[BRANDÃO, Priscila] SNI & ABIN - Uma Leitura Da Atuação Dos Serviços Secretos Brasileiros Ao...

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  • Priscila Carlos Brando Antunes

    SNI & ABIN: Entre a Teoria e a PrticaUma leitura da atuao dos servios secretos brasileiros ao longo do sculo XX

    Rio de Janeiro 2001

  • Para Luciano e Eli Carlos

    Para Celina, Celso e Cepik

    Para meus pais e meu querido lvaro Antunes

  • Agradecimentos

    Este livro uma verso modificada de minha dissertao de mestrado, apresentada

    junto ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia e Cincia Poltica, da Universidade

    Federal Fluminense. Em primeiro lugar gostaria de registrar meus agradecimentos a Maria

    Celina DAraujo que durante todo este rito de passagem mestrado, defesa de dissertao

    e produo deste livro no poupou esforos para me amparar, instruir e incentivar. Sua

    pacincia e sabedoria foram fundamentais para o aprendizado e amadurecimento

    alcanados neste processo. Importantssimas tambm foram as co-orientaes realizadas

    pelos professores Celso Castro e Marco Cepik. Com sugestes valiosas e crticas sempre

    pontuais, Celso fez da construo desta dissertao uma lio de vida. Amigo e sempre

    companheiro nas horas mais desesperadoras, Marco Cepik abriu um universo de

    possibilidades pelas quais sempre lhe serei grata. Ao Centro de Pesquisa e Documentao

    de Histria Contempornea do Brasil da Fundao Getulio Vargas (CPDOC/FGV)

    agradeo a oportunidade de ter participado, como pesquisadora associada, do projeto

    Democracia e Foras Armadas, apoiado pela Finep e coordenado por Celso Castro e Maria

    Celina D'Araujo. Participando deste projeto tive no s a motivao para este estudo como

    tambm acesso a fontes de pesquisa sem as quais seria impossvel viabiliz-lo. CAPES

    sou grata pela bolsa de mestrado que me concedeu por um perodo de doze meses, que

    contribuiu em muito para que eu pudesse me dedicar pesquisa que resultou nesta obra.

    Alguns professores da Universidade Federal de Ouro Preto tambm merecem meus

    agradecimentos, pois se cheguei at este livro, tambm culpa deles. Entre eles

    agradeceria ao Crisston Terto Vilas Boas, Marco Aurlio Santana, Fbio Faversan,

    Adriano Cerqueira e Srgio Alcides pelas longas horas de discusso que antecederam

    minha entrada no PPGACP da Universidade Federal Fluminense. Ao professor Ronald

    Polito e Marli Magrela , Meire Maria e Luclia, secretrias do ICHS, sou grata pelo

    incentivo que sempre me deram.

    Gostaria ainda de agradecer s companheiras do CPDOC, em especial a Leila

    Bianchi, que sempre encurtaram a distncia existente entre Minas e o Rio, repassando-me

  • materiais sempre que necessrios. Agradeo assessoria da ABIN e do Partido dos

    Trabalhadores na Cmara dos Deputados e aos professores Maria Aparecida Aquino da

    Universidade de So Paulo e Ellizer Rizzo de Oliveira do Ncleo de Estudos Estratgicos

    da UNICAMP pelas pertinentes crticas apresentadas em minha defesa de dissertao. Aos

    meus queridos Villalta, Lucinha, Luiz Otvio, Carlinha, Car e Cludia, agradeo pela

    pacincia, compreenso e pelas boas risadas compartilhadas. Sou tambm muito grata a

    toda a minha famlia, que no sem alguma dificuldade, aprendeu a compreender e respeitar

    a minha ausncia. Ao sogro agradeo as engraadssimas discusses sobre o regime

    militar e ao meu amor, lvaro Antunes, creio que no existem palavras para registrar sua

    presena e fora nesta longa caminhada.

  • Sumrio

    Introduo: 9

    Captulo 1 A atividade de inteligncia: conceitos e processos. 15

    Seo I

    Inteligncia e Informao: 15Produo bibliogrfica brasileira 19Segurana e segredo 22Estigma 26

    Seo II

    Ciclo de inteligncia e sistemas organizacionais. 28Ciclo de Inteligncia: apresentao 29Ciclo de Inteligncia: prticas 34Sistemas organizacionais: uma viso geral 37

    Captulo 2 Os servios de Informaes no Brasil: a construo burocrtica da rede. 41

    Seo I

    O Conselho de Defesa Nacional. 42A criao do Servio Federal de Informaes e Contra-Informaes SFICI 44Servio Nacional de Informaes SNI 52

    Seo II

    Marinha 62Exrcito 65Aeronutica 70

    Captulo 3 Prticas da comunidade de informaes no Brasil 76

    A entrada da Foras Armadas no combate subverso 78A relao entre os servios de informaes no Brasil e os comandos paralelos 79A atuao da comunidade de informaes. 84

    Captulo 4 Os servios de inteligncia nos anos 90. 99

  • Seo I

    Aeronutica 99Marinha 101Exrcito 104Ministrio da Defesa 106

    Seo II

    A extino do SNI e o papel do legislativo na regulamentao da atividade. 107O debate congressual. 112

    Seo III

    O Seminrio de Inteligncia 129

    Captulo 5 - ABIN: debate poltico e implementao 144

    Seo I

    Processo poltico de criao da ABIN. 145Projet-Lei 3.651 de autoria do Poder Executivo 157

    Seo II

    Lei 9.883 167

    Seo III

    Segredo governamental e administrao de arquivos. 172Plano Nacional de Proteo ao Conhecimento: 173

    Seo IV

    Poder Executivo e estigma. Elementos de fuga. 180

    Concluses 189

    Fontes Primrias 196

    Livros e artigos 200

  • Lista de figuras:

    1 Ciclo de Inteligncia 29

    2 Diagrama 34

    3 Fluxo Informacional 36

    4 Quadro profissional 155

  • Abreviarutas1. ABCI - Agncia Brasileira de Contra-Inteligncia.

    2. ABI Associao Brasileira de Imprensa.

    3. ABIE - Agncia Brasileira de Inteligncia Externa.

    4. ABII Agncia Brasileira de Inteligncia Interna.

    5. ABIN Agncia Brasileira de Inteligncia.

    6. AC/SNI Agncia Central do Servio Nacional de

    Informaes.

    7. AERP - Assessoria Especial de Relaes Pblicas.

    8. ASIs Assessorias de Segurana Interna.

    9. CEFARH - Centro de Formao Aperfeioamento e

    Recursos Humanos.

    10. CENIMAR Centro de Informaes da Marinha.

    11. CEP Centro de Estudo Pessoal do Exrcito.

    12. CEPESC Centro de Pesquisa de Segurana de

    Comunicaes.

    13. CFI Centro Federal de Inteligncia.

    14. CIA Central Intelligence Agency. (EUA)

    15. CIA Centro de Informaes da Aeronutica.

    16. CIE Centro de Informaes do Exrcito/Centro de

    Inteligncia do Exrcito.

    17. CIM Centro de Informaes da Marinha/ Centro de

    Inteligncia da Marinha.

    18. CMPR Casa Militar da Presidncia da Repblica.

    19. CNBB Conferncia Nacional dos Bispos Brasileiros.

    20. CODIs Centro de Operaes e Defesa Interna.

    21. CONTAG Confederao Nacional dos Trabalhadores da

    Agricultura.

    22. CREDENA Cmara de Relaes Exteriores e Defesa

    Nacional.

    23. CSI Conselho Superior de Inteligncia.

    24. CSIS Canadian Security Intelligence Service.

    25. CSN Conselho de Segurana Nacional.

    26. DI Departamento de Inteligncia.

    27. DOIs Destacamentos de Operao Interna.

    28. DOPS Delegacia de Ordem Poltica e Social da Polcia

    Federal.

    29. DSC Documentos Sigilosos Controlados.

    30. DSIs Divises de Segurana Interna.

    31. ECEME Escola de Comando do Estado Maior do

    Exrcito.

    32. EMFA Estado Maior das Foras Armadas.

    33. ESG Escola Superior de Guerra.

    34. ESNI Escola Nacional de Informaes.

    35. EsIMEx Escola de Inteligncia Militar do Exrcito.

    36. FBI Federal Bureau of Information. (EUA)37. GAB/SNI Gabinete do Servio Nacional de

    Informaes.

    38. GSI/PR Gabinete de Segurana Institucional da

    Presidncia da Repblica.

    39. KGB Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti. (ex-URSS)

    40. IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica.

    41. IMBEL Indstria de Material Blico do Brasil.

    42. MARE Ministrio da Administrao e Reforma do

    Estado.

    43. MEMORIN Memorial da Inteligncia.

    44. MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

    45. NATO Nations Atlantic North Organization.

    46. NEE Ncleo de Estudos Estratgicos.

    47. OAB Ordem dos Advogados do Brasil.

    48. OBAN Operao Bandeirantes.

    49. OTAN Organizao do Tratado do Atlntico Norte.

    50. PAI Plano Anual de Inteligncia.

    51. PNPC Plano Nacional de Proteo ao Conhecimento.

    52. PCB Partido Comunista Brasileiro.

    53. PL Projeto-Lei.

    54. PSDB Partido Social e Democrata Brasileiro.

    55. PT - Partido dos Trabalhadores.

    56. RSAS - Regulamento para a Salvaguarda de Assuntos

    Sigilosos.

    57. SAE Secretaria de Assuntos Estratgicos.

    58. SADEN Secretaria de Assessoramento e Defesa

    Nacional.

    59. SBI Sistema Brasileiro de Inteligncia.

    60. SECINT - Secretaria de Inteligncia da Aeronutica.

    61. SENAD Secretaria Nacional Anti-Drogas.

    62. SIS Secret Intelligence Service. (Inglaterra)

    63. SFICI Servio Federal de Informaes e Contra-

    informaes.

    64. SG/CSN Secretaria Geral do Conselho de Segurana

    Nacional.

