Buarque, Luís_heráclito e Heraclitismo No Cratilo de Platão

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  • desgnio 15 jul/dez 2015

    135

    * Departamento de Filosofia

    da Pontifcia Universidade

    Catlica do Rio de Janeiro,

    Rio de Janeiro, Brasil -

    [email protected]

    Luisa Buarque*

    Heraclitism and Heraclitus in Platos cratylus

    BUARQUE, L. (2015). Herclito e heraclitismo no Crtilo de Plato. Archai, n. 15, jul. dez., p. 135 -141

    DOI: http://dx.doi.org/10.14195/1984-249X_15_13

    HERCLITO E HERACLITISMO NO CRTILO DE PLATO

    RESUMO: Este artigo aborda o tratamento dado por

    Plato, no dilogo Crtilo, a certos temas heraclticos.

    A partir de uma anlise da refutao da personagem Crtilo por

    Scrates, que ocorre ao final do dilogo, pretende-se mostrar o

    jogo explcito e implcito com o chamado fluxo heracltico e a

    unidade dos contrrios que o autor Plato capaz de forjar.

    Jogo que faz com que, por fim, Scrates capture Crtilo com

    a ajuda da armadilha criada por seus prprios argumentos.

    PALAVRAS -CHAVE: Crtilo, nomes, heraclitismo,

    fluxo, Plato.

    ABSTRACT: This paper develops the treatment given by

    Plato to certain Heraclitic subjects in the Cratylus. Beginning

    with an analysis of the refutation of the character Cratylus

    by Socrates, which occurs at the end of the dialogue, it aims

    to approach the explicit and implicit game with the so called

    Heraclitean flux and unity of the opposites which Plato, as

    an author, is capable of forging. Game that is responsible,

    in the end, for Socrates capturing Cratylus with the trap

    made by his own arguments and conceptions.

    KEYWORDS: Cratylus, names, Heraclitism, flux, Plato.

    Quando se trata de rastrear a importncia de Herclito para o dilogo Crtilo, logo se depara

    o intrprete com um clebre problema: estava ou

    no o autor Plato ciente das possveis divergncias

    entre o obscuro texto de Herclito e as suas mais

    disseminadas interpretaes, muito frequentemente

    reduzidas quase que inteiramente ao tema do tudo

    flui? Em realidade, tal pergunta perpassa as vrias

    obras de Plato em cujos contextos o pensamento

    de Herclito mais detidamente examinado, tais

    como o Teeteto, por exemplo. Isso ocorre porque,

    ao que parece, h nelas uma espcie de jogo com o

    peso que Herclito adquirira em todo o subsequente

    pensamento filosfico, e com a denncia da leitura

    que seus representantes, isto , aqueles que ado-

    tam seu ponto de vista, haviam feito a respeito do

    pensamento do mestre. No Crtilo, isso ocorre por

    meio de uma espcie de hipstase do pensamento

    heracltico: medida que a importncia do tema do

    fluxo aumenta no dilogo, diminui a importncia de

    Herclito em particular para a obra. O Efsio, alis,

    nunca est sozinho ao afirmar que tudo se transforma

    incessantemente. O que se revela aos poucos que a

    quase totalidade da cultura grega j era heracltica

    avant la lettre uma leve troa, quase uma acusao

    de plgio bem de acordo com o peculiar tom cmico

    do dilogo em questo de modo que toda vez que

    1 Agradeo aos alunos

    do curso de ps, 2013/1,

    Tpicos Especiais de Filosofia

    da Linguagem, sem cujas

    sugestes este texto no

    existiria. Agradeo tambm,

    e muito especialmente,

    ao Carlos Lvy pelos

    valiosssimos comentrios e

    sugestes.

  • 136

    se introduz a questo do fluxo por meio de um

    plural, de um coletivo, da meno a um grupo (cf.

    402a3, com Herclito a ensinar velhas mximas do

    tempo de Reia e Crono, que j tinham sido ditas por

    Homero2, mas tambm 411b -c e 440c2).

    No entanto, no apenas no tema do fluxo,

    reconhecido por ser o mais marcadamente heracl-

    tico aos ouvidos da poca, que o dilogo se detm.

