Breve Historico da Psicologia Educacional

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17 Breve histórico da psicologia escolar no Brasil Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 42 p. 17-23, jul./set. 2005. BREVE HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ESCOLAR NO BRASIL Brief History Of School Psychology In Brazil Aline Ottoni Moura Nunes de Lima 1 Resumo Este artigo foi elaborado a partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema e enfoca as tendências da relação psicologia e educação ao longo da história, a partir de uma perspectiva sociocrítica. Pretende contribuir na reflexão sobre as possibilidades de atuação em psicologia educação escolar sinalizando para o fato de que as construções científicas em psicologia repercutem nas práticas pedagógicas. Por uma questão didática, dividimos nosso texto em reflexões sobre quatro modelos de atendimento psicológico em contextos educativos escolares. Partimos de um modelo de atendimento psicométrico, analisando o pano de fundo social sobre o qual ele foi construído, seus objetivos ideológicos, a repercussão da teoria no mundo e na educação. Em seguida, apresentamos os modelos clínico e preventivo construídos sob a influência da psicanálise que, apesar de mudar a visão sobre a origem das diferenças atuais, não provocaram mudanças significativas na visão sobre as dificuldades educacionais e por sua vez no contexto concreto da escola. Para finalizar apontamos algumas características de um fazer psicológico escolar crítico, que tem como objetivo realizar, juntamente com os atores que compõem o cenário pedagógico e da escola, mudanças que gerem a possibilidade de que a escola cumpra seu papel social de possibilitar a todos que por ela passarem a apreensão dos saberes construídos pela humanidade ao longo tempo. Palavras-chave: Psicologia Educacional; História; Tendências. Abstract This article originated from a bibliographical revision and focuses on the trends in school psychology throughout history, from a social perspective. It intends to contribute on the reflection about the possibilities of performance in the field of school education psychology, noting the fact that the scientific knowledge in psychology resound in the pedagogical practices. For a matter of didactics, the text is divided in reflections about four models of psychological care in school environments. The research started from a model of psychometric care, analyzing the social background it was built upon, its ideological goals and the repercussion of the theory in the world and in education. Then, clinical and preventive models built under the influence of psychoanalysis were presented and, although they alter the point of view on the origin of individual differences, they did not cause significant changes in the perspective about educational difficulties nor in the solid context of school. In the end, the author points out some characteristics of a conscious school- based psychological work, which has the goal of making, along with the members of the school scenario, changes that generate the possibility for the school to fulfill its social role of making possible for all the students to apprehend the knowledge gathered by mankind throughout time. Keywords: Psychology, Educational; History; Trends. 1 Professora substituta de Psicologia da Educação Escolar na Universidade Federal de Uberlândia. Psicóloga Especialista em Psicologia Escolar: Processos de Aprendizagem e de Escolarização pela USP. – Endereço para contato: Rua Acre, 941 B. Umuarama, Uberlândia - MG. CEP: 38402-022. E-mail: [email protected]

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Este artigo foi elaborado a partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema e enfoca as tendências da relaçãopsicologia e educação ao longo da história, a partir de uma perspectiva sociocrítica. Pretende contribuir nareflexão sobre as possibilidades de atuação em psicologia educação escolar sinalizando para o fato de queas construções científicas em psicologia repercutem nas práticas pedagógicas. Por uma questão didática,dividimos nosso texto em reflexões sobre quatro modelos de atendimento psicológico em contextoseducativos escolares. Partimos de um modelo de atendimento psicométrico, analisando o pano de fundosocial sobre o qual ele foi construído, seus objetivos ideológicos, a repercussão da teoria no mundo e naeducação. Em seguida, apresentamos os modelos clínico e preventivo construídos sob a influência dapsicanálise que, apesar de mudar a visão sobre a origem das diferenças atuais, não provocaram mudançassignificativas na visão sobre as dificuldades educacionais e por sua vez no contexto concreto da escola. Parafinalizar apontamos algumas características de um fazer psicológico escolar crítico, que tem como objetivorealizar, juntamente com os atores que compõem o cenário pedagógico e da escola, mudanças que gerema possibilidade de que a escola cumpra seu papel social de possibilitar a todos que por ela passarem aapreensão dos saberes construídos pela humanidade ao longo tempo.