    65. SIM Servio de Informaes da Marinha.

    66. SISNI Sistema Nacional de Informaes.

    67. SISSEGINT Sistema Nacional de Segurana Interna.

    68. SNI Servio Nacional de Informaes.

    69. SIVAM Sistema de Vigilncia da Amaznia.

    70. SSM Servio Secreto da Marinha.

  • 71. UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    72. UNICAMP Universidade Estadual de Campinas.

    73. USP Universidade de So Paulo.

  • Introduo

    Introduo

    O trabalho que ora apresentamos est inserido no contexto mais amplo de um

    projeto de pesquisa sobre memria militar que vem sendo desenvolvido nos ltimos anos

    pelo Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea da Fundao Getlio

    Vargas (CPDOC/FGV). Pesquisa que j resultou na trilogia que abordou a memria militar

    sobre o golpe de 1964, a represso, a abertura e, em sua ltima fase, est fazendo o

    levantamento e a anlise da memria militar sobre a democracia. O objetivo do projeto

    Democracia e Foras Armadas examinar de que maneira os militares tm se inserido na

    nova ordem democrtica que seguiu ao fim dos regimes militares no Brasil e nos demais

    pases do Cone Sul.

    No que compete a este livro, a anlise ter um foco muito especfico: a memria

    militar sobre a atividade de informaes/inteligncia no Brasil. Neste sentido, os

    depoimentos coletados pelo CPDOC foram de fundamental importncia para acompanhar e

    compreender o processo de institucionalizao da atividade de inteligncia no pas, nosso

    principal objetivo.1

    A abordagem desta atividade no Brasil sempre foi uma tarefa difcil, devido

    grande dificuldade de acesso documentao e a postura assumida pelos militares.

    Documentos relacionados atuao da comunidade de informaes vazam para o domnio

    pblico muito esporadicamente e, na maioria das vezes, so veiculados atravs da imprensa

    de forma sensacionalista. Por seu turno, o silncio dos militares sobre o perodo autoritrio

    constitui um empecilho ao interesse investigativo. Felizmente, um silncio corporativo que

    vem sendo rompido, embora lentamente.

    Ainda que seja escassa a documentao sobre os rgos militares de informaes e

    que sejam poucas as entrevistas consultadas, estas fontes foram de extrema importncia

    para o esboo da construo da complexa rede de informaes articulada no perodo

    1 Os depoimentos foram coletados em sua maioria pelos professores Maria Celina DAraujo, Celso Castro e Glucio Ary Dilon Soares. So de militares que tiveram um importante papel na implementao e manuteno do regime militar e de militares que ocuparam importantes cargos no Poder Executivo no regime democrtico que se instaurou a partir de 1986.

    9

  • Introduo

    militar. Na medida do possvel, os depoimentos e as notcias foram confrontados com

    outras fontes disponveis, como a legislao e a bibliografia pertinente.2

    Com a consulta aos depoimentos militares, aos seminrios realizados pelo Poder

    Legislativo e s fontes impressas disponveis, analisamos o processo de institucionalizao

    da atividade de informaes no Brasil. Um processo que se inicia em 1927, quando aparece

    pela primeira vez oficialmente na legislao brasileira, e se estende at a discusso e

    implementao da atual Agncia Brasileira de Inteligncia (ABIN) em dezembro de 1999.3

    Em princpio, o objetivo era apenas analisar o processo poltico de criao da ABIN

    e apresentar como estariam articulados os rgos de inteligncia militares. Entretanto, seria

    praticamente impossvel compreender os percalos que o Poder Executivo atravessou para

    aprovar a ABIN sem levar em conta os antecedentes histricos da atividade de inteligncia

    no Brasil.

    O governo enfrentou algumas dificuldades para implementar a Agncia que, criada

    por fora de medida provisria em 1995, apenas foi oficializada em 7 de dezembro de

    1999. Houve uma resistncia por parte da sociedade sua implantao, sobretudo da

    imprensa, que de alguma forma se refletiu no meio congressual. Esta reao decorreu,

    principalmente, do perfil assumido pelos rgos de informaes durante o recente regime

    militar.

    Para melhor compreender a rejeio a esse debate no meio legislativo, optamos por

    analisar historicamente as prticas e as funes dos rgos de informaes e o papel que

    tiveram em nossa histria. Tratam-se de prticas que foram minimamente divulgadas de

    forma oficial, que ainda continuam resguardadas pela cultura do segredo e que podem ser

    consideradas, em grande parte, responsveis pela estigmatizao da atividade de

    informaes/inteligncia no pas.

    2 De forma a dinamizar a leitura e compreenso do texto, optamos por utilizar os termos inteligncia e informaes da forma como eles surgem no debate brasileiro. Foi em 1990 que o presidente Fernando Collor extinguiu o Servio Nacional de Informaes e criou, dentro da estrutura da nova Secretaria de Assuntos Estratgicos, a Subsecretaria de Inteligncia. certo que dentro dos servios de informaes das Foras Armadas, j havia, desde o comeo da dcada de 80, discusses a respeito da renomeao da atividade, entretanto, escolhemos o ano de 1990 como referencial. Ou seja, quando tratar da atividade responsvel pela coleta e anlise de informaes no Brasil, antes de 1990, usaremos o termo informaes e quando se tratar da atividade depois de 1990, inteligncia3 Decreto 17.999 de 29 de novembro de 1927 e Lei 9.883 de 07 de dezembro de 1999.

    10

  • Introduo

    Este trabalho tambm pretende trazer uma contribuio terica para o estudo da

    atividade de inteligncia no Brasil, assunto pouco analisado no mbito das cincias

    humanas, como prova a lacuna bibliogrfica existente nesta rea. Este assunto polmico

    pois a finalidade e os meios de obteno e manipulao de informaes dentro da atividade

    de inteligncia so sempre questionveis. Mas qual seria o problema imposto democracia

    pela existncia de servios de inteligncia?

    Acreditamos que a principal discusso a ser elaborada sobre o vnculo da atividade

    de inteligncia com o Estado Democrtico deve dizer respeito ao grau de

    constitucionalidade deste servio, regulamentao pblica e ao conhecimento sobre os

    rgos e cargos estatais responsveis pela conduo da atividade de inteligncia no pas.

    O Estado democrtico tem o seu poder restrito pela constituio e pela obrigao

    moral de ser responsivo aos direitos da cidadania. A relao entre o Estado e os cidados

    que o legitimam sempre foi marcada pela desconfiana, o que acarretou na diviso dos trs

    ramos do poder: Legislativo, Executivo e Judicirio. Mas na formao dos Estados

    modernos, estes trs poderes passaram a operar no exerccio da poltica provocando um

    novo desequilbrio em favor do Poder Executivo.

    Este desequilbrio se deve ao fato de ser o Executivo, dentro da diviso de poderes,

    aquele que possui a responsabilidade constitucional de garantir a segurana do cidado, as

    relaes externas, a integridade territorial, de executar os objetivos da poltica externa e,

    em ltima instncia, garantir a prpria ordem constitucional.4 Para o cumprimento desta

    tarefa preciso que o Executivo possua instrumentos que so dispensveis aos outros dois

    poderes. A atividade de inteligncia se configura apenas como uma destas ferramentas de

    atuao do Poder Executivo.

    Com o fim da Guerra Fria houve um novo redimensionamento dos interesses no

    cenrio poltico e econmico mundial. Mudaram os inimigos e os alvos a serem

    alcanados. Atualmente, o interesse de pases em produzir bomba atmica; movimentos

    terroristas, narcotrfico; bioespionagem; espionagem industrial; espionagem econmica e

    pretenses expansionistas se configuram como as principais ameaas que justificam a

    existncia deste tipo de atividade.

    4 Constituio Federal promulgada em 1988. Ttulo V. Da Defesa do Estado Democrtico e das Instituies Democrticas.

    11

  • Introduo

    A grande questo que como o prprio Executivo possui as prerrogativas para criar

    seus mecanismos de busca de eficcia, tambm tem condies de superdimensionar estas

    ameaas de acordo com o seu interesse. Por isto extremamente necessrio que ele seja

    controlado, ou atravs da legislao, sua regulamentao formal, ou pela necessidade de ter

    que responder publicamente por seus atos.

    Neste sentido, acreditamos ser de fundamental importncia conhecer o nvel do

    envolvimento parlamentar nas discusses sobre a atividade de inteligncia no Brasil e

    ampliar as discusses sobre ela no mbito acadmico e na sociedade em geral.

    Principalmente neste momento em que o Brasil vem instituindo o seu novo sistema de

    inteligncia.

    O momento oportuno para refletir sobre o tipo de atividade de inteligncia que

    queremos para o nosso pas, para questionar quais demandas por informaes exigem a

    existncia da atividade de inteligncia no Brasil, quais as ameaas que devem ser

    consideradas para a defesa do Estado e quais sero as bases de atuao ofensiva de

    inteligncia no exterior, se realmente ela for necessria. Deveria ser estabelecida uma

    atividade de contra-inteligncia para auxiliar a ao do governo na preservao do Estado

    Democrtico brasileiro contra o comportamento atentatrio ao quadro institucional? Quais

    mecanismos preservaro a privacidade e a segurana das comunicaes e de transmisses

    eletrnicas de dados no pas?

    Estas e vrias outras questes devem ser consideradas e analisadas de forma a

    possibilitar um exerccio real de fiscalizao sobre o Poder Executivo, concretizando o

    princpio de que a atividade de inteligncia apenas um dos instrumentos necessrios ao

    Estado para a manuteno de suas instituies democrticas.

    Para instrumentalizar esta anlise, procuramos no primeiro captulo Atividade de

    Inteligncia, conceitos e processos estabelecer uma definio mais precisa sobre a

    atividade de inteligncia. Amparados no modelo terico adotado por alguns pases

    ocidentais, definimos, na primeira seo, quais seriam as funes, responsabilidades e as

    capacidades da inteligncia.5 Este padro ocidental sempre foi citado como referncia para

    a elaborao da ABIN, sobretudo, no que diz respeito ao modelo canadense. Estabelecemos

    5 Para este estudo foram pesquisados, por exemplo, os servios de inteligncia dos Estados Unidos, Frana, Canad, Alemanha, Israel etc.

