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GLOBALIZAO E IDENTIDADE

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GLOBALIZAO E IDENTIDADE: DESAFIOS DO MULTICULTURALISMO

Joanildo A. Burity Coordenador da rea Temtica Cultura e Identidade, Fundao Joaquim Nabuco, e professor das ps-graduaes em Cincia Poltica e em Sociologia da UFPE. Trabalho apresentado na Mesa Redonda Multiculturalismo, Relaes Inter-tnicas e Globalizao, durante a I Conferncia Latino-Americana e Caribenha de Cincias Sociais, promovida pelo CLACSO e Fundao Joaquim Nabuco, em Recife, Brasil, de 22 a 26/11/99.

1. Proposies iniciais

Falar de multiculturalismo falar do manejo da diferena em nossas sociedades. No entanto, isto ainda pouco para definir as implicaes do termo. Pois, ela remete no apenas a um discurso em defesa da diversidade de formas de vida existentes nas sociedades contemporneas, mas a um conjunto de aspectos fortemente ligados entre si e que carregam a marca de um contencioso: a) o reconhecimento da no-homogeneidade tnica e cultural dessas sociedades; b) o reconhecimento da no-integrao dos grupos que carregam e defendem as diferenas tnicas e culturais matriz dominante do nation-building nessas sociedades aps o fracasso seja de polticas assimilacionistas, seja de polticas diferencialistas (baseadas na restrio de acesso ou mesmo na idia de desenvolvimentos separados); c) a mobilizao dos prprios recursos polticos e ideolgicos da tradio dominante nos pases ocidentais o liberalismo contra os efeitos desta no-integrao; d) a demanda por incluso e por pluralidade de esferas de valor e prticas institucionais no sentido da reparao de excluses histricas; e) a demanda por reorientao das polticas pblicas no sentido de assegurar a diversidade/pluralidade de grupos e tradies.

Alm disto, h que considerar que a crescente sensibilidade para o tema da diferena e sua articulao em termos socio-culturais sob a forma de uma reivindicao de direitos para grupos subordinados se liga a um descentramento da cultura ocidental que assume duas modalidades paradoxais. De um lado, atravs da matriz colonialista e imperialista que difundiu-se mundo afora entre os sculos 16 e incio do sculo 20, levando com ela modelos de organizao social, desenvolvimento e mudana poltica que em larga medida se institucionalizaram no atual sistema de estados nacionais e numa economia mundial dominada inteiramente pelo capitalismo. Prticas, valores e instituies historicamente construdas a partir da modernidade europia e norte-americana se espalharam pelo mundo, tornaram-se ideais de progresso e emancipao, mas tambm se impuseram onde a resistncia se fez mostrar. Uma intrincada composio de agentes metropolitanos e locais encarregou-se de dobrar a resistncia, forjando uma uniformidade que atendia pelo apelo da Nao em busca de seu futuro no mundo moderno, atribuindo lugares aos que se posicionavam contra ou a favor frente s formas concretas de implementao destes projetos de modernizao. Este descentramento do Ocidente que leva ao modelo do estado nacional e trajetria da modernizao representa o grau zero das disputas multiculturais Mais recentemente, esta modalidade de descentramento que significa a expanso do Ocidente cobra notvel reforo nos ltimos anos por meio da frentica movimentao de um capital financeiro ao mesmo tempo aptrida, amoral e plurifactico (ou sem face, o que d no mesmo), intensificando a ansiedade e a busca de anteparos e razes que permitam defender-se do vendaval..

De outro lado, a histria do sculo 20 foi acumulando uma crescente desconfiana ou recusa dos modelos modernizadores liberais como socialistas que sofre, a partir dos anos 60, uma importante inflexo atravs de movimentos sociais e intelectuais de contestao poltica e cultural, ocorridos em vrias partes do mundo, os quais contriburam para deslegitimar, questionar e enfrentar a idia hegemnica de Ocidente. Este descentramento crtico se expressou na emergncia de novas formas de identificao coletiva negros, mulheres, povos indgenas, ecologia, pacifismo, juventude, movimentos religiosos e novas formas de pensamento, que puseram em questo o etnocentrismo e o carter excludente da ordem liberal vigente. Nos pases latino-americanos, a emergncia destas formas sociais e intelectuais do descentramento inclua ainda a resistncia contra a associao da modernizao capitalista com regimes autoritrios e tecnocrticos baseados em alianas civis-militares. Este descentramento que leva afirmao da pluralidade de esferas pblicas, dos direitos dos grupos historicamente excludos social ou culturalmente, representa o primeiro momento de emergncia de bandeiras multiculturais Num trabalho recente, Featherstone analisa estas duas modalidades em termos de uma postura nostlgica face globalizao, uma associada emergncia/afirmao dos estados nacionais e seus smbolos e cerimnias, outra associada ao ps-modernismo e que reflete presses para que os estados nacionais reconstituam suas identidades coletivas em moldes pluralistas e multiculturais que confiram espao para diferenas regionais e tnicas (cf. 1995:95-96). Segundo Featherstone, esta nostalgia se liga assero do local vis--vis o global e se expressa como uma perda do que seria o lar, o familiar, um lugar fsico com o qual se est identificado, e como uma perda do senso de totalidade/integridade, certeza moral, relacionamento social genuno, espontaneidade e expressividade (Idem:93-94). Sobre a relao entre globalizao e nostalgia, especialmente no que diz respeito primeira modalidade, cf. tb. Robertson, 1990)..