    Antes de mais nada, trata -se de um dilogo sobre

    ta onomata, os nomes, as palavras significativas

    em geral, e sobre sua relao com as coisas extra-

    -lingusticas, e tal tema tambm parece ter sido

    tratado por Herclito, bem como herdado por seus

    seguidores (os trs exemplos mais clebres, dentre

    os fragmentos de que dispomos, so: Fragmento

    LXVII, Deus: dia -noite, inverno -vero, guerra -paz,

    saciedade -fome, mas se altera como o fogo quando

    se confunde fumaa, recebendo um nome conforme

    o gosto de cada um, Fragmento XXXII, Um, o nico

    sbio, consente e no consente em ser chamado pelo

    nome de Zeus, e Fragmento XLVIII, O nome do

    arco, vida; sua obra, morte3). Ora, precisamente

    nesse ponto que une a possibilidade de nos per-

    guntarmos acerca das coisas que nos rodeiam com

    o exame das palavras que usamos para design -las

    que se encontra o foco de Plato nesse dilogo que,

    no por acaso, homnimo do mais conhecido dos

    ultra heraclticos. Minha proposta aqui, para diz -lo

    brevemente, focar a ateno mais particularmente

    em Crtilo, tomado como representante da classe dos

    heraclticos, e tentar mostrar que tal personagem

    submetida, no dilogo platnico, a um tipo bem

    especfico de elenchos; e, finalmente, que esse pro-

    cesso elnctico centra -se precisamente no problema

    da relao entre a linguagem e um mundo que flui.

    Esse elenchos, ademais, ter grandes consequncias

    para a sua vida, caso aceitemos (no necessariamen-

    te como historicamente correta, mas ao menos como

    suficientemente conhecida por Plato) a anedota

    aristotlica que conta que Crtilo, a certa altura da

    vida, pra de falar e apenas aponta para os objetos

    (supostamente por ter -se tornado mais heracltico

    do que Herclito, ao concluir que sequer uma nica

    vez possvel entrar no mesmo rio). O que essa

    personagem escolhida - literalmente a dedo - por

    Plato para dar ttulo ao dilogo tem a nos dizer? E

    que relao possui a posio sustentada por ela em

    relao ao tema dos nomes com os fragmentos de

    Herclito que possumos hoje? Essas so as inda-

    gaes que me guiaro ao longo do presente texto.

    Ora, sabemos todos que Crtilo sustenta,

    desde o incio do dilogo, haver uma correo,

    ou justeza, natural dos nomes. Ao longo de todo

    o texto, ele mantm firmemente a posio de que

    qualquer nome naturalmente adequado para a coisa

    a que se refere, se for de fato um nome. Alm disso,

    o jovem no fala muito, como j foi amplamente

    notado. No explica a sua posio, expressa -se como

    que por meio de orculos - obscura e enigmatica-

    mente, emulando talvez o seu mestre Herclito.

    Cabe primeiro a Hermgenes, depois a Scrates, a

    explicao da posio de Crtilo, e nunca ficamos

    suficientemente informados quanto a se o jovem

    de fato pensava aquilo tudo, ou se finge j haver

    pensado o que Scrates argumenta, aproveitando -se

    de tal argumentao para corroborar suas incipientes

    hipteses. Mas o fato que, como tambm j foi

    amplamente notado, a posio de Crtilo acerca

    dos nomes casa mal com o heraclitismo que ele

    conhecido por professar, e que de fato professa

    durante boa parte do dilogo. Como algum que

    afirma que tudo muda constantemente pode sus-

    tentar simultaneamente que as palavras fixas se

    assemelham naturalmente a coisas que, segundo ele

    mesmo, nunca esto fixas?

    Uma hiptese para solucionar tal problema

    afirmar, com Sedley e Ademollo, que o jovem Crtilo

    com que nos deparamos inicialmente no ainda

    heracltico, e vai passando a crer na teoria do fluxo

    ao longo do dilogo4. Essa hiptese , inclusive,

    bastante interessante para a presente argumenta-

    o, mas no necessria. Admitamos por enquanto,

    como se costuma fazer, que Crtilo j demonstrava

    tendncias heraclticas, digamos, e que Scrates

    aborda o problema do fluxo justamente por causa

    disso. Ainda assim, parece -me que a observao

    sobre a incoerncia entre a fixidez das palavras e a

    transformao das coisas lanada para o dilogo

    de trs para diante, ou seja, da concluso para o

    comeo. Ela no se coloca e no precisa se colocar

    na parte inicial da obra. E isso, no porque l no

    haja Herclito nem heraclitismo (de fato no h,

    2 Cito sempre a traduo de

    Carlos Alberto Nunes.

