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5 branca 3 Tradução de: Renato Carreira

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branca 3

Tradução de:Renato Carreira

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Prólogo

Alpes franceses, Agosto de 1914

Muito acima dos cumes cobertos de neve das montanhas imponen-tes, Jules Fauchard lutava pela vida. Minutos antes, o seu avião embatera contra uma parede de ar invisível com tamanha força que lhe fez vibrar os dentes. A aeronave ligeira era agora impelida por ventos ascendentes e descendentes como se fosse um papagaio de papel. Fauchard enfrentava a turbulência violenta com a perícia que aprendera com os seus severos instrutores de voo franceses. Conseguiu ultrapassar a agitação, planando suavemente, sem saber que isso quase significaria o seu fim.

Conseguindo estabilizar o avião, cedeu ao mais natural dos impulsos humanos. Permitiu que os olhos cansados se fechassem. As pálpebras tor-naram-se pesadas e uniram-se como se fossem de chumbo. A mente de-ambulou-lhe até um estado enevoado e despreocupado. O queixo caiu-lhe sobre o peito. Os dedos inertes descontraíram o aperto sobre o manípulo de controlo. O pequeno avião vermelho agitou-se desgovernado naquilo a que os pilotos franceses chamam perte de vitesse, perda de velocidade, virando-se sobre uma asa, prestes a iniciar uma queda rodopiante em direcção ao solo.

Felizmente, o seu ouvido interno detectou a alteração no equilíbrio, fazendo soar alarmes no cérebro adormecido. Despertou de repente, ator-doado e esforçando-se para pôr ordem nos pensamentos. Adormecera apenas durante poucos segundos mas, nesse período, o avião perdera cen-tenas de pés de altitude e estava quase a cair a pique. A pressão na cabeça era atroz. O seu coração batia num ritmo selvático como se lhe fosse ex-plodir no peito.

As escolas de pilotagem francesas ensinavam os seus alunos a pilotar um avião com o mesmo toque leve que um pianista aplica sobre as teclas e

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as horas intermináveis de treino de Fauchard provavam agora a sua utilida-de. Segurando os controlos com delicadeza, certificou-se de não exagerar na recuperação de altitude e conseguiu voltar a nivelar o avião. Satisfeito, libertou o ar que tinha mantido aprisionado, com o frio intenso a atingir-lhe os pulmões como estilhaços de vidro.

A dor intensa arrancou-o à letargia. Completamente desperto, invo-cou o mantra que lhe suportara a força de vontade durante a missão deses-perada. Os lábios enregelados recusaram-se a pronunciar as sílabas, mas as palavras ecoavam-lhe no cérebro.

Falha e milhões morrerão. Cerrou os dentes com determinação renovada. Limpou o gelo dos

óculos e espreitou por cima do visor do cockpit. O ar dos Alpes era límpido como cristal fino e até os pormenores mais distantes se destacavam com nitidez impressionante. Cordilheiras de picos aguçados estendiam-se pelo horizonte e aldeias em miniatura dependuravam-se das encostas dos va-les verdejantes. Nuvens brancas e macias empilhavam-se como fardos de algodão acabado de colher. O céu era luminoso na sua intensidade azul. A neve de Verão sobre os cumes era banhada por tonalidades azuis e rosadas do sol poente.

Deixou os olhos vermelhos absorverem a beleza magnificente, ten-tando ouvir o ruído produzido pelo motor alemão de oitenta cavalos que propelia o avião Morane-Saulnier N. Tudo estava bem. A sua sesta qua-se fatal não provocara quaisquer alterações. Tranquilizou-se, mas aquele incidente potencialmente grave abalara-lhe a auto-estima. Percebeu, para seu espanto, que sentira uma emoção que não lhe era familiar. Medo. Não da morte, mas do fracasso. Apesar da sua vontade de ferro, os músculos doridos recordavam-lhe que era um homem de carne e osso como qual-quer outro.

O cockpit aberto permitia pouca amplitude de movimentos. Vestia um casaco de cabedal forrado com pêlo, vestido sobre uma camisola de lã, uma segunda camisola de gola alta e muita roupa interior. Um cachecol de lã protegia-lhe o pescoço e um capacete de couro cobria-lhe a cabeça e as orelhas, com as mãos dentro de luvas de cabedal. Nos pés tinha botas de montanha do melhor cabedal. Apesar de estar vestido para condições pola-res, o frio gélido penetrara-lhe até aos ossos e entorpecera-lhe os sentidos. Era uma evolução perigosa. O Morane-Saulnier era difícil de pilotar e exigia a máxima concentração.

Enfrentando a fadiga crescente, Fauchard tentou manter a sua sani-dade com a teimosia que o tornara um dos barões da indústria mais ricos do mundo. A determinação inabalável continuava a estar presente nos seus olhos cinzentos e no ângulo áspero do queixo. Com o longo nariz romano,

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o seu perfil assemelhava-se aos das águias cujas cabeças decoravam o bra-são da família na cauda do avião.

Forçou os lábios dormentes a moverem-se. Falha e milhões morrerão. A voz autoritária que inspirara medo nos salões do poder da Europa

emergia-lhe agora da garganta como um gemido patético abafado pelo ru-gir do motor e pela passagem de ar sobre a fuselagem, mas decidiu que me-recia uma recompensa. Estendeu a mão para o cimo da bota e retirou uma pequena garrafa de metal prateado. Desenroscou a tampa com dificuldade devido à espessura das luvas e bebeu um gole. A aguardente de graduação elevada destilada a partir de uvas da sua propriedade era quase álcool puro. Sentiu o calor percorrer-lhe o corpo.

Revitalizado, abanou-se, movimentou os dedos dos pés e das mãos e fez subir e descer os ombros. Enquanto o sangue lhe regressava às extremi-dades do corpo, pensou no chocolate quente suíço e no pão quente com queijo derretido que o aguardavam do outro lado das montanhas. Os lábios grossos por baixo do bigode espesso curvaram-se num sorriso irónico. Era um dos homens mais ricos do mundo e, mesmo assim, entusiasmava-se com uma refeição de lavrador. Nada a fazer.

Fauchard permitiu-se um momento de congratulação. Era um ho-mem meticuloso e o seu plano de fuga tinha corrido sem falhas. A família pusera-o sob vigilância depois de tornar claras as suas opiniões indesejadas perante o concelho. Mas, enquanto o concelho ponderava o seu destino, es-capara aos vigias com manobras de diversão combinadas com sorte pura.

Fingiu ter bebido de mais e disse ao mordomo, pago pela família, que se ia deitar. Quando tudo estava em silêncio, deixou o quarto sem fazer ruído, saiu do castelo e encaminhou-se para uma bicicleta escondida na floresta. Transportando a carga preciosa numa mochila, pedalou através dos campos até ao aeródromo. O seu avião estava abastecido e pronto para descolar. Le-vantara voo à luz da alvorada, parando por duas vezes em pontos remotos onde os seus empregados mais fiéis tinham armazenado combustível.

Esvaziou a garrafa e olhou a bússola e o relógio. Estava no rumo certo e com um atraso de apenas alguns minutos. Os picos mais baixos à sua frente indicavam que se aproximava do fim da longa viagem. Em breve fa-ria a aproximação final a Zurique.

Pensava no que diria ao emissário papal quando lhe pareceu que um bando de aves sobressaltadas tinha levantado voo da asa direita. Olhou nes-sa direcção e percebeu, desolado, que as aves eram na realidade pedaços de tecido desprendidos da estrutura, abrindo um buraco de vários centíme-tros. Havia apenas uma explicação possível. A asa fora atingida por tiros e o ruído do motor abafara os disparos.

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Reagindo de forma instintiva, guinou à esquerda, depois à direita, ro-dopiando e mudando de direcção como uma andorinha. Depois de percor-rer os céus com o olhar, conseguiu ver seis biplanos voando em V abaixo dele. Com calma invejável, desligou o motor como se pretendesse planar até ao chão numa aterragem sem impulso mecânico.

O Morane-Saulnier caiu como uma pedra. Em circunstâncias comuns, tal manobra teria sido suicida, colocando-

o na mira dos adversários. Mas Fauchard reconhecera os aviões atacantes como sendo Aviatik. O avião alemão de concepção francesa tinha um mo-tor Mercedes de linha única e fora originalmente construído para voos de reconhecimento. Além disso, o pormenor mais importante: a metralhado-ra montada à frente do artilheiro podia disparar apenas para cima.

Após cair algumas dezenas de metros, ajustou gentilmente o manípu-lo e o seu avião aproximou-se da formação dos Aviatik por trás.

Alinhou o nariz com o Aviatik mais próximo e premiu o gatilho. A metralhadora Hotchkiss rugiu, projectando balas em direcção à cauda do alvo. Viu-se fumo e, logo a seguir, as chamas rodearam a fuselagem.

O avião atingido rodopiou em direcção ao solo. Algumas rajadas bem aplicadas fizeram cair mais um com a facilidade de um caçador a abater faisões domésticos.

Fauchard atingiu os alvos com tamanha rapidez que os outros pilotos não perceberam estar sob ataque até verem os rastos de fumo negro dos aviões em queda. A formação começou a desfazer-se pelas costuras.

O ataque foi suspenso. Os alvos tinham sido dispersos e o elemento de surpresa já não estava do lado do perseguidor. Mudando de táctica, fez subir o Morane-Saulnier na vertical durante trezentos metros, penetrando numa nuvem ampla.

As paredes de névoa esconderam o avião de olhos inimigos e Fauchard pôde nivelar o voo e verificar os estragos. O tecido retirado à asa deixava à vista a estrutura de madeira. Praguejou em voz baixa. Esperava conseguir sair da nuvem e ganhar distância aos Aviatik com a potência superior da sua aeronave, mas a asa danificada iria retirar-lhe velocidade.

Incapaz de fugir, teria de ir à luta.Estava em desvantagem numérica e com armamento inferior, mas

pilotava uma dos aviões mais notáveis da época. Planeado para corridas, o Morane-Saulnier, apesar de difícil de controlar, era incrivelmente ágil e reagia aos movimentos mais suaves. Numa era em que a maioria dos aviões tinha pelo menos dois pares de asas, este era um monoplano de asas mé-dias. Do eixo em forma de bala da hélice até à cauda triangular iam apenas sete metros, mas era um mosquito mortífero, graças a um dispositivo que revolucionara a guerra aérea.

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Saulnier criara um mecanismo de sincronização que permitia à metra-lhadora disparar por entre a hélice. No entanto, este sistema antecipara-se às metralhadoras existentes que produziam disparos erráticos e, visto que os tiros podiam fazer ricochete, havia peças de metal destinadas a proteger as pás da hélice de balas errantes.

Preparando-se para a batalha, Fauchard estendeu a mão para baixo do assento e os dedos tocaram o metal frio de um cofre. Junto ao cofre havia um saco de veludo roxo que puxou e colocou no colo. Controlando a trajectória do avião com os joelhos, retirou um elmo metálico de aspecto antigo do saco e passou os dedos pela superfície gravada. O metal era frio como gelo ao toque, mas parecia irradiar um calor que se espalhou por todo o seu corpo.

Colocou-o na cabeça. Assentava na perfeição sobre o capacete de cou-ro e o equilíbrio era perfeito. O elmo era peculiar porque o visor tinha a forma de um rosto humano cujo nariz e bigode se assemelhavam aos de Fauchard. Como o visor lhe limitava a visão, ergueu-o acima da testa.

Raios de sol atravessavam a muralha de nuvens à medida que a sua cobertura se ia tornando mais ténue. Voou através dos lençóis vaporosos que delimitavam a nuvem e emergiu no céu limpo.

Os Aviatik voavam em círculos por baixo como um cardume de tuba-rões famintos em torno de um navio prestes a afundar. Avistaram o Morane e começaram a subir.

O líder mergulhou por baixo do avião de Fauchard e colocou-se a dis-tância de fogo. Fauchard ajustou o cinto de segurança para se certificar de que estava firme e puxou o nariz do avião para cima, descrevendo um gran-de círculo. Ficou de cabeça para baixo no cockpit, dando graças ao instrutor francês que lhe ensinara aquela manobra evasiva. Completou o círculo e nivelou, colocando o avião atrás dos Aviatik. Abriu fogo para o mais próxi-mo, mas este guinou e mergulhou a pique.

Fauchard manteve-se na cauda do avião, desfrutando da emoção de ser o caçador e não a presa. O Aviatik nivelou e virou à direita, tentando colocar-se abaixo dele. O avião mais pequeno não teve dificuldades em se-gui-lo.

A trajectória do Aviatik colocara-o na boca de um vale amplo. Com Fauchard a dar-lhe pouco espaço para manobrar, voou directamente para o vale.

Poupando as munições com avareza, Fauchard disparou rajadas cur-tas com a Hotchkiss. O Aviatik rodopiou à esquerda e à direita e as balas passaram ao lado. Reduziu a altitude, tentando manter-se por baixo do per-seguidor e da sua metralhadora mortífera. Novamente, Fauchard tentou alinhar-se para o disparo. Novamente o Aviatik mergulhou.

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Os aviões voavam sobre os campos a cento e sessenta quilómetros por hora, mantendo-se pouco mais de quinze metros acima do solo. Manadas de vacas aterrorizadas dispersaram-se como folhas sopradas pelo vento. O Aviatik rodopiante conseguiu manter-se fora da mira de Fauchard. As for-mas no solo contribuíam para impedi-lo de mirar em condições.

A paisagem era uma amálgama de pastos verdejantes e quintas arru-madas. As quintas tornavam-se cada vez mais próximas umas das outras e Fauchard conseguia ver os telhados de uma povoação mais à frente, onde o vale se estreitava.

O Aviatik seguia um rio que percorria o fundo do vale directamente até ela. O piloto voava tão baixo que as suas rodas quase tocavam a água. Mais adiante, uma pitoresca ponte de pedra atravessava o rio no ponto onde este entrava pela povoação dentro.

O dedo de Fauchard apertava-se sobre o gatilho quando, por cima, uma sombra lhe interrompeu a concentração. Olhou e viu as rodas e a fu-selagem de outro Aviatik pouco mais de quinze metros acima. Reduzia a altitude, tentando forçá-lo a descer. O Aviatik que perseguira começava a subir para evitar embater contra a ponte.

Peões que faziam a travessia viram o trio de aviões e corriam, tentando salvar as suas vidas. Um velho cavalo sonolento que puxava uma carroça ergueu-se nas patas traseiras pela primeira vez em anos quando o Aviatik passou a poucos metros da cabeça do condutor.

O avião que tinha por cima baixou ainda mais para forçar Fauchard a ir de encontro à ponte mas, no momento derradeiro, puxou para si o manípulo de controlo e aumentou o fluxo de combustível. O Morane-Saul-nier subiu e passou entre a ponte e o Aviatik. Houve uma explosão de feno quando a asa do avião atingiu a carga da carroça, mas Fauchard conseguiu manter a aeronave controlada, guiando-a sobre os telhados da cidade.

O avião que o perseguia subiu um segundo depois.Tarde demais.Menos ágil do que o monoplano, o Aviatik embateu contra a ponte

e explodiu numa bola de fogo. Igualmente lento a subir, o líder do grupo raspou pelo campanário de uma igreja, cuja cúpula aguçada lhe esventrou a fuselagem. Desfez-se no ar em inúmeros pedaços.

— Vai com deus! — gritou Fauchard com voz rouca, mudando de di-recção e dirigindo-se para a saída do vale.

Surgiram duas manchas à distância. Moviam-se depressa na sua direc-ção. Os últimos sobreviventes do esquadrão de Aviatik.

Fauchard voou de encontro aos aviões que se aproximavam com os lábios pressionados. Queria certificar-se de que a família saberia a sua opi-nião sobre as tentativas para o deter.

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Estava suficientemente perto para ver os artilheiros nos cockpits da frente. O da esquerda apontou o que parecia um pau e viu um clarão lu-minoso.

Ouviu uma pancada seca e sentiu que alguém lhe tinha espetado um atiçador em brasa nas costelas. Com um arrepio, percebeu que o artilheiro do Aviatik recorrera a tecnologia mais simples, mas também mais fiável: atingira Fauchard com um disparo de carabina.

Moveu sem querer o manípulo e as pernas esticaram-se num espas-mo. Os dois aviões passaram por ele, um de cada lado. A mão sobre o ma-nípulo perdeu as forças e o avião começou a vibrar. Sangue quente da ferida ensopava-lhe o assento. Sentia um sabor metálico na boca e dificilmente conseguia manter-se lúcido.

Tirou as luvas, desapertou o cinto de segurança e estendeu as mãos para baixo do assento. Os dedos sem forças rodearam a pega do cofre me-tálico. Colocou-o no colo, pegou na correia em V que percorria a pega e prendeu-a ao pulso.

Socorrendo-se das suas últimas forças, pôs-se de pé e debruçou-se para fora do cockpit. Rebolou para fora da abertura, o seu corpo bateu na asa e projectou-se para longe.

Automaticamente, os dedos puxaram um cordel. A almofada em que estivera sentado abriu-se, libertando um pára-quedas de seda.

Os seus olhos começavam a ser encobertos por uma cortina negra. Chegavam-lhe vislumbres de um lago azul e de um glaciar.

Falhei. Atingia-o mais o choque do que a dor e sentia sobretudo tristeza e

frustração profundas. Milhões morrerão.Cuspiu espuma sangrenta e perdeu os sentidos. Ficou pendurado das

correias do pára-quedas, um alvo fácil para um dos Aviatiks que passava novamente por ele.

Não chegou a sentir a bala que furou o elmo e lhe penetrou no crâ-nio.

Com o sol a reflectir-se do metal que lhe cobria a cabeça, flutuou até as montanhas o acolherem no seu abraço.

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Ilhas Orkney, Escócia, Presente

Jodie Michaelson espumava de raiva. Algum tempo antes, na mes-ma noite, ela e os três concorrentes que restavam do concurso televisivo Abandonados foram forçados a caminhar com botas pesadas sobre uma corda grossa esticada ao longo de uma plataforma de pedras amontoadas com menos de um metro de altura. Alguém chamou ao número o “Jul-gamento Viquingue pelo Fogo.” Fileiras de archotes ardiam de cada lado da corda, conferindo risco e intensidade dramática adicionais, apesar de as chamas estarem a quase dois metros de distância. As câmaras filmavam de um ângulo baixo, fazendo a prova parecer muito mais perigosa do que era na realidade.

Mais genuíno fora o modo como os produtores haviam conspirado para fazer os concorrentes chegarem quase a vias de facto.

Abandonados era a última encarnação dos reality-shows que prospe-raram depois do sucesso de Survivor e Fear Factor. Consistia numa com-binação acelerada de ambos os formatos, com as discussões acesas de Jerry Springer à mistura.

A fórmula era simples. Dez participantes tinham de ultrapassar uma série de testes ao longo de três semanas. Os que falhavam ou eram expulsos pelos restantes através de votação, tinham de abandonar a ilha.

O vencedor receberia um milhão de dólares e pareciam receber pon-tos de bónus pela sua capacidade de serem desagradáveis para os compa-nheiros.

Considerava-se este programa ainda mais arriscado do que os seus antecessores e os produtores concebiam maneiras de intensificar a tensão. Se outros programas eram bastante competitivos, Abandonados era assu-midamente combativo.

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O formato baseava-se em parte no curso de sobrevivência da Outward Bound1 em que os participantes são forçados a viver com o que encontram na natureza. Ao contrário dos outros programas de sobrevivência que cos-tumam ter como cenário ilhas tropicais com mares turquesa e palmeiras ondulando ao vento, Abandonados filmava-se nas Ilhas Orkney escocesas. Os concorrentes desembarcavam de uma réplica ridícula de um navio vi-quingue perante um público composto por aves marinhas.

A ilha tinha três quilómetros de comprimento e quilómetro e meio de largura. A paisagem era composta sobretudo por rochedos torturados por algum cataclismo há milénios atrás, fazendo-os assumir a forma de sa-liências e fissuras, com algumas árvores raquíticas espalhadas pelo terreno e uma praia de areia grossa onde decorria a maior parte da acção. O tempo era temperado, excepto à noite, e as tendas cobertas com peles eram supor-táveis.

A ilhota rochosa era tão insignificante que os locais lhe chamavam “Ilha Minúscula.” Isto provocou uma troca de impressões hilariante entre o produtor, Sy Paris, e o seu assistente, Randy Andleman.

Paris entregava-se a um dos seus tradicionais ataques de verborreia. — Por amor de Deus. Não podemos filmar um programa de aventura num sítio chamado Ilha Minúscula. Temos de lhe chamar outra coisa qualquer. — O rosto iluminou-se-lhe. — Vamos chamar-lhe Ilha da Caveira.

— Não se parece com uma caveira — disse Andleman. — Parece um ovo estrelado que ficou tempo a mais na frigideira.

— É quase o mesmo — ripostou Paris antes de se afastar.Jodie, que presenciara a conversa, conseguiu fazer Andleman sorrir

ao dizer: — Acho que se parece bastante com a caveira de um produtor televisivo estúpido.

As provas resumiam-se ao tipo de desafios enojantes (abrir carangue-jos vivos e comê-los ou mergulhar num tanque cheio de enguias) que ga-rantiam o vómito no espectador e o forçavam a ver o programa seguinte para perceber até que ponto as coisas podiam piorar. Alguns dos concor-rentes pareciam ter sido escolhidos pela sua agressividade e mau feitio.

O clímax chegaria quando os últimos dois passassem a noite a ca-çarem-se um ao outro, usando dispositivos de visão nocturna e armas de paintball, uma prova baseada no conto The Most Dangerous Game2. O so-brevivente receberia um milhão de dólares adicional.

Jodie era uma preparadora física de Orange County, na Califórnia. Fi-cava fabulosa num bikini, mas as suas curvas eram desperdiçadas nas rou-

1 Organização internacional não lucrativa, cujo objectivo passa pelo desenvolvimento das compe-tências sociais pessoais através da participação em expedições aventurosas. (N. do T.) 2 “O Jogo Mais Perigoso” da autoria de Richard Connell. (N. do T.)

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pas largas. Tinha cabelo longo e louro e uma inteligência viva que esconde-ra para conseguir participar no programa. Cada concorrente correspondia a um padrão, mas Jodie recusava-se a representar o papel de mulher fútil e estúpida que os produtores lhe tinham destinado.

No último teste para obter pontos ou penalizações, fora-lhe pergun-tado a ela e aos outros concorrentes se o búzio era um peixe, um molusco ou um carro. Como loura estereotipada do programa devia responder que era um carro.

Nunca conseguiria fazer esquecer aquilo quando regressasse à civili-zação.

Desde o desentendimento do teste, os produtores tinham-na informa-do de que devia ir-se embora. Deu-lhes a sua oportunidade para se livrarem dela quando lhe entrou uma faúlha para o olho e falhou a caminhada sobre o fogo. Os restantes membros da tribo reuniram-se à volta da fogueira com expressões graves e Sy Paris entoou dramaticamente a ordem para abando-nar o clã e encaminhar-se para o Valhalla.

