Bruno Tolentino - Um Poeta a Ser Redescoberto

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Bruno Tolentino sobre Álvaro Pacheco.

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Bruno Tolentino

Um Poeta a Ser RedescobertoA pujana de nossa lrica nunca esteve seriamente em dvida. Mas aparece com inusitado vigor nos vrios e diversos livros de lvaro Pacheco, sobre os quais o recente, Solstcio de Inverno, ocupa o dcimo segundo andar num edifcio rtmico-imagstico-verbal sem paralelos em nossa tradio. Esse poeta que h quatro dcadas vem extraindo aos mais densos subterrneos da sensibilidade uma linguagem marcadamente pessoal j tem, pois, obra bastante para que nos perguntemos qual o seu lugar de direito em nossa hierarquia potica atual. No hesito em subscrever feliz hiptese: trata-se de uma personalssima alquimia, de porte e estirpe inequivocamente "maior". Associo-me assim a Rachel de Queiroz e Carlos Heitor Cony, seus mais recentes fiadores num coro ilustre que vem de longe. J se espantava Octavio de Faria h vinte e tantos anos: "Custa-me compreender a conspirao de silncio que se formou a propsito da poesia de lvaro Pacheco... Tenho por certo que se trata de um de nossos melhores poetas atuais". A mim, claro no me custa entender nada. A verdadeira poesia no apenas rara, marginalizao em seu decurso e anti-social em sua apario. Todo poeta de veras comea por no passar de mais uns Judas que passam por Cristo.Se por desgraa faz fortuna o homem que sustenta o artista, a" ento um Deus nos acuda! O vulgo no, esse no se d a comdias, mas o irmo colega raramente perdoa aos "do ramo" qualquer triunfo no mundo vasto-mundo: mundanidades s as literrias! Ora, dessas justamente nosso homem no se ocupa, vai ver at que no as entende... De resto, tem mais o que fazer: alm de uma importante pirmide escavada no granito da lngua erguida nos desvos mais sutis de nossa linhagem potica, tambm homem pblico de raro xito em suas mltiplas atividades de editor pioneiro a empresrio de sucesso e, en hora buena, o tardio "senior politician" de projeo nacional. Paga, pois, o que pagou Augusto Frederico Schmidt a seu tempo pelas mesmas razes: o bulo do oprbio em ser mais, do que um sofrido poeta "desgarrado"... Em minha primeira juventude o nome do autor de Josefina no corao das fogueiras era antema entre as levas de jovens literatti. Escudado no apreo que lhe tinham seus pares, o grande bardo consolava o homem, mantinha-lhe a impassividade das esfinges doces. Schmidt sorria e perdoava. Mas, sabendo-se o Judas que no queria passar por Cristo, fervoroso cristo que era, pagava interminavelmente o mal a que o votavam com o bem que lhes fazia.No carrego culpas naquele caso clebre, seja dito aqui! Militante que fosse da Juventude Comunista, era tambm juscelinista jurado e do grande Presidente valia o aval: o "gordinho sinistro" era uma de nossas maiores figuras e o poeta estava em questo! No caso lvaro Pacheco lavo-me enfim de uma involuntria omisso. Simplesmente no sabia, ao deixar o pas, como quatro anos depois de recobr-lo(!), que passava inadvertidamente ao largo de um de meus pares mais refinados e originais. A ignorncia da alma grave, a da informao mero acidente de percurso. No sendo homem de opinies e no me prestando a "intelectual coletivo", penitencio-me apenas de que a viso algo congelada de um distante "Brasil de estante" (esse avatar de todo exilado renitente) me tenha impedido por tanto tempo de abeberar-me, como tenho feito, avidamente, num dos veios mais lmpidos e genu"nos de nossa melhor lrica viva. No sei de versos mais convinventes do que os 3.241 que compem o tecido rigoroso, se quase libelular, da obra prima de lvaro Pacheco em 1984, a Balada do Nadador do Infinito. Laureado com o Prmio Nacional de Literatura do Pen Clube do Brasil, espantoso que um livro de uma tal altura e fineza no tenha de uma vez por todas tornada patente a importncia de toda uma obra que venha iluminar escaninhos mais recessos e mais bvios! Mas. C'est la vie, que parece, c por estes trpicos em que nos damos ao triste luxo de penalizar, criminalizar quase o sucesso sobretudo quanto a mltiplos nveis. Inegvel, por aqui, s mesmo o Po de Aucar.S que o esprito que nega impe-se um alto preo, as recusas arbitrrias no enriquecem um povo, menos ainda uma literatura. J naquela memorvel Balada as 161 estrofes em verso branco eram to regulares como extraordinrias em sua sutil composio segundo a forma sonata (exposio-desenvolvimento-recapitulao); as implicaes, portanto, de ignorar um tal feito so graves para o julgamento que fora fazer hoje de nossa "inteligncia" dos anos 80 e seqelas. Com as grandes e honrosas excees a que aludi acima, Drummond, Wilson Martins, Olinto e Coro entre elas, tanta afetada indiferena conta uma acabrunhante histria de auto-abaixamento espiritual, moral e, inevitavelmente, intelectual tambm.No rastro da Geometria dos Ventos de 1992, a mais recente coletnea deste poeta exemplar confirma as virtudes e peculiaridades de uma voz to autntica e inelutvel como os ventos e as geometrias. E felizmente to pontual como os Solstcios! Mas deixemos as slabas finais do prprio vate:

"A terra de ningum se disfara em absurdos e obuses(...) a mosca s escapacom a senha da alma cega e reconquistada(...)/ Apenas se inicia outra vezo caminho dos sculosto ntimo como o tronco do velh'oitizeiro, contudoa paz no te permite sossegar;onde esto a velha praae as ruas esteiras e pontudasegurando teus passos?Jornal do Brasil, Idias, 24 de abril de 1998.