    3 Para Herclito, cito sempre a

    traduo de Alexandre Costa.

    4 Ademollo (2011, p. 487);

    Sedley (2003, p. 171).

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    mas o prprio Scrates no tardar a introduzi -los,

    em 401d), mas sim porque, mesmo quando passa a

    haver, essa presena no gera a esperada contradi-

    o entre a noo de um fluxo inconstante versus

    palavras constantes. A soluo para esse problema

    que no se pe simples: as palavras so fixas,

    mas dizem fixamente que tudo passa. Todas elas,

    quando avaliadas etimologicamente, nos informam

    uma nica coisa, a saber, que nada fica, que tudo

    se esvai, que tudo corre e flui. E como elas o fazem

    efetivamente durante a chamada parte etimolgica?

    Ora, de um lado, as palavras que designam coisas ex-

    celentes e belas exprimem a necessidade do fluxo; de

    outro, aquelas que designam coisas vis exprimem a

    estagnao e tudo o que, em geral, faz obstculo ao

    fluxo incessante. Essa a concluso que predomina

    ao longo de boa parte da conversa entre Scrates e

    Hermgenes, e o silncio de Crtilo nesse contexto

    parece ser o silncio arrogante e impertinente de

    quem pensa: eu no disse?

    Todavia, insistamos ainda na tantas vezes

    formulada pergunta: por que Crtilo fala to pou-

    co? Muitas razes so apontadas para isso, todas

    elas plausveis: ele no capaz de justificar aquilo

    que sustenta, quer dissimular a ignorncia com um

    silncio aparentemente sugestivo etc5. Eu gostaria

    de acrescentar a elas uma outra explicao, que me

    interessa aqui justamente para melhor esclarecer

    o que me parece ser o percurso da personagem ao

    longo do dilogo, bem como aquilo que eu estou

    chamando aqui de um elenchos bem peculiar. Ora,

    Crtilo fala to pouco, dentre outros motivos, porque

    no precisa falar, j que as palavras dizem tudo

    por ele6. Basta saber examin -las. O que eu quero

    dizer o seguinte: em um mundo cratlico, onde os

    nomes so naturalmente corretos, porque sempre

    semelhantes s coisas que designam, bastam os

    nomes. No so necessrias explicaes adicionais,

    pesquisas, definies, perguntas, muito menos

    dialtica. Pronunciar um nome j , ao menos para

    o bom entendedor, revelar de uma vez por todas a

    essncia das coisas, de modo que os discursos ficam

    to curtos quanto a quase monossilbica resposta

    inicial de um Crtilo que tanto demora a entrar na

    conversa, e cujas afirmaes tambm j eram eco-

    nmicas antes da chegada de Scrates (como indica

    o resumo que Hermgenes faz da discusso prvia

    que os dois jovens haviam travado). Dito de outro

    modo, Crtilo fala pouco porque, para ele, tudo o

    que se pode dizer j est dito nos nomes das coisas.

    Nomear suficiente para descobrir, conhecer, apren-

    der e instruir sobre a natureza movente (kinesis) do

    ente nomeado, e sobre a natureza mutante (alloiosis)

    dos entes em geral.

    Quando finalmente for invocado cena, entre-

    tanto, Crtilo ser posto contra a parede7; Scrates

    ir lhe mostrar, por meio de uma srie de passos

    importantes, que seu pensamento no suficien-

    temente bem fundado, a ponto de no sucumbir

    refutao filosfica. O primeiro passo ser atacar a

    compreenso de semelhana que permeia a explica-

    o cratlica das palavras. Como visto antes, para

    Crtilo, os nomes so naturalmente corretos porque

    semelhantes s coisas que designam, na exata medida

    em que so capazes de informar sobre suas naturezas.

    E mais: se so semelhantes, simplesmente o so e

    todos podem reconhecer tal semelhana; correspon-

    dentemente, se so diferentes, simplesmente no

    so os nomes das coisas, pois dessemelhanas no

    so adequadas para informar. Brevemente: ou bem o

    nome semelhante e nomeia, ou bem diferente e

    no nomeia. Antes de mais nada, portanto, Scrates

    ir mostrar a Crtilo que a noo de semelhana

    comporta graus, isto : uma imagem pode ser mais

    ou menos similar ao original a que remete, sem que

    com isso deixe de ser uma imagem.

