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EDITORIAL EDITORIAL

Chegamos ao momento de concluir o projeto que nos movimen-tou, durante praticamente dois anos, em torno da temática dotrabalho. Aconteceu o Congresso. Quando começamos a abor-

dar esse tema cabeludo, tínhamos os piores prognósticos. Não somen-te não parecia um tema para psicanalistas, quanto o contexto global demaus augúrios, de desemprego e de desesperança, levava-nos forço-samente à depressão. O resultado alcançado durante esse percurso foibastante interessante: partimos de interpretações finalistas, para umaabertura ao campo do debate, da interlocução. Todos saímos com aidéia de que ainda há muito o que se pensar sobre o tema e estimula-dos a uma continuação do trabalho.

Uma curiosidade: sem que esperássemos, acabou prevalecen-do um debate, que acompanhou todo o evento, e que diz respeito àdiferença sexual. Como psicanalistas, isso nos interessa de perto, por-que nos remete à necessidade de retomar conceitos que aparente-mente estão estabelecidos dentro da psicanálise, tais como o édipo e asexuação. Há algum tempo, a clínica das neuroses vem demandandouma releitura desses conceitos, que estão completamente ligados àuma resposta ao apelo fálico. Se chegarmos à conclusão de que háuma modificação no apelo fálico, consequentemente há uma modifica-ção na representação sintomática, que é por onde se faz trabalhar asexualidade e a identidade sexual. Talvez isso já estivesse enunciadono título do Congresso, como uma indagação sobre onde está o valorsimbólico, ou seja, qual o apelo a que estamos submetidos.

Finalizado o Congresso sobre o trabalho, vamos ao lazer, certo?Errado! Aqui temos uma série de artigos para demonstrar como faze-mos do lazer um trabalho. Mas o leitor não se preocupe muito, porqueassim nos divertimos um pouco. Quer dizer, pode ser que fiquemosalucinando o barulho das ondas do mar, por conta do solaço na moleiraque já se faz sentir nestes dias. Mas não é nada grave, fevereiro já estáquase aí e isso passa. O problema não é esse, o problema é a “síndrome

do Felipe”. Você não conhece? Seu batismo vai por conta daquela his-tória em quadrinhos, denominada Mafalda, e Felipe era um dos ami-guinhos da personagem principal. Felipe nunca podia ter prazer no lazer,porque sempre estava em falta com “los deveres”. Se você não conhe-ce esse personagem, certamente conhece essa história.

Para nós, de alguma maneira, o lazer por vezes se confundecom o princípio do prazer. Aliás, Freud não foi muito inspirado quandoinventou esse termo. O prazer nunca foi um princípio para os huma-nos. O princípio está na satisfação, que não é a mesma coisa. Estánessa tentativa tresloucada de costurar a bocarra do Outro, de eliminara demanda, coisa que é absolutamente impossível. Pode-se superar ademanda. Como refere Lacan, encontrar nada nesse lugar, ou mesmoapaziguá-la na experiência estética. Mas não existe esse divisor deáguas que nossa vontade constrói: trabalho é superego e lazer é prin-cípio do prazer.

Pelo menos numa coisa (dentre outras) o chamado lazer temuma função importante: é um certo organizador de encontros. É quan-do a família se reúne, é quando os amigos se encontram, é quando osamores se intensificam. O que será mesmo o lazer? O que será que sebusca? Será a satisfação? Será o prazer? O que será que os psicana-listas tem a dizer sobre isso?

De qualquer maneira, interrompemos a edição deste Correio,como o usual, durante o próximo mês. Que você tenha um bom feve-reiro, seja lá como decida passá-lo. E, mais do que tudo, que lhe sejapossível o prazer na banalidade corriqueira de alguns momentos coti-dianos.

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NOTÍCIAS

JORNADA DO PERCURSO DE ESCOLAUm percurso chega a seu término.Percurso que se propõe a um acesso ao campo teórico da Psica-

nálise, a um estudo conjunto e sistematizado – através da APPOA –,que veio abrir essa possibilidade a todos que temos em comum o de-sejo de aceder ao pensamento psicanalítico, à Psicanálise, como umsaber referente e ordenador de compreensão, enquanto, também,desordenador e interrogante no que se refere a pensarmos nossas prá-ticas clínicas e outras, nossa formação, assim como, nossos atos desujeitos inseridos na cultura.

Por um longo tempo, nos encontramos em horas de estudo einterlocução com aqueles que nos precederam nessa via e que nosfizeram transmissão. Juntos refletimos, nos inquietamos, levantamosquestões enquanto novos tempos se apresentavam, indicando enfim,ao término dessa caminhada, que outros reinícios e percursos se fa-zem possíveis, necessários e esperados.

E porque esse é um momento importante – nós da turma II doPercurso de Escola da APPOA – queremos anunciar nossa jornada deencerramento e convidá-lo para esta que, de certa forma, será tam-bém uma jornada de abertura, já que inaugura outros tempos e espa-ços de enunciação.

Nessa oportunidade, apresentaremos nossas produções com te-mas relevantes dentro do momento singular de nosso percurso.

PROGRAMADia 15/01/99 - sexta-feira - noite18h30min - Abertura da Jornada19 às 22h - Mesa 1Coordenador: Lígia VíctoraPassa, passará: o lugar do transitório - Márcia SotilliFantasma: da singularidade ao laço social - Márcia da R. Lacerda Zechin

NOTÍCIAS

SECRETARIALembramos a todos os associados que durante o mês de feve-

reiro a Secretaria da Associação Psicanalítica de Porto Alegre estaráfechada. Pagamentos, consultas e outras atividades na sede somenteaté 29 de janeiro, sexta-feira. Retornaremos no dia 10 de março, se-gunda-feira. Desejamos a todos boas férias!

O VALOR SIMBÓLICO DO TRABALHOE O SUJEITO CONTEMPORÂNEO

Após muitas reuniões, estudos, leituras, discussões, enfim, mui-to trabalho, estivemos reunidos nos dias 19, 20, 21 e 22 de novembrono salão de atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para arealização do Congresso de 1998, “O valor simbólico do trabalho e osujeito contemporâneo”.

A escolha de um tema para um congresso nasce de nossas in-quietações, dos interrogantes que as questões clínicas e sociais provo-cam em nós. No total foram 500 inscritos, número bastante expressi-vo, que aponta a pertinência do tema escolhido, bem como a eficazdivulgação do evento. Neste sentido, cabe também salientar a signifi-cativa participação de profissionais das mais diversas áreas (adminis-tradores de empresas, assistentes sociais, bancários, economistas, en-fermeiros, professores, para nomear algumas), o que indica a atualida-de e a importância de nossas reflexões.

Outra questão que nos chamou a atenção foi a presença de pes-soas provindas de vários estados do Brasil e, dentre as de nosso esta-do, contamos com a participação de profissionais de 40 municípios.Este dado nos leva a pensar sobre a forma que nosso trabalho estásendo acolhido e das possibilidades de interlocução que se fundam apartir deste fato.

Maria Lúcia Puperi Müller

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NOTÍCIAS NOTÍCIAS

Os excluídos e sua subjetivação - Luiza Maria Ribeiro16/01/99 - sábado - manhã9 às 12h - Mesa 2Coordenador: Diana CorsoParticularidades do brincar: notas sobre um caso clínico - Ângela C.ViñasA constituição subjetiva do cego - Patrícia Balestrin ManentiSobre dificuldades de aprendizagem - Marianne Montenegro Stolzmannsábado - tarde15 às 18h - Mesa 3Coordenador: Maria Ângela BrasilQuestões sobre a clínica da dependência química - Janine M. CarneiroReflexões sobre a condição feminina em uma comunidade - Marta Fadriquede VargasUm percurso, uma análise, uma formação - Maria Sandra Camerini18h - Coquetel de encerramento

Data: 15 e 16 de janeiro de 1999Local: Associação Psicanalítica de Porto AlegreInscrições e Informações: Sede da APPOA Rua Olavo Bilac, 786, CEP 90040-310 - Porto Alegre - RS Fone: (051) 333 2140 - fax: (051) 333 7922Valor: R$ 10,00 (coquetel incluído)

JORNADA DE ABERTURAA Jornada de Abertura da APPOA para o ano de 1999 será sobre

o tema “Os destinos da transferência” e realizar-se-á no dia 27/03/99.As inscrições estarão abertas a partir do início do mês de março

na Secretaria da APPOA.

TEMAS DOS CORREIOS DE 1999A Comissão do Correio realizou um levantamento dos assuntos

que, possivelmente, estarão presentes nas Seções Temáticas das edi-ções do Correio no ano de 1999. São eles:

TransferênciaTraduçãoMarketingVirtual

Pesquisa de MercadoSeminário de LacanEnunciaçãoOs Sete Pecados Capitais

500 anos do BrasilNovo MilênioNarcisismoNeurose Obsessiva

Convocamos, desde já, todos à participação, bem como nos agra-dariam indicações de outros temas.

Aproveitamos, também, para agradecer a todos aqueles que con-tribuíram, com textos e sugestões, para a elaboração dos exemplaresdo Correio no ano de 1998, sem o que estas edições não teriam sidorealizadas.

Comissão do Correio

CARTEL PREPARATÓRIO PARA O RELENDO FREUD

Aos Membros e Participantes da APPOA

A Jornada Interna “Relendo Freud e conversando sobre a APPOA”ocorrerá nos dias 21 a 23 de maio de 1999.

O texto freudiano escolhido é: “Análise terminável e interminá-vel”. Para trabalhar esse texto estamos constituindo um cartel que terásua primeira reunião em 05/01/99, às 20h30min, na Sede da APPOA,estando aberto a todos os interessados.

Atenciosamente,Ana Marta Goelzer Meira, Conceição Beltrão,

Maria Auxiliadora Sudbrack, Mario Fleig e Valéria Rilho

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7- Poderão ser emprestados até 3 exemplares do acervo, por períodode retirada, tais como: livros, publicações, fitas cassetes e revistas.

8- O material sujeito a empréstimo pode ser reservado, caso não sejapossível a retirada imediata.

9- O usuário que não cumprir os itens anteriores deste regulamento deempréstimo sofrerá penalidades:

a) suspensão do empréstimo a domicílio por 30 dias;b) indenização do material extraviado ou danificado em caso de

perda ou dano, devendo repor ou pagar o valor do mesmo (não serãoaceitos xerox do livro perdido).

10- Os sócios, que ao final do semestre estiverem em débito, não po-derão usar o acervo.

11- Só é permitida a retirada pelo próprio associado.

