Brasil as Nacoes Unidas 1946 2011

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O BRASIL NAS NAÇÕES UNIDAS 1946 – 2011

Transcript of Brasil as Nacoes Unidas 1946 2011

O BRASIL NAS NAES UNIDAS 1946 2011

Ministrio das relaes exteriores

Ministro de Estado Secretrio-Geral

Embaixador Antonio de Aguiar Patriota Embaixador Ruy Nunes Pinto Nogueira

Fundao alexandre de GusMo

Presidente Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais

Embaixador Jos Vicente de S Pimentel

Centro de Histria e Documentao Diplomtica Diretor Embaixador Maurcio E. Cortes Costa

A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo, Sala 1 70170-900 Braslia, DF Telefones: (61) 2030-6033/6034 Fax: (61) 2030-9125 Site: www.funag.gov.br

Luiz Felipe de Seixas Corra Organizador

O Brasil nas Naes Unidas 1946 2011

3 edio revista e ampliada

Braslia, 2012

Direitos de publicao reservados Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes Exteriores Esplanada dos Ministrios, Bloco H Anexo II, Trreo 70170-900 Braslia DF Telefones: (61) 2030-6033/6034 Fax: (61) 2030-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected]

Equipe Tcnica: Eliane Miranda Paiva Fernanda Antunes Siqueira Gabriela Del Rio de Rezende Jess Nbrega Cardoso Rafael Ramos da Luz Wellington Solon de Souza Lima de Arajo Programao Visual e Diagramao: Grfica e Editora Ideal

Impresso no Brasil 2012C824 CORRA, Luiz Felipe de Seixas. O Brasil nas Naes Unidas : 1946-2011 / Luiz Felipe de Seixas Corra; apresentao terceira edio de Antonio de Aguiar Patriota. 3. ed. rev. e ampl. Braslia : FUNAG, 2012. 986 p.; 23 cm.

Compilao dos principais discursos de representantes brasileiros na ONU. ISBN: 978-85-7631-390-8 1. Discursos. 2. Sees ordinrias. 3. Organizao das Naes Unidas. 4. Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas. 5. Poltica externa brasileira. I. Fundao Alexandre de Gusmo. CDU: 341.123.042(042.5)

Ficha catalogrfica elaborada pela bibliotecria Talita Daemon James CRB-7/6078 Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

Sumrio

Apresentao da Terceira Edio .............................................................................. 15 Introduo da Terceira Edio ................................................................................... 19 Apresentao da Segunda Edio ............................................................................. 21 Introduo da Segunda Edio .................................................................................. 25 Apresentao da Primeira Edio ............................................................................. 31 Introduo da Primeira Edio .................................................................................. 33 1946.................................................................................................................................. 43 I Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU I Parte - Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas ............................................... 47 II Parte - Embaixador Pedro Leo Velloso Netto ..................................................... 51

1947.................................................................................................................................. 57 II Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Embaixador Joo Carlos Muniz .................................................................................. 61

1948...................................................................................................................................71 III Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Raul Fernandes...............................................................................................73

1949...................................................................................................................................79 IV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Embaixador Cyro de Freitas-Valle ..............................................................................81

1950...................................................................................................................................89 V Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Embaixador Cyro de Freitas-Valle ...................................................................................91

1951...................................................................................................................................99 VI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Embaixador Mrio de Pimentel Brando .................................................................101

1952................................................................................................................................ 109 VII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Joo Neves da Fontoura ............................................................................. 111

1953................................................................................................................................ 119 VIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Embaixador Mrio de Pimentel Brando ................................................................ 121

1954................................................................................................................................ 127 IX Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Embaixador Ernesto Leme......................................................................................... 129

1955................................................................................................................................ 139 X Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Embaixador Cyro de Freitas-Valle ........................................................................... 141

1956................................................................................................................................ 149 XI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Embaixador Cyro de Freitas-Valle ........................................................................... 151 1957................................................................................................................................ 159 XII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Embaixador Oswaldo Aranha................................................................................... 161 1958................................................................................................................................ 167 XIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Francisco Negro de Lima ......................................................................... 169 1959................................................................................................................................ 175 XIV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Embaixador Augusto Frederico Schmidt ................................................................ 177 1960................................................................................................................................ 187 XV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Horcio Lafer ............................................................................................... 189 1961................................................................................................................................ 197 XVI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Affonso Arinos de Mello Franco .............................................................. 201 1962................................................................................................................................ 209 XVII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Affonso Arinos de Mello Franco .............................................................. 211 1963................................................................................................................................ 223 XVIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Joo Augusto de Arajo Castro ................................................................ 227

1964................................................................................................................................ 251 XIX Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Vasco Leito da Cunha .............................................................................. 255

1965................................................................................................................................ 265 XX Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Vasco Leito da Cunha .............................................................................. 267

1966................................................................................................................................ 279 XXI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Juracy Magalhes ........................................................................................ 281

1967................................................................................................................................ 293 XXII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Jos de Magalhes Pinto ............................................................................ 297

1968................................................................................................................................ 307 XXIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Jos de Magalhes Pinto ............................................................................ 309

1969................................................................................................................................ 317 XXIV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Jos de Magalhes Pinto ............................................................................ 319

1970................................................................................................................................ 331 XXV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Mrio Gibson Barboza................................................................................ 333

1971................................................................................................................................ 345 XXVI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Mrio Gibson Barboza................................................................................ 347

1972................................................................................................................................ 359 XXVII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Mrio Gibson Barboza................................................................................ 363 1973................................................................................................................................ 377 XXVIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Mrio Gibson Barboza................................................................................ 379 1974................................................................................................................................ 391 XXIX Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Antonio Francisco Azeredo da Silveira ................................................... 393 1975................................................................................................................................ 405 XXX Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Antonio Francisco Azeredo da Silveira ................................................... 407 1976................................................................................................................................ 417 XXXI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Antonio Francisco Azeredo da Silveira ................................................... 419 1977................................................................................................................................ 429 XXXII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Antonio Francisco Azeredo da Silveira ................................................... 431 1978................................................................................................................................ 443 XXXIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Antonio Francisco Azeredo da Silveira ................................................... 445 1979................................................................................................................................ 453 XXXIV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Ramiro Saraiva Guerreiro .......................................................................... 455

1980................................................................................................................................ 467 XXXV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Ramiro Saraiva Guerreiro .......................................................................... 471

1981................................................................................................................................ 485 XXXVI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Ramiro Saraiva Guerreiro .......................................................................... 487

1982................................................................................................................................ 501 XXXVII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Joo Baptista de Oliveira Figueiredo .................................................... 503

1983................................................................................................................................ 517 XXXVIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Ramiro Saraiva Guerreiro .......................................................................... 519

1984................................................................................................................................ 531 XXXIX Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Ramiro Saraiva Guerreiro .......................................................................... 533

1985................................................................................................................................ 545 XL Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Jos Sarney................................................................................................ 549

1986................................................................................................................................ 567 XLI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Roberto de Abreu Sodr ............................................................................ 571

1987................................................................................................................................ 587 XLII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Roberto de Abreu Sodr ............................................................................ 589

1988................................................................................................................................ 599 XLIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Roberto de Abreu Sodr ............................................................................ 601

1989................................................................................................................................ 613 XLIV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Jos Sarney................................................................................................ 617

1990................................................................................................................................ 631 XLV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Fernando Collor de Mello ...................................................................... 633

1991................................................................................................................................ 647 XLVI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Fernando Collor de Mello ...................................................................... 651

1992................................................................................................................................ 663 XLVII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Celso Lafer ................................................................................................... 667

1993................................................................................................................................ 683 XLVIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Celso Amorim ............................................................................................. 685

1994................................................................................................................................ 699 XLIX Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Celso Amorim ............................................................................................. 701

1995................................................................................................................................ 713 L Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Luiz Felipe Lampreia ................................................................................. 717

1996................................................................................................................................ 731 LI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Luiz Felipe Lampreia ................................................................................. 735

1997................................................................................................................................ 747 LII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Luiz Felipe Lampreia ................................................................................. 751

1998................................................................................................................................ 763 LIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Luiz Felipe Lampreia ................................................................................. 767

1999................................................................................................................................ 779 LIV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Luiz Felipe Lampreia ................................................................................. 783

2000................................................................................................................................ 793 Sesso Plenria da Cpula do Milnio Discurso do Vice-Presidente da Repblica Marco Maciel .................................... 797 LV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Luiz Felipe Lampreia ................................................................................. 801

2001................................................................................................................................ 811 LVI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Fernando Henrique Cardoso ................................................................. 815

2002................................................................................................................................ 823 LVII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Celso Lafer ................................................................................................... 827

2003................................................................................................................................ 835 LVIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Luiz Incio Lula da Silva ........................................................................ 839

2004................................................................................................................................ 849 LIX Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Luiz Incio Lula da Silva ........................................................................ 853 Discurso do Senhor Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, durante reunio da Comisso Mundial sobre a Dimenso Social da Globalizao................................................................................................................. 861 Discurso do Senhor Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, na Reunio de Lderes Mundiais para a Ao contra a Fome e a Pobreza, na sede das Naes Unidas ............................................................................................. 865 Palavras do Senhor Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, no encerramento da Reunio de Lderes Mundiais para a Ao contra a Fome e a Pobreza, na sede das Naes Unidas ............................................................... 871

2005................................................................................................................................ 875 Discurso do Senhor Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, no Debate de Alto Nvel sobre Financiamento ao Desenvolvimento ................................................................................................... 879 Discurso do Senhor Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, na Reunio de Cpula do Conselho de Segurana das Naes Unidas................... 883 Discurso do Senhor Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, por ocasio da Reunio de Alto Nvel da Assembleia Geral das Naes Unidas sobre a Implementao das Metas do Milnio ....................................................... 887 LX Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Celso Amorim ............................................................................................. 891

2006................................................................................................................................ 899 LXI Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Luiz Incio Lula da Silva ........................................................................ 903

No consta no texto.