Enquanto se afastava da fogueira, odiou-se por falhar a prova. Mas havia um lado positivo. Depois de apenas algumas semanas com aqueles doidos, estava feliz por deixar a ilha. O cenário era de uma beleza agreste mas fartara-se das intrigas, da manipulação e da mesquinhez generalizada a que um concorrente tinha de se dedicar para conseguir alcançar a honra de ser caçado como um cão raivoso.

Do outro lado do “Portão do Valhalla,” um cais feito de ossos de baleia em plástico, ficava uma grande caravana que servia de alojamento à equipa de produção. Enquanto os membros do clã dormiam em tendas de pele e comiam insectos, a equipa tinha beliches quentes e confortáveis e refeições de nível. Quando um concorrente era expulso do programa, passava a noite na caravana até chegar o helicóptero na manhã seguinte.

— Pouca sorte — disse Andleman, abrindo-lhe a porta. Andleman era uma simpatia, o oposto exacto do seu patrão despótico.

— Sim, muito pouca. Duches quentes. Refeições quentes. Telemóveis.— Temos isso tudo por aqui. Jodie olhou em redor, confirmando o conforto das instalações. — Já

reparei. — O teu beliche é aquele — indicou ele. — Podes servir-te do bar e há

um patê fabuloso no frigorífico para te ajudar a descomprimir. Tenho de ajudar o Sy. Faz de conta que estás em casa.

— Obrigada. Assim farei.Foi até ao bar e preparou um Martini com gin. O patê era tão delicioso

como lhe fora dito. Ansiava por voltar a casa. Os concorrentes expulsos eram presença habitual nos talk-shows televisivos para se dedicarem à ma-

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ledicência dos que ficaram para trás. Dinheiro fácil. Jodie esticou-se num sofá confortável. Minutos depois, o álcool fê-la adormecer.

Acordou sobressaltada. Durante o sono, ouvira guinchos agudos se-melhantes aos de um bando de aves marinhas ou de crianças no recreio, sobre um fundo de gritos.

Estranho.Levantou-se, foi até à porta e escutou. Questionou-se se Sy teria en-

gendrado mais uma forma de humilhação. Talvez tivesse posto os outros a fazer uma dança selvática à volta do fogo.

Percorreu com ligeireza o caminho de volta à praia. O ruído subiu de intensidade, tornando-se mais frenético. Alguma coisa estava horrivelmen-te mal. Eram gritos de dor e de medo e não de excitação. Acelerou o passo e passou pelo Portão do Valhalla. O que viu assemelhava-se a um quadro de Hyeronimus Bosch sobre o inferno.

Os concorrentes e a equipa eram atacados por criaturas horrendas que pareciam metade humanas e metade animais. Os atacantes ferozes rugiam, faziam cair as vítimas e lançavam-se sobre elas com garras e dentes.

Viu Sy cair. Depois Randy. Reconheceu vários cadáveres caídos na praia, ensanguentados e mutilados.

À luz ondulante do fogo, viu que os atacantes tinham cabelo longo e imundo que lhes dava pelos ombros. As caras não se assemelhavam a algo que alguma vez tivesse visto. Máscaras horrendas e retorcidas.

Uma criatura segurava um braço amputado que levava à boca. Jodie não conseguiu evitar um grito… e as outras criaturas interromperam o seu tenebroso festim e olharam-na com olhos brilhantes de vermelho incan-descente.

Quis vomitar, mas aproximavam-se dela, correndo curvados.Fugiu dali para fora. O seu primeiro pensamento foi voltar à caravana, mas teve clareza de

espírito suficiente para perceber que ficaria aprisionada. Correu até à elevação rochosa com as criaturas no seu encalço, fare-

jando como cães de caça. A escuridão fê-la tropeçar e cair numa fissura, não percebendo que aquilo lhe salvaria a vida, já que os perseguidores lhe perderiam o rasto.

Feriu a cabeça na queda. Recuperou os sentidos uma primeira vez e pareceu-lhe ouvir vozes iradas e tiros. A seguir, desmaiou novamente.

Na manhã seguinte, quando o holicóptero chegou, continuava incons-ciente na fissura. Quando a equipa passou a ilha em revista e a encontrou finalmente, tinham feito uma descoberta preocupante.

Todos os outros haviam desaparecido.

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Monemvassía, Peloponeso, Grécia

No seu pesadelo recorrente, Angus MacLean era uma cabra presa a uma estaca, rodeada por um tigre faminto cujos olhos amarelos o fitavam das sombras da selva. Os rugidos baixos tornavam-se mais altos até lhe enche-rem os ouvidos. A seguir, o tigre saltava. Conseguia cheirar-lhe o hálito féti-do, sentir-lhe as presas aguçadas a enterrar-se no pescoço. Esticava a corda numa tentativa fútil para fugir. Os seus balidos patéticos transformaram-se num gemido desesperado… e acordou banhado em suores frios, com o peito agitado e os cobertores ensopados pela transpiração.

Cambaleou para fora da sua cama estreita e abriu as cortinas. A luz de um sol grego reflectiu-se das paredes brancas do que fora a cela de um monge. Vestiu calções e uma t-shirt, calçou as sandálias e saiu para o exte-rior, pestanejando diante do mar cor de safira. O bater disparado do cora-ção acalmou.

Inspirou fundo, enchendo os pulmões com a fragrância perfumada das flores silvestres que rodeavam o mosteiro de estuque com dois andares. Esperou até as mãos pararem de tremer e iniciou o passeio matinal que revelara ser o melhor antídoto para os seus nervos estilhaçados.

O mosteiro fora construído à sombra de um rochedo impressionan-te com centenas de metros de altura, a que os guias turísticos chamavam “Gibraltar grego,” Para alcançar o cume, trepou ao longo de um caminho que seguia ao lado de uma antiga muralha. Séculos atrás, os habitantes da cidade baixa retiravam para os baluartes para se defenderem dos inva-sores. Restavam apenas ruínas das construções que albergaram outrora a população inteira em alturas de cerco.

Do alto da plataforma elevada formada pelos alicerces arruinados de uma velha igreja bizantina, MacLean conseguia ver a uma distância de

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quilómetros. Alguns barcos de pesca coloridos ocupavam-se da sua faina. Tudo parecia tranquilo. Sabia que aquele ritual matutino lhe dava uma sen-sação de falsa segurança. As pessoas que o perseguiam não revelariam a sua presença até o matarem.

Passeou pelas ruínas como um espírito perturbado, descendo ao longo da muralha e regressando ao refeitório no segundo andar do mosteiro. O edi-fício do século XV era uma das construções tradicionais que o governo grego convertera em hospedarias por todo o país. MacLean fazia questão de tomar o pequeno-almoço depois de os restantes hóspedes terem saído para passear.

O jovem que limpava a cozinha sorriu, dizendo: — Kalimera, Dr. Ma-cLean.

— Kalimera, Angelo — respondeu MacLean, batendo com o indica-dor na testa. — Esqueceu-se?

Os olhos de Angelo iluminaram-se com a súbita compreensão. — Sim. Lamento muito, Sr. MacLean.

— Não tem importância. Desculpe incomodá-lo com os meus pedi-dos estranhos — disse MacLean com o seu ligeiro sotaque escocês. — Mas, como lhe disse antes, não quero que as pessoas pensem que consigo curar-lhes as dores de barriga.

— Nai. Sim, claro, Sr. MacLean. Compreendo.Angelo trouxe uma malga de morangos acabados de apanhar, melão

e iogurte grego cremoso, tudo coberto com mel local e nozes, bem como uma chávena de café forte. Era o monge jovem que zelava pelo conforto dos hóspedes. Tinha trinta e poucos anos, cabelo escuro encaracolado e uma cara atraente que costumava estar adornada por um sorriso angelical. Era uma combinação de recepcionista, encarregado, cozinheiro e gerente. Usava roupas de trabalho e o único indício dos seus votos era a corda atada à volta da cintura.

Os dois homens tornaram-se amigos próximos ao longo das semanas que MacLean ali passara. Todos os dias, depois de Angelo terminar as ta-refas relacionadas com o pequeno-almoço, falavam sobre o seu interesse comum, a civilização bizantina.

MacLean dedicara-se à investigação histórica para descontrair do seu trabalho intenso como pesquisador químico. Anos atrás, os seus estudos levaram-no até Mistra, outrora o centro do mundo bizantino. Vagueara pelo Peloponeso e deparara-se com Monemvassía. Uma estreita passagem flanqueada pelo mar era o único acesso à localidade, um labirinto de ruas estreitas e becos do outro lado da muralha cujo “portão único” dera a Mo-nemvassía o seu nome. Deixara-se enfeitiçar por aquele local magnífico. Jurou regressar um dia, nunca pensando que voltaria quando estivesse a fugir para salvar a vida.

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O Projecto começou por ser inocente. MacLean ensinava química avançada na Universidade de Edimburgo quando lhe ofereceram um tra-balho de sonho fazendo o tipo de pesquisa pura que adorava. Aceitou a posição e pediu uma licença. Entregou-se ao trabalho, disposto a suportar as longas horas e secretismo extremo. Liderou uma de inúmeras equipas que trabalhavam com enzimas, as proteínas complexas responsáveis pela produção de reacções bioquímicas.

Os cientistas do Projecto ficavam albergados em dormitórios confor-táveis na paisagem campestre francesa. Um dos colegas referira-se como piada à pesquisa que faziam como sendo o “Projecto Manhattan3.” O isola-mento não constituía problema para MacLean, um solteirão sem parentes próximos. Eram poucos os colegas que se queixavam. Os honorários astro-nómicos e as excelentes condições de trabalho constituíam compensação mais do que suficiente.

Mas o Projecto alterou-se de forma perturbadora. Quando colocaram questões, foi-lhes dito que não se deviam preocupar. Acabaram enviados para casa, instruídos a aguardar enquanto os resultados do seu trabalho eram analisados.

MacLean optara por ir até à Turquia para explorar ruínas. Quando regressou à Escócia, semanas mais tarde, o seu gravador registava várias chamadas desligadas após serem atendidas e uma estranha mensagem de um antigo colega. O cientista perguntava se tinha lido os jornais e instava-o a ligar-lhe. Assim fez, mas, ao tentar contactá-lo, descobriu que tinha mor-rido dias antes, atropelado por um condutor que se pusera em fuga.

Mais tarde, quando passava em revista a pilha de correspondência acumulada, encontrou um pacote que o cientista enviara antes de morrer. O envelope grosso estava repleto de recortes de jornal que descreviam uma série de mortes acidentais. Lendo os recortes, sentiu um arrepio na espinha. As vítimas eram os cientistas que haviam trabalhado com ele no Projecto.

Numa nota anexa, estava rabiscado um aviso brusco: — Fuja ou mor-ra!

MacLean quis acreditar que as mortes tinham sido acidentais, apesar de isso ir contra o seu instinto científico, mas, alguns dias após ler os recor-tes, um camião tentou abalroar o seu Mini Cooper. Por milagre, escapou apenas com alguns arranhões mas reconheceu o camionista como sendo um dos guardas silenciosos que vigiava os cientistas enquanto trabalhavam no laboratório.

Que louco fora. Sabia que tinha de fugir. Mas para onde? Ocorreu-lhe Monemvassía.

3 Projecto responsável pelo desenvolvimento da primeira bomba atómica. (N. do T.)

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Era um destino de férias popular para os gregos continentais. A maioria dos estrangeiros que visitava o rochedo não passava a noite. E ali estava ele.

Enquanto reflectia sobre os eventos que o tinham trazido ali, Angelo trouxe-lhe um exemplar do International Herald Tribune. O monge tinha tarefas a cumprir, mas voltaria numa hora. MacLean acenou com a cabeça e bebeu um gole de café, saboreando o aroma intenso. Passou os olhos pelas notícias habituais de crises económicas e políticas e deparou com um título nas breves internacionais que lhe chamou a atenção:

SOBREVIVENTE DIZ QUE CONCORRENTES E EQUIPA DE PROGRAMA TELEVISIVO FORAM MORTOS POR MONSTROS

Dizia respeito a uma ilha nas Orkney escocesas. Intrigado, leu o resto

do artigo. Eram poucos parágrafos, mas, quando chegou ao fim, as mãos tremiam-lhe. Voltou a ler até as palavras começarem a ficar desfocadas.

Santo Deus, pensou. Aconteceu uma coisa terrível. Dobrou o jornal e saiu, deixando-se banhar pelos raios de sol apazi-

guadores até tomar uma decisão. Voltaria a casa e esperaria que alguém acreditasse na sua história.

Caminhou até ao portão da cidadela e apanhou um táxi para os escri-tórios da empresa de ferryboats, onde comprou um bilhete para o barco que seguiria até Atenas no dia seguinte. A seguir, voltou para o quarto e fez as malas, reunindo os seus poucos pertences. E agora? Decidiu manter a roti-na habitual durante o último dia, caminhou até um café no exterior e pediu um copo alto de limonada fria. Estava de tal forma absorto pela leitura do jornal que levou algum tempo a perceber que alguém falava com ele.

Ergueu os olhos e viu uma mulher de cabelo grisalho com calças e camisola de poliéster estampadas com flores de pé, junto à sua mesa, segu-rando uma máquina fotográfica.

— Desculpe interromper — disse com um sorriso doce. — Importa-se? O meu marido e eu…

Era frequente os turistas pedirem a MacLean para registar as suas via-gens. Era alto e magro e, com os olhos azuis e o cabelo salpicado de branco, distinguia-se dos gregos mais baixos e escuros.

Havia um homem sentado a uma mesa próxima, esboçando um sor-riso de dentes salientes. A cara sardenta estava escarlate do excesso de sol. MacLean acedeu e aceitou a máquina que a mulher estendia. Tirou algu-mas fotografias do casal e devolveu-a.

— Muito obrigado — disse a mulher, efusivamente. — Não sabe o que significa termos isto para o nosso álbum de viagens.

— Americanos? — perguntou MacLean. A sua ânsia por falar inglês

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sobrepôs-se à relutância em meter conversa com alguém. O inglês de An-gelo era limitado.

A mulher ficou radiante. — É assim tão óbvio? Esforçamo-nos muito para passar despercebidos.

Decididamente, poliéster amarelo e rosa não se enquadrava nos pa-drões de moda gregos, pensou MacLean. O marido vestia uma camisa de algodão branco sem colarinho e um chapéu de capitão, negro como os que são vendidos maioritariamente aos turistas.

— Viemos no barco — disse o homem com voz arrastada enquanto se erguia da cadeira. Pressionou a palma da mão húmida contra a mão de MacLean. — Foi uma viagem e tanto. Você é inglês?

MacLean respondeu com uma expressão de horror.— Não, sou escocês.— Eu sou meio escocês. A outra metade é de água tónica — disse o ho-

mem, mantendo o mesmo sorriso cavalar. — Desculpe a confusão. Sou do Texas. Calculo que seja tão grave como pensar que somos do Oklahoma.

MacLean pensou se haveria algum motivo para todos os texanos que conhecera falarem como se toda a gente tivesse problemas de audição. — Nunca teria pensado que eram do Oklahoma — respondeu MacLean. — Espero que tenham umas boas férias.

Pretendia afastar-se, mas teve de parar quando a mulher perguntou ao marido se lhe podia tirar uma fotografia com ele por ter sido tão simpático. MacLean posou com a mulher e depois com o marido.

— Obrigado — disse a mulher. Falava com um tom mais refinado do que o marido. Em poucas palavras, MacLean ficou a saber que Gus e Emma Harris eram de Houston, que Gus trabalhara na indústria do petróleo e que ela fora professora de História, estando a viver um sonho antigo de visitar o Berço da Civilização.

Distribuiu apertos de mão, aceitou os seus agradecimentos profundos e percorreu a rua estreita. Caminhava depressa, esperando que não se sen-tissem tentados a segui-lo e regressou ao mosteiro.

Fechou as cortinas para que o quarto ficasse escuro e fresco. Dormiu durante a maior parte do calor da tarde, levantou-se e salpicou a cara com água fria. Saiu para apanhar ar e surpreendeu-se ao ver os Harris de pé jun-to à capela caiada no pátio do mosteiro.

Tiravam fotografias ao edifício. Acenaram e sorriram quando o viram e MacLean aproximou-se e ofereceu-se para lhes mostrar o seu quarto. Fi-caram impressionados pela robustez do tecto de madeira. De volta ao exte-rior, contemplaram os penhascos por trás.

— A vista lá do alto deve ser magnífica — disse Emma.— É difícil chegar até lá.

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— Participo em expedições de observação de pássaros na América e, por isso, estou em forma. E o Gus tem mais genica do que parece — ex-plicou com um sorriso. — Costumava jogar futebol americano, apesar de parecer difícil de acreditar agora.

— Na Universidade do Texas — disse o Sr. Harris. — Estou mais pe-sado, mas posso tentar.

— Acha que nos podia mostrar o caminho? — perguntou Emma. — Desculpem mas parto amanhã no primeiro barco. — Disse-lhes

que podiam subir sozinhos se começassem antes de o sol se tornar dema-siado quente.

— É um amor. — Tocou MacLean na face com ternura materna. Deixou-se ficar a sorrir, admirando-lhes a determinação enquanto

subiam pelo caminho que ladeava a muralha em frente do mosteiro. Passa-ram por Angelo que descia da cidade.

O monge cumprimentou MacLean e voltou-se para olhar o casal. — Conheceu os americanos do Texas?

O seu sorriso transformou-se numa expressão de perplexidade. — Como os conhece?

— Passaram por cá ontem de manhã. Estava a dar o seu passeio. — Apontou para a cidade velha.

— Engraçado. Comportaram-se como se fosse o seu primeiro dia aqui.

Angelo encolheu os ombros. — Talvez também nos esqueçamos das coisas quando formos velhos.

Subitamente, MacLean sentiu-se como a cabra presa do seu pesadelo. Um vazio gélido instalou-se no seu estômago. Pediu licença e voltou para o quarto, onde encheu um pequeno copo com ouzo.

Que fácil teria sido. Subiriam até ao cimo do rochedo e pedir-lhe-iam para posar para uma fotografia junto ao limite da falésia. Bastaria um em-purrão.

Mais um acidente. Mais um cientista morto.Sem necessidade de levantar pesos. Nem mesmo para uma doce pro-

fessora de História anciã.Procurou no saco de plástico que usava para guardar a roupa suja. En-

terrado no fundo estava o envelope com os recortes amarelecidos de jornal que dispôs sobre a mesa.

Os títulos eram diferentes, mas o tema de cada artigo era idêntico.

CIENTISTA MORRE EM ACIDENTE DE VIAÇÃO. CIENTISTA MORTO EM ATROPELAMENTO SEGUIDO DE FUGA. CIENTISTA MATA MULHER E SUICI-DA-SE. CIENTISTA MORRE EM ACIDENTE DE ESQUI.

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Cada uma das vítimas trabalhara para o Projecto. Voltou a reler a nota: “Fuja ou Morra!” A seguir, colocou o recorte do Herald Tribune junto com os outros e foi até à recepção do mosteiro. Angelo debatia-se com uma pilha de reservas.

— Preciso de partir — disse-lhe. Angelo pareceu desolado. — Lamento muito. Quando?— Esta noite.— Impossível. Não há barco ou autocarro até amanhã. — Seja como for, tenho de partir e peço-lhe que me ajude. Posso com-

pensá-lo.Os olhos do monge foram tomados por uma súbita tristeza. — Faria

isso por amizade e não por dinheiro.— Desculpe — disse MacLean. — Estou um pouco perturbado.Angelo era um homem inteligente.— É por causa dos americanos?— Há gente má atrás de mim. Estes americanos foram enviados para

me encontrar. Fui estúpido e contei-lhes que partia no barco. Não sei se vieram sozinhos. Podem ter alguém a vigiar o portão.

Angelo acenou com a cabeça. — Posso levá-lo até ao continente de barco. Vai precisar de um carro.

— Esperava que pudesse alugar-me um — explicou MacLean. Passou a Angelo o seu cartão de crédito, que tentara não usar antes, sabendo que poderia ser localizado.

Angelo ligou para a agência de aluguer de automóveis no continente. Falou durante alguns minutos e desligou. — Está tudo tratado. Vão deixar as chaves no carro.

— Angelo, não sei como posso pagar-lhe.— Nada de pagamento. Dê uma grande esmola da próxima vez que

for a uma igreja. Comeu uma refeição ligeira num café discreto que lhe serviu de jantar

e deu consigo novamente a olhar com apreensão para as outras mesas. A noite passou sem ocorrências. No caminho de regresso ao mosteiro, não parava de olhar por cima do ombro.

A espera foi agonizante. Sentia-se encurralado no quarto mas ia recor-dando que as paredes tinham pelo menos trinta centímetros de espessura e que a porta podia aguentar uma carga de aríete. Poucos minutos após a meia-noite, ouviu uma batida suave na porta.

Angelo pegou-lhe no saco e conduziu-o ao longo da muralha até aos degraus para uma plataforma de pedra usada pelos nadadores para mergu-lhar. À luz de uma lanterna a pilhas, MacLean conseguia ver um pequeno

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barco a motor atado à plataforma. Entraram. Angelo estendia as mãos para a corda quando se ouviram passos cuidadosos nos degraus.

— Vão fazer um cruzeiro da meia-noite? — perguntou a voz doce de Emma Harris.

— Não te parece que o Dr. MacLean se ia embora sem dizer adeus? — disse o marido.

Após a surpresa inicial, MacLean conseguiu recuperar a fala. — O que aconteceu ao seu sotaque texano, Sr. Harris?

— Ah, isso. Confesso que não era muito genuíno. — Não te preocupes, querido. Foi suficientemente bom para enganar

o Dr. MacLean. Apesar de admitir que tivemos sorte na conclusão da nos-sa tarefa. Estávamos sentados naquele café delicioso quando passaram. Foi simpático deixar-nos tirar-lhe uma fotografia para podermos compará-la com a do seu ficheiro. Não gostamos de cometer erros.

O marido não conteve uma gargalhada calorosa. — Lembro-me de dizer: Faça favor de sorrir…

— … disse a aranha à mosca.Desataram a rir. — Foram enviados pela companhia — disse MacLean.— São pessoas muito perspicazes — respondeu Gus. — Sabiam que ia

estar à espera de alguém que parecesse um ganster.— É um erro que já muitos cometeram — disse Emma com um toque

de tristeza na voz. — Mas mantém-nos ocupados, não é Gus? Foi óptimo viajar pela Grécia. Mas tudo o que é bom acaba por chegar ao fim.

Angelo ouvira a conversa com uma expressão intrigada. Não compre-endia o perigo que corriam. Antes que MacLean pudesse impedi-lo, esti-cou-se para libertar o barco.

— Desculpem — disse. — Temos de ir. Seriam as últimas palavras que alguma vez diria. Ouviu-se o tiro abafado pelo silenciador e uma língua de fogo escar-

late iluminou a escuridão. Angelo levou as mãos ao peito e emitiu um som semelhante a um gargarejo. A seguir, caiu do barco para a água.

— Dá azar matar um monge, querida — disse Gus à mulher. — Não tinha o hábito vestido — replicou ela. — Não tinha maneira

de o reconhecer. As suas vozes eram de troça. — Vamos, Dr. MacLean — disse Gus. — Temos um carro à espera

para o levar até ao avião da companhia.— Não me vão matar?— Nada disso — disse Emma, novamente transformada em turista

inocente. — Há outros planos para si.