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Breve histórico da psicologia escolar no Brasil

Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 42 p. 17-23, jul./set. 2005.

BREVE HISTÓRICO DA PSICOLOGIA ESCOLAR NO BRASIL

Brief History Of School Psychology In Brazil

Aline Ottoni Moura Nunes de Lima1

ResumoEste artigo foi elaborado a partir de uma revisão bibliográfica sobre o tema e enfoca as tendências da relaçãopsicologia e educação ao longo da história, a partir de uma perspectiva sociocrítica. Pretende contribuir nareflexão sobre as possibilidades de atuação em psicologia educação escolar sinalizando para o fato de queas construções científicas em psicologia repercutem nas práticas pedagógicas. Por uma questão didática,dividimos nosso texto em reflexões sobre quatro modelos de atendimento psicológico em contextoseducativos escolares. Partimos de um modelo de atendimento psicométrico, analisando o pano de fundosocial sobre o qual ele foi construído, seus objetivos ideológicos, a repercussão da teoria no mundo e naeducação. Em seguida, apresentamos os modelos clínico e preventivo construídos sob a influência dapsicanálise que, apesar de mudar a visão sobre a origem das diferenças atuais, não provocaram mudançassignificativas na visão sobre as dificuldades educacionais e por sua vez no contexto concreto da escola. Parafinalizar apontamos algumas características de um fazer psicológico escolar crítico, que tem como objetivorealizar, juntamente com os atores que compõem o cenário pedagógico e da escola, mudanças que gerema possibilidade de que a escola cumpra seu papel social de possibilitar a todos que por ela passarem aapreensão dos saberes construídos pela humanidade ao longo tempo.Palavras-chave: Psicologia Educacional; História; Tendências.

AbstractThis article originated from a bibliographical revision and focuses on the trends in school psychologythroughout history, from a social perspective. It intends to contribute on the reflection about the possibilitiesof performance in the field of school education psychology, noting the fact that the scientific knowledge inpsychology resound in the pedagogical practices. For a matter of didactics, the text is divided in reflectionsabout four models of psychological care in school environments. The research started from a model ofpsychometric care, analyzing the social background it was built upon, its ideological goals and therepercussion of the theory in the world and in education. Then, clinical and preventive models built underthe influence of psychoanalysis were presented and, although they alter the point of view on the origin ofindividual differences, they did not cause significant changes in the perspective about educational difficultiesnor in the solid context of school. In the end, the author points out some characteristics of a conscious school-based psychological work, which has the goal of making, along with the members of the school scenario,changes that generate the possibility for the school to fulfill its social role of making possible for all the studentsto apprehend the knowledge gathered by mankind throughout time.Keywords: Psychology, Educational; History; Trends.

1 Professora substituta de Psicologia da Educação Escolar na Universidade Federal de Uberlândia. Psicóloga Especialista emPsicologia Escolar: Processos de Aprendizagem e de Escolarização pela USP. –Endereço para contato: Rua Acre, 941 B. Umuarama, Uberlândia - MG. CEP: 38402-022.E-mail: [email protected]

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Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 42 p. 17-23, jul./set. 2005.

“A compreensão do texto, a ser alcançada porsua leitura crítica, implica a percepção dasrelações entre o texto e o contexto”.

(Paulo Freire)

Este artigo é uma versão modificada doprimeiro capítulo de monografia apresentada aoInstituto de Psicologia da Universidade de SãoPaulo (USP) 2 como parte dos requisitos para otítulo de especialista em Psicologia Escolar: pro-cessos de aprendizagem e de escolarização. Pre-tendemos fazer um levantamento histórico da re-lação da psicologia com a educação desde o seuinício.

A importância e a atualidade deste temase justificam porque somente quando analisamosretrospectivamente como a psicologia respondeuao longo de sua história, enquanto ciência, ao cha-mado da educação, é que podemos entender osignificado da participação dos psicólogos na es-cola atualmente e vislumbrar possibilidades de atu-ações alternativas àquelas que se tornaram hege-mônicas.