2007................................................................................................................................ 911 LXII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Luiz Incio Lula da Silva ........................................................................ 915

2008................................................................................................................................ 923 Mensagem do Presidente Luiz Incio Lula da Silva, por ocasio de encontro especial do Conselho Econmico e Social das Naes Unidas sobre a crise alimentar mundial....................................................................................................... 929 LXIII Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Luiz Incio Lula da Silva ........................................................................ 933

2009................................................................................................................................ 941 LXIV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Presidente Luiz Incio Lula da Silva ........................................................................ 945

2010................................................................................................................................ 953 Discurso do Ministro Celso Amorim na Cpula de Chefes de Estado e de Governo do Conselho de Segurana das Naes Unidas ..................................... 959 LXV Sesso Ordinria da Assembleia Geral da ONU Ministro Celso Amorim ............................................................................................. 963

2011................................................................................................................................ 973 Abertura do Debate Geral da LXVI Assembleia Geral das Naes Unidas Presidenta Dilma Rousseff......................................................................................... 979

Apresentao da Terceira Edio Antonio de Aguiar Patriota Ministro das Relaes Exteriores

Como mulher que sofreu tortura no crcere, sei como so importantes os valores da democracia, da justia, dos direitos humanos e da liberdade. E com a esperana de que esses valores continuem inspirando o trabalho desta Casa das Naes que tenho a honra de iniciar o Debate Geral da 66 Assembleia Geral da ONU.1

Presidenta Dilma Rousseff

H mais de sessenta anos, o Brasil tem o privilgio de abrir o Debate Geral da Assembleia Geral das Naes Unidas. Desde os discursos do final dos anos 40, ainda marcados pela experincia traumtica da Segunda Guerra Mundial e pelas circunstncias da ento incipiente Guerra Fria, at o pronunciamento em 2011 da Presidenta Dilma Rousseff a primeira mulher a inaugurar o debate da Assembleia Geral , essa uma tradio que nos honra a todos os brasileiros. , ao mesmo tempo, uma tradio que nos posiciona, ano aps ano, diante do desafio de identificar os temas que, luz de nossos valores e interesses, consideramos merecedores da ateno prioritria do foro diplomtico multilateral por excelncia que a Assembleia Geral da ONU. O desafio no menor. Demanda uma viso apurada e sempre atualizada da cambiante realidade internacional o que envolve, tambm, para sermos inclusivos, a capacidade de apreender as percepes de nosso entorno regional e do conjunto da comunidade internacional e traz consigo a importante responsabilidade de contribuir para a prpria definio da agenda global. A oportunidade de concorrer para moldar as pautas diplomticas na ONU polticas, econmicas, sociais reveste-se de significado especial para um pas que, como o Brasil, tem na defesa e na promoo do multilateralismo um dos fatores estruturantes de sua poltica externa.1

Discurso proferido pela Senhora Presidenta da Repblica na abertura do Debate Geral da 66 Assembleia Geral das Naes Unidas (Nova York, 21/9/2011).

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ANTONIO DE AGUIAR PATRIOTA

O Brasil identifica, no multilateralismo, uma expresso internacional da democracia. De certa forma, o multilateralismo desempenha, no plano das relaes entre os Estados, o papel que recai sobre a democracia e o primado do Estado de direito no plano domstico. Havendo consolidado nossa prpria democracia, e tendo-lhe conferido alcance renovado por meio de polticas sociais que resgataram a cidadania de dezenas de milhes de brasileiros, acreditamos estar particularmente bem situados, neste incio de sculo XXI, para, pela via do dilogo e da persuaso, ampliar os espaos de legitimidade que s o multilateralismo capaz de assegurar. O fortalecimento das Naes Unidas, e de sua capacidade de atuao, se torna ainda mais premente neste estgio de mudanas que atravessa o sistema internacional. O mundo vive perodo de transio que aponta para uma ordem internacional mais multipolar. Essa , em princpio, uma tendncia positiva, que pode abrir possibilidades adicionais de participao, nos processos decisrios globais, de pases que vinham deles excludos. No entanto, no se imagina que a existncia de uma ordem multipolar oferea, por si s, estruturas de governana mais equnimes e melhores condies para a promoo do desenvolvimento e da paz. preciso trabalhar para que seja assim. Trabalhar para que, na multipolaridade que venha a prevalecer, o signo da cooperao predomine sobre o da confrontao. E nesse esforo, que necessariamente coletivo e que pressupe concertao em busca de consensos, cabe s Naes Unidas papel privilegiado, que no pode ser desempenhado por outro foro. Sobretudo medida que a Organizao e suas diferentes instncias se tornem mais representativas, mais legtimas e mais eficazes. Da o sentido maior de O Brasil nas Naes Unidas, obra organizada pelo Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corra. A compilao dos principais discursos de representantes brasileiros na ONU incluindo todos os que foram pronunciados nas aberturas do Debate Geral da Assembleia Geral constitui matria-prima de notvel utilidade no apenas para a investigao histrica, mas pelo interesse do antecedente em poltica externa, tambm para nossa ao diplomtica atual na ONU. Nos discursos reunidos neste livro, revela-se a forma como o compromisso do Brasil com o multilateralismo se manifesta ao longo do tempo, refletindo sempre a vocao brasileira para a paz e as circunstncias de cada momento histrico. Assim foi, por exemplo, em 1963, com a doutrina dos trs Ds (desarmamento, desenvolvimento e descolonizao). Ou, nos anos 70, com o combate ao apartheid e a crtica ao congelamento do poder mundial. Ou, ainda, na dcada de 80, com a denncia do peso excessivo da dvida externa de pases em desenvolvimento.16

APRESENTAO DA TERCEIRA EDIO

Mais recentemente, nos anos 90, o Brasil engajou-se, como ator central, nos debates sobre a reforma do Conselho de Segurana das Naes Unidas e insistiu no imperativo de substituir-se uma globalizao assimtrica por uma globalizao solidria. Nos primrdios do sculo XXI, levou para a ONU a bandeira da luta contra a fome. Em 2011, a Presidenta Dilma Rousseff ressaltou, para alm das anlises econmicas da crise financeira internacional, a natureza tambm poltica do problema. Defendeu a incorporao da Palestina como membro pleno das Naes Unidas declarou: Apenas uma Palestina livre e soberana poder atender aos legtimos anseios de Israel por paz com seus vizinhos, segurana em suas fronteiras e estabilidade poltica em seu entorno. Sempre se valendo da alta tribuna da Assembleia Geral da ONU, a Presidenta props a noo de responsabilidade ao proteger, como complemento necessrio da responsabilidade de proteger, no contexto do debate sobre a proteo de civis em situaes de conflito. O que se observam, nos textos aqui compilados, so as marcas de uma diplomacia de alcance crescentemente universal. Os traos de uma sociedade que sabe que a comunidade internacional deve comportar a convivncia de uma pluralidade de vises e que, por isso mesmo, valoriza o dilogo com uma multiplicidade de atores. A voz de um pas que hoje mantm relaes diplomticas com todos os demais 192 membros das Naes Unidas e at mesmo com Estados no membros, ainda, como a Palestina. O Brasil nas Naes Unidas , contudo, mais que uma coleo de discursos. Inclui, como significativo valor agregado, informaes e anlises elucidativas do Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corra, tanto nas introdues gerais que elaborou para a obra como nas notas individualizadas que preparou a propsito dos discursos, nas quais descreve o contexto, domstico e internacional, em que cada um deles surge como fato histrico. O talento analtico do Embaixador Seixas Corra representa um valioso aporte para a publicao e proporciona ao leitor uma compreenso mais completa dos documentos selecionados. , portanto, com especial satisfao que o Itamaraty, e sua Fundao Alexandre de Gusmo, editam verso atualizada deste relevante livro, cujo contedo constitui fonte de inspirao e aprendizado para todos os que nos interessamos, nos estudos ou na prtica, pelo trabalho da diplomacia brasileira em uma de suas vertentes definidoras a multilateral. Braslia, agosto de 2012.

