[BRANDÃO, Priscila] SNI & ABIN - Uma Leitura Da Atuação Dos Serviços Secretos Brasileiros Ao...
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Priscila Carlos Brando Antunes
SNI & ABIN: Entre a Teoria e a PrticaUma leitura da atuao dos servios secretos brasileiros ao longo do sculo XX
Rio de Janeiro 2001
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Para Luciano e Eli Carlos
Para Celina, Celso e Cepik
Para meus pais e meu querido lvaro Antunes
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Agradecimentos
Este livro uma verso modificada de minha dissertao de mestrado, apresentada
junto ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia e Cincia Poltica, da Universidade
Federal Fluminense. Em primeiro lugar gostaria de registrar meus agradecimentos a Maria
Celina DAraujo que durante todo este rito de passagem mestrado, defesa de dissertao
e produo deste livro no poupou esforos para me amparar, instruir e incentivar. Sua
pacincia e sabedoria foram fundamentais para o aprendizado e amadurecimento
alcanados neste processo. Importantssimas tambm foram as co-orientaes realizadas
pelos professores Celso Castro e Marco Cepik. Com sugestes valiosas e crticas sempre
pontuais, Celso fez da construo desta dissertao uma lio de vida. Amigo e sempre
companheiro nas horas mais desesperadoras, Marco Cepik abriu um universo de
possibilidades pelas quais sempre lhe serei grata. Ao Centro de Pesquisa e Documentao
de Histria Contempornea do Brasil da Fundao Getulio Vargas (CPDOC/FGV)
agradeo a oportunidade de ter participado, como pesquisadora associada, do projeto
Democracia e Foras Armadas, apoiado pela Finep e coordenado por Celso Castro e Maria
Celina D'Araujo. Participando deste projeto tive no s a motivao para este estudo como
tambm acesso a fontes de pesquisa sem as quais seria impossvel viabiliz-lo. CAPES
sou grata pela bolsa de mestrado que me concedeu por um perodo de doze meses, que
contribuiu em muito para que eu pudesse me dedicar pesquisa que resultou nesta obra.
Alguns professores da Universidade Federal de Ouro Preto tambm merecem meus
agradecimentos, pois se cheguei at este livro, tambm culpa deles. Entre eles
agradeceria ao Crisston Terto Vilas Boas, Marco Aurlio Santana, Fbio Faversan,
Adriano Cerqueira e Srgio Alcides pelas longas horas de discusso que antecederam
minha entrada no PPGACP da Universidade Federal Fluminense. Ao professor Ronald
Polito e Marli Magrela , Meire Maria e Luclia, secretrias do ICHS, sou grata pelo
incentivo que sempre me deram.
Gostaria ainda de agradecer s companheiras do CPDOC, em especial a Leila
Bianchi, que sempre encurtaram a distncia existente entre Minas e o Rio, repassando-me
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materiais sempre que necessrios. Agradeo assessoria da ABIN e do Partido dos
Trabalhadores na Cmara dos Deputados e aos professores Maria Aparecida Aquino da
Universidade de So Paulo e Ellizer Rizzo de Oliveira do Ncleo de Estudos Estratgicos
da UNICAMP pelas pertinentes crticas apresentadas em minha defesa de dissertao. Aos
meus queridos Villalta, Lucinha, Luiz Otvio, Carlinha, Car e Cludia, agradeo pela
pacincia, compreenso e pelas boas risadas compartilhadas. Sou tambm muito grata a
toda a minha famlia, que no sem alguma dificuldade, aprendeu a compreender e respeitar
a minha ausncia. Ao sogro agradeo as engraadssimas discusses sobre o regime
militar e ao meu amor, lvaro Antunes, creio que no existem palavras para registrar sua
presena e fora nesta longa caminhada.
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Sumrio
Introduo: 9
Captulo 1 A atividade de inteligncia: conceitos e processos. 15
Seo I
Inteligncia e Informao: 15Produo bibliogrfica brasileira 19Segurana e segredo 22Estigma 26
Seo II
Ciclo de inteligncia e sistemas organizacionais. 28Ciclo de Inteligncia: apresentao 29Ciclo de Inteligncia: prticas 34Sistemas organizacionais: uma viso geral 37
Captulo 2 Os servios de Informaes no Brasil: a construo burocrtica da rede. 41
Seo I
O Conselho de Defesa Nacional. 42A criao do Servio Federal de Informaes e Contra-Informaes SFICI 44Servio Nacional de Informaes SNI 52
Seo II
Marinha 62Exrcito 65Aeronutica 70
Captulo 3 Prticas da comunidade de informaes no Brasil 76
A entrada da Foras Armadas no combate subverso 78A relao entre os servios de informaes no Brasil e os comandos paralelos 79A atuao da comunidade de informaes. 84
Captulo 4 Os servios de inteligncia nos anos 90. 99
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Seo I
Aeronutica 99Marinha 101Exrcito 104Ministrio da Defesa 106
Seo II
A extino do SNI e o papel do legislativo na regulamentao da atividade. 107O debate congressual. 112
Seo III
O Seminrio de Inteligncia 129
Captulo 5 - ABIN: debate poltico e implementao 144
Seo I
Processo poltico de criao da ABIN. 145Projet-Lei 3.651 de autoria do Poder Executivo 157
Seo II
Lei 9.883 167
Seo III
Segredo governamental e administrao de arquivos. 172Plano Nacional de Proteo ao Conhecimento: 173
Seo IV
Poder Executivo e estigma. Elementos de fuga. 180
Concluses 189
Fontes Primrias 196
Livros e artigos 200
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Lista de figuras:
1 Ciclo de Inteligncia 29
2 Diagrama 34
3 Fluxo Informacional 36
4 Quadro profissional 155
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Abreviarutas1. ABCI - Agncia Brasileira de Contra-Inteligncia.
2. ABI Associao Brasileira de Imprensa.
3. ABIE - Agncia Brasileira de Inteligncia Externa.
4. ABII Agncia Brasileira de Inteligncia Interna.
5. ABIN Agncia Brasileira de Inteligncia.
6. AC/SNI Agncia Central do Servio Nacional de
Informaes.
7. AERP - Assessoria Especial de Relaes Pblicas.
8. ASIs Assessorias de Segurana Interna.
9. CEFARH - Centro de Formao Aperfeioamento e
Recursos Humanos.
10. CENIMAR Centro de Informaes da Marinha.
11. CEP Centro de Estudo Pessoal do Exrcito.
12. CEPESC Centro de Pesquisa de Segurana de
Comunicaes.
13. CFI Centro Federal de Inteligncia.
14. CIA Central Intelligence Agency. (EUA)
15. CIA Centro de Informaes da Aeronutica.
16. CIE Centro de Informaes do Exrcito/Centro de
Inteligncia do Exrcito.
17. CIM Centro de Informaes da Marinha/ Centro de
Inteligncia da Marinha.
18. CMPR Casa Militar da Presidncia da Repblica.
19. CNBB Conferncia Nacional dos Bispos Brasileiros.
20. CODIs Centro de Operaes e Defesa Interna.
21. CONTAG Confederao Nacional dos Trabalhadores da
Agricultura.
22. CREDENA Cmara de Relaes Exteriores e Defesa
Nacional.
23. CSI Conselho Superior de Inteligncia.
24. CSIS Canadian Security Intelligence Service.
25. CSN Conselho de Segurana Nacional.
26. DI Departamento de Inteligncia.
27. DOIs Destacamentos de Operao Interna.
28. DOPS Delegacia de Ordem Poltica e Social da Polcia
Federal.
29. DSC Documentos Sigilosos Controlados.
30. DSIs Divises de Segurana Interna.
31. ECEME Escola de Comando do Estado Maior do
Exrcito.
32. EMFA Estado Maior das Foras Armadas.
33. ESG Escola Superior de Guerra.
34. ESNI Escola Nacional de Informaes.
35. EsIMEx Escola de Inteligncia Militar do Exrcito.
36. FBI Federal Bureau of Information. (EUA)37. GAB/SNI Gabinete do Servio Nacional de
Informaes.
38. GSI/PR Gabinete de Segurana Institucional da
Presidncia da Repblica.
39. KGB Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti. (ex-URSS)
40. IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica.
41. IMBEL Indstria de Material Blico do Brasil.
42. MARE Ministrio da Administrao e Reforma do
Estado.
43. MEMORIN Memorial da Inteligncia.
44. MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
45. NATO Nations Atlantic North Organization.
46. NEE Ncleo de Estudos Estratgicos.
47. OAB Ordem dos Advogados do Brasil.
48. OBAN Operao Bandeirantes.
49. OTAN Organizao do Tratado do Atlntico Norte.
50. PAI Plano Anual de Inteligncia.
51. PNPC Plano Nacional de Proteo ao Conhecimento.
52. PCB Partido Comunista Brasileiro.
53. PL Projeto-Lei.
54. PSDB Partido Social e Democrata Brasileiro.
55. PT - Partido dos Trabalhadores.
56. RSAS - Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos
Sigilosos.
57. SAE Secretaria de Assuntos Estratgicos.
58. SADEN Secretaria de Assessoramento e Defesa
Nacional.
59. SBI Sistema Brasileiro de Inteligncia.
60. SECINT - Secretaria de Inteligncia da Aeronutica.
61. SENAD Secretaria Nacional Anti-Drogas.
62. SIS Secret Intelligence Service. (Inglaterra)
63. SFICI Servio Federal de Informaes e Contra-
informaes.
64. SG/CSN Secretaria Geral do Conselho de Segurana
Nacional.
65. SIM Servio de Informaes da Marinha.
66. SISNI Sistema Nacional de Informaes.
67. SISSEGINT Sistema Nacional de Segurana Interna.
68. SNI Servio Nacional de Informaes.
69. SIVAM Sistema de Vigilncia da Amaznia.
70. SSM Servio Secreto da Marinha.
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71. UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro.