    12

  • Introduo

    algumas distines entre inteligncia & informaes e inteligncia & espionagem e

    mostramos como interagem as agncias de inteligncia dentro de seus sistemas

    organizacionais. Desenvolvemos algumas discusses sobre segredo governamental,

    fundamental para pensar a atividade de inteligncia, e sobre o conceito de estigma, que

    ser o fio condutor deste trabalho. A segunda seo deste captulo apresenta de forma

    sucinta a formao histrica desta atividade ao longo do sculo XX e a constituio dos

    complexos sistemas de inteligncia utilizados em alguns pases ocidentais.

    No captulo 2 Os servios de Informaes no Brasil: a construo burocrtica da

    rede procuramos perceber as particularidades da constituio e do funcionamento, em

    tese, da atividade de informaes no Brasil. A nfase recai, sobretudo, na elaborao dos

    rgos de informaes implantados aps o golpe militar de 1964. Este captulo enfoca o

    aspecto burocrtico do processo de institucionalizao da atividade de informaes,

    tomando por base a legislao que tivemos acesso e os depoimentos coletados pelo

    CPDOC. A primeira seo apresenta a institucionalizao dos rgos civis, Servio

    Nacional de Informaes (SNI) e o Servio Federal de Informao e Contra Informao

    (SFICI) e a segunda, os rgos de informaes militares.

    O captulo 3 Prticas da comunidade de informaes no Brasil aborda a

    prtica dos servios de informaes durante o regime militar at a extino do SNI em

    1990. Este captulo fundamental para que possamos compreender o estigma desta

    atividade no pas, que dificulta o estabelecimento de um debate poltico profundo sobre o

    assunto. Com base, sobretudo, nas perspectivas dos depoentes, analisaremos as atividades

    desenvolvidas pelo SNI e pelos servios de informaes militares nesse perodo.

    O captulo 4 Os servios de inteligncia nos anos 90 est divido em trs

    sees. Acompanhando o processo de institucionalizao da atividade no comeo da

    dcada de 1990, a primeira seo trata das mudanas ocorridas poca dentro da rea de

    inteligncia militar. A segunda, analisa o processo de extino do SNI e a tentativa de

    rearticulao de um rgo civil de inteligncia, tanto por parte do Poder Executivo quanto

    do Legislativo. A ltima seo analisa o primeiro seminrio organizado pelo Poder

    Legislativo para discutir a atividade de inteligncia no Brasil. Buscamos avaliar quais

    13

  • Introduo

    seriam as suas propostas para um novo modelo de agncia e quais mecanismos procuraram

    estabelecer para tentar superar o carter estigmatizado da atividade de inteligncia.

    O quinto e ltimo captulo ABIN: debate poltico e implementao analisa em

    sua primeira seo o processo poltico de criao da ABIN, a nfase recai no debate

    parlamentar sobre o PL que institua a Agncia. Na segunda analisada a lei que criou

    oficialmente a ABIN, onde procuramos estabelecer um estudo comparativo a partir do

    padro ocidental citado como referncia e o que foi aprovado para a Agncia. Na terceira

    apresentamos parte do arcabouo jurdico que serve de apoio legislao da ABIN, o que

    permitir ao leitor uma compreenso mais precisa do alcance e das capacidades da

    atividade de inteligncia no Brasil.

    Por fim, a ltima seo enfoca especialmente as medidas estabelecidas pelo Poder

    Executivo para sensibilizar no s a sociedade, mas, principalmente, o Poder Legislativo

    para a importncia da atividade de inteligncia na conduo da poltica de defesa nacional

    e sua importncia no processo de modernizao do Estado brasileiro. Importncia que ora

    passa a ser apresentada e discutida.

    14

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    Captulo 1 - A atividade de inteligncia: conceitos e processos.

    Neste captulo discorremos sobre os trs conceitos bsicos que permeiam este livro:

    a atividade de inteligncia, o segredo e o estigma.

    A atividade de inteligncia definida no mbito de suas misses e capacidades, de

    forma a possibilitar a compreenso de sua competncia. Com uma definio mais precisa,

    ficamos aptos a estabelecer comparaes e a perceber os excessos cometidos por rgos

    dessa rea, bem como a analisar a nova estrutura que est sendo proposta.

    O conceito de segredo governamental til nesta discusso porque aborda a

    relao do Estado com o manejo, proteo e publicizao de informaes consideradas

    sensveis para a segurana nacional. Neste caso, o objetivo perceber quais mecanismos

    foram e esto sendo criados para proteger informaes que so consideradas sensveis

    segurana do Estado e observar os regulamentos criados para a classificao destes

    documentos.

    O terceiro conceito a ser utilizado o de estigma, na acepo dada pelo socilogo

    Erving Goffman. Ao trabalhar com este conceito, procuro perceber quais mecanismos o

    Estado brasileiro vem adotando para fugir ao carter pejorativo e deteriorado a que ficou

    associada a atividade de inteligncia e de que forma esse estigma vem dificultando a

    implementao da ABIN.

    Com a inteno de deixar o trabalho mais fludo e compreensvel, optamos por

    dividir este captulo em duas sees. A primeira aborda essencialmente os conceitos

    utilizados e a segunda demonstra o processo funcional de uma atividade de inteligncia.

    Seo I

    Inteligncia e Informao:

    A atividade de inteligncia uma componente atual e significativa do poder de

    Estado, enquadrando-se no ncleo coercitivo que prov a prestao de servios pblicos de

    15

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    defesa externa e manuteno da ordem, as duas funes constituindo os atributos do

    monoplio legtimo do uso da fora na acepo weberiana do Estado.

    O grande fluxo de informaes que marca o final do sculo XX demanda, em

    primeiro lugar, uma diferenciao entre informaes e inteligncia. Essa distino, embora

    til como um ponto de partida operacional, ser revista posteriormente luz das

    especificidades do contexto histrico brasileiro. Outra diferenciao faz-se necessria entre

    inteligncia e espionagem. Tais separaes buscam fugir das generalizaes que ora

    classificam a inteligncia apenas como espionagem e ora a classificam como coleta e

    anlise de quaisquer informaes relevantes para uma tomada de deciso.

    No que se refere diferena entre inteligncia e informao preciso buscar

    subsdios nos debates acadmicos anglo-saxes, uma vez que a bibliografia brasileira em

    relao ao assunto extremamente escassa.

    Em meio ao debate sobre inteligncia que surge na dcada de 1990, Jennifer Sims

    afirmou que inteligncia no estaria envolvida apenas com o segredo e que quaisquer tipos

    de informaes coletadas para o processo de deciso seriam inteligncia. Em sua

    concepo, intelligence is best defined as information collected, organized, or analyzed on

    behalf of the actors or decision makers. Such information include technical data, trends,

    rumors, pictures, or hardware.6

    De acordo com Sims, seria a organizao particular do material coletado que se

    destina a auxiliar as tomadas de deciso que transformaria simples recortes de jornais em

    produto de inteligncia:

    A pile of newspapers on a decision makers desk does not constitute intelligence. Even a set of clippings of those newspapers, organized by subject matter, is not intelligence. A subject clips, selected expressly for the needs of the decision makers, is intelligence.7

    Esta definio implicaria, necessariamente, que toda informao analisada para

    auxiliar uma tomada de decises seria um produto de inteligncia, desde uma pesquisa

    empresarial com fins de saber a aceitao de um produto no mercado at o

    desenvolvimento de submarinos a propulso nuclear desenvolvidos na China.

    6 SIMS, Jenifer. What is Intelligence? Information for Decision Makers. In: GODSON, Roy (ed.). U.S. Intelligence at the crossroads. Agendas for reform. New York: Brasseys, 1995. p.4.

    7 SIMS. What is Intelligence? Information for Decision Makers, p.5.

    16

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    Consequentemente, qualquer organismo ou instituio poderia ser considerado um servio

    de inteligncia em potencial.

    Em contrapartida posio de Sims, tem-se a definio de Abram Shulsky. Este

    autor restringe a rea de atuao da atividade de inteligncia e a vincula sua forma de

    organizao, ao segredo, e competio entre estados. Na nova dinmica poltico-

    econmica mundial, extremamente marcada pela competitividade, o conhecimento e sua

    proteo se tornaram fatores essenciais para assegurar aos Estados a sua sobrevivncia. O

    fim da Guerra Fria e a rapidez da circulao da informao provocada pelo advento da

    globalizao determinaram novas reas de interesse a serem protegidas. Mudou-se a

    concepo sobre segurana nacional e, consequentemente, os interesses a serem

    resguardados.

    Desta forma, de acordo com Shulsky, uma vez que o governo tem que estar todo o

    tempo processando informaes, justamente o segredo e a necessidade de proteo que

    definem o que deve e o que no deve ser considerado um produto de inteligncia.

    Um segundo aspecto a ser considerado em sua definio a competio entre os

    estados. A inteligncia tem um carter conflitivo e se encontra entre a diplomacia e a

    guerra. extremamente importante se ater ao carter conflitivo desta atividade, uma vez

    que lida com obteno e negao de informaes.

    Intelligence comprises the collection and analysis of intelligence information information relevant to the formulation and implementation of governmental national security policy (...) Therefore, intelligence as an activity may be defined as that component of the struggle between adversaries that deals primarily with information.8

    O terceiro aspecto que um governo precisa organizar e estruturar mecanismos

    para prover alguns tipos especficos de informao. O que importa saber o que so estes

    mecanismos estruturados pelo governo e o que eles identificam como inteligncia. Trata-se

    de observar o fenmeno para o qual o termo inteligncia aplicado Intelligence refers to

    information relevant to a governments formulating and implementing policy to further its

    8 SHUSLKY, Abram. Silent warfare: understanding the world of intelligence. New York: Brasseys, 1991. p.2.

    17

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    national security interests and to deal with threats to those interests from actual or potential

    adversaries.9

    So informaes que esto normalmente relacionadas com assuntos militares, tais

    como plano de ao dos adversrios, atividades diplomticas e intenes, bem como as

    informaes sobre inteligncia. Ainda podem ser consideradas inteligncia, mesmo que o

    governo adversrio no faa questo de proteger, assuntos que envolvam informaes sobre

    casos polticos internos, desenvolvimento social, assim como estatsticas demogrficas e

    econmicas.

