Brincar aos Leilões como Gente Grande.

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BRINCAR AOS LEILÕES COMO GENTE GRANDE. Estamos a 6 de Novembro de 2009. A sala é ampla e iluminada por um enorme candeeiro de vidro, o chão de madeira velha range com o passar dos passos dos licitantes, os móveis que se espalham pelo espaço são, como não podiam não ser, antiguidades, peças marcadas por um autocolante indicador de irem à praça naquela que seria a terceira e última sessão deste leilão de antiguidades e velharias. As cadeiras de uma modernidade contrastante estendem-se em frente à mesa, digna de um filme, onde se senta um senhor bochechudo, careca, de seu nome Luís Castelo Lopes, vestido com fato escuro ornamentado por um curioso laço vermelho com pequenas bolinhas brancas todo este ambiente propiciamente intimidante desfaz-se nas conversas das várias pessoas que, de catálogo debaixo do braço ou no colo, esperam o início do leilão. Nota-se que já se conhecem de outros dias, talvez de outros despiques por algum lote, mas há entre todos uma cordialidade que encaixa na perfeição na altivez daquela sala do Palácio do Correio Velho, organizador de mais de 200 leilões em 20 anos. A atmosfera torna-se ainda mais descontraída quando o leilão tem início. Parece mentira, mas é verdade. O apresentador solta as mais variadas piadas sobre as peças apresentadas, fazendo ecoar na sala risos e sorrisos, e os lotes mais disputados imergem nas pessoas a sensação quase desportiva de querer saber quem ganha como o público num jogo de futebol decidido por grandes penalidades. Compradores, na sala, são cerca de 40. Pelo telefone, outros, não se sabe quantos, provavelmente uns 5, marcam presença sem estarem presentes. Diz Carlos Dias, membro da organização do Palácio do Correio Velho, que passou neste dia as quase três horas de leilão de telefone colado à orelha, que «as licitações pelo telefone são feitas por pessoas que querem assegurar a sua privacidade ou não podem comparecer fisicamente no leilão». Para venda está um pouco de tudo: para além dos móveis que naquele dia compõem a decoração da sala, há também lotes de candeeiros, quadros de artistas portugueses e estrangeiros, floreiras, gravuras desenhadas em papel, arcas, tapetes, bustos, estatuetas, e, algo pouco usual em leilões do género, brinquedos. Isso mesmo, brinquedos. Muitos brinquedos. Brinquedos dos anos 30, brinquedos todos eles referentes às duas grandes guerras mundiais, brinquedos que deram origem a uma das frases de abertura do leilão: «vou gostar muito de brincar com os senhores». E de facto os licitantes pareciam extremamente divertidos enquanto, de raquete no ar, mostravam não desistir dos pequenos soldadinhos de chumbo que tanto queriam ter na sua colecção. A grande disputa, prolongada a vários lotes, estendida a ambulâncias e máquinas de guerra, centrada nos pequenos bonecos que ora estavam equipados com armas ora se prostravam derrotados numa maca, foi encetada por duas gerações totalmente opostas: um senhor de idade, distinto advogado, e um rapaz que não contaria com mais de 40 anos. Nenhum dos dois saiu a perder, já que, contas feitas, ambos conseguiram ouvir vários “é seu!” vindos do entusiástico e dinamizador senhor que, nesta tarde, conduzia o leilão. «Não costuma haver leilões de brinquedos em Portugal, com brinquedos é muito raro aparecer», conta, com ar conhecedor e algum entusiasmo na voz, o distinto advogado que pede segredo do seu nome. «Eu sou coleccionador há quase 30 anos, compro ao longo dos

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Reportagem efectuada no âmbito da disciplina de Ateliê de Jornalismo de Imprensa II.

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BRINCAR AOS LEILÕES COMO GENTE GRANDE.

Estamos a 6 de Novembro de 2009. A sala é ampla e iluminada por um enorme candeeiro de

vidro, o chão de madeira velha range com o passar dos passos dos licitantes, os móveis que se

espalham pelo espaço são, como não podiam não ser, antiguidades, peças marcadas por um

autocolante indicador de irem à praça naquela que seria a terceira e última sessão deste leilão

de antiguidades e velharias. As cadeiras de uma modernidade contrastante estendem-se em

frente à mesa, digna de um filme, onde se senta um senhor bochechudo, careca, de seu nome

Luís Castelo Lopes, vestido com fato escuro ornamentado por um curioso laço vermelho com

pequenas bolinhas brancas – todo este ambiente propiciamente intimidante desfaz-se nas

conversas das várias pessoas que, de catálogo debaixo do braço ou no colo, esperam o início

do leilão. Nota-se que já se conhecem de outros dias, talvez de outros despiques por algum

lote, mas há entre todos uma cordialidade que encaixa na perfeição na altivez daquela sala do

Palácio do Correio Velho, organizador de mais de 200 leilões em 20 anos.

A atmosfera torna-se ainda mais descontraída quando o leilão tem início. Parece mentira, mas

é verdade. O apresentador solta as mais variadas piadas sobre as peças apresentadas, fazendo

ecoar na sala risos e sorrisos, e os lotes mais disputados imergem nas pessoas a sensação

quase desportiva de querer saber quem ganha – como o público num jogo de futebol decidido

por grandes penalidades.