No Brasil, conforme nos alerta Goulart(2003), foi a Psicologia que derivou da Psicologiada Educação. Esta, desde o início do século passa-do, tem sido chamada pela educação para funda-mentar teoricamente questões importantes da edu-cação escolar, se constituindo no primeiro campode aplicação daquela ciência. No entanto, Lourei-ro (1997) denuncia que apesar das explicaçõesoferecidas pela psicologia para os problemas pe-los quais passa o sistema de ensino brasileiro, nãose vêem mudanças significativas ao longo dos anos.

A partir de várias questões levantadas arespeito das explicações oferecidas pela psicolo-gia aos problemas da educação, faz-se urgente umapostura comprometida com as preocupações dacomunidade educativa escolar que, vinculandoteoria e prática, possam, como propõe Coll (2000),contribuir para a compreensão e melhoria das prá-ticas em contextos educativos concretos, o queprecisa ser realizado levando-se em conta a neces-sidade de adotar posturas ideológicas e morais.

Para que possamos efetivar uma práticaconsciente, que leve em conta as desigualdadessociais e seus efeitos na escolarização de nossascrianças e jovens, é preciso compreender o nossoestar no mundo, situando-nos historicamente. Sen-

do assim, segundo Patto (1984), “a análise da cons-tituição histórica e da essência da psicologia cien-tífica é imprescindível, pois nos permitirá enten-der mais a fundo o significado de sua participaçãonas escolas...”.

Neste artigo, faremos um breve relato pararelembrarmos como, ao longo da história, vem sedando a relação da psicologia com a educação.Delineando os caminhos e des-caminhos dos psi-cólogos a partir de uma visão hegemônica clínicaaté chegarmos a uma perspectiva crítica de psico-logia escolar.

Então, o que vinha fazendo o psicólogoescolar desde o final do século XIX, marco de liga-ção da psicologia com a educação? Por uma ques-tão didática, dividimos nosso texto em quatro mo-delos com base em posturas de atendimento psico-lógico nos contextos educativos escolares, mas nãopodemos tomá-las como se fossem sendo substitu-ídas uma pela outra. Coll (2000) nos confirma queainda hoje há influências desses modelos no traba-lho de psicólogos e pedagogos responsáveis pelaelaboração de políticas educacionais. Passamos àapresentação sucinta de cada um dos modelos.

2.1. O modelo psicométrico –medindo, classificando, segregando...

A psicologia adquiriu seu status científi-co em 1879 com a inauguração do Laboratório dePsicologia em Leipzig, na Alemanha, por WilhelmWundt. Este médico, fisiologista, interessava-se pordesenvolver estudos sobre a psicofisiologia dosprocessos mentais, ou seja, sobre os processos ele-mentares da consciência. Seu estudo “(...) apre-senta-se como o marco que ensejou o estudo docomportamento humano sob a ótica das ciênciasfísicas e biológicas, desconsiderando os estadossubjetivos na compreensão do homem e suas rela-ções” Yazlle (1990).

Wundt foi precedido por Francis Galton(1822-1911) que, em 1869, publicou sua obra “He-reditary Genius” como início de seu projeto euge-nista, baseando-se na obra “A Origem das Espéci-es” de seu contemporâneo e parente, Charles Da-rwin. A partir daí, realizou vários trabalhos em seulaboratório de psicometria, no University College

2 Orientadora: Professora Doutora Elenita de Rício Tanamachi; ano de conclusão, 2001.

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de Londres, tendo como objetivo principal medira capacidade intelectual e provar a determinaçãohereditária das aptidões humanas, para que fossepossível selecionar os mais capazes, aprimorandoa espécie humana.

O período pós - revolução industrial, coma vitória da burguesia liberal, é o pano de fundosobre o qual Galton desenvolveu sua teoria. Numcontexto em que a burguesia emergente reafirma-va seu poder tendo como base o liberalismo, pau-tado num ideal de igualdade de oportunidades paratodos, as diferenças entre classes sociais eram con-cebidas a partir da explicação de que uns erammais capazes do que outros, recebendo respaldonos instrumentos de medida de inteligência e per-sonalidade criados por Galton.