72. UNICAMP Universidade Estadual de Campinas.
73. USP Universidade de So Paulo.
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Introduo
Introduo
O trabalho que ora apresentamos est inserido no contexto mais amplo de um
projeto de pesquisa sobre memria militar que vem sendo desenvolvido nos ltimos anos
pelo Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea da Fundao Getlio
Vargas (CPDOC/FGV). Pesquisa que j resultou na trilogia que abordou a memria militar
sobre o golpe de 1964, a represso, a abertura e, em sua ltima fase, est fazendo o
levantamento e a anlise da memria militar sobre a democracia. O objetivo do projeto
Democracia e Foras Armadas examinar de que maneira os militares tm se inserido na
nova ordem democrtica que seguiu ao fim dos regimes militares no Brasil e nos demais
pases do Cone Sul.
No que compete a este livro, a anlise ter um foco muito especfico: a memria
militar sobre a atividade de informaes/inteligncia no Brasil. Neste sentido, os
depoimentos coletados pelo CPDOC foram de fundamental importncia para acompanhar e
compreender o processo de institucionalizao da atividade de inteligncia no pas, nosso
principal objetivo.1
A abordagem desta atividade no Brasil sempre foi uma tarefa difcil, devido
grande dificuldade de acesso documentao e a postura assumida pelos militares.
Documentos relacionados atuao da comunidade de informaes vazam para o domnio
pblico muito esporadicamente e, na maioria das vezes, so veiculados atravs da imprensa
de forma sensacionalista. Por seu turno, o silncio dos militares sobre o perodo autoritrio
constitui um empecilho ao interesse investigativo. Felizmente, um silncio corporativo que
vem sendo rompido, embora lentamente.
Ainda que seja escassa a documentao sobre os rgos militares de informaes e
que sejam poucas as entrevistas consultadas, estas fontes foram de extrema importncia
para o esboo da construo da complexa rede de informaes articulada no perodo
1 Os depoimentos foram coletados em sua maioria pelos professores Maria Celina DAraujo, Celso Castro e Glucio Ary Dilon Soares. So de militares que tiveram um importante papel na implementao e manuteno do regime militar e de militares que ocuparam importantes cargos no Poder Executivo no regime democrtico que se instaurou a partir de 1986.
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Introduo
militar. Na medida do possvel, os depoimentos e as notcias foram confrontados com
outras fontes disponveis, como a legislao e a bibliografia pertinente.2
Com a consulta aos depoimentos militares, aos seminrios realizados pelo Poder
Legislativo e s fontes impressas disponveis, analisamos o processo de institucionalizao
da atividade de informaes no Brasil. Um processo que se inicia em 1927, quando aparece
pela primeira vez oficialmente na legislao brasileira, e se estende at a discusso e
implementao da atual Agncia Brasileira de Inteligncia (ABIN) em dezembro de 1999.3
Em princpio, o objetivo era apenas analisar o processo poltico de criao da ABIN
e apresentar como estariam articulados os rgos de inteligncia militares. Entretanto, seria
praticamente impossvel compreender os percalos que o Poder Executivo atravessou para
aprovar a ABIN sem levar em conta os antecedentes histricos da atividade de inteligncia
no Brasil.
O governo enfrentou algumas dificuldades para implementar a Agncia que, criada
por fora de medida provisria em 1995, apenas foi oficializada em 7 de dezembro de
1999. Houve uma resistncia por parte da sociedade sua implantao, sobretudo da
imprensa, que de alguma forma se refletiu no meio congressual. Esta reao decorreu,
principalmente, do perfil assumido pelos rgos de informaes durante o recente regime
militar.
Para melhor compreender a rejeio a esse debate no meio legislativo, optamos por
analisar historicamente as prticas e as funes dos rgos de informaes e o papel que
tiveram em nossa histria. Tratam-se de prticas que foram minimamente divulgadas de
forma oficial, que ainda continuam resguardadas pela cultura do segredo e que podem ser
consideradas, em grande parte, responsveis pela estigmatizao da atividade de
informaes/inteligncia no pas.
2 De forma a dinamizar a leitura e compreenso do texto, optamos por utilizar os termos inteligncia e informaes da forma como eles surgem no debate brasileiro. Foi em 1990 que o presidente Fernando Collor extinguiu o Servio Nacional de Informaes e criou, dentro da estrutura da nova Secretaria de Assuntos Estratgicos, a Subsecretaria de Inteligncia. certo que dentro dos servios de informaes das Foras Armadas, j havia, desde o comeo da dcada de 80, discusses a respeito da renomeao da atividade, entretanto, escolhemos o ano de 1990 como referencial. Ou seja, quando tratar da atividade responsvel pela coleta e anlise de informaes no Brasil, antes de 1990, usaremos o termo informaes e quando se tratar da atividade depois de 1990, inteligncia3 Decreto 17.999 de 29 de novembro de 1927 e Lei 9.883 de 07 de dezembro de 1999.
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Introduo
Este trabalho tambm pretende trazer uma contribuio terica para o estudo da
atividade de inteligncia no Brasil, assunto pouco analisado no mbito das cincias
humanas, como prova a lacuna bibliogrfica existente nesta rea. Este assunto polmico
pois a finalidade e os meios de obteno e manipulao de informaes dentro da atividade
de inteligncia so sempre questionveis. Mas qual seria o problema imposto democracia
pela existncia de servios de inteligncia?
Acreditamos que a principal discusso a ser elaborada sobre o vnculo da atividade
de inteligncia com o Estado Democrtico deve dizer respeito ao grau de
constitucionalidade deste servio, regulamentao pblica e ao conhecimento sobre os
rgos e cargos estatais responsveis pela conduo da atividade de inteligncia no pas.
O Estado democrtico tem o seu poder restrito pela constituio e pela obrigao
moral de ser responsivo aos direitos da cidadania. A relao entre o Estado e os cidados
que o legitimam sempre foi marcada pela desconfiana, o que acarretou na diviso dos trs
ramos do poder: Legislativo, Executivo e Judicirio. Mas na formao dos Estados
modernos, estes trs poderes passaram a operar no exerccio da poltica provocando um
novo desequilbrio em favor do Poder Executivo.
Este desequilbrio se deve ao fato de ser o Executivo, dentro da diviso de poderes,
aquele que possui a responsabilidade constitucional de garantir a segurana do cidado, as
relaes externas, a integridade territorial, de executar os objetivos da poltica externa e,
em ltima instncia, garantir a prpria ordem constitucional.4 Para o cumprimento desta
tarefa preciso que o Executivo possua instrumentos que so dispensveis aos outros dois
poderes. A atividade de inteligncia se configura apenas como uma destas ferramentas de
atuao do Poder Executivo.
Com o fim da Guerra Fria houve um novo redimensionamento dos interesses no
cenrio poltico e econmico mundial. Mudaram os inimigos e os alvos a serem
alcanados. Atualmente, o interesse de pases em produzir bomba atmica; movimentos
terroristas, narcotrfico; bioespionagem; espionagem industrial; espionagem econmica e
pretenses expansionistas se configuram como as principais ameaas que justificam a
existncia deste tipo de atividade.
4 Constituio Federal promulgada em 1988. Ttulo V. Da Defesa do Estado Democrtico e das Instituies Democrticas.
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Introduo
A grande questo que como o prprio Executivo possui as prerrogativas para criar
seus mecanismos de busca de eficcia, tambm tem condies de superdimensionar estas
ameaas de acordo com o seu interesse. Por isto extremamente necessrio que ele seja
controlado, ou atravs da legislao, sua regulamentao formal, ou pela necessidade de ter
que responder publicamente por seus atos.
Neste sentido, acreditamos ser de fundamental importncia conhecer o nvel do
envolvimento parlamentar nas discusses sobre a atividade de inteligncia no Brasil e
ampliar as discusses sobre ela no mbito acadmico e na sociedade em geral.
Principalmente neste momento em que o Brasil vem instituindo o seu novo sistema de
inteligncia.
O momento oportuno para refletir sobre o tipo de atividade de inteligncia que
queremos para o nosso pas, para questionar quais demandas por informaes exigem a
existncia da atividade de inteligncia no Brasil, quais as ameaas que devem ser
consideradas para a defesa do Estado e quais sero as bases de atuao ofensiva de
inteligncia no exterior, se realmente ela for necessria. Deveria ser estabelecida uma
atividade de contra-inteligncia para auxiliar a ao do governo na preservao do Estado
Democrtico brasileiro contra o comportamento atentatrio ao quadro institucional? Quais
mecanismos preservaro a privacidade e a segurana das comunicaes e de transmisses
eletrnicas de dados no pas?
Estas e vrias outras questes devem ser consideradas e analisadas de forma a
possibilitar um exerccio real de fiscalizao sobre o Poder Executivo, concretizando o
princpio de que a atividade de inteligncia apenas um dos instrumentos necessrios ao
Estado para a manuteno de suas instituies democrticas.
Para instrumentalizar esta anlise, procuramos no primeiro captulo Atividade de
Inteligncia, conceitos e processos estabelecer uma definio mais precisa sobre a
atividade de inteligncia. Amparados no modelo terico adotado por alguns pases
ocidentais, definimos, na primeira seo, quais seriam as funes, responsabilidades e as
capacidades da inteligncia.5 Este padro ocidental sempre foi citado como referncia para
a elaborao da ABIN, sobretudo, no que diz respeito ao modelo canadense. Estabelecemos
5 Para este estudo foram pesquisados, por exemplo, os servios de inteligncia dos Estados Unidos, Frana, Canad, Alemanha, Israel etc.
