Bruno e Bianca Leon Ferrari e Mira Schendel Artigo Panorama critico 06
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#06 Jun/Jul 2010
Revista Bimestral de Arte Panorama Crtico | ISSN 1984-624X | Edio #06 | Junho/Julho
Comunicaes indiretas entre Len Ferrari e Mira Schendel,
sob um alfabeto enfurecido Bruno Dorneles da Silva e Bianca Knaak*
O alfabeto enfurecido de Schendel1, apresentado na Fundao Iber
Camargo entre abril e julho de 20102, funciona como uma brincadeira. Neste
espao arquitetnico favorvel3, explorando a grafia, a letra, suas semelhanas
e nossa familiaridade com elas, Ferrari4 e Schendel nos lanam obras que
questionam a linha entre o smbolo e o sentido.
Durante sua carreira, Mira sempre recebeu crticas que acusavam sua
obra de difcil compreenso para um pblico mais amplo. Pudera. Schendel
sempre foi discreta, no gostava de falar de si mesma ou de seu trabalho. Isso
tornava rdua a tarefa de compreender a obra da artista atravs de suas
prprias palavras. No entanto, como quem confia segredos, Mira Schendel faz
o espectador aproximar-se fisicamente de seus trabalhos, notar as
transparncias e chegar perto de sua grafia.
Em muitas de suas obras, as escritas transparentes, no detectveis
por fotografia, criam um elo ntimo entre o espectador e a artista, autora dessas
cartas. Em presena do trabalho e sob transparncias, Mira entrega partes de
seus pensamentos (segredos?). Ela sabe que s aqueles que quase tocarem
o papel de arroz, com os olhos, sero capazes de apreciar e entender no s o
trabalho, mas tambm a sua verso em letra viva. Portanto, mais do que
1 Mira Schendel nasceu na Sua em 1919, mudou-se para Porto Alegre em 1949, onde morou por 4 anos, antes de se mudar para So Paulo, onde residiu por 35 anos, at seu falecimento, em 1988. 2 O Alfabeto enfurecido, exposio sob curadoria do venezuelano Luis Prez-Oramas, curador de Arte Latino Americana para o MoMA (Museu de Arte de Moderna de Nova York). Porto Alegre, Fundao Iber Camargo de 8 de abril a 11 de julho. 3 Antes de chegar exposio, se chega Fundao Iber Camargo, primeira obra do arquiteto portugus lvaro Siza no Brasil, projeto que lhe rendeu o Leo de Ouro na Bienal de Arquitetura de Veneza, em 2002. Em todos os sentidos esta construo nos causa admirao, revelada principalmente, no confronto com as experincias que cada um tem com a arquitetura concebida com o intuito de servir. 4 Len Ferrari nasceu na Argentina em 1920. Exilou-se em So Paulo em 1975, fugindo da ditadura na Argentina, e s voltou a Buenos Aires em 1991, onde reside at hoje.
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#06 Jun/Jul 2010
Revista Bimestral de Arte Panorama Crtico | ISSN 1984-624X | Edio #06 | Junho/Julho
tmida ou arredia, na prpria fatura de seus trabalhos a artista se mostra
seletiva quanto recepo de sua obra.
Mira Schendel Uma brincadeira de se esconder
J nas primeiras obras da exposio aprendemos como aceder ao
processo de trabalho da artista, num percurso que sugere fazer, olhar e depois
pensar. No texto-objeto que compem seus trabalhos, vemos linhas que ora
se caracterizam como smbolos distorcidos, ora so smbolos formados por
linhas distorcidas. Sentam no papel, somem no papel, projetam o papel. Bi e
tridimensionalmente, lgica e conseqentemente. Para acentuar a necessidade
de reciprocidade entre artista e espectador, Mira deixa em branco o ttulo.
Qui para no entregar-se como um texto codificado queles que olham uma
obra atentamente s depois de entender seu nome.
Em sua srie Droguinhas(1964-66) Mira usa o finssimo papel arroz de
forma escultrica. Ao transformar sua funo, negando-lhe a fragilidade
(caracterstica mais comum desse papel), d vida ao suporte de outra maneira.