Compradores, na sala, são cerca de 40. Pelo telefone, outros, não se sabe quantos,

provavelmente uns 5, marcam presença sem estarem presentes. Diz Carlos Dias, membro da

organização do Palácio do Correio Velho, que passou neste dia as quase três horas de leilão de

telefone colado à orelha, que «as licitações pelo telefone são feitas por pessoas que querem

assegurar a sua privacidade ou não podem comparecer fisicamente no leilão».

Para venda está um pouco de tudo: para além dos móveis que naquele dia compõem a

decoração da sala, há também lotes de candeeiros, quadros de artistas portugueses e

estrangeiros, floreiras, gravuras desenhadas em papel, arcas, tapetes, bustos, estatuetas, e,

algo pouco usual em leilões do género, brinquedos.

Isso mesmo, brinquedos. Muitos brinquedos. Brinquedos dos anos 30, brinquedos todos eles

referentes às duas grandes guerras mundiais, brinquedos que deram origem a uma das frases

de abertura do leilão: «vou gostar muito de brincar com os senhores». E de facto os licitantes

pareciam extremamente divertidos enquanto, de raquete no ar, mostravam não desistir dos

pequenos soldadinhos de chumbo que tanto queriam ter na sua colecção. A grande disputa,

prolongada a vários lotes, estendida a ambulâncias e máquinas de guerra, centrada nos

pequenos bonecos que ora estavam equipados com armas ora se prostravam derrotados

numa maca, foi encetada por duas gerações totalmente opostas: um senhor de idade, distinto

advogado, e um rapaz que não contaria com mais de 40 anos. Nenhum dos dois saiu a perder,

já que, contas feitas, ambos conseguiram ouvir vários “é seu!” vindos do entusiástico e

dinamizador senhor que, nesta tarde, conduzia o leilão.

«Não costuma haver leilões de brinquedos em Portugal, com brinquedos é muito raro

aparecer», conta, com ar conhecedor e algum entusiasmo na voz, o distinto advogado que

pede segredo do seu nome. «Eu sou coleccionador há quase 30 anos, compro ao longo dos

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anos, cá em Portugal, no estrangeiro, no e-bay, e vim cá hoje porque há ali soldados que eu

não tinha na minha colecção. A minha colecção de brinquedos antigos tem centenas de

elementos.» O senhor conta também que possuí na sua colecção alguns brinquedos da sua

própria infância, não em tão bom estado como aqueles que hoje compra, e confidencia que,

por vezes, perde a cabeça por alguma peça. «Eu comprei hoje, por 260 ou 270 euros, um

soldadinho de massa. São coisas dos anos 30, porque aquela fábrica alemã fazia as fardas

conforme os países para onde vendia, e com a farda portuguesa são relativamente raros. Havia

ali alguns com a farda alemã, mas eu não me interessei. Eu só sobre brinquedos tenho 800

livros!»

Mas não foram os brinquedos, embora tão disputados e cobiçados, como se torna óbvio, as

peças mais caras do leilão. O lote que atingiu um valor mais alto nesta terceira sessão de

venda foi um pato «em prata e marfim de Luís Ferreira, século XX. Corpo em marfim, com

patas, pescoço e cabeça em prata fundida e cinzelada», conforme descrito no catálogo, com

preço base entre 1000 e 2000 euros e vendido em praça por 9500 euros. Mas foi na segunda

sessão que se vendeu o lote mais caro: um conjunto de brincos e anel por 30.000 euros.

Luís Castelo Lopes, formado em História e também ele coleccionador para além de leiloeiro,

refere que o leilão atingiu o limite mínimo expectável de lucro, fazendo por isso um balanço

claramente positivo dos três dias de venda. «Houve muito boas subidas, ontem houve muito

boas subidas, anteontem houve muito boas subidas, e hoje houve muito boas subidas como

viram, principalmente com as floreiras que ali estão, que subiram dos 500 ou 600 para os 7 mil

euros». O leiloeiro acrescenta que é quase impossível num leilão conseguir vender-se todas as

peças, embora refira que «por três ou quatro vezes» já atingiu essa fantástica meta.

Castelo Lopes tem um discurso fluído, simpático, conhecedor. Vai desfivelando opiniões e

explicações, e aponta motivos para a contínua valorização dos produtos de antiguidade e das

próprias casas de leilões. «Não gosto de falar nisto como investimento. [as pessoas compram]

mais porque gostam das peças ou então porque são comerciantes e é para vender as peças

depois. Isso *investimento+ acontece mais na arte moderna. (…) A compra de antiguidades

prende-se mais com as tendências de decoração e o gosto». E usa, além disso, uma metáfora

que explica o vício por leilões: «Há um bichinho das antiguidades. Não entra só na madeira,

também entra nas pessoas e depois é difícil parar. (…) Já repararam que um leilão é a única

altura em que as pessoas discutem para ver quem paga mais?»

Pois é, é verdade.