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Introduo
algumas distines entre inteligncia & informaes e inteligncia & espionagem e
mostramos como interagem as agncias de inteligncia dentro de seus sistemas
organizacionais. Desenvolvemos algumas discusses sobre segredo governamental,
fundamental para pensar a atividade de inteligncia, e sobre o conceito de estigma, que
ser o fio condutor deste trabalho. A segunda seo deste captulo apresenta de forma
sucinta a formao histrica desta atividade ao longo do sculo XX e a constituio dos
complexos sistemas de inteligncia utilizados em alguns pases ocidentais.
No captulo 2 Os servios de Informaes no Brasil: a construo burocrtica da
rede procuramos perceber as particularidades da constituio e do funcionamento, em
tese, da atividade de informaes no Brasil. A nfase recai, sobretudo, na elaborao dos
rgos de informaes implantados aps o golpe militar de 1964. Este captulo enfoca o
aspecto burocrtico do processo de institucionalizao da atividade de informaes,
tomando por base a legislao que tivemos acesso e os depoimentos coletados pelo
CPDOC. A primeira seo apresenta a institucionalizao dos rgos civis, Servio
Nacional de Informaes (SNI) e o Servio Federal de Informao e Contra Informao
(SFICI) e a segunda, os rgos de informaes militares.
O captulo 3 Prticas da comunidade de informaes no Brasil aborda a
prtica dos servios de informaes durante o regime militar at a extino do SNI em
1990. Este captulo fundamental para que possamos compreender o estigma desta
atividade no pas, que dificulta o estabelecimento de um debate poltico profundo sobre o
assunto. Com base, sobretudo, nas perspectivas dos depoentes, analisaremos as atividades
desenvolvidas pelo SNI e pelos servios de informaes militares nesse perodo.
O captulo 4 Os servios de inteligncia nos anos 90 est divido em trs
sees. Acompanhando o processo de institucionalizao da atividade no comeo da
dcada de 1990, a primeira seo trata das mudanas ocorridas poca dentro da rea de
inteligncia militar. A segunda, analisa o processo de extino do SNI e a tentativa de
rearticulao de um rgo civil de inteligncia, tanto por parte do Poder Executivo quanto
do Legislativo. A ltima seo analisa o primeiro seminrio organizado pelo Poder
Legislativo para discutir a atividade de inteligncia no Brasil. Buscamos avaliar quais
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Introduo
seriam as suas propostas para um novo modelo de agncia e quais mecanismos procuraram
estabelecer para tentar superar o carter estigmatizado da atividade de inteligncia.
O quinto e ltimo captulo ABIN: debate poltico e implementao analisa em
sua primeira seo o processo poltico de criao da ABIN, a nfase recai no debate
parlamentar sobre o PL que institua a Agncia. Na segunda analisada a lei que criou
oficialmente a ABIN, onde procuramos estabelecer um estudo comparativo a partir do
padro ocidental citado como referncia e o que foi aprovado para a Agncia. Na terceira
apresentamos parte do arcabouo jurdico que serve de apoio legislao da ABIN, o que
permitir ao leitor uma compreenso mais precisa do alcance e das capacidades da
atividade de inteligncia no Brasil.
Por fim, a ltima seo enfoca especialmente as medidas estabelecidas pelo Poder
Executivo para sensibilizar no s a sociedade, mas, principalmente, o Poder Legislativo
para a importncia da atividade de inteligncia na conduo da poltica de defesa nacional
e sua importncia no processo de modernizao do Estado brasileiro. Importncia que ora
passa a ser apresentada e discutida.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
Captulo 1 - A atividade de inteligncia: conceitos e processos.
Neste captulo discorremos sobre os trs conceitos bsicos que permeiam este livro:
a atividade de inteligncia, o segredo e o estigma.
A atividade de inteligncia definida no mbito de suas misses e capacidades, de
forma a possibilitar a compreenso de sua competncia. Com uma definio mais precisa,
ficamos aptos a estabelecer comparaes e a perceber os excessos cometidos por rgos
dessa rea, bem como a analisar a nova estrutura que est sendo proposta.
O conceito de segredo governamental til nesta discusso porque aborda a
relao do Estado com o manejo, proteo e publicizao de informaes consideradas
sensveis para a segurana nacional. Neste caso, o objetivo perceber quais mecanismos
foram e esto sendo criados para proteger informaes que so consideradas sensveis
segurana do Estado e observar os regulamentos criados para a classificao destes
documentos.
O terceiro conceito a ser utilizado o de estigma, na acepo dada pelo socilogo
Erving Goffman. Ao trabalhar com este conceito, procuro perceber quais mecanismos o
Estado brasileiro vem adotando para fugir ao carter pejorativo e deteriorado a que ficou
associada a atividade de inteligncia e de que forma esse estigma vem dificultando a
implementao da ABIN.
Com a inteno de deixar o trabalho mais fludo e compreensvel, optamos por
dividir este captulo em duas sees. A primeira aborda essencialmente os conceitos
utilizados e a segunda demonstra o processo funcional de uma atividade de inteligncia.
Seo I
Inteligncia e Informao:
A atividade de inteligncia uma componente atual e significativa do poder de
Estado, enquadrando-se no ncleo coercitivo que prov a prestao de servios pblicos de
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
defesa externa e manuteno da ordem, as duas funes constituindo os atributos do
monoplio legtimo do uso da fora na acepo weberiana do Estado.
O grande fluxo de informaes que marca o final do sculo XX demanda, em
primeiro lugar, uma diferenciao entre informaes e inteligncia. Essa distino, embora
til como um ponto de partida operacional, ser revista posteriormente luz das
especificidades do contexto histrico brasileiro. Outra diferenciao faz-se necessria entre
inteligncia e espionagem. Tais separaes buscam fugir das generalizaes que ora
classificam a inteligncia apenas como espionagem e ora a classificam como coleta e
anlise de quaisquer informaes relevantes para uma tomada de deciso.
No que se refere diferena entre inteligncia e informao preciso buscar
subsdios nos debates acadmicos anglo-saxes, uma vez que a bibliografia brasileira em
relao ao assunto extremamente escassa.
Em meio ao debate sobre inteligncia que surge na dcada de 1990, Jennifer Sims
afirmou que inteligncia no estaria envolvida apenas com o segredo e que quaisquer tipos
de informaes coletadas para o processo de deciso seriam inteligncia. Em sua
concepo, intelligence is best defined as information collected, organized, or analyzed on
behalf of the actors or decision makers. Such information include technical data, trends,
rumors, pictures, or hardware.6
De acordo com Sims, seria a organizao particular do material coletado que se
destina a auxiliar as tomadas de deciso que transformaria simples recortes de jornais em
produto de inteligncia:
A pile of newspapers on a decision makers desk does not constitute intelligence. Even a set of clippings of those newspapers, organized by subject matter, is not intelligence. A subject clips, selected expressly for the needs of the decision makers, is intelligence.7
Esta definio implicaria, necessariamente, que toda informao analisada para
auxiliar uma tomada de decises seria um produto de inteligncia, desde uma pesquisa
empresarial com fins de saber a aceitao de um produto no mercado at o
desenvolvimento de submarinos a propulso nuclear desenvolvidos na China.
6 SIMS, Jenifer. What is Intelligence? Information for Decision Makers. In: GODSON, Roy (ed.). U.S. Intelligence at the crossroads. Agendas for reform. New York: Brasseys, 1995. p.4.
7 SIMS. What is Intelligence? Information for Decision Makers, p.5.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
Consequentemente, qualquer organismo ou instituio poderia ser considerado um servio
de inteligncia em potencial.
Em contrapartida posio de Sims, tem-se a definio de Abram Shulsky. Este
autor restringe a rea de atuao da atividade de inteligncia e a vincula sua forma de
organizao, ao segredo, e competio entre estados. Na nova dinmica poltico-
econmica mundial, extremamente marcada pela competitividade, o conhecimento e sua
proteo se tornaram fatores essenciais para assegurar aos Estados a sua sobrevivncia. O
fim da Guerra Fria e a rapidez da circulao da informao provocada pelo advento da
globalizao determinaram novas reas de interesse a serem protegidas. Mudou-se a
concepo sobre segurana nacional e, consequentemente, os interesses a serem
resguardados.
Desta forma, de acordo com Shulsky, uma vez que o governo tem que estar todo o
tempo processando informaes, justamente o segredo e a necessidade de proteo que
definem o que deve e o que no deve ser considerado um produto de inteligncia.
Um segundo aspecto a ser considerado em sua definio a competio entre os
estados. A inteligncia tem um carter conflitivo e se encontra entre a diplomacia e a
guerra. extremamente importante se ater ao carter conflitivo desta atividade, uma vez
que lida com obteno e negao de informaes.
Intelligence comprises the collection and analysis of intelligence information information relevant to the formulation and implementation of governmental national security policy (...) Therefore, intelligence as an activity may be defined as that component of the struggle between adversaries that deals primarily with information.8
O terceiro aspecto que um governo precisa organizar e estruturar mecanismos
para prover alguns tipos especficos de informao. O que importa saber o que so estes
mecanismos estruturados pelo governo e o que eles identificam como inteligncia. Trata-se
de observar o fenmeno para o qual o termo inteligncia aplicado Intelligence refers to
information relevant to a governments formulating and implementing policy to further its
8 SHUSLKY, Abram. Silent warfare: understanding the world of intelligence. New York: Brasseys, 1991. p.2.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
national security interests and to deal with threats to those interests from actual or potential
adversaries.9
So informaes que esto normalmente relacionadas com assuntos militares, tais
como plano de ao dos adversrios, atividades diplomticas e intenes, bem como as
informaes sobre inteligncia. Ainda podem ser consideradas inteligncia, mesmo que o
governo adversrio no faa questo de proteger, assuntos que envolvam informaes sobre
casos polticos internos, desenvolvimento social, assim como estatsticas demogrficas e
econmicas.