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— Não compreendo.— Mas há-de compreender, meu caro. Vai ver que sim.

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3

Alpes franceses

O helicóptero utilitário ligeiro Alouette da Aerospatiale pare-cia insignificante como um mosquito, abrindo caminho entre os profun-dos vales alpinos contra um cenário de picos majestosos. À medida que se aproximava de uma montanha cujo cume era coroado por três saliências desiguais, Hank Thurston, sentado no banco dianteiro, tocou no ombro do homem a seu lado e apontou para algo do outro lado da cobertura trans-parente.

— É Le Dormeur — disse, erguendo a voz para conseguir ser ouvido com o ruído das pás rotativas. — O Adormecido. Supostamente o perfil assemelha-se à cara de um homem dormindo de costas.

Thurston era professor catedrático de Glaciologia na Universidade Estadual do Iowa. Apesar de estar na casa dos quarenta, a sua expressão irradiava um entusiasmo juvenil. No Iowa, mantinha a cara barbeada e o cabelo cuidadosamente aparado, mas, após alguns dias de campo, começou a parecer-se com um piloto das imensidões selvagens. Era uma aparência que cultivava, usando óculos de aviador, deixando crescer o cabelo casta-nho-escuro até se notarem as madeixas grisalhas e barbeando-se com pou-ca frequência para que o queixo ficasse coberto por uma barba rala.

— Liberdade poética — disse Derek Rawlins, o passageiro. — Consigo ver o sobrolho, o nariz e o queixo. Faz-me lembrar o Velho da Montanha de New Hampshire antes de se desfazer, só que este perfil de pedra é horizontal e não vertical.

Rawlins escrevia para a revista Outside. Estava quase nos trinta e, com o seu ar de optimismo honesto e o cabelo louro cuidadosamente cortado, parecia-se mais com um professor universitário do que Thurston.

A clareza cristalina do ar criou uma ilusão de proximidade, fazendo

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a montanha parecer ao alcance de um braço. Depois de um par de passa-gens à volta das escarpas, o helicóptero interrompeu o seu círculo, passou por cima de uma fileira de rochedos aguçados como lâminas e mergulhou numa caldeira natural com vários quilómetros de diâmetro. O fundo da ba-cia montanhosa estava coberto por um lago quase perfeitamente redondo. Apesar de ser Verão, flutuavam à superfície espelhada pedaços de gelo tão grandes como Volkswagens.

— Lac du Dormeur — disse o professor. — Formado pelo recuo de um glaciar durante a Idade do Gelo e agora alimentado por águas glaciares.

— É o maior Martini com gelo que já vi — gracejou Rawlins. Thurston riu-se. — É transparente como gin, mas não vai encontrar

nenhuma azeitona no fundo. Aquela grande estrutura quadrada cravada na montanha ao lado do glaciar é a central elétrica. A cidade mais próxima fica do outro lado da cordilheira.

O helicóptero sobrevoou um grande barco ancorado com aspecto ro-busto. Do convés erguiam-se gruas e guindastes.

— O que se passa lá em baixo? — perguntou Rawlins. — Algum tipo de projecto arqueológico — explicou Thurston. — O

barco deve ter subido o rio que serve de escoadouro ao lago. — Dou uma vista de olhos mais tarde — disse Rawlins. — Talvez con-

siga que o meu editor me aumente se voltar com duas histórias pelo preço de uma. — Olhou em frente, vendo uma ampla língua de gelo que preen-chia o vão entre duas montanhas. — Uau! Aquele deve ser o nosso glaciar.

— Isso mesmo. La Langue du Dormeur. A Língua do Adormecido.Sobrevoaram o rio de gelo que descia por um vale amplo até ao lago.

Sopés de montanha agrestes de rocha negra salpicada de neve ladeavam o glaciar de ambos os lados, moldando-o numa extremidade arredondada. Os limites do gelo eram irregulares nos pontos onde o fluxo encontrava fis-suras e ravinas. Tinha uma tonalidade azulada e fracturas à superfície como a língua áspera de um pesquisador de ouro perdido há muito tempo.

Rawlins inclinou-se para ver melhor. — O Adormecido devia ver um médico. A língua parece muito doente.

— Tal como disse, liberdade poética — tornou Thurston. — Mais um pouco. Estamos prestes a aterrar.

O helicóptero projectou-se para a frente sobre a aresta principal do glaciar e o piloto iniciou uma curva lenta e pronunciada. Momentos mais tarde, os patins pousavam sobre uma superfície de erva castanha a uns ses-senta metros do lago.

Thurston ajudou o piloto a descarregar várias caixas e sugeriu que Ra-wlins esticasse as pernas. O repórter caminhou até junto da água. A quietu-de do lago era inacreditável. Não havia deslocação de ar que perturbasse a

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superfície, parecendo suficientemente sólida para que alguém a atravessasse a pé. Lançou uma pedra para se assegurar de que o lago não estava gelado.

O seu olhar passou das pequenas ondas que se alargavam até ao barco ancorado a cerca de quilómetro e meio da margem. Reconheceu de ime-diato a pintura verde e azul-turquesa do casco. Encontrara embarcações com cores idênticas noutros trabalhos. Mesmo sem a sigla NUMA pintada em grandes letras, sabia que pertencia à Agência Nacional Subaquática e Marítima4. Questionou-se sobre o que faria um navio da NUMA naquele local remoto tão distante do oceano mais próximo.

Havia ali, decididamente, uma história inesperada, mas teria de es-perar. Thurston chamava-o. Um velho Citroën de 2 cavalos aproxima-va-se do helicóptero rodeado por uma nuvem de pó. O carro diminuto parou junto à aeronave e um homem que se assemelhava a um troll da montanha saiu do lado do condutor como uma criatura emergindo de um ovo disforme. Era baixo e tinha pele escura, com barba negra e ca-belo comprido.

Apertou a mão de Thurston com vigor. — É bom voltar a tê-lo con-nosco, Monsieur le professeur. E você deve ser o jornalista, Monsieur Ra-wlins. Eu sou Bernard LeBlanc. Bem-vindo.

— Obrigado, Dr. LeBlanc — disse Rawlins. — Tenho ansiado muito por esta visita. Mal posso esperar para ver o trabalho fabuloso que fazem aqui.

— Então venha daí — replicou LeBlanc, pegando no saco de viagem do repórter. — A Fifi espera-nos.

— A Fifi? — Rawlins olhou em redor como se esperasse ver uma bai-larina de cabaré.

Thurston indicou o Citroën com o polegar de forma irreverente. — Fifi é o nome do carro do Bernie.

— E porque não haveria de baptizar o meu carro com um nome de mulher? — perguntou LeBlanc, fingindo estar melindrado. — É fiel e tra-balhadora. E bonita à sua maneira.

— Eu não tenho nada contra — considerou Rawlins. Seguiu LeBlanc até ao Citroën e sentou-se no banco traseiro. As caixas de mantimentos foram presas ao tejadilho. Os outros homens entraram para os bancos da frente e LeBlanc conduziu Fifi até ao sopé da montanha que flanqueava o lado direito do glaciar. Quando o carro iniciou a subida de uma estrada de cascalho, o helicóptero levantou voo, ganhou altitude sobre o lago e desapa-receu por trás de uma montanha.

— Está familiarizado com o trabalho desenvolvido no nosso obser-

4 National Underwater and Marine Agency no original. (N. do T.)

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vatório subglacial, Monsieur Rawlins? — perguntou LeBlanc por cima do ombro.

— Trate-me por Deke. Li a documentação. Sei que têm condições se-melhantes às do glaciar de Svartisen na Noruega.

— Correcto — intrometeu-se Thurston. — O laboratório de Svartisen fica duzentos metros abaixo do gelo. O nosso aproxima-se dos duzentos e cinquenta. Em ambos os locais, a água que resulta da liquefacção do glaciar é conduzida para uma turbina que produz energia hidroeléctrica. Quando os engenheiros abriram as condutas de água, fizeram um túnel adicional sob o glaciar para albergar o observatório.

O carro penetrou numa floresta de pinheiros anões. LeBlanc conduzia ao longo do caminho estreito com displicência aparente. As rodas estavam separadas por centímetros de uma queda a pique. À medida que a inclinação aumentava, o motor modesto e esforçado do Citroën começou a dar de si.

— Parece que a Fifi está a mostrar a idade que tem — disse Thurston. — É o coração que importa — respondeu LeBlanc. Moviam-se a ve-

locidade de caracol quando a estrada chegou ao fim. Saíram do carro e Le-Blanc passou a cada um deles um arreio para as costas, colocando também um. Cada arreio foi carregado com uma caixa de mantimentos.

Thurston desculpou-se. — Desculpe, mas temos de usá-lo como car-regador. Trouxemos mantimentos para as três semanas que aqui passare-mos, mas gastámos o nosso fromage e o nosso vin mais depressa do que o planeado e aproveitámos a sua visita para trazer mais coisas.

— Não há problema — disse Rawlins com um sorriso prestável, ajus-tando o peso com perícia para que não lhe forçasse os ombros. — Cos-tumava transportar mantimentos para cabanas na Montanha Branca em New Hampshire antes de me tornar um operário da escrita.

LeBlanc liderou o caminho por um caminho que subia ao longo de quase cem metros entre pinheiros mirrados. Acima das copas das árvo-res, o terreno reduzia-se a extensões lisas de rocha. Uma linha de spray de tinta amarela marcava o caminho. Em breve, tornou-se mais íngreme e mais liso onde as rochas tinham sido gastas por milhares de anos de acti-vidade glaciar. A água que corria do alto tornava a superfície escorregadia e traiçoeira. De tempos a tempos, atravessavam fissuras repletas de neve parcialmente liquefeita.

O repórter arfava com o cansaço e a altitude. Suspirou de alívio quan-do pararam finalmente numa plataforma junto a uma parede de rocha ne-gra que subia num ângulo quase vertical. Estavam uns seiscentos metros acima do lago, que brilhava com os raios do sol do meio-dia. O glaciar es-tava escondido por uma escarpa, mas Rawlins conseguia sentir o frio que irradiava como se alguém tivesse deixado a porta de um frigorífico aberta.

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Thurston apontou uma abertura redonda rodeada por cimento na base do penhasco. — Bem-vindo ao Palácio do Gelo.

— Parece um esgoto. Thurston riu e curvou-se, baixando a cabeça ao liderar o caminho por

um túnel de metal irregular com cerca de metro e meio de diâmetro. Os outros seguiram-no com passos inseguros provocados pela carga. A passa-gem terminava após trinta metros, num túnel com iluminação fraca. Nas paredes de rocha metamórfica laranja, brilhantes e húmidas, havia listas negras de minerais mais escuros.

Rawlins olhou em redor, surpreso. — Podiam guiar um camião por esta coisa.

— E sobrava espaço. Tem nove metros de altura e nove de largura — explicou Thurston.

— É pena não ter conseguido espremer a Fifi pela sarjeta, — disse Rawlins.

— Pensámos nisso. Há uma entrada suficientemente grande para um carro perto da central eléctrica, mas o Bernie teve medo que ela se amol-gasse nos túneis.

— A Fifi tem uma constituição muito delicada — confirmou LeBlanc com um grunhido.

O francês abriu um armário de plástico encostado à parede. Passou aos outros botas de borracha e capacetes de mineiro.

Minutos mais tarde, caminhavam pelo túnel fora, com os passos a ecoarem nas paredes. Durante o caminho, Rawlins estreitou os olhos para a penumbra fora do alcance da lanterna do capacete. — Não é propriamente a Broadway.

— A companhia eléctrica instalou a luz quando abriu o túnel. Muitas das lâmpadas fundidas nunca foram substituídas.

— Já lhe devem ter perguntado isto mas o que o atraiu na glaciologia? — quis saber Rawlins.

— Não é a primeira vez que ouço essa pergunta. As pessoas pensam que os glaciólogos são um pouco estranhos. Estudamos massas de gelo antigas e enormes que se movem com lentidão e levam séculos a chegar a algum lado. Não é trabalho para um homem adulto, não te parece, Bernie?

— Talvez não mas, uma vez, conheci uma rapariga esquimó simpática no Yukon.

— Falaste como um verdadeiro glaciólogo — disse Thurston. — Parti-lhamos um amor pela beleza e o desejo de passar tempo ao ar livre. Muitos de nós foram seduzidos pela nossa primeira visão inspiradora de um cam-po de gelo. — Fez um gesto indicando as paredes do túnel. — Por isso, é

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irónico que passemos semanas de cada vez debaixo de um glaciar, longe do sol, como um bando de toupeiras.

— Veja o que isso me fez — acrescentou LeBlanc. — Temperatura constante de dois graus e cem por cento de humidade. Costumava ser alto e louro, mas encolhi e transformei-me neste monstro atroz.

— És um monstro baixote e atroz desde que te conheço — disse Thurston. — Ficamos aqui em baixo durante períodos de três semanas e concordo que nos tornamos algo parecidos com toupeiras. Mas até o Ber-nie concordará que temos sorte. A maioria dos glaciólogos apenas observa campos de gelo de cima. Nós podemos fazer-lhe cócegas na barriga.

— Qual é a natureza precisa das vossas experiências? — perguntou Rawlins.

— Estamos a levar a cabo um estudo de três anos sobre o movimento dos glaciares e sobre o que fazem à rocha sobre a qual deslizam. Espero que consiga fazer isso parecer mais emocionante quando escrever o artigo.

— Não será muito difícil. Com o interesse geral no aquecimento glo-bal, a glaciologia transformou-se num tema quente.

— Foi o que ouvi dizer. O reconhecimento é devido há muito. Os gla-ciares são afectados pelo clima, por isso podem dizer-nos com uma mar-gem de erro pequena qual a temperatura na Terra há milhares de anos atrás. Além disso, despoletam alterações climáticas. Ah, cá estamos nós. No Club Dormeur.

Quatro pequenos edifícios semelhantes a caravanas estavam coloca-dos traseira com traseira numa concavidade escavada na parede.

Thurston abriu a porta da estrutura mais próxima. — Todos os confor-tos do lar — disse. — Quatro quartos com espaço para oito pesquisadores, cozinha, casa de banho com chuveiro. Normalmente, temos um geólogo e outros cientistas, mas estamos limitados a uma equipa básica formada pelo Bernie, por um pesquisador jovem da Universidade de Uppsala e por mim. Pode deixar os mantimentos aqui. Estamos a cerca de trinta minutos a pé do laboratório. Temos ligações telefónicas entre a entrada, o túnel de pesquisa e o laboratório. É melhor avisar o pessoal do observatório de que voltámos.

Pegou num telefone colocado na parede e disse algumas palavras. O seu sorriso transformou-se numa expressão consternada.

— O quê? — Ouviu com atenção. — Está bem. Vamos já para aí. — Passa-se alguma coisa, Professor? — perguntou LeBlanc.A testa de Thurston cobriu-se de rugas. — Acabo de falar com o meu

assistente de pesquisa. Incrível!— Qu’est-ce que c’est? — perguntou LeBlanc. Thurston parecia atordoado. — Disse que encontrou um homem pre-

so no gelo.

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4

Sessenta metros abaixo da superfície do Lac du Dormeur, em águas suficientemente frias para matar um humano desprotegido, a esfera relu-zente flutuava sobre o fundo sepulcral do lago glacial como um fogo-fátuo num pântano da Geórgia. Apesar do ambiente hostil, o homem e a mulher sentados lado a lado dentro da cabina transparente de acrílico estavam tão descontraídos como se estivessem num sofá.

O homem tinha constituição física vigorosa, com ombros asseme-lhando-se a aríetes gémeos. A exposição ao mar e ao sol bronzearam as feições rudes banhadas em luz laranja difusa do painel de instrumentos e aclararam o cabelo prematuramente grisalho, conferindo-lhe uma cor qua-se platinada. Com o rosto cinzelado e expressão intensa, Kurt Austin tinha cara de guerreiro de uma coluna de vitória romana. Mas a dureza subjacen-te à cara polida era aligeirada por um sorriso fácil e os olhos penetrantes de azul coralino reluziam com bom humor.

Austin era o líder da Equipa de Missões Especiais da NUMA, criada pelo antigo director, o Almirante James Sandecker, agora vice-presidente dos Estados Unidos, para levar a cabo missões subaquáticas que, frequen-temente, decorriam em segredo longe da supervisão governamental. En-genheiro náutico por formação e por experiência, viera para a NUMA da CIA, onde trabalhara para um departamento obscuro especializado em re-colha subaquática de informações.

Após a sua chegada à NUMA, reunira uma equipa de especialistas que incluía Joe Zavala, um brilhante engenheiro perito em veículos sub-marinos, Paul Trout, um geólogo das profundezas oceânicas e a mulher, Gamay Morgan-Trout, mergulhadora muito experiente que se especiali-zara em arqueologia náutica antes de conseguir o seu doutoramento em

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biologia marinha. Trabalhando juntos, haviam liderado várias missões de exploração bem-sucedidas, solucionando enigmas bizarros e sinistros nos oceanos do planeta.

Nem todas as missões que Austin aceitava tinham perigo. Algumas, como a actual, eram bastante prazenteiras e compensavam plenamente as dores, nódoas negras e cicatrizes que coleccionara em inúmeros trabalhos para a NUMA. Apesar de conhecer a sua companheira há apenas alguns dias, estava completamente rendido a ela. Skye Labelle estava nos trinta anos tardios. Tinha pele morena e olhos azuis matreiros que espreitavam debaixo do barrete de lã. O cabelo era castanho-escuro, quase preto. A boca era larga demais para ser clássica, mas os lábios eram cheios e sensuais. Ti-nha um bom corpo, mas nunca seria suficiente para aparecer na capa da revista Sports Ilustrated. A voz era suave e tranquila e, quando falava, era óbvio que tinha um espírito perspicaz.

Apesar de ser mais encantadora do que bonita, Austin achava que era uma das mulheres mais atraentes que já conhecera. Lembrava-lhe o retrato de uma condessa com cabelo cor de asa de corvo que vira pendurado numa parede do Louvre. Austin admirara a forma como o artista conseguira cap-tar a paixão e franqueza inabalável no olhar do modelo. A mulher no qua-dro possuía uma malícia no olhar, como se quisesse livrar-se dos ornamen-tos requintados e correr descalça por um prado. Desejou tê-la conhecido em pessoa. E, agora, parecia que o seu desejo tinha sido realizado.

— Acredita na reencarnação? — perguntou Austin, pensando no re-trato do museu.

Skye pestanejou, surpresa. Tinham estado a falar de geologia glacial. — Não sei. Porque pergunta? — Falava inglês com um ligeiro sotaque

francês.— Por nada. — Austin fez uma pausa. — Tenho outra pergunta pes-

soal.Ela lançou-lhe um olhar cauteloso. — Acho que já sei. É sobre o meu

nome. — Nunca conheci ninguém chamado Skye Labelle antes. — Algumas pessoas acreditam que fui baptizada com o nome de uma

stripper de Las Vegas.Austin riu-se. — É mais provável que alguém na sua família tivesse

uma disposição poética. — Os meus pais eram loucos — disse, rebolando os olhos. — O meu

pai foi enviado para os Estados Unidos como diplomata. Um dia, foi ao festival de balões de ar quente de Albuquerque e, desde então, tornou-se um aeronauta fanático. O meu irmão mais velho chama-se Thaddeus, em memória do balonista pioneiro, Thaddeus Lowe. A minha mãe é uma ar-

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tista americana de espírito rebelde, por isso achou que o meu nome seria fabuloso. O meu pai insiste que escolheu o nome devido à cor dos meus olhos, mas todos sabem que os bebés nascem com olhos de cor neutra. Não me importo. Acho que é um bom nome.

— Não há nomes melhores do que “Lindo Céu.” — Merci. E obrigado por tudo isto! — olhou através da bolha e bateu

as mãos com uma alegria infantil. — É absolutamente maravilhoso! Nunca sonhei que os meus estudos de arqueologia pudessem levar-me a deslocar--me debaixo de água numa grande bolha.

— Deve ser melhor do que polir armaduras medievais num museu a cheirar a bolor — disse Austin.

O riso de Skye era caloroso e desinibido. — Passo muito pouco tempo em museus, excepto quando organizo uma exposição. Actualmente, faço muito trabalho para empresas como suporte da pesquisa.

Austin ergueu uma sobrancelha. — Pensar que a Microsoft ou a Gene-ral Motors podem contratar uma especialista em armas e armaduras faz-me duvidar dos seus planos.

— Pense melhor. Para sobreviver, uma empresa tem de tentar matar ou ferir a concorrência enquanto se defende. Em sentido figurado.

— Um verdadeiro duelo de morte — disse Austin. — Nada mal. Usarei essa frase na minha próxima palestra.— Como ensina um grupo de executivos a digladiarem-se? Em senti-

do figurado, claro. — A ânsia pela carnificina já lá está. Faço-os pensar “fora da caixa”,

como gostam de dizer. Peço-lhes que finjam fornecer armas a forças con-correntes. Os antigos armeiros tinham de ser metalúrgicos e engenheiros. Muitos eram artistas, como Leonardo, que desenhou máquinas de guerra. As armas e a estratégia mudavam constantemente e as pessoas que forne-ciam os exércitos tinham de se ajustar rapidamente às novas condições.

— As vidas dos clientes dependiam disso. — Exactamente. Posso fazer com que um grupo conceba uma má-

quina de cerco, enquanto outro pensa em formas de defesa. Ou posso dar a um dos lados flechas perfuradoras de metal enquanto os outros tentam conceber uma armadura funcional mas sem deixar de ser prática. A seguir mudamos de lado e tentamos novamente. Aprendem a usar a sua inteligên-cia em vez de confiarem exclusivamente em computadores.

— Talvez deva oferecer os seus serviços à NUMA. Aprender a abrir buracos com uma catapulta numa parede com três metros de espessura parece muito mais divertido do que olhar para gráficos de orçamento.

Um sorriso malicioso perpassou pela face de Skye. — Sabe que os ho-mens estão em maioria entre os executivos?

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— Rapazes e os seus brinquedos. Uma fórmula infalível para o suces-so.

— Admito que apelo ao lado infantil dos meus clientes, mas as minhas sessões são imensamente populares e muito lucrativas. E dão-me a flexibi-lidade para trabalhar em projectos que poderiam não ser possíveis com o meu salário da Sorbonne.

— Projectos como o estudo das antigas rotas comerciais?Ela acenou afirmativamente. — Seria um grande passo em frente se

conseguisse provar que o estanho e outros bens viajavam por terra ao lon-go da velha Rota do Âmbar, através das passagens e vales dos Alpes até ao Adriático, onde navios fenícios e minóicos asseguravam o transporte para os extremos orientais do Mediterrâneo. E que o comércio era bidireccio-nal.

— A logística da sua rota comercial hipotética seria complexa. — Você é um génio! É precisamente aí que quero chegar.— Obrigado pelo elogio, mas apenas me baseei na minha experiência

no transporte de pessoas e materiais. — Então sabe como seria complicado. Os povos ao longo da rota

terrestre, como os celtas ou os etruscos, teriam de cooperar em acordos comerciais para que o movimento das mercadorias se fizesse. Acho que o comércio era muito mais intenso do que os meus colegas admitem. Tudo isto tem implicações fascinantes no modo como vemos as civilizações da Antiguidade. Não se resumia tudo à guerra. Conheciam o valor das alian-ças pacíficas muito tempo antes da União Europeia ou da NAFTA5. E pre-tendo prová-lo.