    A definio de inteligncia como coleta e anlise de informaes que interessam

    segurana nacional tambm muito imprecisa, uma vez que o prprio conceito de

    segurana nacional obscuro. Os interesses de segurana nacional esto diretamente

    relacionados ao tipo de governo, de regime poltico e com o contexto scio-econmico. As

    ameaas podem incidir tanto sobre aspectos internos quanto externos de um pas. Quanto

    mais fechado for o regime, mais o governo est propenso a enfatizar a segurana interna e

    preocupar-se com a represso poltica dentro do prprio territrio.

    Uma definio mais precisa sobre a atividade de inteligncia apresentada por

    Michael Herman em Intelligence power in peace and war.10 Alm de precisar as atividades

    relacionadas ao ciclo de inteligncia, tambm analisa sua influncia e papel nas relaes

    polticas nacionais e internacionais. Todavia, o que nos interessa neste momento o

    aspecto organizacional que o autor aborda. Segundo Herman,

    Intelligence in government is based on the particular set of organizations with that name: the intelligence services or intelligence community. Intelligence activity is what they do, and intelligence knowledge what they produce.11

    Ao definir que inteligncia o que as organizaes de inteligncia fazem e as aes

    que elas desenvolvem, fica muito mais prtico estabelecer o que deve e o que no deve ser

    considerado inteligncia. A inteligncia neste caso no definida como um conceito a

    partir do qual se possa afirmar que informaes sobre o meio-ambiente no dizem respeito

    9 SHULSKY. Silent warfare: understanding the world of intelligence, p.1. 10 HERMAN, Michael. Intelligence power in peace and war. Cambridge: University Press, 1996.11 HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.2.

    18

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    atividade de inteligncia e que informaes sobre a fabricao de armamento nuclear

    dizem mas a partir do seu contexto organizacional.

    Outra diferenciao que devemos fazer em relao atividade de inteligncia diz

    respeito sua compreenso enquanto espionagem. O senso comum normalmente associa a

    atividade de inteligncia espionagem, trapaas e chantagens, imagem amplamente

    incentivada pela literatura ficcional e pela mdia. No obstante o termo intelligence seja

    um eufemismo anglo-saxo para a espionagem, esta apenas uma parte do processo de

    inteligncia, que muito mais amplo e que ser posteriormente discutido.

    Portanto, a atividade de inteligncia refere-se a certos tipos de informaes,

    relacionadas segurana do Estado, s atividades desempenhadas no sentido de obt-las ou

    impedir que outros pases a obtenham e s organizaes responsveis pela realizao e

    coordenao da atividade na esfera estatal. Trata-se de uma definio mais precisa sobre o

    escopo da atividade de inteligncia, que permite iluminar certas incompreenses que vm

    sendo percebidas no debate brasileiro.

    Produo bibliogrfica brasileira

    O termo inteligncia, entendido neste sentido, passou a fazer parte do debate

    poltico brasileiro principalmente a partir da dcada de 1990, aps a extino do Servio

    Nacional de Informaes (SNI), no obstante haja referncias a este tipo de atividade desde

    1927. Emergiu de uma tentativa de acobertar e superar uma identidade deteriorada que

    havia se formado em torno da atividade de Informaes no regime militar, equivalente a

    represso e violao dos direitos civis.12 No Brasil, assim como nos demais pases do Cone

    Sul, existe uma forte desconfiana em relao a essa atividade, que decorre do perfil

    assumido por seus rgos de informaes durante o ciclo recente de regimes militares.

    Nesses pases, os servios de informaes converteram-se em estados paralelos com alto

    grau de autonomia, enorme poder e capacidade operacional.

    A produo acadmica brasileira sobre a atividade de informaes e inteligncia

    quase inexistente. A maioria de trabalhos sobre o assunto foi produzida no perodo

    12 Uma discusso a respeito das atividades de informaes e inteligncia no Brasil ser feita no prximo captulo.

    19

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    imediatamente posterior transio brasileira para o regime democrtico. Contudo, tal

    produo era dirigida discusso do controle e subordinao do aparato militar sociedade

    civil e, apenas por extenso, ao problema das misses, capacidades e controles especficos

    das agncias de informaesa e segurana. Na viso de autores como Walder de Gos13 e

    Alfred Stepan,14 o controle civil sobre o governo atingiria o cerne dos servios de

    informaes do regime militar.

    Alfred Stepan alertou para a necessidade das sociedades civil e poltica brasileiras

    envolverem-se em assuntos acadmicos acerca da democracia e das formas de controle

    sobre as foras armadas e os servios de informaes .15 Para ele, o controle destes sistemas

    era requisito necessrio para a consolidao democrtica. Stepan propunha a

    desmilitarizao do SNI e a formao de comisses permanentes no Legislativo ou nos

    gabinetes do governo, as quais deveriam ocupar-se exclusivamente da monitorao e

    superviso rotineira dos servios de informaes. Propunha ainda que se retirasse do chefe

    do SNI o status de ministro e que se suprimisse seu carter operacional. O autor destacava,

    sobremaneira, a necessidade de se aumentar o poder legislativo sobre este rgo.

    Ao contrrio de Stepan, para quem a iniciativa teria que partir das sociedades civil e

    poltica, Walder de Ges afirma que a transparncia e o controle sobre o servio de

    informaes deveria partir de uma iniciativa militar. Seria necessrio que as Foras

    Armadas reexaminassem algumas de suas premissas junto a sociedade civil. Para Ges, at

    1988,

    o retraimento militar no havia se dado em escala suficiente para provocar a reviso da dimenso e dos processos operacionais do servio secreto. (...) O absentesmo poltico estvel das Foras Armadas poder faz-lo, tornando-se um poder mais transparente e suscetvel de controle.16

    Na produo acadmica sobre inteligncia de cunho mais conceitual, destaca-se o

    trabalho de Lus Antnio Emlio Bittencourt, ex-diretor do Centro de Formao

    13 GES, Walder de. Militares e poltica, uma estratgia para a democracia. In : REIS, Fbio e ODONNEL, Guilhermo. (orgs.). A democracia no Brasil: dilemas e perspectivas. So Paulo: Vrtice, 1988.

    14 STEPAN, Alfred. Os militares: da abertura nova repblica. Traduo de Adriana Lopes e Ana Luiza Amendola. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

    15 Nesta obra Alfred Stepan define como sociedade civil um conjunto de organizaes cvicas e movimentos sociais de todas as classes. E, por sociedade poltica, o espao da organizao e contestao poltica em busca do controle sobre o poder pblico e estatal.16 GES. Militares e poltica, uma estratgia para a democracia, p.223.

    20

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    Aperfeioamento e Recursos Humanos (CEFARH), a antiga Escola Nacional de

    Informaes criada em 1972 (ESNI). Em sua dissertao de mestrado O Poder Legislativo

    e os Servios Secretos no Brasil17 buscou perceber a compatibilidade entre a atividade dos

    servios de informaes e a nascente democracia brasileira. Tomou como base a ao do

    Poder Legislativo em relao atividade de informaes no Brasil e o contexto analisado

    foi o da elaborao da Constituio de 1988. O autor fez uma discusso sobre os

    mecanismos de controle existentes, os limites e as possibilidades desses controles e buscou

    perceber se no Congresso havia, realmente, interesse em estabelecer tais mecanismos.

    Bittencourt afirma que o assunto foi tratado com superficialidade e critica a falta de

    esclarecimento por parte do Legislativo em relao aos servios de informaes. Conclui

    que no foi necessariamente a ao do Legislativo, mas as repercusses indiretas do

    processo democratizante, associadas s contradies inerentes aos servios de informaes,

    que acarretaram o esgotamento da concepo do SNI.

    Outro trabalho que no poderia deixar de ser citado A Histria da Atividade de

    Inteligncia no Brasil, obra produzida pela Sub-Secretaria de Inteligncia da Casa Militar

    da Presidncia da Repblica (SSI/CMPR) em 1999. O livro foi escrito por Lcio Srgio

    Porto Oliveira e contm um prembulo apresentado pelo ento chefe da Casa Militar,

    general Alberto Mendes Cardoso, um dos principais envolvidos na criao da ABIN. No

    entanto, o livro deve ser relevado mais como obra de referncia do que por seu contedo,

    uma vez que se trata de divulgao institucional, fortemente marcado pela necessidade de

    convencer o leitor da importncia da atividade de inteligncia no Brasil.18 Deste modo, a

    natureza do livro, ou seja, o fato dele ser obra de divulgao, inviabilizou uma postura

    realmente crtica no que tange ao desempenho da atividade dos rgos de informaes

    durante o governo militar.

    Se na rea acadmica a produo e discusso sobre a atividade de inteligncia

    escassa, no debate poltico no diferente. Salvo um seminrio realizado em 1994 pelo

    Congresso Nacional em conjunto com algumas universidades, inclusive americanas, e a

    17 EMLIO, Luis Antnio Bittencourt. O Poder Legislativo e os servios secretos no Brasil 1964-1990.. Braslia: Departamento de Cincias Polticas e Relaes internacionais da UNB, 1992. (Dissertao, Mestrado em Cincia Poltica)

    18 Outra discusso a respeito da necessidade da atividade de inteligncia no Brasil pode ser encontrado In: ANTUNES, Priscila e CEPIK, Marco A C. A crise dos grampos e o futuro da ABIN. Conjuntura Poltica FAFICH/UFMG. Belo Horizonte, n.8, jun. 1999.

    21

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    Audincia Pblica promovida em 21 de maio de 1996 pela Comisso de Defesa Nacional, a

    discusso atual superficial e vaga.19 Existe no pas, por conta da experincia autoritria

    recente, uma resistncia a discusses que abordem aspectos relativos atividade de

    inteligncia e segurana nacional. Esta resistncia alm de ter atrasado o projeto de

    criao da ABIN no Congresso Nacional, tambm dificulta o debate sobre a

    regulamentao dos mecanismos responsveis pela classificao e proteo dos segredos

    governamentais.