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Introduo da Terceira Edio

Luiz Felipe de Seixas Corra

O presente volume adiciona s duas edies precedentes os quatro discursos de abertura do Debate Geral da Assembleia Geral da ONU pronunciados durante o segundo mandato do Presidente Lula da Silva (2007 a 2010) e o primeiro discurso pronunciado (2011) pela Presidente Dilma Rousseff. Em minhas duas introdues anteriores, assinalei os elementos de continuidade e mudana no discurso brasileiro ao longo das dcadas de intensa participao do Brasil na poltica multilateral. A anlise ento feita permanece vlida. Recomendo ao leitor que inicie a sua benevolente consulta a este livro por uma vista dolhos s introdues precedentes, pelo que possam valer como contextualizao e interpretao da evoluo da poltica exterior do Brasil tal como refletida nos nossos discursos. A poltica exterior de um pas , por definio, uma histria que no termina. Parte de determinados condicionantes histricos, geogrficos, sociais, que tendem a permanecer vigentes. Oscila, porm, em funo das circunstncias internas e reflete os desafios e as oportunidades que se apresentam no plano internacional. Representa em ltima anlise uma permanente busca de criar no plano externo possiblidades de viabilizao para os objetivos internos do pas. Nestes ltimos anos e muito particularmente no perodo coberto por esta terceira edio registrou-se uma inflexo positiva na participao do Brasil no cenrio internacional. O Brasil revelou-se particularmente ativo na busca de espaos mais afirmativos para a atuao dos chamados19

LUIZ FELIPE DE SIXAS CORRA

pases emergentes, em particular, a China, a ndia, a Rssia e a frica do Sul. Tanto nos foros multilaterais de comrcio (OMC), quanto nas plataformas polticas, de segurana, ambientais e de outra natureza, a participao do Brasil e dos demais pases emergentes se tornou mais afirmativa. Nossas reinvindicaes encontraram crescente receptividade, tanto mais porque sustentadas por importantes avanos no plano da integrao regional. Isto no aconteceu por acaso. Foi certamente fruto em grande medida da plena consolidao da democracia no Brasil, algo que vinhamos perseguindo intensamente desde o imediato ps-guerra, mas que teimava em nos escapar. A consolidao da democracia tornou-nos mais respeitados perante o mundo e perante ns mesmos. Deu credibilidade a nossas postulaes externas e, ao mesmo tempo, nos permitiu ocupar posies de preeminncia na conduo de praticamente todas as chamadas questes globais, assim como de alguns temas especficos mais diretamente vinculados paz e segurana internacional. No menos importante foi tambm o acentuado crescimento econmico do pas observado nos ltimos anos, acompanhado e isto particularmente importante de excepcionais avanos no plano da incluso social. Democracia, crescimento sustentado e incluso social constituem o trinmio que distinguiu positivamente o Brasil nos ltimos anos e que passaram a conferir ainda maior efetividade a nossa ao externa, tal como se observa na sequncia mais recente de nossos discursos na Assembleia Geral da ONU. Os ltimos anos foram tempos marcados pelo agravamento de situes de conflito em diversas reas, por ameaas de proliferao nuclear e, sobretudo, por uma solerte, crescente e ainda indefinida crise financeira. Nosso discurso manteve em tom elevado as reinvindicaes brasileiras por maior participao no processo decisrio internacional. Nossa voz parece estar sendo ouvida com crescente ateno! No logramos ainda o objetivo mais consistentemente exposto ao longo destes 67 anos de discursos na ONU: um assento permanente no Conselho de Segurana. Difcil dizer se estamos perto de alcanar este objetivo histrico da poltica exterior do Brasil. O certo que j estivemos mais longe. E o que mais importante, tal como decorre de nossos discursos: no perdemos a coerncia, nem tampouco a fora de nossas postulaes.

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Apresentao da Segunda Edio Celso Amorim Ministro das Relaes Exteriores

O Brasil nas Naes Unidas A abertura da Assembleia Geral das Naes Unidas um dos momentos mais importantes da diplomacia multilateral contempornea. Chefes de Delegao dos 192 Estados-Membros da ONU, hoje em dia muitas vezes Chefes de Estado e de Governo, apresentam comunidade internacional suas posies sobre uma vasta gama de temas. Os assuntos tratados vo desde a paz e a segurana internacionais at o combate fome e pobreza. nas Naes Unidas que ressoam, desde 1946, as vises nacionais sobre como a comunidade internacional deve agir para impedir a guerra, tragdia que est na origem da criao da ONU. Ali se articulam consensos legitimadores de temas com crescente impacto sobre a vida cotidiana das pessoas, como as questes referentes ao meio ambiente, aos direitos humanos, proteo de grupos vulnerveis e promoo do desenvolvimento econmico e social. Devemos s Naes Unidas um patrimnio de conquistas inestimveis. Sem a vontade poltica coletiva articulada em seus foros, talvez no tivesse sido possvel avanar to decisivamente no processo de descolonizao. A violncia do apartheid provavelmente teria durado mais tempo. Sem a presena das foras de paz da ONU, conflitos e guerras civis teriam seguramente prolongado o sofrimento de muitos povos.

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CELSON AMORIM

Claro, essas seis dcadas de histria no transcorreram sem revezes. Limitada por sua prpria natureza de instncia parlamentar amparada na igualdade jurdica dos Estados, a ONU muitas vezes no foi capaz de impedir que o uso da fora prevalecesse sobre a opo pelo dilogo como forma de resolver conflitos. A ideia de utilizar os discursos brasileiros no Debate Geral da ONU como base para uma viso histrica da diplomacia brasileira nasceu em 1995, ano do cinquentenrio da Organizao. Os discursos foram editados pela Fundao Alexandre de Gusmo sob a premissa de que constituem uma porta de entrada para quem deseja estudar a evoluo da poltica externa brasileira, em seus aspectos de continuidade e mudana. Os textos aqui recolhidos tm grande valor de referncia como uma apresentao global e consistente dessa poltica externa. Os discursos de abertura do Debate Geral sempre foram documentos cuidadosamente trabalhados, seja por seu valor externo, como apresentao das posies do Brasil, seja como indicao para a opinio pblica brasileira sobre os rumos da nossa ao internacional. Assim, podemos ver como, na primeira Assembleia Geral, o Brasil recebeu com entusiasmo a ideia da organizao de uma sociedade internacional que ia ao encontro da tradio pacifista que sempre orientou as relaes externas do Pas. Dezessete anos mais tarde, o ento Chanceler Joo Augusto de Arajo Castro pronunciava o emblemtico discurso dos trs Ds, que colocava o Desarmamento, o Desenvolvimento e a Descolonizao como trs temas fundamentais para a Organizao. Em seu primeiro pronunciamento na Assembleia Geral, em 2003, o Presidente Luiz Incio Lula da Silva reafirmou sua confiana na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivncia no interior das naes e no plano internacional. Os textos obviamente no esgotam o conhecimento de nossa poltica multilateral. As intervenes e votos no Conselho de Segurana e as posies brasileiras em tantos outros foros so indispensveis para que se tenha uma ideia completa da matria. O discurso na abertura da Assembleia Geral, no entanto, o grande marco pblico dessa poltica, no apenas pela importncia da ONU ou pelo papel do Brasil no moderno multilateralismo, mas tambm pelas expectativas que cria, j que por tradio o Brasil que inaugura o Debate Geral. Esta edio dos pronunciamentos brasileiros dos ltimos 61 anos oferece contribuio valiosa historiografia diplomtica brasileira. Mais do que isso, apresenta a um pblico cada vez mais atento agenda externa do Brasil uma viso abrangente de como o Pas percebe a22

APRESENTAO DA SEGUNDA EDIO

realidade internacional ao longo dos anos. , portanto, muito bem-vinda e oportuna a iniciativa da Fundao Alexandre de Gusmo de proporcionar a estudiosos e interessados mais esta ferramenta para uma melhor compreenso das relaes internacionais do Brasil.

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Introduo da Segunda Edio

Luiz Felipe de Seixas Corra

A base do conhecimento, da anlise e da transmisso da Histria no dada necessariamente pelos fatos em si mesmos, ou pelas imagens dos fatos, mas sim pelos textos a eles referentes. Sabem, porm, os historiadores, em particular os que se dedicam hermenutica, que o significado dos textos, antes de constituir um dado objetivo da realidade, algo passvel, portanto, de uma determinao cientfica, , sobretudo, uma emanao cultural, sujeita aos misteriosos caprichos da interpretao e da subjetividade. Em princpio, os textos tero tantos significados quantos forem os autores que se dedicarem a analis-los, cada qual envolto em suas prprias circunstncias. Da a importncia de procurar juntar sempre que possvel os textos a suas respectivas interpretaes. A edio original deste livro teve este cuidado. Foi publicada em 1995, ao ensejo das comemoraes do cinquentenrio da Organizao das Naes Unidas. A tarefa de organiz-la foi-me confiada pelo ento Presidente da FUNAG, Embaixador Joo Clemente Baena Soares. Tratava-se de compilar, contextualizar e analisar os discursos pronunciados pelos Chefes das Delegaes do Brasil na abertura do Debate Geral de todas as sesses da Assembleia Geral da ONU realizadas, desde a primeira, em 1946, at a quinquagsima em 1995. Pus-me ao trabalho com muito gosto. Desde o perodo, entre 1971 e 1974, que passara como Segundo Secretrio de Embaixada na Misso do Brasil junto ONU, ento sob a chefia do Embaixador Srgio Armando Frazo, interessara-me pelo processo de elaborao dos25

LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRA

discursos brasileiros no Debate Geral. Havendo participado da equipe de redao dos discursos das Assemblias de 1971, 1972 e 1973, examinei antecedentes, comparei as orientaes e as nfases postas nos diferentes textos ao longo do tempo. Dei-me, desde ento, conta do valor singular dos nossos discursos na abertura do Debate Geral como fonte primria de anlise da trajetria histrica recente da poltica exterior do Brasil. Em 1981, recolhi e examinei todos os discursos at ento pronunciados. Usei-os no meu trabalho para o CAE, Da Confrontao Confrontao: As Relaes EUA-URSS O Brasil e as Superpotncias, no qual procurei analisar a evoluo da poltica do Brasil com relao aos EUA e a URSS sob o prisma de sua enunciao nos nossos discursos de abertura do Debate Geral. Em diferentes fases da carreira, mantive acompanhamento constante e interessado sobre nossos discursos, em alguns dos quais, mais adiante, como Secretrio-Geral do Ministrio em 1992 (XLVII Sesso) e novamente entre 1999 e 2001 (LIV, LV e LVI Sesses), voltei a participar de alguma forma. Ao elaborar a edio original deste livro em 1995, vali-me da experincia acumulada, em particular com a preparao da tese do CAE. A transcrio de cada um dos discursos foi precedida por um breve texto, no qual procurei contextualiz-los em funo das circunstncias ento prevalecentes, tanto no quadro interno do Brasil, quanto no mbito das relaes internacionais. Tratei de ser o mais objetivo possvel, evitando os riscos inerentes a qualquer anlise mais aprofundada texto por texto. Ao expor a cada ano a viso do Brasil sobre a realidade internacional, os discursos contm em si mesmos uma anlise institucional dos fatos e das situaes, sob o ponto de vista da diplomacia brasileira. Restringi, portanto, minha breve anlise pessoal Introduo geral do livro, muito embora cada contextualizao, na medida em que pressupe uma determinada seleo de fatos, possa tambm ser estritamente considerada como uma forma de anlise. Neste ano de 2006, honrou-me o Ministro Celso Amorim com a incumbncia de atualizar a edio original, mediante a adio dos discursos subsequentes. Novamente dediquei-me tarefa com muito gosto. Pareceu-me apropriado reter o formato da edio de 1995, mantendo-se o modelo ento utilizado. Mantiveram-se tambm, tanto a apresentao feita pelo ento Ministro Luiz Felipe Lampreia, quanto a introduo que originalmente redigi, na qual exponho: 1. A importncia histrica do sistema multilateral da ONU, em particular para o Brasil;26

INTRODUO DA SEGUNDA EDIO

2. As circunstncias que singularizam o discurso do Brasil, invariavelmente o primeiro na sesso de abertura do Debate Geral de cada Assembleia; 3. As diferentes etapas percorridas pelo Brasil no cenrio internacional e, em particular, os antecedentes da participao do Brasil no processo multilateral; e 4. Os principais valores que informam historicamente a formulao, a enunciao e a implementao da poltica exterior do Brasil. Comentava ento que, em sua poltica multilateral, a diplomacia brasileira sempre buscou servir simultaneamente como instrumento para a preservao dos valores ticos do pas e do respeito ao Direito Internacional, quanto como veculo para a insero competitiva do Brasil no cenrio internacional. Esses mesmos objetivos acham-se presentes nos discursos que se seguiram. notvel a coerncia com que o Brasil costuma apresentar-se diante de si mesmo e diante do mundo. As circunstncias mudam. H momentos em que as expectativas positivas so mais evidentes, outros em que no h muito lugar para otimismo. Em algumas ocasies, as iluses parecem prevalecer sobre as realidades. Muitas vezes, as formulaes so precisas e as enunciaes assumem certo vis prescritivo. Em outros momentos, porm, o componente utpico do discurso predomina. Mas esto sempre presentes, de alguma forma, as demandas consistentes do Brasil pela transformao da ordem internacional, por sua permeabilidade s realidades emergentes, e pela consolidao da ONU, de jure e de facto, como expresso formal da legitimidade na conduo dos grandes temas polticos, de segurana, econmicos e sociais da agenda internacional. Os onze anos cobertos pela presente edio referem-se aos mandatos dos Presidentes Fernando Henrique Cardoso (at 2003) e Luiz Incio Lula da Silva (2003-2006). Nos discursos de ambos os perodos, esto presentes, embora com distintas modulaes, diversos componentes semelhantes, entre os quais o de reforma da ONU e a demanda do Brasil por um assento permanente no Conselho de Segurana; a prioridade latino-americana da poltica exterior do Brasil; a crescente tendncia singularizao da Amrica do Sul como espao poltico e de integrao diferenciado; o apego do Brasil aos valores do multilateralismo, da democracia, dos direitos humanos, do desenvolvimento econmico com justia social; do repdio ao terrorismo; da necessidade de uma soluo para o conflito palestino-israelense que conduza efetiva institucionalizao do Estado Palestino; da necessidade de encaminhamento adequado para os gravssimos problemas africanos.27

LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRA

Em praticamente todos os textos, percebe-se a importncia atribuda pelo Brasil s negociaes comerciais multilaterais, na medida em que possam contribuir para a remoo das distores e desigualdades entre os pases desenvolvidos e os pases em desenvolvimento. As nfases compreensivelmente variam e algumas singularidades so perceptveis. Nos discursos do perodo do Governo do Presidente Fernando Henrique, h uma insistncia especial nos temas da globalizao, na abertura econmica e comercial, na liberalizao econmica em geral, nos grandes riscos acarretados pela volatilidade dos movimentos de capitais, na necessidade de renovar as instituies de Bretton Woods. H tambm extensas referncias temtica do desarmamento. Nos discursos do perodo do Governo do Presidente Lula, por sua vez, verifica-se maior nfase na temtica da justia social, acentuando-se os programas levados a cabo pelo Governo na rea social como matriz para projetos de natureza global. Os temas ligados guerra contra a fome e a pobreza tomam preeminncia sobre as formulaes vinculadas estabilidade macroeconmica e volatilidade dos mercados financeiros internacionais. As menes Amrica Latina cedem definitivamente lugar a referncias Amrica do Sul. O leitor passa a ter, portanto, sua disposio, com esta edio atualizada, a integralidade dos discursos brasileiros na abertura do debate geral da Assembleia de 1946 at 2006. Ter ainda, no que se refere ao ano de 2000, o discurso do Vice-Presidente Marco Maciel na Sesso Plenria da Cpula do Milnio; no que se refere a 2004, os discursos do Presidente Lula durante reunio da Comisso Mundial sobre a Dimenso Social da Globalizao e por ocasio da Reunio de Lderes Mundiais para a Ao contra a Fome e a Pobreza; e, no que se refere a 2005, os discursos do Presidente Lula no debate de alto nvel sobre Mecanismos de Financiamento ao Desenvolvimento, na Reunio de Cpula do Conselho de Segurana e na Reunio de Alto Nvel da AGNU sobre a Implementao das Metas do Milnio. Estes textos adicionais so imprescindveis para a contextualizao e o correto entendimento dos discursos proferidos no Debate Geral das Assemblias daqueles anos. Cada um dos discursos transcritos e brevemente contextualizados no presente volume importante, tanto em si mesmo, quanto, ao mesmo tempo, como parte de um corpus de poltica exterior que se desdobra ao longo do tempo. Cada um parte de um dilogo de duplo sentido entre os responsveis pela poltica exterior do Brasil e as suas circunstncias: um dilogo em tempo real entre os fatos e sua apreciao e, simultaneamente,28

INTRODUO DA SEGUNDA EDIO

um dilogo em tempo diferido entre o Brasil e suas tradies diplomticas, ou seja, entre o Brasil, sua autopercepo, sua viso do mundo e sua insero, real ou imaginria, no mundo. Tomados em seu conjunto, os discursos transcritos no presente volume contam uma histria atraente e singular, uma histria inacabada, in fieri, e fornecem ao leitor uma ideia fidedigna do incessante debate entre, de um lado, a formulao da poltica exterior do Brasil e, de outro, as vicissitudes que determinaram o passado do Pas, os riscos e as oportunidades que caracterizam o seu presente e as expectativas to longamente depositadas no seu futuro.

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Apresentao da Primeira Edio Luiz Felipe Lampreia Ex-Ministro de Estado das Relaes Exteriores

Um compndio valioso Esta edio dos pronunciamentos dos Chefes de Delegaes brasileiras s sesses de abertura da Assembleia Geral das Naes Unidas ao longo dos ltimos cinquenta anos constitui mais uma contribuio da Fundao Alexandre de Gusmo (FUNAG) ao conhecimento da histria e da doutrina diplomticas do Brasil. Ao mesmo tempo em que assinala para ns, do Itamaraty, a comemorao do cinquentenrio da fundao das Naes Unidas, o presente esforo editorial coloca disposio do pblico interessado na poltica externa brasileira um valioso compndio de textos fundamentais da nossa diplomacia. Nesses textos, encontra-se a sntese por excelncia da viso de mundo e dos projetos da diplomacia brasileira, atualizada a cada ano, medida em que evoluam as relaes internacionais e medida em que evolua a nossa prpria concepo do nosso pas e do mundo. Compilada pela FUNAG, a coletnea est apresentada pelo Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corra, diplomata de grande experincia e reconhecida sensibilidade poltica, que foi tambm responsvel pelos textos que situam cada discurso em seus contextos interno e internacional. A obra passa, assim, a constituir uma fonte autorizada de referncia histrica e doutrinria. Ao longo dos cinquenta e dois discursos aqui