— Globalização na antiguidade? É um objectivo ambicioso. Desejo-lhe sorte.

— Vou precisar dela. Mas, se for bem-sucedida, terei de lhe agradecer a si e à NUMA. A sua agência tem sido muito generosa nas autorizações para usar o veículo de pesquisa e o restante equipamento.

— Funciona nos dois sentidos. O seu projecto dá à NUMA uma opor-tunidade para testar o novo veículo em águas calmas e ver como se com-porta no terreno.

Skye fez um gesto abrangente com a mão. — O cenário é magnífico. Apenas precisamos de uma garrafa de champanhe e de foie gras.

Austin inclinou-se e passou uma pequena geleira de plástico à com-panheira. — Não a posso ajudar mas que tal uma sandes de jambon e fro-mage?

5 North American Free Trade Area (Área de Comércio Livre Norte-Americana), zona de comércio livre de tarifas estabelecida pelos Estados Unidos, pelo Canadá e pelo México. (N. do T.)

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— Fiambre e queijo seriam as minhas segundas escolhas. — Abriu a geleira, tirou uma sandes, passou-a a Austin e tirou outra para si.

Austin parou o submersível. Enquanto mastigava o almoço, saborean-do a baguete estaladiça e o naco cremoso de queijo Camembert¸ estudou o mapa do lago.

— Estamos aqui, perto de uma plataforma natural mais ou menos pa-ralela à margem — explicou, passando o dedo sobre uma linha ondulante. — Pode ter sido terra firme há séculos atrás.

— Encaixa nas minhas descobertas. Uma secção da Rota do Âmbar passava junto à margem do Lac du Dormeur. Quando o nível das águas subiu, os mercadores procuraram outro caminho. Qualquer coisa que en-contrássemos aqui seria muito antiga.

— O que procuramos ao certo?— Saberei quando vir. — Parece-me bem. — Confia demasiado nas pessoas. Vou elaborar. As caravanas que per-

corriam a Rota do Âmbar precisavam de locais para passar a noite. Procuro ruínas de hospedarias ou povoações que possam ter-se desenvolvido em redor de um ponto de paragem. A seguir, espero encontrar armas que per-mitam completar a história deste comércio.

Acompanharam o almoço com água Evian e os dedos de Austin des-lizaram sobre os controlos. Os motores alimentados por uma bateria eléc-trica zumbiram, activando os propulsores laterais gémeos em que a esfera assentava, e o submersível prosseguiu a exploração.

O SEAmobile da SEAmagine media quatro metros e meio de compri-mento, aproximadamente o mesmo que um baleeiro de Boston de médio calibre, e apenas dois de largura, mas era capaz de transportar duas pessoas com conforto e a pressão atmosférica adequada até uma profundidade de quatrocentos e cinquenta metros durante horas de cada vez. O veículo ti-nha um alcance de doze milhas náuticas e uma velocidade máxima de dois nós e meio. Ao contrário da maioria dos submersíveis, que oscilavam como uma rolha à superfície, o SEAmobile podia ser manobrado como um bar-co. Flutuava sobre as ondas quando não estava submerso, possibilitando ao piloto uma visibilidade clara e podia navegar até um ponto de mergulho ou acompanhar uma plataforma.

Parecia ter sido construído com peças extra abandonadas por um la-boratório subaquático. A cabina semelhante a uma bola de cristal tinha um metro e trinta de diâmetro e assentava sobre dois cilindros de flutuação do tamanho de condutas de água. Duas armações protectoras de metal em forma de D flanqueavam a esfera.

Fora concebido para assegurar flutuação em todas as alturas e a ten-

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dência para subir à superfície era contrariada por um propulsor vertical montado ao centro. Porque o SEAmobile tinha sido concebido para per-manecer nivelado, à superfície ou abaixo dela, o piloto não tinha de operar controlos de flutuação para o manter na horizontal.

Usando um instrumento de navegação acústico Doppler para contro-lar a sua posição, Austin conduziu o submersível ao longo da escarpa suba-quática, uma ampla placa que se tornava gradualmente mais inclinada em direcção às profundezas. Seguindo um padrão de busca básico, descreveu uma série de linhas paralelas como alguém que aparasse um relvado. Os quatro projectores de halogéneo iluminaram o fundo, cujos contornos fo-ram desenhados pelo avanço e recuo dos glaciares.

Moveram-se para trás e para diante durante duas horas e os olhos de Austin começavam a enevoar-se de tanto tempo a fitar a monótona paisa-gem aquática. Skye continuava fascinada pelo carácter único do ambien-te circundante. Debruçou-se com o queixo apoiado nas mãos, estudando cada metro quadrado do fundo do lago. Com o tempo, a sua persistência deu fruto.

— Ali! — Apunhalava o ar com um dedo. Austin abrandou o veículo e olhou uma forma vaga imediatamente

além do alcance das luzes, aproximando o submersível para conseguirem ver melhor. O objecto colocado de lado era uma colossal placa de pedra com cerca de três metros de comprimento e metade de largura. As marcas de cinzel visíveis ao longo dos seus limites sugeriam que não era uma for-mação rochosa natural. Era possível ver outros monólitos nas imediações, alguns de pé, outros coroados com um terceiro idêntico, como a letra grega pi.

— Parece que nos perdemos e viemos parar a Stonehenge — disse. — São monumentos funerários — disse Skye. — Os arcos indicam o

caminho para os cortejos fúnebres. Austin aumentou a potência dos propulsores e o veículo deslizou so-

bre seis arcos semelhantes com espaços de nove metros entre cada um. A seguir, o fundo começou a elevar-se de cada lado, criando um vale pouco profundo. As elevações naturais transformaram-se em muralhas ciclópicas construídas com enormes blocos talhados à mão.

O desfiladeiro estreito terminou de forma abrupta numa parede ver-tical. Recortada na parede havia uma abertura rectangular semelhante à porta de um abrigo para elefantes. Um lintel com cerca de nove metros de largura estava colocado sobre a porta e, sobre a enorme lápide, havia um buraco triangular menor.

— Incrível — disse Skye em voz baixa. — É um tholos. — Já viu isto antes?

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— É um túmulo em colmeia. Há um em Micenas a que chamam “o Tesouro de Atreu.”

— Micenas. Isso fica na Grécia. — Sim, mas o desenho é ainda mais antigo. Os túmulos datam do ano

2200 a.C.. Eram usados para enterros conjuntos em Creta e noutras partes do Egeu. Kurt, sabe o que isto quer dizer? — A voz vacilou-lhe com a emo-ção. — Poderemos comprovar a existência de ligações comerciais entre o Egeu e a Europa muito anteriores ao que alguém teria ousado sugerir. Daria qualquer coisa para ver o túmulo mais de perto.

— O meu preço padrão para excursões a túmulos subaquáticos é um convite para jantar.

— Pode levar-nos lá dentro?— Porque não? Temos espaço mais do que suficiente de ambos os la-

dos e por cima. Se avançarmos lentamente…— Que se lixe a lentidão! Dépêche-toi. Vite, vite! Austin riu-se e fez avançar o submersível em direcção à abertura ne-

gra. Estava tão ansioso como Skye, mas prosseguia com cautela. As luzes começavam a sondar o interior quando uma voz se ouviu através do recep-tor rádio do veículo.

— Kurt, daqui controlo, escuto. As palavras transmitidas através da água tinham uma vibração metáli-

ca, mas Austin reconheceu a voz do comandante do navio da NUMA. Imobilizou o submersível e pegou no microfone. — Daqui SEAmobile,

escuto. — Ouço-o mal e com interferências. Diga, por favor, à Sra. Labelle que

François quer falar com ela. François Balduc era o observador francês que a NUMA convidara a

bordo como cortesia para com o governo local. Era um burocrata jovial e de meia-idade que tentava não atrapalhar e se mantinha de parte, excepto ao jantar, altura em que ajudava na cozinha e produzia iguarias memorá-veis. Austin passou o microfone a Skye.

Seguiu-se uma discussão acesa em francês, terminada quando Skye devolveu o microfone.

— Merde! — disse com uma expressão de desagrado. — Temos de subir.

— Porquê? Ainda nos resta ar e os motores aguentam mais tempo.— François recebeu uma chamada de um figurão no governo. Preci-

sam de mim imediatamente para identificar um artefacto qualquer. — Não me parece muito urgente. Pode esperar?— Pessoalmente, acho que pode esperar até Napoleão voltar do exí-

lio — disse com um suspiro. — Mas o governo subsidia parcialmente a

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minha pesquisa aqui e estou de serviço, por assim dizer. Lamento.Austin olhou com olhos ávidos para a abertura. — Este túmulo esteve

escondido de olhos humanos durante possivelmente milhares de anos. Não vai a lado nenhum.

Ela acenou com a cabeça em concordância, apesar de, claramente, o coração ter opinião diferente.

Olharam a porta misteriosa com intensidade desejosa até Austin ma-nobrar o submersível na direcção oposta. Fora do desfiladeiro, accionou o propulsor vertical e iniciaram a subida.

Momentos mais tarde, a cabina em bolha emergiu à superfície, perto do catamarã da NUMA. Manobrou o veículo por trás do barco e aproxi-mou-o de uma plataforma submersa entre os cascos gémeos. A comporta ergueu-se e um guindaste içou-a e ao submersível para o convés.

François esperava a sua vinda com a ansiedade marcada na expressão habitualmente neutra. — Peço desculpa por interromper o seu trabalho, Mademoiselle Skye. O cochon que me ligou foi muito insistente.

Beijou-o superficialmente na face. — Não se preocupe, François. A culpa não é sua. Diga-me o que querem.

Apontou as montanhas. — Querem que vá ali.— Ao glacier? De certeza?A resposta foi um aceno afirmativo e vigoroso. — Sim, perguntei o

mesmo. Foram muito claros quando disseram que precisavam dos seus co-nhecimentos. Encontraram alguma coisa no gelo. É tudo o que sei. O barco aguarda.

Skye voltou-se para Austin com uma expressão ansiosa. Ele anteci-pou-lhe as palavras. — Não se preocupe. Espero até regressar antes de vol-tar ao túmulo.

Seguiu-se um abraço caloroso e dois beijos na face. — Merci, Kurt. Fico-lhe muito grata. — Lançou-lhe um sorriso qua-

se sedutor. — Há um pequeno restaurante na margem esquerda do Sena. Bons preços. — O ar confuso dele fê-la rir. — Já se esqueceu do convite para jantar? Aceito.

Antes que Austin pudesse responder, Skye desceu até ao barco que a esperava, o motor fora de borda rugiu e iniciou o percurso até à margem. Austin era um homem atraente e cheio de charme e conhecera muitas mu-lheres fascinantes e belas ao longo da sua carreira. Mas, enquanto líder da Equipa de Missões Especiais da NUMA, estava de serviço dia e noite. Era raro estar em casa e o estilo de vida nómada não era compatível com uma relação de longa duração. A maioria dos encontros era breve demais.

Sentira-se atraído por Skye desde o primeiro momento e, se interpre-tara bem os sinais presentes no seu olhar, sorriso e voz, o sentimento era

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recíproco. Divertiu-o a inversão de papéis. Habitualmente, era ele que par-tia quando o dever chamava, deixando o seu interesse romântico da altura a arrefecer o entusiasmo. Olhou o barco que se aproximava da margem e questionou-se sobre o tipo de artefacto que poderia ter criado tamanha comoção. Quase desejava tê-la acompanhado.

Apenas algumas horas depois, agradeceria aos deuses por não o ter feito.

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5

LeBlanc foi ao encontro de Skye na praia e avaliou correctamen-te a sua disposição pouco amistosa. Mas o aspecto desleixado do francês escondia o seu charme e inteligência consideráveis. Minutos após Skye ter entrado no carro, o troll fazia-a rir com histórias sobre a sua temperamental Fifi.

Skye viu que o Citroën se dirigia para um dos lados do campo de gelo e disse: — Pensei que fossemos para o glaciar.

— Não para o glaciar, mademoiselle. Vamos para baixo dele. Os meus colegas e eu estudamos o movimento do gelo num observatório duzentos metros abaixo de Le Dormeur.

— Não fazia ideia — disse Skye. — Conte-me mais.LeBlanc acedeu e embarcou numa explicação do seu trabalho no ob-

servatório. Ouvindo com atenção, a curiosidade científica de Skye suplan-tou a sua irritação por ser afastada do navio.

— E que tipo de trabalho faz no lago? — perguntou LeBlanc depois de terminar. — Saímos da nossa gruta um dia e voilà! O submersível aparecera como por magia.

— Sou arqueóloga da Sorbonne. A Agência Nacional Subaquática e Marítima teve a amabilidade de fornecer um veículo para a minha pes-quisa. Subimos o rio que alimenta o Lac du Dormeur. Espero encontrar vestígios de antigos entrepostos comerciais da Rota do Âmbar sob as águas do lago.

— Fascinante! Encontrou alguma coisa de interesse?— Sim. É por isso que estou ansiosa por voltar ao projecto tão cedo

quanto possível. Pode dizer-me por que motivo os meus serviços são exigi-dos com tamanha urgência?

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— Encontrámos um corpo preso no gelo. — Um corpo?— Achamos que é o cadáver de um homem.— Como o Homem do Gelo? — perguntou, recordando o corpo mu-

mificado de um caçador do Neolítico encontrado nos Alpes alguns anos antes.

LeBlanc abanou a cabeça. — Acreditamos que este pobre diabo tem uma origem mais recente. Começámos por pensar que fosse um alpinista caído numa fissura.

— O que vos fez mudar de ideias?— Terá de ver por si própria. — Por favor, não estou com disposição para jogos, Monsieur LeBlanc,

— ripostou Skye. — A minha especialidade são armas e armaduras antigas e não cadáveres. Porque me estão a envolver nisto?

— As minhas desculpas, mademoiselle. Monsieur Renaud pediu-nos para não dizer nada.

Skye abriu a boca de espanto. — Renaud? Da direcção arqueológica estatal?

— Precisamente, mademoiselle. Chegou horas após termos notificado as autoridades da descoberta e assumiu o controlo. Conhece-o?

— Conheço-o perfeitamente. — Pediu desculpa a LeBlanc por ter per-dido a calma e recostou-se no banco, com os braços cruzados sobre o peito. “Conheço-o muito bem,” pensou.

Auguste Renaud era professor de Antropologia na Sorbonne. Passava pouco tempo nas aulas, o que constituía uma bênção para os alunos que o desprezavam e, ao invés, devotava as suas energias a jogos políticos. Forma-ra um grupo de colaboradores próximos e, servindo-se dos seus contactos, conseguira subir até uma posição nas autoridades arqueológicas estatais, onde usou a sua influência para recompensar e punir. Entravara vários pro-jectos de Skye, insinuando que poderiam ser facilitados se aceitasse dormir com ele. Skye dissera-lhe que preferia dormir com uma barata.

LeBlanc parou o Citroën e conduziu Skye até à entrada do túnel. In-troduziu-se pela conduta de acesso e, após hesitação momentânea, esta se-guiu-o até ao túnel principal. Equipou Skye com um capacete de mineiro e puseram-se em marcha. Cinco minutos mais tarde, estavam nos aposentos da equipa, onde usou um telefone para avisar o laboratório de que iam a caminho. A seguir, iniciaram a caminhada de meia hora.

Enquanto percorriam o túnel, os seus passos ecoavam pelas pare-des que pingavam constantemente. Skye olhou em redor, observando a humidade do cenário e disse: — Isto é como o interior de uma bota molhada.

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— Não são propriamente os Champs-Elysées, concordo. Mas o trânsito não é tão mau como em Paris.

Skye estava impressionada pela proeza da engenharia que o túnel re-presentava e foi bombardeando o seu guia com perguntas sobre os porme-nores à medida que se iam embrenhando mais. A dado ponto, chegaram a uma secção quadrangular de betão rodeando uma porta metálica na pa-rede.

— Onde vai dar aquela porta? — quis saber. — A outro túnel com ligação ao sistema hidroeléctrico. Quando o flu-

xo é menor no início do ano, podemos abrir a porta, atravessar um peque-no regato e chegar a pontos mais distantes dentro da rede. Mas, nesta altura do ano, a água sobe e mantemos a porta fechada.

— É possível chegar à central eléctrica a partir daqui?— Há túneis por toda a parte sob as montanhas e a cobertura de gelo,

mas apenas os que estão secos são acessíveis. Os outros transportam água até à central. Existe um rio que corre por baixo do glaciar e a corrente pode ser bastante forte. Não costumamos trabalhar tão tarde no ano. O gelo der-retido flui nas cavidades naturais sob o glaciar e a rocha, criando bolsas e tornando a nossa pesquisa mais lenta. Mas o trabalho desta Primavera levou mais tempo do que planeámos.

— Como chega o ar até aqui? — perguntou ela, inspirando a humi-dade.

— Se passássemos o laboratório e seguíssemos por baixo do glaciar por um quilómetro ou menos, chegaríamos eventualmente a uma grande abertura no extremo oposto. Foi usada para trazer as caravanas e a equipa para o laboratório, e deixaram-na aberta como a entrada de uma mina. É por aí que entra o ar.

Sky tremeu de frio. — Admiro a sua determinação. Não é o sítio mais aprazível para se trabalhar.

A gargalhada profunda de LeBlanc ecoou pelas paredes. — É tudo menos aprazível. É extremamente aborrecido e andamos sempre ensopa-dos até aos ossos. Precisamos de ir à superfície nalgumas ocasiões durante a nossa estadia de três semanas, mas é deprimente ter de voltar aos túneis e acabamos por passar muito tempo no laboratório que é seco e está bem iluminado. Tem computadores, bombas de vácuo para filtrar sedimentos e até uma sala frigorífica para podermos guardar amostras de gelo sem que derretam. Após um dia de trabalho de dezoito horas, tomamos um duche e enfiamo-nos na cama, por isso o tempo passa depressa. Estamos quase lá.

À semelhança dos aposentos da equipa, as caravanas do laboratório estavam aninhadas numa concavidade escavada na parede. Quando Le-Blanc se aproximou da caravana mais próxima, a porta abriu-se e uma fi-

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gura magra saiu. Ver Renaud deu novo alento à ira de Skye. Assemelhava-se mais a um louva-a-deus do que a uma barata. Tinha uma cara triangular, mais larga no topo, e um queixo pontiagudo. O nariz era longo e os olhos pequenos e muito próximos. O cabelo ralo era de um vermelho pálido.

Renaud cumprimentou Skye com o aperto de mão mole e húmido que lhe provocara repulsa da primeira vez que se encontraram.

— Bom dia, minha cara Mademoiselle Labelle. Obrigado por vir a esta caverna escura e húmida.

— Não tem de quê, Professor Renaud. — Olhou em redor, absorven-do a natureza agreste das imediações. — Deve sentir-se em casa.

Renaud ignorou a sugestão velada de que tinha rastejado de baixo de uma pedra e passou os olhos pelo corpo bem composto de Skye, como se tentasse ver através das roupas pesadas que trazia. — Qualquer sítio onde estejamos juntos agrada-me bastante.

Skye conteve o vómito. — Talvez possa explicar-me o que há de tão importante que exija afastar-me do meu trabalho.

— Com prazer. — Aproximou-se para lhe dar o braço mas Skye ante-cipou-se e agarrou o braço de LeBlanc.

— Indique o caminho — disse. O glaciólogo observara divertido a esgrima verbal. Os seus lábios se-

pararam-se num sorriso cheio de dentes e seguiu com Skye a seu lado até um lanço íngreme de degraus de madeira. As escadas conduziam a um tú-nel com quatro metros de altura por três de diâmetro.

Aproximadamente a vinte passos das escadas, o túnel bifurcava-se. LeBlanc escoltou Skye pela passagem direita abaixo. Corria água por um canal escavado no chão para permitir o escoamento. Uma mangueira de borracha preta com dez centímetros de largura percorria a parede.

— Jacto de água — explicou LeBlanc. — Recolhemos a água que es-coa, aquecemo-la e projectamo-la contra o gelo para o derreter. O gelo é mole no fundo do glaciar. Estamos constantemente a derretê-lo ou, caso contrário, voltaria a formar-se a um ritmo entre sessenta e noventa centí-metros por dia.

— A rapidez é impressionante — disse Skye.— Muito. Por vezes, percorremos cinquenta metros no glaciar e temos

de estar atentos para que o gelo não feche atrás de nós. O túnel terminava numa parede gelada com uma altura que rondava

os três metros. Subiram a superfície escorregadia da rocha por uma escada e entraram numa caverna gelada com espaço suficiente para albergar mais de uma dúzia de pessoas. As paredes e o tecto eram de um branco azula-do, excepto as áreas cobertas com terra raspada pelo avanço da massa de gelo.

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— Estamos no fundo do glaciar — disse LeBlanc. — Sobre as nossas cabeças, há gelo até uma altura de duzentos e quarenta metros. Esta é a par-te mais suja do fluxo. Fica mais limpo no interior. Tenho de vos deixar agora para fazer algo que Monsieur Renaud me pediu.

Skye agradeceu-lhe e a sua atenção concentrou-se na parede mais distante, onde um homem vestido com um impermeável projectava água quente sobre o gelo, servindo-se de uma mangueira. O gelo derretido gera-va nuvens de vapor que tornavam o ar húmido e dificultavam a respiração. O homem desligou o jacto quando se apercebeu da presença dos visitantes e aproximou-se para os cumprimentar.

— Bem-vinda ao nosso pequeno observatório, Mademoiselle Labelle. Espero que a viagem do exterior não tenha sido demasiado árdua. Chamo-me Hank Thurston. Sou colega do Bernie. Este é Craig Rossi, o nosso as-sistente da Universidade de Uppsala — disse, indicando com um gesto um jovem de vinte e poucos anos, — e este é Derek Rawlins, que está a escrever um artigo sobre o nosso trabalho para a revista Outside.

Enquanto Skye distribuía apertos de mão, Renaud adiantou-se aos outros e aproximou-se da parede para examinar uma figura vagamente hu-mana aprisionada no gelo.

— Como vê, este cavalheiro está congelado há algum tempo — disse. Olhando para Skye, acrescentou: — À semelhança de algumas mulheres que conheço.

Ninguém se riu da piada. Skye passou por ele e seguiu com os dedos os contornos da figura escura. Tinha os membros torcidos em posições gro-tescas.

— Encontrámo-lo quando alargávamos a caverna — explicou Thurs-ton.

— Parece mais um insecto esmagado num pára-brisas do que um ho-mem — disse Skye.

— Temos sorte por não ser só uma mancha engordurada — afirmou Thurston. — Está bem conservado, dadas as circunstâncias. O gelo no fun-do do glaciar e tudo o que contenha é esmagado por uma pressão de cen-tenas de toneladas.

Skye olhou a figura vaga. — Acha que esteve à superfície do glaciar nalgum ponto no passado?

— Com certeza, — disse Thurston. — Num vale glaciar como Le Dor-meur e nalguns dos outros existentes nos Alpes, uma quantidade conside-rável de neve move-se com rapidez através do gelo.