    Segurana e segredo

    Na atividade de inteligncia, ao mesmo tempo em que se procura obter informaes

    de outros atores, precisa-se proteger e neutralizar as capacidades destes outros atores em

    relao s suas prprias informaes: they want accurate information and good forecasts

    about other than them, but they also want to control what these others are able to find out

    about them, so they erect information defenses.20

    Desse modo, os governos procuram manter em segurana um amplo campo de

    informaes sensveis, considerando-se que, por segurana, entende-se uma condio

    relativa de proteo na qual se capaz de neutralizar ameaas discernveis.

    Dentro da atividade de inteligncia, a proteo envolve uma srie de medidas de

    segurana que visam a frustrar a inteligncia adversria. No que compete aos rgos de

    inteligncia, em termos organizacionais, a segurana obtida atravs de padres e medidas

    de proteo para conjuntos definidos de informaes, instalaes, comunicaes, pessoal,

    equipamentos ou operaes. Uma das medidas de segurana considerada essencial dentro

    do Estado a salvaguarda de assuntos sigilosos. As agncias responsveis pela atividade de

    inteligncia, enquanto provedoras de informaes, bem como portadoras de informaes

    consideradas sensveis para a segurana nacional, tm importante participao dentro deste

    setor de segurana informacional.

    19 Atividades de Inteligncia em um estado democrtico. 1o Seminrio realizado pela Cmara dos Deputados, 1994, Brasilia. Alguns aspectos abordados neste seminrio sero discutidos no 3o captulo.

    20 HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.165.

    22

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    A segurana de informaes est relacionada com medidas de proteo que se

    pautam por tcnicas ofensivas de inteligncia, que incluem restrio de pessoas a

    determinados lugares, proteo fsica de documentos e pessoas, controle de viajantes, de

    contatos estrangeiros, alm de regras para a classificao, custdia e transmisso dos

    documentos. A literatura especializada estabelece alguns parmetros internacionais para a

    rea de segurana de informaes que fica dividida, basicamente, em trs componentes:

    segurana defensiva; deteco e neutralizao de ameaas; e fraude. Todas elas so

    disciplinas de defesa que, no entanto, podem envolver atitudes ativas e/ou passivas.

    A Segurana defensiva passiva se divide em Segurana de Comunicaes,

    Segurana de Computadores e Controle de Emisso. A Segurana de Comunicaes inclui

    segurana de transmisso, cripto-segurana, segurana fsica de comunicaes e segurana

    material de informaes. A Segurana de Computadores, uma atividade mais recente,

    procura proteger os computadores da invaso de hackers. O Controle de Emisso

    responsvel pela limitao das emisses eletrnicas de todos os tipos, atravs de satlites,

    cabos etc.

    Deteco e neutralizao so disciplinas defensivas de segurana que tm postura

    ativa e que podem envolver a eliminao fsica de agentes, contra-espionagem e contra-

    inteligncia. parte das medidas de segurana passiva, a defesa tem, s vezes, a

    possibilidade de eliminar ou neutralizar a coleta de informaes da inteligncia adversria,

    atravs da priso de agentes, da expulso de oficiais de inteligncia sob cobertura

    diplomtica, entre outros. Este um tipo de atividade que ocorre principalmente em poca

    de guerra.

    Fraude ou Deception, como conhecida no jargo anglo-saxo, uma disciplina

    defensiva e ativa. Envolve o uso de agentes duplos e tambm aplicada principalmente em

    poca de guerra. definida pela Organizao do Tratado do Atlntico Norte (OTAN) como

    those measures designed to mislead the enemy by manipulations, distortion or falsification

    of evidence to induce him to react in a manner prejudicial to his interests.21

    Apesar de lidar com apenas um tipo de ameaa em especfico as fontes humanas

    a contra-espionagem tambm traz uma discreta contribuio para a segurana. Prov

    21 North Atlantic Treaty Organisation, Intelligence Doctrine (NATO), Intelligence Doctrine (1984), p.A-3. Apud HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.170.

    23

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    informaes sobre ameaas discernveis e produz evidncias especficas do fluxo de

    penetraes tanto do seu lado quanto do lado adversrio, permitindo o fortalecimento do

    aparato de segurana e impedindo a explorao de suas fraquezas pelos agentes

    adversrios.

    A relao entre a atividade de inteligncia e a segurana estreita. O aparato de

    segurana precisa se basear na avaliao da inteligncia para definir as medidas de

    segurana defensivas a serem tomadas, pois ela quem faz a avaliao das ameaas

    existentes. Desta forma, a atividade de inteligncia se insere em um conflito constante

    entre as capacidades ofensivas e de segurana e o sistema de inteligncia, enquanto rgo

    especializado na proteo e roubo de segredos. Entretanto, as responsabilidades pela

    segurana no fazem parte da atividade de inteligncia. Cabe ao Estado manter um aparato

    especfico, responsvel pela proteo de documentos e segredos, e cabe s agncias de

    inteligncia, enquanto especialistas em roubo de segredos, responsveis pelo

    monitoramento das tentativas dos outros de roubarem segredos e geradoras de segredos

    estabelecer um debate com os rgos estatais responsveis pela segurana. Elas tm um

    papel consultivo e no executivo.

    No Brasil, a atividade de informaes confundiu-se com a prpria segurana

    nacional. Dois dos trs rgos de informaes das foras armadas foram criados no final da

    dcada de 60 para combater a subverso: o Centro de Informaes do Exrcito (CIE) e o

    Centro de Informaes e Segurana da Aeronutica (CISA). O nico rgo de informaes

    das foras armadas que j existia antes da tomada do poder pelos militares em 1964 era o

    Centro de Informaes da Marinha (CENIMAR), mas que, em funo da entrada das foras

    armadas no combate subverso, redimensionou sua atividade. Em 1967 o SNI se uniu a

    estes rgos para, atravs do culto ao segredo, atuar em defesa do Estado de Segurana

    Nacional.22 Mas, a seguir os modelos tericos, a segurana no deveria ser vista como parte

    da atividade de inteligncia, seria apenas um dos usurios da atividade de inteligncia,

    embora haja um envolvimento ntimo entre eles.

    No Brasil, como em qualquer lugar, os rgos de informaes sempre privilegiaram

    o segredo como ferramenta de poder. Por segredo podemos compreender um saber de

    22 O SNI sempre possuiu militares em sua estrutura, embora fosse um rgo civil. Mas foi principalmente a partir do ano de 1967 que teve a maior parte de seus cargos de comando ocupados apenas por militares.

    24

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    acesso particularizado a uma informao privilegiada, que cria alianas e divises sociais e

    espaciais por aqueles que o compartilham. Em uma definio precisa, o segredo a piece

    of information that is intentionally withheld by one or more social actor(s) from one or

    more other social actor(s).23 Uma importante caracterstica do segredo que a informao

    em questo intencionalmente retida. O mero fracasso em transmitir uma informao no

    bastante para que esteja estabelecido um segredo. The requirement that a secret be an

    intentional withholding means that there must be a self-conscious and identifiable

    motivation for keeping someone else in the dark about something in particular.24

    Os segredos normalmente escondem informaes relevantes que so retidas ou

    como proposta para influenciar as aes e o pensamento dos outros, ou para proteger

    informaes consideradas relevantes.25

    Alm da reteno intencional da informao, o segredo tambm pode ser

    apresentado de duas formas diferentes: a mentira, em que se retm a informao e a

    substitui por outra, e a meia-verdade, que uma revelao parcial do segredo. O

    conhecimento parcial de uma informao pode conduzir a diferentes tipos de inferncias

    sobre a verdade que o outro conhece plenamente. Ao mesmo tempo em que os fatos

    verdadeiros so revelados, a meia-verdade cria uma impresso que falsa.

    Segredos estratgicos so aqueles retidos com uma motivao particular de alterar

    as aes e os pensamentos dos outros. Eles no so um fim em si mesmo, so meios

    realizados para alcanar outros fins e ocorrem quando os interesses dos atores envolvidos

    no so coincidentes, quando h uma assimetria de interesses relevantes.

    O grau de um segredo pode ser especificado pelo exame do nmero e qualidade de

    diferentes contextos no qual o fluxo de informaes intencionalmente bloqueado.

    Quando a informao mostrada em um contexto e restringida em outro, pode-se perceber

    as diferenas nos tipos de relaes sociais. possvel discernir os dois grupos essenciais:

    23 SCHEPPELE, Kim Line. Legal secrets: equality and efficiency in the Common Law. Chicago: The University of Chicago Press, 1988. p.12.

    24 SCHEPPELE. Legal secrets: equality and efficiency in the Common Law, p.13.25 Seria importante destacar que no se pode confundir segredo com privacidade. A privacidade se encontra necessariamente relacionada intimidade do indivduo. Ela uma condio na qual os indivduos podem, temporariamente, ficarem livres da expectativa e da demanda dos outros. O segredo apenas um dos mtodos que o indivduo pode usar para alcanar esta condio.

    25

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    ns, que somos aqueles que retemos a informao, e eles, aqueles a quem a

    informao bloqueada.

    No que diz respeito aos objetivos deste trabalho, interessa perceber a atuao do

    Estado perante os segredos conhecidos como segredos governamentais, pois a ele que

    cabe regular as informaes que so classificadas como sensveis para a proteo

    individual e para o interesse e segurana nacionais. Em geral, o controle feito atravs da

    distribuio de informaes em duas categorias, uma relacionada a casos domsticos, em

    que o governo procura prescrever o que o cidado pode fazer, e outra relacionada a casos

    externos, em que o governo prescreve o que o cidado pode saber. No primeiro caso

    encontramos uma regulamentao estatal relacionada aos processos judiciais,

    propriedade industrial e privacidade dos cidados, e no segundo o Estado regulamenta os

    segredos relacionados defesa nacional e poltica externa.

