imagens» e «sons» que tudo circundam.

O que estava em causa não era a arte, mas a atmosfera do mundo, o seu aspecto, o seu "ar" cada vez mais irrespirável. Perdida a unidade medieval, descentrada a imagem do mundo, desvanece-se a ideia de que tudo, mesmo o mais dissonante e demoníaco, fazia parte de um mesmo plano de salvação, absolutamente harmonioso e simétrico. O grotesco impera, a cidade fica pejada de fragmentos de todo o género, mas também demasiado permeável. Desaparecido o belo tudo se torna em cosmética, em ornamento, que Adolf Loos define como «crime». É isso que alimenta uma economia estética mais enigmática do que a economia política e a que faltou o seu Marx. Com o desaparecimento da beleza, ou com a sua impossibilitação, o que se perde é a possibilidade de olhar confiadamente para o mundo. Bertolt Brecht di-lo esplendidamente no poema «À posteridade»: «Ah, que época esta /Em que falar de árvores é / Quase um crime. /Pois é uma espécie de silêncio / Acerca da injustiça». Sabe-se como Benjamin, um amigo próximo de Brecht, sustenta a necessidade de tornar a arte política para ainda ter sentido. Esta consequência é bem sintetizada por Arthur Danto: «Que a arte não necessite de ser dirigida por considerações estética é, provavelmente, a maior descoberta conceptual da arte do século XX». Desaparecida a «aura» estética fica uma política bizarra, que se identifica com a arte absoluta. A arte torna-se política pelo simples facto de recusar a existência actual. Sob muitos aspectos estamos perante uma radicalização do platonismo, o qual também estava voltado contra a «cosmética» do mundo, o seu devir imagem ou simulacro. Platão pretende escapar à caverna onde tudo é mera sombra e projecção. Mas sente-se ameaçado pela beleza do que existe, opondo-lhe a beleza absoluta das ideias, eternas e invisíveis. Como um psicanalista selvagem irá atacar tudo aquilo que fascina, que encanta, vendo aí uma atitude servil. Platão desaprova a arte porque ela fica presa, e faz-nos prisioneiros, da bela aparência, indiferente ao Bem. De certo modo a arte que, desesperada pela falta do belo, se transformou em objectivo absoluto, inscreve-se nesta tradição que desconfia das coisas, que odeia o seu charme e o prazer da aparência e da superfície.

Não é por acaso que boa parte do século XX tenha sido dominado pelo «american sublime» A reacção extrema ao belo ou à sua paródia pela cosmética mediática, veio do «american sublime», de Don Judd, de Morris ou de Barnett Newman. Este último dramatiza «a luta entre o belo e o sublime», sendo o primeiro puro efeito de memória, de recordação nostálgica da teologia política europeia e do sue mundo desaparecido. Por sue lado, o sublime estaria libertado da história e seria puramente actual: «Estamos a libertar-nos dos impedimentos da memória, associação, nostalgia, lenda, mito ou seja o quer for, que foram as mecanismos da pintura ocidental. Em vez de fazer catedrais a partir de Cristo, do homem, ou da “vida”, estamos a fazê-la a partir de nós próprios, a partir dos nossos sentimentos. A imagem que produzimos é a evidência da revelação, real e concreta, que pode ser compreendida por qualquer que olhe para ela sem os vidros nostálgicos da história». Trata-se agora de abolir os «vidros» e não de os ter coloridos ou mágicos. Pura revelação sem revelado, o sublime é a dinâmica que se volta contra qualquer paragem, obra ou imagem. O sublime é uma política da tabula rasa.

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Era já essa a tese de Greenberg no famoso texto sobre «Vanguarda e Kitsch», que preparava um lugar confortável para o conceito de sublime. Lyotard deu-lhe a sua melhor configuração definindo-o como o que permite «trazer à frente o irrepresentável na própria apresentação», pluralizando assim as formas, libertado agora da sua velha afinidade com o prazer, mas também com a verdade ou o bem. Keats ainda podia escrever que «Beauty is truth, truth beauty», mas agora é o sublime que encarna todos esses valores, fundindo-os numa política vaga da diferença e da recusa pura e simples do existente. A arte como política, eis a sua fórmula.