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LUIZ FELIPE LAMPREIA

compilados, encontram-se expostos os grandes temas que marcaram a histria mais recente das relaes internacionais e que por isso mesmo concentram a ateno do Governo brasileiro no cenrio internacional ao longo deste meio sculo de ps-guerra. Neles encontram-se tambm as grandes contribuies brasileiras ao debate que as Naes Unidas promoveram ao longo de sua existncia, transformando qualitativamente o direito e a normatividade internacionais. O desenvolvimento, o desarmamento, a segurana econmica coletiva, o hiato normativo entre a Carta e a evoluo das relaes internacionais, o conceito mais moderno de desenvolvimento sustentvel e outros avanos polticos que receberam uma notvel contribuio brasileira encontram-se aqui perfeitamente refletidos e analisados segundo a tica diplomtica do momento em que se fizeram os discursos. nfases, avaliaes, intuies e sensibilidades na poltica externa brasileira revelam-se com particular acuidade nos discursos de abertura da Assembleia Geral. Ao mesmo tempo, a leitura destes discursos vai revelando ao leitor, passo a passo, um grande e bem-sucedido esforo de aprendizado realizado pela diplomacia brasileira nestes ltimos cinquenta anos: o aprendizado do multilateralismo. Verdadeira escola de diplomacia moderna, marca distintiva por excelncia as Naes Unidas serviram ao mesmo tempo de arena poltica e de foro de aperfeioamento da convivncia internacional, traos que os pases forosamente tiveram de internalizar em suas polticas externas. Documento poltico por excelncia, registro e memria da poltica defendida e implementada por um Governo, o discurso nas Naes Unidas, paradigma do discurso diplomtico refletido e cuidadosamente elaborado, ganha, com a perspectiva contextual em que colocado nesta coletnea, a sua verdadeira dimenso histrica, ao mesmo tempo em que revela as linhas de coerncia da diplomacia brasileira. Por tudo isso, esta coletnea apresenta-se como uma iniciativa oportuna e valiosa, que ajudar a todos a compreender melhor um perodo da nossa histria diplomtica que simbolicamente se reinaugura com as comemoraes do cinquentenrio das Naes Unidas, s quais o Governo brasileiro e particularmente o Itamaraty tm o agrado de se somar com esta edio.

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Introduo da Primeira Edio

Luiz Felipe de Seixas Corra

Em outubro de 1995, a Organizao das Naes Unidas (ONU) comemora cinquenta anos de existncia. Necessidade e esperana, razo e iluso, realidade e utopia, sob qualquer ponto de vista, as Naes Unidas constituem, desde a sua fundao em 1945, o ponto de referncia central do processo de relaes internacionais. Para a ONU confluem as presses e contrapresses prprias de um sistema internacional descentralizado e tendencialmente anrquico; nela se articulam as coalizes de interesses e se expressam as configuraes de poder que movem o processo decisrio internacional; e dela emanam determinaes de diversa natureza destinadas a introduzir na ordem internacional elementos de normatividade e de cooperao. As Naes Unidas so um sistema de instituies que, com base na Carta de So Francisco, constri gradativamente o corpus jurdico regulador da vida internacional. So ao mesmo tempo um fim e um processo. impossvel hoje em dia conceber o mundo sem a Organizao das Naes Unidas. Pode-se criticar este ou aquele aspecto de sua operao, apontar este ou aquele fracasso, neste ou naquele campo de atuao. Mas foroso reconhecer a sabedoria de sua concepo original, os mritos dos resultados que alcanou em sua operao e, sobretudo, a sua capacidade de se renovar mediante a incorporao permanente de novos temas, de novos conceitos e de crescentes reas de atuao. Ao cabo deste meio sculo de existncia, a ONU se tornou, tanto quanto os Estados-Membros que a integram, um elemento matricial da ordem internacional.33

LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRA

A diplomacia brasileira parte original desse que se tornou o grande projeto coletivo da sociedade internacional no sculo XX. Membro fundador da Organizao, o Brasil sempre atribuiu ONU um papel central na formulao e na execuo de sua poltica externa. A qualidade de Estado-Membro ativo e plenamente participante da ONU tornou-se parte indissocivel da personalidade internacional do Brasil. Ao se comemorar o cinquentenrio da Organizao, portanto, nenhuma iniciativa poderia ser mais apropriada do que recuperar as palavras do Brasil na Assembleia Geral. Com a publicao de seus discursos no Debate Geral, a diplomacia brasileira exalta a Organizao, ao mesmo tempo que se reencontra com o seu prprio trajeto. Ao faz-lo, constri um monumento diplomtico que consagra exemplarmente a poltica externa do Brasil, sem dvida, um dos mais valiosos patrimnios morais da sociedade brasileira. Nas pginas que se seguem, o leitor encontrar todos os discursos pronunciados pelos Chefes das Delegaes do Brasil s cinquenta Sesses ordinrias realizadas pela Assembleia Geral da ONU, de 1946 a 1995. Os discursos acham-se reproduzidos na ntegra. Dos textos que no se encontraram em portugus foi providenciada a devida traduo, j que, at a dcada dos setenta, era costume que os discursos fossem pronunciados numa das lnguas oficiais, quase sempre o ingls. Cada discurso est precedido de uma breve introduo. Nela se expem as principais variveis internas e externas que condicionaram o momento histrico em que o texto foi produzido, chamando-se ateno para os elementos distintivos do discurso e analisando-se sua insero no fluxo de formulao e enunciao da poltica externa brasileira. Mediante esta contextualizao, o que se pretende dar ao leitor algumas chaves para que possa acompanhar e formar o seu prprio juzo sobre a poltica externa brasileira contempornea. *** Desde a IV Assembleia Geral, o Brasil tem sido o primeiro pas a ocupar a tribuna do Debate Geral. Acredita-se que essa prtica se iniciou em 1949, em funo do clima de confrontao que ento se observava, com vistas a evitar que fosse concedida a primazia seja aos EUA, seja URSS. A partir de ento, a cada ano, antes de abrir as inscries para o Debate Geral, o Secretrio-Geral da ONU dirige nota Misso do Brasil em Nova York em que indaga se, de acordo com a praxe, o Chefe da delegao brasileira desejar ser o primeiro orador. A resposta invariavelmente afirmativa34

INTRODUO DA PRIMEIRA EDIO

consulta do Secretrio-Geral assegura a vigncia de uma tradio que honra e distingue o Brasil. Essa circunstncia sedimentou na diplomacia brasileira uma valorao elevada da importncia dos discursos de abertura do Debate Geral, que foram, na realidade, durante muitos anos o principal veculo de que dispunha a diplomacia brasileira para se fazer ouvir internacionalmente. Contrariamente grande maioria das delegaes que intervm no Debate Geral, mais preocupadas com questes tpicas, os Chefes de Delegao do Brasil, por serem os primeiros a falar, costumam apresentar discursos abrangentes, em que a avaliao da situao internacional figura como pano de fundo para a enunciao da viso brasileira do mundo e para a apreciao das principais questes internacionais. Alguns discursos so mais explcitos, outros algumas vezes reticentes; alguns revelam-se inovadores, outros conservadores; alguns mais acadmicos, outros mais orientados para o plano da operao diplomtica. Tomados em seu conjunto, estes textos constituem uma espcie de livro de horas, um brevirio da poltica externa brasileira. Atravs de seu estudo, torna-se possvel discernir os diferentes perodos que caracterizaram a atuao diplomtica do Brasil, as diferentes nfases que assinalaram os diferentes perodos, os constrangimentos internos e externos que prevaleceram circunstancialmente e, bem assim, identificar os elementos de permanncia e continuidade que se manifestam na projeo externa do Brasil. Alm de amplo, o material revela-se valioso do ponto de vista de sua qualidade documental. O discurso brasileiro linear, objetivo e fidedigno. No se observam ambivalncias entre as polticas enunciadas e as linhas de ao diplomtica implementadas. Em poltica externa, discurso e ao na verdade se complementam e se sobrepem. Frequentemente o discurso a ao e a ao o discurso. No caso de um pas como o Brasil, cuja capacidade de se expressar na esfera internacional por meios de poder limitada, o discurso diplomtico passa a ser o meio por excelncia de definio de polticas, de mobilizao de coalizes de interesses, de transao, de busca de equilbrios. Um grande lder poltico dizia ter ouvido ao longo de sua vida parlamentar muitos discursos que o haviam feito mudar de opinio a respeito das questes em debate. Nenhum discurso, no entanto, jamais havia mudado o seu voto. possvel que o discurso da diplomacia brasileira em Nova York nestes cinquenta anos no tenha sido capaz de mudar os votos de outras delegaes. Mas seguramente ter sido fundamental para disseminar na comunidade internacional a imagem de35

LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRA

um pas que se distingue pela seriedade, pelo sentido de responsabilidade e pela alta qualidade da representao externa de seus interesses. *** Para que se possa apreciar adequadamente a evoluo da poltica externa brasileira luz dos textos recolhidos no presente volume, convm recordar em linhas muito gerais as etapas historicamente percorridas pelo pas no cenrio internacional e, em particular, os antecedentes da participao do Brasil no processo multilateral. Como instrumento de defesa e promoo dos interesses fundamentais do Estado no plano da convivncia internacional, a poltica externa do Brasil pode ser apreciada em trs grandes momentos. O momento inicial se estende por trs sculos. Abre-se nas negociaes entre Portugal e Castela que culminaram com o Tratado de Tordesilhas de 1494, afirma-se no sculo XVIII com os Tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777) e culmina com a transplantao da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808. Nesta longa fase, o vetor fundamental da projeo externa do territrio que gradualmente evoluiria para a formao do Estado do Brasil foi a delimitao do espao nacional. A fase seguinte corresponde ao perodo monrquico, embora na verdade se estenda at Rio Branco. o momento em que a sociedade brasileira, j plenamente estruturada em um Estado, busca a consolidao do espao nacional, mediante a sua ocupao efetiva, a sua defesa, sobretudo na vertente platina, e a definitiva configurao das fronteiras territoriais. E o terceiro momento, que se prolonga at os dias de hoje, pode ser caracterizado como o do desenvolvimento do espao nacional, ou seja, a utilizao da relao externa como fator de arregimentao de recursos, de negociao de coalizes e de neutralizao de obstculos ao desenvolvimento econmico e social do Brasil. A participao do Brasil nos foros multilaterais internacionais fruto deste terceiro e atual momento da poltica externa. Inaugura-se no princpio do sculo, aps a proclamao da Repblica, com a busca de uma parceria com a potncia emergente de ento, os EUA. At Rio Branco, a poltica externa brasileira movia-se em funo de dois objetivos complementares decorrentes do imperativo de consolidar o espao nacional: administrar a preeminncia britnica e preservar a integridade da fronteira sul ameaada ocasionalmente, ora pelo Paraguai, ora pelo Uruguai e permanentemente pela Confederao Argentina. No obstante as suas convices monrquicas e a sua formao europeia, Rio Branco36