A primeira escala métrica de inteligênciainfantil foi desenvolvida por Binet, na França em1905. “Sua passagem (...) para o laboratório depedagogia experimental, (...) foi um passo decisi-vo na constituição do primeiro método em psico-logia escolar, do qual até hoje não se libertou: apsicometria” (Patto, 1984). Tinha como objetivodesenvolver instrumentos que possibilitassem aseleção, adaptação, orientação e classificação decrianças que necessitassem de educação escolarespecial em normais e anormais.

Houve repercussão desse estudo em todoo mundo. As escolas européias e as localizadas naAmérica do Norte adotaram os testes, que estavamsendo estudados em larga escala, e com eles, asconseqüências pedagógicas que deles advêm, como,por exemplo, a divisão de crianças em grupos ho-mogêneos, separação em normais e anormais e umaseleção do que seria ensinado a cada um deles.

Enquanto isso, suas colônias européiaslutavam pela introdução dessa nova “moda edu-cacional” em suas escolas. Por volta de 1906, noRio de Janeiro, Manoel Bonfim fundou o Labora-tório de Pedagogia Experimental, planejado porBinet (Paris), junto ao Pedagogium, órgão funda-do a fim de incentivar melhorias educacionais, quese transformou em um centro de cultura superior,em 1897. Em um estudo sobre a história da psico-logia brasileira, encontramos um relato sobre oensino da psicologia nas escolas normais, no sé-culo XIX, que demonstra a influência européia enorte-americana na sociedade brasileira.

Massimi (1990) aponta que, para formarum corpo docente competente e adequado quan-to às necessidades do sistema educacional brasi-

leiro, as escolas normais procuram elaborar e ins-truir seus alunos em uma metodologia científicado ensino, inspirada nos modelos europeus e nor-te-americanos.

Patto (1984) traz a informação de que “(...)a primeira função desempenhada pelos psicólo-gos junto aos sistemas de ensino, (...) no Brasil,(...), foi a de medir habilidades e classificar crian-ças quanto à capacidade de aprender e de progre-dir pelos vários graus escolares”.

A influência das idéias do movimentopsicométrico, na atuação dos psicólogos no Brasil,fica notória, segundo Yazlle (1997, na apreciaçãoda tese para ingresso na Escola Normal de Recife,de Ulisses Pernambucano, em 1918, intitulada “Clas-sificação de Crianças Anormais”.

Essa postura é segregadora, pois, na me-dida em que categorizamos as crianças e jovens,estamos excluindo-os da possibilidade de vivenciaro processo educacional regular e corremos o riscode, segundo Machado (1994, p. 63), aprisionar adiferença num sistema negativo, comparativo.

Esses trabalhos trouxeram de positivo oinício de um movimento pioneiro de assistência acrianças excepcionais, ao qual, mais tarde, se en-gajaria a psicóloga e educadora Helena Antipoff,chegada ao Brasil em 1929.

2.2. O modelo clínico: saúde xdoença... diagnosticando...

No início do século XX, as produções emPsicologia cresciam aos borbotões e os estudos deSigmund Freud (1856-1939) sobre a psicanálisevieram mudar a visão a respeito da origem dasdiferenças pessoais. Com a elaboração de uma te-oria que considerava a relação do indivíduo como grupo familiar determinante da personalidade(que se forma ao longo do processo de desenvol-vimento) e, por sua vez, de como este indivíduose posicionará no mundo, lançava-se um questio-namento oportuno para a visão do inatismo.

A psicanálise foi trazida para o Brasil pe-los médicos que, por sua vez, foram os primeirosa produzir conhecimentos psicológicos neste país.Nas faculdades do Rio de Janeiro e da Bahia, dá-seuma introdução ao modelo clínico de psicologiaescolar, inspirado na medicina, cujo objetivo erapsicodiagnosticar e tratar crianças que apresentas-sem problemas de aprendizagem.

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É importante salientar qu, no Brasil, mes-mo com a adoção da teoria psicanalítica como baseteórica para explicação dos problemas de apren-dizagem, muitos foram os estudos que continua-ram utilizando os parâmetros de normalidade paraclassificar as crianças. O que temos de novo é queas crianças anteriormente classificadas como anor-mais são, a partir de agora, denominadas criançasproblema.