A contrapartida de tudo isso é o peso imenso de uma instituição estética formada por uma rede de museus, de críticos e artistas que certificam as obras fora de qualquer preocupação estética. O máximo vazio do sublime corresponde à empiricidade excessiva do aparato estético. Neste contexto, é interessante constatar retorno do belo, de que o livro de Umberto Eco sobre a «história da beleza» é um bom sintoma. Repentinamente, o cinema informa-nos pela voz de Roberto Benigni que «a vida é bela». Obras «belas» vão surgindo ligadas ao nome de Chris Cuningham, de Matthew Barney, de Sugimoto, mas também Richter ou James Turrell. Tendo chegado a notícia do fim da história, parece que já se pode autorizar a beleza, ou que ela voltou a ter sentido.

O primeiro sinal de que as coisas estavam a mudar veio do ensaio de Dave Hickey, «Enter the Dragon» (1991), mais tarde publicado no livro The Invisible Dragon: Four Essays on Beauty. O dragão invisível é, naturalmente, a «beleza», em torna da qual novos cavaleiros andantes travam uma batalha cerrada. O próprio Hickey encena bem a coisa. Conta ele que estando num debate, «desatento e devaneado», lhe perguntaram inopinadamente qual seria a questão central dos anos 90. À sua resposta, «a beleza» ter-se-á seguido um pesado silêncio, como se estivesse suspensa no ar «uma palavra sem linguagem, serena, espantosa e bizarra... como um dragão pré-rafaelita». Nos anos posteriores alguns dos melhores autores americanos entraram no debate sobre o belo, como é o caso de Arthur Danto, Gilbert-Rolfe, Wendy Steiner, Bill Beckley, Susan Sontag, e muitos outros. Num trabalho concertado, o actual panorama crítico, resolutamente anti-modernista e que desbancou completamente o sublime, está a levar à reapreciação do «mercado», à defesa do prazer do espectador e da beleza do objecto, como se nada se tivesse passado entretanto nos últimos 100 anos.

É em torno do belo que tudo se polariza de novo, como se ele fosse tão potente na sua ausência como na sua excessiva presença. O que o diferencia das visões clássicas é o seu imenso poder perturbador, tudo o contrário da harmonia grega ou renascentista. Desse poder de perturbação dá-nos conta um verso de Rilke: «Pois a beleza mais não é/ do que o começo do terror». Alguma vez este verso poderá ser entendido pelos actuais defensores da beleza?

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Sobre o feio (Jornal de Letras, Outubro de 2007)

A segunda metade da Arte Por José Bragança de Miranda Em princípios do século passado Erza Pound, com algum desassossego, refere-se à necessidade do «culto do feio», a segunda metade da arte. Esse culto parece estar a chegar ao fim. Fomos sendo informados de que «a vida é bela» e a ingénua Amélie ocupa o lugar da perversa Lulu; em legião vão saindo livros em defesa do belo ou denunciando o feio. Ficaria assim para trás a comoção que o feio provocou nas artes modernas e que Rimbaud descreveu num verso impressionante: «Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. – Achei-a amarga –. E injuriei-a». Não se sabe bem o dia em que terá feito tal descoberta, embora seja depois de Une Saison en l’enfer onde lemos esta frase que ele abandona a poesia e parte para África à procura de ouro. A data poderá bem ter sido aquela em que escreveu um poema de juventude dedicado à «Vénus Anadyomène» cujo nascimento foi registado em 1485 por Sandro Botticelli no «Nascimento de Vénus». Ora, no poema de Rimbaud, a Vénus em vez de sair de uma concha, ergue-se de uma «banheira enferrujada», um «caixão verde em ferro branco», gorda, vermelhiça, com um cheiro horrível? E com uma «úlcera no ânus». Algo tinha ocorrido no antigo império do belo que justificava esta cruel paródia. As relações metafísicas e teológicas que articulavam belo e feio estavam a deslaçar-se. Traços deste facto notavam-se na vida das cidades, nas imagens que se vão tornando cada vez mais grotescas, no frisson da caricatura, mas também na teoria. Sem grande impacto, Karl Rosenkranz, o futuro biógrafo de Hegel, publica em 1855 a sua Aesthetik des Hässlichen (Estética do Feio). Pensando estar apenas a prolongar a estética hegeliana, o livro de Rosenkranz está ele próprio perturbado pelo fenómeno que pretende controlar teoricamente, o da disseminação do feio. O que se seguirá, as estéticas do grotesco, do monstruoso, e no nosso século o informe, o abjecto, o repugnante e o trash, etc., etc. não alteraram decisivamente os dados do problema. O feio desata-se das cadeias que o usavam, deslocaliza-se e dissemina-se. Tudo indica que o feio é uma invenção necessária da metafísica do belo, um conceito que orienta as estratégias de «correcção» do real no espelho de uma imagem perfeita. Trata-se de uma necessidade metapolítica. O assunto arranca com Platão, que aparentemente não sabe que fazer dele. Mas só muito aparentemente. No Parménides o jovem Sócrates revela enorme dificuldade em aceitar as matérias «grosseiras». Perguntado por Zenão se coisas como lama, lixo ou vis como os excrementos participam de uma forma, ou seja, se existe a forma ou ideia do lixo absoluto ou do excremento absoluto, ele recua horrorizado, afirmando «àquilo que vemos, a isso também reconheço uma existência, mas pensar que existe uma forma destas coisas, seria, receio eu, demasiado absurdo. Contudo, já me sucedeu atormentar o espírito sobre saber se não teríamos de fazer o mesmo em relação a todas as coisas. Mas mal me detenho sobre a questão logo me afasto apressadamente, com medo de cair num abismo de palavreado vão e de nele me perder».