— Quanto tempo levaria?— De acordo com a minha estimativa, cem anos, mais ou menos, para

ir da superfície ao fundo de Le Dormeur. Apenas resultaria com um objecto

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caído perto da origem do glaciar no alto das montanhas, onde o gelo flui também na vertical e não apenas na horizontal.

— Então é possível que seja um alpinista que caiu numa fissura?— Foi isso que pensámos ao início. Depois observámos com mais

atenção.Skye aproximou a cara do gelo. O corpo estava vestido quase inteira-

mente com cabedal escuro, das botas ao capacete justo, semelhante ao usa-do por Snoopy na sua encarnação de aviador. Viam-se pedaços de um forro de pêlo a espaços. Um coldre, ainda com a pistola no interior, pendurava-se de um cinto.

Moveu o olhar para a cara. As feições não eram nítidas através do gelo, mas a pele tinha adquirido uma cor escura de cobre, como se tivesse estado ao sol durante tempo demais. Sobre os olhos tinha óculos de protecção.

— Incrível — murmurou, afastando-se e voltando-se para Renaud. — Mas que tem isto tudo a ver comigo?

Renaud sorriu, foi até uma caixa de plástico e retirou alguma coisa do interior. Gemeu ao erguer um elmo de metal. — Isto foi encontrado perto da cabeça do homem.

Skye pegou no elmo e estudou o desenho intrincado gravado no me-tal, unindo os lábios num esforço reflexivo. A viseira fora moldada com as feições de um homem com nariz grande e bigode farto. O topo estava de-corado com flores e ramos entrelaçados de forma complexa, com criaturas míticas girando como planetas em torno de uma águia com três cabeças. Os bicos da águia abriam-se num grito de desafio e tinha molhos de lanças e flechas presos nas garras afiadas.

— O elmo foi a primeira coisa que encontrámos — disse Thurston. — Desligámos a bomba imediatamente e tivemos sorte em não danificar o corpo.

— Uma decisão sábia — disse Renaud. — Um achado arqueológico é vulnerável à contaminação. Tal como o local de um crime.

Skye enfiou os dedos por uma abertura irregular no lado direito do elmo. — Isto parece um buraco de bala.

Renaud manifestou a sua desaprovação com um ronco. — Buraco de bala! Faz mais sentido que tenha sido feito por uma lança ou por uma fle-cha.

— É comum ver marcas e amolgadelas em peças de armadura pro-vocadas por testes com armas de fogo — disse Skye. — O buraco é ex-cepcionalmente limpo. E este aço é de excelente qualidade. Reparem que, à excepção de uns quantos arranhões, mal foi danificado pela pressão do gelo. Chamaram um especialista forense? — perguntou.

— Deve chegar amanhã — respondeu Renaud. — Não precisamos de

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um especialista para nos dizer que este sujeito está morto. O que nos pode dizer sobre o elmo?

— Não consigo datá-lo — respondeu ela, abanando a cabeça. — Pela forma, assemelha-se a alguns que vi, mas os símbolos são desconhecidos. Teria de localizar a marca de um armeiro e procurá-la na minha base de dados. Há aqui muitas contradições. — Olhou o corpo. — As roupas e a arma parecem do século XX. Parece ser um aviador, a julgar pelo vestuário e pelos óculos. Porque estaria a usar um elmo antigo, se é esse o caso?

— Muito interessante, Mademoiselle Labelle — disse Renaud com um suspiro impaciente, — mas esperava que pudesse ajudar mais. — Arrancou-lhe o elmo das mãos e voltou a colocá-lo na caixa depois de tirar primeiro um pequeno cofre com rebites no revestimento. Aninhava a caixa amolga-da nos braços como se fosse um bebé. — Isto estava perto do corpo. O que encontrarmos no interior pode ajudar a identificar esta pessoa e dizer-nos como chegou aqui. Entretanto — disse para Thurston, — gostaria que con-tinuasse a derreter o gelo em redor do corpo para o caso de existirem outros objectos identificativos. Assumirei a responsabilidade total.

Thurston olhou-o com cepticismo e, a seguir, encolheu os ombros. — O país é seu — disse e voltou a ligar a mangueira de água quente. Derreteu mais alguns centímetros de gelo de cada lado do corpo, mas não encontrou nada. Após algum tempo, voltaram ao laboratório para comer e aquecer e regressaram à caverna de gelo para retomar a exploração. Quando Renaud disse que ficaria no laboratório enquanto os outros voltavam à caverna, ninguém protestou.

Thurston não parara de trabalhar no gelo quando Renaud apareceu e bateu palmas para lhes atrair a atenção. — É necessário parar por agora. Temos visitas.

Vozes excitadas ecoavam ao longo da passagem. Um momento mais tarde, um trio de homens transportando câmaras de vídeo, máquinas fo-tográficas e blocos de notas entrou pela caverna dentro. À excepção de um homem mais alto que se manteve atrás, acotovelaram-se na ânsia de captar imagens do corpo.

Skye segurou Renaud pela manga e puxou-o para o lado. — O que fazem aqui estes repórteres? — exigiu saber.

Renaud olhou-a de cima para baixo. — Convidei-os. Fazem parte de uma equipa de jornalistas escolhidos para cobrir a grande descoberta.

— Nem sequer sabe o que é a descoberta — disse Skye sem disfarçar o desprezo na voz. — Há pouco passou-nos um sermão sobre a contami-nação do achado.

Os seus protestos foram calados com um gesto prepotente da mão de Renaud. — É importante que o mundo seja informado sobre este achado

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fabuloso. — Ergueu a voz para que os repórteres o ouvissem. — Responde-rei às vossas perguntas sobre a múmia depois de sairmos do túmulo — dis-se, indicando o caminho para fora da caverna. Skye explodia de raiva.

— Jesus — disse Rawlins. — Múmia. Túmulo. Parece que acaba de descobrir a sepultura de Tutankhamon.

Os fotógrafos tiraram nova série de fotografias e saíram da câmara, ficando para trás o homem alto. Rondava os dois metros, com uma cara pálida e corpo musculado proporcional à altura. Tinha uma máquina foto-gráfica ao pescoço e um grande saco de lona com equipamento pendurado do ombro. Olhou o corpo de forma impassível por um momento e, depois, seguiu os outros.

— Ouvi o que disse a Renaud — confessou Thurston a Skye. — Este local não deve tardar a congelar novamente e talvez isso sirva de protec-ção.

— Óptimo. Entretanto, vamos ver o que aquele idiota está a preparar. Apressaram-se a sair da caverna, descendo a escada e os degraus de

madeira até ao túnel principal. Renaud estava de pé à porta do complexo do laboratório, erguendo o cofre acima da cabeça.

— O que está lá dentro? — perguntou um repórter.— Não sabemos. Teremos de o abrir em circunstâncias controladas

para não danificar o conteúdo. Voltou-se para um lado e para o outro para que todos conseguissem

uma fotografia. No entanto, o homem grande com a câmara ao pescoço não aproveitou a oportunidade para imortalizar o momento. Em vez disso, passou à frente dos outros, ignorou os murmúrios de protesto dos colegas e colocou-se directamente à frente de Renaud.

— Dê-me o cofre — disse num tom neutro, estendendo uma mão intimidante.

Renaud pareceu sobressaltado. A seguir, pensando que o homem es-tava a brincar, decidiu alinhar. Sorriu e segurou o cofre contra o peito. — Só por cima do meu cadáver — disse.

— Sim — disse o homem sem elevar a voz. — Concordo plenamente.Levou a mão ao interior do casaco, tirou uma pistola e bateu com o

cano nos dedos de Renaud. O divertimento nos olhos deste cedeu lugar à surpresa e, logo a seguir, à dor. Caiu de joelhos, segurando os dedos parti-dos.

O homem apanhou o cofre antes que chegasse ao chão. Voltou-se e apontou a arma aos repórteres que se atropelaram, tentando recuar, e se-guiu com passos largos pelo túnel.

— Agarrem-no! — gritou Renaud, torturado pela dor dos dedos es-magados.

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— E o telefone? — disse um dos repórteres.Thurston levantou o auscultador da parede e levou-o ao ouvido. —

Nada — disse com preocupação. — A linha deve ter sido cortada. De qual-quer forma, não há ninguém nos aposentos. É melhor irmos até à entrada pedir ajuda.

Thurston e LeBlanc ajudaram Renaud a pôr-se de pé e trataram-lhe a mão, usando uma maleta de primeiros-socorros do laboratório, enquanto os repórteres especulavam acerca da identidade do homem. Nenhum deles o reconheceu. Limitara-se a aparecer com as credenciais adequadas e sen-tara-se no hidroavião que os deixara junto à margem do lago, onde LeBlanc os fora buscar.

LeBlanc e Skye disseram que se juntariam a Thurston. Os repórteres decidiram ficar depois de Thurston os advertir para a possibilidade de o pistoleiro esperar no túnel. Caminharam apressadamente durante vários minutos, com as lanternas dos capacetes a quebrar a escuridão. A seguir, os seus passos abrandaram e tornaram-se mais cautelosos, como se esperas-sem que o Enfarinhado emergisse das trevas. Apenas ouviram os pingos de água caindo do tecto e das paredes.

Subitamente, o estrondo de uma explosão chegou até eles através do túnel escuro à sua frente, seguido por um tremor intenso. Quase ao mesmo tempo, um sopro de ar quente percorreu o túnel. Caíram ao chão, tentando esconder as caras no piso húmido enquanto a onda de impacto passava sobre eles.

Quando pareceu seguro, puseram-se de pé e limparam a lama da cara. Tinham os ouvidos a retinir e tiveram de gritar para serem ouvidos.

— O que foi isto? — perguntou LeBlanc.— Vamos ver. — Thurston seguiu em frente, receando o pior. — Esperem — disse Skye. — O que se passa? — perguntou Thurston.— Olhem para os vossos pés. A luz das lanternas reflectia-se em alguma coisa brilhante que se mo-

via pelo chão do túnel.— Água! — gritou Thurston.A torrente vinha em sua direcção. Voltaram-se e correram, com as vagas a morder-lhe os calcanhares.

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6

Pelos binóculos, Austin vira Skye entrar no carro e seguiu o veí-culo durante a subida da encosta ao lado do glaciar até desaparecer entre as árvores. Era como se a terra a tivesse engolido. Encostando-se à amurada do navio, os seus olhos pousaram sobre La Langue du Dormeur. Com a superfície manchada e os altivos picos negros de ambos os lados, o glaciar parecia uma paisagem do planeta Plutão. O sol fazia reluzir o gelo, sem conseguir aliviar o frio que dele se exalava e que se estendia sobre as águas tranquilas.

Voltando a pensar na teoria de Skye, de que caravanas percorrendo a Rota do Âmbar contornaram o lago, tentou pôr-se na pele desses viajantes ancestrais e questionou-se sobre o que teriam pensado de um fenómeno natural tão imenso e implacável como o glaciar. O mais provável seria que o encarassem como uma criação de deuses que precisavam de aplacar. Talvez o túmulo subaquático tivesse alguma coisa a ver com o glaciar. Sentia-se tão ansioso por explorá-lo como ela. Não seria preciso grande esforço para lan-çar o submersível e fazer uma visita solitária, mas ela nunca lhe perdoaria. E ele não a culparia por isso.

Decidiu verificar se o submersível estava pronto para ser lançado quando Skye regressasse. Enquanto inspeccionava o SEAmobile com minú-cia, conseguia ouvir a voz do pai na cabeça, advertindo-o para se certificar de cada detalhe. O seu pai, o rico proprietário de uma empresa de resgate de destroços naufragados com sede em Seattle, ensinara a Kurt os princípios básicos que devem nortear o trabalho de um marinheiro juntamente com algumas pepitas de conselhos náuticos. Nunca dar um nó que não possa ser desfeito pelo simples puxar de uma corda, mesmo que esta esteja molhada. E manter sempre a embarcação “preparada e aprumada.”

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Austin interiorizara as palavras do pai e seguia-as à letra. Os nós que aprendera com treino constante nunca bloqueavam. Certificava-se de que as cordas no bote à vela que o pai lhe construíra nunca se enrolavam e que os componentes metálicos estavam sempre polidos e limpos de qualquer corrosão. Os conselhos permaneceram vivos na sua memória quando foi para a faculdade. Durante a licenciatura em Gestão de Sistemas na Univer-sidade de Washington, inscreveu-se também numa prestigiada escola de mergulho em Seattle e qualificou-se como mergulhador profissional, ob-tendo distinção em várias áreas especializadas.

Concluídos os estudos, trabalhou em plataformas petrolíferas no Mar do Norte durante dois anos e regressou à empresa de resgate de destroços naufragados do pai, onde trabalhou seis anos, antes de ser aliciado para trabalhar para o governo num departamento obscuro da CIA que se espe-cializava na recolha submarina de informações. Com o fim da Guerra Fria e o encerramento pela CIA do departamento de investigação subaquática, mudou-se para a NUMA.

Sendo um amante da filosofia e da sua busca pela verdade e por signi-ficados ocultos, Austin sabia que os conselhos do velho iam além das tare-fas práticas exigidas pela manobra de um barco. O que o pai lhe dizia, em termos simples, aplicava-se à vida e à necessidade estar pronto e prepara-do para o inesperado. Eram conselhos que encarava com seriedade e a sua atenção aos pormenores salvara-lhe a vida e a de outros à sua volta em mais do que uma ocasião.

Testou as baterias, certificou-se de que os tanques de oxigénio tinham sido substituídos por outros e examinou o veículo com olhos experientes. Satisfeito com a inspecção, bateu levemente com os nós dos dedos na bolha transparente. — Preparado e aprumado — disse com um sorriso.

Desceu do submersível para o convés do Mummichug. A embarcação de vinte e cinco metros com cascos duplos era o mais pequeno dos navios de pesquisa da NUMA em que já trabalhara. Como o minúsculo peixe que lhe dava o nome, o Mummichug sentia-se à vontade tanto em água doce como salgada. Era uma versão modificada de um barco desenhado para tarefas costeiras nas águas revoltas da costa da Nova Inglaterra.

Fiável e veloz, alimentado por motores diesel poderosos que atingiam uns implacáveis 20 nós, tinha capacidade para uma tripulação de oito ele-mentos e era ideal para missões de curta duração. Apesar do tamanho, os guindastes e a grua do Mummichug podiam erguer cargas pesadas. E um navio maior não teria conseguido navegar o rio serpenteante até ao glaciar.

Sentindo-se perdido sem poder conversar com Skye, Austin foi buscar uma chávena de café à copa e desceu até à sala de observação remota. Era um espaço apertado com vários monitores de computador colocados sobre

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mesas. Como tudo o resto no navio, o observatório tinha uma aparência modesta, apesar de nervos e gânglios electrónicos ligarem os monitores a uma rede sofisticada de sensores.

Deixou-se cair sobre uma cadeira frente a um monitor, bebeu um gole de café e activou o interface gráfico do sonar de varrimento lateral. O Dr. Harold Edgerton criara o sonar de varrimento lateral em 1963, ao instalar um sonar no casco lateral do seu navio de pesquisa e não no fundo. A des-coberta, que permitiu a veículos de superfície cobrir vastas áreas submer-sas, revolucionaria as técnicas de pesquisa subaquática.

Quando o Mummichug chegara ao local, Skye pedira uma pesquisa ao longo da margem do lago na direcção do glaciar, que constituiria um obstáculo incontornável para as caravanas. Explicou que os viajantes teriam de passar algum tempo perto do rio antes da travessia e que deveria ter exis-tido um povoado por perto. O próprio curso de água podia ser usado como parte integrante da Rota do Âmbar.

Enquanto o submersível desempenhava a sua missão subaquática, o navio continuara a pesquisa com o sonar ao longo do perímetro do lago. Austin estava interessado nos resultados. Activou o movimento lento do ecrã e a imagem de alta resolução do sonar fluiu do topo do monitor como cascatas gémeas cor de âmbar. Do lado direito, marcava-se a latitude, a lon-gitude e a posição.

Interpretar imagens de sonar exigia vista treinada, mas não era a ocu-pação mais emocionante. O fundo plano e sepulcral do Lac du Dormeur tornava tudo ainda mais monótono. Os pensamentos de Austin começa-ram a vaguear. As pálpebras dobraram de peso e começaram a fechar-se, mas voltaram a abrir-se de repente quando uma anomalia lhe despertou a atenção. Fez recuar as imagens, inclinou-se para a frente para examinar a cruz negra marcada sobre o fundo repetitivo e, com um clique do rato, ampliou os pormenores.

Estava a olhar para um avião. Conseguia mesmo ver o cockpit. Activou o botão da impressão e, segundos depois, a impressora cuspia uma ima-gem. Estudou-a com luz forte. Parte de uma das asas parecia ter desapare-cido. Pôs-se de pé e dirigiu-se à porta, pretendendo alertar o comandante para o seu achado quando François entrou pelo laboratório dentro. A sua agitação era óbvia. Habitualmente, o observador francês exibia um sorriso imperturbável, mas parecia ter acabado de ouvir que a Torre Eiffel se des-moronara.

— Monsieur Austin, tem de vir imediatamente à ponte. — O que se passa? — perguntou Austin.— É Mademoiselle Skye.O estômago de Austin deu uma cambalhota. — O que lhe aconteceu?

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Da boca do homem emergiu uma algaraviada incompreensível de francês misturado com inglês. Austin afastou o francês atabalhoado e subiu dois degraus de cada vez até à ponte. O comandante estava junto ao leme, falando para o microfone do rádio. Quando viu Kurt, disse “Attendez” e afastou o microfone para o lado.

O Comandante Jack Fortier era um homem de compleição mediana, com origens franco-canadianas e que se tornara cidadão dos Estados Uni-dos para poder trabalhar para a NUMA. A sua fluência em francês fora útil ao longo da expedição, apesar de alguns dos nativos com quem comu-nicava sorrirem ao ouvir o seu sotaque cerrado do Quebec. Fortier disse a Austin que a sobranceria não o incomodava porque a língua que falava era a mais pura, sem estar contaminada pelas pronúncias regionais francesas. Parecia não haver muita coisa que o incomodasse e foi por isso que Austin se surpreendeu ao ver a sua expressão alterada pela preocupação.

— O que aconteceu a Skye? — perguntou Austin, indo directamente ao assunto.

— Estou a falar com o supervisor da central eléctrica. Parece ter havi-do um acidente.

Austin sentiu um arrepio na espinha. — Que tipo de acidente?— Skye estava com outras pessoas num túnel por baixo do glaciar.— O que fazia lá?— Há um observatório por baixo do gelo onde os cientistas estudam

os movimentos do glaciar. Faz parte do sistema de túneis que a companhia eléctrica construiu para poder usar a água que se liberta. Parece que alguma coisa correu mal e o túnel foi inundado.

— A central conseguiu entrar em contacto com o observatório?— Não. A linha telefónica está cortada.— Então não sabemos se estão mortos ou vivos.— Assim parece — disse Fortier quase num sussurro. A notícia abalou Austin. Inspirou profundamente e expirou, tentando

pensar.Com a frieza possível, disse: — Digam ao supervisor da central que

me quero encontrar com ele. Peçam-lhe para ter disponíveis os planos de-talhados do sistema de túneis. E preparem um barco para me levar à mar-gem. — Fez uma pausa ao perceber que estava a dar ordens ao comandante. — Desculpe — corrigiu-se. — Não quis parecer um sargento a comandar recrutas. O navio é seu. Eram apenas sugestões.

— Sugestões aceites — replicou o comandante com um sorriso. — Não se preocupe. Não faço ideia do que fazer a seguir. O navio e a tripulação es-tão às suas ordens.

Pegou no microfone e começou a falar em francês.

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Austin olhou o glaciar pela janela da ponte. Estava imóvel como uma estátua, mas a calma era enganadora. A sua mente ágil acelerava, exploran-do estratégias possíveis. Mas sabia que tudo era ilusório porque, por en-quanto, não conseguia conceber um plano até saber exactamente aquilo com que lidava.

Lembrou a expressão encantadora na face Skye quando deixou o na-vio. Sabia que as probabilidades estavam contra si, mas jurou voltar a ver aquele sorriso.

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7

Uma carrinha esperava Austin na praia. O condutor subiu a coli-na até à central com velocidade avassaladora. Quando o veículo se aproxi-mava da estrutura de betão cinzento que parecia constituir um único bloco, Austin notou alguém a caminhar para trás e para a frente junto à entrada. A carrinha travou e o homem aproximou-se, abrindo-lhe a porta e esten-dendo-lhe a mão.

— Parlez-vous français, Monsieur Austin?— Parlo pouco — respondeu Austin enquanto saía. — D’accord. Muito bem — continuou o homem com um sorriso in-

dulgente. — Eu falo inglês suficiente. Chamo-me Guy Lessard. Sou o su-pervisor da central. É uma tragédia.

— Então deve saber que não podemos perder tempo — disse Austin. Lessard era baixo e magro com a cara enfeitada por um bigode cuida-

dosamente aparado. Parecia enérgico, mas de um modo nervoso, como se tivesse estado em contacto com um dos cabos que se projectavam para fora da central no alto de grandes torres metálicas.

— Sim, compreendo. Venha. Explicar-lhe-ei a situação. — Caminhan-do com passos rápidos, indicou-lhe o caminho através de uma porta.

Austin olhou em redor para o pequeno átrio. — Esperava instalações maiores.

— Não se deixe enganar — respondeu Lessard. — Este edifício é ape-nas uma antecâmara. É usado sobretudo para os escritórios e para alojar funcionários. A central estende-se pela montanha dentro. Venha.

Passaram por outra porta do lado oposto do átrio e entraram numa caverna grande e bem iluminada.

— Aproveitámos as formações rochosas naturais para facilitar a esca-

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vação — explicou, com voz que ecoava das paredes e do tecto. — Existem uns cinquenta quilómetros de túneis sob a montanha e o glaciar.

Austin emitiu um longo assobio. — Há auto-estradas mais pequenas nos Estados Unidos.

— Foi um feito formidável. Os engenheiros usaram uma máquina es-cavadora com um diâmetro de quase dez metros. Foi simples abrir o túnel de pesquisa.

Conduzia-o através da caverna até à boca de um túnel. Os ouvidos de Austin captaram um zumbido baixo, como o som produzido por uma centena de colmeias.

— Este barulho é do vosso gerador? — quis saber.— Sim. Agora temos apenas uma turbina, mas existem planos para

construir uma segunda. — Parou junto a uma porta na parede do túnel. — Chegámos. Aqui dentro fica a sala de controlo.

O cérebro da central era uma câmara estéril com cerca de quinze me-tros quadrados que se assemelhava ao interior de uma enorme slot-machine. Dispostos ao longo de três paredes, havia painéis com luzes intermitentes, interruptores, botões e manípulos. Lessard dirigiu-se a uma consola que do-minava o centro da sala, sentou-se em frente de um monitor de computador e fez sinal a Austin para se sentar a seu lado.

— Sabe o que fazemos aqui? — perguntou.— Em termos gerais. Disseram-me que canalizam o gelo derretido do

glaciar para gerar energia hidroeléctrica. Lessard acenou afirmativamente com a cabeça. — A tecnologia é re-

lativamente simples. A neve cai e acumula-se no glaciar. Durante o tempo quente, o gelo do glaciar derrete, formando bolsas de água e rios. A corrente é canalizada pelos túneis até à turbina e voilà! Gera-se electricidade. Limpa, barata e renovável. — A explicação rotineira de Lessard não conseguia dis-farçar o orgulho patente na voz.