A definio de inteligncia como coleta e anlise de informaes que interessam
segurana nacional tambm muito imprecisa, uma vez que o prprio conceito de
segurana nacional obscuro. Os interesses de segurana nacional esto diretamente
relacionados ao tipo de governo, de regime poltico e com o contexto scio-econmico. As
ameaas podem incidir tanto sobre aspectos internos quanto externos de um pas. Quanto
mais fechado for o regime, mais o governo est propenso a enfatizar a segurana interna e
preocupar-se com a represso poltica dentro do prprio territrio.
Uma definio mais precisa sobre a atividade de inteligncia apresentada por
Michael Herman em Intelligence power in peace and war.10 Alm de precisar as atividades
relacionadas ao ciclo de inteligncia, tambm analisa sua influncia e papel nas relaes
polticas nacionais e internacionais. Todavia, o que nos interessa neste momento o
aspecto organizacional que o autor aborda. Segundo Herman,
Intelligence in government is based on the particular set of organizations with that name: the intelligence services or intelligence community. Intelligence activity is what they do, and intelligence knowledge what they produce.11
Ao definir que inteligncia o que as organizaes de inteligncia fazem e as aes
que elas desenvolvem, fica muito mais prtico estabelecer o que deve e o que no deve ser
considerado inteligncia. A inteligncia neste caso no definida como um conceito a
partir do qual se possa afirmar que informaes sobre o meio-ambiente no dizem respeito
9 SHULSKY. Silent warfare: understanding the world of intelligence, p.1. 10 HERMAN, Michael. Intelligence power in peace and war. Cambridge: University Press, 1996.11 HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.2.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
atividade de inteligncia e que informaes sobre a fabricao de armamento nuclear
dizem mas a partir do seu contexto organizacional.
Outra diferenciao que devemos fazer em relao atividade de inteligncia diz
respeito sua compreenso enquanto espionagem. O senso comum normalmente associa a
atividade de inteligncia espionagem, trapaas e chantagens, imagem amplamente
incentivada pela literatura ficcional e pela mdia. No obstante o termo intelligence seja
um eufemismo anglo-saxo para a espionagem, esta apenas uma parte do processo de
inteligncia, que muito mais amplo e que ser posteriormente discutido.
Portanto, a atividade de inteligncia refere-se a certos tipos de informaes,
relacionadas segurana do Estado, s atividades desempenhadas no sentido de obt-las ou
impedir que outros pases a obtenham e s organizaes responsveis pela realizao e
coordenao da atividade na esfera estatal. Trata-se de uma definio mais precisa sobre o
escopo da atividade de inteligncia, que permite iluminar certas incompreenses que vm
sendo percebidas no debate brasileiro.
Produo bibliogrfica brasileira
O termo inteligncia, entendido neste sentido, passou a fazer parte do debate
poltico brasileiro principalmente a partir da dcada de 1990, aps a extino do Servio
Nacional de Informaes (SNI), no obstante haja referncias a este tipo de atividade desde
1927. Emergiu de uma tentativa de acobertar e superar uma identidade deteriorada que
havia se formado em torno da atividade de Informaes no regime militar, equivalente a
represso e violao dos direitos civis.12 No Brasil, assim como nos demais pases do Cone
Sul, existe uma forte desconfiana em relao a essa atividade, que decorre do perfil
assumido por seus rgos de informaes durante o ciclo recente de regimes militares.
Nesses pases, os servios de informaes converteram-se em estados paralelos com alto
grau de autonomia, enorme poder e capacidade operacional.
A produo acadmica brasileira sobre a atividade de informaes e inteligncia
quase inexistente. A maioria de trabalhos sobre o assunto foi produzida no perodo
12 Uma discusso a respeito das atividades de informaes e inteligncia no Brasil ser feita no prximo captulo.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
imediatamente posterior transio brasileira para o regime democrtico. Contudo, tal
produo era dirigida discusso do controle e subordinao do aparato militar sociedade
civil e, apenas por extenso, ao problema das misses, capacidades e controles especficos
das agncias de informaesa e segurana. Na viso de autores como Walder de Gos13 e
Alfred Stepan,14 o controle civil sobre o governo atingiria o cerne dos servios de
informaes do regime militar.
Alfred Stepan alertou para a necessidade das sociedades civil e poltica brasileiras
envolverem-se em assuntos acadmicos acerca da democracia e das formas de controle
sobre as foras armadas e os servios de informaes .15 Para ele, o controle destes sistemas
era requisito necessrio para a consolidao democrtica. Stepan propunha a
desmilitarizao do SNI e a formao de comisses permanentes no Legislativo ou nos
gabinetes do governo, as quais deveriam ocupar-se exclusivamente da monitorao e
superviso rotineira dos servios de informaes. Propunha ainda que se retirasse do chefe
do SNI o status de ministro e que se suprimisse seu carter operacional. O autor destacava,
sobremaneira, a necessidade de se aumentar o poder legislativo sobre este rgo.
Ao contrrio de Stepan, para quem a iniciativa teria que partir das sociedades civil e
poltica, Walder de Ges afirma que a transparncia e o controle sobre o servio de
informaes deveria partir de uma iniciativa militar. Seria necessrio que as Foras
Armadas reexaminassem algumas de suas premissas junto a sociedade civil. Para Ges, at
1988,
o retraimento militar no havia se dado em escala suficiente para provocar a reviso da dimenso e dos processos operacionais do servio secreto. (...) O absentesmo poltico estvel das Foras Armadas poder faz-lo, tornando-se um poder mais transparente e suscetvel de controle.16
Na produo acadmica sobre inteligncia de cunho mais conceitual, destaca-se o
trabalho de Lus Antnio Emlio Bittencourt, ex-diretor do Centro de Formao
13 GES, Walder de. Militares e poltica, uma estratgia para a democracia. In : REIS, Fbio e ODONNEL, Guilhermo. (orgs.). A democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. So Paulo: Vrtice, 1988.
14 STEPAN, Alfred. Os militares: da abertura nova repblica. Traduo de Adriana Lopes e Ana Luiza Amendola. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
15 Nesta obra Alfred Stepan define como sociedade civil um conjunto de organizaes cvicas e movimentos sociais de todas as classes. E, por sociedade poltica, o espao da organizao e contestao poltica em busca do controle sobre o poder pblico e estatal.16 GES. Militares e poltica, uma estratgia para a democracia, p.223.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
Aperfeioamento e Recursos Humanos (CEFARH), a antiga Escola Nacional de
Informaes criada em 1972 (ESNI). Em sua dissertao de mestrado O Poder Legislativo
e os Servios Secretos no Brasil17 buscou perceber a compatibilidade entre a atividade dos
servios de informaes e a nascente democracia brasileira. Tomou como base a ao do
Poder Legislativo em relao atividade de informaes no Brasil e o contexto analisado
foi o da elaborao da Constituio de 1988. O autor fez uma discusso sobre os
mecanismos de controle existentes, os limites e as possibilidades desses controles e buscou
perceber se no Congresso havia, realmente, interesse em estabelecer tais mecanismos.
Bittencourt afirma que o assunto foi tratado com superficialidade e critica a falta de
esclarecimento por parte do Legislativo em relao aos servios de informaes. Conclui
que no foi necessariamente a ao do Legislativo, mas as repercusses indiretas do
processo democratizante, associadas s contradies inerentes aos servios de informaes,
que acarretaram o esgotamento da concepo do SNI.
Outro trabalho que no poderia deixar de ser citado A Histria da Atividade de
Inteligncia no Brasil, obra produzida pela Sub-Secretaria de Inteligncia da Casa Militar
da Presidncia da Repblica (SSI/CMPR) em 1999. O livro foi escrito por Lcio Srgio
Porto Oliveira e contm um prembulo apresentado pelo ento chefe da Casa Militar,
general Alberto Mendes Cardoso, um dos principais envolvidos na criao da ABIN. No
entanto, o livro deve ser relevado mais como obra de referncia do que por seu contedo,
uma vez que se trata de divulgao institucional, fortemente marcado pela necessidade de
convencer o leitor da importncia da atividade de inteligncia no Brasil.18 Deste modo, a
natureza do livro, ou seja, o fato dele ser obra de divulgao, inviabilizou uma postura
realmente crtica no que tange ao desempenho da atividade dos rgos de informaes
durante o governo militar.
Se na rea acadmica a produo e discusso sobre a atividade de inteligncia
escassa, no debate poltico no diferente. Salvo um seminrio realizado em 1994 pelo
Congresso Nacional em conjunto com algumas universidades, inclusive americanas, e a
17 EMLIO, Luis Antnio Bittencourt. O Poder Legislativo e os servios secretos no Brasil 1964-1990.. Braslia: Departamento de Cincias Polticas e Relaes internacionais da UNB, 1992. (Dissertao, Mestrado em Cincia Poltica)
18 Outra discusso a respeito da necessidade da atividade de inteligncia no Brasil pode ser encontrado In: ANTUNES, Priscila e CEPIK, Marco A C. A crise dos grampos e o futuro da ABIN. Conjuntura Poltica FAFICH/UFMG. Belo Horizonte, n.8, jun. 1999.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
Audincia Pblica promovida em 21 de maio de 1996 pela Comisso de Defesa Nacional, a
discusso atual superficial e vaga.19 Existe no pas, por conta da experincia autoritria
recente, uma resistncia a discusses que abordem aspectos relativos atividade de
inteligncia e segurana nacional. Esta resistncia alm de ter atrasado o projeto de
criao da ABIN no Congresso Nacional, tambm dificulta o debate sobre a
regulamentao dos mecanismos responsveis pela classificao e proteo dos segredos
governamentais.