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O horror explica-se pelo que está em causa. Se o lixo tivesse uma forma eterna, seria também ele eterno. Ficaria assim lesada toda a metafísica de purificação do real. A trindade platónica que associa bem, justo e belo visa a totalidade do real, reduzido a uma infinidade de imagens que se desdobram em cascata das ideias absolutas até à matéria. Platão instala uma máquina ascensional que eleva a matéria às formas. O feio sem conceito, o informe ou o mole não têm lugar pois corresponderiam a matéria bruta, insusceptível de receber a forma ou o tipo. Trata-se de localizar o feio para dominar o que existe de intratável no real. O feio determina invisivelmente toda esta complexa estratégia. Um dispositivo de redenção A articulação metafísica do feio que culmina com Hegel, está bem sintetizada por Rosenkranz: «Se não existisse a beleza, também não poderia existir o feio, porque este existe apenas como negação do primeiro». Neste esquema o feio tem uma função precisa e está bem localizado. Muito depende, claro, de se saber se este esquema visa as «obras de arte» ou o real na sua inteireza. Com a teologia política medieval, esta relação torna-se mais nítida e operatória. O feio é usado para descrever o mundo e controlado pelo dispositivo teológico que faz dele um momento provisório da história da redenção. Daí que possa surgir com enorme excesso, como está bem patente no Inferno de Dante, onde abundam imagens excremenciais, como a dos homens mergulhados em «esterco» (XVIII, v. 113) ou do adulador com «col capo sì di merda lordo» (XVIII, v. 116), entre muitas outras. Também o mesmo ocorre na pintura cristã, nomeadamente nas crucificações ou na longa série das Tentações de Santo Antão, em que os monstros mais horríveis rodeiam o santo, ocupando toda a cena. Mas tal como o «esterco» em Dante, os monstros e grotescos das tentações são exibidos para melhor serem vencidos e permitir o vencimento da «psicagogia» radical que o cristianismo implica. Trata-se de usar o feio para conduzir e orientar a vida. Hegel descreve o feio como o efeito de «desuniões que produzem nebulosamente o feio, o odioso e o repulsivo, nas esferas sensíveis e espirituais». O feio desapareceria caso ocorresse uma «espiritualização» completa da natureza e da história, abolindo a dissonância e a desunião, mas, para Hegel, esta é uma tarefa que já não compete à arte, que chega ao fim quando o cómico, o caricatural, se torna absoluto. Não desaparece, porém, o esquema que possibilita o uso do feio como uma espécie de distorção técnica e provisória, baseada na acentuação de traços singulares – do particular –, sendo subsumido no jogo dos conceitos que constituirão a trama profunda do real. A limitação da arte está em que lhe é impossível controlar o feio dentro da própria arte, pelo que a espiritualização do existente (o seu devir no e pelo conceito) terá de ser operada por outros meios. A arte pela arte tende para o grotesco pois não atenta à tectónica que enforma o real, tudo lhe servindo de matéria. Como diz Hegel na Estética: «O objecto e o conteúdo do belo são vistos de maneira completamente indiferenciada. ? De tal que a falta de critério relativamente às infindáveis formas da natureza dá-nos como última palavra, no que respeita à escolha do objecto e à sua beleza ou fealdade, o mero gosto subjectivo, não sendo este gosto limitado por regras e insusceptível de disputa. E de facto, se ao escolhermos objectos para ser representados, partimos do que as pessoas acham belo ou feio e, portanto, merecedores da representação artística, então todas as esferas dos objectos estão à nossa disposição e a nenhum deles faltará admiradores». Profeticamente