Segundo Moysés e Collares (1992), o neu-rologista americano Strauss, em 1918, “lança a hi-pótese de que os distúrbios de comportamento(...) e os de aprendizagem poderiam ser conse-qüentes de uma lesão cerebral mínima”. Teoria quesó se legitimou efetivamente a partir da década de60 do séc. XX e que, até hoje, além de influenciaras práticas psicológicas e educacionais que pre-tendem classificar crianças como normais e anor-mais, continua dando margens a pesquisas.

2.3. O modelo preventivo:antecipando, clinicando...

Com o advento da psicanálise e, com ele,de novas explicações que situavam os problemasde aprendizagem nas influências ambientais, maisespecificamente no desajuste familiar e, concomi-tante ao processo de biologização do comporta-mento, que favorece a patologização destes, tinha-se um terreno fértil para a disseminação da práticapsicológica de psicoterapia e orientação familiar,frente a problemas de aprendizagem e a atribui-ção de rótulos.

Isto se deu num contexto socioideológi-co caracterizado pelo período pós-Primeira Guer-ra, quando a “sociedade aristocrática rural, (...)entrava para a fase de industrialização brasileira,enquanto projeto social de modernização”, Yazlle,(1997). A maioria da população não tinha acesso àescola e, portanto, não estava qualificada para omercado de trabalho.

Surgiu o Movimento de Higiene Mental(década de 20 e 30 do século XX), com funçõespreventivas de orientação, assistência, pesquisa eensino de técnicos especializados em desajusta-mentos infantis. Esse movimento partia do princí-pio de que o profissional de Psicologia deveria seadiantar aos problemas e cuidar do controle dobem-estar social e individual da nação. Era neces-sário que as crianças fossem qualificadas para se

conquistar o ideário do Estado Novo de industria-lização.

Essas práticas psicoeducacionais aindaestão presentes nos dias de hoje em muitas insti-tuições de ensino no nosso país, e têm sido de-nunciadas por vários autores, direta ou indireta-mente. Pode-se vê-las nos Serviços de OrientaçãoEducacional e Psicologia Escolar, por meio de aten-dimentos individuais aos alunos frente a questõesque dizem respeito ao cotidiano escolar, em enca-minhamentos a psicopedagogos de crianças comproblemas de aprendizagem, etc.

Temos exemplos de práticas reveladorasda postura clínica no ambiente escolar, de caráterespecialmente adaptacionista, que situa o proble-ma no aluno ou, quando mais camuflada, deslocao foco para o professor. Herança que recebemosde uma psicologia exercida no início do séculoXX, quando “(...) a escola, seus procedimentos eobjetivos não eram objeto de questionamento, nemmesmo enquanto variáveis que poderiam gerarproblemas de aprendizagem e de ajustamento”(Patto, 1984).

2.4. O modelo compensatório: novasexplicações, velhas posturas...

No Brasil, a partir da década de 70 doséc. XX, chegaram as idéias produzidas nos Esta-dos Unidos, que constituíam a Teoria da CarênciaCultural. Essa teoria surgiu diante da necessidadede se conter as tensões geradas pelos movimentosreivindicatórios das minorias raciais. Compunha-se de diversos trabalhos que explicavam “a discre-pância de rendimento escolar observada entre ascrianças dos vários níveis sócio-econômicos” (Sou-za, 1997).

De acordo com esse conjunto de idéias,as crianças de segmentos sociais pobres em recur-sos financeiros não possuem as mesmas aptidõespara o aprendizado que as de classe privilegiadae, portanto, precisam aprender com recursos dife-rentes dos oferecidos aos outros. Os ambientes emque vivem geram deficiências nutricionais, percep-tivo-motoras, cognitivas, emocionais e de lingua-gem e ainda são vítimas da desestruturação famili-ar incapaz de fornecer uma base segura para avida da criança.

Diante dessa explicação, foram realizadosProgramas de Educação Compensatória, voltados

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para as crianças carentes, primeiro nos EstadosUnidos e depois no Brasil. “(...) disseminando acrença de que todos os esforços estão sendo em-penhados no sentido de escolarizar os filhos dapobreza e sanar suas deficiências” (Patto, 1984).

