Bruno Tolentino

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Bruno Tolentino O Espírito da Letra Um poema de 'A balada do cárcere' Ao pé da letra agora, em minha vida há a morte e uma mulher... E a letra dela, a primeira, me busca e me martela ouvido adentro a mesma despedida outra vez e outra vez, sempre espremida entre as vogais do amor... Mas como vê-la sem exumar uma vez mais a estrela que há anos-luz se esbate sem saída, sem prazo de morrer na luz que treme?! O mostro que eu matei deixou- me a marca suas pernas abertas ante a Parca aparecem-me em tudo: é a letra M a da Medusa que eu amei, a barca sem amarras, sem remos e sem leme..."

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Bruno Tolentino

O Espírito da Letra                    

 

Um poema de  'A balada do cárcere'

Ao pé da letra agora, em minha vida há a morte e uma mulher... E a letra dela, a primeira, me busca e me martela ouvido adentro a mesma despedida

outra vez e outra vez, sempre espremida entre as vogais do amor... Mas como vê-la sem exumar uma vez mais a estrela que há anos-luz se esbate sem saída,

sem prazo de morrer na luz que treme?! O mostro que eu matei deixou-me a marca suas pernas abertas ante a Parca

aparecem-me em tudo: é a letra M a da Medusa que eu amei, a barca sem amarras, sem remos e sem leme..."

                                                                  

Bruno Tolentino

O Anjo Anunciador 

 — Ouve, Maria, a nossa (não, não te assustes!) é uma luminosa  tarefa: retecer o pequeno clarão que abandonaram,  o lume que anda oculto pela treva! Porque irás conceber! Porque a mão, desejosa  e tosca, que O tentara  reter, ainda que leve,  desfez-se ao toque, assim como uma vez  tocado o sopro se desfaz a avara,  a dura contração do peito ansiado...

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Mas a haste, o jasmim despetalado,  é tudo o que ainda resta  dos canteiros do céu aqui na terra,  que um seco vento cresta  e uma longa agonia dilacera. No entanto a morte há de morrer se tu quiseres,  ó gota concebida bendita entre as mulheres  para que houvesse vida  outra vez, e nascesse desse fundo  obscuro do mundo, o ninho incompreensível do teu ventre.

Não, não toques ainda nem a fímbria do manto nem o centro  do mistério que anima a tua túnica:  aguarda, ó muito séria, a ave mansa  e recebe em teu corpo de criança  a Verônica única, a enxurrada de pétalas te abrindo.

Em tumulto reunidas,  as cores da perdida Primavera  vão retornar, virão  numa enchente de asas, aluvião,  púrpura, sempre-viva, nascitura  estranheza do amor da criatura,  constelação descendo ao rosto teu:  é Ele, é O que reúne o coração  e o grande anel da esfera,  o fogo, a língua ardendo, o incêndio vivo,  a coluna de luz, o capitel que se perdeu... Que eu

venho anunciar apenas a um esquivo,  humílimo veludo, a frágil chama  que há de crescer em ti, que hás de ser cama  ao parto do Perfeito, e hás de ser cântaro  e fonte e ânfora e água,  hás de ser lago em que as sombras se afogam, que naufragam  no imenso, ó jovem branca como um lenço;  hás de conter a lágrima  do Infinito, o Seu vulto  e os tumultos da luz na travessia  entre a dádiva, a perda e a renúncia:  quando de um certo dia  cheio de luz amarga

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em que serás enfim a sombra esguia  que O deu à luz e que O assistiu morrer...  Atravessa, ó Maria,  os abismos do ser,  ouve este estranho anúncio  e deixa-te invadir para colher,  mais fundo que a razão  e o corpo, o sopro cálido, o prenúncio  da mais viva alegria:  entreabre-te ao clarão  da visita suave, mas terrível, terrível, deixa a ave  do imenso sacrifício te ofender.

Ó pétala intocada, hás de sofrer intensa madrugada  e num lago de luz como afogada  hás de durar suspensa entre a graça imortal e a dor imensa.

Mas canta, canta agora como a fonte borbulha, como a agulha  atravessa o bordado,  canta como essa luz pousa ao teu lado  e te penetra e tece a nova aurora,  a nova Primavera e a tessitura  do ramo que obedece e se oferece  para o mistério e pela criatura.

Canta a alucinação, o toque enfim possível dessa mão  que há de colher para perder e ter  o infinito que nasce do deserto  e a semente que morre se socorre  tudo o que no estertor tentava ser.

Canta a canção do lírio e do alecrim,  essa canção que és e que na treva,  na escuridão da carne, andava perto  da imensidade que te invade.  E assim  como o imenso te ampara,  ó voz tão clara  que consolas e elevas, vem, desperta,  matriz da eternidade e d'O sem-fim,  ó mãe de Deus, canta e roga por mim

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Os Deuses de Hoje 

Bruno Tolentino 

(1995) 

“Nihil obstat” 

II

É preciso que a música aparenteno vaso harmonizado pelo oleiroseja perfeitamente consistentecom o gesto interior, seu companheiro

e fazedor. O vaso encerra o cheiroe os ritmos da terra e da sementeporque antes de ser forma foi primeirohumildade de barro paciente.

Deus, que concebe o cântaro e o separada argila lentamente, foi fazendodo meu aprendizado o Seu compêndio

de opacidades cada vez mais claras,e com silêncios sempre mais esplêndidosfoi limando, aguçando o que escutara.