12- A aquisição dos livros será através de compra, troca ou doações.Entretanto os livros doados para a Biblioteca serão aceitos somenteapós uma análise sobre o seu conteúdo e estado físico, ficando o doa-dor ciente que o(s) livro(s) não selecionados serão devolvidos ou emcaso de comum acordo, enviados para outras bibliotecas para um pos-sível reaproveitamento.

13- Quaisquer eventualidades que porventura não constem neste re-gulamento devem ser encaminhadas à Comissão da Biblioteca.

O presente regulamento foi aprovado pela Comissão da Biblio-teca da APPOA em 26/11/1998.

Comissão da Biblioteca

NOTÍCIAS NOTÍCIAS

REGULAMENTO DA BIBLIOTECA

O presente registro determina as normas para controle e em-préstimo do acervo da Biblioteca.

O material bibliográfico pertencente à Biblioteca da APPOA po-derá ser emprestado para manuseio e uso fora de suas dependências,seguindo as determinações do presente regulamento.

1- O material bibliográfico poderá ser emprestado para:a) membros e participantes da APPOA;b) alunos de atividades de ensino após inscrição e/ou renovação da

mesma na Biblioteca, mediante pagamento de uma taxa semestral novalor de R$ 10,00 (apresentar documento de identidade, comprovantede residência e taxa).

2- Pessoas não vinculadas a entidade podem somente consultar o acer-vo, podendo utilizar o serviço de xerox da APPOA.

3- Não poderá ser motivo de empréstimo:a) coleção de referência (dicionários, enciclopédias).

4- O prazo de empréstimo é de 7 dias, podendo ser renovado por perí-odo idêntico, desde que o material não esteja sendo solicitado, atéperfazer um mês, sendo que após quatro renovações deve retornarpara a Biblioteca. A renovação pode ser feita por telefone com a secre-tária.

5- A multa por atraso: R$ 0,50 (cinqüenta centavos) por dia na primeirasemana. A partir da segunda semana de atraso será cobrado R$ 1,00(um real) por dia.

6- Durante o período não letivo o prazo de empréstimo será de 30 dias.

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NOTÍCIAS

NOVAS AQUISIÇÕES DA BIBLIOTECALivros“São João do Rio Vermelho”: memórias dos Açores em Santa Catarina- João E. Lupi e Suzana Maria Lupi. (Doação: Maria Sandra Camerini)“Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas”“Bem me quer, mal me quer”: retratos da adolescência - Vera Wrobel etalli.“Terapéutica ocupacional”: en rehabilitación - E. M. Macdonald. (Doa-ção: Luzimar Stricher)“Terapéutica ocupacional” - Helen S. Willard e Clare S. Spockman.(Doação: Luzimar Stricher)“Tratamiento ocupacional de los enfermos mentales” - Hermann Simon.(Doação: Luzimar Stricher)“El alumno retrasado” - Newell C. Kephart. (Doação Luzimar Stricher)“L’Inconscient” - Christiane Lacôte. (Doação Ana Costa)“Ensaios 104”: A tentação do ambíguo - João A. Frayze-Pereira. (Doa-ção: Edson Sousa)“Pulsional”: Revista de Psicanálise: Costumes brasileiros (Doação: Ed-son Sousa)“E. PSI. B. A.” - Nº 5 (Doação: Edson Sousa)“La guerra del amor” - Tomas Abraham. (Doação: Tomas Abraham)“Batallas etica” - Tomas Abraham. (Doação: Tomas Abraham)“La aldea local” - Tomas Abraham. (Doação: Tomas Abraham)“El último de Nietzsche” - Tomas Abraham. (Doação: Tomas Abraham)“Historia de la Argentina deseada” - Tomas Abraham. (Doação: TomasAbraham)

Outros“Trabalho sobre psicomotricidade” (Doação: Luzimar Stricher)“Bulletin de L’Association Freudianne Internationale” - Nº 79 - Septembre1998.

CURSO DE FRANCÊSHá cerca de cinco anos vem sendo oferecido, na sede da APPOA,

um curso de francês para associados e freqüentadores da Associação,desenvolvido pela professora Rachel Gonçalves. Comunicamos que,neste ano de 1999, serão oferecidas novas vagas para o grupo emandamento e para principiantes. No dia 10/03/99 (Quarta-feira), às 20horas, será realizada uma reunião com todos os interessados para or-ganização das turmas e estabelecimento dos horários.

MUDANÇA DE TELEFONEAna Marta Goelzer Meira informa o número de seu celular: (051) 970 8797 ee-mail: [email protected]

MESA DIRETIVA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREGESTÃO 1997/98

Presidência - Ana Maria Medeiros da Costa1a. Vice-Presidência - Lucia Serrano Pereira

2a. Vice-Presidência - Alfredo Néstor Jerusalinsky1a. Tesouraria - Roséli Maria Olabarriaga Cabistani

1a. Secretária - Ligia Gomes Víctora2a. Secretária - Liliane Seide Froemming

Ana Marta Goelzer Meira, Carlos Henrique Kessler, Enéas Costa de Souza,Gladys Wescheler Carnos, Jaime Alberto Betts, Liz Nunes Ramos, Lúcia Alves Mees,

Lucy Linhares da Fontoura, Margareth Kuhn Martta, Maria Ângela Cardaci Brasil,Maria Auxiliadora Pastor Sudbrack, Mário Fleig, Robson de Freitas Pereira

e Valéria Machado Rilho.

NOTÍCIAS

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FROEMMING, L. Hora de trabalho, hora de recreio.

HORA DE TRABALHO, HORA DE RECREIO

Liliane Seide Froemming

Recém terminou o Congresso sobre “O Valor Simbólico do Tra-balho e o Sujeito Contemporâneo”. Esse é o passado recente.O futuro próximo, vislumbrado como uma luz no fim do túnel,

é o mes de fevereiro e com ele, as férias. Falar sobre o quanto temostrabalhado e o que pretendemos fazer nas férias é assunto compulsó-rio de todas as conversas nesse período do ano.

De onde nos advém o cansaço? Invariavelmente dizemos que éo do trabalho. Não trabalhar então passa a ser uma questão.

Que associações se pode fazer a partir do que é da ordem donão-trabalho? Férias, fim-de-semana, preguiça, sesta. Mas se estascoisas não tivessem um prazo determinado de tempo, passariam a teroutra dimensão. Digamos que se estendessem indefinidamente. Pas-sariam a ter outro nome: aposentadoria, desemprego. O que fazemoscom o tempo livre? Ele só é livre porque delimitado. Que fazer, então,com o desejo de que as férias não acabassem ou que um feriadão seprolongasse? Tal desejo, se realizado, se transformaria num drama.Há desejos que precisam sustentar sua condição de não realizaçãopara garantir seu próprio estatuto de desejo.

É a partir do ingresso na escola, principalmente, que a oposiçãoentre tempo de brincar, divertir-se, e tempo de coisa séria, de estudar,se impõe. A instituição do recreio na escola se perpetua. É interessanteobservar que em ocasiões tão variadas como em uma sala de aula dealunos de pós-graduação, quanto em uma reunião de uma instituiçãoanalítica há momentos de recreios não-oficiais. São momentos dedescontração, de risos, de conversas laterais que acontecem quandoum tema tenso ou intenso é longamente debatido.

O chiste tem uma certa função de recreio, de distração. É no

Para este primeiro Correio de 1999, preparamos uma seçãotemática sobre o Lazer.

Assim, esperamos começar este ano novo, que é o último doséculo e também representa o fim do segundo milênio, imbuídos nadescontinuidade Trabalho – Lazer – Trabalho, a qual nos possibilitaviver, produzir, aprender, pensar, refletir.

O que queremos? O que é mesmo Lazer?Ócio, vagar, folga, descanso, entretenimento, distração, recreio,

divertimento, férias, ou simplesmente “tempo livre”? Que mais pode-mos responder?

Este correio conta com a produção de seis autores que se dispu-seram a refletir sobre este tema, não para encontrar as respostas, maspara propor uma forma de pensar algumas questões. Por exemplo: Oque fazemos com o tempo livre? E se esse tempo livre se prolongasseindefinidamente? O que se pode esperar das férias além de uma pro-messa não cumprida? O tempo livre é exercício de desejo ou “descan-so” do desejo? Um exercício fora da castração, ou para suportá-la?Como se planeja o lazer das crianças em férias- a criança passa otempo ocupada com o lazer, ou é dado a ela a possibilidade de brincar?Existe o lazer útil? necessário? Qual o valor do supérfluo, do fútil, doexcesso? ou, qual seria o valor do luxo?

Cada autor explorou e descobriu matizes e nuances, pequenasdiferenças a abordar, e este é o resultado.

Boa leitura!Maria Aparecida Loss

INTRODUÇÃO

SEÇÃO TEMÁTICA

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Quando a indolência nos guia pode nos levar a muitos lugaresinusitados. “Vai-se ao cinema a partir de um ócio, de uma disponibilida-de, de uma desocupação” diz Roland Barthes num artigo cujo nome é“Saindo do cinema”2. Aí estão esboçadas algumas das condições clás-sicas para a submersão no estado hipnótico. O escuro da sala de cine-ma parece-se ao “devaneio crepuscular” prévio à hipnose.

Deixar-se levar pela preguiça, não considerar o repouso comoirresponsável, a indolência podendo ser tomada no avesso da dor ...Certamente não são estes percursos, egóicos.

Boas Férias!

FROEMMING, L. Hora de trabalho, hora de recreio.

2 BARTHES, Roland. Psicanálise e cinema.São Paulo, Global, 1980.

prefácio do livro de Ribot, “A psicologia do riso” (1902), que Freud vaibuscar uma frase de Dugas “Seria tentador dizer com os céticos quedevíamos nos contentar em rir e não tentar saber porque rimos, já quea reflexão pode matar o riso e seria assim uma contradição pensar quepudéssemos descobrir suas causas”1. Isto também se aplica a tentarconstruir um saber relativo ao que é o lazer, o recreio, os espaços davida que usufruímos distraidamente. A distração da atenção envolveum processo psíquico semelhante ao do chiste. Surpreender alguémou pegá-lo desarmado, desprevenido, é uma condição do riso que ochiste provoca. A verdade escapa em um momento de distração e oriso advém como descarga, pois é uma alegria livrar-se de uma menti-ra desta maneira. Há a queda de uma defesa.

A renúncia à satisfação, o adiamento indefinido da realização dedesejos são preços cobrados pela civilização. Por que era tão difícilescravizar índios? Eles não entendiam porque deveriam trabalhar emnome de valores abstratos, como acumular para o futuro, quando suasnecessidades imediatas de abrigo e alimento estavam supridas.