Segurana e segredo
Na atividade de inteligncia, ao mesmo tempo em que se procura obter informaes
de outros atores, precisa-se proteger e neutralizar as capacidades destes outros atores em
relao s suas prprias informaes: they want accurate information and good forecasts
about other than them, but they also want to control what these others are able to find out
about them, so they erect information defenses.20
Desse modo, os governos procuram manter em segurana um amplo campo de
informaes sensveis, considerando-se que, por segurana, entende-se uma condio
relativa de proteo na qual se capaz de neutralizar ameaas discernveis.
Dentro da atividade de inteligncia, a proteo envolve uma srie de medidas de
segurana que visam a frustrar a inteligncia adversria. No que compete aos rgos de
inteligncia, em termos organizacionais, a segurana obtida atravs de padres e medidas
de proteo para conjuntos definidos de informaes, instalaes, comunicaes, pessoal,
equipamentos ou operaes. Uma das medidas de segurana considerada essencial dentro
do Estado a salvaguarda de assuntos sigilosos. As agncias responsveis pela atividade de
inteligncia, enquanto provedoras de informaes, bem como portadoras de informaes
consideradas sensveis para a segurana nacional, tm importante participao dentro deste
setor de segurana informacional.
19 Atividades de Inteligncia em um estado democrtico. 1o Seminrio realizado pela Cmara dos Deputados, 1994, Brasilia. Alguns aspectos abordados neste seminrio sero discutidos no 3o captulo.
20 HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.165.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
A segurana de informaes est relacionada com medidas de proteo que se
pautam por tcnicas ofensivas de inteligncia, que incluem restrio de pessoas a
determinados lugares, proteo fsica de documentos e pessoas, controle de viajantes, de
contatos estrangeiros, alm de regras para a classificao, custdia e transmisso dos
documentos. A literatura especializada estabelece alguns parmetros internacionais para a
rea de segurana de informaes que fica dividida, basicamente, em trs componentes:
segurana defensiva; deteco e neutralizao de ameaas; e fraude. Todas elas so
disciplinas de defesa que, no entanto, podem envolver atitudes ativas e/ou passivas.
A Segurana defensiva passiva se divide em Segurana de Comunicaes,
Segurana de Computadores e Controle de Emisso. A Segurana de Comunicaes inclui
segurana de transmisso, cripto-segurana, segurana fsica de comunicaes e segurana
material de informaes. A Segurana de Computadores, uma atividade mais recente,
procura proteger os computadores da invaso de hackers. O Controle de Emisso
responsvel pela limitao das emisses eletrnicas de todos os tipos, atravs de satlites,
cabos etc.
Deteco e neutralizao so disciplinas defensivas de segurana que tm postura
ativa e que podem envolver a eliminao fsica de agentes, contra-espionagem e contra-
inteligncia. parte das medidas de segurana passiva, a defesa tem, s vezes, a
possibilidade de eliminar ou neutralizar a coleta de informaes da inteligncia adversria,
atravs da priso de agentes, da expulso de oficiais de inteligncia sob cobertura
diplomtica, entre outros. Este um tipo de atividade que ocorre principalmente em poca
de guerra.
Fraude ou Deception, como conhecida no jargo anglo-saxo, uma disciplina
defensiva e ativa. Envolve o uso de agentes duplos e tambm aplicada principalmente em
poca de guerra. definida pela Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN) como
those measures designed to mislead the enemy by manipulations, distortion or falsification
of evidence to induce him to react in a manner prejudicial to his interests.21
Apesar de lidar com apenas um tipo de ameaa em especfico as fontes humanas
a contra-espionagem tambm traz uma discreta contribuio para a segurana. Prov
21 North Atlantic Treaty Organisation, Intelligence Doctrine (NATO), Intelligence Doctrine (1984), p.A-3. Apud HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.170.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
informaes sobre ameaas discernveis e produz evidncias especficas do fluxo de
penetraes tanto do seu lado quanto do lado adversrio, permitindo o fortalecimento do
aparato de segurana e impedindo a explorao de suas fraquezas pelos agentes
adversrios.
A relao entre a atividade de inteligncia e a segurana estreita. O aparato de
segurana precisa se basear na avaliao da inteligncia para definir as medidas de
segurana defensivas a serem tomadas, pois ela quem faz a avaliao das ameaas
existentes. Desta forma, a atividade de inteligncia se insere em um conflito constante
entre as capacidades ofensivas e de segurana e o sistema de inteligncia, enquanto rgo
especializado na proteo e roubo de segredos. Entretanto, as responsabilidades pela
segurana no fazem parte da atividade de inteligncia. Cabe ao Estado manter um aparato
especfico, responsvel pela proteo de documentos e segredos, e cabe s agncias de
inteligncia, enquanto especialistas em roubo de segredos, responsveis pelo
monitoramento das tentativas dos outros de roubarem segredos e geradoras de segredos
estabelecer um debate com os rgos estatais responsveis pela segurana. Elas tm um
papel consultivo e no executivo.
No Brasil, a atividade de informaes confundiu-se com a prpria segurana
nacional. Dois dos trs rgos de informaes das foras armadas foram criados no final da
dcada de 60 para combater a subverso: o Centro de Informaes do Exrcito (CIE) e o
Centro de Informaes e Segurana da Aeronutica (CISA). O nico rgo de informaes
das foras armadas que j existia antes da tomada do poder pelos militares em 1964 era o
Centro de Informaes da Marinha (CENIMAR), mas que, em funo da entrada das foras
armadas no combate subverso, redimensionou sua atividade. Em 1967 o SNI se uniu a
estes rgos para, atravs do culto ao segredo, atuar em defesa do Estado de Segurana
Nacional.22 Mas, a seguir os modelos tericos, a segurana no deveria ser vista como parte
da atividade de inteligncia, seria apenas um dos usurios da atividade de inteligncia,
embora haja um envolvimento ntimo entre eles.
No Brasil, como em qualquer lugar, os rgos de informaes sempre privilegiaram
o segredo como ferramenta de poder. Por segredo podemos compreender um saber de
22 O SNI sempre possuiu militares em sua estrutura, embora fosse um rgo civil. Mas foi principalmente a partir do ano de 1967 que teve a maior parte de seus cargos de comando ocupados apenas por militares.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
acesso particularizado a uma informao privilegiada, que cria alianas e divises sociais e
espaciais por aqueles que o compartilham. Em uma definio precisa, o segredo a piece
of information that is intentionally withheld by one or more social actor(s) from one or
more other social actor(s).23 Uma importante caracterstica do segredo que a informao
em questo intencionalmente retida. O mero fracasso em transmitir uma informao no
bastante para que esteja estabelecido um segredo. The requirement that a secret be an
intentional withholding means that there must be a self-conscious and identifiable
motivation for keeping someone else in the dark about something in particular.24
Os segredos normalmente escondem informaes relevantes que so retidas ou
como proposta para influenciar as aes e o pensamento dos outros, ou para proteger
informaes consideradas relevantes.25
Alm da reteno intencional da informao, o segredo tambm pode ser
apresentado de duas formas diferentes: a mentira, em que se retm a informao e a
substitui por outra, e a meia-verdade, que uma revelao parcial do segredo. O
conhecimento parcial de uma informao pode conduzir a diferentes tipos de inferncias
sobre a verdade que o outro conhece plenamente. Ao mesmo tempo em que os fatos
verdadeiros so revelados, a meia-verdade cria uma impresso que falsa.
Segredos estratgicos so aqueles retidos com uma motivao particular de alterar
as aes e os pensamentos dos outros. Eles no so um fim em si mesmo, so meios
realizados para alcanar outros fins e ocorrem quando os interesses dos atores envolvidos
no so coincidentes, quando h uma assimetria de interesses relevantes.
O grau de um segredo pode ser especificado pelo exame do nmero e qualidade de
diferentes contextos no qual o fluxo de informaes intencionalmente bloqueado.
Quando a informao mostrada em um contexto e restringida em outro, pode-se perceber
as diferenas nos tipos de relaes sociais. possvel discernir os dois grupos essenciais:
23 SCHEPPELE, Kim Line. Legal secrets: equality and efficiency in the Common Law. Chicago: The University of Chicago Press, 1988. p.12.
24 SCHEPPELE. Legal secrets: equality and efficiency in the Common Law, p.13.25 Seria importante destacar que no se pode confundir segredo com privacidade. A privacidade se encontra necessariamente relacionada intimidade do indivduo. Ela uma condio na qual os indivduos podem, temporariamente, ficarem livres da expectativa e da demanda dos outros. O segredo apenas um dos mtodos que o indivduo pode usar para alcanar esta condio.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
ns, que somos aqueles que retemos a informao, e eles, aqueles a quem a
informao bloqueada.
No que diz respeito aos objetivos deste trabalho, interessa perceber a atuao do
Estado perante os segredos conhecidos como segredos governamentais, pois a ele que
cabe regular as informaes que so classificadas como sensveis para a proteo
individual e para o interesse e segurana nacionais. Em geral, o controle feito atravs da
distribuio de informaes em duas categorias, uma relacionada a casos domsticos, em
que o governo procura prescrever o que o cidado pode fazer, e outra relacionada a casos
externos, em que o governo prescreve o que o cidado pode saber. No primeiro caso
encontramos uma regulamentao estatal relacionada aos processos judiciais,
propriedade industrial e privacidade dos cidados, e no segundo o Estado regulamenta os
segredos relacionados defesa nacional e poltica externa.