Mais recentemente, entretanto, uma nova onda de expanso ocidental tem se dado, a qual capturada pela idia de globalizao. Embora o carter deste processo seja altamente disputado, ele parece intensificar o duplo descentramento ao mesmo tempo em que refora o paradoxo entre suas duas modalidades. Pois, ao mesmo tempo que a globalizao representa uma certa forma de interconexo e interpenetrao entre regies, estados nacionais e comunidades locais que est marcada pela hegemonia do capital e do mercado, ela tambm se faz acompanhar por uma potencializao da demanda por singularidade e espao para a diferena e o localismo. O discurso multiculturalista, neste sentido, tanto beneficia-se de como impulsiona a globalizao, embora em direes nem sempre favorveis s falas dominantes sobre a mesma.

Sob qualquer destas formas, o multiculturalismo est envolvido num contencioso, numa disputa que vai alm do manejo de uma diversidade que simplesmente se d, como mera constatao emprica. Para alm ou na base das demandas lanadas ao estado, ao mercado e a outros atores sociais, h movimentos de retorno ao passado, de reconstruo ou de inveno de identidades coletivas, bem como h cobranas por redefinio de padres societrios. E esses movimentos disputam entre si ou articulam-se de formas surpreendentes, mas tambm instveis e parciais. A vinculao das demandas multiculturais com a problemtica dos direitos, atravs de um discurso sobre a legitimidade das diferenas e a necessidade de reparao tem aparecido, simultaneamente, como uma tentativa de pacificar o carter mais truculento da emergncia desses novos atores sociais que postulam uma identidade de base cultural, e como aprofundamento da disputa, uma vez que claramente h reivindicaes de poder envolvidas.

Nosso objetivo neste trabalho, entretanto, no discutir pormenorizadamente o conceito de multiculturalismo ou os casos concretos de aplicao de modelos nele inspirados Para uma anlise das polticas multiculturais, segundo os usos que se faa do multiculturalismo demogrfico-descritivo, programtico-poltico e ideolgico-normativo cf. Inglis, 1996; Koenig, 1999. Uma anlise latino-americana se encontra em Iturralde, 1995.. Antes, gostaramos de nos concentrar sobre dois aspectos fortemente relacionados problemtica multicultural: a associao entre identidade e localismo (sob a gide da cultura, da tradio, da etnicidade, do nacionalismo, da religio) e a contradio entre afirmao da identidade e o avano da globalizao, seja esta pensada sob a forma de um processo direcionado a partir de um centro ou como um conjunto de fluxos produtores de conjunes e disjunes (cf. Featherstone, 1995; Appadurai, 1991). Juntos, estes aspectos marcam o embate entre localizao da cultura (para usar livremente a expresso de Homi Bhabha) e a desterritorializao introduzida pelos fluxos globais. Assim, a emergncia de demandas identitrias na cena contempornea ora representam uma recusa dos grandes modelos mas tambm das tendncias globalizantes; ora uma defesa da autenticidade das experincias particulares e enraizadas num determinado tempo e espao comunitrio contra as foras desterritorializantes, abstratas, do mercado ou da cultura de massas; ora uma dificuldade de vivenciar os efeitos do deslocamento que a globalizao introduz nos contextos locais, identificando esta ltimo com um compl das grandes potncias capitalistas, a dominao da cultura de consumo ou a violao da soberania nacional Alain Touraine tem, recentemente, feito da disjuno entre mercado e cultura o cerne de sua anlise sobre os impasses da modernidade tardia e a base de sua defesa da introduo de um princpio no-social de resistncia ao capital e comunidade, que ele chama de Sujeito (cf. 1999; v.tb. 1998)..

possvel, neste contexto, articular identidade e globalizao? preciso opor identidade a globalizao? O contexto global representa possibilidades ou ameaas experincia local? Como compreender o tipo de problema que a lgica global introduz no espao-tempo da identidade? Como enfocar a globalizao de forma a entender o lugar que a ocupa a experincia da identidade?

Partiremos aqui da afirmao de que a globalizao, naquilo em que se presta a uma anlise cruzada com o tema da identidade, representa a vigncia de um princpio de ruptura do liame dual micro/macro, estvel/dinmico, concreto/abstrato, particular/geral, princpio este que funciona como um terceiro e desencadeia uma lgica que no exige o fim das referncias locais, mas as reinscreve num terreno em que estas no mais podem se definir pelo isolamento nem tampouco pela territorialidade. Sendo assim, a globalizao tanto forma como deforma, tanto exige como resiste identidade enquanto signo do local, do singular, do autntico, do emancipatrio. Este elemento, a meu ver, coloca problemas lgica particularista das disputas multiculturais, como tambm refora a lgica multicultural. O argumento a seguir pretende ser uma tentativa de explicitar esta problematizao.