A tendência a regrar o tempo livre, as férias e o fim-de-semanaretira sua própria condição de certa liberdade. Em nome da qualidadetotal devemos também aproveitar bem nossas férias, com programasque variam de ir à Cancun, a Disneylândia ou ao novo Shopping, assimcomo não devemos desperdiçar tempo quando estamos trabalhando.Jogar conversa fora, perder tempo, brincar sem um sentido pedagógi-co, dormir demais, espreguiçar-se de pura preguiça de não fazer nada- quão poucas vezes ousamos admitir este fazer que é o não-fazer,sem que os efeitos da culpa ditada pelo super-eu se façam sentir. Daía alguns escapismos, produzidos em ambientes de trabalho muitossobrecarregados de tensão, é um passo. Por exemplo, o uso dedrogas em redações no momento do fechamento de uma edição.

SEÇÃO TEMÁTICA

1 FREUD, Sigmund. Obras Completas . In: O chiste e suas relações com o insconsciente.Rio de Janeiro, Imago, 1976.

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melhor, ali não se goza. Isso nos resolve um problema e cria outro, oque é o sábado? Na mesma lição ele nos indica: sábado, feriadão (queé um termo médio entre sábado e férias) e as férias são uma porção detempo em que temos as mais altas expectativas de que com algo va-mos gozar, de que finalmente ali algo vai acontecer. Nos são aponta-dos os dois gozos envolvidos, o gozo de espera das férias e o dasférias propriamente ditas. De longe, o primeiro seria mais satisfatório;o outro, como prática do exercício do gozo esperado, traria alguns re-vezes.

O enigma de porque a unidade mínima dessa expectativa seja osábado fica um pouco obscuro, embora se entenda perfeitamente oque ele quer dizer. Talvez a questão esteja mal colocada, levamos aopé da letra algo que Lacan não queria mais do que dar um exemplo deestrutura. Tanto faz que seja sábado ou qualquer outra coisa, o quevale é o posicionamento dos elementos em jogo. É claro que, desdeque seja respeitado o fato de ser um elemento de abertura para o perí-odo de gozo, poderia ser sexta à noite, mas não domingo, pois essemarca o fechamento desse período.

Trata-se de um trecho temporal, em que a noção da passagemdo tempo é realçada. Paradoxalmente é quando se a perde, ou seja,enquanto não se sabe que horas são (no caso de sair de noite) ouquantos dias das férias ainda nos restam, que podemos obter o melhor.É por não ter desfrutado o que se esperava que as tardinhas de domin-go são um pesadelo, o tempo está escorrendo e nada aconteceu; bastasoar a vinheta do Fantástico para chegarmos à conclusão que o suicí-dio é uma saída. Isto é o que Lacan chamou de “angústia do período defechamento do momento do não-gozado” (ou menos-gozado, em ou-tras traduções).

É claro que a questão central é o retorno de suas teses maisantigas – e convenhamos não são nenhuma novidade – sobre o gozo ea borda. Sem ser finito o gozo não se constitui. As férias só são possí-

CORSO, M. Férias, uma promessa que não se cumpre...SEÇÃO TEMÁTICA

FÉRIAS, UMA PROMESSA QUE NÃO SE CUMPRE...

Mário Corso

Depois de fazer um congresso sobre o valor do trabalho nadamelhor do que um Correio sobre o valor simbólico das férias,afinal, ninguém é de ferro. E das férias, o que se espera?

Faz muito que a psicanálise aponta que somos governados nãosó pelo necessário, mas pelo supérfluo. Foi nos descaminhos da vidasexual, nos paradoxos que o gozo tomava, que tentamos provar o quantonos ocupamos, ou nos orientamos pelo desperdício, por aquilo que nãoserve para nada. Em outras palavras, somos muito mais governadospelas férias (ou pelo sonho das mesmas) do que pelo trabalho. Esteperíodo não útil povoa nossas mentes o ano inteiro.

Lacan, no Seminário sobre a Intemperança1 (seminário inéditodo qual tenho algumas informações privilegiadas), nos fala das fériascomo: des vacances sont une promesse qui n’est pas tenue (férias sãouma promessa que não se mantém). Settineri opta por uma traduçãomais livre e mais poética, que fica assim: as férias são uma esperançaque não se cumpre. Preciosismos a parte, o essencial salta aos olhos,para ele as férias estão fadadas ao fracasso.

Voltamos das férias, no mais das vezes, com a sensação dedever não cumprido. É bom lembrar que Lacan estava ainda com ques-tões sobre o gozo pendentes desde o Seminário XX. Na lição seguinteele nos revela a estrutura matêmica das férias.

Em palavras, o matema fica mais o menos assim: férias sãouma sucessão finita de sábados. Já a sucessão indeterminada, desem-prego, ou infinita, aposentadoria, não goza do mesmo prestígio, ou

1 Este Seminário está sendo traduzido por Francisco Settineri.

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O TAO DO LAZER1

Eduardo Xavier

Éinteressante a abordagem que se pode fazer do que as pessoasse dispõem a viver, quando estão livres das suas obrigaçõesmais imediatas – de trabalho, familiares, de saúde, etc.

O que se busca do tempo livre, o que se trata de experimentar,complementarmente ao que é a manutenção da própria vida, sustento,ou compromissos diversos adquiridos com outras pessoas, filhos, com-panheiros, clientelas, etc.?

É uma pergunta que se complementa, para o psicanalista, comoutra, oriunda de seu próprio objeto de trabalho: se e quando a deman-da do Outro pode deixar a alguém escolha a respeito de seu fazer, deseu tempo; ou se isso não é predominantemente dependente das con-dições que a neurose exige, sem escolha de horário ou jornada, semfolga?

Nisso, alguns exemplos que não são propriamente novidade. Ob-serva-se que a histérica, que freqüenta abundantes festas e situaçõesde encontro social, muitas vezes tem nisso uma situação que passalonge do repouso e do divertimento, na qual se reeditam impiedosamenteas suas mais angustiantes questões, a respeito do lugar que ocupa, decomo incide sobre si o olhar do Outro, etc. Do mesmo modo, o obses-sivo passa suas horas “livres” debruçado sobre o tabuleiro de xadrez,exercitando à exaustão sua capacidade de antecipar as jogadas, suase do adversário, que eventualmente pode ser ele mesmo. Percebe-seque aí o lazer dita-se pelos termos de uma escravidão ao sintoma.

Fica uma questão sobre se a experiência da análise pode, entreoutras novidades, trazer à pessoa, às vezes, a possibilidade de fazer

XAVIER, E. O tao do lazer.

1 Termo chinês, que significa “caminho”, eqüivalente ao termo japonês “Do”.

SEÇÃO TEMÁTICA

veis porque sabemos que voltaremos para o mesmo lugar. Fica maisfácil de compreender evocando a ilustração topológica: as férias ficamcomo o toro que se entrelaça ao toro do trabalho – aqui estou fazendouma digressão, na verdade Lacan usa o binômio dever-lazer.

Mais adiante, ele nos deixa claro, com todas as palavras, que asférias raramente são um afrouxamento da demanda fálica. Trata-senesses períodos de uma sucessão de exigências, que colocam a sub-jetividade a todo tipo de prova. O exemplo que nos dá é o do valor dasviagens de férias, tanto mais trabalhosas, tanto mais exóticas, tantomais se gaste em todos os sentidos, mais valem. Dificilmente alguémque fique vendo a grama crescer vai ser considerado entre os quetiveram grandes férias. As férias são um momento em que, em quasetodos os casos, precisamos gozar em dobro, o que não deixa de seruma árdua tarefa. Em termos freudianos, as férias seriam muito maissuperegóicas do que dionisíacas.

Uma questão para finalizar. Esse seminário comentado perma-nece num lugar de controvérsia e Marini2 o expurga de sua cronologiapor apócrifo. Não é a única, aliás, que diz que as teses ali expostas –de um seminário inconcluso, com não mais do que quatro lições erealizado durante o tempo em que é gestada a dissolução da EFP3 –seriam na verdade teses de Jacques Alan Miller. Paranóias à parte, umtexto se reconhece pelo seu estilo, e nesse se reconhece o estilo dosúltimos Seminários de Lacan.

2 Marcelli Marini em sua obra: Lacan - a trajetória de seu ensino (Editora Artes Médicas)organizou a mais completa relação e sinopse da obra de Lacan.3 Escola Freudiana de Paris.

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teria dois usos possíveis. Um uso que se explicaria como uma espéciede descanso em relação ao desejo. Resguardada a legítima necessi-dade do descanso, acredito que por aí se desemboca facilmente nopseudo-lazer, com as suas formas típicas de alienação: no consumo,na televisão, na bebida, na droga, etc.

Outro uso, aquele em que se estaria exercendo a função do de-sejo em condições melhores de gratificação, ou de liberdade, relativa-mente às outras situações da vida, que tenderiam a funcionar no níveldaquilo que, tradicionalmente, se chama de “reino da necessidade”.

Não seria necessariamente impossível que a economia psíquicado trabalho cotidiano pudesse assumir, com o passar do tempo, carac-terísticas da economia psíquica do lazer. Considerar a necessidade dolazer, em todo caso, não implica afirmar essa impossibilidade. Talvezmesmo o lazer possa servir como um Tao.

De qualquer maneira, tomar o lazer como um exercício do dese-jo, não tão exposto aos imperativos do “reino da necessidade”, nãopoderia eqüivaler a pretender um exercício fora de qualquer castração.Pois desejo e castração são duas faces da mesma moeda.

Buscar o lazer, vivê-lo, exige, pois, suportar a castração. O hor-ror à castração, ao contrário, é que pode levar à consideração (pessi-mista?) de uma realidade avassaladora, de um imperativo social aci-ma de nossas forças, na qual toda subjetivação seria arriscada.

Se faz algum sentido falar em Tao, talvez tenha mesmo a vercom um caminho que se possa trilhar, de assimilação continuada dascondições da necessidade e da castração. O que se expressa poetica-mente na canção:

“viveré afinar o instrumentode dentro pra forade fora pra dentro.”3

XAVIER, E. O tao do lazer.

3 Serra do luar de Walter Franco.

SEÇÃO TEMÁTICA

livre o seu “tempo livre”.Lazer pode, de qualquer maneira, ser entendido como uma de-

fesa, talvez da mesma maneira como o sonho, uma atividade commuitas semelhanças à vida de vigília, mas com algumas diferençastambém importantes. A privação de sono e de sonho, que em algumaspatologias se impõe com efeitos devastadores, pode ter alguma seme-lhança com a privação de lazer, queixa crescente nos consultórios.