Segredos de defesa nacional e relacionados poltica externa so um tipo de
segredo particular em relao aos outros. Nestes casos, a informao retida do inimigo e
tambm de uma vasta maioria daqueles a quem o segredo busca proteger. A
permeabilidade das redes de trabalho e a desconfiana da populao so revelados por este
modelo de distribuio. Mltiplas comunidades de ns e eles so criadas, conduzindo
no apenas para uma tenso na comunicao entre Estados potencialmente em guerra, mas
tambm para um isolamento das comunidades militares e de segurana nacional, em
relao ao pblico em geral. No Brasil, a manuteno de alguns segredos por parte de
pessoas relacionadas com os rgos de informaes possibilitou que permanecessem
impunes vrios crimes cometidos em nome da Segurana Nacional. Esta reteno de
informaes responsvel, ainda hoje, por um abismo entre a sociedade e os organismos
responsveis pela atividade de inteligncia no pas e colabora substancialmente para a
estigmatizao da atividade de inteligncia no pas.
Estigma
Por estigma, entende-se a situao de um determinado sujeito que se encontra
inabilitado para a aceitao social plena. Este um termo criado pelos gregos para se
referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
extraordinrio ou mau sobre o status moral de quem os apresentava.26 Atualmente o termo
mais facilmente compreendido pelo fator pejorativo que conota. A sociedade como um
todo quem estabelece os meios de categorizar os sujeitos e o total de atributos
considerados comuns e naturais para os membros de cada uma destas categorias que so
criadas. Quando o sujeito que possui algum desvio em relao ao que se entende por
normal e aceitvel apresentado sociedade, seus aspectos permitem prever sua categoria
e atributos, determinando-lhe assim uma identidade social. Esta identidade atribuda a
partir das pr-concepes, que so transformadas pela sociedade em expectativas
normativas e em exigncias que so apresentadas de modo rigoroso. Deixa-se de considerar
o sujeito estigmatizado como algum comum e total, reduzindo-o estagnao. Quando a
sociedade lhe faz este tipo de avaliao, normalmente no considera todos seus atributos,
mas apenas os que so incongruentes com o esteretipo que foi criado. Ou seja, um sujeito
que poderia ter sido facilmente recebido na relao social quotidiana possui um trao que
pode-se impor ateno e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de
ateno para outros atributos seus. Deste modo, a sociedade reduz suas chances de vida
social. Como afirma Goffman, constri-se uma teoria do estigma, uma ideologia para dar
conta de sua inferioridade e dar conta do perigo que ele representa, racionalizando algumas
vezes uma animosidade baseada em outras diferenas.27
A sociedade no consegue dar ao sujeito estigmatizado o respeito e a considerao
que os aspectos no contaminados de sua identidade social os haviam levado a prever e que
o sujeito havia previsto receber. O importante, neste contexto, saber como o sujeito
estigmatizado responde a tal presso.
Existem vrias formas de um sujeito estigmatizado responder a esta no-aceitao
social. Ele pode se retrair; pode simplesmente optar por ignorar o estigma que lhe foi
imposto (o que mais difcil, uma vez que na sociedade atual o sujeito tende a
compartilhar as mesmas crenas sobre a identidade que a sociedade tem); pode atuar de
forma defensiva e agressiva e pode, ainda, tentar corrigir diretamente o que considera a
base objetiva de seu defeito.
26 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p.11.
27 GOFFMAN. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada, p.15.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
O uso deste conceito neste trabalho explica-se pelo fato de que a atividade de
inteligncia, em si mesma, j carrega uma conotao negativa ante a sociedade
democrtica, dado o conflito entre a vigilncia estatal que ela pressupe e os direitos
individuais do cidado. No Brasil, onde a atuao dos rgos de informaes durante o
governo militar, sobretudo no final da dcada de 1960 e no comeo da dcada de 1970, se
encontram diretamente relacionados tortura, corrupo, violao dos direitos e liberdades
civis, esta estigmatizao ainda mais forte.
Como vrias vezes enfatizado, a memria sobre a atuao destes rgos e de suas
prticas durante aquele perodo e a insistncia em manter em segredo certas informaes
vm prejudicando o debate poltico e acadmico brasileiro a respeito da atividade de
inteligncia. A aprovao do projeto da ABIN demorou mais de dois anos para se
concretizar. Neste intervalo, a Agncia passou por uma situao delicada, na qual existia e
funcionava sem que sua funo fosse regulamentada. A resistncia ao debate e a ignorncia
em relao ao assunto, aliados falta de vontade poltica, cooperaram na manuteno
dessa situao.
Um dos objetivos deste trabalho justamente perceber quais mecanismos foram e
esto sendo criados pelo Poder Executivo e pelo Congresso Nacional para tentar reverter
esta situao, para chamar a ateno da sociedade poltica e do pblico em geral, para a
importncia da institucionalizao da atividade de inteligncia no pas. Perceber o que est
sendo feito para superar o carter autoritrio da Doutrina de Segurana Nacional e a
experincia dos rgos de informaes.
Seo II
Ciclo de inteligncia e sistemas organizacionais.
A descrio do processo de funcionamento e das estruturas dos sistemas de
inteligncia tem por objetivo permitir uma comparao entre o sistema brasileiro e o
modelo que se tornou um padro ocidental da atividade de Inteligncia. Trata-se da
construo de um tipo-ideal que procura enfatizar as regularidades sobre as operaes e
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
organizaes, que fundamentam algumas generalizaes sobre a natureza da atividade de
inteligncia. claro que estas regularidades no so aplicadas de igual forma para todos os
sistemas, uma vez que os sistemas de inteligncia so produtos do processo histrico
especfico de cada pas, acrescidos dos recursos disponveis para a rea de defesa e para o
provimento da ordem pblica. A atuao destes sistemas varia em relao a dois eixos. O
primeiro, em relao ao centro-periferia e o segundo, em relao a democracias-ditaduras.
Porm, algumas caractersticas e problemas, especialmente a complexa relao entre
inteligncia e poltica, so comuns maioria dos sistemas polticos.
Ciclo de Inteligncia: apresentao
A literatura especializada sobre a atividade de inteligncia frequentemente utiliza-se
de um diagrama como forma de auxiliar a compreenso da atividade de inteligncia e seu
processo de funcionamento. Ele definido como Ciclo de Inteligncia e pode ser
observado nos principais manuais de inteligncia do mundo. No Brasil ele encontrado nos
manuais da Escola Superior de Guerra ESG.28
Entende-se por Ciclo de Inteligncia a descrio de um processo no qual as
informaes coletadas principalmente pelas agncias de inteligncia so postas
disposio de seus usurios. Na realidade, ele pode ser definido basicamente em duas
grandes etapas, uma de coleta e outra de anlise, que se encontram organizacionalmente
estabelecidas, vinculadas a diferentes rgos estatais.
Ciclo de Inteligncia
28 Esta definio padro adotada pela OTAN e pelos pases signatrios da Junta Interamericana de Defesa, inclusive o Brasil.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
Fonte: Michael Herman. 1996, p.43.
Neste processo as informaes so coletadas atravs de vrias fontes diferentes. As
agncias especializadas so responsveis pela coleta de tipos especficos de informao.
So agncias com especialidades tcnicas especficas, tais como foto-reconhecimento,
cripto-anlise e espionagem. Aps o processo de coleta estas informaes so repassadas
para a rea de anlise, Todas as fontes/Anlise e disseminao. Neste estgio, todas as
informaes coletadas pelas diversas agncias especializadas so processadas, analisadas e
transformadas em produto de inteligncia. Paralelamente a este tipo de anlise, existe uma
outra agncia de anlise definida como Alto nvel de Avaliao, onde se faz um tipo de
anlise especial. So reunidos vrios departamentos diferentes na inteno de produzir uma
opinio sobre determinado assunto, em que necessrio que se chegue a um consenso
sobre o tema a partir das vrias informaes oferecidas. Por exemplo: a agncia necessita
de informaes sobre a situao da guerrilha na Colmbia para repassar ao presidente da
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
Repblica, que viajar para o pas com o objetivo de estabelecer acordos de cooperao.
Nesta agncia em especfico sero reunidas informaes fornecidas por fotos tiradas de
satlites, informes da imprensa, informes fornecidos pela embaixada etc., que sero
reunidas, integradas e analisadas. Destas informaes, procura-se criar um quadro o mais
prximo possvel da situao, de forma a subsidiar o Poder Executivo em qualquer deciso
que ele precise tomar em relao ao assunto.
O fluxo destas informaes coletadas vai ser direcionado conforme o pedido do
usurio ou conforme o objeto de pesquisa solicitado. Aps o processo de anlise, executado
por Todas as Fontes e/ou Alto nvel de Avaliao, o produto final ser posto disposio
do usurio final.
Tambm faz parte do ciclo de inteligncia a proteo e negao de informaes
consideradas sensveis para a segurana nacional, onde se situam as atividades de contra-
inteligncia e contra-espionagem. Por contra-inteligncia entende-se a inteligncia sobre as
capacidades e intenes dos servios de inteligncia adversrios e por contra-espionagem o
esforo produzido pela contra-inteligncia no sentido de neutralizar ou destruir as
atividades de espionagem dos adversrios.
A coleta de informaes , sem sombra de dvidas, a funo mais conhecida dentro
da atividade de inteligncia. Compreende o primeiro estgio do ciclo, no qual as
informaes solicitadas pelo usurio ou para preencher demanda da prpria agncia de
inteligncia, so obtidas. So informaes necessariamente relacionadas com a defesa e a
segurana nacional, coleta de dados relevantes sobre capacidades, potencialidades e
intenes de alvos que podem estar protegidos ou cujo acesso restrito. Uma
especificidade da atividade de inteligncia no processo de coleta se deve justamente ao fato
de que as informaes requeridas esto, normalmente, protegidas. Intelligence collection
is gathering information without targets cooperation or knowledge. Usually it is by special
covert means designed to penetrate targets organized secrecy.29
Esta caracterstica no impede que tambm sejam coletadas informaes em fontes
extensivas, como o caso da televiso, imprensa e internet.