    Segredos de defesa nacional e relacionados poltica externa so um tipo de

    segredo particular em relao aos outros. Nestes casos, a informao retida do inimigo e

    tambm de uma vasta maioria daqueles a quem o segredo busca proteger. A

    permeabilidade das redes de trabalho e a desconfiana da populao so revelados por este

    modelo de distribuio. Mltiplas comunidades de ns e eles so criadas, conduzindo

    no apenas para uma tenso na comunicao entre Estados potencialmente em guerra, mas

    tambm para um isolamento das comunidades militares e de segurana nacional, em

    relao ao pblico em geral. No Brasil, a manuteno de alguns segredos por parte de

    pessoas relacionadas com os rgos de informaes possibilitou que permanecessem

    impunes vrios crimes cometidos em nome da Segurana Nacional. Esta reteno de

    informaes responsvel, ainda hoje, por um abismo entre a sociedade e os organismos

    responsveis pela atividade de inteligncia no pas e colabora substancialmente para a

    estigmatizao da atividade de inteligncia no pas.

    Estigma

    Por estigma, entende-se a situao de um determinado sujeito que se encontra

    inabilitado para a aceitao social plena. Este um termo criado pelos gregos para se

    referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de

    26

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    extraordinrio ou mau sobre o status moral de quem os apresentava.26 Atualmente o termo

    mais facilmente compreendido pelo fator pejorativo que conota. A sociedade como um

    todo quem estabelece os meios de categorizar os sujeitos e o total de atributos

    considerados comuns e naturais para os membros de cada uma destas categorias que so

    criadas. Quando o sujeito que possui algum desvio em relao ao que se entende por

    normal e aceitvel apresentado sociedade, seus aspectos permitem prever sua categoria

    e atributos, determinando-lhe assim uma identidade social. Esta identidade atribuda a

    partir das pr-concepes, que so transformadas pela sociedade em expectativas

    normativas e em exigncias que so apresentadas de modo rigoroso. Deixa-se de considerar

    o sujeito estigmatizado como algum comum e total, reduzindo-o estagnao. Quando a

    sociedade lhe faz este tipo de avaliao, normalmente no considera todos seus atributos,

    mas apenas os que so incongruentes com o esteretipo que foi criado. Ou seja, um sujeito

    que poderia ter sido facilmente recebido na relao social quotidiana possui um trao que

    pode-se impor ateno e afastar aqueles que ele encontra, destruindo a possibilidade de

    ateno para outros atributos seus. Deste modo, a sociedade reduz suas chances de vida

    social. Como afirma Goffman, constri-se uma teoria do estigma, uma ideologia para dar

    conta de sua inferioridade e dar conta do perigo que ele representa, racionalizando algumas

    vezes uma animosidade baseada em outras diferenas.27

    A sociedade no consegue dar ao sujeito estigmatizado o respeito e a considerao

    que os aspectos no contaminados de sua identidade social os haviam levado a prever e que

    o sujeito havia previsto receber. O importante, neste contexto, saber como o sujeito

    estigmatizado responde a tal presso.

    Existem vrias formas de um sujeito estigmatizado responder a esta no-aceitao

    social. Ele pode se retrair; pode simplesmente optar por ignorar o estigma que lhe foi

    imposto (o que mais difcil, uma vez que na sociedade atual o sujeito tende a

    compartilhar as mesmas crenas sobre a identidade que a sociedade tem); pode atuar de

    forma defensiva e agressiva e pode, ainda, tentar corrigir diretamente o que considera a

    base objetiva de seu defeito.

    26 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. p.11.

    27 GOFFMAN. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada, p.15.

    27

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    O uso deste conceito neste trabalho explica-se pelo fato de que a atividade de

    inteligncia, em si mesma, j carrega uma conotao negativa ante a sociedade

    democrtica, dado o conflito entre a vigilncia estatal que ela pressupe e os direitos

    individuais do cidado. No Brasil, onde a atuao dos rgos de informaes durante o

    governo militar, sobretudo no final da dcada de 1960 e no comeo da dcada de 1970, se

    encontram diretamente relacionados tortura, corrupo, violao dos direitos e liberdades

    civis, esta estigmatizao ainda mais forte.

    Como vrias vezes enfatizado, a memria sobre a atuao destes rgos e de suas

    prticas durante aquele perodo e a insistncia em manter em segredo certas informaes

    vm prejudicando o debate poltico e acadmico brasileiro a respeito da atividade de

    inteligncia. A aprovao do projeto da ABIN demorou mais de dois anos para se

    concretizar. Neste intervalo, a Agncia passou por uma situao delicada, na qual existia e

    funcionava sem que sua funo fosse regulamentada. A resistncia ao debate e a ignorncia

    em relao ao assunto, aliados falta de vontade poltica, cooperaram na manuteno

    dessa situao.

    Um dos objetivos deste trabalho justamente perceber quais mecanismos foram e

    esto sendo criados pelo Poder Executivo e pelo Congresso Nacional para tentar reverter

    esta situao, para chamar a ateno da sociedade poltica e do pblico em geral, para a

    importncia da institucionalizao da atividade de inteligncia no pas. Perceber o que est

    sendo feito para superar o carter autoritrio da Doutrina de Segurana Nacional e a

    experincia dos rgos de informaes.

    Seo II

    Ciclo de inteligncia e sistemas organizacionais.

    A descrio do processo de funcionamento e das estruturas dos sistemas de

    inteligncia tem por objetivo permitir uma comparao entre o sistema brasileiro e o

    modelo que se tornou um padro ocidental da atividade de Inteligncia. Trata-se da

    construo de um tipo-ideal que procura enfatizar as regularidades sobre as operaes e

    28

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    organizaes, que fundamentam algumas generalizaes sobre a natureza da atividade de

    inteligncia. claro que estas regularidades no so aplicadas de igual forma para todos os

    sistemas, uma vez que os sistemas de inteligncia so produtos do processo histrico

    especfico de cada pas, acrescidos dos recursos disponveis para a rea de defesa e para o

    provimento da ordem pblica. A atuao destes sistemas varia em relao a dois eixos. O

    primeiro, em relao ao centro-periferia e o segundo, em relao a democracias-ditaduras.

    Porm, algumas caractersticas e problemas, especialmente a complexa relao entre

    inteligncia e poltica, so comuns maioria dos sistemas polticos.

    Ciclo de Inteligncia: apresentao

    A literatura especializada sobre a atividade de inteligncia frequentemente utiliza-se

    de um diagrama como forma de auxiliar a compreenso da atividade de inteligncia e seu

    processo de funcionamento. Ele definido como Ciclo de Inteligncia e pode ser

    observado nos principais manuais de inteligncia do mundo. No Brasil ele encontrado nos

    manuais da Escola Superior de Guerra ESG.28

    Entende-se por Ciclo de Inteligncia a descrio de um processo no qual as

    informaes coletadas principalmente pelas agncias de inteligncia so postas

    disposio de seus usurios. Na realidade, ele pode ser definido basicamente em duas

    grandes etapas, uma de coleta e outra de anlise, que se encontram organizacionalmente

    estabelecidas, vinculadas a diferentes rgos estatais.

    Ciclo de Inteligncia

    28 Esta definio padro adotada pela OTAN e pelos pases signatrios da Junta Interamericana de Defesa, inclusive o Brasil.

    29

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    Fonte: Michael Herman. 1996, p.43.

    Neste processo as informaes so coletadas atravs de vrias fontes diferentes. As

    agncias especializadas so responsveis pela coleta de tipos especficos de informao.

    So agncias com especialidades tcnicas especficas, tais como foto-reconhecimento,

    cripto-anlise e espionagem. Aps o processo de coleta estas informaes so repassadas

    para a rea de anlise, Todas as fontes/Anlise e disseminao. Neste estgio, todas as

    informaes coletadas pelas diversas agncias especializadas so processadas, analisadas e

    transformadas em produto de inteligncia. Paralelamente a este tipo de anlise, existe uma

    outra agncia de anlise definida como Alto nvel de Avaliao, onde se faz um tipo de

    anlise especial. So reunidos vrios departamentos diferentes na inteno de produzir uma

    opinio sobre determinado assunto, em que necessrio que se chegue a um consenso

    sobre o tema a partir das vrias informaes oferecidas. Por exemplo: a agncia necessita

    de informaes sobre a situao da guerrilha na Colmbia para repassar ao presidente da

    30

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    Repblica, que viajar para o pas com o objetivo de estabelecer acordos de cooperao.

    Nesta agncia em especfico sero reunidas informaes fornecidas por fotos tiradas de

    satlites, informes da imprensa, informes fornecidos pela embaixada etc., que sero

    reunidas, integradas e analisadas. Destas informaes, procura-se criar um quadro o mais

    prximo possvel da situao, de forma a subsidiar o Poder Executivo em qualquer deciso

    que ele precise tomar em relao ao assunto.

    O fluxo destas informaes coletadas vai ser direcionado conforme o pedido do

    usurio ou conforme o objeto de pesquisa solicitado. Aps o processo de anlise, executado

    por Todas as Fontes e/ou Alto nvel de Avaliao, o produto final ser posto disposio

    do usurio final.

    Tambm faz parte do ciclo de inteligncia a proteo e negao de informaes

    consideradas sensveis para a segurana nacional, onde se situam as atividades de contra-

    inteligncia e contra-espionagem. Por contra-inteligncia entende-se a inteligncia sobre as

    capacidades e intenes dos servios de inteligncia adversrios e por contra-espionagem o

    esforo produzido pela contra-inteligncia no sentido de neutralizar ou destruir as

    atividades de espionagem dos adversrios.

    A coleta de informaes , sem sombra de dvidas, a funo mais conhecida dentro

    da atividade de inteligncia. Compreende o primeiro estgio do ciclo, no qual as

    informaes solicitadas pelo usurio ou para preencher demanda da prpria agncia de

    inteligncia, so obtidas. So informaes necessariamente relacionadas com a defesa e a

    segurana nacional, coleta de dados relevantes sobre capacidades, potencialidades e

    intenes de alvos que podem estar protegidos ou cujo acesso restrito. Uma

    especificidade da atividade de inteligncia no processo de coleta se deve justamente ao fato

    de que as informaes requeridas esto, normalmente, protegidas. Intelligence collection

    is gathering information without targets cooperation or knowledge. Usually it is by special

    covert means designed to penetrate targets organized secrecy.29

    Esta caracterstica no impede que tambm sejam coletadas informaes em fontes

    extensivas, como o caso da televiso, imprensa e internet.

    Agncias Especializadas o termo utilizado para se referir s agncias responsveis

    pelo processo de coleta de informaes, que esto organizadas por diferentes 29 HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.81.