Silenciadas no papel, projetadas noutro espao, as palavras ali unidas se
tornam frases. Frases que pendem do teto, que formam esferas e
emaranhados. Vemos aqui uma oportunidade de evidenciar a problemtica da
comunicao atual: um projeto embaralhando palavras que se constroem
umas por cima das outras, que escondem o que foi dito antes , deixando valer
o que foi dito por ltimo, negando a linearidade construtiva do passado, da
palavra, do homem.
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#06 Jun/Jul 2010
Revista Bimestral de Arte Panorama Crtico | ISSN 1984-624X | Edio #06 | Junho/Julho
Mira Schendel S/ ttulo, da srie
Droguinhas (1964 1966)
Num momento posterior, com sua srie Toquinhos(1970), Mira
demonstra o quanto a linguagem uma forma transparente que s se
completa por meio de uma interao pblica para o que estes signos
indecifrveis aguardam um sentido ou voz que se aproprie deles5. Suas
placas de acrlico, que funcionam como janelas, de acordo com a artista, do
vida letra, ao signo indecifrvel.6
Sob diferentes vises, as letras, quadro a quadro coladas no fundo das
placas de sustentao, chamam o espectador. Brincam com o olhar, jogam
com itinerrios dinmicos, hora fixando-se no enquadramento ureo, hora
estando quase fora do bastidor acrlico. Tambm em Toquinhos, nos
deparamos com a reiterada necessidade de aproximao do olhar. E,
novamente, se afirma, nestes, a premissa bsica para o observador de todo o
trabalho da artista: ver at sentir.
Ali, os smbolos, que se desligam de um sentido convencionado (signo),
por estarem livres, sem conexo com os demais ao redor, voltam ao devir
expressivo da linha, abertura do sentido que Schendel tambm explora na
sua srie de monotipias. Alguns signos maiores que outros, mais finos, mais
ondulados... Na ateno do observador, todos perdem seu poder de dar
sentido em favor de um valor mais dcil e potente, o de ganhar um sentido.
5 Texto explicativo retirado da exposio Len Ferrari / Mira Schendel O Alfabeto Enfurecido, ao lado da obra s/ ttulo da srie Toquinhos, de 1970, da artista Mira Schendel. 6 Idem.
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Mira Schendel S/ titulo, da srie Toquinhos (1970)
Ao final da exposio temos a ntida sensao de conhecer a artista
profundamente. Encaramos ento no mais uma artista tmida de difcil
compreenso, mas ficamos diante uma grande artista que consegue, com
maestria invejvel, lanar mo do individualismo para contar coisas a quem
estiver disposto a escutar/ver/sentir. Como uma brincadeira de esconder, que
s acaba de verdade quando se acha o que se procura.
Len Ferrari a verdade sobre a linha.
Na mesma exposio, o alfabeto enfurecido de Len Ferrari
impregnado de mpeto, denncia, braveza e arrebatamento. Sua obra
carregada de verdades inconvenientes. Len apresentado como um artista
atuando por contornos marginais do sistema, com um trabalho que pe tudo
sob suspeita. Ferrari causa contrastes que gritam, que quase explodem, e que
o caracterizam como um artista no s de mo cheia, mas principalmente de
boca cheia. Boca cheia de razes, olhos bem abertos, mo muito ativas. A
cada momento seus trabalhos atordoam e questionam. Seja na forma, no
contedo, no texto sugestivo dos ttulos, no conjunto ou no contexto de sua
realizao.
Em uma de suas obras de maior destaque, Cuadro Escrito (1964), o
recurso caligrfico, a letra, as palavras, soam mais evidentes enquanto
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semelhanas que o aproximam do trabalho de Schendel. Neste quadro escrito,
preocupado com o movimento mais do que com a forma, Ferrari escreve na
tela o que a pintura representa. Com um gestual graciosamente arredondado,
Ferrari nos faz lembrar a Pedra de Roseta7, deixando clara a inteno de usar
o quadro como meio de comunicao no s com uma etnia, mas com outras
tantas, e tambm de coloc-lo como pea curinga de suas prprias obras,
manancial para decifrar outros enigmas.