INTRODUO DA PRIMEIRA EDIO

percebeu os riscos de marginalizao a que o Brasil estava submetido no contexto internacional eurocntrico e anteviu o deslocamento dos centros de poder que se efetuaria em direo Amrica do Norte. Desde Rio Branco, a poltica externa brasileira passou a procurar simultnea ou sucessivamente a aliana com os EUA e a ampliao da insero internacional do Brasil como fatores de desenvolvimento econmico e social do pas. Os perodos de maior alinhamento com os EUA coincidem com fases da vida nacional em que as correlaes de foras internas permitiram a implantao de modelos polticos que privilegiavam a obteno, atravs da aliana norte-americana, dos recursos e da cooperao necessria para sustentar o processo de desenvolvimento econmico do pas. Inversamente, os perodos de atenuao da aliana coincidem com a vigncia de propostas alternativas mais diversificadas, no exclusivamente predicadas na expectativa da cooperao norte-americana. Nas ltimas dcadas, luz das transformaes ocorridas no Brasil e no mundo, os discursos brasileiros na ONU revelam como a aliana deixou de apresentar um valor referencial unvoco. No mais, como no passado, o padro de sinal positivo ou negativo de mobilizao da diplomacia brasileira, cujos horizontes alargados passaram a visualizar na estratgia do universalismo a forma adequada de promover a insero competitiva do Brasil no mundo. No plano multilateral, o primeiro momento que assinala a internacionalizao da projeo externa do Brasil a II Conferncia de Paz da Haia em 1907. Na Haia, a diplomacia brasileira faria a sua estria nos foros internacionais com um discurso afirmativo e reivindicatrio em que se propunha desempenhar, como pas intermedirio, um papel na elaborao das normas que deveriam reger os grandes temas internacionais de ento: mitigao das leis e costumes da guerra, codificao do direito da neutralidade, reforma da Corte de Arbitragem e estipulao da arbitragem compulsria. Da participao do Brasil na Conferncia da Haia sob a liderana de Ruy Barbosa derivam pelo menos dois dos principais paradigmas seguidos desde ento pela diplomacia brasileira: o paradigma da singularidade do Brasil e o paradigma do respeito ao Direito Internacional. perceptvel nas formulaes de Ruy Barbosa a preocupao em singularizar o Brasil no contexto internacional como um pas que no se sente confortvel com tipificaes apriorsticas e que rejeita enquadramentos em grupos ou movimentos. Vem igualmente da Haia a pretenso do Brasil de atuar no concerto das naes no com o peso de suas armas ou com eventuais ambies de potncia, mas com a fora de suas razes e a ascendncia do seu Direito. Segundo expressaria37

LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRA

significativamente Ruy Barbosa ao analisar os resultados da Conferncia, a presena internacional brasileira se construiria de trabalho, de instruo, de energia, de f, de aliana entre a tradio e o progresso, de amor lei e ao direito, de averso imoralidade e desordem. A participao na Conferncia da Haia ensejou a formulao das bases ideolgicas para a posterior deciso brasileira de aderir causa aliada na Primeira Guerra Mundial e, em seguida ao trmino do conflito, de participar da Conferncia de Versalhes, onde o Brasil foi oficialmente classificado, para fins de reparaes, como potncia de interesses limitados. Os paradigmas da Haia foram essencialmente os mesmos que orientaram a participao do Brasil na Liga das Naes e que influram na deciso de abandonar a Organizao em 1926, quando a pretenso brasileira de ocupar um assento permanente no Conselho foi baldada pela indicao da Alemanha. Ao se retirar, por razes de princpio, de uma Organizao que pouco depois desapareceria sob a violncia desatada pela prpria Alemanha, o Brasil sentiu-se reforado nas convices de sua singularidade e de seu apego ordem e moralidade internacional. E foi movido por estas convices que, tendo participado da Segunda Guerra no teatro europeu, o Brasil se juntou ao ncleo original de pases que fundaram a Organizao das Naes Unidas. Os vetores essenciais de poltica permaneciam os mesmos: reforar a aliana com os EUA e ampliar a insero internacional do pas com vistas ao seu pleno desenvolvimento. Tambm se mantinham os paradigmas da Haia, apesar da decepo causada pela no incluso do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurana devido oposio da URSS, ambivalncia do apoio norte-americano e a determinao da Frana de manter um status de Grande Potncia. A esse propsito, o Chefe da Delegao do Brasil Conferncia de So Francisco, Ministro Pedro Leo Velloso, observa em seu Relatrio que no descurou de sondar a possibilidade de obter para o Brasil tratamento idntico ao que havia sido acordado Frana, em consonncia com o que tinha sido acertado com os demais quatro membros permanentes do futuro Conselho (EUA, Gr-Bretanha, URSS e China) na reunio preparatria de Dumbarton Oaks. Mas, verificando que as Grandes Potncias no se mostravam dispostas, por prudncia, a permitir que em So Francisco fosse reaberta a discusso em torno do aumento do nmero de lugares permanentes no Conselho de Segurana, Leo Velloso achou melhor abster-se, segundo expe no Relatrio, registrando apenas, em carta ao Secretrio de Estado dos EUA a decepo que poderia causar opinio pblica a excluso do Brasil.38

INTRODUO DA PRIMEIRA EDIO

Em So Francisco, ficariam plasmados pela atuao da Delegao do Brasil pelo menos trs grandes temas que se inscreveriam, da mesma forma que os paradigmas da Haia, como elementos constantes do discurso brasileiro na ONU: as questes geminadas do veto e do funcionamento do Conselho de Segurana, a reforma da Carta e o desenvolvimento econmico e social. Quanto ao veto, a posio brasileira foi originalmente ambgua. Leo Velloso recorda em seu Relatrio que a Delegao do Brasil manifestou formalmente durante o debate da questo em So Francisco que o Brasil seria, por princpio, contrrio outorga do veto... (e que), portanto, apoiaria as emendas que restringissem o seu uso, mas, para dar mais uma prova do desejo de auxiliar o bom xito da Conferncia, no caso de nenhuma emenda ser adotada e o seu voto ser necessrio para formar maioria, a Delegao estaria pronta a votar em favor do texto original, isto , do veto. Quanto reforma da Carta, a delegao do Brasil chegou a propor uma emenda que previa a reunio de uma Assembleia Geral revisora a cada cinco anos. Ao final, contentou-se com a frmula constante da Carta que deriva de uma proposta norte-americana e que se revelou utilizvel apenas para o aumento dos membros no permanentes do Conselho de Segurana e do ECOSOC. Leo Velloso vincula no seu relatrio o tema do veto com o da reforma da Carta ao assinalar que o Brasil aceitou o primeiro por no poder agir de outra forma: se o tivssemos feito, de certo no poderamos assinar o Estatuto da nova Organizao Mundial e teramos de ficar margem da comunidade das Naes. Nossos esforos (...) foram no sentido de atenuar a rigidez do veto com a reviso (da Carta). No que se refere ao tema do desenvolvimento econmico e social elemento que viria gradualmente a se transformar na constante mais vigorosa do discurso brasileiro na ONU notvel a anteviso revelada em So Francisco. Registra-se no Relatrio a determinao da Delegao do Brasil de bater-se por dar ao ECOSOC um carter mais dinmico, a fim de impedir que a (sua) preocupao especial fosse a manuteno de um status quo econmico para os pases de economia j mais desenvolvida ou para a reconstruo econmica das naes devastadas pela Guerra. Acham-se sintetizadas nessa formulao as bases do que viria a se constituir na diplomacia econmica multilateral do Brasil. *** Tal como reproduzidos nas pginas adiante, os discursos brasileiros nas cinquenta Assemblias Gerais que se seguiram conferncia fundacional de So Francisco refletem com fidelidade o39

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percurso trilhado pela diplomacia brasileira nos ltimos cinquenta anos. Demonstram que, no obstante ocasionais mudanas de nfase ou de orientao, a diplomacia brasileira buscou invariavelmente servir como instrumento para a preservao dos valores ticos da paz e do respeito ao Direito Internacional, assim como para a insero competitiva do pas no cenrio internacional. Os discursos deixam entrever algumas das principais dicotomias que caracterizam o processo de formulao de poltica externa no Brasil: nacionalismo e internacionalismo; realismo e idealismo; pragmatismo e utopia; reivindicao e inveno; ocidentalismo e terceiro-mundismo; universalismo e particularismo; fatalismo e esperana; subjetivismo e objetivismo; democracia e autoritarismo; continuidade e mudana; e assim por diante. Essas dicotomias refletem as ambivalncias das mltiplas e muitas vezes contraditrias dimenses do Brasil, mas no obscurecem jamais a escala de valores ticos mediante a qual a diplomacia brasileira se prope a apreciar os fatos e distinguir o real do irreal, a iluso da realidade. Nestas cinco dcadas de poltica multilateral no foro das Naes Unidas, a diplomacia brasileira projetou sempre uma viso valorativa do mundo. A qualidade tica do discurso brasileiro se manifesta em formulaes permanentemente voltadas para a realizao no plano internacional dos objetivos de liberdade e igualdade inerentes condio humana. A utopia brasileira, tal como emerge da leitura destes textos a utopia da justia universal. Uma utopia que tem os olhos postos no porvir. Irrealizada. Irredenta. A utopia de um pas singular que busca encontrar-se consigo mesmo, ao mesmo tempo que procura construir o seu lugar na Histria. Os discursos reunidos neste livro representam, portanto, uma homenagem ao passado e uma oferta ao futuro. Honram a tradio diplomtica brasileira e obrigam as geraes vindouras.