Agncias Especializadas o termo utilizado para se referir s agncias responsveis
pelo processo de coleta de informaes, que esto organizadas por diferentes 29 HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.81.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
especialidades tcnicas. Novamente destacamos que preciso sempre levar em conta as
caractersticas peculiares de cada pas para pensar o alcance e as possibilidades destas
agncias. Uma comparao inter-agncias entre pases ricos e pobres chega a ser
impraticvel, pois existe uma enorme diferena entre a disponibilidade de recursos e de
investimentos na rea tecnolgica, alm de questes poltico-histricas que levaram
determinados pases a investirem muito mais em determinadas especialidades do que
outros, como foi o caso dos EUA e da extinta URSS, na corrida pela construo de satlites
ainda na dcada de 60. Em funo do grau de especializao tcnica atingido dentro destas
agncias, elas acabaram, nestes pases, por se traduzirem em grandes organizaes.30
Aps a concluso do processo de coleta realizado pelas agncias tcnicas
especializadas, os dados so repassados s agncias responsveis pela sua anlise e
disseminao. Neste processo as informaes coletadas so sistematicamente examinadas e
transformadas, tornando-se teis ao processo de tomada de deciso. De acordo com a
doutrina da OTAN, a anlise pode ser divida pela seguinte seqncia:31
Em primeiro lugar, h a colao, o trabalho de registro das informaes que entram.
Em segundo, vem o processo de avaliao, em que se faz a averiguao da confiabilidade
de fonte e da credibilidade da informao. Em terceiro, a anlise, quando se identificam os
30 Dentro do tipo-ideal construdo pelos pases ocidentais e encontrado principalmente na literatura anglo-sax, foram criados acrnimos como forma de identificar e definir os tipos de coleta existentes dentro da atividade de inteligncia. Entre as funes tpicas deste processo encontram-se: HUMINT/Human Intelligence que responde atualmente por uma pequena parcela das informaes dentro da atividade de inteligncia. um tipo de coleta relativamente barata, se comparada aos gastos na produo de satlites e outros equipamentos. Em meio as relaes internacionais, o papel destes coletores de obter informaes onde pessoas ligadas ao corpo diplomtico no podem acessar; SIGINT/ Signals Intelligence so as agncias responsveis pela transcrio de informaes obtidas em lnguas estrangeiras, pela decodificao de mensagens criptografadas, pelo processamento de imagens digitais, alm de outras funes. SIGINT se tornou a mais importante fonte de inteligncia do sculo XX, ela tem sido parte da revoluo dos meios de comunicao, responsvel at mesmo pelo desenvolvimento dos primeiros satlites nas superpotncias; IMINT/Imagery intelligence, que envolve a coleta e o processamento de imagens obtidas atravs de fotografias, radares e sensores infra-vermelho. O recurso fotografia se tornou, em poca de guerra, um dos maiores elementos de inteligncia para o reconhecimento de territrios, de trincheiras, para auxiliar nos bombardeamentos, e para o melhor emprego de divises e munies, desenvolvendo um importante papel desde a I Guerra Mundial. Parte das imagens analisadas em tempos de paz consiste de uma coleta rotineira, que tambm podem ser obtidas atravs de fontes ostensivas, como o o caso das imagens veiculadas pela mdia, jornais e pela difuso de imagens televisivas, transmitidas por outros pases; TECHINT/ Technical inteligence a inteligncia obtida atravs de outros meios tcnicos. A coleta feita por agncias especializadas que fazem uso de tecnologia altamente desenvolvida para a obteno de informaes que no so passveis de serem obtidas atravs de SIGINT e IMINT. So informaes coletadas de forma passiva e que, em geral, se encontram relacionadas com sistemas de vigilncia ocenica, do espao sideral e com o monitoramento e deteco de exploses nucleares. 31 NATO. Military Agency for Standardisation, (August 1984) apud HERMAN. Intelligence power in peace and war,
p.100.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
fatos significantes, comparando-os com os fatos existentes. Aps este processo, as
informaes analisadas so integradas atravs da elaborao de um quadro, onde sero
interpretadas e tomadas as decises cabveis em funo das probabilidade esperadas.
Claro que se trata de uma simplificao do processo, uma vez que cada um destes
itens subdividido em vrios outros. O importante que o resultado final deste processo
o que se pode denominar de produto da inteligncia, que ser entregue aos usurios nos
prazos e formatos necessrios.
O papel das agncias responsveis pela anlise o de prover de dados os usurios,
da melhor forma possvel, alm de serem as responsveis pela sua distribuio. O processo
no qual o produto de inteligncia posto disposio do usurio denominado
disseminao. Os procedimentos de disseminao so cruciais para o complemento do
ciclo, pois so os responsveis pela distribuio e entrega da inteligncia aos usurios.
Estes sistemas de disseminao so complexos porque envolvem no apenas diferentes
produtos para usurios igualmente diversificados, mas tambm, porque envolvem
crescentemente exigncias de integrao, segurana, interoperabilidade e velocidade nos
sistemas digitais de armazenamento, recuperao e comunicao de bases de dados e
mensagens.32
Alm do ciclo estar dividido em duas etapas, a de coleta e o de anlise, existem
outras separaes importantes no trabalho de inteligncia, como o caso da separao das
reas de interesse do ciclo em categorias. Esta diviso utilizada para direcionar o
processo de coleta de informao, organizar o trabalho de anlise e classificar os dados
obtidos. Em primeiro lugar, a inteligncia pode ser dividida em externa e interna. Por
inteligncia Interna ou Domstica compreendem-se as informaes sobre identidades,
capacidades, intenes e aes de grupos e indivduos dentro de um pas, cujas atividades
so ilegais ou alegadamente ilegtimas.33 Entretanto, os valores atribudos a estas
capacidades e a tolerncia do Estado em relao dissidncia vai variar conforme o regime
poltico de cada pas. O status da segurana interna reflexo do processo poltico em que
vive o Estado e quanto mais fechado for o regime, menor ser a tolerncia e maior ser a
segurana interna. E mesmo em se tratando de democracias consolidadas, sempre existe
32 CEPIK. Marco A C. Glossrio de Termos, Siglas e Acrnimos. 1999. mimeo. 33 CEPIK. Marco A C. Glossrio de Termos, Siglas e Acrnimos. 1999. mimeo
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
uma tenso entre a vigilncia estatal de um lado e a privacidade e os direitos individuais do
outro.
A inteligncia externa est relacionada s capacidades, intenes e atividades de
Estados, grupos ou indivduos estrangeiros. Este termo pode ser aplicado tanto para as
relaes interestatais, algum tipo de conflito estabelecido entre dois ou mais estados,
quanto para atores transnacionais, como o caso do terrorismo e do narcotrfico.
Nos pases liberal-democrticos a maioria da atividade de inteligncia direcionada
para a busca de informaes sobre outros Estados e a prpria segurana interna est
relacionada com a proteo externa, como se pode observar no caso ingls:
The protection of national security and, in particular, its protection against threats from espionage, terrorism and sabotage, from the activities of agents of foreign powers and from actions intended to overthrow or undermine parliamentary democracy by political, industrial or violent means.34
Na prtica, segurana e inteligncia externa se confundem, pois ameaas externas
tm componentes internos e vice-versa.
Ciclo de Inteligncia: prticas
A atual escala de produo da atividade de inteligncia exige um funcionamento
permanente, homens e computadores operando 24 horas por dia e se encontra em uma
situao bem diferente da que possua at o fim da Segunda Guerra mundial. Esta mudana
exigiu uma complexa reorganizao administrativa, de modo a torn-la mais eficiente e
efetiva, no apenas na aplicao das novas tecnologias, mas tambm na administrao e
controle de um nmero de pessoas muito maior, na distribuio dos recursos e produtos
para os vrios usurios em tempo hbil.
Como visto, a literatura especializada criou um diagrama, que assim simplificado,
demonstra como a atividade de inteligncia opera na atual escala e como pode ser avaliada:
34 Security Service Act 1989. apud HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.47.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
Diagrama:
Fonte: Michael Herman. 1996, p.285.
Dentro deste diagrama esto representados os usurios ou consumidores, que so
aqueles que determinam o tipo de informao que est sendo necessria. Suas necessidades
so transformadas em requerimentos concretos pelos administradores da inteligncia e so
repassados aos coletores de forma a direcionar os seus esforos. Os coletores obtm as
informaes requeridas, que so transformados pelos analistas em produto de inteligncia.
Este produto final distribudo para o consumidor e para os chefes das agncias, que
formulam as novas necessidades e fazem os ajustes necessrios de maneira a prover a
atividade de inteligncia de mais eficcia e efetividade.
Entretanto, o autor Michael Herman levanta uma importante questo: o diagrama s
pode ser considerado como uma mera simplificao da atividade de inteligncia, uma vez
que tem um carter mais pragmtico do que doutrinrio. O uso do diagrama apenas ajuda a
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
pensar o gerenciamento da atividade de inteligncia, uma vez que, na prtica, estes estgios
podem tomar propores e caminhos diferentes. Segundo Herman, necessrio se ater ao
fato de que se essas agncias se comportarem organizacionalmente, de forma rigorosa,
como define o diagrama, acabaro por introduzir ineficincia ao sistema. Isto ocorreria
porque alguns tipos de requerimentos acabam por obter mais status do que o realmente
necessrio, they have connotations of authorisation: claiming and demanding by right and
authority.35
O ciclo de inteligncia , de fato, uma criao militar que parte de princpios de que
o processo de inteligncia estritamente formal, estvel e regular. Segundo a definio da
OTAN, o ciclo
a logical system of though and action for providing the intelligence required by a commander (...) All intelligence work should be based on the commanders intelligence requirements (...) if it is to be effective and economic it must have a specific aim, and the aim is to provide the commander with what he needs.36
E como a inteligncia civil no formulou uma doutrina formal para a comunidade
de inteligncia, acabou-se por aceitar e utilizar desta formulao militar.