2. O terceiro e a lgica da globalizao

A globalizao introduz um terceiro na relao entre o local e o nacional, o local e o regional, o regional e o nacional que interrompe o fluxo linear de relaes e comunicao onde estas polaridades se desenvolviam at vinte anos atrs, reguladas pela unidade do estado-nao e pela repartio territorial das trocas econmicas, polticas e culturais (exemplarmente capturada na expresso relaes internacionais) A imagem do terceiro tem sido usada por outros autores num sentido que no necessariamente se coaduna com o que aqui utilizado. Uma das tematizaes explcitas aparece em Bhabha e Laclau.. Este terceiro introduz uma lgica desterritorializante e desinstitucionalizante em relao ao contexto anterior, repleta de paradoxos e expressa em aspectos como: quebra da pretenso de universalidade dos discursos polticos e culturais; quebra da soberania do estado nacional em questes-chave de poltica domstica; introduo de valores e parmetros de gesto pblica em voga no mbito da sociedade civil global (gnero; meio ambiente; multiculturalismo; direitos humanos; a primazia da ao local, efetivada por uma pluralidade de atores em parceria; etc.); ruptura de modos de vida associados s razes ou atributos essenciais de comunidades locais, categorias sociais ou identidades culturais.

2.1 Caracterizando o terceiro da globalizao

O terceiro da globalizao no um mega-sujeito. Nem o sujeito imperialista por mais que tenhamos a impresso de que os Estados Unidos se transformam crescentemente no gendarme do sistema-mundo; nem o sujeito multilateral representado pelas Naes Unidas ou por organismos internacionais embora estes sejam perceptivelmente agentes da globalizao (exemplo do Banco Mundial ou da Organizao Mundial do Comrcio); nem o sujeito classe poucos ousam alinhar a globalizao com um esquema da burguesia ou uma concertao das elites empresariais dos diversos pases com vistas a impor um determinado modelo de dominao econmica. Na verdade, o terceiro da globalizao no um sujeito em nenhum sentido antropomrfico ou sociologizante. O terceiro da globalizao se materializa em mltiplos agentes, uns mais benignos, outros mais perversos, que tm em comum no a adeso a uma nica cultura ou estratgia de globalizao, mas o reconhecimento de que atuam num terreno movedio e em indefinida expanso. Este terreno j no se regula pelas coordenadas cartesianas de tempo e espao, ou sociolgicas de instituio e movimento, antes nele se joga com elas e as possibilidades e assimetrias que elas abrem. Nele, a disputa pelo contedo da globalizao o grande elemento impulsionador.

O terceiro um princpio de antagonismo e diferenciao, algo que denuncia ou contesta se justa ou injustamente somente se pode decidir analisando-se situaes concretas - os limites da pretenso de singularidade, de desenvolvimento autnomo, de autoridade moral inquestionvel, de estabilidade das ordens social ou comunitria vigentes. E isto se faz em nome da existncia de aspectos no considerados, de grupos excludos ou valores supervenientes, de processos ou tendncias macro-societais ou macro-econmicas, os quais, desde a perspectiva dos litigantes, teriam prioridade sobre a autonomia local de organizao e prticas.

Assim, a globalizao funciona pela introduo da diferena exorbitante ou ignorada ali onde reina o contentamento ou a pretenso de autonomia contra interferncias externas. Neste sentido, a lgica da globalizao pode opor tanto o micro ao micro, como o micro ao macro, o macro ao mega, e vice-versa. Global no o que necessariamente maior, mais distante, nem mais forte. Global o que (se) diferencia entre um campo que se regula por referncias de soberania, autodeterminao, distintividade, e um campo que pretende se abrir ou ser a abertura para a renovao, inovao ou justia que vm descortinar novos horizontes. Se a diferena que emerge entre em meio ordem vigente local, nacional ou internacional e aponta para o que ela exclui ou reclama das promessas que ela deixa irrealizadas, politica ou moralmente virtuosa, se desemboca em alternativas viveis ordem questionada, so questes prticas, que s podem ser determinadas em contexto. Mas em nome dessas diferenas no acolhidas, no respeitadas, no percebidas pela sociedade ou o estado que o terceiro da globalizao interrompe a reproduo de um dado status quo.