    31

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    especialidades tcnicas. Novamente destacamos que preciso sempre levar em conta as

    caractersticas peculiares de cada pas para pensar o alcance e as possibilidades destas

    agncias. Uma comparao inter-agncias entre pases ricos e pobres chega a ser

    impraticvel, pois existe uma enorme diferena entre a disponibilidade de recursos e de

    investimentos na rea tecnolgica, alm de questes poltico-histricas que levaram

    determinados pases a investirem muito mais em determinadas especialidades do que

    outros, como foi o caso dos EUA e da extinta URSS, na corrida pela construo de satlites

    ainda na dcada de 60. Em funo do grau de especializao tcnica atingido dentro destas

    agncias, elas acabaram, nestes pases, por se traduzirem em grandes organizaes.30

    Aps a concluso do processo de coleta realizado pelas agncias tcnicas

    especializadas, os dados so repassados s agncias responsveis pela sua anlise e

    disseminao. Neste processo as informaes coletadas so sistematicamente examinadas e

    transformadas, tornando-se teis ao processo de tomada de deciso. De acordo com a

    doutrina da OTAN, a anlise pode ser divida pela seguinte seqncia:31

    Em primeiro lugar, h a colao, o trabalho de registro das informaes que entram.

    Em segundo, vem o processo de avaliao, em que se faz a averiguao da confiabilidade

    de fonte e da credibilidade da informao. Em terceiro, a anlise, quando se identificam os

    30 Dentro do tipo-ideal construdo pelos pases ocidentais e encontrado principalmente na literatura anglo-sax, foram criados acrnimos como forma de identificar e definir os tipos de coleta existentes dentro da atividade de inteligncia. Entre as funes tpicas deste processo encontram-se: HUMINT/Human Intelligence que responde atualmente por uma pequena parcela das informaes dentro da atividade de inteligncia. um tipo de coleta relativamente barata, se comparada aos gastos na produo de satlites e outros equipamentos. Em meio as relaes internacionais, o papel destes coletores de obter informaes onde pessoas ligadas ao corpo diplomtico no podem acessar; SIGINT/ Signals Intelligence so as agncias responsveis pela transcrio de informaes obtidas em lnguas estrangeiras, pela decodificao de mensagens criptografadas, pelo processamento de imagens digitais, alm de outras funes. SIGINT se tornou a mais importante fonte de inteligncia do sculo XX, ela tem sido parte da revoluo dos meios de comunicao, responsvel at mesmo pelo desenvolvimento dos primeiros satlites nas superpotncias; IMINT/Imagery intelligence, que envolve a coleta e o processamento de imagens obtidas atravs de fotografias, radares e sensores infra-vermelho. O recurso fotografia se tornou, em poca de guerra, um dos maiores elementos de inteligncia para o reconhecimento de territrios, de trincheiras, para auxiliar nos bombardeamentos, e para o melhor emprego de divises e munies, desenvolvendo um importante papel desde a I Guerra Mundial. Parte das imagens analisadas em tempos de paz consiste de uma coleta rotineira, que tambm podem ser obtidas atravs de fontes ostensivas, como o o caso das imagens veiculadas pela mdia, jornais e pela difuso de imagens televisivas, transmitidas por outros pases; TECHINT/ Technical inteligence a inteligncia obtida atravs de outros meios tcnicos. A coleta feita por agncias especializadas que fazem uso de tecnologia altamente desenvolvida para a obteno de informaes que no so passveis de serem obtidas atravs de SIGINT e IMINT. So informaes coletadas de forma passiva e que, em geral, se encontram relacionadas com sistemas de vigilncia ocenica, do espao sideral e com o monitoramento e deteco de exploses nucleares. 31 NATO. Military Agency for Standardisation, (August 1984) apud HERMAN. Intelligence power in peace and war,

    p.100.

    32

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    fatos significantes, comparando-os com os fatos existentes. Aps este processo, as

    informaes analisadas so integradas atravs da elaborao de um quadro, onde sero

    interpretadas e tomadas as decises cabveis em funo das probabilidade esperadas.

    Claro que se trata de uma simplificao do processo, uma vez que cada um destes

    itens subdividido em vrios outros. O importante que o resultado final deste processo

    o que se pode denominar de produto da inteligncia, que ser entregue aos usurios nos

    prazos e formatos necessrios.

    O papel das agncias responsveis pela anlise o de prover de dados os usurios,

    da melhor forma possvel, alm de serem as responsveis pela sua distribuio. O processo

    no qual o produto de inteligncia posto disposio do usurio denominado

    disseminao. Os procedimentos de disseminao so cruciais para o complemento do

    ciclo, pois so os responsveis pela distribuio e entrega da inteligncia aos usurios.

    Estes sistemas de disseminao so complexos porque envolvem no apenas diferentes

    produtos para usurios igualmente diversificados, mas tambm, porque envolvem

    crescentemente exigncias de integrao, segurana, interoperabilidade e velocidade nos

    sistemas digitais de armazenamento, recuperao e comunicao de bases de dados e

    mensagens.32

    Alm do ciclo estar dividido em duas etapas, a de coleta e o de anlise, existem

    outras separaes importantes no trabalho de inteligncia, como o caso da separao das

    reas de interesse do ciclo em categorias. Esta diviso utilizada para direcionar o

    processo de coleta de informao, organizar o trabalho de anlise e classificar os dados

    obtidos. Em primeiro lugar, a inteligncia pode ser dividida em externa e interna. Por

    inteligncia Interna ou Domstica compreendem-se as informaes sobre identidades,

    capacidades, intenes e aes de grupos e indivduos dentro de um pas, cujas atividades

    so ilegais ou alegadamente ilegtimas.33 Entretanto, os valores atribudos a estas

    capacidades e a tolerncia do Estado em relao dissidncia vai variar conforme o regime

    poltico de cada pas. O status da segurana interna reflexo do processo poltico em que

    vive o Estado e quanto mais fechado for o regime, menor ser a tolerncia e maior ser a

    segurana interna. E mesmo em se tratando de democracias consolidadas, sempre existe

    32 CEPIK. Marco A C. Glossrio de Termos, Siglas e Acrnimos. 1999. mimeo. 33 CEPIK. Marco A C. Glossrio de Termos, Siglas e Acrnimos. 1999. mimeo

    33

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    uma tenso entre a vigilncia estatal de um lado e a privacidade e os direitos individuais do

    outro.

    A inteligncia externa est relacionada s capacidades, intenes e atividades de

    Estados, grupos ou indivduos estrangeiros. Este termo pode ser aplicado tanto para as

    relaes interestatais, algum tipo de conflito estabelecido entre dois ou mais estados,

    quanto para atores transnacionais, como o caso do terrorismo e do narcotrfico.

    Nos pases liberal-democrticos a maioria da atividade de inteligncia direcionada

    para a busca de informaes sobre outros Estados e a prpria segurana interna est

    relacionada com a proteo externa, como se pode observar no caso ingls:

    The protection of national security and, in particular, its protection against threats from espionage, terrorism and sabotage, from the activities of agents of foreign powers and from actions intended to overthrow or undermine parliamentary democracy by political, industrial or violent means.34

    Na prtica, segurana e inteligncia externa se confundem, pois ameaas externas

    tm componentes internos e vice-versa.

    Ciclo de Inteligncia: prticas

    A atual escala de produo da atividade de inteligncia exige um funcionamento

    permanente, homens e computadores operando 24 horas por dia e se encontra em uma

    situao bem diferente da que possua at o fim da Segunda Guerra mundial. Esta mudana

    exigiu uma complexa reorganizao administrativa, de modo a torn-la mais eficiente e

    efetiva, no apenas na aplicao das novas tecnologias, mas tambm na administrao e

    controle de um nmero de pessoas muito maior, na distribuio dos recursos e produtos

    para os vrios usurios em tempo hbil.

    Como visto, a literatura especializada criou um diagrama, que assim simplificado,

    demonstra como a atividade de inteligncia opera na atual escala e como pode ser avaliada:

    34 Security Service Act 1989. apud HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.47.

    34

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    Diagrama:

    Fonte: Michael Herman. 1996, p.285.

    Dentro deste diagrama esto representados os usurios ou consumidores, que so

    aqueles que determinam o tipo de informao que est sendo necessria. Suas necessidades

    so transformadas em requerimentos concretos pelos administradores da inteligncia e so

    repassados aos coletores de forma a direcionar os seus esforos. Os coletores obtm as

    informaes requeridas, que so transformados pelos analistas em produto de inteligncia.

    Este produto final distribudo para o consumidor e para os chefes das agncias, que

    formulam as novas necessidades e fazem os ajustes necessrios de maneira a prover a

    atividade de inteligncia de mais eficcia e efetividade.

    Entretanto, o autor Michael Herman levanta uma importante questo: o diagrama s

    pode ser considerado como uma mera simplificao da atividade de inteligncia, uma vez

    que tem um carter mais pragmtico do que doutrinrio. O uso do diagrama apenas ajuda a

    35

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    pensar o gerenciamento da atividade de inteligncia, uma vez que, na prtica, estes estgios

    podem tomar propores e caminhos diferentes. Segundo Herman, necessrio se ater ao

    fato de que se essas agncias se comportarem organizacionalmente, de forma rigorosa,

    como define o diagrama, acabaro por introduzir ineficincia ao sistema. Isto ocorreria

    porque alguns tipos de requerimentos acabam por obter mais status do que o realmente

    necessrio, they have connotations of authorisation: claiming and demanding by right and

    authority.35

    O ciclo de inteligncia , de fato, uma criao militar que parte de princpios de que

    o processo de inteligncia estritamente formal, estvel e regular. Segundo a definio da

    OTAN, o ciclo

    a logical system of though and action for providing the intelligence required by a commander (...) All intelligence work should be based on the commanders intelligence requirements (...) if it is to be effective and economic it must have a specific aim, and the aim is to provide the commander with what he needs.36

    E como a inteligncia civil no formulou uma doutrina formal para a comunidade

    de inteligncia, acabou-se por aceitar e utilizar desta formulao militar.