    Esse ponto da demonstrao essencial

    porque, se uma palavra for apenas fracamente se-

    melhante coisa que designa, ento dar -se - o caso

    de que, enquanto imagem mal -formada, ela preci-

    sar de retoques, ou seja, de anlises e de exames.

    A estratgia de Scrates em tal ocasio consiste

    em, propondo uma forte analogia entre palavras e

    pinturas, tentar fazer Crtilo admitir que os nomes,

    enquanto imagens, podem ser belos, contendo todos

    os elementos necessrios para informar acerca da

    natureza do ente designado, ou feios, no contendo

    todos os elementos em questo, mas nem por isso

    deixando de ser nomes (431d). E a resposta de

    Crtilo consiste em retrucar que, quando trocamos

    (acrescentando, subtraindo ou deslocando) a letra

    de um nome, no escrevemos mais o mesmo nome,

    5 Cf., por exemplo, Nightingale

    (2006).

    6 No quero insistir aqui numa

    coerncia da personagem, como

    se ela j houvesse pensado no

    mtodo etimolgico e chegado

    concluso de que as palavras falam

    por si. Penso muito mais em uma

    coerncia dramtica relativa ao

    dilogo, que inclui o delineamento

    de um percurso dramtico da

    personagem. Trata -se, ao fim e ao

    cabo, de uma posio que tambm

    acaba por ser problematizada por

    Scrates, independentemente do

    fato de ela poder ser atribuda a

    Crtilo desde o incio, ou apenas

    aps ele passar a despos -la, a

    partir da prpria demonstrao

    socrtica.

    7 importante lembrar que

    isso s ocorre aps o prprio

    Hermgenes ter sido questionado,

    e ter sido refutado um relativismo

    possivelmente ligado sua posio

    convencionalista e contratualista.

    Ou seja: h um desenho nas

    refutaes socrticas do Crtilo

    que coincide com o movimento

    dramtico do dilogo, e

    corresponde sua estrutura. Aqui,

    tentarei esmiuar especificamente

    o elenchos de Crtilo, sendo

    necessrio, portanto, deixar de

    lado o elenchos de Hermgenes.

    Mas registro que a obra como

    um todo caracterizada por uma

    justaposio de dois elenchoi em

    um movimento de ascenso.

  • 138

    e sim um outro nome (432a). Caso extremo, mas

    plausvel (no reino dos nomes prprios, d -nos Ade-

    mollo um exemplo interessante: Creon que vira Cleon

    pela simples substituio de uma letra por outra).

    Porm, a resposta de Scrates a tal colocao

    nada banal exemplar. Talvez no no que diz respeito

    ao detalhe da possibilidade de se escrever uma palavra

    apenas retirando, adicionando ou trocando uma letra

    de outra palavra, mas sim no que tange justamente ao

    heraclitismo. Diz Scrates (432a10 -b6): bem poss-

    vel que se passe conforme dizes com o que s existe

    necessariamente, ou no existe, por meio de nmeros.

    O nmero dez, por exemplo, ou outro qualquer que te

    aprouver: se acrescentares ou suprimires alguma coi-

    sa, tornar -se - imediatamente outro nmero; mas no

    que diz respeito qualidade ou representao geral

    da imagem, no tem aplicao o que dizes, porm o

    contrrio, no havendo absolutamente necessidade de

    serem reproduzidas todas as particularidades do objeto,

    para que se obtenha a sua imagem. Como escreve L.

    Palumbo, parafraseando essa mesma passagem:

    Neste ponto Scrates reprova Crtilo por confundir

    entes cujo ser depende da qualidade com entes cujo ser

    depende da quantidade. No ltimo caso, uma variao,

    por menor que seja, os transforma em outro. No primei-

    ro caso, uma variao pequena deixa -os serem o que

    eram, e a imagem pertence a este caso. 8

    Ora, talvez seja lcito afirmar que, se aplicada

    ao problema da mudana incessante dos entes, a

    afirmao socrtica teria ensinado a Crtilo - caso

    ele estivesse disposto a ouvi -la - que no pelo

    fato de que um ente se transforma qualitativa-

    mente que ele deixa automaticamente de ser o

    que , merecendo um outro nome. Ou, ainda mais

    resumidamente: seria preciso fazer distino entre

    a alterao (alloiosis) por quantidade (poson) e a

    alterao por qualidade (poion). E mais: sobretu-

    do pelas qualidades que as similaridades se fazem

    ver, e, portanto, por elas que uma coisa pode ser

    a imagem de outra (da ser esse comentrio uma

    primeira lio sobre a natureza da imagem)9.