Com a consideração das diferenças cul-turais, percebe-se uma tentativa da Psicologia emconsiderar os aspectos sociais dos “problemas deaprendizagem”, mas ainda havia desconsideraçãodas dimensões ideológicas presentes na teoria emvoga, o que não provocou mudanças de posturaem psicologia escolar.

Segundo Patto (1984), o psicólogo reali-zava um trabalho voltado para o diagnóstico dasdeficiências dos carentes mediante testes psicoló-gicos, detectando suas incapacidades e buscava,juntamente com outros profissionais de educação,programar meios psicopedagógicos que possibili-tassem a aprendizagem das crianças.

O psicólogo passou a assumir a funçãotécnica, coerente com a antiga clínica, por seu ca-ráter individualizante, de assessoria aos professo-res, aqueles que “não sabem”. Essa perspectivaaparece claramente em textos como o de Reger,que define o objetivo básico do psicólogo escolar:“(...) ajudar a manter a qualidade e a eficiência doprocesso educacional através da aplicação dosconhecimentos psicológicos (...) enquanto educa-dor comprometido com a identidade do acadêmi-co, o psicólogo escolar pode tentar ensinar outrosprofissionais no sistema escolar” (Reger, 1989).

É importante esclarecer que, mesmo aoatender o grupo de professores, o psicólogo estáadotando neste momento histórico uma posturaindividualizante, por não estar considerando ain-da todo o cenário educativo escolar, mas apenasum de seus componentes.

A merenda escolar e os grupos de refor-ço de aprendizagem, os materiais produzidos paraa estimulação precoce de crianças pré-escolares eas Escolas Municipais de Educação Infantil forammedidas adotadas a fim de “solucionar o proble-ma da dificuldade de escolarização das crianças eadequá-las melhor às exigências da escola” (Sou-za, 1997). Estas, entre outras, são algumas heran-ças deste modo de entendimento dos problemasde aprendizagem.

Não é sem motivo que as dificuldadesescolares que causam o fracasso têm sido freqüen-temente atribuídas a características individuais dascrianças: “(...) a psicologia encobre o papel cum-

prido pela instituição de reproduzir no âmbito dadistribuição dos bens culturais a desigualdade ca-racterística da distribuição dos bens materiais” (Lou-reiro, 1997).

A psicologia sempre se fez presente naeducação, principalmente criando critérios paraclassificar as crianças que não estavam adaptadasaos padrões ideais estabelecidos pela classe socialdominante, nos diferentes períodos históricos. Osrótulos que atribuiu a elas mudaram de nome du-rante toda a história. Se num primeiro momentoas separou em normais e anormais, num segundomodelo de trabalho, as denominou crianças pro-blema, e diante do modelo que por hora aborda-mos, marca os deficientes ou os carentes.

2.5. Uma introdução ao modelocrítico

Foi a partir da década de 1980 do séculoXX que se iniciou um movimento de análise críti-ca da atuação do psicólogo escolar, a fim de quefosse possível a consideração dos processos de-senvolvidos na instituição escolar. Os “problemasde aprendizagem” passaram a ser vistos como umfenômeno complexo, constituído socialmente, cujaanálise deve abarcar os aspectos históricos, eco-nômicos, políticos e sociais.

A base teórico-filosófica da teoria críticaconstitui-se no Materialismo Histórico dialético for-mulado por Karl Marx. Torna-se fundamental, nestemomento, ressaltarmos que o marxismo não é umateoria já superada. Meira (2000) nos fala sobre aatualidade dessa perspectiva, ressaltando a presen-ça do período histórico analisado por Marx, o ca-pitalismo.

Nesta perspectiva, o homem é visto comoum ser que, a partir da sustentação biológica quenos constitui como seres humanos, tem nas rela-ções sociais de que tomam parte ao longo do tem-po a possibilidade de se construir juntamente comoutros homens, na medida em que constrói as for-mas de satisfação de suas necessidades numa rela-ção dialética.

Bock (1997) acrescenta que, para os psi-cólogos que adotam uma postura sócio-histórica,o fenômeno psicológico é também construído apartir das relações do homem numa topografia esociedade específicos num momento histórico es-pecífico.