Por outro lado, o terceiro da globalizao um princpio de oposio, um gerador de antagonismo. A introduo da diferena representa um desafio estabilidade dos arranjos e fronteiras existentes, questiona a autarquia da comunidade, da instituio, do governo, do Estado. No se trata de uma dicotomizao do espao social, poltico, econmico ou cultural. Naturalmente, o antagonismo produz uma fronteira entre dois campos. Mas esta j no uma fronteira que atravesse o social de um extremo a outro. Nem uma fronteira entre identidades j dadas, pr-constitudas, que vm a se chocarem. uma fronteira constituda em torno da emergncia de uma questo em disputa A emergncia desta questo por exemplo, racismo, discriminao da mulher, etnocdio das populaes indgenas, liberdade religiosa, degradao ambiental, excluso social como efeito direto das polticas neoliberais no ponto pacfico. preciso estabelecer sua prpria objetividade ou urgncia, donde o fundamental desentendimento que funda a poltica (cf. Rancire, 1996): entre os polos antagonsticos no nosso caso, as demandas multiculturais e seus adversrios, bem como a oposio entre identidades locais e as foras globalizantes h um conflito que diz respeito denncia de um agravo cometido contra um determinado grupo e demanda por reparao ou incluso, mas que traz cena social algo que no estava l. Algo que tanto designa o quem como o qu em disputa., a localizando lado a lado, dentro como fora, atores, temas e cenas que em outras disputas definem campos distintos. O antagonismo tambm no uma situao de guerra, no precisa haver animosidades pessoais envolvidas, embora possa sempre (Schmitt sabia disto) levar ao confronto fsico ou guerra pura e simplesmente e as dezenas de conflitos armados no mundo de hoje no nos permite esquecer isto. Mas o antagonismo que caracteriza o terceiro da globalizao no pode ser extirpado, nem mesmo pelos tratados de paz. Ele pode sempre ressurgir, em outros lugares ou sob outras formas. A resoluo dos conflitos no zeram a atuao do antagonismo, apenas a deslocam para outros objetos A questo do antagonismo aqui introduzida tem sua referncia bsica no trabalho de Laclau e Mouffe (cf. Laclau e Mouffe, 1989; Laclau, 1993:21-57; v.tb. Zizek, 1993; 1992:161-64; 1996 :21-35)..

Aqui j temos uma boa indicao do vnculo entre globalizao e identidade: a afirmao, defesa ou contestao de identidades so um componente integral da lgica da globalizao contempornea. Por qu? Porque as identidades so, por vezes, o pomo da discrdia que expressa o terceiro da globalizao a globalizao neste caso seria o bero da afirmao identitria, o contexto no qual a chamada fragmentao do sujeito desencadeia inmeras tentativas de recomposio. Porque as identidades emergem na esteira dos efeitos desterritorializantes e desinstitucionalizantes da globalizao, beneficiando-se do enfraquecimento das antigas unidades polticas e culturais da modernidade novecentista. Porque, enfim, as identidades reagem, numa tentativa de ressincronizao espao-temporal, aos efeitos desestruturadores da globalizao, buscando em razes do passado ou na idealizao do presente uma forma de neutralizar o sentimento de ansiedade ou pnico ante a incerteza, a instabilidade e a permanente redefinio das regras e cenrios que se instalam em nome da globalizao Uma breve descrio deste processo oferecida por Castells, quando comenta que o carter defensivo de muitas prticas identitrias se dirige contra a globalizao, os processos de formao de redes e de flexibilizao, e a crise da famlia patriarcal: Quando o mundo se torna grande demais para ser controlado, os atores sociais buscam encolh-lo de volta ao tamanho e alcance deles. Quando as redes dissolvem o tempo e o espao, as pessoas se ancoram em lugares, e recuperam sua memria histrica. Quando a reproduo patriarcal da personalidade fracassa, as pessoas afirmam o valor transcendente da famlia e da comunidade, como vontade de Deus (1997:66)..

2.2 Explorando a lgica da globalizao

Dissemos acima que o que pe em comum os agentes da globalizao a disputa pelo seu contedo. preciso dizer que no se trata de uma disputa pelo poder mundial, uma espcie de sndrome de desenho animado, onde gnios do mal mobilizam recursos para dominar o mundo. A insero desses agentes tm nveis e impactos bastante diferenciados e a disparidade dos recursos brutal. Mas no h mais a possibilidade de coordenar estes processos de disputa hegemnica sob uma nica lgica ou direo, por mais abrangente que seja. Assim, a disputa pelo contedo da globalizao se trava em torno de objetivos concretos, embora alguns de grande alcance, cuja resoluo assegurar a uns a sensao de ganho e garantia de uma (maior) cota da cena global, enquanto mobilizar a outros em diferentes formas de resistncia: a que aceita jogar o jogo (acreditando nas regras), a que recusa-se a jogar o jogo (partindo para o confronto a partir do lugar que ocupa, em torno das questes mais urgentes e inegociveis que advoga) ou a que explora os interstcios ainda deixados a descoberto pelas disputas em curso.

Certamente h alguns vetores gerais condicionando as disputas no cenrio global, como j mencionei antes e retomo agora, ressaltando que no so os nicos:

a quebra da pretenso de universalidade dos discursos polticos e culturais, tem deslocado as grandes narrativas da modernizao, seja pela sua negao como modelo; seja pela tentativa de desenvolvimentos autnomos em contradio com grandes interesses polticos e econmicos internacionais; seja pela multiplicao dos caminhos tomados em nome destas narrativas, que explode a sua coerncia interna, sua capacidade de dar unidade a to diversas trajetrias; seja pela multiplicao dos atores da modernizao.