Len Ferrari - Cuadro escrito, 17 de dezembro, 1964
Ainda em Cuadro escrito, Len coloca luz um debate intermitente
tambm para a arte contempornea: o que define o figurativo? Quando lemos
uma passagem com caractersticas literrias ou epistolares, ns acabamos
imaginando o que o texto nos prope, ns figuramos o que est sendo narrado.
Assim, nesse trabalho em especial ( mas outros tambm), ao apresentar
smbolos seqenciais (que dependem do seu seguinte e do seu anterior para
7 Que tornou possvel a traduo dos hierglifos por conter, em outra parte, o mesmo texto escrito em grego clssico.
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configurar sentido), existe algum meio coerente/convincente para que no
consideremos esta obra uma figurao, uma representao do que foi
pensamento, imagem mental?
J na obra Quisiera hacer una estatua (1964), Ferrari prope o meio-
dito, a mensagem que no se completa. O pensamento visual comea acima
de onde podemos continuar, como uma imagem que se afirma, mas que se
deixa ludibriar pelo que a segue. Em ambos os trabalhos (Cuadro escrito e
Quisiera hacer una estatua) Ferrari emprega a caligrafia confusa, criando
desenhos que se tornam textos. Mesmo nas suas modificaes, com certas
letras maiores que outras (e palavras que parecem sobrepor-se), essas obras
so legveis. So mensagens destinadas a quem quiser l-las e se esforar
para isso, pois Ferrari impe obstculos para que apenas os interessados
entendam. O mesmo jogo de esconde e aproxima que Mira faz, porm, com
roteiros distintos.
Desdobrando ainda mais sua linguagem, Len constri Amad(1996),
onde introduz a escrita braile sobre fotografias. Ali a mensagem no pode ser
lida com os olhos, por mais que se tente. A vitrine, que impossibilita o toque,
anula a comunicao entre a obra e o espectador, deixando-o desconfortvel
e curioso diante de um escrito impossvel de ler. Diferente oportunidade se
tem com outras obras, quando o artista usa o mesmo recurso do braile sobre
fotografia, porm sem vitrine, ou quando, noutro trabalho, entrega a fonte
inspiradora ao leitor. Com isso, acaba transformando, de maneiras variveis e
em variados graus, a relao do espectador/observador com a obra. Nesse
encaminhamento potico, Ferrari impe ao pblico a passividade da
observao sem registros, sem juzos. O artista cria um jogo onde ele o
mestre supremo, um emissor de memorandos pblicos, porm de difcil ou
impossvel leitura.
As inconvenientes verdades de Ferrari.
O que povoa a cabea de Ferrari? Seria sua memria ou sua
conscincia que o impelem a dizer algumas coisas, da forma que as diz? Em
Atado com alambre(2006), Len nos remete ao inferno catlico e aos regimes
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polticos ditatoriais. Usa ossos possivelmente por sua associao com a morte
elegaca, aquela que j pode ter sido esquecida pelos mortais. Com ossos ele
ento nos lembra das mortes promovidas pela ditadura Argentina. Mortes que
habitam a alma do artista. Que alimentam sua gana por verdades, por
registros, por palavras justiceiras onde no cabe consolo. Ossos aglomerados,
apertados, corpos descarnados. Ossadas que cobram, indagam sobre o valor
humano, o silncio e o lugar dos homens diante do governo ditador que ceifou
vidas, torturou corpos e sonegou cadveres.
Os arames que costuram um osso ao outro podem remeter culpa de
quem os costurou/fraturou/escondeu, ou lembrar a impotncia de algum que
viu um corpo e, condenado pelas circunstncias, apenas cuidou para que seus
ossos ficassem juntos, para que no futuro, quando o medo fosse passado,
algum os encontrasse para recontar essa histria e outras verdades.
Na mesma forma de representao auto-invocada, implicada, indignada,
quando Ferrari cria suas relecturas de la biblia atravs de collages, faz
crticas pesadas igreja catlica. Leon cria collages com figuras sacras, e as
coloca em pose de adorao a armamentos, helicpteros de guerra e foguetes.