— Simples em teoria, mas impressionante na prática — disse Austin depois de visualizar mentalmente o sistema. — Deve ter uma equipa de muitos elementos.

— Somos só três — esclareceu Lessard. — Um para cada turno. A central é praticamente automática e é provável que conseguisse funcionar sozinha.

— Pode mostrar-me um diagrama do sistema? As mãos de Lessard moveram-se sobre o teclado. No ecrã, surgiu um

diagrama semelhante ao de um centro de controlo de tráfego num siste-ma de comboio metropolitano. As linhas coloridas cruzadas lembravam o mapa do Metro de Londres.

— As linhas azuis representam túneis que canalizam água. As verme-lhas são condutas secas. A turbina fica aqui.

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Austin olhou as linhas, tentando compreender o diagrama confuso. — Qual dos túneis foi inundado?

Lessard tocou com um dedo no ecrã. — Este. O acesso principal ao observatório. — A linha piscava com cor azul.

— Há alguma maneira de interromper o fluxo?— Foi o que tentámos quando detectámos a entrada de água no túnel

de pesquisa. Aparentemente, a parede de betão entre o túnel e as condutas foi fracturada. Conseguimos conter o fluxo com o desvio da água. Mas o túnel de pesquisa continua inundado.

— Faz ideia de como a parede que referiu pode ter sido fracturada?— Existe uma porta nesta intersecção que permite a passagem de um

túnel ao outro. Nesta altura do ano está fechada como salvaguarda porque o nível da água é muito elevado. A porta foi concebida para suportar pressões de várias toneladas. Não sei o que pode ter acontecido.

— Há alguma maneira de fazer uma drenagem?— Sim, poderíamos selar alguns túneis e bombear a água, mas levaria

dias — foi a resposta devastadora. Austin indicou o ecrã brilhante à frente de ambos. — Mesmo com

uma rede de túneis tão extensa?— Vou mostrar-lhe qual é o problema.Conduziu-o para fora da sala de controlo e caminharam ao longo de

um túnel durante vários minutos. O zumbido omnipresente da turbina foi abafado por outro som que fazia lembrar o vento a soprar entre as árvores. Subiram um lanço de degraus de metal do outro lado de uma porta de aço, alcançando uma plataforma de observação protegida por uma cúpula estanque de plástico e metal. Lessard explicou que estavam numa de várias salas de controlo alternativas. O som transformou-se num rugido.

Depois de activado um interruptor na parede, um projector ilumi-nou uma secção de túnel inundada por uma corrente ruidosa. A espuma à superfície da água revolta chegava quase ao nível da bolha de observa-ção. Austin contemplou a brancura da água, percebendo o seu imenso poder.

— Nesta altura do ano, a água derrete a partir de enormes bolsas no gelo — gritou Lessard, tentando fazer-se ouvir sobre o ruído. — Aumen-tam ainda mais o fluxo habitual. É como as cheias que acontecem nos rios quando as neves da montanha derretem depressa demais na Primavera. — A sua expressão era grave e notória na face estreita. — Lamento que não o possamos ajudar ou às pessoas aprisionadas.

— Já me ajudou muito, mas vou precisar de ver um diagrama detalha-do do túnel de pesquisa.

— Com certeza. — Enquanto voltavam à sala de controlo, Lessard de-

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cidiu que gostava daquele americano. Era rigoroso e metódico, qualidades que prezava acima de quaisquer outras.

De volta ao cérebro da central, Austin olhou o relógio na parede e viu que tinham perdido minutos preciosos. Lessard foi até um armário de me-tal, abriu uma gaveta larga e retirou um conjunto de plantas.

— Aqui está a entrada principal do túnel de pesquisa. Não é mais do que uma conduta. Estes rectângulos são os aposentos dos cientistas. O laboratório fica a cerca de quilómetro e meio da entrada. Como pode ver no traçado lateral, há escadas que atravessam o tecto e dão para outro túnel, onde existe uma passagem que conduz ao próprio observatório glacial.

— Sabe quantas pessoas estarão aprisionadas?— A equipa de cientistas tinha três elementos. Por vezes, quando se

fartam de estar lá em baixo, juntamo-nos para beber uns copos de vinho. Depois há a senhora do seu navio. E um hidroavião trouxe algumas pessoas antes do acidente, mas não sei quantas levava quando descolou há pouco tempo atrás.

Austin debruçou-se sobre o diagrama, passando em revista cada por-menor. — Imagine que as pessoas debaixo do glaciar conseguiram chegar ao observatório. O ar preso nesta passagem impediria a água de inundar essa secção.

— É verdade — disse Lessard com pouco entusiasmo. — Se existe ar, é possível que ainda estejam vivos. — Também é verdade, mas a reserva de ar é limitada. Este pode ser

um caso em que os sobreviventes invejam a sorte dos mortos. A recordação do destino tenebroso que esperava Skye e os outros era

desnecessária. Mesmo que tivessem sobrevivido à inundação, enfrentavam uma morte lenta e cruel provocada pela falta de oxigénio. Concentrou-se no diagrama e reparou que o túnel principal continuava durante alguma distância para lá do observatório. — Para onde vai isto?

— Continua durante cerca de quilómetro e meio, subindo de forma gradual até outra entrada.

— Outra conduta?— Não. Há uma abertura na face da montanha semelhante à entrada

de uma mina. — Gostava de vê-la, — disse Austin. Começava a formar-se um plano

na sua mente. Baseava-se em conjecturas e presunções e exigiria uma dose generosa de sorte para funcionar, mas era tudo o que tinha.

— Fica do outro lado do glaciar. O único modo de chegar até lá é pelo ar, mas posso mostrar-lhe onde se situa.

Minutos mais tarde, estavam na cobertura plana da central eléctrica.

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Lessard apontou uma ravina no lado mais distante do glaciar. — É ao lado daquele pequeno vale.

Austin seguiu o dedo que apontava com os olhos e, a seguir, olhou o céu. Um helicóptero grande pairava sobre a central.

— Graças a Deus! — exclamou Lessard. — Finalmente, alguém res-pondeu ao meu pedido de auxílio.

Apressando-se a descer, os dois homens emergiram da central quando o helicóptero pousava. O condutor da carrinha e outro homem que Austin presumiu ser quem cumpriria o terceiro turno estavam no exterior, vendo o helicóptero aterrar num heliporto a poucas centenas de metros da porta principal. Quando os rotores se imobilizaram, saíram três homens de den-tro do helicóptero. Austin reagiu com desagrado. Não se tratava de uma equipa de salvamento. Usavam fatos escuros e era óbvio tratar-se de gesto-res.

— É o meu superior, Monsieur Drouet. Nunca cá vem — explicou Les-sard, incapaz de conter o espanto na voz.

Era um homem corpulento com um bigode à Hercule Poirot. Aproxi-mou-se e disse num tom de voz acusatório: — Que se passa, Lessard?

Enquanto o supervisor da central explicava a situação, Austin olhou para o relógio. Os ponteiros pareciam voar sobre o mostrador.

— Qual foi o efeito deste incidente na produção? — questionou Drou-et.

A paciência de Austin esgotou-se. — Talvez deva preocupar-se mais com os efeitos que possa ter nas pessoas presas dentro daquele glaciar.

O homem inclinou o queixo, conseguindo olhar com superioridade para Austin, mesmo sendo vários centímetros mais baixo do que ele.

— Quem é você? — perguntou, como a Lagarta, dirigindo-se a Alice do alto do seu cogumelo.

Lessard interveio. — Este é o Sr. Austin que trabalha para o governo americano.

— Americano? — Austin quase podia jurar que ouvira o homem fare-já-lo. — Isto não lhe diz respeito — acrescentou.

— Está enganado. Diz-me muito respeito — corrigiu Austin com voz calma que mascarava a sua ira. — Tenho uma amiga no túnel.

Drouet não se comoveu. — Tenho de aguardar instruções do meu su-perior depois de lhe comunicar o sucedido. Mas não sou insensível. Vou ordenar imediatamente uma tentativa de resgate.

— Não temos tempo para isso — disse-lhe Austin. — Temos de fazer alguma coisa agora.

— Seja como for, é o melhor que posso fazer. Agora, se me permite…Com isto, dirigiu-se para a central eléctrica, acompanhado pelos ou-

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tros homens de fato. Lessard olhou para Austin, abanou tristemente a ca-beça e seguiu-os.

Austin tentava conter o impulso de arrastar o burocrata pelo colarinho quando ouviu o som de um motor e viu um ponto no céu. O ponto tor-nou-se maior e transformou-se num helicóptero, mais pequeno do que o primeiro. Atravessou o lago, sobrevoou a central num círculo e pousou no heliporto, ao lado do outro helicóptero, levantando uma nuvem de pó.

Antes mesmo que os rotores parassem, um homem magro e de pele escura saiu e acenou a Austin. Joe Zavala correu para ele com passo desen-volto e um menear atlético dos ombros, recordação dos seus dias como pugilista, quando lutou profissionalmente como peso-médio para pagar a faculdade. As suas feições atraentes e sem marcas eram testemunho do seu sucesso no ringue.

O sociável e jovial Zavala fora recrutado pelo almirante Sandecker mal concluíra os estudos na Escola Naval de Nova Iorque e revelara-se um ele-mento valioso da Equipa de Missões Especiais, colaborando com Austin em muitas ocasiões. Tinha uma mente brilhante para assuntos de mecânica e era um piloto exímio com milhares de horas de voo aos comandos de helicópteros, pequenos jactos e aviões movidos a hélice.

Dias antes, tinham viajado juntos para França. Austin sobrevoou os Al-pes para se juntar à tripulação do Mummichug e Joe parara em Paris. Como perito no design e construção de veículos subaquáticos, fora convidado a participar numa conferência que discutia as diferenças entre submersíveis tripulados e não tripulados patrocinada pelo IFREMER, o Instituto Francês de Pesquisa e Exploração Submarina.

Austin tinha ligado a Zavala mal soubera do acidente no túnel. — Peço desculpa por interromper a viagem a Paris — disse.

— Interrompeste mais do que isso. Conheci um membro da Assem-bleia Nacional que me mostrou a cidade.

— Como se chama ele?— Ela chama-se Denise. Depois do passeio por Paris, decidimos ir até

às montanhas onde a jovem tem um chalé. Estou em Chamonix. A história de Zavala não o surpreendeu. Com os seus olhos profundos

e cabelo negro penteado para trás, Joe parecia-se com a versão mais jo-vem do actor Ricardo Montalban. A combinação de boa aparência, charme bem-humorado e inteligência tornavam-no alvo dos desejos de muitas das mulheres solteiras em todo o estado de Washington e as mesmas qualida-des atraíam elementos do sexo feminino onde quer que fosse. Por vezes, podia ser incómodo, sobretudo durante uma missão. Mas, neste caso, era uma dádiva divina. Chamonix ficava apenas a algumas montanhas de dis-tância.

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— Ainda bem. Preciso da tua ajuda.Zavala percebeu pela voz do amigo que a situação era séria. — Vou a

caminho — disse. Reunidos na colina erma sobre o lago, apertaram as mãos e Austin

voltou a desculpar-se por lhe entravar a vida amorosa. Os lábios de Zavala esboçaram um sorriso ténue.

— Não há problema. A Denise também é funcionária pública e com-preendeu quando lhe disse que o dever chamava. — Olhou para o heli-cóptero. — Também puxou cordelinhos para me conseguir um meio de transporte.

— Devo uma garrafa de champanhe e um ramo de flores à tua ami-ga.

— Sempre soube que, no fundo, eras um verdadeiro romântico. — Za-vala olhou em redor. — Bonita paisagem, mesmo que seja algo agreste. O que se passa?

Austin encaminhava-se já para o helicóptero. — Conto-te pelo cami-nho.

Momentos depois, estavam já no ar, voando sobre o glaciar. Austin transmitiu a Zavala uma versão dos acontecimentos condensada ao estilo da Reader’s Digest.

— Uma confusão do raio — disse Zavala depois de terminado o relato. — Lamento o que aconteceu à tua amiga. Skye parece alguém que gostaria de conhecer.

— Espero que tenhas esse prazer — tornou Austin, apesar de saber que as probabilidades diminuíam com cada minuto que passava.

Orientou Zavala até ao vale que Lessard apontara da cobertura da cen-tral eléctrica. Aterraram numa área plana que ficava mais ou menos nivela-da com as saliências e fissuras. Retiraram uma lanterna do kit de emergên-cia do helicóptero e subiram uma ladeira inclinada.

O frio húmido irradiado pelo glaciar infiltrava-se pelos seus casacos grossos. A entrada estava rodeada por uma moldura de betão. O espaço à frente da abertura estava gasto e havia dúzias de pequenos desfiladeiros pela ladeira abaixo. Entraram num túnel de tamanho semelhante ao dos que Austin vira na central. O piso inclinado estava húmido e, após avança-rem alguns metros, tinham os pés parcialmente submersos.

— Não é propriamente o túnel do amor, pois não? — disse Zavala, tentando vislumbrar alguma coisa na escuridão.

— É provável que o Rio Estige tenha este aspecto. — Austin fitou a água negra por um momento e, subitamente, sentiu-se trespassado por uma torrente de energia. — Vamos voltar à central.

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Drouet e os companheiros emergiram do edifício depois de o helicóp-tero de Zavala aterrar. Drouet apressou-se a ir ao encontro de Austin.

— Devo desculpar-me pelo meu comportamento anterior — dis-se. — Não conhecia todos os factos desta situação terrível. Já falei com os meus superiores e com a embaixada americana que me informaram sobre a NUMA e sobre o senhor, Monsieur Austin. E não sabia que havia cidadãos franceses aprisionados por baixo do glaciar.

— A nacionalidade é importante?— Não, claro que não. Inexcusable. Já solicitei ajuda. Vem a caminho

uma equipa de resgate.— É um começo. Quanto tempo levarão a chegar aqui?Drouet hesitou, sabendo que a resposta seria insatisfatória. — Três ou

quatro horas.— É impossível que não saiba que isso será tarde demais. Drouet deixou pender os braços, angustiado. Era visível que aquilo o

afectava. — Pelo menos poderemos recuperar os cadáveres. É o melhor que posso fazer.

— Mas não é o melhor que eu posso fazer, Monsieur Drouet. Vamos tentar resgatá-los com vida mas precisamos do seu auxílio.

— Não pode estar a falar a sério! Aquela pobre gente está presa de-baixo de duzentos metros de gelo. — Avaliou a determinação silenciosa na face de Austin e ergueu uma sobrancelha. — Muito bem. Farei o que for preciso. Diga-me o que devo fazer.

Austin ficou agradavelmente surpreendido por descobrir que o exte-rior roliço de Drouet escondia um interior de aço.

— Obrigado pela sua disposição. Em primeiro lugar, preciso que me empreste o seu helicóptero e o piloto.

— Claro que sim. Mas vejo que o seu amigo tem um helicóptero.— Vou precisar de um maior.— Não compreendo. As vítimas estão presas num subterrâneo e não

no ar. — Mesmo assim. — Austin fitou Drouet com dureza que tornava cla-

ra a sua falta de disposição para perder mais tempo.Drouet acenou vigorosamente com a cabeça. — Muito bem. Pode

contar com a minha total cooperação. Enquanto Drouet ia falar com o piloto, Austin contactou o coman-

dante do navio da NUMA com um walkie-talkie e passou vários minutos a explicar o seu plano. Fortier ouviu com atenção.

— Vou tratar disso imediatamente — disse. Austin agradeceu-lhe e olhou o glaciar, avaliando o adversário que

estava prestes a enfrentar. O plano que concebera não permitia falhas de

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confiança. Sabia que os planos podiam correr mal e tinha cicatrizes por todo o corpo que o provavam. Também sabia que os problemas podiam ser solucionados. Estava certo de que, com sorte, a sua ideia resultaria. Mas não tinha igual certeza de que Skye ainda estivesse viva.

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Skye estava bastante viva. E Renaud, que era alvo da sua fúria, poderia confirmá-lo. Depois de ter feito um dos seus comentários egocên-tricos, Skye explodira. Lançara-se ao desafortunado francês, com lágrimas de raiva fazendo-lhe reluzir os olhos, descompondo-o por arruinar a maior descoberta da sua carreira. Renaud conseguiu finalmente invocar a cora-gem para exprimir um protesto. Skye tinha já esgotado o repertório e a ca-pacidade pulmonar e fê-lo calar-se com um olhar venenoso e uma palavra bem escolhida.

— Idiota! Renaud tentou apelar-lhe à piedade. — Não vê que estou ferido? —

Ergueu a mão. — A culpa foi sua — disse ela friamente. — Como pode ter permitido

a entrada de um homem armado?— Pensei que fosse um repórter.— Tem a capacidade cerebral de uma amiba. E as amibas não pensam.

Limitam-se a rastejar. — Mademoiselle, por favor — intrometeu-se LeBlanc. — Resta-nos

uma quantidade de ar limitada. Poupe as suas forças. — Poupo-as para quê? — Apontou o tecto. — Pode ter-vos escapado

mas estamos presos por baixo de um glaciar muito grande.LeBlanc levou um dedo aos lábios.Skye olhou em redor para as expressões atemorizadas e viu que tor-

nava os outros ainda mais miseráveis. Percebeu também que a sua última ofensiva contra Renaud fora um produto do medo e da frustração. Pediu desculpa a LeBlanc e cerrou os lábios mas, antes de o fazer, murmurou: — Mas é mesmo um idiota.

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A seguir, sentou-se junto a Rawlins, o jornalista, que estava de cos-tas contra a parede, escrevendo num bloco de notas. Usava um pedaço de plástico para evitar o contacto entre a sua extremidade posterior e o chão molhado. Skye aproximou-se para aproveitar o calor, dizendo: — Perdoe o arrojo mas estou gelada.

Rawlins pestanejou, surpreso, pousou o bloco de notas e, com galante-ria, rodeou-lhe os ombros com o braço.

— Há um minuto atrás estava bastante quente. — Desculpe ter perdido as estribeiras à frente de todos — murmu-

rou. — Não a culpo, mas tente ver o lado positivo. Pelo menos, temos luz.A enchente deve ter falhado os fios esticados ao longo do topo do tú-

nel até à central eléctrica. Apesar de as luzes terem piscado algumas vezes, continuavam funcionais. Os sobreviventes molhados e exaustos amontoa-vam-se na porção do túnel que ia da caverna de gelo às escadas.

Apesar do seu comentário optimista, Rawlins sabia que não tinham muito tempo. Começava a sentir a mesma dificuldade em respirar partilha-da pelos outros. Tentou pensar noutra coisa.

— De que descoberta científica falava? — perguntou a Skye. Um brilho sonhador apossou-se dos seus olhos. — Encontrei um tú-

mulo antigo por baixo das águas do lago. Acho que deve estar relacionado com a Rota do Âmbar, o que significaria que os contactos entre a Europa Central e o Mediterrâneo remontam a um período anterior ao que imagi-návamos. Ao tempo dos minóicos e dos micénicos, talvez.

Rawlins gemeu.— Sente-se bem? — perguntou Skye. — Sim, estou óptimo. Ora bolas, não estou nada. Só vim cá para es-

crever um artigo sobre o observatório subglacial. A seguir, encontraram o corpo congelado, que teria dado um exclusivo bombástico. Mas um sacana fingindo ser repórter dá com a pistola no seu amigo Renaud e inunda o túnel. O meu trabalho seria comprado em todo o mundo. Seria o novo Jon Krakauer6. Teria editores a bater-me à porta com contratos para escrever um livro. Agora fale-me dos minóicos.

— Não sei se é minóico — disse Skye, tentando aliviar-lhe o desgosto. — Posso estar errada.

Rawlins abanou a cabeça, miseravelmente. O repórter televisivo, que tinha estado a ouvir a conversa, resolveu in-

tervir: — Não se culpe e ponha-se na minha posição. Tenho imagens do corpo no gelo e do francês a ser espancado com a arma.

6 Jornalista que, em 1996, ao serviço da revista Outside, participou numa expedição ao Evereste que provocou várias mortes, celebrizando-se com o relato dos acontecimentos. (N. do T.)

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O outro repórter deu um toque no gravador. — E eu tenho as vozes todas gravadas.

Rawlins olhou a mangueira que serpenteava junto aos seus pés. — Gostava de saber se seria possível usar um jacto de água para abrir um túnel através do glaciar.

Thurston estava sentado do seu outro lado. Riu-se e disse: — Já fiz cál-culos mentais. Levaríamos três meses se conseguíssemos manter um ritmo regular de trabalho.

— Podíamos descansar aos domingos e feriados? — quis saber Ra-wlins.

Todos se riram, excepto Renaud. O gracejo repentino de Rawlins fez Skye pensar em Austin. Há quanto

tempo deixara o navio? Olhou para o relógio e percebeu que se tinham pas-sado apenas poucas horas. Antecipara com avidez o encontro combinado. Ficara fascinada pela aparência agreste, pelo cabelo pálido, quase branco, mas ia além da atracção física. Era interessante, um manancial de contras-tes. Tinha um sentido de humor vivo e conseguia ser caloroso e gentil, ape-sar de se perceber uma dureza diamantífera nos seus olhos azuis. E, claro, não podia esquecer aqueles ombros magníficos. Não a surpreenderia se conseguisse caminhar no fundo do mar.

O seu olhar desviou-se para Renaud, posicionado no extremo opos-to do seu espectro pessoal de atracção. Sentava-se do outro lado do túnel, curvado sobre a mão inchada. Com um esgar de desagrado, Skye pensou que o pior de tudo era estar presa com um insecto como ele. Pensar aquilo deprimiu-a, fazendo-a erguer-se e caminhar até à escadaria que descia para o túnel principal. Água negra roçava o degrau cimeiro. Não havia hipóteses de fuga. Sentiu-se ainda mais deprimida. Procurando algo que a distraísse, contornou as poças e subiu a escada que conduzia à caverna de gelo.

O glaciar começara já a recuperar o território perdido. Formaram-se novos pingentes gelados onde antes não existia nenhum. O gelo tornara-se mais espesso e o corpo já não era visível. O elmo continuava dentro da caixa de plástico. Pegou-lhe e ergueu-o junto a uma luz para conseguir ver as gravações. Eram complexas e haviam sido executadas com mestria. O trabalho de um mestre. O desenho pareceu-lhe não ser apenas decorativo. Havia nele um ritmo, como se contasse uma história. O metal parecia pul-sar com uma vida própria. Conteve os seus pensamentos frenéticos. A falta de ar fazia-a imaginar coisas. Se, ao menos, tivesse mais tempo, poderia solucionar o enigma. Maldito Renaud.

Levou o elmo de volta ao túnel. O ar rarefeito durante o curto passeio deixara-a exausta. Encontrou um local junto à parede, pousou o elmo e sentou-se a seu lado. Os outros tinham parado de falar. Conseguia perce-

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ber-lhes no peito o esforço para levar algum ar até aos pulmões. Viu que fazia o mesmo, inspirando avidamente como um peixe fora de água, mas sem conseguir satisfazer o que os pulmões lhe exigiam. Deixou tombar o queixo e adormeceu.