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Hegel dá-se conta que isso levará a não se poder recusar os «ídolos horríveis» (sic) formados pela arte negra a que chama «hotentote» ou chinesa, lançando o caos na Terra. A dialéctica do belo e do feio está ameaçada do interior, enquanto se mantiver dentro de uma arte que chegou ao fim, que se vê apenas e tão-somente como arte. Daí a preocupação com que Hegel analisa a autonomização do feio enquanto tal, já presentes nas imagens das Tentações ou das cenas da crucificação, cujos retratos dos «horríveis esgares e gestos que expressam incontidas e ferozes paixões» revelam «a falta de harmonia interior» da pintura holandesa. Tudo se passa como se a potência que controlava o excesso do feio fazendo dele um momento do belo, esquema de embelezamento do real, tivesse afrouxado e os monstros que rodeavam Santo Antão tivessem ficado à solta, disseminando-se por todo o lado. A intensa reflexão do século XIX sobre o grotesco procura precisamente dar conta desta libertação, a que não é alheio o fim do império icónico medieval (Mondzain) e a aparição de novas máquinas como a fotografia ou o gramofone, que separaram as imagens e os sons dos corpos e dos objectos, permitindo-lhes circular livremente. O grotesco seria assim um efeito do devir imagem do real e da perda da força de ligação das imagens e das coisas. Daí os maus pressentimentos de Hegel perante os monstros que rodeavam os santos ou Cristo. O desaparecimento do seu poder atractivo rapidamente deixa tudo à mercê do «diabólico», do mal, etc. Alguns anos depois destas frases, Baudelaire virá cantar as «flores do mal», e todas a flores terão o seu cantor. Um materialismo grosseiro O feio que servia de instrumento provisório para a salvação do mundo, para a sua purificação, teria emergido como tal e enquanto tal. Mas chegados a este ponto é estranho que se possa manter como conceito estético, ou que se possa definir a arte relativamente a ele. Como vimos, o feio é um momento do belo, e desaparecida esta pequena máquina de guerra contra a existência, ou despedaçada nos seus elementos parece insustentável continuar a recorrer a ele. A desagregação da estrutura metafísica do belo acarreta uma patologia da forma e o regresso do puro materialismo, de que a «plasticidade» é o nome actual. Longe das fantásticas metamorfoses pagãs, das conversões teológicas, das transfigurações em geral, o real surge como «informe». Sinal desse processo, encontramo-lo no surrealismo subterrâneo da revista Documents ou, mais tarde, na revista Acéphale, em que Georges Bataille recomeça no ponto em que o jovem Sócrates tinha recuado aterrado, defendendo um «materialismo grosseiro» ou «baixo». Para Bataille referir o «informe» ou mostrá-lo como faz no seu esplêndido texto sobre o «dedo grande do pé» equivale a dizer que «o universo é algo como que uma teia de aranha ou um escarro». Bataille podia ir por aqui porque tinha atrás dele uma história do conceito ou da forma que estava já consolidada. O real era cada vez mais conceptual, para parafrasearmos Hegel. Aliás, no mesmo texto sobre o informe sustenta que a filosofia mais não pretendeu que «o universo ganhasse forma» tendo por finalidade «donner une redingote à ce qui est, une redingote mathématique». Fecha-se assim um ciclo, em que o informe está simultaneamente no fim e no princípio, emergindo agora contra as formas impostas historicamente ao real. Bataille acreditava estar longe da teoria, o informe não poderia ser transformado numa categoria, tal como o escarro é sempre singular. Diga-se de passagem que isso não impediu que as matemáticas do século XX se tivessem estendido aos fluidos e ao nebuloso, ao «caos».