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A educação e, mais especificamente, aeducação escolar são compreendidas como ins-tâncias fundamentais no processo de socializaçãodo conhecimento produzido pela humanidade.

E, por conseguinte, as relações escola-sociedade devem ser “pensadas por contradição”,no sentido de que “se o fato educativo é um poli-tikum e um social, conseqüentemente, é tambémverdadeiro que toda situação política e social de-termina sensivelmente a educação” (Manacorda,1989 apud Tanamachi, 1997).

Quando analisamos o fenômeno educa-cional, é fundamental levarmos em conta que arealidade educacional é determinada por múltiplosfatores. Ao psicólogo é lançado o desafio de supe-rar a visão técnica/clínica que sempre embasousua atuação, passando a atuar politicamente, ouseja, “atuar e refletir politicamente com os indiví-duos para conscientizar-se junto com eles das re-ais dificuldades da sua sociedade” (Freire, 1983).

O rompimento com o modelo clínico deatuação implica, conforme Ragonesi (1997), entreoutras coisas, em romper com a separação entreas atividades de ensino que seriam responsabili-dade do professor e o comportamento dos alunos,que por sua vez seriam responsabilidade do psi-cólogo. Assim conseguiremos “situar mais adequa-damente os processos psicológicos no interior doprocesso pedagógico, garantindo a especificidadede nossa atuação, a partir de uma reflexão sobre olugar da Psicologia na Educação”, sem reduzir umaà outra.

O momento é de criar espaços de refle-xões com todos os grupos que fazem parte da es-cola, famílias e aluno, professores, pedagogos, fun-cionários e comunidade, considerando a realida-de escolar como um todo, pesquisando temas quefaçam parte das preocupações dos envolvidos, fa-zendo parcerias com outros profissionais que têma educação como foco de atenção.

Sabemos que não há um manual de atu-ação em psicologia crítica, o que temos é umaindicação de Souza (2000) de que o momento éde discussões e a construção-desconstrução dateoria e prática em psicologia escolar será cons-tante e dialética. No entanto, temos alguns “princí-pios norteadores da prática”.

A título de “considerações finais”, gosta-ríamos de ressaltar que existe certo consenso en-tre os psicólogos educacionais sobre a necessida-de de maior clareza sobre a nossa identidade e

finalidade profissional. Segundo Patto (1997), opapel do psicólogo escolar está mal delimitadoainda e uma discussão aprofundada leva a umadiscussão da sua própria formação. Meira (2000)alerta que no trabalho de formação do psicólogoescolar devemos estar sempre perguntando: qualdeve ser o compromisso ético - político do psicó-logo que queremos formar?

Quanto ao lugar ocupado pelo psicólogoescolar, Ragonesi (1997) nos diz que “o melhorlugar para o psicólogo é o lugar possível, seja den-tro ou fora de uma instituição”. O mais importanteé que ele se insira na educação, assumindo umcompromisso teórico e prático com as questões daescola, que é o seu foco de atenção.

Além disso, a autora acrescenta que éfundamental que os psicólogos que atuam direta-mente na instituição escolar preocupem-se com amelhoria das práticas pedagógicas, garantindo quea escola utilize-se dos conhecimentos psicológi-cos na elaboração de suas propostas de trabalho,visando a atingir o objetivo primeiro da educação:a humanização.

É importante criar alternativas para umaatuação pautada no compromisso com o atendi-mento público, pautada no direito à cidadania,recuperando e assumindo como os teóricos doinício do século XX, Vigotski, Wallon, Luria, Leon-tiev, etc, o discurso e as preocupações com o re-formismo social.

Na construção da psicologia que elege aeducação como objeto de reflexão e ação, é preci-so subsídios teórico-práticos importantes que pos-sibilitem a consolidação de um corpo de conheci-mentos mais sólido que faça avançar, no interiorda ciência psicológica, a compreensão sobre oprocesso de construção social do indivíduo e quepermita que a educação possa construir novas prá-ticas pedagógicas.

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Recebido em/Received in: 18/05/2005

Aprovado em/Approved in: 23/05/2005

Breve histórico da psicologia escolar no Brasil

Psicologia Argumento, Curitiba, v. 23, n. 42 p. 17-23, jul./set. 2005.