Ora, trata-se de pessoas para quem o “direito à preguiça”, pleite-ado classicamente por Paul Lafargue2, é já um território conquistado.Isso no sentido de que essas pessoas não são exigidas no limite de suaforça física, nem de seu tempo, nem estão expostas a condições pro-blemáticas de deslocamento, etc. Podem mesmo estar ociosas, e ofazem. Falta-lhes ainda um direito, que talvez seja o de ocuparem suaspróprias capacidades com outra coisa que o seu trabalho.

Aí é que se escalonam os dois “pecados” como diferentes. Afi-nal, a preguiça propriamente dita, o dormir, a inércia, não rivaliza coma capacidade produtiva, antes a serve. Já o hobby, ouvir música, lerliteratura, estudar temas de interesse pessoal, etc., seja lá o que forque para alguém pudesse ser a ocupação lúdica de seu desejo, paraalgumas pessoas será o caminho interditado. É como se se tratasse deuma espécie de adultério da capacidade de desejar. Não é permitidodesejar outra coisa senão o que tem que ser feito. Isso se pode intensi-ficar numa época em que qualquer resultado do trabalho tende a sercomparado paranoicamente com um resultado ideal, supostamenteexigível. Nunca a tarefa está feita, nunca se pode parar, o açoite doobjetivo idealizado torna amargo o trabalho e amarga a vida que orodeia. Nessas condições é que se impõe a função paliativa do pseudo-lazer.

Nesse aspecto, produzimos uma pequena distinção, para veronde ela pode nos levar. Esse tempo, então, que chamamos “livre”,

2 Conforme Paul Lafargue em sua obra intitulada “Direito à preguiça”.

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KEHL, M. R. O pecado da preguiça.

trabalho é o ócio – mas o trabalho pode ser executado mecanicamen-te, tristemente, sem inventividade nenhuma. Pode ser repetitivo, exaus-tivo, tedioso, executado horas após horas, dias após dias, por alguémque não põe ali nada de sua alma. O preguiçoso pode, sim, até mesmopor preguiça de se empenhar em alguma idéia nova, executar suastarefas cotidianas, como querem a sociedade e a ética do capitalismo.Mas não vai além.

O oposto da preguiça não é o trabalho; é o entusiasmo. Vejamum poeta como Mário Faustino, quando escreve: “que faço deste dia,que me adora?” Não há preguiça neste verso. O poeta está ligando amáquina a todo o vapor, está se colocando em disponibilidade totalpara responder ao que o dia vier a demandar dele – este dia que oadora. Ou o vagabundo Walt Whitman, cheio de entusiasmo por suaAmérica novinha em folha, saudando o mundo: “Com simpatia de de-terminação/ circulou meu espírito ao redor/ de toda a terra...”

O oposto da preguiça é o entusiasmo e o entusiasmo busca ovínculo com o outro: quer compartilhar – com “simpatia e determina-ção...” – quer intervir. Assim, para fazer um gancho com o que se vemdiscutindo aqui desde ontem, eu pergunto: por que estamos lamentan-do tanto o fim, se é que é o fim, da era industrial? Se nunca o homemfoi tão mecânico, tão alienado, tão reduzido em sua dimensãopolivalente, quanto nos últimos duzentos anos de trabalho fabril? Porque confundimos o declínio de um situação que para nós, intelectuais,é confortável, se ela esmagou em sua engrenagem mais de dois terçosda humanidade?

E, para concluir: por que tememos pelo fim do patriarcado, queproduziu a ordem opressiva necessária à exploração capitalista do tra-balho – e com ela as estruturas neuróticas tais como as conhecemoshoje, dividindo homens e mulheres em obsessivos assujeitados ao paie histéricas fascinadas pela miragem fálica que ele encarnou? Ontem,Alfredo Jerusalinsky lembrou que não devemos confundir a função pa-

SEÇÃO TEMÁTICA

O PECADO DA PREGUIÇA1

Maria Rita Kehl

Preciso começar dizendo que, depois dos debates que ouvi, tivesérias dúvidas em relação ao texto que havia preparado paraeste Congresso. Minha vontade seria de intervir mais direta-

mente sobre os temas que já estão circulando aqui, sobretudo a ques-tão do declínio do valor do trabalho. Mas o que trouxe foi um texto feitode alguns trechos de poemas, através dos quais eu tentava justificarque a preguiça deve mesmo ser incluída entre os pecados capitais,seja isto o que for. Por sinal, vim a descobrir que os sete pecados nãoestão nem no velho, nem no novo testamento; fazem parte da pedago-gia cristã do catecismo.

Por que a preguiça seria um pecado, se o preguiçoso não ofendenem prejudica ninguém? Na psicanálise, poderíamos considerá-lo umdepressivo (mas não melancólico – os melancólicos são incansáveis),o que não constitui nenhuma acusação moral. Na pior das hipóteses,poderíamos acusar o preguiçoso – assim como o depressivo – por seudescaso em relação ao mundo. Envolvido sempre em seu tormentopessoal, o preguiçoso não tem disponibilidade para o outro. Como noverso de Mário de Sá Carneiro: “Triste de mim, que vim de alma para arua – e nunca a poderei deixar em casa!”

Ao que temos vontade de responder: Por que dar tanta impor-tância a si mesmo? Por que levar-se tão a sério?

Não, não vou psicanalisar a preguiça. Pretendo tratá-la moral-mente, e justificar o pecado: A preguiça é o desprezo pela criação. Porisso ofende ao Criador. A preguiça se manifesta por uma espécie deindiferença e não se opõe, necessariamente, ao trabalho. O oposto do1 Extrato da palestra apresentada no Congresso “O valor simbólico do trabalho e o sujeitocontemporâneo”, nov/98.

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MEIRA, A. M. G. As crianças vão entrar em férias!

1 Reportagem: “A ditadura mirim”, cuja chamada é: “Os filhos ditam cada vez mais o que ospais devem comprar e criam novos mercados para as empresas”. Revista Época, n. 27, 23de novembro de 1998, São Paulo, Globo, p. 138.

AS CRIANÇAS VÃO ENTRAR EM FÉRIAS!

Ana Marta Goelzer Meira

“As crianças vão entrar em férias!” Esta frase é enunciadacom surpresa e pânico pelas mães, quando seusfilhos anunciam a chegada das férias escolares. Imediata-

mente cria-se nos pais o movimento de “ter que ocupar o tempo dascrianças com alguma coisa”. As crianças, na mesma medida, respon-dem: “Estou de férias”. Ao que estão dizendo que, sobre este tempo,eles terão o prazer de decidir em que “perdê-lo”.

Acostumados ao ritmo veloz das atividades cotidianas, muitospais não suportam a idéia de ver seus filhos em casa, “sem fazer nada”,como dizem. Ocupam-se, então, de ocupá-los. Sintoma dos pais, quenão se dão conta de que seus filhos, hoje, não tem tempo para dedicar-se a atividades que, sim, são constituintes: brincar, ler, jogar com osamigos, enfim, dedicar-se a ocupar seu tempo livre com brincadeiras.A grande vilã desta história é a televisão. Os pais dizem: “Não vai ficarem casa sem fazer nada vendo televisão!” O apelo, aí, é grande. Einúmeras crianças dedicam-se a assistir aos programas das telas, “parapassar o tempo”. Em meio a estes, assistem, também, às chamadaspublicitárias. Se nos detivermos nestas, veremos que o apelo a que ascrianças acedam ao consumo de objetos, os mais variados, é constan-te, e certamente maior nos horários em que elas assistem aos progra-mas infantis. Ou seja, ali onde o público alvo são as crianças, o alvo dapublicidade também o é. Tendo constatado que as crianças determi-nam, hoje, padrões de consumo aos pais1, as mensagens publicitáriastem se valido disto para oferecer, por esta via, objetos desejáveis pelos

SEÇÃO TEMÁTICA

terna com a imagem do pai. Concordo integralmente, e acrescento:não vamos confundir o fim (possível) do trabalho industrial com o fimdo trabalho, toul courl. A sociedade industrial é tão recente – poucomais de duzentos anos – por que não se pode conceber outras formasde laço, de ordem, de produção de riquezas? E se a função do pai, talcomo vem operando para referendar a exploração do trabalho, estádeixando de fazer sentido cabe a nós mais uma vez – sempre preguiça– fazer o que os irmãos e irmãs sempre fizeram, desde o mito dasorigens freudiano: eliminar o pai totalitário e fundar outro. Mais de acordocom nossas necessidades; mais permeável a nossas inúmeras possi-bilidades.

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MEIRA, A. M. G. As crianças vão entrar em férias!

ca deles –, elas não conseguem responder. Ou seja: “O que fazer comisto?” tem uma resposta evasiva e frágil. Na mesma medida das cha-madas evasivas que escutam nas mensagens publicitárias. Fica, en-tão a pergunta: “E quando é que vamos brincar?”

Um menino, que tem uma posição marcada em relação ao con-sumo de objetos, ali onde marca sua posição subjetiva, realizou seuprimeiro passeio fora de casa aos quatro anos. Até então, passava seutempo assistindo televisão. E saía, com os pais, para comprar os obje-tos que via nos anúncios publicitários. Recebia todos os que pedia. Umdia, depois que seus pais foram interpelados em relação a esta posiçãode que a ele nada deveria faltar, ele me conta, exultante, que haviasaído no fim-de-semana: “Fui no super! E comi bife com batatas fri-tas!” Circula por estes lugares que viu estampados nas telas comosendo os desejáveis por uma criança. Quando crescer, diz que vai ser“recolhedor de praça de alimentação”. Ali se enlaçam as significaçõesque remetem a seu desejo pelos alimentos, inscrição familiar, e o tra-balho em um lugar que lhe oferece múltiplas possibilidades de acederaos objetos desejados, trabalho ao qual seus pais se dedicavam semcessar. Sua mãe refere que “a ele nada deve faltar”. Quando entra emférias, ele mergulha em uma piscina, à frente do mar, e dali não saimais. A não ser para assistir à novela das sete, prazer do qual, mesmoem férias, não abre mão. Mesmo estando diante do mar, ele prefere apaz das águas de uma piscina. Ali, não há o perigo de se defrontar como repuxo das águas, ou com siris que venham a morder seus dedos.Nada pode faltar, nada pode acontecer que venha a romper o gozo queali se instala: o de que tudo seja perfeito e tranqüilo, sem marés baixasou repuxos do mar. O encontro com o imprevisível é milimetricamentedescartado. Como nas chamadas publicitárias, onde tudo é promessade gozo e perfeição. Por mais que estas sejam consideradas meroapelo, fazem marca, pois encontram-se imersas no universo da lingua-gem. “Tesouro dos significantes”, como dizia Lacan, a linguagem é afonte da qual as crianças tecem seus desejos.