A quebra da soberania do estado nacional em questes-chave de poltica domstica, representa tanto uma perda de autonomia, como o efeito da maior interconexo das sociedades contemporneas via mercados financeiros, os media, os organismos multilaterais e multinacionais limitando, mas no evitando, realinhamentos bruscos ou resistncias aos consensos globais.

A introduo de valores e parmetros de gesto pblica em voga no mbito da sociedade civil global, de forma relativamente independente da aceitao ou reconhecimento das situaes que os justificam. Entre tais valores e parmetros se poderia mencionar: gnero; meio ambiente; multiculturalismo; direitos humanos; a primazia da ao local, efetivada por uma pluralidade de atores em parceria; exigncias de eficincia e aferio do impacto das aes pblicas; alargamento do espao para o envolvimento da sociedade na gesto pblica, compartilhando responsabilidades e atribuies ao lado do estado; etc. Estes novos critrios definidores da boa governana vm interpor uma agenda para as polticas que no se prende sensibilidade acumulada nos contextos nacionais e locais em relao aos valores e parmetros mencionados. No importa se gostemos ou no das polticas de promoo da igualdade de condies entre os sexos, se aceitamos ou no as polticas de discriminao positiva, de dilogo intercultural; se praticamos ou no de boa vontade os direitos humanos, etc. O que importa que a credibilidade da organizao, do governo ou do pas hoje aferida por sua sensibilizao e operacionalizao de polticas como estas. O que importa que os recursos necessrios hoje se vinculam a condies aceitveis que passam pela implementao das diretrizes acima.

No obstante esses vetores gerais, sua materializao raramente se faz em nome ou atravs de mega-atores. Em nome de ou contra a globalizao, pequenos e grandes atores, isolada ou articuladamente, mobilizam, reivindicam e resistem a essas correntes. A ao intra e inter-organizacional; a ao coletiva; a ao governamental; a ao de redes territorializadas, temticas e de influncia (cf. Doimo, 1995), se contraem ou se expandem na dinmica da interveno do terceiro da globalizao, em torno de interesses, demandas, valores e objetivos pontuais ou gerais.

3. A identidade como resposta, efeito e resistncia globalizao

3.1 O terceiro e a identidade

Tudo parece indicar, primeira vista, que o terceiro desterritorializante da globalizao se oporia experincia da identidade. Acostumados a pensar a identidade como enraizamento numa realidade socio-cultural particular e, no plano individual, como auto-conhecimento, auto-conceito e presena a si, tendemos a contrastar mais do que associar os dois termos. vista do terceiro que mencionei anteriormente, preciso desfazermos esta idia. A globalizao pode permitir a emergncia de novas formas de identificao coletiva, as quais, por no mais se definirem em funo de um pertencimento territorial, ou de uma tradio imemorial, mas em funo de questes de relevncia global, se subtraem s exigncias de lealdade tradicional ou de atuao localizada.

Num sentido mais forte, a globalizao requer mesmo a articulao da identidade, tanto na dimenso instrumental das relaes de mercado, como na dimenso expressiva das relaes intra e intergrupais, embora nem sempre estejamos diante de experincias identitrias com as caractersticas descritas no pargrafo anterior. Na sua verso instrumental, identidade se define no contexto da cultura de consumo, que globaliza a idia de livre escolha e livre experimentao com bens e estilos de vida, produz e estimula a diferenciao, se alimenta da especializao, da produo de um diferencial cultural que se transforma num signo de vitalidade da cultura local (trunfo a ser explorado pela indstria do turismo), e da legitimidade de uma ordem social fundada na lgica do mercado. Identidade seria aqui a forma exteriorizada ou reivindicada de uma nova subjetividade. Outras modalidades de identificao se definem nesta perspectiva, como nas diversas redescobertas em muitos casos coincidentes com verdadeiras invenes de tradies de identidades culturais para diversos fins: impulsionar a indstria do turismo e do lazer; legitimar aes governamentais em disputas por recursos condicionados adoo de prticas multiculturais; ajudar a criar uma nova imagem para empresas que lhes garantam acesso a determinadas fatias do mercado de consumo.

No caso da identidade como expresso, a globalizao requer a identidade na medida em que o deslocamento que o terceiro da globalizao introduz no cenrio local desencadeia mudanas, mas no pode ser indefinidamente continuado. O desenraizamento produz desorientao, ansiedade, sofrimento e destruio de formas de vida ou instituies que no podem ser suportados indefinidamente. Assim, a resistncia da identidade j no mais a mesma, porm uma que se modifica ao responder e se afirmar diante do desafio de fora, da lgica global uma contrapartida da globalizao. Em nome da identidade enceta-se uma luta para restaurar um mundo nostalgicamente idealizado de simplicidade de vida, durabilidade dos arranjos sociais e proximidade e confiabilidade das relaes entre as pessoas. Em nome da identidade se busca encontrar na origem comum ou num destino manifesto a orientao que contradiga as tendncias desestabilizadoras e a incerteza do presente.