    Valeria tambm perguntar, embora Scrates

    ainda no formule tal questo explicitamente aqui:

    quando que uma mudana qualitativa to grande

    a ponto de gerar, no a mesma qualidade em outro

    grau, nem a mera omisso da referida qualidade,

    mas a prpria qualidade oposta? Em outras palavras:

    quando que uma semelhana enfraquecida se torna

    uma diferena integral, dando lugar contrariedade?

    (Seria possvel evocar aqui, a ttulo de ilustrao

    da pertinncia do tema para Herclito, o fragmento

    LXXXVIII: O mesmo vivo e morto, acordado e ador-

    mecido, novo e velho: pois estes, modificando -se, so

    aqueles e, novamente, aqueles, modificando -se, so

    estes). Este assunto aparecer um pouco adiante na

    manobra refutativa de Scrates, e aparentemente de

    modo incidental; mas antes de chegar a ele mister

    prosseguir no rastreamento de seus argumentos.

    Aps haver formulado o comentrio a propsi-

    to dos graus de semelhana e da natureza qualitativa

    da imagem, Scrates ilustrar a sua explicao com o

    clebre exemplo dos dois crtilos, onde, alm do que

    havia sido observado antes, ser tambm demons-

    trado que graus de semelhana so ao mesmo tempo

    graus de diferena. Ou seja, qualquer imagem, para

    ser imagem, tem de ter sempre alguma distino em

    relao ao original, e, consequentemente, no ser

    nunca uma restituio perfeita do mesmo. Por um

    lado, seria possvel afirmar que, sendo imperfeita com

    relao ao original mas remetendo a ele, a imagem

    ser necessariamente insuficiente. No entanto, im-

    portante esclarecer: ela ser insuficiente se encarada

    como um original enfraquecido. Se encarada como o

    que , a saber, como imagem, faz -se mister perceber

    justamente que ela precisa guardar diferenas, por

    ser outra (e deparamo -nos aqui com uma segunda

    lio sobre a natureza da imagem: se fosse idntica,

    ela perderia seu carter imagtico e tornar -se -ia um

    idem, um redobro, um duplo da coisa).

    Retornando agora, finalmente, para o tema dos

    nomes: se Crtilo continuar sustentando, como con-

    tinuar at o final, que os nomes so imagens, ento

    a concluso que, como toda imagem, eles sero

    eventualmente insuficientes, exigindo explicaes

    adicionais. E nem por isso, evidentemente, deixam

    de ser nomes, como a imagem de Crtilo continua

    sendo a sua imagem mesmo que no contenha em

    detalhes todos os elementos que o prprio Crtilo

    contm (mais do que isso, preciso corroborar: essa

    a condio sine qua non para a imagem de Crtilo

    8 Palumbo (2013, p. 9).

    9 O que leva a pensar que,

    de alguma forma, o raciocnio

    postula implicitamente que todas

    as mudanas qualitativas pelas

    quais algo pode passar sem que se

    destrua inteiramente podem ser

    tomadas como imagens distintas

    de uma mesma coisa. Poder -se-

    -ia consider -lo como um passo

    platnico em direo a um certo

    essencialismo ausente do texto

    heracltico? Seria um tema a se

    pensar, tambm sugerido pelo

    Crtilo.

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    ser uma imagem, e no um segundo Crtilo; no

    apesar das diferenas que a imagem imagem, mas

    precisamente por causa delas). o que Scrates vai

    argumentar em 433b, onde mostra muito claramente

    que, ou bem Crtilo admite que o nome, enquanto

    imagem, pode ser um mau nome e nem por isso

    deixa de nomear, ou bem ele precisar renunciar

    afirmao de que o nome uma imagem da coisa que

    designa. Crtilo, no entanto, no o tipo de inter-

    locutor que se deixa convencer facilmente. Apesar

    de ter concordado com os passos do raciocnio, ele

    no aceita a sua concluso. Responde com um firme

    e convicto: Creio que no vale a pena, Scrates,

    prosseguirmos, pois repugna -me chamar de nome o

    que malformado (433d1). Como indica a resposta,

    tudo flui menos o imvel Crtilo, que continua agar-

    rado sempre mesma viso e no se deixa convencer

    pela argumentao socrtica.