SEÇÃO TEMÁTICA

pais. O último anúncio da Volkswagen é pródigo neste sentido: mostraum menino – que fala a língua alemã - entrando numa Parati, e expe-rimentando todas as comodidades do novo carro. Ao final, a chamada:“Quer entender? Peça a seu pai para comprar um!” Chamada que co-loca a criança na posição de saber e demanda sobre os objetos. Aversão publicitária dirigida às crianças, ou aos pais, por sua via, esta-belece uma rede metonímica, onde os objetos oferecidos são referidosa seus atributos. Com chamadas curtas, mas plenas de sentido, é ocelular da Motorola que “vai ensinar a voar”, é Rider, “o mundo a seuspés”, é... rede metonímica, e sem construções metafóricas a não ser ade “ter para ser”.

Passatempo preferido de muitas crianças, é interessante obser-var que nos períodos de férias a televisão freqüentemente é desligada.Ou seja, as crianças decidem desligar-se de tudo o que representa seucotidiano rotineiro, incluindo aí o consumo desenfreado. Dedicam-se abrincar, a ler, a rabiscar, a brincar com os vizinhos e amigos, ou seja, apassar o tempo com brincadeiras. Sem preocupar-se em atender aosimperativos parentais de ter que se ocupar com algo. Ocupam-se, sim,daquilo que para sua infância é primordial e constitutivo: brincar. Tal-vez não seja casual a observação dos pais quando seus filhos retornamdas férias: “Nossa, como ele cresceu!” A pergunta que fica é porque ospassatempos infantis, próprios das férias, sejam logo apagados damemória, quando as crianças voltam às aulas. Acesa fica a tela datelevisão, e novamente as crianças são expostas aos apelos do consu-mo. É importante que não se considere esta questão como uma meraconstatação, mas sim que se pense sobre os efeitos que esta lingua-gem tem sobre a subjetividade infantil. Muitas crianças, hoje, são inca-pazes de brincar e, por outro lado, são mestres em saber sobre osobjetos. Sobre onde comprá-los, como usá-los, para quem servem,mas, quando são interpeladas em relação a uma posição subjetiva –onde se inscreva um saber que não esteja remetido a seus atributos,mas sim à possibilidade de construção de uma versão metafórica acer-

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mento sobre o narcisismo das pequenas diferenças. Dentro desta lógi-ca, é a diferença que é investida de valor pelo lugar de sua inscrição,reduzindo o objeto que inscreve esta marca a um mero traço. A pers-pectiva, anunciada por Enzensberger, de quais serão os artigos de luxopara o próximo milênio são surpreendentes e nos convocam a novasreflexões.

Segundo ele, os artigos de luxo anunciados para o próximo milê-nio serão: o tempo, a atenção, o espaço, o sossego, o meio ambiente,a segurança. Os argumentos apresentados são sólidos e indicam, con-forme o autor, um luxo que despede-se do supérfluo e aspira ao neces-sário. Talvez não seja o mais elucidativo cairmos na tentação de defi-nirmos escalas de necessidade, para anunciarmos e louvarmos umcerto retorno do homem a valores ditos mais “naturais”. Contudo, aindaassim, estes valores parecem indicar um certo esgotamento do discur-so dos “consumidores consumidos”3, que se percebem à beira do abis-mo do consumo. Esta reflexão teria, ainda, um sentido crítico e resis-tente à melodia sedutora de que seria infinita a imaginação da máqui-na produtiva, a nos propor sempre mais e mais novos objetos de “de-sejo”, digo, de consumo. Teríamos que ter cautela ao afirmar a rever-são desta tendência mundial, ainda mais num tempo em que o impériodo ter justifica o ser. Enzensberger, mesmo equivocado, talvez tenhaum pouco de razão quando diz que os duty free Shop e os shoppingcenters são o necrotério do luxo.4

3 Ver GOLDENBERG, Ricardo (Org.). Goza! Capitalismo, globalização e psicanálise. Salva-dor, Agalma, 1997.4 “Lá se conservam os restos miseráveis do custoso defunto. O inquietante neles é que semultiplicam como num filme de horror. A inundação pelo idêntico apresenta-se com a afirma-ção de que representa o exclusivo, e o capricho dá um passo à frente com a tola pretensão deque se trata de um “must”. O tão citado lucro de distinção expõe-se definitivamente ao ridícu-lo quando, na ciranda das listas de compra e venda, manifesta-se o mesmo e eterno deser-to”. ENZENSBERGER, Hans-Magnus. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 30 de março1997.

SOUSA, E. L. A. de Lazer e Luxo.SEÇÃO TEMÁTICA

LAZER E LUXO

Edson Luiz André de Sousa

Hans-Magnus Enzensberger, pensador alemão, publicou em 1997uma instigante reflexão sobre o luxo, mostrando seu lugar nahistória do homem.1 Poderíamos ler sua reflexão desde um

prisma sociológico, onde se evidenciaria a função de marca diferencialdentro do laço social implicando, em última instância, um valor pelacondição de exclusividade e exceção que tais objetos outorgariam. Ora,evidentemente a história destes objetos e a ampliação do acesso aosmesmos fez com que, inevitavelmente, se produzissem a cada temponovos circuitos de consumo, circunscrevendo outras fronteiras à cobi-ça deste lugar. Combatidos por uns como um verdadeiro escândalosocial, na verdade nos confrontamos com a força de sua presença pelafunção de exceção que ele inscreve no imaginário social, senão comoum lugar possível pelo menos como horizonte sonhado. Se o sensocomum parece confundir luxo e riqueza não é esta a perspectiva deEnzensberger. Inspirado em Voltaire, que afirmava que o supérfluo éuma coisa altamente necessária, ele nos diz que o “luxo não é umaprerrogativa exclusiva do rico, cada homem pode valer-se dele segun-do suas condições patrimoniais, a fim de embelezar a vida por meiodos vários estimulantes possíveis que lhe são franqueados”.2

Por outro lado, a partir de uma leitura psicanalítica outros ele-mentos poderiam ser sublinhados na tentativa de dar conta desta ques-tão. O narcisismo, por exemplo, vem instituir, para muitos, este projetoda conquista de um reconhecimento pelo traço de um singular, de umadiferença. Freud já nos abriu algumas portas com o seu desenvolvi-

1 ENZENSBERGER, Hans-Magnus. Zickzack-Ausätze. Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1997.2 Ver Folha de São Paulo, Caderno Mais, 30/3/1997.

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O FUTEBOL E O IDEAL PAULISTA DE LIDERANÇA

Rodolpho Ruffino

OBrasil, entre todos os países, é o que mais destaque dá aofutebol. Simultaneamente o futebol é, neste País, a mais po-pular dentre todas as modalidades esportivas presentes. Com

o futebol brasileiro, o brasileiro mais simples sente-se partícipe do pres-tígio, ao mesmo tempo, de seu time e de sua seleção. Aqui, para agrande maioria da população, pertencer à torcida de um clube futebo-lístico é a única forma de inclusão comunitária ampla e com bordasdefinidas que o sujeito experiencia. Um jogo de futebol tornou-se, emnosso País, um poderosíssimo acontecimento catártico, capaz de en-volver multidões jamais reunidas em tal número e com tanto ímpetoem torno de qualquer outro evento – fosse ele de cunho religioso, polí-tico ou cultural. A intensidade e a extensidade nos laços constituídospelo evento futebolístico, mesmo não constituindo alterações duradou-ras no enlace produzido quando da fagulha do acontecimento, bastampara caracterizar a importância do efeito de espelho que o evento rea-liza, devolvendo às multidões a imagem de si, onde sua brasilidade sereconhece.

A tradição popular aponta, para restringirmos nossa abordagemagora ao Estado de São Paulo, quatro times maiores, em ordem alfa-bética: o Corinthians, o Palmeiras, o Santos e o São Paulo. Cremosque não haverá quem possa nos desmentir sobre este elenco, mesmoque as contingências não endossem, para este ano, este mesmo con-junto para designar os times paulistas de melhor desempenho no cam-peonato brasileiro.

Que cada um dos quatro times fixe, em suas formas e estilo,configurações capazes de oferecer desenhos plausíveis para os ideaissociais mais populares, não há dúvida. Conseqüentemente, a

RUFFINO, R. O futebol e o ideal paulista de liderança.SEÇÃO TEMÁTICA

Como pensar o lazer dentro desta perspectiva? Talvez um dospontos mais interessantes seja, justamente, percebermos o quanto olazer pode ser experienciado dentro da mesma lógica dos objetos deconsumo, não instituindo, desta forma, nenhuma ruptura de ritmo noestar no mundo. Se seguirmos as indicações de Enzensberger, anunci-ando os “bens de luxo” para o próximo milênio, veremos uma necessá-ria mudança de horizonte no lugar desta reflexão. Teríamos queredimensionar o valor que pode ter, para cada um, poder dispor de si,do seu tempo, do seu espaço. O lazer, nesta nova acepção, teria comoobjetivo se reapropriar daquilo que introduz na vida um valor de ser.Dentro desta perspectiva, poderíamos pensar o lazer como um exercí-cio de liberdade de cada um diante de seus desejos, cumprindo assimuma função essencialmente crítica e reflexiva em relação aos estilosdo trabalhar. O quadro dramático de nosso tempo, contudo, nos obrigaa sublinhar que, para muitos, não é o lazer que se inscreve como luxo,mas poder dispor de um trabalho, onde o sujeito possa inscrever seuvalor.

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RUFFINO, R. O futebol e o ideal paulista de liderança.

A liderança de Felipe Scolari é “braba”. Sem prometerem coe-rência ou lealdade, as massas populares às vezes apelam para esseestilo Felipão, mesmo não levando a sério o próprio apelo. Felipão nãoquer arte no futebol. Ele quer resultados. E, para ele, resultado não é aresultante de um trabalho, é um efeito imediato, arrancado à força. Aovale-tudo, ele e seus adeptos chamam de “garra”. O exemplo ideal deresponsabilidade de garra para o Felipão é o Pinochet, o qual, segundoele, se precisou fazer “algumas realizaçõezinhas”, “arrumou o país” e,se provocou mortes, foi porque não podia “deixar a anarquia tomarconta”. Poucos brasileiros quereriam um Pinochet no comando do País,mas muitos aceitariam uma réplica minimizada para o cão de guarda,o síndico do prédio ou para o técnico do time. Assim, Scolari encontrouseu lugar.