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O trmino da Segunda Guerra Mundial desencadeia importantes transformaes no quadro poltico-institucional brasileiro. Rompida a censura imprensa, sucedem-se os manifestos de intelectuais e artistas em favor da restaurao da ordem democrtica e da convocao de eleies. Fundam-se os Partidos que dominariam a poltica brasileira at 1964: de um lado, a Unio Democrtica Nacional (UDN), que seria veculo das tendncias antivarguistas; e, de outro, o Partido Social Democrtico (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), congregando as foras conservadoras e trabalhistas ligadas ao sistema Vargas. Em outubro, o Presidente Getlio Vargas deposto pelos Chefes Militares e, em novembro, o candidato do PSD, General Eurico Gaspar Dutra elege-se Presidente da Repblica. Empossado em janeiro de 1946, o Presidente Dutra empreende a normalizao institucional do Brasil aps os quinze anos de excepcionalidade que se haviam iniciado com a Revoluo de 1930. Em setembro, promulgada a nova constituio, de orientao liberal, que restabelece o princpio da separao de Poderes e as eleies diretas em todo o pas. As transformaes em curso no Brasil obedeciam lgica de um quadro internacional que se caracterizava pela afirmao dos valores democrticos ocidentais vitoriosos na luta contra o totalitarismo nazifascista. A aliana ainda vigente entre as Grandes Potncias ocidentais e a Unio Sovitica permitia que dependncia estratgica do Brasil em relao aos EUA, se contrapusessem tendncias em favor da aproximao com a URSS. Com a derrocada do Estado Novo, a anistia de 1945 e o43

LUIZ FELIPE DE SEIXAS CORRA

novo Cdigo Eleitoral, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) emergiria da Guerra como fator relevante no cenrio poltico nacional. quela altura, o PCB era o nico Partido Comunista da Amrica Latina responsvel por uma tentativa revolucionria pela fora, a chamada intentona de 1935, que tantos e to intensos ressentimentos havia deixado nos meios militares. As relaes Brasil-URSS nunca haviam existido formalmente. O Brasil no reconhecera at ento o regime que emergia da Revoluo de 1917. Ao se aproximar o fim da guerra, essa situao se alteraria. Interessado em obter o beneplcito sovitico para as suas pretenses nos arranjos multilaterais que viriam a conformar a ordem internacional ps-conflito, o Governo brasileiro, mediante notas trocadas em Washington sob os auspcios dos EUA, reconheceria o Governo sovitico em abril de 1945. O domnio bipolar do mundo j se prenunciava. As relaes entre os EUA e a URSS, anteriormente perifricas a um cenrio que tinha na Europa os seus principais vetores de poder, passariam a se constituir no fenmeno central das relaes internacionais. A partir do final da Guerra at a derrocada da URSS, a histria das relaes internacionais seria a crnica da interao entre as duas superpotncias, sua permanente obsesso por segurana e sua competio por influncia ideolgica, poltica e econmica nas demais reas. Esse quadro levaria os EUA a logo procurar reforar suas alianas estratgicas. Bilateralmente associado ao sistema de defesa dos EUA, o Brasil mais adiante, em 1947, com o Tratado Interamericano de Assistncia Recproca (TIAR) incorporar-se-ia igualmente ao sistema de segurana coletiva regional. No Brasil, a aliana com os EUA gerava expectativas positivas. Acreditava-se na iminncia de um influxo de recursos norte-americanos para impulsionar o desenvolvimento do pas. Essas expectativas positivas no chegariam a se atenuar mesmo com a decepo surgida nas negociaes finais da Carta da ONU quando, apesar de anteriores insinuaes e algumas promessas de apoio por parte de autoridades norte-americanas, a pretenso brasileira de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurana da ONU viu-se frustrada pela indicao da Frana. Influenciado pelas transformaes em curso no mundo, o panorama poltico-institucional brasileiro se revelava complexo. relativa simplicidade do modelo getulista sucedia-se um processo institucional que se ressentia da inexistncia de modelos (a Repblica Velha no servia obviamente como padro de referncia), e que se achava limitado pela falta de coeso social do pas. Dividido internamente, o Brasil se dividiria tambm externamente em torno da confrontao sovitico-americana,44

O BRASIL NAS NAES UNIDAS 1946-2011

com a qual o debate poltico nacional passaria a interagir ideologicamente. Em 1946 o lder comunista Luiz Carlos Prestes declara publicamente que ficaria com a Unio Sovitica em caso de guerra entre esta e o Brasil. Meses depois sucede o episdio em que o lder da UDN, Octvio Mangabeira, beija as mos do General Eisenhower, em visita ao Rio de Janeiro. No de estranhar, pois, que os primeiros pronunciamentos do Brasil na Assembleia Geral tenham sido cautelosos. A Primeira Assembleia Geral foi composta de duas partes. A primeira, de carter inaugural, realizou-se em Londres. O discurso da delegao do Brasil, pronunciado pelo Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas reveste-se de acentuado contedo moralista e at certo ponto mstico. Prope-se a configurao de uma comunidade intelectual de naes e a formao de uma nica casa espiritual para eliminar a guerra, a doena e a necessidade, expresses que se usavam para designar o que mais adiante viria a ser conhecido como segurana internacional e desenvolvimento econmico e social. de notar a referncia inevitabilidade da difuso da cincia csmica ento liberada, como prenunciadora dos problemas que viriam a ser criados com a proliferao nuclear. A segunda parte da Primeira Assembleia Geral transcorreu em Nova York. Ao intervir no Debate Geral, o Embaixador Pedro Leo Velloso Netto revela expectativas benevolentes em tomo dos ideais da Organizao e no deixa de desvendar nas entrelinhas algum ressentimento pelo fato de o status do Brasil no ter sido elevado, apesar do esforo de participao na Guerra. Ainda estavam vivas as sequelas do episdio da retirada do Brasil da Liga das Naes ao no serem atendidas as pretenses brasileiras de um assento permanente no Conselho. Passando ao largo dos problemas que dividiam o Brasil e das grandes questes ideolgicas que ensombreciam o cenrio internacional, Leo Velloso projeta a imagem de um pas amadurecido, guiado pela tica e preparado para atuar com responsabilidades crescentes no plano externo. Admitindo, porm, que a paz, no obstante toda a construo jurdica da Carta de So Francisco, repousava efetivamente nas Grandes Potncias, o Representante do Brasil manifesta-se disposto a aceitar o instituto do veto como maneira pragmtica de obter resultados. Enfatizando os objetivos de segurana da Organizao, Leo Velloso identifica na constituio do Stqff Committee do Conselho de Segurana a principal caracterstica que diferenciaria positivamente a Carta de So Francisco do Pacto da Liga das Naes. E, prenunciando uma linha que viria a se constituir em vertente essencial da poltica externa brasileira, refere-se importncia que o Brasil desde ento atribua ao trabalho do Conselho Econmico e Social.45

I Sesso Ordinria da Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas 1946 Primeira Parte

Embaixador Luiz Martins de Souza Dantas2

Em nome do povo brasileiro e de seu Governo, gostaria, em primeiro lugar, de expressar o quanto meu pas grato a esta augusta Assembleia pelo sincero voto de confiana que lhe foi dado quando de sua eleio para o Conselho de Segurana das Naes Unidas. Deste modo desejastes registrar vossa simpatia por nossas tradies pacficas e por nossa contribuio nos sacrifcios incorridos na luta pela liberdade e dignidade humana. A Repblica dos Estados Unidos do Brasil nunca cessou de trabalhar pela paz e tem a satisfao de ter sido a primeira nao a introduzir em sua Constituio uma clusula que prescreve arbitragem compulsria para todos os conflitos internacionais. Sua histria diplomtica foi sempre escrita sob a clara luz do dia e exibe uma sucesso de tratados e acordos selados com o esprito do entendimento e da solidariedade. Recorreu s armas apenas para coloc-las a servio da causa geral envolvendo povos cuja independncia e integridade territorial estavam ameaadas. Seu sangue foi misturado ao dos Aliados, seus recursos foram postos disposio de todos, e seu nico desejo foi o de servir causa da paz internacional e da segurana coletiva. devido fora desses mritos e em nome de nossos soldados que deram suas vidas pela vitria comum que nos posicionamos ao vosso2

Luiz Martins de Souza Dantas, nascido no Rio de Janeiro, em 17 de fevereiro de 1876. Bacharel em Direito pela Faculdade de So Paulo. Adido de Legao em 2/3/1897. Embaixador em 1/11/19. Duas vezes Ministro de Estado das Relaes Exteriores, interino, no perodo de 1913 a 1917. Serviu como Delegado do Brasil junto Liga das Naes, em Genebra, em 1924 e 1926. Paris, em abril de 1954.