Na realidade, como afirma Herman, longe de funcionar de forma estvel e regular,
o que existe dentro do ciclo de inteligncia uma oferta de informaes. Os requerimentos
refletem o que os chefes das agncias de inteligncia pensam que os usurios podem
precisar e o que eles acham que a agncia pode prover. Na prtica, percebe-se que os
fluxos que foram discutidos anteriormente podem ser invertidos e que os requerimentos de
informaes assumem uma dinmica prpria.
Fluxo Informacional:
35 HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.286.36 Allied Intelligence Publication. NO 1 Intelligence doctrine (NATO, 1984) 401. apud HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.286.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
*Fonte: Michael Herman: 1996. P. 291
Longe de se tratar de um processo formal e estvel, o ciclo de inteligncia, na
prtica, adquire uma dinmica prpria que decorre das informaes obtidas e das
informaes ofertadas. Mas o fato de o diagrama no representar a realidade do ciclo de
inteligncia no o invalida. Ao contrrio, esta representao acaba se tornando til, pois
permite entender o funcionamento do ciclo, assim como o processo de qualquer outra
poltica pblica. Da mesma forma que ocorre na implementao de uma poltica pblica,
no ciclo de informaes localizada a definio da agenda, a busca de informaes e
alternativas necessrias sobre o problema, bem como a deciso de que ao deve ser
empregada para a resoluo do problema. Ou seja, a viso estagista do ciclo permite
localizar sua fase de planejamento, de implementao, de avaliao e deciso, alm de
permitir a compreenso de como a atividade de inteligncia funciona e como deveria
funcionar.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
Sistemas organizacionais: uma viso geral
Por sistemas de inteligncia pode-se entender as organizaes que atendem funo
de inteligncia dentro de um determinado governo. Fala-se em sistemas de inteligncia, ao
invs de organizao de inteligncia, devido ao fato de que esta atividade surgiu de duas
etapas distintas, que historicamente foram se especializando. A atividade de inteligncia
existe h muito tempo e sua importncia j reconhecida desde as guerras napolenicas.
Entretanto, a atividade de inteligncia separada organizacionalmente, surgiu apenas a partir
da complexificao das guerras no final do sculo XIX. A partir deste perodo, a guerra
passou a envolver grandes exrcitos e grandes territrios, aumentando as oportunidades de
vitria, que passaram a depender cada vez mais de um rpido comando e de uma grande
capacidade de concentrao. Para atender a estas novas necessidades, criaram-se staffs
permanentes nos exrcitos e, posteriormente, nas marinhas, responsveis pelo
planejamento e suporte de informaes que pudessem auxiliar aos comandos na tomadas
de deciso e de controle.
Paralelamente ao seu desenvolvimento dentro do campo militar, a atividade de
inteligncia passou tambm a se especializar como funo policial e repressiva. As polcias
secretas surgiram no princpio do sculo XIX e tinham como objetivo evitar revolues
populares, a exemplo da revoluo francesa. Passaram a desenvolver mecanismos de
vigilncia, de informao e de interceptao de cartas.
No sculo XX, aps o fim da 2a Guerra, o medo de uma nova revoluo popular j
havia declinado no mundo ocidental, mas o comunismo permaneceu como uma forte
ameaa. Em decorrncia, emergiram os departamentos criminais de investigao, que
comearam a recorrer ao uso das tcnicas cientficas para os problemas de deteco,
apreenso, vigilncia e armazenamento de informaes sobre populaes criminosas. O
crescimento internacional das organizaes de segurana e o medo da espionagem
estrangeira ainda levaram os pases a desenvolverem suas agncias de contra-espionagem.
Houve, neste processo, uma mudana no status da atividade de inteligncia, que
passou a se organizar e se institucionalizar, tornando constante o processo de coleta e
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
anlises de informaes. A partir de meados dos anos 40 firmou-se a crena de que a
inteligncia seria uma atividade fundamental para o processo de tomada de decises
governamentais. A autonomizao da atividade acompanhou, de alguma forma, o processo
de racionalizao e complexificao estatal ocorrido nas formas de governo do sculo XX,
vinculado expectativa liberal e ao otimismo cognitivo das cincias sociais. A atividade de
inteligncia, enquanto instituio permanente, permitiria uma maior racionalizao da ao
governamental, afastando-a da conduta ideolgica. Segundo Sherman Kent,
intelligence represented rationality, and the statesman who rejected it should recognize that he is turning his back on the two instruments by which western man has, since Aristotle, steadily enlarged his horizons of knowledge the instruments of reason and scientific method.37
A organizao do sistema de inteligncia passou a fazer parte do planejamento
governamental como mais um mecanismo capaz de atribuir racionalidade ao
funcionamento do Estado, no obstante um governo possa funcionar sem uma atividade de
inteligncia, que afinal, apenas de uma atividade subsidiria ao processo decisrio.
A prpria concepo de sistema ou comunidade de inteligncia apenas pode ser
pensada a partir de meados do sculo XX, pois at o perodo entre-guerras as agncias de
inteligncia ainda pressupunham que o conhecimento sobre as naes estrangeiras deveria
ser organizado em segmentos, no como uma totalidade. Faltava ainda s agncias de
inteligncia habilidade para tratar de assuntos que escapavam alada militar, alm de um
mecanismo central de avaliao sobre a segurana, efetividade e o potencial das agncias
de inteligncia. Novas estruturas emergiram no decorrer da 2a Guerra que permitiram a
anlise integrada de assuntos tais como economia, poltica, assuntos militares, navais etc.
Eram as agncias centrais de anlise, que procuravam analisar o inimigo como um todo. A
introduo da coleta e anlise nacional de informaes implicou a percepo de que a
atividade de inteligncia era algo mais do que um conjunto de organizaes independentes.
No incio da Guerra Fria foram introduzidas duas grandes novidades na atividade de
inteligncia. Em primeiro lugar, surge a funo sistemtica de avaliao, com a entrada dos
acadmicos nos assuntos de inteligncia. At ento esta atividade era considerada um
37 KENT, Sherman. Sstrategic intelligence for American World Policy Hamden, Conn: Archon Books, 1965. p.5.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos
assunto restrito aos militares ou polcia. Neste contexto, um tipo diferente de problema
foi posto pela URSS. Informaes que em outros pases eram ostensivamente publicadas
passaram a ser tidas como secretas pelos soviticos, como era o caso, por exemplo, de sua
densidade demogrfica e de seu PIB. Na extinta URSS, ou no se publicavam estas
informaes ou elas eram publicadas de forma distorcida. Os EUA foram um dos pases
que montaram o extraordinrio aparato de anlise, envolvendo os melhores experts do pas.
Em segundo lugar, o crescimento da atividade de inteligncia acompanhou a
exploso tecnolgica ocorrida no perodo ps-guerra. Para auxiliar a coleta de informao,
surgiram as agncias especializadas em sinais, imagens, criptografia, entre outros, que
comearam a produzir informaes em grande escala e adotaram uma lgica
completamente diferente da lgica adotada durante o sculo XIX. Vale ressaltar que este
exemplo se aplica muito mais s grandes potncias envolvidas no contexto de Guerra Fria e
difere-se substancialmente de pases menos desenvolvidos.
Quando estas organizaes surgiram, com o processo de racionalizao e de
crescimento dos governos no ps-Segunda Guerra, foram sendo retiradas de dentro da rea
militar e muitas foram subordinadas ao controle civil. Entretanto, as estruturas de
inteligncia das Foras Armadas no foram desmanteladas. Havia outros interesses em jogo
que diziam respeito principalmente transferncia de tcnicas e de recursos envolvidos na
manuteno destes rgos. Concomitantemente existncia das atividades de inteligncia
dentro da Marinha, Aeronutica e Exrcito, a atividade tambm se inseriu nos ministrios
de Defesa, houve uma verticalizao dentro do sistema. E justamente devido a esta
verticalizao que se pode pensar em sistemas de inteligncia, ao invs de, simplesmente,
organizaes.
Sendo assim, tenham ou no o nome de sistemas de inteligncia, quase todos os
pases tm mais de um rgo envolvido neste tipo de atividade. Uma vez expostas as
estruturas e as especificidades de um sistema de inteligncia considerado padro para o
mundo ocidental, buscaremos perceber a construo do Sistema Brasileiro de Inteligncia,
atendo, fundamentalmente, s particularidades inerentes sua consolidao.
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A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos 41
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Os servios de Informaes no Brasil: a construo burocrtica da rede.
Captulo 2 Os servios de Informaes no Brasil: a construo
burocrtica da rede.
Este captulo tem como objetivo principal abordar a constituio e o funcionamento
do sistema brasileiro de Informaes.38 O estudo das estruturas e das prticas exercidas
dentro da comunidade de informaes faz-se imprescindvel para que seja possvel
compreender a construo do estigma que lhe foi atribudo.39 Esclareemos, contudo, que a
inteno no apenas apontar erros cometidos por estes rgos. Este no um trabalho
denunciatrio, e muito menos, busca minimizar os efeitos destes erros, conhecidos por
grande parte da sociedade. Procuramos, precisamente, perceber os motivos que levaram
tais rgos a se inserirem no combate subverso e a se confundirem com a prpria
segurana do pas. Outro objetivo demonstrar onde a construo da comunidade de
informaes no Brasil se diferenciou das comunidades de inteligncia nas grandes
potncias, observadas no captulo anterior.
Para este captulo, o estabelecimento de um corte cronolgico definitivo no foi
vivel. Dividir a atividade de informaes no Brasil a partir de 1927 quando foi
abordada pela primeira vez de forma oficial at 1990, quando o SNI foi extinto
seria um corte por demais arbitrrio. Este corte se daria em funo da adoo do termo
inteligncia no debate pblico brasileiro, como forma de d