Mário Sérgio, enquanto lidera, oferece o testemunho daqueleque se converteu à moralidade, a Deus e ao Maluf em sua“amadurescência”. E ele julga que os três elementos acima (moralidade,Deus e Maluf) expressam o mesmo ideal! Hoje, Mário Sérgio quer sal-var, pelo exemplo de sua transformação, o mundo perdido pelaindisciplina das equipes. Por isso ele foi contratado por seu atual clube.Dedica-se a mostrar o quanto o malandro de ontem não via o quantotinha sido, na verdade, um “trouxa” e afirma que o jogador Mário Sér-gio da juventude jamais seria escalado pelo técnico maduro que ele setornou. Para a diretoria do São Paulo, entretanto, toda a sua maturida-de e arrependimento não foram suficientes: a 16 de novembro ele foidespedido de sua função. Brasileiros admiram o esforço dos que searrependem e tendem a legitimar seu autoritarismo embasados na im-posição moralizante, desde que esta seja adocicada pelo poder de apro-ximação da confissão, quando esta diz unir líder e liderados. Bela des-culpa para o autoritarismo não ter limites.

Emerson Leão não é nem sargentão nem testemunha de auto-conversão. É a figura de um administrador moderno, que ouve e con-

SEÇÃO DEBATES

aceitabilidade de um treinador, escolhido e contratado para cada umdesses quatro times, deve refletir uma certa correspondência aos ide-ais de liderança presentes entre a população torcedora paulista.

Qual é o leque dessa oferta de estilo de homem e de liderançaque os clubes nos oferecem hoje, com as personagens criadas pelaspróprias vinhentas de si endereçadas à mídia por esses mesmos qua-tro técnicos? Refirimos-nos, em ordem alfabética, a Emerson Leão(Santos), Luis Felipe Scolari (Palmeiras), Mário Sérgio Pontes Paiva(São Paulo, pelo menos até o encerramento da primeira fase do Cam-peonato Brasileiro) e Wanderley Luxemburgo (simultaneamenteCorinthians e Seleção Brasileira)? O quanto esses estilos formatamou entram em discórdia com a demanda popular de liderança que opaulista alimenta?

Com poderes distintos, mas combinados, cujo resultado se fazvaler através de um dispositivo institucional – ele mesmo representa-tivo do que a coletividade implicitamente legitima para nossas institui-ções –, todos os envolvidos, desigualitariamente, participam na esco-lha de um treinador: a pressão da torcida, a difusão da mídia, a vonta-de dos diretores, o poder dos patrocinadores e até a resposta dos dire-tamente a serem liderados – os jogadores do time. Todos, desigual-mente cúmplices, compõem a imagem do técnico. Inclusive a pessoado técnico, fornecendo matéria-prima empírica e biográfica para a cons-trução da personagem.

Não falarei do íntimo dos quatro atores, mas tão somente doêxtimo das quatro personagens construídas pelos próprios autores. Oquanto à personagem corresponde o ator, é irrelevante aqui. Ao con-trário, o que é de interesse é a figura da personagem e, principalmente,seu desenho estereotipado, em sua ponte com a difusa e até contradi-tória “vontade popular”, que nunca foi una. Essa vontade não una, ten-temos vê-la repartida em quatro figuras de liderança, semi-representa-da nas personagens dos quatro treinadores mencionados.

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RUFFINO, R. O futebol e o ideal paulista de liderança.

encontraria problemas. – Como vemos, o Gabiru da maturidade soubevender o seu peixe; ei-lo na Seleção.

Os quatro estilos de liderança – nos quais se reparte hoje a von-tade popular desigualmente expressa pelo jogo de poder, que elegeu econtratou as quatro figuras que treinam os quatro times, que a tradiçãoendossa para o futebol paulista, sob as diferenças nas quais se sepa-ram –, revelam um solo comum: uma nostalgia pelo espaço familiar euma preferência para reunião, com poucos amigos íntimos, ao redordo ritual de um churrasquinho. O que os quatro técnicos, outrora garo-tos atletas, tiveram em comum no seu percurso foi a experiência deum necessário afastamento do ritmo das coisas simples e caseiras.Sem transformar ninguém em craque excepcional, a modernidade im-põe essa mesma ruptura produtora de isolamento e desenraizamentogeneralizado às multidões. Não se revelaria a todos nós, a partir daamadurescência, um pouco desse sentimento nostálgico sob o fundodas diferenças que nos separam?

Talvez possamos retirar, daquilo que se mostra na escolha que,indiretamente, fizemos para eleger essas lideranças, ao menos isto:esta população até suporta divertir-se e não endossar um ideal comumúnico quanto à matiz ideológica de seus líderes; mas, sejam eles deque tonalidade forem, não seriam reconhecidos como podendo encarnarqualquer ideal, caso não se contassem como partícipes dessa nostal-gia da intimidade familiar – intimidade essa hoje tão maltratada pelasexigências do dia-a-dia.

Se ao leitor interessar possa, o autor dessas linhas é são-paulinoe psicanalista. Seu ideal pessoal não se encontra encarnado em ne-nhum dos treinadores, mas é algo que tenta se realizar no ato daescrita.

SEÇÃO DEBATES

sulta, mas apenas para melhor assegurar a centralização na decisãofinal. Ao contrário da maioria dos técnicos, ele não sonha em dirigir aSeleção, ele aspira a se tornar diretor executivo de um clube dentro deseis ou dez anos. Administra com autoridade e profissionalismo o de-partamento que lhe foi designado, não sem antes ter exigido para sicarta branca para o exercício de seu poder na área que lhe compete.Eficiente para afastar a intrusão dos apaixonados ou a pressão dospoderosos, afirma que o assunto não concerne a leigos. Com ele, ofutebol brasileiro fez-se empresa de primeiro mundo com a mesmaversatilidade que transformou o ex-goleiro, garoto propaganda das per-nas e cuecas, no executivo de competência global. Eis a liderançamoderna da era da globalização que se realiza no mundo do futebol.Eis mais uma das figuras das “vontades populares” se efetivando noesporte das multidões. E, com esta figura, a ilusão de desenvolvi-mento.

Wanderley Luxemburgo fez-se líder por um processo de trans-formação pessoal. O garoto Gabiru, da Baixada Fluminense, cuidoubem de seu crescimento. Bom jogador em diversos times, iniciou comotécnico estagiando junto a mestres, como Antônio Lopes, do Olaria, eaprimorou-se no exterior (Arábia Saudita). Técnico conquistador de vi-tórias (para o Bragantino e para o Palmeiras), acumula hoje as funçõesde treinador para um time (o Corinthians) e para a Seleção. Cursouuniversidade, aprendeu línguas, circulou pelo mundo europeu para sentire observar antes de definir sua estratégia. A liderança que ele figura éa de líder aprimorado, elegante e intelectual. Seus inimigos, entretan-to, dizem que ele “embranqueceu” outros contrapõem, à imagem delímpida ilustração que o técnico exibe, o chamado escândalo da mani-cure. Afinal, se assédio sexual não ruboriza os admiradores de umScolari, pelo menos traz incômodo aos simpatizantes do estiloLuxemburgo. Mas os esclarecidos são tolerantes; afinal, a contradiçãonão é o que traz humanidade à figura? – Entre nós, Bill Clinton não

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dólar? e apenas um? para saírem do atoladeiro. Mas, para obter estedólar e suprimir o processo de alienação de que era vítima, o clientedeveria submeter-se à uma série de condições – umas mais injustasque as outras –, começando pela venda de seus produtos a um agiota(que fixava suas tarifas de maneira totalmente arbitrária e bem acimado mercado, é claro).

Tudo isto era intolerável. Da mesma forma que era irrisória aligeireza com que, nós universitários, tomávamos somas astronômicasdurante nossos cursos, sem prestar a menor atenção às minúsculasnecessidades dos trabalhadores pobres, para quem a vida, a morte, osproblemas cotidianos se jogavam em alguns centavos. Decidi entãoemprestar do meu bolso aos aldeões o dinheiro que eles precisavam,sabendo que teria de encontrar rapidamente outras soluções.

Consultados, os bancos responderam todos que os pobres nãoofereciam garantia financeira. Tentei argumentar e lhes retorquir, “quesabem vocês? Vocês nunca lhes emprestaram dinheiro!” Não conse-gui nada. Como último recurso, me propus ser a garantia dos emprés-timos efetuados, o que foi feito. A partir de 1976, os pobre de Jobracomeçaram a reembolsar seus empréstimos sem problemas. Este pri-meiro resultado constituiu-se, é claro, num grande encorajamento. En-tretanto, os banqueiros nos advertiam que se pensávamos estender aoperação eles cairiam fora. Nós tentamos, no entanto, a experiênciaem cinco aldeias, e com sucesso. Os bancos, então, afirmaram quenós fracassaríamos na nossa empresa se passássemos a um estágiomais vasto, o dos distritos. Nós o fizemos, apesar de tudo, e nessenível tivemos também um êxito. Nosso método poderia alastrar-se, osbanqueiros permaneciam firmes em sua recusa. Já que não podería-mos mudá-los, nem os seus preconceitos em relação aos deserdados,nos sobrava a possibilidade de criar um banco especialmente parapobres. Foi assim que nasceu o banco Grameen (da palavra gram quesignifica aldeia), em 1973.

Atualmente, Grameen funciona em 37.000 localidades doBangladesh (ou seja, mais da metade das aldeias do país), 94% dos

DE KATMANDU À TAPERA,UMA AVENTURA ORIENTAL

Muhammad Yunus1

Tradução de Maria R. Pilla

Do mesmo modo que o capitalismo teve os seus cidadãos Kane,a barbárie neoliberal pode criar sucedâneo daquele heróiorsoniano: em lugar das colunas e salões do fabuloso palácio

de Katmandu, o barro seco das paredes de uma tapera.O risco não impede que se aprenda com a experiência aqui re-

sumida, e da qual podemos tirar numerosas lições no vácuo de idéiasem que paira a esquerda.

Professor na Universidade de Bangladesh, no começo dos anos70, eu ensinava então, como muitos outros, elegantes teorias econô-micas sem me colocar muitas perguntas. Mas, quando o Bangladeshfoi atingido violentamente por uma terrível fome, nos anos 1974-75,meu entusiasmo começou a vacilar.