    No obstante, o prximo passo ser fatal para

    o quase inaltervel interlocutor socrtico. Tomando

    o exemplo do substantivo sklerotes - que logo

    substitudo pelo adjetivo skleron - e recordando

    uma parte anterior da discusso qual Crtilo havia

    assentido integralmente, a saber, aquela onde S-

    crates mostrara a Hermgenes que os elementos das

    palavras (letras) de alguma maneira indicam certas

    qualidades das coisas designadas (por exemplo, o

    i indica a sutileza, o o a circularidade etc.), as

    personagens percebem que o termo em questo

    possui uma contradio interna: um lambda e um

    rho, sons que servem para evocar, respectivamente,

    a maleabilidade e a dureza10. Uma s palavra contm

    em si o spero e o macio. No se trata mais apenas

    de no conter todos os elementos necessrios para

    informar a respeito da natureza da coisa designada

    - no caso de sklerotes a dureza - mas trata -se de

    fornecer informaes contraditrias, como o retrato

    de um que se parea mais com o outro, ou ainda,

    um retrato metade homem, metade mulher (retiro

    o exemplo de Ademollo). Agora no estamos mais

    apenas diante de uma semelhana fraca, estamos

    diante de uma diferena integral, de uma oposio,

    de uma contrariedade. O que nos sugere esse oximo-

    ro, em termos heraclticos? Ora, talvez signifique, em

    certo sentido e grosso modo, o cerne do problema da

    harmonia e unidade dos contrrios. No so, afinal,

    dia e noite um e o mesmo?11 Skleron: trata -se de

    uma palavra heracltica12, na medida exata em que

    contm ao mesmo tempo a si mesma - isto , seu

    significado ordinrio, a dureza e asperidade - e o

    seu sentido contrrio, a maciez e a maleabilidade.

    E, no por acaso, justamente na armadilha

    da mais heracltica de todas as palavras - porque no

    diz apenas o dessemelhante, mas mesmo o diverso,

    a completa alteridade que para um heracltico conti-

    nua sendo o mesmo - que Crtilo ter forosamente

    de cair. Porque agora, para saber a quem atribuir esse

    retrato andrgino, para saber que estamos falando

    disso e no daquilo (neste caso de dureza e no de

    maciez), ele no tem mais a quem recorrer, seno

    ao costume ou hbito (ethos). Essa brecha que se

    abre em sua porta suficiente para que invadam

    a festa tambm, junto com o costume, muitos

    outros intrusos, a saber, todos os componentes do

    vocabulrio hermognico elencados no incio do

    dilogo: a conveno (suntheke), o acordo (homo-

    logia) e a lei (nomos). Trocando em midos: para

    ser extremamente coerente tambm com a afirmao

    heracltica de que tudo um, Crtilo s poderia

    empregar palavras do tipo de skleron. Segundo a

    brincadeira socrtica, todo heracltico digno desse

    patronmico deveria recorrer apenas a palavras-

    -oximoros13. S assim uma coisa e seu contrrio

    estariam simultaneamente indicadas, guardando uma

    certa fidelidade natureza dos entes designados.

    Mas nesse caso j no se saberia com certeza se

    uma palavra -imagem decididamente imagem de

    uma coisa, e no de outra; qualquer imagem pode

    ser imagem de qualquer coisa, e a conveno

    necessria para determinar a que original devemos

    atribuir cada uma; dito de outro modo, nunca se

    saberia exatamente de que se est falando a cada

    vez, e apenas a conveno seria capaz de sanar a

    dvida e, por meio de um acordo, compreender o que

    o outro tem em mente ao pronunciar um determinado

    termo14. Em suma: Scrates responsvel aqui por

    mostrar a Crtilo, implicitamente, que ele no est

    sendo suficientemente heracltico ao sustentar que

    h uma estabilidade do fluxo, e que as palavras po-

    dem indic -la. Agora, Crtilo levado a pensar que,

    para serem naturalmente semelhantes realidade,

    todas as palavras deveriam ser como skleron. E, no

    10 importante lembrar que essa

    discusso tem em vista o problema

    dos prota onomata, os nomes

    primrios, os tomos lingusticos,

    digamos assim, a partir dos quais as

    palavras se formam, por aglutinao

    e tambm por deformao.