O terceiro da globalizao no implica em que a identidade seja sempre experimentada ou reivindicada em bases globais, no-nacionais ou transnacionais. Antes, o que queremos ressaltar que mesmo quando a identidade se expressa atravs do mais rigoroso fundamentalismo e isolacionismo, contra tudo o que seja maior do que ou exterior a ela, especialmente contra tudo o que lhe parece ser um compl das grandes potncias ou grandes tendncias econmicas, polticas e culturais do sistema mundial, ela no deixa de ser afetada pela globalizao. Neste caso, o entrincheiramento da identidade como singularidade, localismo ou autenticidade pode ser uma reao a foras globalizantes, mas tambm uma resposta a elas, um sim agenda da globalizao. Ser reao ao tomar o global como a ameaa que vem de fora contra a integridade de um modo de vida local ou uma cultura nacional. Ser uma resposta se sua emergncia for atribuda ao afrouxamento dos laos ideolgicos, polticos ou econmicos que impediam a expresso de tal identidade no mbito nacional. Sem dvida, a resposta pode ser ambgua, uma vez que nem sempre ela sai em defesa da globalizao. Mas, o fato de beneficiar-se do clima global e de reivindicar seu espao legtimo na nova ordem mundial que coordena o global e o local, no esqueamos situa tais identidades no regime ou lgica da globalizao.

3.2 A lgica da globalizao e a lgica da identidade

Ao falar sobre a lgica da globalizao, mencionei que a disputa pelo contedo da mesma se faz a partir de objetivos concretos, e no de uma intangvel agenda global, e argumentei que h vetores gerais que produzem efeitos locais e que mobilizam atores grandes e pequenos. Trata-se de explorar agora como isto se relaciona com o tema da identidade.

Em primeiro lugar, eu ressaltaria que a lgica do terceiro representa um novo regime da relao entre o geral e o particular, o universal e o singular, na qual um curioso movimento se d. A crtica aos universalismos modernos (expressos em objetos culturais ou modelos institucionais) no significa uma recusa do universalismo, mas uma localizao do universalismo (cf. Robertson, 1991; Laclau, 1996). Ou seja, tanto identidades locais podem, em nome de certos direitos amplamente reconhecidos, reivindicar uma autonomia parcial ou mesmo secesso; identificar outros grupos sociais cuja presena representaria uma ameaa a ser neutralizada; ou ainda reclamar sua incluso no pacto de sociedade mais amplo em que se inserem. Assim, ora temos micro-universalismos em conflito entre si e com o Estado, ora temos a reivindicao local do universalismo como demanda por incluso.

O questionamento da soberania do estado nacional, nesta direo, implica na utilizao das tendncias globais (respaldadas em agncias multilaterais ou em organizaes civis de peso na formao da opinio pblica mundial) para forar mudanas na orientao das polticas nacionais em favor de atores coletivos que se beneficiam diretamente do clima de maior sensibilidade e assertividade existente em outros contextos nacionais mulheres, negros, minorias tnicas (migrantes ou de segunda e terceira geraes, bem como indgenas), minorias religiosas, ambientalismo, etc. , contrariando elites locais ou polticas. Mas pode-se tambm reivindicar contrapartidas perda da autonomia do estado sobre certas questes de poltica domstica, atravs de processos de negociao e coordenao supra-nacionais dos quais a face mais visvel so os blocos de pases organizados em funo de interesses econmicos e polticos, segundo um imperativo de sobrevivncia e reforo da competitividade.

Por fim, a introduo de valores e prticas em contradio com a cultura poltica nacional ou local vem legitimar e reforar a assero, visibilidade pblica e peso poltico de novos movimentos e alternativas organizacionais vinculados s mudanas culturais do ps-68 e polticas dos anos 80, abrindo espaos para o reconhecimento de diferenas e dificultando sua diluio nos amlgamas da identidade nacional, das ideologias polticas ou das prticas de cooptao paternalista. Porm, tais valores podem introduzir vieses desconhecidos no contexto local, redescrevendo problemas a vivenciados em termos de padres culturais e polticos dominantes em outras sociedades ou regies. Desta forma, as demandas e conflitos locais se configuram em contraste com a experincia compartilhada, o que pode se expressar no sentimento de que as questes e solues apresentadas implicam antes na imposio de poderes externos, ou na produo de atores coletivos hbridos, glocais, ao mesmo tempo enraizados num contexto local e definindo-se em termos transculturais.

O que resulta deste processo a experincia da identidade como construo, ainda quando somos confrontados com movimentos e grupos que pretendem estar em direta continuidade com um passado ameaado de destruio ou injust(ificad)amente violentado. No h identidades pristinas, puramente expressivas. H, em consequncia da lgica da globalizao reafirmaes de identidades combinadas s novas nfases e objetos de disputa; reinveno de identidades para objetivos polticos ou mercadolgicos (inclusive como forma de apresentao da diversidade local que funciona na indstria do turismo); e surgimento de novas identidades. Em cada um dos casos, construo da identidade para legitimar uma situao, para resist-la ou para introduzir nela novas questes e prticas que apontam para projetos de mudana social (cf. Castells, 1997).