Fomos alguns a tomar consciência do abismo entre a condiçãode vida das pessoas atingidas pela fome e o caráter abstrato do univer-so econômico do qual falávamos.

Na realidade, nós não sabíamos nada das dificuldades encon-tradas no quotidiano pelos mais pobres. Situando-se Chittatong numazona rural, não foi difícil entrar em contato com as famílias de umpovoado próximo, Jobra.

Podíamos tudo aprender simplesmente observando-os viverem.Nós descobrimos com estupor que todas estas pessoas encontravam-se presas num círculo infernal, unicamente porque não possuíam umfundo de rolagem mínimo. Seria suficiente para cada um deles um

1Muhammad Yunus é fundador e presidente do Banco Grameen, autor de “Vers un mondesans pauvreté”, livro em colaboração com Alan Jolis e Jean-Claude Lattès, Paris, 1997. Esteartigo foi publicado no jornal Le Monde, 1997.

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ficas locais. Nos Estados Unidos, por exemplo, nos guetos de Chicago,o micro-crédito ajudou os pobres que viviam das ajudas públicas hátrês gerações a saírem deste sistema de dependência e a montaremseu próprio pequeno comércio.

Na Noruega, na região do círculo polar, o micro-crédito é utiliza-do para suprir o despovoamento das ilhas Lofoten. Permitindo a cria-ção de uma atividade econômica, se evita o êxido de numerosas mu-lheres para as cidades do sul. Nas reservas Sioux e Navajo, da Améri-ca do Norte, o micro-crédito combate diretamente a praga do alcoolis-mo, sempre presente... Nós temos programas de micro-créditos emcinqüenta e oito países. As vezes se afirma que os micro-créditos nãocontribuem ou o fazem muito pouco, para o desenvolvimento econô-mico dos países implicados. Mas o que significa “desenvolvimento eco-nômico”? Trata-se de uma renda por habitante?

Esta idéia não quer dizer grande coisa. É a melhoria da qualida-de de vida dos mais pobres que é, ou deveria ser, a essência do desen-volvimento. E esta qualidade de vida não pode reduzir-se à lista debens de consumo oferecidas a um ou a outro. Ela deve, para cada um,incluir os meios adequados de realizar-se plenamente.

A POBREZA PODE SER ELIMINADAMuitos estudos independentes provaram que, no espaço de dez

anos, um terço dos tomadores de empréstimos do Grameen passarãopara além do nível de pobreza, e que um outro terço estava muitopróximo disto. E vinte milhões de bengaleses, ou seja, quinze por cen-to da população beneficiam-se agora de um sistema de micro-crédito.Apoiados nestes resultados, nossa mensagem é sempre a mesma: apobreza pode ser eliminada, em todos os lados e sem esperar. É ape-nas uma questão de vontade política. Não se suprime a miséria semdar aos mais pobres os meios de controlarem, eles próprios, seus des-tinos. Não é o trabalho em si que elimina a pobreza, mas o capitalderivado deste trabalho... nossa experiência nos ajudou a compreen-der um fato essencial: com uma ajuda financeira mínima, os pobres

2,1 milhões dos emprestadores são mulheres. Por que, em lugar deemprestar ao chefe do lar (um homem na maioria dos casos), nós foca-lizamos nossa ação nas mulheres? Ser pobre no Bangladesh é difícilpara todos e pior quando se é uma mulher. Mas, quando as mães defamília recebem a oferta de uma possibilidade para sair do atoleiro, pormodesta que seja, elas se revelam mais combativas que os homens...A experiência tem provado: o crédito, quando passa pelas mulheres,traz mudanças mais rápidas que quando passa pelos homens. Não setrata apenas de dar-lhes o lugar que lhes cabia, mas bem mais, consi-derar-lhes como autores privilegiados do desenvolvimento. E as mu-lheres foram, efetivamente, a nossa arma mais eficaz contra a pobreza.

O sucesso do Grameen foi imediato. Em março de 1995 os em-préstimos acumulados atingiam o equivalente a um bilhão de dólares.Dois anos mais tarde, eles tinham dobrado. Diferentes tipos de em-préstimos são acordados (de um valor médio de 160 dólares) para per-mitir a criação de empregos, freqüentemente no setor de serviços, bemcomo na compra de casas ou, ainda, na locação de material ou mesmode animais. Quanto a nossa taxa de reembolsamento, ela se mantevesempre num nível alto (atualmente ela ultrapassa os 97%) e é em geralo que as pessoas consideram o mais inacreditável nesta aventura. Sãoos próprios tomadores de crédito, portanto as mulheres na sua imensamaioria, que são proprietárias do banco. Se o sistema do micro-créditotem êxito no Bangladesh, ele corre o risco de não funcionar em outroslados. É o que se apressam a dizer os detratores, após esse primeiroêxito. Era no entanto evidente que, emprestando dinheiro às mulheresdo Bangladesh, país muçulmano, o Banco Grameen colocou-secontracorrente dos usos de uma sociedade patriarcal. Muitas destasmulheres não haviam mesmo jamais tocado em dinheiro na sua vida.Ora, não apenas elas descobriam talentos graças aos empréstimosconsentidos, mas elas permitiam sua família de beneficiarem-se deles.Essa capacidade de ir contra as tradições estabelecidas iria nos ajudara implantar o micro-crédito em muitos lugares do mundo. Em cadapaís, nós adotamos nosso programa em função das condições especí-

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em que alivia a consciência dos ricos, mas desencoraja os pobres detoda iniciativa. Nós nos desembaraçamos de nossas responsabilida-des sem ver que as melhores intenções do início são seguidamente aporta aberta à ineficiência e à corrupção. As boas palavras não sãosuficientes: o que é preciso são mudanças estruturais, reais, para queos pobres possam aceder ao mercado da mesma maneira que os ricos.Os micro-tomadores de empréstimos podem organizar-se para forma-rem grandes empresas. Grameen Phone, por exemplo, é uma compa-nhia de telefone celular de dimensão nacional. Ela contará com cercade 1 milhão de clientes daqui até o ano 2003 nas regiões urbanas erurais do Bangladesh.

As mulheres que fazem empréstimos ao Grameen se transfor-mam assim em “relés-telefones” das aldeias: elas, que freqüentementenunca conheceram nem telefone nem mesmo eletricidade, possuemagora um telefone celular. Elas o alugam aos aldeões e ganham destemodo um pequeno salário. Estas mulheres tornar-se-ão, num prazo,proprietárias da Grameen Phone: elas comprarão partes, como elasfizeram com o banco Grameen. Esta sociedade será então a única nomundo no seu terreno, cujos acionistas serão mulheres provenientesde meios desfavorizados. Nas aldeias do Bangladesh não ligadas àrede elétrica do país, Grameen implanta sistemas de energia renovável(solar ou outra) afim de fazer funcionar telefone, iluminação, computa-dores. Grameen Cybernet, por seu lado, é fornecedora de serviçosInternet. O objetivo é permitir às pessoas trabalharem a partir de suaprópria aldeia, mesmo isoladas, sem precisarem emigrar para as cida-des na esperança de encontrar trabalho.

Um mundo no qual a pobreza será relegada ao museu é umobjetivo realizável. A miséria deveria fazer parte da história. No futuro,quando os escolares virão em ônibus visitar a seção “pobreza” do Mu-seu do Homem, eles ficarão horrorizados em ver a miséria e a indigni-dade que havíamos tolerado. Que a condição humana seja ainda aqui-lo que ela é, ao amanhecer do século 21, nossos filhos não nos perdo-arão...

dos países industrializados podem, eles também, melhorar considera-velmente suas condições de vida; 300 a 500 dólares são suficientespara comprar as ferramentas ou os materiais necessários para come-çar um negócio.

Não há necessidade de uma formação particular para se benefi-ciarem do micro-crédito: uma experiência profissional passada ou sim-plesmente aquela das tarefas domésticas quotidianas é, em geral, su-ficiente para lançar uma pequena empresa. O que faz falta é o capitalfinanceiro para que distribuir fundos sem tentar antes fornecer umaformação? Porque todo ser humano tem, desde o início, suas capaci-dades próprias. É o que poderíamos chamar a “Faculdade de sobrevi-vência”. Emprestar dinheiro permite a cada um colocar suas compe-tências em prática e sem demora. É evidente que a iniciativa individualtem limites. Mas, freqüentemente é a única solução para mudar o des-tino daqueles que nossas economias rejeitam. A pobreza não desapa-recerá em um dia. Para isso será preciso muito tempo, trabalho duro evontade. De acordo com nossas experiências, de cinco a oito anos sãonecessários para que uma pessoa sem teto e analfabeta consiga ultra-passar o nível mínimo de pobreza com a ajuda do micro-crédito. Apobreza, nós temos dito, decorre seguidamente da incapacidade dostrabalhadores em beneficiarem dos frutos do seu trabalho, porque elesnão têm o controle do capital. Os pobres servem, de fato, àqueles quedetêm este capital. Não apenas eles não são os herdeiros, mas elesnão podem fazer nada, pois lhe é negado o acesso ao crédito. Ao fio dotempo, acabamos por admitir como uma evidência a idéia segundo aqual não se pode ter confiança nos pobres em matéria de dinheiro.Mas, alguma vez nos colocamos a pergunta oposta e bem mais funda-mental: os bancos são dignos de confiança, em escala humana? Aajuda social distribuída por numerosos países industrializados, entreestes a França, permite aos mais pobres sobreviverem, mas nãoerradicar a miséria.

Viver não é apenas comer e dormir. O risco, com a caridade(seja ela individual ou estatal) é que ela perpetua a pobreza, na medida

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os recursos imaginários que a criança irá construindo, a partir da suaseparação do corpo materno. O texto torna-se muito claro e útil paratodos os que trabalham com a criança, na medida em que valoriza asvivências parentais e as rotinas cotidianas como fundadoras deste su-jeito cognitivo, o que, atualmente, vai contra a corrente das predomi-nantes propostas impessoais do modelo científico, esvaziadoras do valordas funções parentais. Também se destaca a importância dada à inclu-são da criança deficiente nos lugares sociais e os cuidados necessári-os neste processo, pois, segundo a autora: “a experiência da convivên-cia social em dupla com uma outra criança que também seja portadorado mesmo quadro. (...) e com o processo de identificação contínuacom os outros do social até a adolescência, a criança se identificarátambém com a rejeição social caso a comunidade não consiga enten-der suas próprias limitações para admitir as diferenças da condiçãohumana”.