    Esses nomes primrios foram

    submetidos, ao longo do tempo, a

    transformaes e deformaes. Como

    me alertou C. Lvy, possvel pensar

    que h uma espcie de fluxo das

    palavras a partir de um ponto inicial

    (outro passo em direo a um certo

    essencialismo?). O proton onoma

    como o enraizamento da linguagem,

    seu solo arcaico.

    11 Essa , evidentemente, uma

    meno ao Fragmento LVII,

    Mestre de quase todos, Hesodo;

    esto convencidos de ele saber a

    maioria das coisas, algum que no

    reconhecia dia e noite, pois um.

    Mas tambm poderamos evocar

    uma srie de outros fragmentos, tais

    como o LXXXVIII, O mesmo vivo e

    morto, acordado e adormecido, novo

    e velho: pois estes, modificando-

    -se, so aqueles e, novamente,

    aqueles, modificando -se, so estes,

    e o X, Conjunes: completas

    e no -completas, convergente

    e divergente, consonante e

    dissonante, e de todas as coisas um

    e de um todas as coisas.

    12 Conforme sugesto de Antonio

    Queirs.

    13 No posso deixar de mencionar

    aqui as possveis palavras cratlicas

    de Caetano Veloso em Outras

    Palavras, tais como guerrapaz,

    ciumortevida, frturo, homenina

    etc.

    14 claro que seria possvel

    apelar (como fizeram outros autores

    pr -socrticos) para a noo de

    predominncia: indica -se o que

    predomina a cada momento. Mas me

    parece ser exatamente isso que est

    implicado na brincadeira do skleron,

    termo que, como apontam alguns

    comentadores, sai no empate.

    No predomina ali nem a dureza,

    nem a maciez, nem o rho nem o

    lambda, de tal modo que at mesmo

    o predomnio posto de lado. E

    esse tema ser abordado quando

    Scrates, logo mais, comparar o

    problema de decidir qual das duas

    concepes rivais indicadas pelos

    nomes da lngua grega est correta

    com concorrentes em disputa

    eleitoral. Devemos decidir pela

    contagem de votos? Parece que, no

    referido caso, ver o que predomina,

    conhecer a maioria, no serve como

    mtodo adequado para decidir

    acerca do problema.

  • 140

    entanto, essa mesma admisso faz ruir a sua posio

    inicial, j que o que naturalmente semelhante a

    uma coisa tambm naturalmente semelhante ao

    seu contrrio, e todas as palavras podem ser simul-

    taneamente aplicadas quilo e ao contrrio daquilo,

    a Hermgenes e ao outro de Hermgenes, a Crtilo

    e ao outro de Crtilo, e assim por diante.

    Essa demonstrao apenas implcita no passo

    do skleron se tornar finalmente explcita em 440a -e,

    passagem que consiste em um socrtico golpe final

    a realmente silenciar o jovem Crtilo. Ali, Scrates,

    mostrar finalmente para seu interlocutor que no

    basta falar pouco ou escolher as palavras certas. Para

    ser coerente, preciso calar. Os passos so breves. Em

    primeiro lugar, ainda em 439e: o que nunca se en-

    contra no mesmo estado no pode ser alguma coisa,

    e, correspondentemente, o que o mesmo (o que

    alguma coisa, o que algo) no pode transformar -se

    inteiramente sem deixar de ser o que era15. Em segui-

    da: isso que se transforma nunca poder ser conhe-

    cido por ningum, pois no instante preciso em que

    o observador se aproximasse dele para conhec -lo,

    ele se transformaria noutra coisa diferente (allo kai

    alloion), de forma que no se poderia conhecer a sua

    natureza ou o seu estado (440a1 -3). importante

    notar que esse passo do argumento se apia sobre a

    imediatamente anterior afirmao de que qualquer

    coisa que nunca16 se mantivesse no mesmo estado

    estaria se tornando algo qualitativamente distinto

    no instante mesmo em que um conhecedor tentasse

    conhec -lo. E que essa integral mudana qualitativa

    implicaria tambm uma mudana quantitativa. Ou

    seja: a distino feita anteriormente entre mudana

    qualitativa e mudana quantitativa colapsa diante

    da verso radical do fluxo. Crtilo talvez devesse

    responder que no o caso de postular que tudo est

    mudando em todos os aspectos, mas, ao contrrio,

    ele parece estar cada vez mais convencido disso.