E por que construir a identidade? Porque a questo do sentido torna-se bastante aguda num contexto onde os referenciais estveis, naturais, de orientao no mundo se tornaram frgeis e insuficientes para garantir uma movimentao coerente e previsvel no espao social. A lgica do terceiro impe um movimento de extenso e contrao da sociedade civil e do estado no qual, segundo Castells, no h mais uma continuidade entre a lgica da formao do poder na rede global e a lgica da associao e representao em sociedades e culturas especficas. A busca de sentido tem lugar ento na reconstruo de identidades defensivas ao redor de princpios comunais. A maior parte da ao social vem a se organizar na oposio entre fluxos no-identificados e identidades isoladas (1997:11). Como transformar a resistncia local em novos sujeitos de mudana , para Castells, o grande desafio de uma teoria da mudana social na era da informao.

Na medida em que o global se alimenta da diferenciao, ele investe sistematicamente o local, o comunitrio, o regional como ingrediente de sua expanso. O local contra o nacional atrasado, o global contra o local atrasado. Mas tambm o local como possuidor de algo que a idia nebulosa de globalidade no tem, uma singularidade ou extica que podem ser trunfos em termos de reconhecimento, competitividade e lucro. O resultado disso que a identidade, retomando o que disse anteriormente assume trs configuraes vis--vis o cenrio global:

A identidade o pomo da discrdia que expressa o terceiro da globalizao. Assim, a emergncia de novas identidades, a economia das relaes entre as identidades (explicitamente posta em tela pelo multiculturalismo), as perspectivas abertas pelo jogo da identidade no cenrio global exprimem um aspecto constitutivo da dinmica da globalizao. Em outras palavras, a dimenso polmica, controvertida, agonstica da globalizao aponta precisamente para a visibilidade e produtividade poltica que a questo da identidade assume. Falar de multiculturalismo antes de mais nada apontar para este campo de contestao aberto pela operao do terceiro da globalizao em contextos onde prevaleceram atitudes deslegitimadoras da diferena cultural em funo da excluso social, da insero subordinada na ordem econmica e poltica internacional e da adeso aos modelos da modernizao nos discursos liberais ou de esquerda.

As identidades tambm emergem na esteira dos efeitos desterritorializantes e desinstitucionalizantes da globalizao, beneficiando-se do enfraquecimento das antigas unidades polticas e culturais da modernidade novecentista neste caso, no se trata necessariamente de novas identidades, podendo haver o retorno de antigas formas de identificao comunitria julgadas extintas pelos discursos da modernizao. Pode ser o caso aqui que uma srie de deslocamentos (econmicos, polticos, culturais) tenham o efeito de tornar os indivduos susceptveis interpelao de uma pluralidade de formas de identificao, fraturando-os como unidades auto-centradas e causando-lhes mal-estar e sofrimento, ou liberando-os de uma submisso estreita a uma nica comunidade ou instituio social. Tal interpelao instaura uma competio entre formas de identificao, mas tambm enseja experimentos de esteticizao da subjetividade os quais, embora provisrios ou apenas parcialmente bem sucedidos, vo fazendo surgirem mltiplos agenciamentos de subjetividade (Guattari), no contexto de pequenos e grandes agrupamentos de pessoas.

As identidades, enfim, reagem, num movimento de ressincronizao espao-temporal, aos efeitos desestruturadores da globalizao. Esta reao pode vir sob a forma da retrao, privatizao, ou da intolerncia contra o que parecem ser os perigos ou inimigos da abertura aos fluxos globais para a segurana, a sobrevivncia, a auto-referencialidade dos projetos do grupo. Pela impotncia ou pela assertividade agressiva do seu espao, tenta-se reestabilizar o estado de fluxo, as exigncias de contnuo reajustamento, as incertezas de um futuro desconhecido. Neste contexto, a religio, o nacionalismo, a organizao em bases territoriais locais so algumas das expresses deste desejo de interromper os fluxos de mudanas permanentes e aparentemente sem direo que sobrevm a sociedades nacionais ou grupos/comunidades sub-nacionais como efeitos de uma espcie de destino incompreensvel e implacvel.

4. Desafios ao multiculturalismo: o lugar da identidade no contexto global

Destacamos na introduo o carter contencioso das demandas e prticas multiculturais e procuramos argumentar que um dos elementos importantes desta contestabilidade reside na dinmica complexa dos vnculos entre identidade e globalizao. Se as energias iniciais para as demandas multiculturais podem remontar s lutas pelos direitos civis e aos desdobramentos dos movimentos estudantis no final da dcada de 60, ento seria preciso admitir que a emergncia da identidade como preocupao, como reao ou como projeto j estava implicada num movimento de propores internacionais. Durante os anos 80 e 90, as demandas multiculturais tornaram-se decididamente globais em sua extenso e disseminao.