O texto de Zulema Yañes centra-se nos problemas de aprendi-zagem, situando-os dentro dos aspectos estruturais e instrumentais dodesenvolvimento infantil e diferenciando quais são as patologias orgâ-nicas que põe limites reais nas aquisições cognitivas e nos processosassociativos. Zulema também faz um breve recorrido às diversas teo-rias que se ocuparam em explicar o processo ensino-aprendizagem e,através de citações de autores como Levin, Lajonquière, Jerusalinskye Freire, afirma que “os sintomas da infância requerem intervençãoclínica, já que o déficit instrumental que compromete, neste caso, aaprendizagem, pode fazer obstáculos na constituição subjetiva.” Tam-bém, no desenvolvimento de seu texto, observa-se a base de umaproposta interdisciplinar, na medida em que se preocupa em desmitificarum conhecimento pleno do profissional terapeuta e valorizar os sabe-res parentais: “Dar respostas a todas as perguntas dos pais suspende,por um lado, os interrogantes que eles devem se fazer em relação aseu filho e, por outro, nos coloca na completude de um saber que, na

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ESCRITOS DA CRIANÇA Nº 5Escritos da Criança. Porto Alegre, Centro Lydia Coriat,5, 1998. Edição Comemorativa aos 20 anos do CentroLydia Coriat de Porto Alegre.

Aedição comemorativa aos 20 anosdo Centro Lydia Coriat de Porto Ale-gre traz na capa uma ilustração mui-

to bem escolhida de Pablo Picasso e umeditorial que ressalta o compromisso de umgrupo de profissionais, que se reúne parafundar algo que se constitui como uma prá-tica diferente dentro de um determinado mo-mento histórico, em que predominam ou-tros discursos sociais. O compromisso com a veracidade de seus pos-tulados fica ressaltado pela palavra de Alfredo Jerusalinsky neste edi-torial, que faz um certo percorrido histórico das etapas de construção eafirmação deste Centro, finalizando com a referência, sempre justa-mente lembrada, ao colega Paulo César d’Ávila Brandão, através dacriação de um Centro de Estudos, principal meio de transmissão dosconhecimentos veiculados nestes 20 anos.

Sílvia Eugênia Molina abre o corpo do livro com dois artigos: “Obebê da estimulação precoce” e “A pequena criança da psicopedagogiainicial”. No primeiro, apresenta de forma concisa a situação do bebêcomo reparadora do fracasso dos pais e os efeitos das apostas parentaisno decorrer do seu crescimento. Dá ênfase às dificuldades de desen-volvimento como conseqüências do luto materno por um bebê, cujapotência reparadora apresenta-se fragilizada ou cessada. Passandopor uma clara e sucinta descrição das funções materna e paterna, acres-centa elementos de observação nos mecanismos cognitivos, que irãodesenvolver-se na etapa da psicopedagogia inicial. Neste segundo ar-tigo, Molina apresenta um texto extremamente didático, explicitando

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decifrar a posição subjetiva desde a qual a criança suportaria seussintomas, “uma chave que tornasse legível a situação clínica: o estatu-to psíquico do sintoma orgânico.” Por fim, nas duas partes finais de seutexto, refere-se aos ensinamentos vindos dos bebês sobre as dificulda-des provenientes da disputa pela autoridade entre os saberesmultifacetados sobre o infantil, dos vários profissionais envolvidos nosseus cuidados. É na preocupação de evitar os efeitos autísticos oupsicotizantes de um atendimento multidisciplinar, que nasceu a idéiade um terapeuta único. Este não se confunde com uma maternagem,por isso não disputa por um saber sobre a criança; ele se sustenta porum desejo terapêutico. Também não se caracteriza por ser um profissi-onal com formação universal, mas “apoiado em saberes que não lhepertencem e, ao mesmo tempo, preocupado incessantemente em tra-duzir os recursos e passos necessários à língua que a criança é capazde compreender e nos termos que a transferência em jogo lhe permiteregistrar”.

O texto desenvolvido pelo neurologista Rudimar Riesgo preocu-pa-se em demonstrar resultados de pesquisa sobre as conseqüênciasdo chamado “Choque do Nascimento”, descrito como uma “depressãotemporária imediatamente após o nascimento, com importantes alte-rações nos reflexos e no tônus muscular”. Pesquisa interessante, namedida em que revela quantas variáveis estão presentes num mo-mento que parece tão automático e vivido de forma igual por todas asmulheres, que é o ato de parir uma criança. Fornece elementos quepermitem a percepção das múltiplas formas em que o real pode fazerlimite no desenvolvimento de uma criança.

Nilson Sibemberg faz um percorrido sobre o conceito de autismoa partir de Leo Kanner (1943) até a medicina moderna do século XX eas influências das descobertas psicanalíticas. Apresenta algumas al-ternativas, como estratégias educacionais e técnicas comportamentais,que, ainda hoje, são as mais utilizadas para dar conta de uma certa

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realidade, não temos.”A riqueza de detalhes e a intenção de repassar cada etapa histó-

rica que precedeu a postura atual, característica do trabalho do CentroLydia Coriat de Porto Alegre, é a homenagem do longo artigo de AlfredoJerusalinsky aos 20 anos de trabalho com esta equipe interdisciplinar.Apresenta-nos as mudanças ideológicas com relação ao conceito dedoença mental, a partir da Revolução Francesa, com Phillipe Pinel; atéo momento empírico-positivista, caracterizado pela correspondênciaentre o sujeito e o objeto como critério fundamental do correto e doverdadeiro, percorrendo o último século. Os que inauguraram umateorização que levou em conta especificamente a criança foram osneurologistas: Ajuriaguerra, Kanner, Koupernik, Coriat, Lefevre, Ponces-Verges, a partir da década de 40. Aí Alfredo situa o início de uma vira-da, sendo uma das responsáveis Lydia Coriat, por romper o modelobaseado na concepção do arco-reflexo e introduzir as concepções dateoria analítica, através de uma clínica interdisciplinar. Jerusalinskydescreve com muita pertinência os desdobramentos das propostaseducativas e o conceito de “normalidade” a partir de Lasalle, a idéia do“funciona e não-funciona”, o surgimento da reeducação (para fazer fun-cionar o que não funciona) e a criação de um standard, dado por umconceito estatístico, que passa a ter como instrumentos as chamadas“baterias de testes”. Localiza, neste ponto, as origens da psicopatologiaclínica tradicional “que tem como substrato a necessidade industrial deuma força de trabalho humano uniformizada em seus conhecimentos”.A respeito desta generalização racionalista, que nivela transtornos deaprendizagem e mau comportamento, o autor relaciona numa nota definal do texto, que vale a pena ser lida, a desvalorização da função doprofessor e a crescente prescindibilidade da força humana de trabalho,nos tempos modernos. A ênfase na necessidade de uma interdisciplinaou mesmo transdisciplina fica expressa na proposta da Dra. Lydia Coriatem 1973, quando toma a psicanálise como base teórica para ajudar a

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RESENHARESENHA

inserção do autista no social. Embora os agentes causais sejam desco-nhecidos, no âmbito médico não há tratamento curativo para o autismo,por isso o que se busca com estas estratégias são pontos de comunica-ção, aquisição de comportamentos adequados e um conjunto de roti-nas que lhes permitam alguma interação social. A compreensão psica-nalítica do sujeito psíquico como efeito da linguagem vem revolucionaresta concepção médica tradicional. A direção da cura do autismo empsicanálise aponta para a inclusão subjetiva no campo significante.Este processo é sintetizado por Jerusalinsky, citado por Sibemberg,em quatro momentos fundamentais: 1) registros de janelas pulsionais;descontinuidade no sintoma; 2) acesso a ordem especular; 3) apareci-mento da demanda; 4) função simbólica e aparecimento da palavra. Ébastante clara a distinção entre as concepção re-educativa oupsicolinguística e a concepção psicanalítica do autismo. Para esta últi-ma, não se trata de colocar palavras na boca de quem não fala, mas deperceber que a fala da criança só pode surgir a partir da falta no Outroprimordial.

Ainda é sobre o autismo na infância que se refere o primeirotexto de Ana Marta Meira. Desta vez, a preocupação é quanto à marcairreversível que propõe este diagnóstico, consolidando comportamen-tos. A autora expõe, através de uma riqueza de exemplos clínicos e degrande clareza na linguagem, o quanto é importante diferenciar entreser autista e estar no autismo. A partir deste texto, já se percebe umadas principais questões presentes nesta edição que é a da inclusão.Tema este que a mesma autora desenvolve num segundo texto sobre“A psicanálise, a escola e a família hoje” e é profundamente trabalhadoem quase todos os textos que virão a seguir nas palavras de: ElaineMilmann, Stella Caniza de Paez, Claudia Werneck e Athos Schmidt. Aidéia de incluir crianças com dificuldades graves em classes comunspassa por preocupações como: até que ponto estar presente numa es-cola regular significa estar integrado e aprendendo? Que conseqüênci-

as subjetivas pode ter a demanda excessiva de uma classe regular? Oquanto uma escola está preparada para incluir as singularidades deuma infância normal? O que pensar sobre a formação dos docentes ea sua relação com as questões da inclusão? Tentativas de respostas aesta e outras questões são os caminhos percorridos pelos textos des-tes autores, chegando a tocar no ponto essencial de que falar em inclu-são/exclusão, atualmente, é falar de um questionamento muito maisamplo, isto é, uma transformação no plano ético.

Rejane Farias traz um texto ilustrativo do caso de um bebê dequatorze meses de idade que, através da estimulação precoce, ultra-passa suas defesas autistas e constrói com a mãe uma relação defiliação. A descrição de seu trabalho na clínica, no berçário e na casada família demonstra a responsável sustentação desejante que é ca-racterística do trabalho desta equipe.

Ao final são apresentados por Zulema Yañes, coordenadora doCentro de Estudos Paulo César Brandão, textos de alguns profissio-nais que tiveram neste Centro um importante local de formação e que,por isso, puderam dar conta de uma produção própria e colaborar comesta edição. São eles: Patrícia Balestrin Manenti, com o texto “O olhardo cego”; Julieta Jerusalinsky, com “De olho no instrumental da clínicapsicanalítica” e Maria Sandra Camerini, com “Venturas, a-venturas edes-venturas de um bebê”.

Ângela Lângaro Becker

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Hora20h30min

21h

20h16h30min20h30min20h

Hora21h21h

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Reunião da Comissão de BibliotecaCartel sobre o EnvelhecimentoReunião do FórumReunião da Comissão do CorreioJornada do Percurso de Escola II

AtividadeReunião da Mesa DiretivaAssembléia GeralJornada de Abertura da APPOA

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