Invoca assim uma adorao conquista desenfreada e ao imperialismo,
sempre apoiados pela igreja que, em momentos desumanos prefere manter-se
calada, para no precisar ficar de algum lado da guerra (talvez para manifestar
a, sua f na ordem divina). Len ainda demonstra, em camadas coladas, a
natureza sobre-humana dos conflitos e descobre neles seus santos e armas de
destruio em massa.
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Len Ferrari - Carta a un general
18 de junho, 1963
Passando da proclamao invocada s comunicaes indiretas, Ferrari
cria LOsservatore, Declaracin de le Academia Pontificia e Ciertamente la
vida vencer, outras collages onde pega manchetes de jornais e as ilustra com
novas figuras, dando outro contexto obra pronta. Com essas obras Ferrari
deixa claro seu objetivo questionador e, ao mesmo tempo, infringe ao
espectador uma paralisia momentnea. Em cada trabalho o artista nos
questiona sobre o que sabemos a respeito, e quase nos obriga a escolher o
que tem nele de verdade e de mentira. Ambivalente, irnico, sagaz, a
mensagem se torna contrria imagem, em uma produo onde ento nos
perdemos, sem saber em que, de fato, acreditar: na mensagem escrita ou na
narrativa visual? H um julgamento de valor entre o que se v e o que se sabe
ou se pode saber, pedindo uma tomada de posio no tempo presente.
Universos que conversam.
Tanto Schendel quanto Ferrari trabalham de forma curiosa com a letra-
linha. Muitas vezes, usam letras que tem movimentos de linha perto de linhas,
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e linhas que poderiam ser letras se no estivessem to perto de outras letras
mais evidentes. Esse jogo nos faz pensar o que feito de quem?, pois j no
entendemos mais se a linha sinuosa que forma a letra, ou se a letra
desfigurada que forma a linha. Principalmente quando um exemplo est
intimamente ligado ao outro.
Mas o alfabeto enfurecido que reuniu os artistas tanto metafrico
quanto polissmico. Em cada caso, o que entendemos por alfabeto , em
progresso, outra coisa. Outros signos que teimamos em assimilar como
alfabeto. Enfurecem em sua natureza e devir, enquanto continuamos a ver
apenas o que eles tm de evidente, sem nos atermos ao mais importante:
saber com quais textos/linhas/termos estamos lidando em cada trajetria. No
entanto, mesmo em seus momentos mais ntimos (e, portanto, distintos), esses
dois artistas permitem uma ligao potica forte, sob o apelo da linguagem
cognitiva.
Ambos exploram as codificaes do alfabeto de maneira nada simples.
Enquanto Mira v nas letras uma extenso da linha e a privilegiada conexo
de sentido entre elas, Len foca a ambigidade da comunicao. Ou seja: at
onde uma imagem/mensagem continua fazendo sentido da maneira que foi
feita para faz-lo e, quando, em que momento, isso se perde ou modifica?
Ferrari pensa a sntese e o paradoxo do entendimento.
Os dois utilizam os elementos da linguagem no apenas com o sentido
de comunicar (ou comunicar-se), mas como um material fsico, capaz de
construir ou alterar formas. Geram linguagens artsticas como regime de
imagens mundanas de comunicao e realidade esttica. Atravs de lnguas
(e talvez assuntos) diferentes, enquanto Lon Ferrari, berra, anuncia, explode,
Mira Schendel conversa, sussura, cutuca e cochicha. Dois artistas de
personalidades e temperamentos diferentes, mas igualmente afirmativos em
suas proposies artsticas.
*Bruno Dorneles da Silva graduando em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS, onde participa do Grupo de Pesquisa em Estudos Sistmicos e Historiografia da Arte sob a coordenao dos professores Bianca Knaak e Lus Edegar Costa. Desenvolveu esse texto em parceria com a professora Bianca Knaak (Doutora em Histria) a partir da disciplina Fundamentos da Arte.