Esta disseminao, entretanto, nem ofusca, nem diminui o potencial polmico do multiculturalismo. Assim como o terreno da globalizao disputado, tambm o o das identidades coletivas passveis de constar na lista dos atores legtimos do multiculturalismo. Mais do que uma emergncia pura e simples, tomando a forma de diferenas cuja positividade seria indisputvel, as identidades reivindicadoras de prticas multiculturais esto simultaneamente em processo de construo e em disputa pelo reconhecimento dos agravos e cenrios onde sua postulao cobra ares de objetividade incontestvel. O fato, porm, de que no podemos simplesmente escolher quais manifestaes identitrias por nos parecerem mais aceitveis ou progressistas poderiam fazer parte da lista, o fato de que h identidades reativas, intolerantes e fechadas em si mesmas, nos adverte para alguns desafios que, postos a estas identidades, estendem-se tambm s chamadas novas identidades e, a fortiori, ao multiculturalismo.

Concluiramos, ento, ressaltando, de forma puramente evocativa, alguns desafios que o contexto da globalizao coloca experincia da identidade pessoal e coletiva e s polticas multiculturais que se pem em sua defesa.

Em primeiro lugar, o desafio da abertura. Tradicionalmente, a idia de identidade foi associada a um seu-prprio que no se dividia com outros, que se pretendia proteger dos outros e que determinava uma uniformidade interna entre os portadores de tais atributos. Alm disso, a identidade se revestia de uma atemporalidade que escondia tanto a histria de seu desenvolvimento como a existncia de outras possibilidades de sua expresso que foram preteridas ou derrotadas ao longo desta histria. O cenrio da globalizao, ao alterar os processos tradicionais de produo e reproduo da identidade, confronta-a com sua prpria historicidade e, portanto, com a possibilidade de ser diferente de si mesma, heterognea consigo mesma e com a relao ao outro e, portanto, com a necessidade de reconhecer dentro de si a presena (ausente) de outros sujeitos e de negociar com eles suas demandas e valores.

Em segundo lugar, o desafio da reflexividade. A ameaa de invaso, destruio ou subordinao que a insero nos fluxos globais representa para as identidades localistas, ou a resposta ao desafio da abertura, tm cobrado que a identidade trabalhe sobre si mesma. Recomponha-se, investigue-se, critique a si mesma e elabore estratgias para sua atuao e suas relaes com outras. A avaliao permanente das suas condies de existncia e de suas chances de melhora relativa no espao social, poltico, econmico e cultural impe um permanente retorno sobre si mesma que, embora no signifique a possibilidade de compensar a perda da estabilidade, a aura atemporal e a falsa homogeneidade que geralmente as experincias identitrias cultivam, torna-se um elemento habilitador nas relaes com outras identidades.

Em terceiro lugar, o desafio da poltica. Embora muito se fale sobre a decadncia ou a retrao da poltica no contexto contemporneo, a leitura que oferecemos aqui s pode insistir sobre a centralidade da poltica na anlise da identidade. No se trata especificamente da poltica tradicional centrada na agregao de interesses atravs dos partidos e seu processamento atravs dos mecanismos de polticas governamentais. Trata-se da dimenso poltica da identidade. A perda da referncia a-histrica e os deslocamentos colocados pelo contato com o terceiro da globalizao exigem das identidades um esforo de construo. Reivindicar uma origem indiferenciada e imemorial, ou uma viso naturalizada (determinada pelo nascimento, a condio biolgica ou o solo ptrio), no suficiente ou mesmo possvel para assegurar sua continuidade/reproduo. Identidades so construes tanto no sentido histrico, como no sentido da ao estratgica; elas so o resultado de uma srie de operaes e investimentos coletivos. Mais, o fato de que a identidade no se define de modo autrquico, sem referncia com um antagonismo face a um inimigo, e sem a costura de equivalncias entre suas demandas e valores e as de outras, a negociao (que implica em conflito, argumentao, mobilizao e compromissos) outra caracterstica do desafio poltico identidade. O peso do global, as assimetrias entre atores nacionais e locais, o grau de organizao interna de cada grupo colocam o desafio da negociao.

Finalmente, o desafio do pluralismo. Os cenrios da globalizao no remetem a um sistema centrado e governado a partir de um nico conjunto de critrios, no comportam macro- ou micro-atores imbudos de pretenses imperiais ou autonomistas, nem assumem o custo da homogeneizao das diferenas. O desafio ento, que tem estado entre os maiores dilemas e contradies da onda contempornea da globalizao, o de que o regime de repartio dos recursos socialmente relevantes para os diferentes grupos que reivindicam incluso, justia ou reconhecimento produza uma tolerncia ativa das diferenas no contexto da conscincia possvel da comunidade nacional, da cultura regional e local, ou seja, assumindo-se que nunca ser possvel tolerar todas as diferenas, nem impedir que o intolervel reaparea. Pluralismo no pode, neste contexto, significar um congraamento geral, uma nova forma de comunidade plena, mas um espao de emergncia de demandas que no somente expressam injustias passadas, mas a excluso sobre a qual se assenta toda ordem social.

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