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A posição de Bataille sobre o informe, por ambígua que seja, corresponde a uma tentativa séria para afrontar o problema do feio ou do monstruoso, de lhe dar um sentido na arte e na vida. Se a estética corresponde a normas e regras que permitem a repetição do belo – a criação de múltiplas obras –, o informe ou o monstruoso têm uma relação com a arte ao excederem a norma, que transgridem. Trata-se, bem vistas as coisas, de uma arte do singular que se desencaminha pelo tipo de imagens que Bataille tem de privilegiar, por necessidade. Os mártires, os monstros, os assassinos como Gilles de Rais, os excrementos, etc. Daí a dificuldade sentida pelo autor francês de destrinçar entre informe e abjecto. E sabe-se como a abjecção, tematizada por Julia Kristeva, se tornou uma categoria crucial da segunda metade do século XX. O informe batailleano não coincide com a defesa do excesso feita pelos românticos. O seu «baixo materialismo» sublinha a incongruência do real, ao mesmo tempo que denuncia a coerência como uma imposição, como um automatismo de repetição que tem de ser abalado, ou confiar na «entropia» para tal, como fará um Robert Smithson ou um Thomas Pynchon. As perversões em Pierre Klossowski, as estéticas do desvio, do crime e do terror enraízam-se no mesmo solo escavado por Bataille. O feio torna-se assim o sinal de uma máxima singularidade, daquilo que é irrepetível e único. O surgimento do feio é um nítido sintoma de desesteticização da arte. De facto, para que a arte valesse enquanto tal era preciso abolir os controlos exteriores que a peavam, pondo-a a uso. A negação do feio era uma forma de controlar a arte e de usá-la para fins não artísticos: a salvação, a moral, a emancipação, etc., etc. Libertada do ritual e do culto, da moral e da estética, a arte ganha a sua máxima potência, ao mesmo tempo que se torna mais intratável. O feio que a libertou serve agora para um nova tentativa de controlo. Na modernidade a dialéctica do belo é uma forma de controlar a arte e de pô-la ao serviço. Temos inúmeros sinais disso. Por exemplo, nos anos 30 a iniciativa nazi contra a entartete Kunst (arte degenerada) que atacava todo o vanguardismo, mostra como a beleza e o feio constituem uma linha de clivagem politicamente séria e decisiva. Algo de similar está a ocorrer com o actual combate em defesa do belo, iniciada por Dave Hickey no seu The Invisible Dragon: Four Essays on Beauty (1993) que teve um cortejo de seguidores e não dos menores, como Danto. Combate contra a arte A luta contra o feio é outra versão do mesmo fenómeno. Senão veja-se as denúncias do influente comissário Jean Clair, cujo livro Immonde (2004) levanta um processo a boa parte da arte contemporânea. Para Clair «nunca a obra de arte foi tão cínica e tão atraída pela escatologia, pelo lixo e pelo abjecto». Trata-se agora de um linha de clivagem «moral», vagamente política, que extrema traços do repugnante ou imundo para voltar parte da arte contra a arte. Com efeito, se Jean Clair apenas se pode denunciar contra certas obras ou artistas, como Nebreda, Andreas Serrano, Marcel Duchamp, etc., procura ter efeitos sobre a totalidade da arte. A crítica do feio ou a defesa do belo são ambas desencaminhadoras. São categorias não-artisticas que procuram controlar as artes para fins morais ou políticos, mesmo que para isso tenham de destrui-la. O feio tornou-se numa categoria de combate contra a arte. É certo que alguns artistas são coniventes com este processo, o que não é grave, pois na arte não existe o L’Etat c’est moi. É indubitável que as imagens do «feio», as formas do grotesco, do abjecto, do informe, etc.

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tenham vindo a aumentar. Essencial é evitar fazer delas categorias estéticas, e formas estáveis da arte. Uma lição e das decisivas vem-nos de Carl Einstein. Analisando a obra de Grosz, o dadaísta alemão, considera que a exibição da «vulgaridade banal» e dos actos grotescos dos senhores do mundo corresponde a um «idealismo invertido» que «converte a distância própria da arte» relativamente ao mundo «numa crítica social» ou numa idealização utópica do existente. A denúncia moral coloca o artista numa «remota hostilidade» em relação ao próprio real. Daí que, para Einstein, a arte como denúncia ou exibição do grotesco acabe por torna-se conivente com os que dominam o mundo, operando uma divisão de território inaceitável. O real fica para os proprietários e o irreal (ou ideal) para os artistas... e os mais.