Quando acordou, as luzes tinham-se apagado. Afinal, disse a si pró-pria, morreremos mesmo na escuridão. Tentou chamar os outros para se despedir deles, mas não tinha forças. Voltou a adormecer.

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Austin prendeu o último saco estanque ao convés traseiro do SE-Amobile, por trás da cabina em forma, de bolha e deu um passo atrás para apreciar o seu trabalho. O veículo parecia-se mais com uma mula de carga mecânica do que com um submersível de topo de gama, mas a distribuição improvisada da carga teria de funcionar. Sem fazer ideia de quantas pessoas estariam aprisionadas por baixo do glaciar, reunira todos os conjuntos de mer-gulho que conseguiu encontrar e limitou-se a esperar que fosse suficiente.

Fez sinal a François, indicando-lhe que estava tudo bem. O observa-dor do governo mantivera-se por perto com um walkie-talkie, funcionan-do como elo de ligação e tradutor entre o navio e o helicóptero. François retribuiu-lhe o gesto e falou para o rádio. O piloto do helicóptero francês aguardava a chamada.

Alguns minutos depois, o helicóptero descolava da margem. Voou até ao navio da NUMA, onde pairou e largou um cabo para o convés. Austin baixou a cabeça para se proteger da movimentação de ar provocada pelos rotores, pegou no gancho na extremidade do cabo e prendeu-o a um arnês de quatro pontas. Ajudado pela tripulação, certificara-se já de que o sub-mersível e o reboque estavam seguros para que a carga pudesse ser erguida de uma só vez.

Fez sinal ao piloto. O cabo esticou-se e o helicóptero ergueu-se ligei-ramente, pairando com os rotores a cortar o ar sem descanso. Apesar do ruído ensurdecedor, o submersível e o reboque apenas se ergueram alguns centímetros do convés. O seu peso, combinado com o da carga, eram su-periores à capacidade do helicóptero. Austin fez sinal para que o helicóp-tero tornasse a baixar. O cabo afrouxou e a carga voltou a pousar sobre o convés.

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Apontou para o helicóptero e gritou ao ouvido de François. — Diga-lhes para ficarem onde estão até percebermos isto. Enquanto François traduzia, Austin pegou no rádio e chamou Zavala,

cujo helicóptero rondava o navio, lá no alto. — Temos um problema — disse.— Estou a ver. Quem me dera que este helicóptero fosse uma grua aé-

rea — disse, referindo-se aos enormes helicópteros industriais concebidos para transportar cargas pesadas.

— Talvez não precisemos de uma. — Austin explicou o que tinha em mente.

Zavala riu-se, dizendo: — A minha vida devia ser muito aborrecida antes de te conhecer.

— Então?— Complicado — considerou Zavala. — Perigoso como o raio. Auda-

cioso. Mas possível. Austin nunca duvidara da perícia de piloto do seu colega. Zavala tinha

milhares de horas como piloto de helicópteros, pequenos jactos e aviões movidos a hélice. O que o preocupava eram as surpresas, o inesperado. Uma mudança no vento, desatenção humana ou falha de equipamento po-diam transformar um risco perfeitamente calculado em desastre. Naquele caso, a missão podia ser comprometida por um erro de tradução. Tinha de se certificar de que a mensagem era clara.

Puxou François de parte e disse-lhe o que queria que o piloto francês fizesse. A seguir, fê-lo repetir as instruções. François acenou afirmativa-mente, garantindo a sua compreensão. Falou para o rádio e o helicóptero francês moveu-se para um lado para que o cabo ficasse inclinado.

O helicóptero de Zavala baixou e deixou cair outro cabo, que Austin prendeu rapidamente ao arnês. Verificou se havia espaço suficiente entre os dois helicópteros. Seriam puxados um para o outro pelo peso que erguiam e não queria que os rotores se prendessem.

Mais uma vez, fez sinal para subirem. Os rotores aceleraram num uníssono trovejante e, desta vez, o submersível e o reboque pareciam er-guer-se. Um metro. Dois metros. Cem metros. Duzentos. Os pilotos esta-vam conscientes de que os dois helicópteros tinham tamanhos e potências diferentes, compensando essa diferença com perícia espantosa.

Ergueram-se num movimento ascendente lento, com a estranha carga balouçando entre ambos até estarem algumas centenas de metros sobre a superfície do lago e voaram em direcção a terra até deixarem de ser visíveis contra a rocha escura das montanhas. Zavala ia comentando pelo rádio. Teve de se interromper algumas vezes para corrigir a posi-ção.

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Austin não respirou com facilidade até ao anúncio lacónico de Zavala: — As águias aterraram7.

Juntamente com vários membros da tripulação, correram para um pe-queno barco e chegaram à margem, esperando o regresso dos helicópteros, que voavam lado a lado, pousando na praia. Austin subiu para o helicóptero de Zavala e o helicóptero francês acolheu os tripulantes do Mummichug.

Minutos mais tarde, voltaram a aterrar perto do vulto amarelo bri-lhante do SEAmobile. Austin supervisionou os trabalhos de ajuste da carga do submersível. A seguir, o reboque foi levado para dentro do túnel incli-nado até junto da água. Foram colocados calços atrás da rodas, enquanto Austin saiu do túnel para trocar impressões com Lessard. A seu pedido, o supervisor da central tinha encontrado outra planta. Abriu-a sobre uma pedra plana.

— São estes os suportes internos de alumínio de que lhe falei. Encon-trá-los-á no interior a alguns metros de distância. Há doze conjuntos, dis-postos três a três, com intervalos aproximadamente de nove metros.

— O submersível tem menos de três metros de diâmetro — disse Aus-tin. — Pelos meus cálculos, só precisarei de cortar uma coluna de cada para conseguir passar.

— Sugiro que alterne os cortes. Por outras palavras, não corte a mesma coluna em todos os conjuntos. Como pode ver pelo diagrama, o tecto é mais fino aqui do que no resto do túnel. Tem centenas de toneladas de gelo a pressionar.

— Já me tinha apercebido disso.Os olhos de Lessard cravaram-se no rosto de Austin. — Liguei para

Paris depois de explicar o seu plano e falei com um amigo na companhia eléctrica estatal. Disse que esta extremidade do túnel foi construída para transportar as caravanas do laboratório. Foi descartada como acesso prin-cipal porque, com a passagem do tempo, passou a existir um risco de co-lapso do tecto. As colunas foram instaladas para manter o túnel aberto como poço de ventilação. É isto que me preocupa — disse, passando o dedo sobre o topo do túnel representado na planta. — Há uma bolsa de água instável aqui. Devido à estação que atravessamos, está maior do que o habitual. Se houver uma fragilidade no sistema de suporte, todo o tecto pode desabar.

— Vale a pena correr o risco — disse Austin. — Já ponderou a possibilidade de estar a arriscar a vida em vão e de as

pessoas já estarem mortas?

7 Referência a “The Eagle has landed” (A Águia aterrou), frase proferida por Neil Armstrong após contacto do módulo lunar da missão Apollo 11 com a superfície da Lua. O nome do módulo era, precisamente, Eagle. (N. do T.)

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A resposta foi um sorriso soturno. — Não saberemos isso até lá chegar, não é?

Lessard olhou Austin com uma expressão de admiração. O america-no, com o seu cabelo claro e os olhos azuis magnéticos, ou era louco ou dotado de uma confiança estupenda nas suas capacidades. — Deve gostar muito desta mulher.

— Só a conheci há uns dias atrás, mas combinámos um jantar em Paris e pretendo honrar o compromisso.

Lessard encolheu os ombros. A galanteria era algo que um francês conseguia apreciar. — As primeiras semanas são o período de maior atrac-ção entre um homem e uma mulher, antes de ficarem a conhecer-se bem demais. Bonne chance, mon ami. O seu amigo está a tentar chamar-lhe a atenção.

Austin agradeceu a Lessard pelo conselho e aproximou-se de Zavala, de pé junto à boca do túnel.

— Revi os controlos do submersível. Tudo em ordem — disse.— Sabia que não terias problemas. — Austin olhou em redor uma

última vez. — Está na hora, companheiro. Zavala olhou-o com ar reprovador. — Companheiro? Isto é algum

western de baixo orçamento?Austin vestiu um fato de mergulho protector. Parecia um boneco flu-

orescente. Encaminhou-se para o túnel e colocou um capacete com um intercomunicador subaquático no interior. Zavala ajudou-o com a botija de ar e cinto de chumbos e apoiou-lhe a subida para as traseiras do sub-mersível.

Sentou-se por trás da bolha, usando os sacos estanques como encosto e calçando as barbatanas. Um tripulante passou-lhe um maçarico prepa-rado para funcionar debaixo de água que Austin prendeu ao convés com cordas elásticas. Zavala subiu para a cabina e fez-lhe sinal.

— Preparado? — disse Austin, testando o intercomunicador. — Claro, mas sinto-me como o rapaz que vivia dentro de uma bolha.— Podes trocar comigo quando quiseres, rapaz-bolha. — Zavala riu-se. — Obrigado, mas terei de rejeitar a oferta generosa.

Pareces nascido para isso. Austin bateu com os dedos na bolha. Estava pronto. A tripulação destravou o reboque e permitiu que o submersível des-

lizasse para dentro de água, controlando-lhe a velocidade com um par de cabos de lançamento, até as rodas ficarem submersas. Quando o veículo começou a flutuar, puxaram os cabos e empurraram-no ao mesmo tempo. O SEAmobile afastou-se para longe do reboque e os motores foram accio-nados.

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Zavala usou os propulsores laterais da secção traseira para fazer o submersível descrever uma volta de 180 graus, ficando virando para o tú-nel. Fê-lo avançar até a água ser suficientemente profunda para submergir. Com toque ligeiro no manípulo da profundidade, desceu até o casco ficar debaixo de água. Os propulsores traseiros voltaram a activar-se, fazendo o veículo avançar e a água cobriu Austin e a bolha.

O quarteto de luzes de halogéneo à frente reflectia-se das paredes e do tecto alaranjados, conferindo uma tonalidade castanha à água.

A voz metálica de Zavala ouviu-se nos auscultadores de Austin.— É como mergulhar num balde de guacamole. — Vou lembrar-me disso da próxima vez que for a um restaurante

mexicano. Pensava em alguma coisa mais poética e digna de Dante, como uma descida ao Hades.

— O Hades, pelo menos, era quente e seco. A que distância ficam as primeiras colunas de suporte?

Austin espreitou para a penumbra além do alcance das luzes e con-seguiu ver um ténue brilho de metal. Levantou-se e inclinou-se contra a bolha, segurando-se às barras protectoras que flanqueavam a cabina.

— Penso que se aproximam. Zavala abrandou a progressão do submersível, parando a algumas cen-

tenas de metros do primeiro conjunto de colunas de alumínio, cada uma com cerca de quinze centímetros de espessura, bloqueando o caminho. Le-vando o maçarico, Austin nadou até à base da primeira coluna. Activou o maçarico e a chama azul fina depressa cortou o metal junto à base. No topo da coluna, fez novo corte e gritou: — Madeira! — empurrando-a para fora. Fez sinal a Zavala para que o seguisse, indicando-lhe o caminho através da abertura, como se guiasse um avião até à sua porta de embarque. A seguir, aproximou-se do conjunto de colunas seguinte.

Enquanto nadava, olhou nervosamente para cima e tentou não pensar nos milhares de litros de água e toneladas de gelo que pressionavam a es-treita camada de rocha. Lembrando o conselho de Lessard, cortou a coluna direita do segundo conjunto. Novamente, Zavala fez avançar o submersível pelo espaço desimpedido. Austin cortou uma coluna do meio e, a seguir, uma da esquerda no conjunto seguinte, antes de repetir novamente o pro-cesso.

O trabalho decorreu de forma tranquila. Não tardou até haver doze colunas deitadas por terra. Austin voltou para o seu lugar e disse a Zavala para acelerar o veículo até à velocidade máxima de dois nós e meio. Ape-sar de se moverem a velocidade modesta, a escuridão e a proximidade das paredes faziam-no sentir que era um passageiro na carruagem de Neptuno, mergulhando para o fundo do abismo.

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Sem conseguir pensar em mais nada, concentrou-se na árdua tarefa que o esperava. Lembrou as palavras de Lessard que ainda lhe ecoavam nos ouvidos. O francês tinha razão quando falara no período de maior atrac-ção. Também estava certo quanto à possibilidade de todos os ocupantes do túnel estarem mortos.

Fora mais fácil manter-se optimista à luz do dia. Mas, enquanto mer-gulhavam mais fundo na escuridão abismal, percebeu que a tentativa de resgate era em vão. Teve de admitir que as hipóteses de alguém continuar vivo durante muito tempo naquele sítio horrível eram ténues. Com relutân-cia, preparou-se para o pior.

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No sonho, Skye jantava com Austin num restaurante parisiense perto da Torre Eiffel e ouvia-o dizer: — Acorda. E ela respondia com algu-ma irritação: — Não estou a dormir.

Acorda, Skye. Austin novamente. Homem irritante.A seguir, esticava-se para ela sobre a mesa, sobre o vinho e o patê, es-

bofeteando-lhe gentilmente a face e irritando-a ainda mais. Abriu a boca e verbalizou o seu incómodo. — Pára!

— Assim está melhor — disse Austin. As suas pálpebras abriram-se como um par de persianas perras e vol-

tou a cara para longe da luz cegante. A luz mudou e viu a cara de Austin. Pa-recia preocupado. Sentiu-o pressionando-lhe as bochechas até abrir a boca e introduzindo o plástico duro do bocal de um respirador de mergulho.

O ar encheu-lhe os pulmões, reanimando-a e fazendo-a ver que Aus-tin se ajoelhava a seu lado. Vestia um fato impermeável laranja e tinha um apetrecho bizarro na cabeça. Pegou-lhe na mão e ajustou-lhe os dedos em torno do pequeno tanque de ar ligado ao respirador.

Retirou o seu respirador da boca.— Consegues manter-te acordada por um minuto? — perguntou.Ela acenou afirmativamente com a cabeça. — Mantém-te assim. Eu já volto.Pôs-se de pé e caminhou em direcção às escadas. No breve instante

antes de o ver mergulhar com a sua lanterna, Skye notou a presença dos outros que estavam aprisionados com ela, parecendo todos vagabundos dormindo num beco, embriagados por vinho mau.

Momentos mais tarde, a água nas escadas brilhou de forma ominosa

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e Austin reapareceu, segurando uma corda sobre o ombro. Fincou os pés e puxou a corda como um barqueiro do Volga. O chão estava traiçoeiro e fê-lo escorregar e apoiar-se sobre um joelho, mas pôs-se novamente de pé. Um saco de plástico preso à linha surgiu à tona de água e deslizou sobre o chão como um grande peixe. Seguiram-se mais sacos.

Austin apressou-se a abrir os sacos e distribuiu os tanques de oxigénio no interior. Teve de abanar alguns para os fazer voltar a um estado de cons-ciência grogue, mas, depois da sua primeira golfada de ar, não tardaram a recuperar os sentidos. Enquanto sorviam avidamente, o som metálico das válvulas dos respiradores parecia ampliado no espaço confinado.

Skye cuspiu o respirador. — O que fazes aqui? — disse, como uma dama da alta sociedade dirigindo-se a um penetra na sua festa.

Austin ajudou-a a levantar-se e beijou-lhe a testa. — Nunca se diga que Kurt Austin deixou uma inundação impedi-lo de jantar fora.

— Jantar! Mas…Antes que pudesse continuar, o respirador foi-lhe colocado novamen-

te na boca. — Não há tempo para conversa.A seguir, abria outros sacos e retirava fatos impermeáveis. Rawlins e

Thurston eram ambos mergulhadores qualificados e ajudaram os outros a vestir-se e a colocar o equipamento de mergulho. Dentro de pouco tempo, os sobreviventes estavam devidamente equipados. Não era propriamente uma equipa de mergulhadores profissionais, pensou Austin, mas, com al-guma sorte, podiam conseguir.

— Preparados para ir para casa? — perguntou.O coro abafado ecoou pela caverna, incompreensível, mas entusiasta. — Muito bem — disse. — Sigam-me. Liderou o patético grupo de cavernícolas pelas escadas abaixo até ao

túnel inundado. Houve mais do que uma sobrancelha erguida perante a visão de Zavala a acenar-lhes do interior da sua bolha reluzente.

Austin previra que os passageiros precisariam de algo a que se segurar durante a viagem. Antes de ter carregado os sacos com equipamento de mergulho no submersível, ajudado pela tripulação do Mummichug, esticou rede de pesca sobre o convés do SEAmobile. Recorrendo a sinais vigorosos com as mãos, a empurrões e encontrões, conseguiu dispor os sobreviventes de barriga para baixo sobre o convés, em filas de três, como sardinhas em lata.

Colocou Renaud, com a mão ferida, na primeira fila, imediatamente por trás da bolha entre Rawlins e Thurston, que eram os mais experientes na água. Ocuparia um lugar na terceira fila atrás de Skye, entre LeBlanc, que parecia ser forte como um touro, e Rossi, o assistente jovem.

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Como medida de segurança adicional, prendeu cabos sobre as costas dos passageiros como se prendesse carga. O submersível estava pratica-mente invisível por baixo do amontoado de corpos, mas a disposição era a melhor possível no espaço limitado. Nadou para a ré, posicionando-se atrás de Skye. Teria de se afastar do seu poiso mais tarde e, por isso, não se prendeu.

— Temos os patos alinhados — disse pelo intercomunicador. — As coisas estão apertadas aqui por trás. É melhor não dares boleia a ninguém pelo caminho.

Com um zumbido de motores eléctricos, o SEAmobile avançou len-tamente, acelerando apenas um pouco. Austin sabia que os sobreviventes estariam exaustos. Apesar de ter advertido o grupo para ser paciente, a ve-locidade lenta do veículo era enlouquecedora e até a ele lhe custava seguir o seu próprio conselho.

Pelo menos, podia falar com Zavala. Os outros estavam sozinhos com os seus pensamentos. O submersível percorria o túnel como se fosse puxa-do por uma parelha de tartarugas. Nalguns momentos, parecia estar para-do e parecia ser o túnel que se movia. O único som era o ruído monótono do motor e o fluxo de bolhas de ar. Quase gritou de alegria quando Zavala anunciou: — Kurt, consigo ver as colunas.

Austin ergueu a cabeça. — Pára antes de chegares perto delas. Vou guiar-te pelo percurso.

O SEAmobile parou. Austin largou o convés e ergueu-se sobre a bolha. O primeiro conjunto de suportes reluzia cerca de dez metros mais à fren-te. Com gestos rápidos e ritmados das barbatanas, nadou até aos suportes, passando através do vão que abrira. A seguir, voltou-se e acenou a Zavala, guiando-o como um polícia sinaleiro, fazendo-o ir para a direita ou para a esquerda conforme fosse necessário.

O submersível atravessou lentamente a abertura. Zavala mudou de rumo para manobrar a abertura seguinte e foi então que se meteu em sari-lhos. O submersível com excesso de carga reagia com lentidão e colocou-se de lado. Com mão firme nos controlos, parou o movimento lateral e forçou o veículo a avançar. Mas, quando passavam pela brecha, tentou compensar, bateu contra uma coluna e começou a virar-se.

Austin nadou para o lado e espalmou-se contra a parede do túnel até Zavala ter conseguido imobilizar o SEAmobile. Nadou até à cabina.

— Tens de melhorar essa navegação, pá. — Desculpa — disse Zavala. — Com este peso todo à ré, parece que

navego um carrinho de choque. — Tenta lembrar-te de que não estás ao volante do teu Corvette. Zavala sorriu. — Quem me dera estar.

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Inspeccionando os passageiros, viu que se aguentavam e nadou para o conjunto seguinte de colunas. Susteve o fôlego enquanto o veículo sobre-carregado passava sem problemas. Zavala habituava-se a controlar o sub-mersível naquelas condições e navegaram com sucesso através de vários conjuntos de colunas. Austin ia contando mentalmente. Faltavam apenas mais três conjuntos.

Ao aproximarem-se do seguinte, reparou que havia alguma coisa que não estava bem. Olhava pela máscara e não lhe agradava o que via. Cortara a coluna do meio e, agora, os suportes de cada lado da abertura asseme-lhavam-se a pernas dobradas. Notou um movimento rápido e olhou para cima. Havia bolhas a entrar no túnel através de uma fractura estreita no tecto.

Mesmo não sendo engenheiro, percebeu o que se passava. O peso do tecto era demasiado para ser suportado pelos suportes que restavam. Podia desabar a qualquer momento, prendendo o submersível e os seus passagei-ros no túnel para sempre.

— Joe, temos um problema mais à frente — disse, fazendo os possíveis para manter um tom de voz calmo.

— Estou a ver — respondeu Zavala, inclinando-se para a frente, es-preitando através da bolha. — Estas colunas parecem pernas de cowboy. Algum conselho sobre como navegar por esta ratoeira?

— Da mesma maneira que os porcos-espinhos fazem amor. Com muito cuidado. Segue-me.

Austin nadou para os suportes forçados e passou facilmente. Voltou-se e escudou os olhos das luzes brilhantes de halogéneo, fazendo sinal a Zavala para que avançasse. Zavala conseguiu manobrar o veículo pela aber-tura sem tocar qualquer das colunas mas deparou-se com um problema inesperado. Parte da rede que se arrastava da traseira prendeu-se numa co-luna que Austin cortara. Zavala sentiu o puxão e aumentou a velocidade sem pensar.

Foi a pior coisa que podia ter feito.O veículo permaneceu na mesma posição enquanto os propulsores

aceleravam e, a seguir, a rede soltou-se e lançou-se para a frente fora de con-trolo, embatendo contra a coluna direita do conjunto seguinte com todo o seu peso considerável. Zavala apressou-se a compensar a guinada brusca, mas era tarde demais. A coluna danificada cedeu.

Austin viu o desastre desenrolar-se em câmara lenta. Os olhos subi-ram-lhe para o tecto, obscurecidos de repente por uma nuvem de bolhas.

— Avança! — gritou. — O tecto está a cair.Pelos auscultadores ouviu uma sequência de palavrões em espanhol. O navegador aumentou a velocidade para o máximo e fez pontaria à

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abertura seguinte. O veículo passou a centímetros de Austin. Com timing perfeito, este esticou-se e segurou a rede de pesca, deixando-se arrastar como um duplo de Hollywood de uma diligência desgovernada.

Zavala preocupava-se mais com a velocidade do que com a precisão e não se preocupou em afinar a navegação. O veículo raspou numa coluna. Provocou apenas uma pequena amolgadela mas a coluna dobrou e partiu-se. Austin conseguira voltar a subir para o convés e segurou-se como pôde quando o submersível deu uma volta completa e voltou ao curso original.

Havia nova abertura mais à frente.O SEAmobile passou sem problemas e sem tocar numa coluna mas os

estragos já tinham sido feitos. O tecto cedeu e desfez-se numa avalanche de enormes rochas, liber-

tando a água acumulada na bolsa glacial. Milhares de litros de água inun-daram o espaço confinado. A pressão poderosa atingiu o submersível e im-peliu-o como uma folha flutuando numa valeta.