    Na realidade, como afirma Herman, longe de funcionar de forma estvel e regular,

    o que existe dentro do ciclo de inteligncia uma oferta de informaes. Os requerimentos

    refletem o que os chefes das agncias de inteligncia pensam que os usurios podem

    precisar e o que eles acham que a agncia pode prover. Na prtica, percebe-se que os

    fluxos que foram discutidos anteriormente podem ser invertidos e que os requerimentos de

    informaes assumem uma dinmica prpria.

    Fluxo Informacional:

    35 HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.286.36 Allied Intelligence Publication. NO 1 Intelligence doctrine (NATO, 1984) 401. apud HERMAN. Intelligence power in peace and war, p.286.

    36

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    *Fonte: Michael Herman: 1996. P. 291

    Longe de se tratar de um processo formal e estvel, o ciclo de inteligncia, na

    prtica, adquire uma dinmica prpria que decorre das informaes obtidas e das

    informaes ofertadas. Mas o fato de o diagrama no representar a realidade do ciclo de

    inteligncia no o invalida. Ao contrrio, esta representao acaba se tornando til, pois

    permite entender o funcionamento do ciclo, assim como o processo de qualquer outra

    poltica pblica. Da mesma forma que ocorre na implementao de uma poltica pblica,

    no ciclo de informaes localizada a definio da agenda, a busca de informaes e

    alternativas necessrias sobre o problema, bem como a deciso de que ao deve ser

    empregada para a resoluo do problema. Ou seja, a viso estagista do ciclo permite

    localizar sua fase de planejamento, de implementao, de avaliao e deciso, alm de

    permitir a compreenso de como a atividade de inteligncia funciona e como deveria

    funcionar.

    37

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    Sistemas organizacionais: uma viso geral

    Por sistemas de inteligncia pode-se entender as organizaes que atendem funo

    de inteligncia dentro de um determinado governo. Fala-se em sistemas de inteligncia, ao

    invs de organizao de inteligncia, devido ao fato de que esta atividade surgiu de duas

    etapas distintas, que historicamente foram se especializando. A atividade de inteligncia

    existe h muito tempo e sua importncia j reconhecida desde as guerras napolenicas.

    Entretanto, a atividade de inteligncia separada organizacionalmente, surgiu apenas a partir

    da complexificao das guerras no final do sculo XIX. A partir deste perodo, a guerra

    passou a envolver grandes exrcitos e grandes territrios, aumentando as oportunidades de

    vitria, que passaram a depender cada vez mais de um rpido comando e de uma grande

    capacidade de concentrao. Para atender a estas novas necessidades, criaram-se staffs

    permanentes nos exrcitos e, posteriormente, nas marinhas, responsveis pelo

    planejamento e suporte de informaes que pudessem auxiliar aos comandos na tomadas

    de deciso e de controle.

    Paralelamente ao seu desenvolvimento dentro do campo militar, a atividade de

    inteligncia passou tambm a se especializar como funo policial e repressiva. As polcias

    secretas surgiram no princpio do sculo XIX e tinham como objetivo evitar revolues

    populares, a exemplo da revoluo francesa. Passaram a desenvolver mecanismos de

    vigilncia, de informao e de interceptao de cartas.

    No sculo XX, aps o fim da 2a Guerra, o medo de uma nova revoluo popular j

    havia declinado no mundo ocidental, mas o comunismo permaneceu como uma forte

    ameaa. Em decorrncia, emergiram os departamentos criminais de investigao, que

    comearam a recorrer ao uso das tcnicas cientficas para os problemas de deteco,

    apreenso, vigilncia e armazenamento de informaes sobre populaes criminosas. O

    crescimento internacional das organizaes de segurana e o medo da espionagem

    estrangeira ainda levaram os pases a desenvolverem suas agncias de contra-espionagem.

    Houve, neste processo, uma mudana no status da atividade de inteligncia, que

    passou a se organizar e se institucionalizar, tornando constante o processo de coleta e

    38

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    anlises de informaes. A partir de meados dos anos 40 firmou-se a crena de que a

    inteligncia seria uma atividade fundamental para o processo de tomada de decises

    governamentais. A autonomizao da atividade acompanhou, de alguma forma, o processo

    de racionalizao e complexificao estatal ocorrido nas formas de governo do sculo XX,

    vinculado expectativa liberal e ao otimismo cognitivo das cincias sociais. A atividade de

    inteligncia, enquanto instituio permanente, permitiria uma maior racionalizao da ao

    governamental, afastando-a da conduta ideolgica. Segundo Sherman Kent,

    intelligence represented rationality, and the statesman who rejected it should recognize that he is turning his back on the two instruments by which western man has, since Aristotle, steadily enlarged his horizons of knowledge the instruments of reason and scientific method.37

    A organizao do sistema de inteligncia passou a fazer parte do planejamento

    governamental como mais um mecanismo capaz de atribuir racionalidade ao

    funcionamento do Estado, no obstante um governo possa funcionar sem uma atividade de

    inteligncia, que afinal, apenas de uma atividade subsidiria ao processo decisrio.

    A prpria concepo de sistema ou comunidade de inteligncia apenas pode ser

    pensada a partir de meados do sculo XX, pois at o perodo entre-guerras as agncias de

    inteligncia ainda pressupunham que o conhecimento sobre as naes estrangeiras deveria

    ser organizado em segmentos, no como uma totalidade. Faltava ainda s agncias de

    inteligncia habilidade para tratar de assuntos que escapavam alada militar, alm de um

    mecanismo central de avaliao sobre a segurana, efetividade e o potencial das agncias

    de inteligncia. Novas estruturas emergiram no decorrer da 2a Guerra que permitiram a

    anlise integrada de assuntos tais como economia, poltica, assuntos militares, navais etc.

    Eram as agncias centrais de anlise, que procuravam analisar o inimigo como um todo. A

    introduo da coleta e anlise nacional de informaes implicou a percepo de que a

    atividade de inteligncia era algo mais do que um conjunto de organizaes independentes.

    No incio da Guerra Fria foram introduzidas duas grandes novidades na atividade de

    inteligncia. Em primeiro lugar, surge a funo sistemtica de avaliao, com a entrada dos

    acadmicos nos assuntos de inteligncia. At ento esta atividade era considerada um

    37 KENT, Sherman. Sstrategic intelligence for American World Policy Hamden, Conn: Archon Books, 1965. p.5.

    39

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos

    assunto restrito aos militares ou polcia. Neste contexto, um tipo diferente de problema

    foi posto pela URSS. Informaes que em outros pases eram ostensivamente publicadas

    passaram a ser tidas como secretas pelos soviticos, como era o caso, por exemplo, de sua

    densidade demogrfica e de seu PIB. Na extinta URSS, ou no se publicavam estas

    informaes ou elas eram publicadas de forma distorcida. Os EUA foram um dos pases

    que montaram o extraordinrio aparato de anlise, envolvendo os melhores experts do pas.

    Em segundo lugar, o crescimento da atividade de inteligncia acompanhou a

    exploso tecnolgica ocorrida no perodo ps-guerra. Para auxiliar a coleta de informao,

    surgiram as agncias especializadas em sinais, imagens, criptografia, entre outros, que

    comearam a produzir informaes em grande escala e adotaram uma lgica

    completamente diferente da lgica adotada durante o sculo XIX. Vale ressaltar que este

    exemplo se aplica muito mais s grandes potncias envolvidas no contexto de Guerra Fria e

    difere-se substancialmente de pases menos desenvolvidos.

    Quando estas organizaes surgiram, com o processo de racionalizao e de

    crescimento dos governos no ps-Segunda Guerra, foram sendo retiradas de dentro da rea

    militar e muitas foram subordinadas ao controle civil. Entretanto, as estruturas de

    inteligncia das Foras Armadas no foram desmanteladas. Havia outros interesses em jogo

    que diziam respeito principalmente transferncia de tcnicas e de recursos envolvidos na

    manuteno destes rgos. Concomitantemente existncia das atividades de inteligncia

    dentro da Marinha, Aeronutica e Exrcito, a atividade tambm se inseriu nos ministrios

    de Defesa, houve uma verticalizao dentro do sistema. E justamente devido a esta

    verticalizao que se pode pensar em sistemas de inteligncia, ao invs de, simplesmente,

    organizaes.

    Sendo assim, tenham ou no o nome de sistemas de inteligncia, quase todos os

    pases tm mais de um rgo envolvido neste tipo de atividade. Uma vez expostas as

    estruturas e as especificidades de um sistema de inteligncia considerado padro para o

    mundo ocidental, buscaremos perceber a construo do Sistema Brasileiro de Inteligncia,

    atendo, fundamentalmente, s particularidades inerentes sua consolidao.

    40

  • A Atividade de Inteligncia: conceitos e processos 41

  • Os servios de Informaes no Brasil: a construo burocrtica da rede.

    Captulo 2 Os servios de Informaes no Brasil: a construo

    burocrtica da rede.

    Este captulo tem como objetivo principal abordar a constituio e o funcionamento

    do sistema brasileiro de Informaes.38 O estudo das estruturas e das prticas exercidas

    dentro da comunidade de informaes faz-se imprescindvel para que seja possvel

    compreender a construo do estigma que lhe foi atribudo.39 Esclareemos, contudo, que a

    inteno no apenas apontar erros cometidos por estes rgos. Este no um trabalho

    denunciatrio, e muito menos, busca minimizar os efeitos destes erros, conhecidos por

    grande parte da sociedade. Procuramos, precisamente, perceber os motivos que levaram

    tais rgos a se inserirem no combate subverso e a se confundirem com a prpria

    segurana do pas. Outro objetivo demonstrar onde a construo da comunidade de

    informaes no Brasil se diferenciou das comunidades de inteligncia nas grandes

    potncias, observadas no captulo anterior.

    Para este captulo, o estabelecimento de um corte cronolgico definitivo no foi

    vivel. Dividir a atividade de informaes no Brasil a partir de 1927 quando foi

    abordada pela primeira vez de forma oficial at 1990, quando o SNI foi extinto

    seria um corte por demais arbitrrio. Este corte se daria em funo da adoo do termo

    inteligncia no debate pblico brasileiro, como forma de d