    Logo, a concluso inevitvel: No h conhecimen-

    to que conhea o objeto do conhecimento que no se

    encontra em nenhum estado (440a5). Finalmente,

    em 440b: o prprio conhecimento precisa perma-

    necer sendo conhecimento para existir. Em suma: o

    conhecimento exige ao menos trs estabilidades, a

    saber, a do conhecedor, a do prprio conhecimento

    e a do objeto conhecido.

    Como Crtilo continua irredutvel, se diz expe-

    riente em tal questo e reafirma a sua adeso opinio

    de Herclito (quanto mais reflito e me ocupo com

    ela, tanto mais sou inclinado a aceitar a opinio de

    Herclito, 440e2), incitando Scrates a refletir melhor

    sobre o assunto, ento ele ser obrigado, ao menos,

    a acatar a inegvel concluso que deriva do que aca-

    bara de ouvir: se de fato tudo muda constantemente

    em todos os aspectos, ento no h nem conhecedor

    estvel, nem objeto para ser conhecido. E mais: as

    palavras nunca sero naturalmente adequadas para

    dizer a realidade, pois, para que fossem, em ltima

    instncia elas precisariam ser incessantemente cam-

    biantes, ou, alternativamente, seria necessrio usar

    um nome diferente a cada vez (o absurdo das duas

    situaes dispensa comentrios). Sua afasia passa a

    ser o nico retrato possvel, ou ao menos o mais fiel,

    da transformao de todas as coisas a fim de evitar a

    justa acusao de contradio performativa falar que

    nada permanece usando um vocabulrio que pressupe

    existncias minimamente estveis que possam ser no-

    meadas Crtilo silencia, e aponta. Em suma: na fico

    cmica de Plato, Crtilo se cala por culpa de Scrates.

    Em suma, para retomar e concluir: no incio do

    percurso, a palavra cratlica podia dizer tudo. Ela era

    um duplo da realidade, espelhando -a tal como .

    medida que Crtilo toma contato com os argumentos

    socrticos, a palavra vai se tornando, primeiro, uma

    imagem que pode guardar graus de deformao da

    realidade, e, finalmente, uma imagem decisivamente

    deturpadora da realidade, de modo que deve ser

    abandonada. A fala de Crtilo, ento, se torna he-

    racliticamente una com o seu contrrio: o silncio,

    considerado a partir de ento como a imagem mais

    capaz de retratar a realidade. Esse elenchos socrtico

    , todavia, de um tipo bem sui generis, haja vista

    que brota de um insucesso. Scrates no consegue

    fazer Crtilo se desvencilhar de seu heraclitismo. Pelo

    contrrio, responsvel por faz -lo enredar -se cada

    vez mais em suas malhas. Porm, decididamente, faz

    com que ele seja mais coerente com a sua posio.

    Scrates, por sua vez, entre um Crtilo que

    pouco fala porque as palavras j podem dizer tudo e

    um Crtilo que silencia porque elas no podem dizer

    nada, parece querer assegurar a possibilidade de se

    falar. Talvez seja lcito afirmar com Aristfanes que

    15 Esse argumento lembra

    significativamente a Odisseia,

    versos 455 -460, onde Menelau

    est narrando a sua aventura com

    Proteu, esse monstro multiforme

    que vira leo, drago, pantera,

    javali, gua e rvore, e que

    preciso agarrar com as mos para

    fazer falar. Parece que Scrates

    observa que, enquanto no se

    fixa, Proteu no fala porque de

    fato nada .

    16 A expresso utilizada na

    passagem citada logo antes, 439e,

    o advrbio medepote.

  • desgnio 15 jul/dez 2015

    141

    Scrates um grande tagarela: ele recusa toda a

    mentira (ou toda a impossibilidade de verdade), mas

    tambm toda a verdade (ou toda a impossibilidade

    de mentira); ambas culminariam no silncio cratlico.

    Referncias bibliogrficas

    Fontes primrias

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    SAUDELLI, L. (2011). Heraclito Latino. Rio de Janeiro, Anais de Filosofia Clssica, v.5, n. 9. Disponvel em:

    SEDLEY, D. (2003). Platos Cratylus. New York, Cambridge University Press.

    Submetido em Maio de 2015 e

    aprovado em Junho de 2015.