A onda percorreu todo o túnel até à entrada, levando o veículo na sua crista.

Alheia ao drama nas profundezas do glaciar, a equipa de apoio apro-ximara-se dos helicópteros. O tripulante solitário que vigiava o túnel saíra para apanhar ar e foi então que ouviu o rugido vindo das entranhas da ter-ra. As pernas reagiram antes do cérebro e transportaram-no para longe da abertura. Correu para um lado e escondeu-se atrás de um penedo quando o veículo saiu disparado.

A força da onda esgotou-se no exterior, deixando o submersível em seco. Passageiros atordoados libertaram-se dos cabos que os prendiam e desceram do convés. Cuspiram os respiradores e respiraram o ar fresco em grandes golfadas.

Zavala saiu da cabina e corria de volta ao túnel. Já estava no interior quando uma segunda onda mais fraca se projectou para o exterior, cuspin-do uma figura laranja que se debatia. A máscara partida de Austin estava deslocada. O capacete com intercomunicador fora-lhe arrancado da cabeça e o impacto da onda fazia-o rebolar como uma bola apanhada na rebenta-ção.

Zavala baixou-se, segurou Austin a meio do rodopio e ajudou-o a pôr-se de pé.

Tinha pernas tão inseguras como as de um bêbado e os olhos vidra-dos. Cuspiu água e tossiu como um cão ensopado.

— É como te disse, Joe. Tens de melhorar essa condução.

A equipa de resgate francesa chegou uma hora mais tarde. O helicóp-tero pousou em frente da central eléctrica como uma ave de rapina projec-

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tando-se sobre uma presa. Mesmo antes de os patins de aterragem toca-rem o chão, seis montanhistas corpulentos saltaram pela porta, carregando mosquetões e rolos de corda. O líder explicou que trouxeram equipamento de escalada porque tinham sido informados de que havia gente aprisionada no glaciar e não por baixo dele.

Quando lhe disseram que os seus serviços não eram necessários, enco-lheu os ombros e admitiu filosoficamente que uma equipa de montanhistas experientes teria sido inútil num resgate subaquático. A seguir, abriu um par de garrafas de champanhe que tinham trazido. Erguendo o copo num brinde, disse que existiriam outras oportunidades. Havia sempre gente a precisar de ajuda nas montanhas.

Depois da celebração improvisada, Austin supervisionou o retorno do submersível ao Mummichug e regressou à central com Zavala. Os sobrevi-ventes tinham sido transportados até lá para banhos e refeições quentes. Vestidos com roupas emprestadas, reuniram-se na sala de convívio da cen-tral para contar a sua história.

Os repórteres passaram as imagens do ataque a Renaud, mas eram de má qualidade e permitiam apenas um vislumbre distorcido da face do pistoleiro. A cassete áudio continha pouco mais do que a breve troca de palavras entre Renaud e o seu agressor.

Austin adormecia os arranhões e nódoas negras com uma garrafa de cerveja belga da despensa da central. Estava sentado com o queixo sobre a mão, sentindo a ira crescer enquanto Skye e os outros resgatados des-creviam os pormenores de uma acção que quase condenara várias pessoas inocentes a uma morte atroz sob o gelo.

— É um caso de polícia — disse Drouet, o supervisor da central, após ouvir a história completa. — Devemos alertar as autoridades de imediato.

Austin conteve-se. Quando os gendarmes chegassem, o rasto estaria mais frio do que a cerveja que segurava.

Renaud estava desejoso para partir. Exibindo a mão como se estivesse mortalmente ferido, impôs a sua autoridade e conseguiu obter um lugar no helicóptero da central. Rawlins e os repórteres estavam ansiosos para comunicar os pormenores da sua história, que tinha ido muito além da descoberta do corpo congelado. Foi chamado o hidroavião alugado que trouxera ao glaciar os profissionais da imprensa convocados para cobrir a descoberta.

O piloto do avião esclareceu um dos mistérios. Disse que esperara o seu regresso no lago, mas chegou à praia um homem alto no Citroën de LeBlanc. Disse-lhe que os outros passariam lá a noite e que precisava de partir imediatamente.

Skye viu o hidroavião deslizar sobre a superfície do lago até levantar

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voo e começou a rir. — Viram o Renaud? Usava a mão ferida para afastar os outros do caminho e conseguir partir primeiro.

— O tom de troça na tua voz dá a entender que não ficaste desgostosa com a partida — disse Austin.

Ela simulou lavar as mãos, gesticulando. — Que vá pela sombra, como costumava dizer o meu pai.

Lessard estava junto a Skye e tinha um olhar estranho nos olhos en-quanto observava o avião erguer-se do lago e dirigir-se para um vale entre dois picos montanhosos.

— Bom, Monsieur Austin, tenho de voltar ao trabalho — disse com voz desgostosa. — Obrigado pela emoção que trouxe com os seus amigos a este local solitário.

Austin apertou-lhe a mão com vigor. — O resgate teria sido impossível sem a sua ajuda — disse-lhe. — Não me parece que vá ficar sozinho por muito tempo. Quando a história se souber, verá isto inundar-se com repór-teres. E a polícia também virá.

Lessard parecia mais agradado do que incomodado. — Parece-lhe que sim? — perguntou, radiante. — Se me permite, é melhor voltar ao meu gabinete para me preparar para os visitantes. Providenciarei uma carrinha para vos levar de volta ao lago se quiserem.

— Vou consigo — disse Skye. — Tenho de ir buscar uma coisa que deixei na central.

— Parece que o cavalheiro está satisfeito com os seus quinze minutos de fama — disse Zavala a respeito de Lessard. — E, se já não precisas dos meus serviços…

Austin pousou-lhe a mão sobre o ombro. — Não me digas que queres deixar uma paisagem tão bonita para voltares a Chamonix e ao teu doce francês.

Os olhos de Zavala seguiram Skye. — Parece-me que não sou o único a experimentar a doçaria local.

— Vais muito mais adiantado, Joe. Ainda nem tive o meu primeiro encontro oficial com a jovem.

— Longe de mim intrometer-me no caminho de um romance legíti-mo.

— O mesmo digo eu — disse Austin, acompanhando Zavala até ao helicóptero. — Vejo-te em Paris.

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O engarrafamento era tenebroso até para os padrões de Wa-shington. Paul Trout estava sentado ao volante do seu todo-o-terreno, fi-tando com olhos vidrados o amontoado compacto de carros que entupia a Pennsylvania Avenue, quando se voltou para Gamay, dizendo: — Tenho as guelras a fechar.

Gamay rebolou os olhos como qualquer esposa habituada às excentri-cidades do marido. Sabia que o que vinha a seguir. A família de Paul gra-cejava que, se um Trout passasse tempo demais longe do seu lar ancestral, começaria a sufocar como um peixe fora de água. E, por isso, não se surpre-endeu quando ele fez uma inversão de marcha ilegal, revelando o desprezo pelo código da estrada que parece inato nos condutores de Massachusetts.

Enquanto Paul guiava como se estivesse em manobras na Tempestade do Deserto, Gamay usou o telemóvel para reservar passagens aéreas e avisar a sede da NUMA de que se ausentariam durante alguns dias. Rodopiaram pela sua casa de Georgetown como dois tornados gémeos, fazendo as malas à pressa e saindo disparados para o aeroporto.

Menos de duas horas após o seu voo ter aterrado em Boston, estavam em Cape Cod, passeando pela Water Street na cidade de Woods Hole, onde Trout nascera e fora criado. A principal artéria de Woods Hole tinha cerca de quilómetro e meio de comprimento, entalada entre um lago de água salgada e o porto, ladeada de ambos os lados por edifícios abrigando orga-nizações dedicadas às ciências marinhas e ambientais.

A mais célebre de todas é o Instituto Oceanográfico de Woods Hole, de reputação mundial. Por perto, num prédio de tijolo e granito, fica o La-boratório Biológico Marinho, cujos programas de pesquisa e biblioteca com quase duzentos volumes atraem estudiosos de todo o globo. A pouca

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distância do LBM, situa-se o aquário da Autoridade Nacional de Pescas. Nos subúrbios da cidade ficam o Instituto de Monitorização Geológica dos E.U.A. e dúzias de outras instituições ligadas ao mar e empresas privadas que produzem os avançados aparelhos submarinos usados por oceanólo-gos de todo o mundo.

Uma brisa soprava do porto em direcção às Ilhas Elizabeth. Trout atravessou a minúscula ponte levadiça que separava o Lago Eel do porto principal e encheu os pulmões com ar salgado, pensando que devia haver um fundo de verdade no seu comentário acerca do fecho das guelras. Con-seguia respirar novamente.

Era filho de um pescador local e da esposa deste, e a cabana de tectos baixos onde crescera em Cape Cod continuava na posse da família. O seu lar intelectual era o Instituto Oceanográfico. Na infância, fazia recados aos cientistas que lá trabalhavam e fora o seu incentivo que o fizera especializar-se em geologia submarina, uma decisão que acabaria por levá-lo à NUMA e à sua Equipa de Missões Especiais.

Algumas horas depois da chegada, fora a casa, contactara vários pa-rentes e almoçara com Gamay num bar local onde conhecia todos os clien-tes. A seguir, iniciou a sua ronda. Visitou o Laboratório de Mecânica Sub-marina do Instituto, onde um antigo colega o informava acerca dos últimos avanços em veículos autónomos submersíveis quando o telefone tocou.

— É para ti — disse-lhe o colega, passando o telefone a Trout. Uma voz ecoou pela linha. — Olá, Trout. Fala Sam Osborne. Ouvi nos

correios que estava de volta à cidade. Como vai? E como está a sua encan-tadora esposa?

Osborne era ficólogo, um dos maiores especialistas mundiais no es-tudo das algas. Depois de anos de ensino, passara a falar num tom que era dois ou três decibéis acima do de uma pessoa normal.

Trout não perdeu tempo a perguntar como Osborne o localizara. Era impossível manter alguma coisa em segredo numa localidade do tamanho de Woods Hole. — Estamos óptimos. Obrigado por ligar, Dr. Osborne.

Osborne clareou a garganta. — Bom… para ser sincero, não lhe estou a ligar a si. Queria falar com a sua mulher.

Trout sorriu. — Não o censuro. A Gamay é muito mais bonita do que eu.

Passou-lhe o telefone. Gamay Morgan-Trout era uma mulher atraente, não linda ou abertamente sensual, mas conseguindo agradar à maioria dos homens e dona de um sorriso radiante com uma ligeira falha entre os dentes da frente como a modelo e actriz Lauren Hutton. Alta, com um metro e setenta e sessenta e um quilos, pouco para a altura. O cabelo, longo e habitualmente ondulado, era ruivo escuro e era o mo-

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tivo que levara o pai, um apreciador de vinhos, a baptizá-la com o nome da casta de Beaujolais.

Mais aberta e vivaz do que o marido, trabalhava bem com o sexo opos-to, um talento que remontava à sua infância como maria-rapaz no Wiscon-sin. O pai era empresário do ramo imobiliário e encorajara-a a competir com homens, ensinando-a a navegar e treinando-a no tiro aos pratos. Era exímia como mergulhadora e atiradora.

Gamay ouviu por um momento e disse: — Vamos a caminho. — Des-ligando, satisfez a curiosidade do marido. — O Dr. Osborne pede-nos para passarmos pelo LBM. Diz que é urgente.

— Tudo é urgente para o Sam — disse Paul.— Não precisas de ser cínico só porque ele quis falar comigo.— Não tenho uma única partícula de cinismo em todo o meu corpo

— garantiu Paul, dando o braço a Gamay. Despediu-se do colega do Laboratório de Mecânica Submarina e per-

correu Water Street com Gamay. Minutos mais tarde, subiam os degraus de pedra do Centro de Pesquisa Lillie, passando por uma porta em arco e entrando num átrio sossegado.

O Dr. Osborne aguardava-os. Apertou a mão a Paul e abraçou Gamay, que fora sua aluna quando estudava Biologia Marinha no Instituto de Oce-anografia Scripps na Califórnia. Osborne tinha à volta de cinquenta e cinco anos e o cabelo branco encaracolado recuava, fazendo-lhe a testa maior. Tinha ossos largos e mãos sólidas de trabalhador que pareciam mais apro-priadas para segurar uma picareta do que para manusear os fios delicados de vegetação marinha que constituíam a sua especialidade.

— Obrigado por terem vindo — disse. — Espero que o incómodo não seja muito grande.

— De modo algum — assegurou Gamay com gentileza. — É sempre um prazer vê-lo.

— Pode não achar o mesmo quando ouvir o que tenho para lhe dizer — tornou Osborne com um sorriso enigmático.

Sem explicações adicionais, levou-os para o seu gabinete. Apesar de o LBM ser conhecido em todo o mundo pelas suas instalações de pesquisa e pela biblioteca, o laboratório do Centro Lillie não era um local impres-sionante. Pelo tecto passavam canos expostos, as portas que ladeavam os corredores eram de madeira escura com painéis de vidro grosso e, no geral, parecia exactamente aquilo quer era: um velho edifício laboratorial.

Osborne fez entrar os Trouts no gabinete. Gamay recordava Osborne como um fanático da organização, quase roçando os limites da obsessão, e viu que não tinha mudado. Se muitos professores com igual estatuto se rodeavam com pilhas de papel e relatórios, o seu gabinete consistia numa

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secretária para o computador, com uma cadeira comum e um par de cadei-ras dobráveis para os visitantes. O seu único luxo era um conjunto de chá que trouxera do Japão.

Encheu três chávenas de chá verde e, após uma breve troca de banali-dades, disse: — Perdoem-me por ser tão brusco, mas não temos muito tem-po e, por isso, vou directo ao assunto. — Encostou-se para trás na cadeira, uniu os dedos e disse a Gamay: — Como bióloga marinha, presumo que esteja familiarizada com a Caulerpa taxifolia, não é verdade?

Gamay graduara-se em Arqueologia Marinha na Universidade da Ca-rolina do Norte antes de mudar de interesses, matriculando-se no Instituto Scripps, onde obteve um doutoramento em Biologia Marinha. Sorriu ao recordar os seus tempos de aluna de Osborne. Costumava fazer perguntas sob a forma de afirmações.

— A Caulerpa é uma alga nativa dos trópicos, apesar de ser vista com frequência em aquários caseiros.

— Correcto. E sabe que a variante de água fria que prospera em aquá-rios se tornou um problema sério em certas zonas costeiras?

Gamay acenou afirmativamente com a cabeça. — Alga assassina. Des-truiu grandes porções do leito marinho no Mediterrâneo e espalhou-se também a outras regiões. É uma variante de alga tropical e normalmen-te não viveria em água fria, mas conseguiu adaptar-se. Pode espalhar-se a todo o mundo.

Osborne voltou-se para Paul. — A alga de que falamos foi lançada acidentalmente à água por baixo do Museu Oceanográfico do Mónaco em 1984. Desde então, cobriu trinta mil hectares no fundo marinho costeiro de seis países mediterrânicos e também constitui um problema na Aus-trália e em San Diego. Espalha-se como um incêndio florestal. Mas o pro-blema não se limita à velocidade de propagação. As colónias de Caulerpa são extremamente agressivas. A alga espalha-se e forma uma densa carpete verde que asfixia a fauna e outros tipos de flora, privando plantas e animais de luz e oxigénio. A sua presença destrói a base da cadeia alimentar mari-nha, atingindo as espécies nativas com consequências devastadoras para os ecossistemas.

— Não há maneira de lutar contra isso?— Em San Diego conseguiram algum sucesso, usando lonas para co-

locar concentrações de algas sob quarentena e injectando cloro na água e na lama onde se ancoram as plantas. Esta técnica seria inútil numa infestação de grandes proporções. Tem havido um esforço para educar os proprietá-rios de aquários que vendem Caulerpa ou negociam rochas que possam estar contaminadas com organismos.

— Não tem inimigos naturais? — perguntou Trout.

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— Os seus mecanismos de defesa são incrivelmente complexos. A alga contém toxinas que mantêm os herbívoros à distância. E não morre no In-verno.

— Parece um autêntico monstro marinho — disse Trout. — E é. Um pequeno fragmento consegue originar uma nova coló-

nia. A sua única fraqueza é que não pode reproduzir-se de forma sexuada, como os seus parentes selvagens. Mas imagine o que poderia acontecer se conseguisse espalhar ovos ao longo de grandes distâncias.

— Não é um pensamento agradável — considerou Gamay. — Poderia tornar-se imparável.

Osborne voltou-se para Paul. — Como geólogo marinho, conhece a área da Cidade Perdida?

Trout sentiu-se grato pela passagem da biologia para o seu campo. — É uma área de condutas hidrotermais ao longo do Maciço Atlântico. O ma-terial projectado do leito marinho acumulou-se, formando torres minerais que se assemelham a arranha-céus e é daí que vem o nome. Já li trabalhos de pesquisa a esse respeito. Fascinante. Gostava de lá ir um dia.

— Pode ser que tenha uma oportunidade em breve — disse Osborne.Paul e Gamay trocaram olhares confusos. Osborne riu-se, reparando nas suas expressões intrigadas. — É melhor virem comigo — sugeriu. Deixaram o gabinete e, após várias curvas, deram consigo num peque-

no laboratório. Osborne foi até um armário de metal fechado a cadeado. Destrancou a porta com uma chave que trazia pendurada do cinto e extraiu um frasco cilíndrico de vidro com cerca de trinta centímetros de altura e quinze de diâmetro. O topo estava selado. Parecia estar cheio de alto a baixo com uma substância espessa de uma cor algures entre o cinza e o verde.

Gamay inclinou-se para a frente para examinar o conteúdo, dizendo: — O que é esta gosma?

— Antes de responder à sua pergunta, permita-me contextualizar um pouco. Há alguns meses atrás, o LBM participou numa expedição conjunta à Cidade Perdida com o Instituto Oceanográfico de Woods Hole. A área está infestada por micróbios invulgares e pelas substâncias que produzem.

— A combinação de calor e elementos químicos já foi comparada às condições que existiam quando a vida surgiu na Terra — disse Gamay.

Osborne acenou de forma afirmativa. — Nessa expedição, o submer-sível Alvin recolheu amostras de algas. O que têm aqui é uma amostra mor-ta.

— O caule e as folhas assemelham-se vagamente à Caulerpa, mas há diferenças — disse Gamay.

— Muito bem. O género Caulerpa inclui mais de setenta espécies, in-

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cluindo as que se vendem nas lojas de animais. Cinco delas manifestam comportamento invasivo, apesar de haver poucas espécies bem estudadas. Esta é completamente desconhecida. Chamámos-lhe Caulerpa gorgonosa.

— Alga-górgone. Parece-me bem. — Vai deixar de parecer quando conhecer esta aberração infernal tão

bem como eu. Em termos científicos, o que aqui temos é uma mutação da Caulerpa. No entanto, ao contrário dos seus parentes, esta espécie pode reproduzir-se de forma sexuada.

— Se for verdade, esta alga-górgone pode espalhar os seus ovos ao longo de grandes distâncias. Isso pode constituir um problema sério.

— Já constitui. Cruzou-se com a taxifolia e começa a substitui-la. Sur-giu nos Açores e encontrámos amostras ao longo da costa espanhola. A sua velocidade de crescimento é fenomenal. O surto de expansão é extraordi-nário. Temos já grandes manchas de alga a flutuar no Atlântico. Em breve, unir-se-ão numa única massa.

Paul reagiu com um assobio baixo. — A esse ritmo, pode contaminar todo o oceano.

— Isso não é o pior. A taxifolia cria uma película compacta de algas. Como a Medusa, cujo olhar podia transformar homens em pedra, a alga-górgone transforma-se numa massa espessa e rígida. Nada pode existir onde esteja presente.

Gamay olhou o frasco com o horror resultante do seu conhecimento dos oceanos do planeta. — Basicamente, está a falar de uma possível solidi-ficação dos oceanos.

— Nem consigo conceber a pior das hipóteses. Mas há uma coisa que sei. Dentro de pouco tempo, a alga-górgone pode infestar a costa das zo-nas temperadas e provocar danos ecológicos irreparáveis — disse Osborne, com a voz reduzida a um murmúrio invulgar. — Poderá afectar o clima, talvez até provocando secas. Poderá tornar o comércio marítimo impossí-vel. Nações que dependem do oceano para obter as suas fontes de proteí-na, morrerão à fome. Existirão perturbações políticas em torno do mundo com lutas entre quem tivesse alimento e quem não o tivesse.

— Mais alguém sabe disto? — perguntou Paul. — Já houve navios a relatar a alga como incómoda, mas, fora daqui,

apenas alguns colegas de confiança nos Estados Unidos e no estrangeiro estão a par da gravidade da situação.

— Não deviam as pessoas ser informadas da ameaça para poderem unir-se na luta contra ela? — perguntou Gamay.

— Absolutamente. Mas não quero espalhar o pânico até completar a pesquisa. Estou a preparar um relatório que enviarei na próxima semana a organizações pertinentes como a NUMA e a ONU.

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— Há alguma hipótese de conseguir fazê-lo mais cedo? — quis saber Gamay.

— Claro que sim, mas aí reside o problema. Quando o assunto é o controlo biológico, é frequente que exista um braço de ferro entre erradica-ção e estudo científico. Compreensivelmente, os partidários da erradicação desejam atacar rapidamente o problema com todas as armas ao seu dispor. Se esta notícia for divulgada, a pesquisa ficará sob quarentena por receio de que o seu trabalho possa espalhar a alga. — Olhou o frasco. — Esta criatura não é uma erva daninha marinha. Estou convicto de que conseguiremos lidar com ela assim que tenhamos mais meios ao nosso dispor. Se não co-nhecermos com precisão aquilo com que lidamos, nenhum método de er-radicação será bem-sucedido.

— Como pode a NUMA ajudar? — questionou Gamay. — Há outra expedição à Cidade Perdida em preparação. O navio de

pesquisa oceanográfica Atlantis chegará ao local esta semana com o Alvin. Tentarão explorar a área onde as algas apresentam mutações. Logo que de-terminemos as condições que provocaram esta aberração, podemos traba-lhar formas de a derrotar. Tenho tentado perceber como posso concluir o meu trabalho e participar na expedição. Quando soube que estavam na cidade, encarei isso como um sinal divino. Vocês os dois constituem a com-binação perfeita de conhecimentos. Considerariam participar na expedição no meu lugar? Será apenas por alguns dias.

— Claro que sim. Teríamos de pedir autorização aos nossos superiores na NUMA, mas isso não será problema.

— Confio na vossa discrição. Quando tivermos amostras, tornarei pú-blico o meu relatório, ao mesmo tempo que os meus colegas no resto do mundo.

— Onde está o Atlantis agora? — perguntou Paul. — Regressa de uma outra missão. Fará uma paragem nos Açores ama-

nhã para se reabastecer de combustível. Poderão juntar-se à tripulação aí. — É possível — concluiu Paul. — Podemos regressar hoje à noite a

Washington e iniciar viagem pela manhã. — Olhou o frasco. — Teremos um problema sério se essa coisa sair daí.

Gamay fitava a mancha esverdeada há longos minutos. — Receio que o génio já tenha sido libertado da lâmpada. Teremos de encontrar um modo de o voltar a colocar lá dentro.