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LUIZ MARTINS DE SOUZA DANTAS

lado para trabalhar pela reconstruo, dever de todos ns. Tendo em vista esta finalidade, no pouparemos esforos e nem haver dificuldade que nos faa recuar. A tarefa a ser cumprida por demais fina e nobre para que sejam admitidos pensamentos impuros ou preocupaes menores. Assumimos sinceramente todas as obrigaes que nossa posio nas Naes Unidas possa implicar. O problema que se coloca agora diante dos povos que tenham passado pelo teste de terrveis catstrofes o de substituir o interesse prprio, excludente dos direitos de terceiros, por uma avaliao de deveres mtuos. Segundo a admirvel frase de So Paulo, somos todos membros uns dos outros. Portanto, esforos coletivos deveriam ser coordenados para que se preserve e aperfeioe a sociedade humana considerada como uma unidade indivisvel da qual as diversas naes so necessariamente rgos constituintes. Se preciso for, para a obteno desta unidade, cada nao deve aprender a subordinar sua soberania ao interesse prevalecente da humanidade como um todo; e se, dentre as Naes Unidas, h algumas mais poderosas que outras, tal superioridade deve servir apenas para produzir maior devoo causa comum. Somos chamados a construir uma organizao muito promissora, mas no nos esqueamos, ao iniciarmos este grande trabalho, da lio vinda do passado. Nenhuma fora estritamente temporal pode ter a expectativa de pr um termo s disputas internacionais. Antes que as armas se calem para sempre, o corao do homem deve ser desarmado; deve ser drenado de todos os preconceitos quanto raa, nacionalidade e religio; deve ser purgado dos pecados da ambio e do orgulho; devendo ser preenchido, em lugar disso, de esperana e sentimento fraterno. Deve-se erigir um sistema de moralidade internacional, extrado de todo o tipo de fora espiritual, e dever ser esta a moralidade orientadora dos tratados e acordos polticos do mundo de amanh. Mais do que nunca, uma comunidade intelectual torna-se urgentemente necessria para a constituio de uma verdadeira Assembleia de naes. Cuidemos para que ela seja construda sem interferncia poltica e que se fundamente tanto nos grandes movimentos religiosos que brotaram dos ensinamentos de Cristo, Maom, Buda e Confcio, quanto na contribuio laica de poetas, filsofos e cientistas de todos os pases. Sem o apoio de uma opinio pblica bem informada e livre, qualquer tentativa de uma organizao internacional provar-se-ia ilusria, principalmente no presente momento, em que as foras materiais liberadas pelo gnio humano j ameaam alcan-lo. O homem se prepara para manejar uma energia csmica, e se no for treinado corretamente para isso, poder ser tragado48

I SESSO ORDINRIA 1946

por ela. Ainda por algum tempo, as armas secretas provenientes desta energia podero permanecer ocultas. Mas seria leviano pensar que se trata de uma soluo definitiva: descobertas cientficas no so privilgio de um nico povo ou grupo. Assim que, dados os primeiros passos, seja alcanado um determinado estgio, estas descobertas iro surgir simultaneamente em vrias mentes. A histria tem provado isso reiteradas vezes. Desviados os perigos que a liberao da energia atmica traz para as relaes internacionais, no resta alternativa seno o desenvolvimento da fraternidade humana por todos os meios intelectuais e morais a nossa disposio. A Carta das Naes Unidas aponta claramente o caminho a ser tomado ao posicionar o Conselho Econmico e Social lado a lado com o Conselho de Segurana. Contanto que aquele honre seus compromissos, de se esperar que este jamais ter de intervir. Tenho esperana ardente de que continuar sendo, como tem sido, um escudo que ningum ousar atacar. A mxima segundo a qual o perturbador da paz est sempre errado a que deve guiar as Naes Unidas. Quem quer que procure interromper a paz, semear discrdia entre naes, ou promover uma guerra de nervos, ser doravante subjugado pela inabalvel determinao de todos os que tm sofrido as amarguras da guerra e que resolveram nunca mais admitir que semelhante catstrofe ocorra. Em termos polticos, h cinquenta e um pases diferentes representados nesta Assembleia; poder-se- dizer que nosso trabalho obteve xito se, ao partirmos, nossos pases formarem uma nica casa espiritual. Deste modo, o homem ter feito a sua maior conquista, e poderemos nos reunir em um esforo comum na eliminao dos trs grandes castigos que no momento nos dividem e oprimem: a guerra, a doena e a necessidade. Um nico pensamento deve inspirar nossas aes no sentido de se estabelecer a Organizao das Naes Unidas em bases inabalveis e eu espero que seja o expresso na seguinte mxima: Communis humanitatis causa. Muito obrigado. Londres, em 10 de janeiro de 1946.

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I Sesso Ordinria da Assembleia Geral da Organizao das Naes Unidas 1946 Segunda Parte

Embaixador Pedro Leo Velloso Netto3

Primeiramente, gostaria de expressar cidade de Nova York, da parte da delegao brasileira, nossa sincera gratido pela sua gentil hospitalidade durante o perodo da Assembleia Geral. A Organizao das Naes Unidas viu a luz do dia pela primeira vez em solo dos Estados Unidos; sua criao foi inspirada pelo grande Presidente Roosevelt, assistido por seu eminente Secretrio de Estado, o Honorvel Cordell Hull. O plano delineado em Dumbarton Oaks foi aprovado em So Francisco pelos Estados que formam a Organizao das Naes Unidas. Eles compuseram uma Carta destinada a governar doravante suas relaes mtuas. Esses fatos tm uma significao que no nos pode escapar e que eu, como filho deste continente, fico feliz em ressaltar. Amrica, terra da liberdade, habitada por povos que no tm os preconceitos acumulados em outros continentes durante sculos de conflitos interminveis, bero da maior das democracias, oferece Organizao das Naes Unidas uma oportunidade sem precedentes para que floresa e efetue sua grande misso poltica, econmica, social e cultural. O Brasil, em sua dupla qualidade de membro da comunidade de naes e de Estado integrante deste hemisfrio, orgulha-se em ter3

Pedro Leo Velloso Netto, nascido em Pindamonhangaba, SP, em 13 de janeiro de 1887. Bacharel em Cincias Jurdicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Segundo Secretrio em 1910. Ministro Plenipotencirio de Primeira Classe, por merecimento, em 1934. Ministro de Estado das Relaes Exteriores de 1/11/45 a 31/1/46. Nova York, em janeiro de 1947.

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PEDRO LEO VELLOSO NETTO

contribudo para a criao da Carta das Naes Unidas. Seu passado, sua tradio pacfica, seu amor pela ordem, seu respeito pelo direito e seus sentimentos democrticos o prepararam para receber com entusiasmo a ideia da organizao de uma sociedade internacional para a preservao da justia e do respeito a tratados e outras fontes de direito dos povos. por isso que o meu pas tem dado sincero apoio iniciativa das grandes potncias. Participou no somente da Conferncia de So Francisco, como tambm do trabalho preliminar primeira parte da Primeira Sesso da Assembleia Geral, em agosto de 1945. A Organizao das Naes Unidas tem apenas poucos meses de funcionamento. E o fato de que o Conselho de Segurana, o Conselho Econmico e Social e outros rgos tenham se reunido regularmente desde janeiro deste ano no significa que no estejam ainda em processo de organizao, tendo nmero incompleto de funcionrios, oramento experimental, sede permanente ainda indefinida, et cetera. Acrescente-se a este quadro as condies de ps-guerra em diversas partes do mundo, resultantes do atraso na composio e assinatura de tratados de paz. Em suma, nossa existncia se resume a um perodo muito curto de tempo, durante o qual temos estado diligentemente comprometidos em nos organizarmos em um mundo que ainda espera um retorno normalidade. Seria inteiramente prematuro, nas atuais circunstncias, tentar avaliar que papel a Organizao das Naes Unidas tem desempenhado at o presente momento. Desejo expressar a imensa f que o meu pas deposita na causa das Naes Unidas. Aps os anos dolorosos que acabamos de atravessar, no podemos conceber o mundo, que ora se configura, sem levarmos em conta o modelo proposto pelas Naes Unidas em benefcio da humanidade, a saber, a garantia da preservao da ordem e da segurana internacional em um sistema poltico e legal que assegure, tanto ao vencedor quanto ao vencido, respeito por suas vidas, seus direitos e suas liberdades. Como podeis ver, eu vos falo com meus olhos fixos na Carta. Ela representa a segunda tentativa, em vinte e cinco anos, de dar aos povos um estatuto que lhes possibilite viver em sociedade em um mundo pacfico e civilizado. Um esforo foi feito em Dumbarton Oaks e posteriormente em So Francisco no sentido de se aperfeioar a Conveno da Liga das Naes pela introduo, na Carta das Naes Unidas, de provises mais realistas que as contidas no instrum